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Mancha Neural

Daniel Alencar

Capa: Fabiano Caldeira


Revisão Contextual: Pink Ghost

Críticas, elogios e sugestões: agibiteca@gmail.com


Mancha Neural
1° Edição – Maio de 2020

Todos os personagens são de propriedade da Disney Inc. e utilizados sem a


intenção de auferir qualquer valor a título de lucro direto ou indireto.

As histórias são de autoria exclusiva do autor e podem ser copiadas, divulgadas e


disponibilizadas à vontade. O autor se reserva ao direito de pedir que as histórias
não sejam alteradas.

Este livro virtual está disponível gratuitamente na Internet, pelo site:

http://agibiteca.blogspot.com

Proibida a venda deste E-book ou sua versão impressa.


Para minha pequena, mas feliz família,
que me apoia em todos os meus projetos.
Agradecimentos

Considerando o período conturbado pelo qual estamos passando, meu maior


agradecimento é a Deus que tem mantido meu pequeno núcleo familiar com saúde.

Também quero citar os heróicos profissionais de saúde que saem de casa todo dia
para cuidar dos doentes e mante-los confortáveis.

E finalmente, obrigado a você que está aqui de novo após 7 anos do meu sumiço.
Espero não demorar tanto de novo.

Um abraço a todos os amigos.

Daniel
Índice

- Reflexões do Autor

- Informações

- Prólogo

- Ato I - Assassinos
- Capítulo 01: Lembranças
- Capítulo 02: Assassinos
- Capítulo 03: CIA
- Capítulo 04: Despedida
- Capítulo 05: Convite
- Capítulo 06: Natasha
- Capítulo 07: Mancha Neural

- Ato II - Guerra
- Capítulo 08: Dmitri
- Capítulo 09: Amigos
- Capítulo 10: Guerra
- Capítulo 11: Promessas
- Capítulo 12: Inocentes
- Capítulo 13: Mancha Negra

- Ato III - Confronto


- Capítulo 14: Sorriso
- Capítulo 15: Olhos
- Capítulo 16: Decisão
- Capítulo 17: Confiança
- Capítulo 18: Confronto
- Capítulo 19: Paz

- Epilogo
Reflexões do Autor

Bem vindo amigo leitor, há quanto tempo.

A última vez que escrevi a introdução de um livro, foi há 7 anos.

Eu achava que após os 4 livros de Nova Patópolis, talvez eu conseguisse escrever


ao menos um livro por ano... Ledo engano.

Por uma quantidade tão grande de motivos, eu travei e só recentemente consegui


voltar a escrever.

E valeu a pena?

Acredito que sim, pois considero o Mancha Neural meu melhor livro (individual) até
agora.

Além de ser uma história "fechada", trata-se da minha visão de outra parte do
universo Disney, os Ratos.

Claro que não será igual Nova Patópolis, que foi uma história intrincada envolvendo
o passado-presente-futuro de dezenas de personagens, que precisou de 4 (!) livros
para ser contada.

Mas...

Donald e suas frustrações sempre me pareceram mais críveis e aceitáveis do que o


universo perfeito do Mickey.

Mickey é perfeito, invencível, amado, cheio de amigos, tem a mulher ideal e


absolutamente tudo sempre é resolvido por ele, já que Pateta mais atrapalha do
que ajuda.

Isso mudou na série Mickey Mouse Mystery Magazine, quando isolado em


Anderville, o vemos ameaçado por corruptos, caçado por assassinos, apanhando,
sendo chantegeado, imigrando ilegalmente (!), assaltando um banco (!!!!).

Passei a gostar de Mickey muito mais após MMMM, tanto que o trouxe ao Brasil em
2013, traduzindo direto do italiano. E ainda hoje, publico as edições inéditas. Após a
experiência de Anderville, imaginei que ele em tese estaria mais maduro, mais
propenso a falhas e frustações.

Ledo engano 2! Até nas histórias mais recentes do mestre Casty (que acho muito
boas), o senhor perfeito está de volta.
Então, como foi em Nova Patópolis, se eu quisesse uma história humana,
angustiada e frustrada eu que deveria escreve-la.

Assim nasceu "O Mancha Neural".

Mesmo sendo contratado pela CIA, Mickey se questiona sobre seu papel. Também
conhece uma agente que já sofreu MUITO na vida, que faz seus problemas
parecerem insignificantes.

A vida pessoal do detetive ganha importância, já que até Donald está casado. Ele
ama Minnie mais do que tudo, mas o casamento o assusta.

E uma caçada ao terrorista que massacrou um vilarejo cheio de inocentes também


é algo que ele nunca esperou ter que fazer, a ponto dele não acreditar que seu
velho inimigo, Mancha Negra, poderia fazer algo tão terrível.

Quanto ao Mancha, um detalhe que sempre me irritou é a ausência de sua origem,


igual a Maga Patológica e a K Ka.

Don Rosa foi o ÚNICO roteirista que teve coragen de contar uma origem e olhem o
resultado... a Saga do Tio Patinhas tem prêmios Will Eisner e é cultuada no mundo
todo. Só por isso, pela coragem em quebrar uma tradição irritante da Disney, eu o
considero um dos melhores de todos.

Como obviamente não existe outro Don Rosa, não teremos a origem do Mancha...
e já que faço questão de tentar entender as motivações de cada pessoa, decidi
criar a minha versão.

É oficial? Não... é plausível? Deixo vocês decidirem... mas até o nome "Mancha
Negra" ganha um motivo...

E como já é costume em minhas histórias, temos uma forte personagem feminina...


Natasha Bykov está a caça do Mancha há muitos anos e tem um passado
conturbado com ele.

Bom, vamos os detalhes:

- O Livro tem três atos ou três arcos que podem ser lidos individualmente, mas
obviamente são interrelacionados.

- O primeiro envolve Mickey na trama do Mancha Neural.

- O segundo é a origem do Mancha Negra.

- O terceiro conclui a caçada, onde o detetive juntamente com sua amada, decide
parar seu inimigo não importa como.
O mais curioso é que enquanto escrevia o último capítulo, que eu considerava a
conclusão, uma continuação se desenhou em minha mente.

Já tenho o roteiro completo para o próximo livro, que acontecerá dois anos após os
eventos do Mancha Neural.

Nem vou prometer uma data, mas dos 32 capítulos roteirizados, já tenho 10
prontos.

Então, imaginem que o Mancha Neural não é o fim... é apenas o começo de uma
série que vai mexer com o universo dos Ratos.

É isso.

Espero de coração que você que está lendo esta linha, realmente goste de minha
visão e que me faça o favor de comentar oque achou, por email, facebook ou
mesmo um comentário no blog.

Um grande abraço e vamos em frente.

Daniel Alencar
Informações

Esta obra é direcionada para qualquer leitor que se interesse em ver os


personagens de Walt Disney humanizados. O grande número de citações a obra de
importantes autores, tenta enriquecer o contexto e manter a coerência dentro deste
universo ficcional.

Para compreender a maioria das citações, recomendamos a leitura das seguintes


coleções:

- Mickey Mouse Mystery Magazine

- Darkenblot - o Mancha das Trevas

Ambas disponíveis gratuitamente no site:

http://www.gibiteca.com.br/
Prólogo

Há 07 meses...

A Armênia é um pequeno país entre a Ásia e a Europa, localizado em uma área


montanhosa sem costa marítima, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, fazendo
fronteira com a Turquia, a Geórgia e o Irã.

Há alguns anos, era a menor das repúblicas da antiga URSS, mas hoje voltou a
possuir o status de nação soberana. Sua pluralidade cultural e neutralidade política
garantem acordos vantajosos, tanto com a Rússia quanto com a União Européia.

Seu território é dividido em dez estados, sendo a província de Tavush a que possui
a maior área rural. Diversos povoados que vivem da agricultura de subsistência
estão espalhados pela região e a maioria das novidades tecnológicas passam longe
de lá.

O povo é conhecido por ser hospitaleiro e simpático com estrangeiros. Claro que é
mais comum os turistas procurarem cidades maiores, como a capital Erevan, mas
vez ou outra um deles se perdia na região mais isolada, onde a tranquilidade
permeava o ambiente em sua totalidade.

A primavera garantia o clima agradável e o sorriso nas pessoas, oque facilitava a


recepção de qualquer visitante no povoado de Nord, ao sul da província de Tavush.

A escassa quantidade de turistas que se aventuravam por lá transformava qualquer


um deles em alguém a ser bajulado. A esperança dos moradores era que alguém
bem tratado sempre iria indicar a única pousada existente para os amigos.

E foi em uma tarde tranquila como qualquer outra, que um visitante entrou a pé pela
rua principal do povoado, carregando uma pequena mala preta que aparentava ser
bem pesada.

Ninguém ousou perguntar quem ele era ou o quê fazia por lá, mas todo mundo fez
questão de recepciona–lo com acenos, cumprimentos e sorrisos.

Suas roupas eram típicas da região, o quê indicava que não era um europeu do
oeste, e sua altura, pele clara e traços fortes lembravam um Ucraniano ou um
Russo. E foi com esse pensamento que o senhor Mardirôs se aproximou do
visitante.

Mardirôs não tinha mais que quarenta anos e era proprietário de alguns pequenos
comércios na cidade, e por já ter viajado bastante, além de sua língua nativa, o
Armênio, ele conhecia razoavelmente bem o Russo.

– Prostite tovarishch, vy vidite russkie? – perguntou, verificando se seria entendido.


– Da – foi a resposta com um sorriso.

Mardirôs ficou aliviado e continuou alegremente:

– Fico feliz camarada, assim será bem fácil conversarmos. Será que eu posso te
ajudar em alguma coisa?

– Talvez. Eu gostaria de um local confortável e limpo para descansar e um bom


prato de comida – foi a resposta do forasteiro.

– Que bom, que bom. Você vai adorar a pousada "Monte Ararat" que fica na
segunda rua a direita, naquela direção – disse Mardirôs ainda sorrindo, ao mesmo
tempo em que apontava para o local aonde ele deveria ir.

– Obrigado camarada – respondeu o visitante, virando–se imediatamente na


direção indicada.

– Espere, espere. Meu nome é Mardirôs e se precisar de qualquer coisa, pode me


procurar. Todo o povoado me conhece por que sou dono do armazém e de dois
bares.

– Obrigado, vou me lembrar disso – respondeu ele de costas. Em seguida, passou


a andar rapidamente.

– Mal educado, nem me disse seu nome – foi o pensamento de Mardirôs, olhando-o
com uma ponta de desprezo a medida que se afastava.

O forasteiro seguiu em silêncio e sem olhar para qualquer lugar até chegar à
pousada. Era uma construção simples de alvenaria que não devia ter mais de dez
quartos e uma área para refeição.

– Perfeito – pensou ele ao passar pela porta.

– Boa tarde – cumprimentou, em Russo, a recepcionista Adriné, que normalmente


não tinha nada para fazer.

– Muito boa. Mas que vai ficar melhor se você tiver um quarto vago e uma boa
quantidade de comida – respondeu ele.

– Claro, claro. O senhor quer um quarto para essa noite? – perguntou ela de forma
atenciosa.

– Por tempo indeterminado – foi a resposta, curta e seca.

Adriné se espantou. Já era difícil aparecer alguém na pousada, quanto mais para
ficar mais de uma noite.
– Imediatamente senhor – disse ela enquanto pegava a chave de um quarto e o
livro de registro.

– Aqui está a chave do quarto 103. A diária é de 5.000,00 Drams (pouco menos de
10,00 euros) com refeições inclusas. Por favor, preencha o livro de registro – disse
totalmente animada.

– Depois eu preencho, agora estou cansado. Espero que isso seja suficiente por
enquanto – disse ele, colocando duas notas de 500 euros no balcão.

– Claro, claro. Tudo que o senhor quiser – disse Adriné, sem acreditar ao ver tanto
dinheiro.

Sem emitir qualquer som, ele se virou e seguiu em direção ao quarto. A pressa de
soltar a mala e relaxar não permitiram uma maior atenção na moça, que estava
com os olhos brilhando.

– Esse forasteiro deve ser muito rico, e pessoas ricas são excêntricas mesmo – foi
o pensamento dela.

Alguns passos depois, ele finalmente chegou a porta do quarto. Sem hesitar
colocou a chave na maçaneta, girou e entrou. O quarto era extremamente simples,
mas serviria ao seu propósito.

Trancando a porta, a pesada mala foi colocada em cima de uma mesinha e antes
de fazer qualquer coisa, ele a abriu e confirmou que tudo estava perfeitamente
intacto.

Algumas caixas pequenas com ampolas, equipamento médico, uma muda de roupa
dobrada, carteira, telefone e diversos outros itens estavam acondicionados
perfeitamente dentro da mala, que foi fechada em seguida.

Sentindo-se mais tranquilo, o forasteiro seguiu até o pequeno banheiro, que


continha uma toalha branca, limpa e felpuda.

O cansaço dos últimos dias estava começando a se fazer presente e nada melhor
que um banho para resolver isso. Com essa certeza, ele preparou–se para relaxar
tomando um banho e em seguida sairia para comer.

Alguns minutos depois, já embaixo da ducha quente, seu corpo começou a relaxar
e ficar mais leve. Já sua mente não parava um instante de imaginar o quanto de
trabalho o aguardava nos próximos dias.

Aquele pequeno povoado afastado era perfeito para um primeiro teste. Ele tinha
certeza que tudo daria certo, mas isso só poderia ser confirmado com um teste. E
até aquele momento, não havia aparecido um local melhor.
Colocando o rosto diretamente em baixo do fluxo contínuo de água, teve um
pensamento que o fez exibir um longo sorriso:

– Finalmente...
Capítulo 01 – Lembranças

Quinta-Feira, 20 de março, 14:27


Hoje

Após o violento empuxo inicial, o seguinte levou de 300 a 700 km por hora em três
segundos, e continuava acelerando sem parar.

Nessa velocidade, em apenas um minuto ele estaria ultrapassando o limite da


troposfera em direção ao seu objetivo.

Mickey não tinha como saber a sua velocidade ou localização, mas ele conseguia
sentir a inércia jogando–o violentamente para trás. A pressão era absurda, como se
uma mão gigante o prendesse contra a parede.

Essa sensação não era nada boa para seu corpo ferido. Segundo o médico que o
salvou, era necessário ficar pelo menos um mês em repouso absoluto. Como se
isso fosse possível.

750 km por hora, 800 km por hora, 850 km por hora.

A velocidade não parava de subir, mas em seus pensamentos, Mickey sabia que
não tinha escolha, de uma forma ou de outra isso iria acabar.

Mesmo racionalmente sabendo disso, lembranças não paravam de fluir. Pessoas


importantes, fatos antigos e recentes, casos interessantes ou mesmo detalhes
insignificantes.

Neste redemoinho mental, uma imagem se destacava. Um rosto que ele ansiava
muito poder rever, mas que estava cada vez mais distante.

Ele não tinha certeza se era realidade, mas aquele rosto estava bem na frente dele,
com aquele sorriso delicioso e os olhos que permitiam ele esquecer de tudo.

Estendendo o braço, ele tentava alcançar o rosto. Só isso importava, só isso


desejava.

– Minnie... – balbuciou no mesmo instante em que sua consciência começava a se


esvair.
Há 04 meses...

Naquela manhã de segunda–feira em Ratópolis, o sol havia saído cedo e a


temperatura se elevado rapidamente, o que por si só é algo que impede algumas
pessoas de ficar na cama até mais tarde.

Com o tempo quente, a vontade de levantar, arrumar as coisas, resolver


pendências ou apenas passear se faz presente em uma boa parcela da população.

A cidade de Ratópolis não chegava a ser uma metrópole, mas possuía um tamanho
bem razoável, com diversos centros de negócios. A área residencial podia ser
acessada por carro ou trem, opções mais usuais no dia a dia.

Ultimamente muitos habitantes passaram a trabalhar em Nova Patópolis,


preenchendo as vagas que eram abertas continuamente no setor turístico, hoteleiro
e de serviços. A distancia entre as duas cidades era menos de trinta quilômetros,
vencidos por carro ou coletivos fretados, que não gastavam mais de vinte minutos
entre cada viagem.

A Rua das Petúnias era apenas mais uma das tantas existentes no bairro “Monte
Branco”, que estava localizado a cerca de oito quilômetros do centro. Por ser
estritamente residencial, na maior parte das vezes, ficava vazia durante o dia.

Uma exceção era o morador do número 380, que só não se fazia presente em duas
situações, quando trabalhava fora da cidade ou quando estava com sua namorada.

Nesse exato instante, Mickey levantou–se da cadeira após degustar seu desjejum:
café puro, pão com queijo e um iogurte. Para ele não existia maneira melhor de
começar o dia, e agora ele poderia ir até a sala decidir o que fazer.

A sala de Mickey não possuía muita coisa e ele preferia assim, para facilitar a
limpeza.

Um sofá marrom de três lugares, uma estante média onde ficavam um aparelho de
televisão, DVD´s e livros, uma mesinha ao lado do sofá com um abajur e uma
mesinha de centro onde ele deixava as fotos de seus amigos e pessoas que valiam
a pena serem recordadas.

Esparramando-se no sofá, era impossível não olhar as fotos, um ritual que não
incomodava Mickey nem um pouco. Ele adorava rever os rostos das pessoas
estampadas em suas lembranças.

As mais queridas não envolvem casos ou aventuras, e sim, seus únicos e


insubstituíveis amigos.
Minnie ocupava um local de destaque quase no centro da mesa, e Pateta aparece
em uma foto juntamente com ele durante uma viagem. Outra tirada pelo Coronel
Cintra incluí-a Mickey com Minnie, Pateta, Horácio e Clarabela.

Além delas, uma foto de seu grande amigo Donald junto com os três sobrinhos e a
irmã é uma das mais lembradas. Foi tirada durante as férias em Patópolis, onde
Mickey hospedou-se na casa dele. Outra mais recente é do dia do casamento de
Donald e Karen, que formam na opinião de Mickey um belo casal.

A única parte negativa no casamento de Donald foi descobrir que sua querida
amiga Karen havia perdido a memória em um acidente e não se recordava dele.
Mas saber que ela estava feliz com Donald o deixou muito bem.

Não fazia muito tempo, ele recebera um telefonema de Donald informando que
Karen estava grávida. A notícia o pegou de surpresa, mas a felicidade que ele
sentiu ultrapassou e muito qualquer outra sensação. Ele desejava, de coração, que
Donald e Karen formassem uma grande e feliz familia.

– Karen, Karen, quem diria... – pensou Mickey sorrindo. – Aquela patinha petulante
e valente casada com meu mais velho amigo. O mundo é realmente muito
pequeno.

Diversas lembranças agradáveis (e outras nem tanto) sempre voltavam a tona


quando Mickey pensava em Karen. O tempo que ela se hospedou em sua casa
para ser treinada ainda estava bem vivo em sua memória, mesmo depois de tantos
anos.

Sem nem perceber, Mickey virou o olhar e viu a foto do seu velho amigo de
faculdade, Sonny Mitchel. Seu pensamento imediatamente saiu de Karen e foi para
Anderville.

– Anderville, a cidade mais corrupta que já vi – foi seu pensamento, com


lembranças intensas e não tão boas.

Mickey foi a Anderville ao herdar uma agência de detetives do seu amigo Sonny. Ao
chegar lá, diversos acontecimentos o obrigaram a permanecer mais tempo do quê
ele gostaria.

– Claro que um tiroteio na estação central, com o assassino Rud Kaminski era
motivo mais do que suficiente para a polícia ficar em cima de mim, mas o detetive
Clayton exagerava – pensou ele.

Sem querer, Mickey se envolveu com os poderosos da cidade. Da primeira tentativa


de assassinato até o envolvimento de policiais corruptos como Stellhammer, ele
imigrou ilegalmente para o México, se envolveu com o FBI e tantas coisas mais.
Claro que um dos itens que mais o traumatizou foi quando ele virou testemunha
chave do julgamento de um senador corrupto. A partir daí, a quantidade de
atentados a sua vida bateu um recorde. Bombas, atiradores e até um helicóptero
militar, todos querendo receber a gorda recompensa pela sua cabeça.

E para completar, no dia que finalmente sairia de lá, a bordo do expresso Black
Mask, um novo assassino quase explodiu sua cabeça com um projetil diferente de
tudo que ele já havia visto.

– Deixa pra lá – foi o último pensamento sobre esse assunto, após lembrar a
quantidade de vezes que imaginou que nunca mais voltaria a Ratópolis e nem veria
mais a Minnie.

Desviando os olhos para a direita, uma outra foto exibia a sua equipe da época da
P.I. (Polícia Internacional), onde ele pode conhecer diversos locais e agentes de
segurança do mundo todo.

Curiosamente, ninguém na P.I. entendeu o motivo do seu pedido de exoneração.


Para eles, era incompreensível que um agente tão competente não desejasse
seguir carreira em um local tão cobiçado.

– Eles nunca entenderiam – pensou consigo mesmo. Ser policial era algo que
Mickey havia jurado a si mesmo, desde os tempos do colégio, que nunca
aconteceria. Seus motivos eram muito íntimos para serem compreendidos.

As outras três fotos mostravam pessoas que lhe traziam boas lembranças, como o
bizarro Mox Mulder da divisão secreta do FBI chamada Arquivos Z, o repórter Belga
Tintão e seu cachorrinho Bilu e o trio de policias que ele conhecera em Las Vegas,
Rick Stoken, Dil Drissom e Cathetine Millows.

A última foto do canto era a mais recente, mostrando Zark, Bernard e Roxette, o
grupo que ele conhecera em Avangard City, conhecida como "A Cidade dos
Robôs".

Foi lá que Mickey descobriu e desmantelou um esquema de sequestro e


chantagem bilionária perpetrada pelo seu mais antigo inimigo, o bandido que ele
conhece apenas como "Mancha Negra".

O Mancha havia criado um Exoesqueleto nomeado como "DarkenBlot" que não


estava submisso as três leis da Robótica, e com ele, sequestrou o prefeito e
dezenas de chefes de estado, que só seriam soltos mediante o pagamento de um
resgate astronômico.

Após muitos percalços, o DarkenBlot foi destruido e o Mancha preso na prisão de


segurança máxima em Avangard City, ficando a espera do julgamento. Mickey
imaginava que após sequestrar tantos políticos e milionários, o Mancha seria preso
e a chave seria jogada fora.
– Faz tanto tempo que não resolvo um caso de verdade – foi seu pensamento
melancólico, ao mesmo tempo em que continuava olhando as fotos. – Mas é melhor
aproveitar o sossego, vai saber até quando vai durar – concluiu.

Mickey só não poderia imaginar que este sossego não duraria muito mais tempo.

Com esse último pensamento, ele sentou–se em sua poltrona favorita, ligou a
televisão e começou a mudar os canais de forma aleatória. A medida que mudava
os canais, sem encontrar nada realmente interessante, ele recordava o último final
de semana. No dia anterior, uma pizza com Pateta o deixara com ânimo de
começar a semana, pois a conversa com seu velho amigo o animara
consideravelmente.

Já no sábado, um jantar a luz de velas na casa de Minnie. Muito romantismo e uma


noite dormindo abraçado com ela compensou o cansaço da semana inteira. Mickey
as vezes se perguntava se não estava se aproximando da hora dele casar e ter
uma família, igual ao Donald.

Pensando nisso, sem nem perceber, o canal por onde ele havia acabado de passar
chamou sua atenção. Só deu tempo de ler a frase que passava em baixo da
imagem do repórter: "...encontrados mortos...". Mais que rapidamente, Mickey
voltou um canal e parou no Duck News, canal de Nova Patópolis com notícias 24
horas.

Mickey leu a sinopse da notícia que era exibida continuamente, ao mesmo tempo
em que o repórter tentava claramente falar com uma autoridade e era ignorado.

"Massacre sem explicação em pequeno vilarejo. Todos os habitantes encontrados


mortos sem qualquer sinal de violência".

Após alguns segundos sendo ignorado, o repórter se voltou para a câmera e


recomeçou a falar:

– É isso mesmo Bill! Infelizmente as autoridades se recusam a comentar ou


especular qualquer motivo que possa ter causado a morte de cerca de duzentas e
trinta pessoas, todas sem qualquer marca de violência.

– Está sendo cogitando ataque químico ou biológico, Leonard? – ouviu–se a voz do


âncora da emissora ao fundo.

– Oficialmente não, Bill. Os corpos foram encontrados em casa, na rua, na escola,


como se tivessem morrido onde estavam, sem procurar ajuda ou reagir. Pelo que
notei, as pessoas próximas daqui estão muito assustadas.

– Imagino Leonard. Por enquanto obrigado. Agora vamos voltar aos estúdios e
retornaremos com você a qualquer momento.
– Tudo bem Bill. Aqui fala Leonard Oliver direto da Armênia, próximo ao povoado
de Nord, onde um inexplicável massacre...

Mickey desligou. Esse assunto o incomodou imensamente.

– Mais de 200 mortos sem explicação? Meu Deus... – Pensou enquanto se


levantava para ir até a cozinha pegar algo para beber.

Ao mesmo tempo, a milhares de quilômetros de distância, o fim da tarde seguia seu


ritmo normal na Armênia, mais precisamente na pequena cidade de Spitak, ao norte
da província de Lorri. As pessoas seguiam suas vidas normalmente sem saber do
massacre que vitimou seus compatriotas.

O que estava chamando a atenção de um pequeno grupo de idosos sentados nos


bancos de uma praça, era um forasteiro que caminhava pela avenida principal. Ele
era alto, tinha a pele clara e parecia um Russo. Apesar de que a pequena mala
preta que ele carregava não parecia com nada que eles já tinham visto.

Com uma expressão aparentemente fechada, ele seguia a passos firmes em


direção ao pequeno e único hotel da cidade.

Os idosos ficaram tranquilos, pois era costume receber muito bem os visitantes e o
forasteiro logo se sentiria em casa. Claro que essa tranquilidade desapareceria em
um átimo se eles desconfiassem dos motivos que o levara até a cidadezinha.

Sentimentos intensos atormentavam aquele homem no exato momento em que o


seu local de destino se aproximava.

Em seu íntimo, o forasteiro se culpava. Ele acreditava que já tinha controlado o


processo e por isso realizou um teste em larga escala. Com pensamentos
nebulosos e palavrões terríveis, ele tentava se acalmar e pensar em como corrigir o
que tinha dado errado.

Sua única certeza era que nada ou ninguém o pararia.


Capítulo 02 – Assassinos

Quinta-Feira, 20 de março, 14:28


Hoje

"Não importa o que aconteça eu sempre te amarei"

Belas palavras, um pouco piegas é verdade, mas foram ditas com total sinceridade
durante um abraço apertado e uma lágrima contida.

Mickey sempre se recordava dessas palavras.

Por pior que estivesse sua situação, a certeza de rever Minnie funcionava como o
maior dos incentivos.

E foi esse incentivo que o manteve consciente. Relembrar o rosto de sua amada o
manteve acordado, mesmo quando seu corpo quase desistia.

900 km por hora.

Nesse instante, a taxa de aceleração estava caindo, permitindo que ele retomasse
o equilibrio e desencostasse da parede, arriscando um passo em direção a porta da
cabine.

– Eu vou pará-lo Minnie... – balbuciou.

"Não importa o que aconteça..." .

A concentração estava difícil de ser alcançada, mas a força de vontade falava mais
alto a cada pensamento.

– Eu vou pará-lo Minnie... para salvar você...

“...eu sempre te amarei”.

E com essas palavras, ele conseguiu terminar o primeiro passo.


Segunda-Feira, 17 de fevereiro, 07:32, em algum lugar no estado da
Virgínia...

A fumaça dos cigarros fumados em sequência permeava todo o ambiente daquela


sala fechada.

A decoração sóbria, com uma mesa e duas cadeiras, um computador e um arquivo


de metal, não era nada parecido com um lar. Mas era o que havia sido para este
homem nos últimos dias.

A tensão e ansiedade pela qual esta pessoa passava, que motivava este
comportamento anormal de fumar o dia todo, algo obviamente prejudicial e
incômodo, não podia ser explicada racionalmente.

Aquela pessoa já presenciara muitas coisas ruins, e com isso havia adquirido uma
certa intuição. E era esta voz interior que se negava a aceitar que estes eventos
não tinham qualquer ligação, apesar de serem aparentemente aleatórios.

Mas felizmente os ouvidos certos o escutaram e decidiram realizar os testes,


mesmo não entendendo bem oque ele esperava encontrar.

Após quinze minutos e três novos cigarros apagados, uma batida na porta o trouxe
subitamente para o momento presente.

– Com licença senhor – foi a frase dita, com todo o respeito, pelo agente que
adentrara a sala.

– A vontade – respondeu, esperando de coração que esta interrupção fosse


motivada por algo importante.

– Mandaram entregar este envelope para o senhor. Disseram que é a resposta que
estava aguardando. – se apressou em dizer o rapaz, enquanto estendia o item tão
esperado.

– Finalmente – foi a única palavra sussurrada, ao mesmo tempo em que pegava o


documento e o abria rapidamente.

Nestes poucos segundos antes de visualizar o conteúdo, ele não sabia se desejava
que sua intuição estivesse certa ou errada.

Mas em questão de segundos, a terrível confirmação havia sido lida.

– Maldição – sussurrou para si mesmo.

– Senhor? Posso ir? – perguntou o rapaz meio sem jeito, já que não havia sido
liberado. E o cheiro de fumaça o estava perturbando.
Não houve resposta.

– Senhor?

– Ah sim. Preciso que me faça um favor – respondeu o homem ao mesmo tempo


em que acendia outro cigarro e pegava um bloco de notas.

– Ligue para o agente Smith e mande-o retornar para cá. Diga-lhe que é um código
Ômega. – falou apressadamente enquanto escrevia no papel.

– Sim, senhor. Mais alguma coisa? – falou o garoto, sem ter a mínima idéia do que
era um código Ômega.

– Sim. Vá ao arquivo e traga–me as pastas dessas pessoas – concluiu o homem,


dando uma longa baforada e entregando o papel para o rapaz.

– Sim senhor, agora mesmo senhor – respondeu apressadamente enquanto saía


da sala, procurando um pouco de ar fresco.

Após uma outra longa baforada, o único ocupante da sala apagou o cigarro em um
cinzeiro lotado, para em seguida se levantar e andar nervosamente em volta de sua
mesa.

– Sim, só pode ser ele. Mas desta vez, este maníaco foi longe demais. – era seu
pensamento ao mesmo tempo em que pegava outro cigarro.

– Você terá sua chance garota, mas não irá sozinha – concluiu seu raciocínio
enquanto acendia o cigarro e imaginava o quanto demoraria para o agente junior
trazer as pastas.

O agente especial Anderson da CIA estava com um grande problema nas mãos,
mas após pensar muito, sabia exatamente a quem repassa–lo.

Neste instante o agente Ethan, que era como um estagiário, chegava aos arquivos.

– Deixe ver – pensou ele enquanto lia o papel – preciso pegar as fichas de...

– Ivanov... Bykov... e... hum? Mouse, Mickey? Quem diabos é esse?

Mas não cabia ao rapaz questionar um superior, então mesmo intrigado, ele
simplesmente foi procurar as pastas requisitadas.

Segunda-Feira, 17 de fevereiro, 10:45 - Ratópolis...

O dia havia amanhecido há pouco mais de três horas naquela segunda-feira. O


bairro silencioso e a rua vazia completavam o cenário de tranquilidade.
Após engolir uma xícara de café, o detetive sentou em sua poltrona e ligou a
televisão baixinho só para fazer barulho. Sua atenção estava em uma revista de
pesca, já que ultimamente o Coronel Cintra o convidava, esporadicamente, para um
passeio de barco.

Sem querer pensar muito, decidiu sair para almoçar fora, e o tempo ensolarado o
motivou a ir até a sua lanchonete favorita para degustar um de seus deliciosos
sanduiches com batatas fritas.

Quase saindo de casa, andou em direção a televisão para desliga-la, mas não foi
rápido o suficiente para deixar de ouvir a seguinte noticia:

– O assassino do industrial Epo Luimuito foi preso no inicio da manhã em um


armazém perto do porto. Sem oferecer qualquer resistência, os policiais o
encontraram em estado quase catatônico. Já na delegacia, temos noticias de que
ele não disse uma palavra...

– Como tem louco nesse mundo hoje em dia – pensou Mickey no instante em que
desligava a televisão.

Já fora de casa, um rápido aceno para o vizinho o fez esquecer completamente o


que tinha acabado de ouvir. Sem qualquer pressa, entrou na garagem, deu ignição
no carro e habilmente saiu de ré, seguindo ao seu destino.

Um pouco antes de chegar na lanchonete, ele começou a relembrar das vezes em


que levou Karen até lá. O fato de quatro lanches caberem naquele corpo magricelo
era algo a ser analisado com cuidado.

Com um sorriso, pensou nas diversas encrencas que aquela patinha espevitada
havia causado em sua vida no pouco tempo em que a hospedou. Sem contar as
inúmeras discussões.

Infelizmente ao lembrar–se dela, um sentimento de culpa também retornava. Ele a


expôs e foi obrigado a fazer algo que tinha jurado nunca fazer.

– Foi necessário – era o pensamento recorrente que o fazia sentir–se melhor.

Novamente o agradável dia ensolarado preencheu seu pensamento e fez


desvanecer esta sensação ruim.

Chegando na lanchonete, Mickey estacionou na lateral direita, decidido a comer


com calma dentro do estabelecimento, já que sempre que tinha um caso para
resolver, preferia comprar no drive–thru para depois comer no próprio carro, muitas
vezes em movimento.
– Mickey, que prazer revê-lo! – Disse uma das garçonetes em alto e bom som no
momento em que ele entrou.

– Obrigado – respondeu timidamente após notar que várias pessoas olharam para
ele.

O detetive não estava acostumado a ser alvo de tão caloroso cumprimento,


possivelmente a garota estava de ótimo humor.

– Sente, sente. Já vou te atender. Tenho certeza que você está com a vida
tranquila, já que se deu ao trabalho de entrar – concluiu a moça sorrindo.

Ela carregava uma bandeja cheia de lanches e estava vestida toda de branco, com
uma blusinha e saia curta, meias e sapatos pretos.

Mickey simplesmente concordou com a cabeça e dirigiu–se a mesa mais próxima,


pois queria parar de chamar a atenção. Muitos dos presentes o conheciam pela
televisão, normalmente prendendo bandidos, mas sua fama de reservado e mal
humorado fazia as pessoas terem um certo receio de aborda–lo.

Claro que isso não impediu a feliz atendente:

– Então senhor Sherlock Holmes de Ratópolis, o que posso trazer para aplacar sua
fome? – perguntou ao mesmo tempo em que abria o bloco de pedidos.

Mickey sabia que ela não estava sendo irônica, havia realmente admiração
naquelas palavras, então ele se limitou a sorrir discretamente ao pedir:

– O número três completo com fritas e uma coca-cola com limão no copo.

– Uau, belo pedido. É pra já, meu querido cliente faminto. – disse ela espantada,
saindo rapidamente em seguida.

– Garotas... Complicadas de conviver, mas não vivemos sem elas – pensou com
um sorriso.

A televisão do local estava ligada em um programa de esportes, o que diminuia


totalmente seu interessa. Ele usaria seu tempo para refletir sobre coisas mais
importantes.

Mas não houve tanto tempo assim, o lanche foi trazido em menos de cinco minutos,
o que só poderia significar que passaram seu pedido na frente.

– Aqui está, querido – falou a moça ao colocar o prato na mesa. – Sei que você
está faminto, então dei um jeito de ser rapidinho – concluiu com uma piscada.

– Obrigado – respondeu levemente encabulado.


Não era hora de pensar, apenas aproveitar aquela delícia enquanto estava quente.

Cerca de quinze minutos depois, o super churrasco da casa, com maionese e fritas,
já havia sido devorado. Agora só restava esperar a sensação de saciedade diminuir
um pouco, afinal, ele não abria mão de uma sobremesa. Sem mais nada para fazer,
ficou em silêncio, e nesse instante, o som da televisão invadiu seus ouvidos.

– Um tiroteio na sede do banco Paralax na África do Sul terminou com ao menos


uma pessoa morta. Um assassino, disfarçado de cliente, sacou uma pequena arma
da valise e a descarregou no presidente da instituição que estava em um evento,
ministrando uma palestra no auditório...

– Mais noticias tristes – pensou Mickey ao mesmo tempo em que desistia da


sobremesa – Será que não há local onde eu possa ficar em paz por algum tempo?
– se perguntava, enquanto se dirigia ao caixa.

Após pagar a conta, com uma respiração funda e uma esticada de braços, sentiu–
se animado para retomar seu caminho e suas pequenas obrigações.

– Volte sempre Sherlock – despediu–se a garçonete ao vê-lo andando em direção a


porta.

Um leve aceno, juntamente com um sorriso sincero foi a resposta.

Saindo da lanchonete, seu pensamento já se encontrava em outro local. Mais


precisamente em outra pessoa, Minnie, sua primeira namorada e se tudo corresse
bem, sua futura esposa.

Todas as dezenas de situações, boas e ruins, pelas quais eles já haviam passado,
só serviram para uni-los cada vez mais. Até mesmo aquela vez, há pouco mais de
dois anos, onde ele tinha certeza de que nenhum dos dois escaparia com vida.

Com a cabeça longe, ligou o radio para tentar sintonizar uma música. No momento
que girava vagarosamente o dial, uma noticia estava sendo veiculada em uma das
estações:

– O assassino do empresário londrino...

Sem se dar conta do que estava sendo anunciado, mudou a estação e encontrou
uma música agradável e tranquila.

Ainda pensando em Minnie ele se perguntava por quanto tempo conseguiria


“enrola-la”. Afinal, após ela descobrir que Donald havia se casado, esse assunto
tornou-se muito frequente no dia a dia de ambos. Não que ele achasse que o
casamento fosse uma coisa ruim, só imaginava que não estava pronto para um
compromisso deste porte.
Mickey gastou o resto da tarde em diversos afazeres domésticos.

Passou no mercado, no local que comprava galões de água, na padaria, na


doceria, abasteceu o carro e finalizou na banca de jornais.

Ao entrar, a seguinte manchete do jornal estampava a página principal:

"O Assassinato do maior acionista da Petrolífera..."

Por algum motivo, ele não leu o final da notícia e preferiu voltar para casa, onde
teria que limpar algumas coisas, lavar um pouco de roupa e mexer no seu jardim, e
sem nem notar, o dia acabaria tranquilamente.

A noite, Mickey aprontava-se para dormir, pois como só veria Minnie na noite do dia
seguinte, não havia muitos motivos que o mantivessem acordado depois das 22:00
hs. Ao sair da sala para pegar um copo de agua, a televisão estava exibindo um
programa de entrevistas.

Retornando, a programação fora interrompida por uma noticia de última hora:

– O Senador Altair Johnson foi baleado...

Antes da frase terminar, Mickey desligou o aparelho sem se dar conta da


importância da noticia.

Seguindo para o quarto, imaginou novamente quando seus serviços seriam


necessários e quando ele teria um novo caso para resolver. Ironicamente, ele não
havia percebido que seu próximo caso estava se delineando bem na sua frente e
em apenas alguns dias ele seria muito requisitado.

Ao mesmo tempo em que Mickey adormecia, muito longe de Ratópolis, uma pessoa
estava completamente acordada. Os últimos acontecimentos o deixaram
extremamente animado.

Esse homem sintonizava diversos canais, de várias partes do mundo, para


acompanhar os resultados de seu trabalho dos últimos meses. Cada morte
anunciada era mais um passo em direção ao novo mundo que ele criaria.

– Finalmente, finalmente – dizia ele em voz alta – Após tantas interrupções está
dando tudo certo – continuava falando ao mesmo tempo em que enchia uma taça
de vinho.

Bebendo rapidamente, ele permitiu-se um pensamento feliz:


– Dessa vez nada e nem ninguém vai me parar. Até mesmo aquele maldito rato
intrometido não saberá o que o atingiu. Só preciso dar um jeito no incômodo que já
está na minha pista há um bom tempo.

Após terminar sua bebida, ele soltou uma gargalhada sinistra e alta o suficiente
para abafar o som da televisão.
Capítulo 03 – CIA

Quinta-Feira, 20 de março, 14:29


Hoje

– Eu sei, eu sei... Devia ter te ouvido... aposto que você vai me falar isso durante
anos após nosso reencontro – pensava ele, com um leve sorriso no rosto.

Há alguns segundos, Mickey percebera que essa pequena conversa interna o


ajudava a manter o foco.

Mais um passo.

– Eu não me recuperei totalmente... Eu sei... Sei que quase morri há alguns dias...
E sei que você me salvou...

Mais um passo.

– Quando estivermos velhinhos, vamos nos lembrar desses dias... E rir... De como
um teimoso cabeça dura se esforçou para vivermos até a velhice...

Mais um passo.

– Mas te conhecendo, sei que você dirá que me arrisquei muito... E terá razão...
Estou arriscando tudo... por você...

Mais um passo.

– Mas o quê posso fazer? A única coisa que me vem a mente é te manter segura...
Não posso permitir que algo de ruim te aconteça...

Mais um passo.

– Por isso, tenha certeza... Por você eu faria tudo... Iria até o fim... E sacrificaria
minha vida sem hesitar...

Mais um passo.

950 km por hora.


Sexta-Feira, 21 de fevereiro...

Aquela sexta–feira iniciou muito antes do que era esperado, já que por volta das
sete da manhã, quando o sol ainda não havia despontado, o toque insistente do
telefone fez Mickey levantar com uma pontinha de mau humor.

– Droga! – pensava Mickey ao mesmo tempo em que ia atender – ainda aprendo a


tirar essa porcaria do gancho. – concluiu ele, pegando o fone.

– Mickey, desculpe ligar tão cedo, mas poderia vir para cá imediatamente? – foi o
que ouviu um instante após encostar o fone na orelha. A voz rouca e inconfundível
do Coronel Cintra não soava muito feliz naquele momento.

– Sim, mas...

– Obrigado, sabia que podia contar com você. – finalizou o Coronel, desligando em
seguida.

Antes de conseguir falar qualquer coisa, o tom de ocupado do telefone deixou


Mickey atônico. Associado ao sono que ainda sentia, permaneceu parado e
olhando o vazio por alguns momentos. Após cerca de três minutos conseguiu
raciocinar e decidiu trocar–se para ir a delegacia.

Apesar da palavra “imediatamente”, demorou quase uma hora para ele entrar na
delegacia central de Ratópolis. Incredulidade, sono e mau humor se juntaram para
dificultar o banho, a escolha de roupas, o café engolido e os dez quilômetros
vencidos com o carro. Sua má vontade só não era maior por que ele estava curioso
pelo motivo desse chamado.

– Fala aí nanico – cumprimentou o Tenente Joca, cruzando com ele na entrada – O


que esta fazendo por aqui essa hora? Caiu da cama? Ou nem dormiu?

– Ainda não sei, mas pretendo descobrir em breve – respondeu Mickey sem dar
muitos detalhes, pois sabia que Joca o bombardearia com perguntas se soubesse
qualquer coisa.

Após mais alguns minutos, viu a distância o Coronel pegando um café na maquina
expressa. – Ótimo – pensou ele, imaginando que assim pouparia o tempo de ser
anunciado. Em seguida dirigiu-se rapidamente para onde o bom e velho Cintra
estava.

– Bom dia Coronel, me paga um café também? – perguntou da forma mais


amigável possível, não deixando transparecer sua contrariedade por estar lá
naquele instante.

– Mickey meu amigo, pago o que você quiser, mas não agora. Quem mandou te
chamar está lhe esperando há muito tempo – respondeu o Coronel em um tom
aliviado – Você pode ir até a sala onde o esperam que eu mando servir um café,
rosquinhas e o que mais você quiser – concluiu com um sorriso.

– Como assim, “mandaram me chamar”? – respondeu Mickey, mais surpreso ainda.

– Tudo a seu tempo, tudo a seu tempo. No momento basta que você vá até aquela
sala – disse o Coronel de forma enfática, apontando para um local que estava com
as persianas abaixadas. Em seguida se afastou rapidamente.

Ainda sem acreditar muito, Mickey foi em direção a sala indicada. Para um detetive,
os mistérios costumam só aparecer depois, e não no momento da convocação. Mas
o fato de saber que não era o Coronel que havia lhe tirado da cama o deixava mais
tranquilo.

Conforme pede a boa educação, ele bateu na porta e aguardou autorização pra
entrar. Como não houve qualquer resposta, um minuto depois ele abriu a porta
vagarosamente ao mesmo tempo em que falava:

– Com licença...

– A vontade – foi a única coisa dita por uma das pessoas que estavam lá dentro.

Sendo um bom observador e especialista em leitura corporal, Mickey rapidamente


analisou todos os ocupantes da sala: dois homens sentados, vestindo impecáveis
ternos pretos e um cinzeiro em cima da mesa com mais de doze bitucas, uma jarra
de água pela metade, quatro xícaras de café, algumas pastas e um olhar levemente
impaciente. Além dos dois, cuja única diferença visível era o cabelo, que era
grisalho em um e castanho escuro no outro, uma mulher encostada na parede com
longos cabelos negros e dois olhos verdes que o fitaram imediatamente. A roupa
dela indicava claramente que não era da mesma equipe dos dois homens, pois ele
só via um longo casaco marrom, fechado e amarrado na cintura.

– Sente–se senhor Mickey Mouse – disse o homem de cabelo castanho, apontando


para uma cadeira – Nós estávamos te aguardando há varias horas.

– Desculpe a demora, mas eu não costumo funcionar muito bem pela manhã. – Foi
a resposta, levemente constrangida.

– Tudo bem, foi só um comentário. – Disse ele ao perceber o constrangimento de


Mickey.

– Bom, agora estou aqui. Em que posso ajudar? – respondeu o detetive tentando
disfarçar uma grande curiosidade.

– Sr. Mickey, permita-me que eu nos apresente, sou o agente Smith e meu colega é
o agente Anderson, ambos do setor de contraterrorismo da CIA – falou rapidamente
o de cabelo castanho. O de cabelo grisalho não abrira a boca até então.
– Muito prazer – disse ele, acenando levemente com a cabeça. Com certeza o
agente Smith era o subalterno do que estava calado. E o fato da mulher não ser
apresentada comprovava que a mesma não fazia parte da equipe.

– Serei direto, senhor Mickey. Recentemente, uma questão de segurança nacional


chegou a nosso conhecimento e acreditamos firmemente que o senhor poderá ser
de grande valia para resolver este problema – disse rapidamente o agente Smith.

– EU? – respondeu Mickey com surpresa. – Creio que os senhores estão mal
informados ou me superestimando. Sou apenas um detetive de cidade pequena
que...

– Senhor Mickey – respondeu o agente Smith, fazendo um sinal para que ele se
calasse. Ao mesmo tempo, abriu uma das pastas que estava na sua frente.

– Nós não estaríamos aqui se não estivéssemos totalmente informados sobre seu
currículo. – disse Smith com firmeza. – Após centenas de casos resolvidos aqui em
Ratópolis, o senhor ajudou a polícia de ao menos quinze estados e de mais
diversos países.

– Sim, mas são casos simples de roubos, assassinatos, extorsões. Algo nem
próximo do que se deve esperar de um agente de contraterrorismo – argumentou
Mickey.

– É óbvio que o senhor se subestima. O caso Laswell em Anderville o tornou uma


celebridade nos meios legais. Imaginava que o senhor estava ciente disso –
respondeu Smith de forma impassível.

– Eu dei algumas entrevistas é claro, mas um senador corrupto não é um terrorista


fanático que decidiu explodir uma escola. Eu não tenho qualquer experiência com
esse tipo de maluco – replicou Mickey, realmente incomodado com a conversa.

– Senhor Mouse, creio que deveria deixar o agente Smith terminar – falou pela
primeira vez o agente Anderson. Seu tom frio indicava que ele estava acostumado
a ser obedecido.

– Tudo bem, eu vou ouvir atentamente – resignou–se o detetive.

– Obrigado – comentou Smith. – Duas coisas nos dão a certeza de que o senhor
será imprescindível nesse caso e uma delas foi o seu sucesso em Avangard City.

Mickey travou. Ele lembrava como se fosse ontem do Mancha Negra, o sequestro
dos políticos e ricaços, o ataque do Darkenblot e toda a loucura que foi conseguir
sair vivo de lá.
– Sabemos que o senhor libertou o Marajá do Longistão, o príncipe regente de
Mônaco e até o vice-presidente. A segunda coisa é seu grande conhecimento sobre
o criminoso conhecido como Mancha Negra.

Agora Mickey congelou. Só havia um motivo para terem falado sobre isso.

– Mas até onde sei, o Mancha está na penitenciária de segurança máxima de


Avangard City. Ou não? – perguntou, já sabendo a terrível resposta.

– O senhor é bom – falou Smith espantado. – Creio que já entendeu todo o


problema. O criminoso, conhecido como Mancha Negra, escapou da prisão após
algo invadir o local, causando uma pane geral nos sistemas elétricos que desligou a
energia, câmeras e celas.

– Impressionante – murmurou Mickey.

– Perdão?

– Impressionante como não conseguimos segurar o Mancha. Por mais que tentem,
ele sempre escapa – concluiu com um suspiro.

– Sim, e por isso precisamos de sua ajuda.

– Mas o Mancha sempre foi um ladrão, o que aconteceu que chamou a atenção da
CIA e do departamento de Estado? – questionou o detetive, com uma curiosidade
genuína.

– Pode deixar que essa parte eu digo a ele, Smith – falou finalmente o agente
Anderson.

– Sim senhor.

– Senhor Mickey Mouse, o quê vou lhe contar agora é de conhecimento de apenas
meia dúzia de integrantes dos serviços de inteligência e creio que não preciso lhe
dizer que é estritamente confidencial – começou Anderson.

– Claro senhor – respondeu Mickey.

– Creio que o senhor deve acompanhar os noticiários e possivelmente lembra-se de


algo assustador que aconteceu alguns meses atrás. O pequeno povoado de Nord
na Armênia, onde mais de duzentas pessoas foram encontradas mortas sem
qualquer sinal de violência ou explicação – disse Anderson, pigarreando enquanto
acendia outro cigarro.

– Sim, me recordo – respondeu Mickey tentando não transparecer o quanto odiava


o cheiro de cigarro.
– A única parte da notícia divulgada foi essa. Mas é claro que o medo de algum
ataque químico ou biológico fez os serviços de inteligência do mundo todo tentarem
encontrar a resposta do que havia acontecido. Uma força tarefa internacional
recebeu a missão de definir o motivo exato das mortes – continuou ele, pausando
apenas para baforar rapidamente.

Mickey acenava a cabeça e continuava ouvindo atentamente.

– O resultado foi decepcionante. Não foi possível determinar a causa mortis, nada
em qualquer corpo indicava o motivo exato que teria causado o óbito. Na realidade,
a única coisa estranha era um pequeno detalhe, que de tão pequeno, a maioria dos
legistas não percebeu e só levaram a sério quando notaram isso em todos os
corpos.

– Uma pequena mancha escura de meio centímetro no cortéx cerebral das vítimas.
Uma mancha que ninguém conseguiu explicar a origem ou o motivo de estar lá,
mas que por si só, independente do que fosse, não poderia ter matado aquelas
pessoas. – concluiu Anderson, com olhar pensativo.

– Bom, admito que é um mistério bem grande, mas o fato de uma pequena mancha
estar na cabeça das pessoas, não indica qualquer vínculo com o Mancha Negra.
Mesmo por que, ele nunca foi um assassino. Lembro-me até hoje que no nosso
primeiro encontro, ele tentou de todas as formas me afastar, mas como não o fiz,
ele montou uma armadilha para me matar e não conseguiu assistir isso, o que me
permitiu fugir. – comentou Mickey, imaginando que o pessoal da CIA era muito
paranóico para o gosto dele.

– Exato senhor Mouse. Isso por si só não indica nada. Mas vamos avançar no
tempo e ver algumas manchetes mais recentes. – disse Anderson, retirando alguns
recortes de jornais de uma das pastas e espalhando na mesa.

“Industrial Epo Luimuito assassinado essa manhã”


“Presidente do banco Paralax morto por alguém disfarçado de cliente”
“Empresário Ted Mawson morto enquanto andava no parque”
“Senador Altair Johnson baleado em visita a escola”
“Prefeito de Bogotá morto em atentado”

Foram as manchetes que ele leu rapidamente. As demais, Mickey não considerou
necessário, pois não via qualquer vínculo nessas situações espalhadas pelo
mundo.

– O que o senhor acha? – perguntou Anderson interessado.

– Com o que eu sei até o momento, não acho nada – respondeu Mickey
secamente.
– Muito bom. Vamos ver se muda de opinião quando eu te contar mais quatro
detalhes – disse Anderson sorrindo, ao mesmo tempo em que amassava a bituca
no cinzeiro.

– Primeiro, todos os assassinos destes eventos foram capturados e são de origem


do leste Europeu. Não podemos comprovar exatamente de onde, já que todos
tinham documentos falsos, apesar de que um especialista em linguística da CIA
imagina que pelo sotaque, sejam ucranianos. Isso demonstra que uma única
pessoa os contratou ou financiou.

– Segundo, todos os assassinos estão em choque, sem falar coisa com coisa,
como se tivessem sofrido uma lobotomia.

– Terceiro, um dos assassinos morreu na prisão, gritando por alguns minutos com
uma intensa dor de cabeça. A autópsia não revelou nada, nem AVC, sangramento
ou tumor. Ele tinha apenas uma pequena mancha negra no córtex frontal.

Mickey começou a sentir um leve arrepio na coluna quando ouviu isso.

– E finalmente, após ser informado desse último item, meu instinto sinalizou que eu
deveria sugerir aos serviços de inteligência uma ressonância magnética nos demais
assassinos. Imagino que o senhor já deva deduzir o que foi encontrado em todos
eles – concluiu o agente, acendendo outro cigarro.

– Uma... pequena... Mancha... Negra... – balbuciou Mickey, enquanto sua mente


começava a imaginar mil cenários possíveis que pudessem explicar isso.

– Mas, mas, mas... Isso não faz qualquer sentido... Não é estilo do Mancha matar,
muito menos inocentes de um vilarejo do Leste Europeu. Como vocês chegaram a
essa conclusão? – perguntou Mickey com incredulidade.

– São apenas coincidências infelizes senhor Mouse, mas há oito meses o Mancha
Negra fugiu da penitenciária. Há quatro meses ocorreu esse massacre terrível e
agora aparecem os assassinos que não possuem qualquer vínculo direto entre si,
exceto a pequena e inexplicável mancha. Creio que no nosso trabalho, tantas
coincidências costumam indicar algo concreto, não? – retrucou o agente com uma
grande baforada.

– Certo. Vamos imaginar que o Mancha tenha algo a ver com isso. O que eu posso
fazer, considerando que não faço a menor ideia de onde ele está? E mesmo que o
encontre, qual seria a linha de ação a ser tomada? – perguntou Mickey agora
começando a ficar angustiado.

– Vamos por partes senhor Mouse. Para começar, creio que o senhor não conhece
realmente quem se esconde atrás da máscara do Mancha Negra. Estou certo?
– Já vi o rosto dele, mas caso se refira a nome ou biografia, não tenho qualquer
informação. – foi a resposta.

– Mancha Negra ou Dmitri Ivanov, tem a ficha bem extensa – falou o agente, ao
mesmo tempo em que entregava a Mickey uma outra pasta. Ao ser aberta, a foto
do vilão com seu rosto frio e calculista se destacava.

Mickey estava muito entretido olhando a pasta, senão teria percebido que a mulher
encostada na parede, que não havia dito uma palavra até então, se mexeu
nervosamente, mudando de posição várias vezes, assim que o nome “Dmitri
Ivanov” foi citado.

– De soldado condecorado do exército da Moldávia, durante a guerra contra a


União Soviética, a traidor da pátria. E isso é só o início – retomou a conversa o
agente Smith – Depois espião da KGB até o fim da guerra fria. Após desaparecer
por um bom tempo, retornou como ladrão, chantagista, sequestrador e outras
coisas.

– E também um gênio, não podemos esquecer. – comentou Mickey não


acreditando na quantidade de informação que ele desconhecia de seu velho
inimigo. – A cada vez que o encontrava, suas artimanhas e aparelhagem eram mais
avançadas. Eu nunca entendi por que ele simplesmente não ficava rico vendendo
suas idéas e criações, por que tinha que ser um vilão.

– Isso não nos diz respeito senhor Mouse – respondeu Anderson rispidamente. – O
que nos interessa é saber se podemos contar com o senhor nesse caso.

– Difícil saber se não me falarem o que esperam de mim – foi a resposta seca do
detetive.

– Claro, que distração a minha. Acreditamos que o Mancha se encontra na Ucrânia,


não tão longe do vilarejo onde ocorreu o massacre e local de onde acreditamos que
sejam os assassinos presos recentemente. Como o país é imenso e não temos
certeza que ele está lá, e nem se é realmente o culpado de tudo isso, não podemos
deslocar uma grande força para caça-lo. Já o senhor, que o conhece tão bem,
talvez tenha a capacidade de rastreá-lo melhor e caso o encontre, nos avisará para
pegá-lo – disse Anderson da forma mais convincente possível, dando a entender
que somente Mickey poderia fazê-lo.

– E eu vou sozinho? – questionou o detetive.

– Não exatamente. Agente Bykov... – retrucou Smith imediatamente.

Nesse momento, a mulher que estava encostada e em silêncio desde que Mickey
entrara na sala, aproximou-se da mesa, olhando fixamente o detetive. Seus longos
cabelos negros se mexiam a cada passo e sua face exibia um semblante duro e
impassível. Mesmo aparentando ser alguém em quem a vida bateu muito, havia
uma beleza quase selvagem em seu rosto.

– Senhor Mickey Mouse, apresento Natasha Bykov, ex-agente da KGB e agora


agente freelancer da CIA. Ela conhece muito bem o Leste Europeu e já tinha se
prontificado há muito tempo em caçar o Mancha Negra. Agora creio que chegou a
hora. – concluiu Anderson.

– Pra...zer? – disse Mickey visivelmente acuado enquanto estendia a mão. O olhar


da agente Bykov era um tanto quanto intimidante.

Não houve resposta. Ela simplesmente acenou com a cabeça e virou de costas
rapidamente, voltando para seu canto na parede.

– A agente Bykov não é de falar muito, mas creio que vocês irão se entender bem –
disfarçou Smith ao perceber o incômodo de Mickey.

– Agora por favor me responda. O senhor nos ajudará nesse caso? – questionou
Anderson, de forma incisiva.

Após um breve e ao mesmo tempo longo silêncio, Mickey olhou para seus
interlocutores e com um grande sorriso respondeu:

– Senhores, o que estamos esperando?


Capítulo 04 – Despedida

Quinta-Feira, 20 de março, 14:30


Hoje

Mickey estava na metade do caminho até a porta da cabine e continuava


avançando, devagar, por causa de seu corpo, mas resoluto, unicamente por causa
de sua força interior.

– Viu meu amor? Estou chegando... Não tem ninguém que me impeça de chegar
até lá...

Mais um passo.

– Prometo a você que vamos tirar férias... Longas... Sem celular, computador ou
qualquer forma de contato...

Mais um passo.

– Que tal Paris? Tenho certeza que você vai adorar... Não? Então Londres...
Sempre quis andar naquela roda gigante e conhecer o Louvre... Ah, você também?

Mais um passo.

– Então combinado... Eu vou até aquela cabine... Detenho o miserável... Volto para
casa... Volto para você... E vamos para Londres...

Mais um passo.

1.000 km por hora.

– Vou voltar para você... Eu prometo... E vou ouvir a pergunta que você quer
fazer...

Mais um passo.

– Vou voltar para você...

Mais um passo.
Terça-Feira, 25 de fevereiro...

Nos dias seguintes da reunião na delegacia, Mickey praticamente não saiu de casa.
Além de arrumar seus pertences e conferir tudo que precisaria levar, ele não
conseguia evitar de reler várias vezes todas as informações contidas na pasta
entregue pelos agentes da CIA.

Nunca havia passado pela sua cabeça o quanto o Mancha já havia aprontado
durante a guerra fria, normalmente do lado dos soviéticos. E foi durante uma de
suas últimas missões que eles se conheceram.

Mas para Mickey, o Mancha era um ladrão sorrateiro e inteligente. De forma alguma
ele pensaria na hipótese de que um filho de família tradicional e rica se tornaria um
traidor da pátria, mercenário, ladrão e agora possivelmente um assassino.

– Isso não faz sentido – pensava a cada novo detalhe descoberto.

Após isso, já com o voo marcado, ele decidiu passar seu último dia de folga com
Minnie. Ele teria que explicar a ela sobre a viagem e a missão, e certamente seria
muito melhor abordar esse assunto aos poucos em um passeio vespertino.

Durante uma caminhada na tranquila praça próxima de sua casa, Mickey contou a
sua amada, da forma mais doce e convincente possível, oque tinha acontecido.
Claro que a reação dela não foi a esperada.

– Espera aí, espera aí, deixa ver se eu entendi até aqui – disse ela em um tom
muito mal humorado após Mickey expor sua história.

– Um pessoal da CIA que você nunca viu, vai te mandar em uma viagem para o
Leste Europeu, no meio do nada, acompanhado de uma esquisita com ar de
assassina, para procurar o Mancha Negra que ninguém sabe onde está, pois
possivelmente, repito, POSSIVELMENTE, ele está envolvido em assassinatos sem
qualquer vínculo ao redor do mundo e em um massacre de uma aldeia no interior! É
ISSO MESMO SR. MICKEY? – falou rapidamente sem pausas, deixando muito
claro, na última frase, o seu descontentamento.

– E-e-e-então... Colocando dessa forma... É-é-é mais ou menos isso mesmo –


gaguejou um Mickey surpreso com tanta agressividade, pois normalmente Minnie
era mais paciente.

– Não faltava mais nada na minha vida! Não vejo meu noivo nas férias, não o vejo
mais que alguns dias até ele sumir em uma missão da polícia e agora... AGORA...
Ele vai para onde o vento se perdeu, com uma assassina, procurar um psicopata a
mando de uma sucursal dos homens de preto! – resmungava Minnie, com
incredulidade e falando consigo mesma.

– Mas amorzinho... – começou a dizer Mickey antes de ser sumariamente cortado.


– Amorzinho nada! Você quase não tem tempo livre só trabalhando com o Coronel
Cintra e agora vem dizer que vai começar a pegar casos na Europa a mando da
CIA? E depois? FBI, Interpol, MI6? – retrucou Minnie, agora com tristeza.

Após essa última frase, ela distanciou-se um pouco, sentando em um banco de


madeira que estava com algumas folhas das árvores próximas. Com a cara
fechada, não esboçou qualquer reação quando Mickey sentou-se ao seu lado.

Mickey a conhecia melhor que ninguém, então agora não era hora de argumentar
ou tentar explicar, por isso após se sentar, ele simplesmente deitou a cabeça
suavemente no seu ombro e aguardou o momento propício.

Após alguns minutos, sentindo que o corpo dela havia relaxado, ele abordou o
assunto com delicadeza, já que tinha notado o motivo de tanto desconforto.

– Eu sei amorzinho, seu medo é que eu aceite missões cada vez mais longas,
perigosas e isso vai nos distanciar – começou ele – Mas se me deixar falar o que
eu acho disso tudo, creio que você ficará mais tranquila.

– Então fale – respondeu baixinho, ainda com o olhar desviado.

– Primeiro, o Mancha Negra não é um assassino, então é mais provável que tudo
isso seja um grande engano e mais nada. O Mancha é um ladrão e sequestrador,
mas um genocida de uma aldeia cheia de inocentes? Eu não consigo acreditar
nisso – disse Mickey passando o braço por trás das costas dela.

– Segundo, apesar de esquisita, a agente que vai me acompanhar não pareceu


assassina, mas sim, alguém que quer prender o Mancha por um motivo pessoal.
Não sei explicar, mas notei algo nesse sentido.

– E terceiro, não posso negar que o convite feito pela CIA é empolgante, tanto em
aprender como eles fazem uma caçada a um terrorista, como aos equipamentos,
informantes e tudo mais. Mas é mais curiosidade do quê a ideia de ser um trabalho
constante – finalizou ele com um sorriso.

– Então será uma exceção? Você não vai passar a viajar pelo mundo com agentes
da CIA e me deixar aqui sozinha? – perguntou Minnie voltando a olhar nos olhos de
seu amado.

– Claro que não – respondeu com firmeza. – Você acha que não sentirei sua falta?
Caso um dia apareça outra missão ou viagem como essa, só aceitarei se puder
levar você, pois enquanto trabalho, você pode pegar um trem e viajar pela Europa.
Que tal?

– Promete? – foi a única resposta dela, enquanto o abraçava.


Não houve outra frase. Mickey simplesmente a abraçou com força e ambos ficaram
assim, aproveitando a companhia um do outro em silêncio.

Algumas horas depois...

Já de noite, Mickey estava sentado no sofá da casa de Minnie comendo pipocas, ao


mesmo tempo em que ela se aconchegava com a cabeça deitada em seu colo.

Como a viagem dele era no dia seguinte e a agente Bykov havia pedido que ele a
encontrasse logo pela manhã, Mickey aproveitou para passar essa noite com
Minnie, conversando amenidades e curtindo o momento. De manhã haveria tempo
de sobra para voltar, pegar a mala e seguir ao aeroporto.

Após um bom tempo neste aconchego, Mickey colocou a bacia de pipoca no chão.
Minnie estava de camisola, totalmente relaxada, quase dormindo, e ele sabia muito
bem que não poderia fugir de fazer oque ela gostava tanto.

Mickey a puxou em direção de seu corpo, abraçando suas costas com o braço
direito e segurando as pernas com o braço esquerdo.

Tendo se firmado muito bem, um pequeno impulso o colocara de pé, com sua
amada em seus braços.

Delicadamente, em passos cuidadosos, o detetive seguiu até o quarto e com todo o


cuidado possível, a deitou na cama. Este processo era tão natural entre eles, que o
sono dela não foi interrompido.

A ansiedade do que estava por vir e as perguntas sem resposta que enchiam sua
mente estavam espantando para bem longe o sono, mas não impedia que ele se
deitasse abraçando-a.

Outro detalhe é que a conversa que tiveram na semana passada ainda o


incomodava, mesmo sem estar claro o real motivo por trás desta estranha
sensação.

E o mais curioso, era que ele mesmo havia começado o assunto de forma inocente.

– Nunca imaginaria que o Donald se casaria, realmente foi uma surpresa – foi o
início de tudo, durante um jantar.

– E o que tem demais?

– Ele nunca se pareceu com alguém que seria possível conviver por muito tempo. É
explosivo, nervoso, teimoso...

– Ah, claro. Falou o senhor monge budista.


– Eu não disse isso, só que não imaginava... enfim... mas creio que o pior é outra
coisa.

– Sei, sei. O pior foi ele se casar com sua querida amiguinha.

– Sim, como eu poderia imaginar que Karen seria sua esposa... Ele nunca nem
comentou que a conhecia.

– As vezes quando encontramos a pessoa certa, não queremos perder tempo –


respondeu ela com certa ironia.

– Pode ser – foi a resposta sem qualquer indício da ironia ter sido notada.

– Mas também...

– Eu sei – disse ela impaciente, cortando a frase dele. – Você já falou isso mil
vezes.

– Desculpe, é que tudo é muito estranho. Ela não se lembra de tantos anos da vida
dela e isso me deixa incomodado.

– Ah, você queria que ela se lembrasse ao menos de você, não? – Respondeu
Minnie fingindo ciúme.

– Não da forma que você está dizendo, mas sim, gostaria muito de ser lembrado.
Ela foi muito importante para mim e você sabe bem porquê.

– Eu sei, estou brincando. Mas não há muito o que possa ser feito.

– Sim, Donald não falou muito do acidente, então fica difícil saber...

– Bom, pelo menos ela encontrou alguém que a ama e a trata muito bem – cortou
Minnie novamente.

– Você está nervosa com o que?

– Não estou nervosa, só pensando... pensando... pensando...

– Em que? – foi a pergunta que gerou a resposta que hoje o incomoda.

– Em como e quando será o NOSSO casamento...

Na hora, Mickey quase engasgou, mas teve a presença de espírito de mudar de


assunto sutilmente. Minnie sabia que esta era a forma dele arquivar um tema a ser
pensado com calma e que certamente ele voltaria ao assunto mais adiante.
Mas até agora, a forma que a palavra "nosso" foi frisada, o deixava incomodado, e
a falta de motivo o incomodava mais ainda.

Minnie era sua parceira, amiga, namorada, amante e em seu íntimo mais profundo,
ele sabia que seu coração pertencia a ela, hoje e para sempre.

Então qual o problema em casar? Talvez ele tivesse medo da mudança, ou preferia
ficar sozinho pela maior parte do tempo. De qualquer forma não era justo agir assim
com a mulher de sua vida.

De um dia para o outro, sua vida mudaria totalmente, mas até onde isto poderia ser
ruim?

Questões e mais questões vinham a sua mente e com certeza agora não era a hora
de pensar nelas.

Gentilmente Mickey ajeitou seu braço esquerdo por baixo da cabeça dela, ao
mesmo tempo em que a massageava devagar e em círculos. A posição de
conchinha era uma de suas favoritas, permitindo que ele sentisse o perfume que
tanto gostava.

Apesar de Minnie dormir cada vez mais profundamente, Mickey aproximou-se de


seu ouvido direito e sussurrou:

– Não importa o que aconteça ou onde estiver, eu sempre vou te amar.

Institivamente, Minnie sorriu ao mesmo tempo em que se aninhou no braço de seu


amado.

Feliz com esta reação, Mickey decidiu tentar dormir e relaxar um pouco, afinal os
próximos dias seriam estafantes.

E mesmo sem saber, em breve, muito em breve, esta promessa sussurrada


naquele momento tranquilo, seria a única coisa que o manteria vivo.
Capítulo 05 – Convite

Quinta-Feira, 20 de março, 14:31


Hoje

Mickey não acreditava como alguns poucos metros poderiam parecer tão
longínquos. O barulho do jato e a subida vertiginosa confundiam os seus sentidos a
ponto de as vezes a cabine parecer mais longe a cada passo.

– Falta pouco agora... Isso vai terminar logo... – balbuciava ele.

Mas por mais que sua vontade permanecesse inabalável, seu corpo dava mostras
de desistir. Faltavam só três passos quando suas pernas falharam e ele desabou
pesadamente.

– Maldição, droga, porcaria – praguejava ele já caído.

– Isso não vai terminar assim... Eu me recuso a desistir – falava alto, ao mesmo
tempo que tentava se levantar.

O esforço era incrível. Apesar das dores lancinantes, da tontura e da ânsia de


vômito que havia começado, ele não pararia.

– MALDIÇÃOOOOOOOO !!!!!!!!! – foi seu grito ao se colocar de pé novamente.

Com muito esforço, dava mais um passo.

– Calma linda... Calma... Lembra o que te falei naquele dia quando estávamos
presos naquele poço? – continuava balbuciando.

– Eu te prometi que iríamos sair... E que nunca mais você se sentiria sozinha... Pois
eu sempre estaria por perto... – eram suas palavras ao tentar dar mais um passo.

– Fique tranquila... Eu sempre estarei com você... Não se esqueça...

Mais um passo.

– Eu te amo...

1.100 km por hora.


Quarta-Feira, 26 de fevereiro...

O dia havia amanhecido há pouco mais de duas horas naquela agradável quarta-
feira, e quem olhasse para o alto, poderia ver um céu sem nuvens, com o sol
brilhante e alguns pássaros canoros voando alegremente.

E neste exato momento, um táxi estava estacionando no Terminal Um do Aeroporto


Internacional de Nova Patópolis.

Na cidade de Mickey, Ratópolis, apesar de existir um aeroporto, a maioria dos vôos


eram domésticos, então para chegar ao Leste Europeu, era necessário vencer o
trajeto de pouco mais de 30 Km para embarcar diretamente na Cidade do Futuro.

Ao descer do táxi, mesmo sendo alguém por natureza observador, Mickey não
estava notando as maravilhas naturais daquele lindo dia. Muito menos os itens
tecnológicos que sempre o impressionavam ao visitar esta cidade.

Sua mente estava totalmente focada e preocupada com tudo que havia lido e relido
na ficha do Mancha Negra.

Por mais que tentasse, ele não conseguia acreditar na possibilidade do seu antigo
inimigo ser um assassino, ainda mais, responsável pelo massacre de centenas de
inocentes em um vilarejo afastado.

Em seu íntimo, ele desejava que tudo isso fosse apenas um grande mal entendido
e que todas as conclusões dos agentes da CIA se mostrassem equivocadas.

Ao mesmo tempo, se realmente existisse um plano de alguém envolvendo controle


mental, o autor tem um modus operandi muito parecido com o Mancha.

Então o culpado, caso exista um, poderia ser o Mancha, alguém que pensa
parecido ou alguém que está tentando fazer parecer ser o Mancha.

Todas estas possibilidades estavam brigando na mente analítica do detetive, de


forma que nenhuma conclusão havia se formado ainda.

Mas agora, enquanto caminhava nervosamente pelo Terminal Um, somente um


pensamento se sobrepunha aos demais.

– Droga, deveria estar 08:00 em ponto em frente ao check-in internacional e já


estou quinze minutos atrasado. A primeira impressão da agente Bykov não será
muito boa.

Apesar do vôo estar marcado para às 20:00, Bykov simplesmente ordenou em uma
mensagem de voz, enviada terça–feira às quatro da manhã:

– Na quarta–feira, esteja as 08:00 em frente ao check-in internacional.


Tanta formalidade indicava que a viagem não seria muito divertida.

Após mais alguns minutos de caminhada, ele finalmente enxergou a extensa área
de check-in, mas não conseguiu encontrar sua parceira.

A direita estavam os balcões para despachar a bagagem, a esquerda os terminais


de check-in automatizados e um pouco a frente, algumas filas de cadeiras bem
confortáveis.

Após olhar o relógio e constatar que atrasara vinte minutos, ele decidiu ficar de pé
aguardando-a, já que provavelmente Bykov estava nos arredores.

Depois de uma hora, uma singela dúvida o atormentava.

– Cadê esta mulher?

Após mais uma hora, a dúvida era a mesma, mas a palavra "mulher" estava sendo
substituída por uma grande variedade de adjetivos.

Aquela incômoda situação durou mais de três horas, quando ela finalmente
apareceu, sem qualquer aviso e por trás dele.

– Agente Mickey, finalmente chegou? Creio que deveria tentar ser mais pontual –
falou secamente.

Além do susto e surpresa, suas pernas doíam e seu humor não estava dos
melhores.

– Eu cheguei há três horas e estava aqui te aguardando, conforme pediu.

– Eu estava aqui as oito e você não, então fui até o StarDucks do Terminal Dois
tomar um café. Depois fiquei lendo e agora decidi vir aqui olhar novamente se você
havia chegado.

– Eu sei que me atrasei...

– Atrasou e que isso não se repita – cortou, sem qualquer sinal de simpatia.

Mickey engoliu seco, pois tinha vontade de faze-la engolir cada palavra, mas ele
tinha certeza de que não seria uma boa forma de começar o trabalho que fariam
nos próximos dias.

– Aqui está sua passagem – disse ela, estendendo o braço – Agora vou almoçar e
aguardar em algum lugar. Nos vemos no avião.
Um segundo após Mickey pegar o papel, ela simplesmente se virou e desapareceu
entre as pessoas que caminhavam freneticamente no saguão do aeroporto.

Mickey estava sem reação e lívido, mas isso não duraria muito tempo. Dez
segundos após esta rápida interação, seu rosto começou a esquentar e seus olhos
arregalaram.

– Eu cheguei doze horas antes do voo somente para pegar a passagem? – falou
para si mesmo, sem acreditar.

Considerando o teor, os próximos adjetivos e pensamentos do detetive em relação


a sua parceira não podem ser replicados.

Ainda muito alterado, Mickey seguiu para o toalete para lavar o rosto e respirar
fundo. Somente após se acalmar, ele poderia almoçar e aguardar até o momento
do embarque.

As próximas horas seriam tediosas, mas ele tentaria esquecer este pequeno e
conturbado início, focando novamente em seu objetivo primaz, encontrar o culpado,
caso haja, dos assassinatos.

Quinta-Feira, 27 de fevereiro, 15:00 (horário local)...

– Mesdames et messieurs, nous sommes en descente à l'aéroport Charles de


Gaulle. Veuillez rester assis et porter des ceintures de sécurité.

Mickey acordou repentinamente a tempo de ouvir a terceira frase da comissária de


bordo. Após o Inglês e Espanhol, o Francês era obviamente necessário pela
possível presença de franceses a bordo.

– Maravilha, agora é só morrer de sono nos próximos dias, enjoar, não comer –
pensou de extremo mal humor.

Após dez horas de vôo e um fuso horário de outras nove, não era possível estar de
bom humor. Seu corpo no momento estava programado para as seis da manhã.

– Odeio, odeio, odeio o jetlag – pensava o detetive enquanto tentava se animar.

Ao olhar para o lado, viu Bykov sentada, desperta e com o olhar distante.

– Ela deve estar mais acostumada, eu que sou um caipira – pensou com uma certa
melancolia.

Com o raciocínio ainda lento, só lhe restava ficar encostado na cadeira e aguardar
o pouso, o estacionamento da aeronave, a saída e a espera da conexão.
Após cerca de quarenta minutos, os agentes estavam no saguão de desembarque.

– Vai almoçar? – perguntou Bykov sem qualquer interesse real.

– Está brincando? Preciso tomar meu café da manhã.

– Amador – pensou ela, com um suspiro.

– A nossa conexão para Kiev é a meia-noite, então estarei aqui as onze, faça como
quiser – disse ela com desdém, virando-se de costas e saindo rapidamente.

– Sua arrogante, cínica, mal educada, insuportável – pensou ele sem qualquer
cerimônia.

Mickey preferiu ficar dentro do saguão onde desembarcou, para não ter que sair
pela alfândega e depois entrar novamente. As sete horas que o separavam de sua
conexão não eram nada.

– Preciso trazer a Minnie aqui um dia – pensou enquanto ia para a cafeteria mais
próxima.

Após um café bem forte, seu ânimo melhorou um pouco a ponto de repensar sua
missão.

– Ainda não entendi como acharei aquele louco em um país que nem conheço –
era o detalhe que mais o incomodava.

Mesmo tentando se concentrar, a cadeira disponível era tão macia que um cochilo
foi inevitável.

Enquanto dormia, rápidos e estranhos sonhos povoavam sua mente. Ele não
conseguia discernir, mas envolvia Minnie, Bykov, o Mancha, o Darkenblot e muitos
outros.

– Acorde agente Mickey – foi a frase que, juntamente com uma sacudida em seu
braço, o despertou assustado.

– Ah, oque?

– Já são dez horas e eu estava passando para tomar um café quando vi você
suando e se debatendo – falou Bykov sem qualquer emoção.

– Acho que estava sonhando...

– Nos vemos daqui a pouco no avião – completou ela se afastando.


– ...e não tem problema ter me acordado... Como se ela estivesse me ouvindo –
falou enquanto bocejava.

Com a proximidade do embarque, só lhe restava ir ao toalete lavar o rosto, oque fez
rapidamente.

Logo após se lavar, o detetive se encarou no espelho e pensou com toda a


sinceridade:

– Realmente esta missão não é oque eu esperava. Consegue ser muito pior que
Anderville, mas agora, tenho que ir até o fim.

Após sair do toalete, seguiu como um zumbi até a cafeteria mais próxima, um
pouco de cafeína faria muito bem.

– Un café très fort s'il vous plaît – disse entregando seu cartão de crédito.

– Quatre Euros – foi a resposta da atendente não muito simpática, simplesmente


entregando a máquina para a digitação da senha.

Após pagar e receber seu café, o detetive adoçou um pouco e engoliu de uma vez.

– Merci – agradeceu Mickey se afastando e voltando a sua cadeira. Ele já se sentia


melhor, mas no exato momento em que iria se sentar, ouviu:

– Vol UP5623 vers Kiev, embarquement autorisé à la porte quatre.

– Maravilha, lá vou eu para mais uma jornada com aquela antipática – foi o
pensamento com um suspiro.

Sem ter alternativa, Mickey se arrastou em direção ao portão, torcendo para não
cruzar com Bykov até entrar na aeronave.

Várias coisas incomodavam o detetive nesta missão, mas a maior delas, sem
dúvida alguma, era não ter a menor idéia do que aconteceria nos próximos dias.

Sexta-Feira, 28 de fevereiro, 05:30 (horário local)...

Naquela sexta–feira, o sol ainda não havia aparecido em Kiev e o tempo estava frio
e nublado.

Normalmente nesta época do ano os dias são agradáveis, mas aparentemente,


como se de propósito, nem isto estava ajudando na missão da dupla que
aterrissara por lá há pouco tempo.
O vôo UP5623 havia pousado a cerca de uma hora, após voar por três horas e
meia e avançar mais uma faixa no fuso horário.

O procedimento alfandegário era bem simples para quem carregava apenas uma
bagagem de mão, mas Bykov precisou passar pela sede da Polícia para retirar sua
arma despachada em Nova Patópolis e transportada em um contêiner especial.

E era neste momento, que Mickey a aguardava no saguão principal, em uma


simples cadeira sem muito conforto. Ele já não sabia que horas eram para seu
corpo, simplesmente tentava ficar atento a qualquer movimentação suspeita.

O detetive também recebera autorização especial da CIA para portar uma arma nos
países signatários do acordo de cooperação internacional contra o terrorismo.

Mas como sempre, ele preferiu não utilizá-la. Mesmo por que, imaginava que
estando com a psicopata da Bykov ao seu lado, ela atiraria primeiro em qualquer
ameaça que aparecesse para eles.

Suas próximas ações ainda eram um mistério, pois Mickey não tinha a menor idéia
do que fazer, portanto sua contrariada parceria deveria lhe dar algumas dicas.

Sua única informação confiável era a reserva do hotel que estava em sua mão e
que já havia sido lida três vezes. Ele tinha o endereço e precisaria pegar um táxi
para chegar lá, tomar um banho e descansar um pouco. Ele não havia visto a
reserva de sua parceira, mas com certeza era em outro quarto.

Mickey ainda esperava pacientemente quando a agente Bykov saiu da área policial
com passos decididos em direção ao detetive. A distância era curta e foi logo
vencida.

– Ainda não compreendi como você pode pensar em vir para esta missão
desarmado – falou ela rapidamente, sentando–se na cadeira ao lado.

– Eu não gosto de armas – foi a resposta sem qualquer simpatia.

– Então está na missão errada. Talvez você devesse caçar borboletas ao invés de
assassinos – respondeu ela com total desprezo, sem sequer olhar para ele.

Mickey sabia que ela tinha uma certa razão, então preferiu simplesmente mudar de
assunto.

– Eu quero discutir com você a nossa estratégia de investigação. Imagino que


vamos ao hotel e depois começaremos a procurá–lo, certo?

Neste instante, Bykov virou–se bruscamente e o encarou de forma intimidadora.

– Você realmente não sabe, não é? Não tem a mínima noção do que fazer aqui.
– Eu... eu... acho que devemos investigar – foi a resposta quase gaguejando.

Pela primeira vez nesta viagem, a agente Bykov sorriu. Para em seguida dar uma
risada abafada.

Mickey ficou constrangido, mas conseguiu questionar:

– Oque eu falei de tão engraçado?

– Tudo bem... você me fez rir e isto vale alguma coisa. Preste atenção, que eu não
vou repetir.

– Aqui não é sua cidadezinha de periferia e nem estamos procurando um batedor


de carteiras. Estamos no meio do Leste Europeu a caça de um terrorista assassino.

– Você acha que ele deixa pistas para qualquer idiota encontrá–lo após fazer
algumas perguntas?

– Não, mas...

– Eu o procuro há anos e já encontrei cúmplices e fornecedores em becos imundos


e perigosos, e mesmo assim ninguém me indicou qualquer coisa. Você acha que
em alguns dias, na parte nobre da cidade, irá se sair melhor?

Não houve resposta, só o rosto do detetive ficou corado.

– Mas eu direi oque você deve fazer, já que por sua própria iniciativa, nada vai
acontecer – falou ela em um tom estranhamente compreensivo.

– A única chance que tenho de achá-lo é permanecer aqui no aeroporto o tempo


todo. Talvez ele apareça ou algum cúmplice se assuste ao me ver, considerando o
número de cabeças que já arrebentei em minha busca. Acredito que ele foi
informado que estou a sua procura e no mínimo, deve estar pensativo.

– Quanto a você, vá para o hotel, coma, tome um banho e durma. Em seguida faça
oque quiser, não me interessa!

– Mas, mas...

– Por volta das 22:00 eu irei para o hotel dormir e amanhã por volta das 06:00
voltarei para cá. Espero ter sido clara – disse levantando–se e afastando–se
rapidamente.

– Mas... – antes de conseguir continuar a frase, ela não o escutava mais.


Mickey ficou sem ação, estático e perdido em meio a surpresa – nunca imaginou
que seria tratado como um estorvo – e a resignação – Bykov tinha razão quanto a
sua incompetência.

Após segundos que pareceram horas, ele decidiu: Iria ao hotel descansar, colocar a
cabeça no lugar e só depois escolheria uma linha de ação.

Com uma respiração lenta e ao mesmo tempo longa, o detetive pegou sua pequena
mala e seguiu até o guichê de uma empresa de táxi que estava a sua direita.

No momento ele estava em segurança, mas até quando, era o grande mistério que
o atormentava.

Segunda-Feira, 03 de Março, 12:31...

O pequeno restaurante Pervak estava acostumado a receber todo tipo de turista


que passava por Kiev. Tanto clientes elegantes do lado ocidental que vieram de
Londres, Paris ou Berlin, como as pessoas mais simples de Bucareste, Praga ou
Minsk.

Sua decoração era sóbria e neutra com cores claras e harmoniosas, não causando
qualquer desconforto durante a permanência de qualquer um, independente da
cultura.

Seus pratos campeões de consumação eram os mais típicos possíveis, como a


sopa Borscht de peixe ou beterraba, a Deruny, uma panqueca de batatas deliciosa
e os bolinhos Pyrizhky de carne ou Varenyky de batata.

E era sentado em uma mesa de dois lugares próxima a parede esquerda, tendo
uma toalha branca e uma porção generosa de Deruny a sua frente, que Mickey
estava pensativo.

No quarto dia de sua permanência em Kiev, o detetive não conseguia identificar


qual parte do todo era mais surreal.

Ao mesmo tempo em que pegava uma Durany e a molhava no iogurte sem açúcar,
sua mente recordava–se de cada detalhe estranho que ocorreram em sucessão
crescente nestes últimos dias.

A primeira surpresa foi na recepção do hotel, ao descobrir que somente um quarto


com duas camas de solteiro havia sido reservado.

Quando Bykov chegou por volta de 22:30, ela entrou no quarto naturalmente sem
falar nada, seguiu até o banheiro e ligou o chuveiro.
Quase as 23:00, ela saiu enrolada em uma toalha, retirou uma camisola de dentro
da mala e simplesmente se vestiu no meio do quarto.

Extremamente constrangido, Mickey tentou falar alguma coisa, mas foi cortado
friamente:

– Fique tranquilo agente Mickey. O protocolo exige apenas um quarto, teoricamente


para evitar que cada agente seja surpreendido sozinho enquanto dorme.

Nesta hora ele descobriu que a privacidade durante estas missões era próxima a
zero e também o porque do fato dos agentes que trabalhavam em dupla serem
bons amigos.

Nos dias seguintes, Bykov realmente saía sempre as 06:00 e retornava as 22:30,
sempre ficando no aeroporto o tempo todo.

Já o detetive, até tentou fazer alguma coisa, mas para qualquer um que ele tentava
questionar sobre o Mancha, inclusive mostrando uma foto, as reações não
variavam muito.

A maioria o ignorava, outros olhavam de forma engraçada e não respondiam, um


aqui e ali falava que nunca tinha visto este sujeito. Apenas um perguntou se Mickey
era da polícia e com a negativa, saiu andando sem falar mais nada.

Bykov tinha razão, ali não era Ratópolis onde todos o conheciam e sempre estavam
dispostos a ajudar. Em Kiev, todos queriam continuar suas vidas anônimas e não
se intrometer em nada que não era da conta deles.

Sem qualquer progresso no sábado e domingo, hoje o detetive tentou seguir o


conselho de Bykov e foi até o aeroporto as 09:00. Chegando lá, viu sua parceira a
distância, que simplesmente se virou e o ignorou.

Com isso, a cada dia que passava, a certeza de sua inutilidade naquela missão era
mais aparente.

– Nada disso faz sentido – pensava ele enquanto pegava outra fatia de Deruny.

– Em que aqueles sujeitos da CIA pensavam quando me chamaram? – era a outra


dúvida.

Mickey passou um longo tempo comendo da forma mais devagar possível. Mesmo
parecendo inerte, seu afiado raciocínio estava processando todas as informações.

De repente, um lampejo em sua mente o fez tomar uma decisão.

– Eu estou aqui por um motivo e mesmo não sabendo qual, vou descobri-lo –
pensou enquanto finalmente mordia com gosto sua torta de batatas.
– Amanhã, gostando ou não, querendo ou não, a experiente agente Bykov terá um
parceiro – foi seu ultimo pensamento, antes de um longo sorriso.

Terça-Feira, 04 de Março, 18:37...

O sol já estava se pondo naquele dia, apesar da indiferença dos apressados


usuários do Aeroporto de Zhulyany, situado na capital Kiev.

Mesmo sendo um aeroporto mediano, não havia como comparar o tráfego diário
com outros situados em países com maior fluxo turístico.

Naquele momento, um casal andando pelo saguão sem qualquer mala e olhando
atentamente para todos os lados, não chamaria qualquer atenção.

E era isto que Mickey e Bykov faziam, conversavam amenidades ao mesmo tempo
em que caminhavam despreocupadamente.

Claro que isso era apenas na aparência, na realidade os quatro olhos atentos
vigiavam a mínima reação diferente ou estranha de qualquer um.

O entendimento mútuo não havia sido fácil, mas Mickey havia conseguido quebrar
a carapaça de gelo de sua parceira em uma singela e discreta conversa pela
manhã:

– Agente Bykov, você não irá sozinha para o aeroporto – disse ele, se colocando na
frente da porta, as 06:00 da manhã.

– Sério? E por que eu não iria? Ou melhor, quem vai me impedir? – respondeu ela
de forma jocosa, enquanto terminava de se arrumar.

– Eu sou seu parceiro e devemos ficar juntos.

– Que gracinha, agora você é meu parceiro? Até ontem era oque?

– Não me interessa, eu estou nesta missão e irei com você. Um casal são quatro
olhos atentos e um disfarce melhor do que...

– Do que oque? – perguntou ela colocando a arma no coldre e pegando o casaco.

– Do que uma psicótica solitária encarando todo mundo.

Após alguns instantes de tensão, Bykov deixou escapar uma risada alta.

– Você é engraçado, mas eu deveria quebrar sua cara por essa.


– Mas não vai. Eu irei com você de qualquer forma... parceira.

– Tudo bem, só não fique no meu caminho. Agora vamos que estamos perdendo
tempo aqui.

A aceitação dela havia sido mais fácil do que ele imaginava, mas por alguns
momentos o detetive acreditou que apanharia.

E agora, os agentes seguiam lado a lado, procurando por qualquer coisa diferente.

– Pelo menos você acompanha o meu ritmo. Achava que teria que ficar parando a
cada vinte minutos. – falou ela, sendo o mais próximo de um elogio que ele
recebera até agora.

– Não se preocupe comigo, faça seu trabalho sossegada que eu não a atrapalharei.
– respondeu com uma certa satisfação.

– Bom para você, pois eu não pararia.

– Eu sei.

– Mas diga agente Mickey, qual o motivo de você estar aqui?

– Não entendi. A CIA...

– Não, digo seu motivo pessoal. Você tem uma casa em uma cidade tranquila, uma
noiva de muitos anos e um status de quase celebridade nos meios legais de
Ratópolis. Para que se arriscar neste trabalho perigoso, longe de toda a sua vida?

– Você leu minha ficha detalhadamente – foi a resposta no momento em que seu
rosto corava.

– Claro. E por isso não entendi o motivo de você aceitar esta missão.

– Bom, talvez eu estivesse entediado ou talvez quisesse a chance de ver uma


profissional de verdade em ação.

Agora foi Bykov que havia corado, silenciando repentinamente. Como sua parceira
não respondeu, ele perguntou na sequência:

– E você? Por que esta vida agitada e perigosa? Por que você fica longe da sua
família?

– Eu não tenho família. – sussurrou ela, enquanto desviava o olhar ligeiramente


para baixo.
Mickey não sabia oque dizer. Ele percebera que tocou em um nervo exposto e
agora devia se desculpar.

– Agente Bykov, eu...

Mas ele não conseguiu terminar a frase.

Sua parceira havia parado de repente enquanto encarava um sujeito a sua direita
que olhava fixamente para eles. Após dois segundos, ela começou a andar
rapidamente em sua direção.

O sujeito não se mexeu, somente ficou parado aguardando tranquilamente a


chegada dos agentes.

Bykov estava a frente dos dois, com a mão direita sobre a arma e o braço esquerdo
pronto para se defender.

Faltando alguns passos para estar frente a frente com ele, o estranho ergueu o
braço e fez um sinal de "calma" com a mão.

– Não é necessário – disse ele de forma totalmente apática.

– Calma parceira – falou Mickey em um tom tranquilizador. – Creio que ele só quer
falar conosco.

Quase chegando, o detetive conseguiu olhar bem para seu alvo e não viu nada
demais, apenas um homem mediano, vestindo camisa branca e calça jeans, com o
cabelo negro e barba mal feita.

Com mais dois passos, Bykov ficou a distância de um pé daquela pessoa.

– Eu me lembro de você! É um dos vagabundos que interroguei há alguns meses


nos becos de Bilatserkva – falou Bykov, encarando–o friamente.

– Que memória! – pensou Mickey.

– Eu só vim entregar uma mensagem, é minha única tarefa – respondeu ele sem
esboçar qualquer reação.

– Então entregue.

– Estou te convidando para um encontro. Amanhã pela manhã, um carro sedam


preto, placa da Ucrania, estará estacionado em frente ao seu hotel. Os documentos
do carro estarão no porta luvas e a chave em cima do pneu dianteiro esquerdo. No
quebra sol do motorista terá um mapa com a indicação de onde você deve ir.

– Como assim? – perguntou Mickey espantado.


– Muito bem animal, agora você irá responder a algumas perguntas – disse Bykov
segurando–o pela camisa e aproximando o rosto do dele.

– Eu só vim entregar uma mensagem, é minha única tarefa – respondeu ele.

Pela proximidade Bykov notou a ausência de reação e os olhos vazios, algo que ela
já tinha visto antes. Neste instante, ela o soltou e afastou–se um pouco.

Com isso o sujeito simplesmente se virou e saiu andando sem falar mais nada.

– Mas, mas, mas... – gaguejou Mickey.

Bykov não falou nada, apenas se virou em direção a saída e seguiu


apressadamente para lá.

– Mas... oque é isso? – insistiu Mickey a seguindo.

– Já atingimos nosso objetivo, não faz mais sentido continuar aqui. – foi a resposta
seca e fria.

– Mas... eu não... entendi...

– Agente Mickey, aprenda uma coisa, se realmente somos parceiros confie em


mim.

Mickey se calou, pois sabia que ela tinha razão. Mas isso não tornava a situação
mais agradável.

De todas as situações surreais desta missão, aquele "convite" certamente fora a


pior de todas.

E não saber oque aconteceria no dia seguinte, era a questão que o atormentaria
até o próximo alvorecer.
Capítulo 06 – Natasha

Quinta-Feira, 20 de março, 14:32


Hoje

– Só mais um passo... Só mais um... Mais um... – dizia Mickey quando seu esforço
finalmente fora recompensado.

Mais um passo.

Quase não acreditando, ele finalmente havia chegado. Ele estava em frente a porta
da cabine do jato e sua primeira ação foi pegar a arma com a mão direita,
engatilhar e pensar cuidadosamente no próximo movimento.

Estando ciente da grande possibilidade de que sua presença estava sendo


ignorada até aquele momento, Mickey segurou firme sua arma, estendeu a outra
mão, segurou o trinco externo e o empurrou para o lado, tentando abrir.

A porta estava trancada.

- Trancada... Maldição...

Ele perdera a vantagem de um ataque surpresa e com muito esforço suprimiu um


palavrão que estava nascendo em sua garganta, se permitindo apenas um longo
suspiro de frustração.

Mickey começou a se sentir desnorteado, seu corpo estava ferido, uma quantidade
excessiva de remédios havia sido ministrada, ele não havia se alimentado direito e
para completar, a pressão da inércia quase o tinha apagado.

Tudo isso complicava o seu raciocínio, mas o que ele realmente desconhecia era o
perigo iminente que o cercava naquele exato instante.

O jato estava se aproximando rapidamente da velocidade de 1.235 km por hora, o


que naquela altitude significava o Mach 1. E um estrondo sônico era tudo que ele
não precisava naquele momento.

1.200 km por hora.


Há dois anos...

Naquela noite em Odessa, o vento frio e cortante estava mais intenso que o normal,
não sendo possível para as poucas pessoas nas ruas se sentirem confortáveis.

Mas para Boris Kosel o frio naquela noite escura era o menor de seus problemas,
tanto que, ele estava com muito calor. Tremendo. Nervoso. Correndo.

Aquela mulher aparecera repentinamente em sua frente. E sua vestimenta escura,


tom de voz frio e olhar assassino o deixaram aterrorizado.

Neste instante ele não pensava em nada, simplesmente corria por sua vida,
procurando um esconderijo em um beco ou no meio do lixo. Apesar de não dizer
nem uma palavra, ele tinha certeza que aquela mulher iria mata-lo naquela noite.

Boris continuava correndo, tropeçando, fugindo. Dava voltas, entrava em becos,


fazia um caminho totalmente aleatório e sem padrão.

Após alguns minutos, que pareceram uma eternidade, ele parou por um momento,
encostando a mão direita na parede e se curvando um pouco para retomar o fôlego.

– Maldita filha de um cão... quem mandou essa desgraçada para me apagar? –


pensava ele arfando e gemendo.

Boris não era um tipo honesto, mas suas malandragens eram pequenas demais
para chamar a atenção de alguém importante. Um contrabando aqui, um
passaporte falso ali, nada que pudesse ofender alguém ou torna-lo uma ameaça.
Boris valorizava a discrição e isso o mantinha vivo.

Ainda com muito medo, ele se ergueu e olhou para trás, fitando a escuridão,
procurando qualquer movimento. Não havia nada.

– Vadia desgra... – começou a falar consigo mesmo enquanto se virava novamente


para frente, com a certeza de que havia escapado. Infelizmente para ele, a frase
não pode ser completada.

A mulher estava parada quase colada a seu corpo. Com a mesma roupa e olhar
que o haviam atingido mais forte que um murro.

No segundo seguinte, antes de conseguir falar ou fazer qualquer coisa, ela já o


tinha agarrado pela camisa e o jogado com força contra a parede mais próxima. Em
seguida, o segurou na parede apertando seu pescoço com o braço direito. Boris
não conseguia reagir, apenas balbuciar:

– Moça, por... favor... eu não... fiz nada...

Impassível como uma profissional, ela simplesmente aproximou a boca bem perto
de seu ouvido direito e disse:

– Onde ele está?

– Q-q-quemm??? – balbuciou enquanto tremia muito.

– Onde ele está? – repetiu com a voz mais grave.

– Moça... eu não...

Ela não repetiu ou explicou, simplesmente o jogou no chão como se fosse um saco
de lixo. Em seguida, caminhou de forma decidida até próximo a sua cabeça e falou
novamente:

– Onde está seu último cliente? Sua última venda de passaporte falso.

Finalmente ele entendeu. O alvo era aquele sujeito estranho que havia
encomendado diversos conjuntos de documentos. A esperança de escapar brotou
em seu peito ao responder com toda a sinceridade:

– Ah, ele. Eu não se...

Antes de concluir a frase, ela já estava pisando em seu pescoço.

– Eu... não... sei... moça... eu... juro – falou, tentando evitar que aquele pé
esmagasse sua laringe.

Ainda na mesma posição, a mulher retirou calmamente uma Magnum .40 que
estava no coldre logo abaixo do braço esquerdo. Boris sabia que esta arma pode
matar um rinoceronte se usada devidamente.

– Eu juro... que não... sei... ele não falou... nada... eu juro... – repetia em total
desespero.

Silenciosamente, a arma foi apontada para o meio da testa dele e sem demonstrar
qualquer emoção no olhar, a mulher engatilhou.

– Última chance. Você tem até o três para falar e não ter seus miolos espalhados
neste beco imundo. Um – disse ela calmamente.

– Não... não... eu juro... que não sei... por favor... não me mate... – implorou Boris,
tremendo e começando a chorar.

– Dois – foi a resposta, juntamente com uma pressão maior no pescoço.

– Se... sou... besse... eu... fala... va... juro... por... minha... san... ta.. mãe... por
favor... moça... eu... implo... ro... – sussurou ele agora chorando muito.
– Três...

– Nãaaaaooooo!!!!!

Instintivamente Boris colocou as mãos a frente dos olhos, como se fosse possível
segurar a bala.

Após alguns segundos, ele finalmente percebeu. A pressão em seu pescoço havia
cedido e ainda com muito medo, seus olhos se abriram.

Não havia qualquer sinal da mulher, é como se ela nunca houvesse existido.

Tremendo, sujo e com o rosto molhado, a única prova de que ela havia estado lá
era a forte dor em seu pescoço.

Mas agora não era hora de pensar, mas apenas fugir. Tropeçando e um pouco
zonzo, Boris saiu correndo até que sumiu na escuridão.

Duas ruas acima, a mulher estava com raiva. A única pista boa em tanto tempo não
havia dado em nada.

Com passos firmes e decididos, ela voltava para o hotel, onde um informante
aguardava o desfecho de sua indicação.

Em sua mente, apenas um pensamento recorrente existia, martelando de forma


incômoda e repetida.

– Eu preciso te achar... e te matar.

Mais nada importava para a agente especial Bykov. Esta era sua promessa e
missão e não haveria paz ou descanso até que estivesse concluída.

Quarta-Feira, 05 de Março, 11:57...

Naquele dia, a tensão estava presente em cada momento e pensamento do


detetive.

Após o convite inusitado do dia anterior, a certeza de estar sendo chamado para
uma armadilha ficou cristalino como um lago congelado.

Bykov praticamente não comentou nada, nem sobre o "convite", nem como ela
sabia que algo assim poderia acontecer. Na única vez que Mickey tentou perguntar
algo, um olhar fulminante fez ele se calar.
E hoje, ele mal dormira e ao acordar de um cochilo as 07:30, simplesmente engoliu
várias xícaras de café e não comeu nada. E mesmo agora, perto do horário de
almoço, o apetite havia desaparecido.

Pelo menos, da forma que foi dita por aquele homem estranho, um carro preto,
placa da Ucrânia, estava parado em frente ao hotel, com a chave em cima do pneu
dianteiro esquerdo.

Mickey aguardava Bykov do lado de fora do veículo, pois não queria ser indelicado.
Como ela marcou 12:00 em ponto ele não entraria no carro até lá.

Exatamente ao meio-dia, a agente Bykov saiu do hotel e caminhou decididamente


em direção ao veículo.

– Bom dia – foi a frase do detetive, tentando quebrar o gelo, ou no caso dela, o
iceberg.

Um leve aceno de cabeça foi a resposta, ao mesmo tempo em que ela entrava
como passageira.

Mickey não disse mais nada, simplesmente entrou como motorista e pegou o mapa
no quebra sol, da forma que o homem havia falado.

Ao abrir o mapa, era possível ver uma rota muito bem demarcada, saindo da
cidade, pegando uma rodovia principal, escapando para algumas menores e
finalmente um círculo vermelho marcando um local.

– Só faltou escrever no círculo "armadilha, pode vir" – pensou com um suspiro.

Mas considerando que eles não tinham escolha, só restava torcer pelo melhor.

Com pensamentos sombrios, Mickey ligou o carro e começou a seguir o caminho


indicado.

Quarta-Feira, 05 de Março, 14:48...

A viagem de mais de duas horas seguia em silêncio absoluto.

Após saírem da rodovia principal, os caminhos foram se estreitando e se


esvaziando. Já fazia um bom tempo que eles não cruzavam com outro veículo
nesta estrada de pista simples.

A abstenção de palavras de sua parceira era deveras incômodo para alguém


acostumado a trabalhar com pessoas mais entusiasmadas.

– Será este o preço de caçar terroristas? – perguntava-se o detetive.


– Quanto terror ela já presenciou? Que tipo de animal ela está acostumada a
caçar? Quais atrocidades seus alvos já haviam cometido?

Repentinamente, a importância de caçar ladrões de banco como o Bafo ou


corruptos como Lasswell, havia diminuído muito. O ego de Mickey entrou em queda
livre e descia cada vez mais, a medida que ele imaginava as ações de sua parceira.

Mas agora, o pensamento do detetive voltou a focar. Seguindo as indicações do


mapa, a curva seguinte o levou a uma estrada de terra, cercada por árvores
centenárias.

Ele notou prontamente que Bykov retesou, oque significava que ela estava ciente
do quão próximos estavam do seu alvo.

Saber que estava junto a uma profissional o tranquilizava um pouco, mas oque
atormentava sua mente era algo muito simples.

O Mancha marcou este encontro e Mickey precisava arrumar uma forma de sair
vivo dele.

Quarta-Feira, 05 de Março, 15:11...

Curvas e mais curvas, grandes árvores, mato alto dos dois lados, estradas de terra,
nem um carro, pessoa ou animal.

Quanto mais se aproximavam de seu destino, mais evidente era a ausência de vida
naquele local. Caso fosse realmente um esconderijo, o Mancha havia escolhido
bem.

Mickey continuava seguindo o mapa sem ouvir um comentário de Bykov, com isso
era impossível saber sua percepção.

– Quase lá, mais três curvas e chegamos ao local indicado – pensou o detetive,
diminuindo a velocidade pela dificuldade de guiar naquela estrada.

Repentinamente, Bykov soltou sua primeira frase:

– Agente Mickey, preciso lhe dizer uma coisa.

A surpresa do detetive quase o impediu de responder:

– Hum??? Digo, pode falar.

– A captura deste indivíduo é meu objetivo, algo pelo qual estou trabalhando há
anos. Gostaria que você não interferisse.
– Eu não tenho motivo para interferir agente Bykov. Na realidade, eu começo a
perceber que não deveria estar aqui – foi a resposta com toda a sinceridade.

– Oque quer dizer?

– Os agentes da CIA falaram tanto sobre meu conhecimento, minhas investigações,


mas eu não fiz nada. Ficamos dias parados no aeroporto e do nada, recebemos um
mapa direto para a toca do lobo. O que a minha presença ajudou nisto?

– Nada, mas eles não teriam me enviado sozinha. Como já falhei diversas vezes
para encontra-lo, imaginaram que precisavam de sangue novo – foi o comentário
carregado de rancor.

– Mas você sabia que ele nos convidaria, não?

– Era um palpite. Como enviei muitos recados a medida que arrebentava e coagia
seus cúmplices, imaginei que ele acabaria me chamando.

– Mas por quê?

Neste momento Bykov mudou totalmente de assunto, com uma única palavra em
um tom soturno.

– Chegamos.

Ela tinha razão. Ao final da terceira curva, a estrada terminava próximo a um


galpão, não muito alto, mas aparentemente bem extenso.

Obviamente um grande galpão branco de madeira destoava de tudo que viram na


última hora. Além da pequena porta no canto direito, não havia janelas e não era
possível precisar até onde ele se extendia.

A surpresa de estar cara a cara com seu destino fez Mickey dar uma freada brusca,
que em nada perturbou o olhar concentrado de sua parceira.

Engatando novamente a primeira marcha, o detetive levou o carro mais próximo da


única porta visível, parando a cerca de dez metros deste acesso.

Sem qualquer comentário, Bykov desceu rapidamente do veículo e seguiu na


direção da pequena porta de madeira.

A obviedade da armadilha era tamanha que Mickey não acreditou nesta atitude
descuidada. Ao mesmo tempo, desejou de coração que ela soubesse oque estava
fazendo.
Até o detetive desligar o veículo e seguir em direção ao mesmo local, a agente já
estava abrindo a porta e entrando sem qualquer cerimônia.

Mickey apressou o passo com um único pensamento:

– Maluca!

Quase chegando lá, ele viu Bykov colocar a cabeça para fora e dizer, em um tom
baixo e cuidadoso:

– Limpo, pode entrar.

– Realmente sabe oque está fazendo – foi o pensamento do detetive ao respirar


aliviado.

Cautelosamente, Mickey entrou e percebeu que mesmo vazio, a primeira área do


galpão possuía uma certa iluminação natural, já que felizmente existiam alguns
painéis transparentes no teto.

Lado a lado, os agentes seguiram por dentro do galpão em silêncio absoluto,


olhando em todas as direções, em busca por antagonistas.

Não havia muito oque ver, exceto uma outra porta no meio de outra parede sem
qualquer janela. Como não havia outro caminho a seguir, o detetive indicou que
entraria lá.

Com uma pequena hesitação a porta foi aberta e ambos adentraram prendendo a
respiração instintivamente.

Mickey conseguiu ver uma sala não muito grande com uma escada ao final que
aparentemente levava a um cômodo superior, cujo interior não podia ser
visualizado. Esta porta era escura e estava encostada.

Ele fez sinal para Natasha, que empunhava sua Magnum .44 engatilhada. Seus
olhos buscavam atentamente qualquer movimento ou inimigo que precisasse ser
abatido.

Repentinamente, o silêncio foi quebrado por uma voz grossa e imponente:

– Que interessante, tenho visitas.

Ambos olharam em direção ao alto da escada. Mickey ficou em alerta e Natasha


apontou a arma direto para a porta que estava se abrindo devagar. Alguns
segundos depois, apareceu um vulto vestido inteiramente com uma roupa negra
com gola, máscara e garras afiadas.
Mickey o conhecia melhor do que ninguém e a última vez em que o havia visto
assim, eles estavam em Avangard City. Natasha já havia visto fotos deste uniforme,
mas isto não evitou que seu coração acelerasse ao visualizar aquela tétrica roupa.

– Como dizem por aí, a vida é cheia de surpresas. De todos os seres humanos
deste planeta podre, estão aqui, juntos, os dois que eu nunca esperaria ver ao
mesmo tempo – disse o vulto, começando a descer a escada.

Mickey estava aguardando a ação dela. Como estava desarmado, tinha que confiar
em Bykov caso o Mancha tivesse uma arma e foi enquanto pensava sobre qual
seria a melhor coisa a fazer, que seu raciocínio foi quebrado por sua parceira.

– TIRE A MÁSCARA! – gritou, enquanto apontava a arma para a cabeça do vilão.

– Nossa, quanta intimidade – respondeu o Mancha calmamente.

– TIRE A MÁSCARA AGORA!

Mickey não entendeu a atitude dela, mas imaginou que não era hora de questioná-
la. A situação em que eles se encontravam era extremamente delicada.

– Tudo bem – disse o Mancha, ainda descendo a escada.

– Eu nunca consegui te negar nada, não é? – perguntou ele colocando as mãos


para trás e se preparando para retirar o capuz.

– Acredite, é um imenso prazer te rever... – dizia ao mesmo tempo em que exibia o


rosto.

– ...Tasha.

Mickey estava com os olhos nos dois. Aparentemente o Mancha estava totalmente
a vontade e a agente Bykov estava complemente tensa. Assim que o rosto dele
apareceu, o corpo dela relaxou.

Em seguida, ela abaixou a arma e desengatilhou. Sua respiração curta e rápida


indicava uma tormenta de sentimentos que Mickey não conseguia definir e a única
coisa perceptível e inegável era que sua parceira e o Mancha Negra se conheciam.

– Então é você mesmo, Dmitri – disse ela, com um suspiro longo e triste.

– É evidente. Ou você acha que a KGB, a CIA e o FBI te dariam informações


incorretas? – perguntou ele se aproximando mais.

– Não, mas eu precisava ver seu rosto por baixo da máscara para não restar
dúvidas – respondeu ela, erguendo a arma novamente para manter uma distância
segura dele.
– Calma Tasha, eu estou desarmado e a convidei para cá. Pode confiar em mim –
disse ele, dando um passo para trás.

– CONFIAR EM VOCÊ? – gritou ela, engatilhando a arma novamente.

Mickey não estava gostando do rumo da conversa. Aparentemente Natasha tinha


um problema pessoal a resolver com o Mancha e isto iria atrapalhar o andamento
da missão. Mesmo assim, não havia espaço para seus comentários ou
intromissões.

A agente Natasha Bykov e o Mancha Negra conversavam sozinhos e ignoravam a


presença de Mickey completamente.

– Confiar em Dmitri Ivanov? – perguntou ela com sarcasmo.

– Confiar no traidor mais odiado da nossa pátria? Você traiu sua família, o exército
e o General Alexei. Você entregou a Moldávia nas mãos dos Soviéticos e ainda
imagina que merece confiança?

– Eu não traí nossa pátria e muito menos você, pois a mantive viva e a salvo no dia
da invasão ao Castelo Peterhof – respondeu o Mancha, aparentando calma.

Mickey gostava cada vez menos do rumo da conversa.

– Mentira, foi só coincidência eu não estar lá. Você nunca se importou comigo, seu
miserável frio e calculista – disse com raiva.

– Acredite no que quiser, mas tudo que fiz foi motivado por apenas uma coisa, eu
tinha que terminar com a guerra – afirmou ele com convicção.

– Mentiroso – resmungou ela com ódio no olhar.

– Vamos falar sobre mentiras Tasha? Seu amado General mentia que tinhamos
chance contra os Soviéticos, mentia que o povo estava protegido, mentia que a
melhor coisa que poderíamos fazer era continuarmos independentes, mentia que as
viúvas e órfãos de guerra recebiam ajuda do governo.

Natasha não respondeu.

– Em quase sete anos de guerra, você sempre viveu protegida no castelo. E quanto
a mim? Eu presenciei o horror dos campos de batalha, encontrei vilas dizimadas
pelas tropas Soviéticas para minar a vontade do nosso povo, assisti soldados
saqueando as casas e crianças chorando por seus pais e por fome – disse ele em
um tom emocionado, a medida que se aproximava.
– Quantas chances o desgraçado do Alexei teve para encerrar tudo aquilo? A
princípio, eles não queriam nos anexar, bastava que ficássemos subordinados ao
Comitê Central do Soviete Supremo. Mas não, a Moldávia nunca aceitaria ser
subalterna a Moscou, nosso orgulho nacional não devia permitir isso, mesmo que
custasse a vida de milhares de pessoas inocentes.

As lágrimas começaram a rolar no rosto de Natasha.

– Não justifica a sua traição! – disse ela em um tom de voz muito baixo.

Mickey estava preocupado e o medo de que Natasha matasse o Mancha friamente


estava aumentando, apesar de que ele não iria permitir.

– Agente Bykov... – ele começou a falar, sendo cortado imediatamente.

– CALE A BOCA! – foi o grito que Mickey recebeu como resposta. E Natasha o fez
sem desviar os olhos do Mancha.

Mickey congelou neste momento. Qualquer coisa que ele falasse apenas iria piorar
a situação.

– Nicolai nunca teria aceitado o que você fez – continuou ela, com mais raiva ainda.

– NÃO OUSE CITAR O NOME DE NICOLAI! – gritou o Mancha, perdendo a calma


pela primeira vez.

– Você não sabe de nada porque não estava lá! Você não viu o que aconteceu em
Prytysko para saber de alguma coisa, então não fale nada – concluiu ele com raiva.

– Tudo bem, Nicolai não tem nada a ver com isto. A única coisa que importa é que
finalmente eu encontrei o traidor – disse ela, voltando a mirar na cabeça dele.

– Eu sabia que você me procurava, tanto que há vários anos eu sempre estive a
sua frente. Mas agora eu ordenei a um dos meus lacaios, que inclusive você
conhecia, que se você aparecesse, deveria convidá-la para que pudéssemos
conversar. – respondeu calmamente.

– E agora, Tasha? Você mata o traidor, sua vida torna-se completa e a partir de
amanhã, a felicidade baterá na sua porta todo dia?

Natasha não respondeu.

– É hora de decidir seu futuro, Tasha. Estou te dando a chance de escolher entre
suas ordens ou seus desejos – concluiu o Mancha, ficando parado de frente a ela.

– Agente Bykov, não faça isto – pediu Mickey, tentando passar calma em sua voz.
– Eu não sei oque ele fez contra você, mas matá-lo a sangue frio é errado. O
Mancha Negra deve ser julgado e preso por seus crimes.

– Ele nunca fez nada contra mim – balbuciou ela.

Mickey sentiu-se aliviado, pois o problema não era pessoal, o que tornaria mais fácil
convencê-la a não matá-lo.

– Então, por favor abaixe a arma. Vamos prendê-lo e levá-lo as autoridades.

Natasha não respondeu.

Um turbilhão de memórias e sentimentos se misturavam em sua cabeça. Tenras


lembranças do passado, o primeiro dia que ela o viu na escola, a amizade acima de
tudo, os fatos terríveis ocorridos durante a guerra, o alivio que ela sentia quando
Dmitri e Nicolai iam visitá-la no castelo nos poucos períodos de folga, o dia em que
ele voltou sozinho após uma série de campanhas vitoriosas.

Cada item, momento e sentimento envolvido em uma convivência de tantos anos


estava voltando como um filme, com a conclusão no maldito dia do adeus, onde ele
deixou claro que não tornaria a ve-la.

Neste confuso longa-metragem o desfecho eram as ordens de seu governo para


matar o traidor a qualquer custo, esta era sua missão.

– Agente Bykov? – perguntou Mickey após quase um minuto, quebrando a


concentração dela.

Este pequeno minuto a fez se decidir. Ela faria o que devia ser feito e que se
danassem as consequências.

– Fique tranquilo agente Mickey, eu não vou matá-lo... – disse ela finalmente, ao
mesmo tempo em que trazia a mão em sua direção, mantendo a arma apontada
para cima ao lado de seu rosto. Neste momento, desengatilhou.

– Ainda bem – pensou Mickey ao ouvir isto ao mesmo tempo em que dava um
suspiro de alívio.

– ...e sinto muito por isso – concluiu ela, dando um passo para trás e ficando as
costas de Mickey.

Antes que Mickey pudesse perguntar qualquer coisa ou mesmo olhar para trás, a
coronha da arma que estava com a agente Natasha Bykov desceu pesadamente
em sua nuca.

Escuridão.
Capítulo 07 – Mancha Neural

Quinta-Feira, 20 de março, 14:33


Hoje

Mickey tentava decidir oque fazer naquele exato momento. Dar um tiro na porta?
Seria uma alternativa possível, mas poderia acidentalmente matar o piloto.
Ameaçar dar o tiro e exigir que ele saísse? Podia ser, mas acabaria o elemento
surpresa.

Tantas opções e ao mesmo tempo, uma sensação de letargia e desorientação.

1210 km por hora.

O jato onde ele estava tinha um formato de V, com a ponta da frente afinada e o
corpo mais largo, visando carregar bombas e equipamentos. Sua estrutura foi
planejada para transportar qualquer coisa, menos pessoas. A única área realmente
protegida era a cabine de comando.

1220 km por hora.

O Concorde, famoso jato supersônico, possui o corpo inteiro afinado por dois
motivos. Facilitar o Mach e evitar qualquer reação ao estrondo sônico para quem
estivesse lá dentro. Essa preocupação não existiu para os projetistas desse jato.

1230 km por hora.

Nesse instante, Mickey decidiu. Daria um tiro na porta e se por acaso o piloto fosse
atingido e o jato caísse, levando-o a morte inevitável, seria um preço que ele estava
disposto a pagar. Mas ela estaria segura e só isso importava.

Sem pensar, a arma foi apontada para a porta e engatilhada. Mas uma lembrança o
fez hesitar por um segundo.

– Desculpe Minnie... – foi sua última frase.

1235 km por hora.

Escuridão.
Quinta-Feira, 06 de Março...

Escuridão.

Silêncio. Frio.

Dor. Dor intensa. Uma pontada forte que não se sabe de onde vinha.

Uma pontada forte na cabeça. Um leve movimento. Frio. Silêncio.

Uma dor mais forte. Um leve zunido e um pequeno movimento.

– Onde estou? – pensou Mickey. A dor não o deixava raciocinar. Sua cabeça
parecia que ia explodir.

Foi difícil começar a abrir os olhos. A dor, o silêncio, o frio, uma luz muito forte e
uma grande confusão mental tornava tudo surreal.

– O que houve – era seu pensamento naquele instante.

– Finalmente acordou, achei que era mais duro – foi o que Mickey ouviu bem longe.

– Onde... Onde... Onde estou... O que houve? – ele balbuciava de forma totalmente
confusa.

Uma risada longínqua foi sua resposta.

Escuridão.

Um tempo indefinido depois...

Escuridão.

Muito confortável. Nenhum problema. Nenhuma dor. Nenhuma sensação.

De repente, a luz.

– O que?! O que houve?! – Mickey acordou gritando.

A dor ainda estava na sua cabeça, o frio continuava em seu corpo deitado em uma
mesa de metal. Amarrado. Indefeso.

A sala onde estava não parecia a de um galpão, mas sim de um laboratório de alta
tecnologia.
Diversos armários com uma infinidade de ampolas, alguns computadores que mais
pareciam servidores de última geração e uma iluminação forte e branca.

– Será que agora você fica acordado? – Mickey ouviu em um tom mais frio do que a
mesa, aquela voz que ele conhecia tão bem.

– Mancha! Desgraçado! O que fez comigo?! Cadê a agente Bykov?! – começou a


gritar Mickey desesperadamente, se debatendo na fria mesa.

– Eu? Eu não fiz nada. Quem quase rachou sua cabeça foi sua amiga.

Repentinamente veio a lembrança.

– Não... Não pode ser. O que você fez com ela? – disse ele parando de se debater.

– Nada. Apenas perguntei o que ela queria fazer e a resposta foi sua cabeça
rachada – respondeu com um sorriso macabro.

– É impossível... Eu li a ficha dela... Uma ficha impecável... Como é possivel?

– Hahahaha – foi a resposta, que durou alguns segundos.

– Impressionante, realmente impressionante! – disse o Mancha em um tom muito


inconformado.

– Como um idiota crédulo como você pode me atrapalhar tanto? Uma moça bonita
com a ficha impecável. Desde quando isso deve ser considerado para descobrir as
motivações de uma pessoa?

Mickey não respondeu.

– Se eu soubesse que você confiava de olhos fechados em uma mocinha bem


intencionada, já teria te destruído faz tempo. – finalizou o Mancha ao mesmo tempo
em que balançava a cabeça.

Mickey não conseguiu responder. Sua cabeça alternava entre a traição de Bykov, a
sua situação e como iria sair dela. Repentinamente a resposta veio, ele precisava
ganhar tempo.

– Onde esta ela? Oque aconteceu enquanto estive desmaiado? – perguntou com
curiosidade genuína.

– Não seja indiscreto, daqui a pouco vai querer saber até os detalhes íntimos...
Hahahaha – foi a resposta com a conhecida risada gélida.

– Isso, comece a se gabar enquanto ativo o localizador de emergência na minha


roupa. – pensou Mickey enquanto apalpava a lateral direita da perna.
– A propósito, é isso que está procurando? – foi a frase que o Mancha proferiu ao
mesmo tempo em que exibia o localizador, uma peça metálica que parecia uma
moeda. Mickey sentiu-se gelar. Como ele poderia saber disso, a não ser que...

– Tasha foi gentil e me informou desse pequeno detalhe. Ela não é um amor? –
perguntou o Mancha com intensa ironia.

O olhar de Mickey estava vazio. A ausência do plano B (a agente Bykov) o travou.

– Bom, considerando que em breve você não poderá perguntar mais nada, serei
magnânimo. Como o clichê de um bom vilão de filme, permitirei que você pergunte
oque quiser e então irei expor meu plano maligno enquanto você, o herói, tenta se
safar.

Mickey não tinha outra opção e realmente, ele precisava saber oque estava
acontecendo.

– Então, que tal me dizer oque você faz no meio desse mato? Está se escondendo
da CIA? – perguntou rapidamente antes que seu algoz mudasse de idéia.

– Hora, você sabe o motivo, a CIA lhe contou sobre o vilarejo e os fanáticos
assassinos.

Mickey engoliu seco, pois a admissão de culpa por tantas mortes, dita de uma
forma tão fria era extremamente incômoda.

– Eu não havia acreditado, mesmo sendo você, eu não consegui acreditar que seria
sua responsabilidade o massacre de uma vila cheia de inocentes. – disse Mickey
com um suspiro.

– E quem disse que a culpa é minha? Vou te contar quem é o culpado de tudo isso
– foi a resposta com imensa tranquilidade.

Mickey estava cada vez mais confuso.

– Como você bem sabe, sou um gênio, e como tal, meus objetivos sempre foram
grandiosos.

– Roubo, sequestro, extorsão. Muito grandioso mesmo – respondeu Mickey com


um sorriso.

– Ah, você citou os meios, mas não sabe o fim. Tenha paciência, pois quanto mais
demorar essa conversa, mais tempo você terá de vida – respondeu o Mancha.
Mickey sentiu seu coração disparar com a ameaça carregada de ódio.
– Tudo começou quando após muito estudo, consegui criar algo que almejava há
muito tempo. Anos de pesquisa e dedicação culminaram na minha maior criação, o
Mancha Neural.

Mickey deixou escapar uma risada.

– Falei algo engraçado?

– Claro que não, só estou imaginando o ManchaMóvel, o Manchacóptero e a


ManchaCaverna. – disse Mickey controlando a risada.

– Está enganado, o nome Mancha não é uma demonstração ridícula de narcisismo,


é apenas o "sintoma" que indica que o hospedeiro está contaminado – foi a
resposta.

– Uma... pequena... mancha... no... cérebro... – lembrou Mickey sentindo-se gelar


novamente.

– O Mancha Neural é um nano-robô, que ao ser injetado na corrente sanguínea


chega até o cérebro. Uma única dose contém milhões e milhões de robozinhos. –
disse o Mancha exibindo uma pistola muito parecida com as usadas em vacinação
bovina.

– Imagine milhões de robôs, cada um se ligando a uma sinapse, a um neurônio,


todos disparando micro sinais elétricos que são idênticos aos comandos normais do
cérebro.

– Tantos sinais simultâneos, todos ao mesmo tempo sobrescrevendo a vontade e o


raciocínio do hospedeiro. Será que você consegue imaginar o poder disso?

– Mas, mas, mas... não faz sentido. Se você tem algo tão poderoso, podia
conseguir oque quisesse – respondeu Mickey espantado. – Para que matar
inocentes, fazendo um massacre como aquele?

– Já disse que a culpa não é minha. Que tal deixar eu concluir a história? – foi o
comentário impaciente.

– Pelo menos uma parte esta clara agora, você dominou a agente Bykov – deduziu
o sempre detetive.

A gargalhada do Mancha ecoou por todo o ambiente.

– Como alguém que se acha um detetive tão competente pode ser tão ingênuo em
relação ao coração das mulheres?

– Eu não fiz nada contra Tasha, tanto que precisei mandar um lacaio convidá-la
para cá, fora a ceninha que você acompanhou na chegada. – disse o Mancha em
tom de incredulidade. – Ou talvez a pancada na cabeça foi mais forte do que
pensei.

– Verdade, eu não estou bem – pensou Mickey ao ter sua dedução refutada de
forma tão óbvia.

– Bem, agora seja educado e deixe-me continuar, ao final revelarei o real culpado.
Você me permite? – questionou ironicamente.

– Como se eu tivesse escolha...

– Obrigado. Após concluir o Mancha Neural, realizei diversos testes em pequenos


animais, que nada sofreram. Então um teste em larga escala era necessário.

– O vilarejo... – balbuciou Mickey espantado com a frieza.

– Um vilarejo afastado, onde eu pudesse verificar os efeitos acontecendo aos


poucos, em diversas pessoas de idades, peso e alturas diferentes. Aquele local era
perfeito.

– Bastou contaminar a garota do hotel e ordenar que ela contaminasse os amigos e


ao mesmo tempo, repassasse essa ordem. Em menos de três dias todos estavam
sob meu controle. Foi lindo – suspirou o Mancha enquanto se virava para Mickey.

– Mas... por causa de alguém tudo saiu errado. O cérebro humano tem nuances
que o tornam mais sensível, então os pulsos do Mancha Neural deveriam ser
gradativos.

– Imagine rato... aquelas pessoas simples e honestas que deveriam viver


tranquilamente... eu as vi morrer... uma a uma... por causa de um desgraçado –
concluiu o Mancha, pausadamente e com os olhos injetados de ódio.

– De quem ele está falando? – pensou Mickey sem entender.

– Sabendo disso, procurei outro lugar e voltei ao trabalho – falou, já com a voz
normalizada.

– Tudo bem, já sei a primeira parte, mas isso não explica os fanáticos e os
assassinatos. – falou sem querer o prisioneiro. Sem responder, o Mancha suspirou
e dando de costas ao seu prisioneiro, caminhou lentamente em direção a uma
mesa.

Mickey não entendeu essa mudança de postura, mas aproveitou a deixa para
procurar uma fraqueza nas cordas que o seguravam.
Infelizmente seu tempo foi demasiado curto, pois seu antagonista voltou em menos
de dez segundos, tendo em sua mão uma fita grossa de lacrar encomendas, que o
deixou apreensivo.

– Como você não sabe esperar e nem ficar de boca fechada, só dessa forma para
eu conseguir terminar minha história – disse o Mancha enquanto passava a fita
várias vezes na boca de Mickey, com uma raiva palpável.

Agora o detetive não conseguiria falar e nem gemer, de tão apertado que estava
sua mordaça improvisada.

– Bem melhor assim, sem qualquer interferência – comentou com um sorriso de


satisfação – Agora posso concluir meu relato e me livrar de você de uma vez por
todas.

Mickey sentiu um arrepio na nuca, como se alguém estivesse dançando sobre seu
túmulo.

– Continuando... após o fracasso monumental com os coitados de Nord, fui até


Spitak e fiz as coisas de forma mais lenta.

– Contaminei um morador... aguardei alguns dias e nada aconteceu, exceto ele me


obedecer. Passei para outro e outro... imagine a minha felicidade ao constatar que
a segunda versão funcionava perfeitamente. Com esta certeza, coloquei meu plano
em prática.

– Selecionei alguns pilantras da região, aquele tipo de pessoa que ninguém sentiria
falta e que se desaparecesse seria um alivio. Os enganei com uma promessa de
trabalho sujo e um ganho alto e com a ajuda do Mancha Neural, tornaram-se meus
escravos.

– Você entendeu, rato? Consegue imaginar a possibilidade de fazer coisas boas


com um bando de facínoras? – questionou o Mancha, sabendo que não haveria
resposta.

– O maior facínora de todos está aqui bem na minha frente – pensou Mickey, sem
realmente saber oque fazer.

– Quantos industriais que só servem para poluir o planeta, quantos políticos


corruptos e banqueiros que por lucro destroem a vida das pessoas. Quantos
inocentes foram prejudicados por estes malditos que foram meus alvos.

– E sabe como tudo isso termina? Eu vou salvar este mundo podre, acabar com o
desmatamento e as guerras, impedir a extinção dos animais e evitar que a raça
humana se autodestrua.

– Só restarão vivas as pessoas que merecem, que são boas e não fazem mal a
ninguém. E estes escolhidos obedecerão as minhas diretivas, e tudo será
harmonioso e perfeito.

– Louco – pensou Mickey arregalando os olhos.

– Vejo que você não entendeu nada, não é? Pode falar – disse o Mancha
arrancando a mordaça com toda a força.

– Louco, você está mais louco do que nunca! Massacrou um vilarejo de inocentes e
diz que a culpa não é sua!

– E NÃO É!!! – gritou o vilão imediatamente – pois vou lhe contar quem é o maldito
culpado de tudo.

– Lembra-se de nosso último encontro em Avangard City? Com o Darkenblot eu


sequestrei dezenas de líderes mundiais e exigi um resgate de bilhões.

– Este dinheiro era para as pesquisas e o equipamento caríssimo que eu precisava


para criar o Mancha Neural perfeito.

– Eu não ia controlar ninguém, meu plano era criar algo imperceptível que alterasse
a personalidade das pessoas aos poucos, tornando-as mais bondosas e menos
gananciosas. Mas era necessário muito dinheiro para esta pesquisa.

– Nã-ã-o-o... você quer dizer que... – gaguejou Mickey quando a conclusão tornou-
se óbvia.

– Sim, seu maldito! Se não fosse a sua intromissão, eu poderia ter feito mais
pesquisas e ninguém do vilarejo teria morrido. Vai conseguir dormir a noite sabendo
disso?

– Não, não, não... eu nunca desejei isso... você que é um louco assassino... você
que... – falava Mickey quando foi violentamente agarrado no pescoço.

– Sim, a culpa é sua! Ao evitar que o dinheiro daqueles líderes viesse as minhas
mãos, você matou centenas de inocentes – vociferou ao mesmo tempo em que
estrangulava seu refém.

A cada segundo, Mickey sentia que seu fim havia chegado, pois era impossível
escapar daquele aperto mortal. Em seus últimos instantes de consciência, apenas
um pensamento veio a sua mente.

– Minnie...

De repente, o aperto parou. Mickey tossia, tossia e tossia ao mesmo tempo em que
respirava desesperadamente.
– Por... – balbuciou ele, tossindo muito ainda.

– Não é óbvio? Apesar de tudo, você merece viver. É uma das pessoas boas que
este mundo precisa e eu te darei a chance de trazer muitas outras para o nosso
lado. Esta será a expiação pelos seus pecados.

– Não... não vou... te ajudar... seu... louco...

O Mancha riu alto e debochado ao mesmo tempo em que empunhava uma coisa
que parecia uma pistola de vacinação.

Sem qualquer sutileza, o vilão aproximou-se rapidamente e apertou o estranho


aparelho contra a perna do detetive.

Tonto e sem poder reagir de qualquer forma, Mickey ainda conseguiu bradar,
enquanto sentia sua consciência se esvair:

– EU NUNCA VOU TE AJUDAR, SEU LOUCO!!!!

– Não se preocupe, você vai entender tudo em breve. – foram as últimas palavras
que ele ouviu.

Escuridão.
Capítulo 08 – Dmitri

Há 42 anos...

Era uma bela tarde de quinta-feira na fazenda Nadeyus, localizada em Badiporis,


província de Cahul, Moldávia.

Esta tranquila fazenda era a moradia do braço principal da família Ivanov há mais
de cinco gerações. Eles não pertenciam a nobreza do país, mas eram comerciantes
importantes e ricos, que possuiam muitas reservas em ouro, acumuladas em mais
de quinhentos anos de negócios lícitos e ilícitos.

Diversos monarcas já haviam pedido favores e tomado empréstimos com os Ivanov


e graças a isto, sempre havia um deles nas proximidades do Rei, como amigo ou
conselheiro. A influência política e social dos Ivanov os tornavam pessoas
requisitadas, ótimas para se terem como amigos e péssimas para se terem como
inimigos.

A dinastia Ivanov tinha uma arvore genealógica mapeada de quase mil anos, onde
vinte e sete gerações eram identificadas e nomeadas devidamente. E foi nessa
tarde quente e ensolarada que a vigésima oitava geração estava chegando, para
alegria do patriarca Vladimir, que acompanhava sua esposa Yeva.

Yeva tentava engravidar há um certo tempo e a demora impacientava a família.


Vladimir tentava ser compreensivo, mas a sua posição e importância praticamente
o obrigava a ter um herdeiro que carregasse o legado da dinastia Ivanov.

Há pouco, o médico havia lhe parabenizado pelo saudável menino que acabara de
nascer. A alegria desse nascimento era ofuscada pela leveza que Vladimir sentia
por finalmente poder encarar a família juntamente com seu rebento.

As mulheres limpavam o garoto que em breve estaria no colo de sua mãe. Yeva
estava muito feliz pelo parto ter transcorrido sem qualquer problema e
compartilhava da leveza de Vladimir por finalmente ter conseguido lhe dar um filho.

Ao término do parto, Vladimir adentrou a sala onde Yeva descansava e aguardava


seu menininho. Com um sorriso nos lábios, Vladimir aproximou-se da cama,
segurou a mão direita dela e disse:

– É hora de rejubilar meu amor, pois nosso filho nasceu e é saudável. A casa se
encherá com os gritos de alegria de uma criança e nossa linhagem persistirá. Estou
orgulhoso de você, pois cumpriu o seu papel com maestria.

– Obrigada – foi a única resposta que Yeva conseguiu balbuciar.


– Presumo que esteja exaurida, mas você precisa segurar nosso herdeiro em seus
braços para só então repousar serenamente.

– Eu sei, pode trazê-lo – retrucou ela sem muita convicção.

Ainda sorrindo, Vladimir saiu do quarto e seguiu até a outra sala, onde o menino
estava sendo cuidado pelos criados. Sem falar nada, entrou, foi até o cesto onde
estava e o pegou delicadamente.

O menino não chorava mais e se aconchegou imediatamente em seus braços, oque


fez Vladimir sentir uma simpatia e um amor incomensurável por aquela criança.

Vladimir levava o pequeno para o colo de sua mãe, que aparentava estar um pouco
mais animada.

– Segure-o meu amor – pediu Vladimir enquanto entregava a criança.

Yeva aconchegou o menino no braço, abraçando-o com carinho. Seu único


pensamento era que essa criança tão esperada e desejada finalmente estava entre
eles.

– Qual nome você escolheu para ele? – perguntou por pura curiosidade, já que o
acordo era que se fosse menino o pai escolheria o nome e se fosse menina, a
escolha ficaria a cargo da mãe.

– O nome de meu avô, que foi tão importante em minha vida, já que me deu mais
atenção que meu próprio pai.

– Então o nome dele será...

– Dmitri, o primeiro da vigésima oitava geração Ivanov – respondeu Vladimir.

Com um tímido sorriso, Yeva olhou para seu filho que dormia tranquilamente em
seu braço.

– Dmitri Ivanov, meu filhinho – foi o último pensamento dela, um pouco antes de
fechar os olhos e começar a dormir também.

Há 41 anos...

A alvorada havia despontado há pouco mais de trinta minutos naquele sábado e


através de uma fresta da janela, o raiar do sol iluminava e aquecia o quarto onde
Dmitri dormia tranquilamente.
Vladimir havia levantado primeiro e estava ao lado do berço, o admirando e tecendo
dezenas de planos para o futuro. Como demorou para voltar ao quarto, Yeva foi
encontrar seu marido.

– Você está aí – disse ela, bem baixinho, no instante em que adentrou o quarto,
vestindo um pijama longo e rosado.

– Sim, meu amor – foi a resposta. Em seguida, Vladimir andou em direção a sua
esposa e indicou a saída do quarto.

Vladimir seguiu Yeva que quase bocejando perguntou:

– O que você estava fazendo?

– Olhando nosso rebento, pensando em todas as coisas boas que ele fará na vida.

– Não está sendo apressado meu amor? Ele fez um ano há duas semanas –
comentou Yeva sorrindo.

– É claro que não meu amor. Dmitri tem um grande destino a cumprir e deverá levar
isso a sério desde muito cedo – respondeu ele com convicção.

– Pobre Dmitri, tão novo e com tanta responsabilidade – disse ela com um sorriso.

– Com certeza, mas ele irá nos orgulhar.

– Eu acredito nisso também. O destino de Dmitri é grandioso, ele será um homem


que vai trazer orgulho a nossa familia e ao nosso país.

Vladimir sorriu ao mesmo tempo em que abraçou Yeva, pois qualquer pequeno
momento a sós era muito valorizado desde que Dmitri havia nascido.

Claro que eles não puderam aproveitar muito, pois três minutos depois, ambos
ouviram o choro de seu filho, indicando sem sombra de dúvidas que era hora da
primeira refeição do dia.

– Hora do serviço de quarto da mamãe – disse Vladimir sorrindo.

– Eu sei, eu sei – respondeu Yeva um tanto quanto contrariada.

– Vou aguardá-la na sala de estar – disse Vladimir se afastando.

– Pode ir, assim que alimentá-lo e ele dormir de novo, eu vou te encontrar lá – foi a
resposta.

Yeva entrou novamente no quarto, onde ouvia o choro abafado de seu menino e
com toda a delicadeza, abaixou-se para pegá-lo.
– Calma, calma, eu estou aqui. Já vamos encher a barriguinha do meu queridinho –
disse ela ao mesmo tempo que o abraçava.

Dmitri parava de chorar quase que imediatamente ao ouvir a voz de sua mãe. Ao
sentir o abraço dela, ele repetia com toda a felicidade do mundo:

– Mamã, mamã...

– Dmitri Ivanov, o 28º da dinastia, o herdeiro de Nadeyus, o orgulho de seu pai –


dizia Yeva com ironia enquanto olhava pra ele.

– O mais importante é que você é e sempre será o meu filhinho – concluiu o


abraçando de novo.

Há 35 anos...

Dmitri não estava nem um pouco tranquilo naquela manhã de segunda-feira.

Apesar de seus pais garantirem que ele adoraria o novo ambiente e as pessoas
que lá encontraria, uma pequena e incômoda preocupação ocupava sua mente
infantil desde que soube, no mês passado, que já era hora.

Como pertencia a uma família rica, até os seis anos ele tivera uma série de tutores
e professores particulares. Absolutamente tudo que ele queria aprender era
providenciado, com toda a boa vontade, pelo seu pai.

Por ser uma criança muito curiosa, Dmitri já havia aprendido a ler, tocava piano
muito bem, nadava e até arriscava alguns movimentos de esgrima, sempre com
seus tutores.

Mas sua mãe apareceu com uma novidade no mês passado, pois como ele estava
fazendo sete anos, já era tempo de frequentar a escola Gorky Chekhov, local de
educação dos aristocratas, ricos e pessoas influentes. Yeva deixou muito claro que
se Dmitri quisesse ser alguém na vida, respeitado, inteligente e independente, ele
deveria se esforçar muito e ter excelentes resultados nas avaliações.

E é a ida para esse local novo, cheio de desconhecidos e onde ele seria cobrado o
tempo todo, que atormentava seus pensamentos no momento, enquanto seguia na
charrete da família, conduzida por um dos criados.

O maior medo de Dmitri é que ele conhecia seus limites e talentos, mas não tinha a
menor idéia de como eram as pessoas com quem ele iria conviver e "competir" dali
para a frente. Ele não queria de forma alguma decepcionar seus pais e muito
menos ser inferiorizado perante outras crianças.
Yeva conhecia seu filho muito bem e fez questão de dizer várias vezes que ele se
daria bem, que ele era mais inteligente que todos eles e outros elogios que falados
por uma mãe, sempre são 100% sinceros.

Dmitri ficava extremamente nervoso quando não tinha o controle da situação, mas
tentava se acalmar a medida que via o muro da escola se aproximando. A
inevitabilidade dos próximos acontecimentos causavam uma sensação de
conformismo muito ruim.

O criado levou a charrete até a entrada, parou, amarrou o cavalo no local


apropriado e em seguida foi ajudar seu pequeno mestre a descer. Com um
movimento delicado, ele colocou Dmitri no chão e perguntou:

– Deseja que eu o acompanhe até lá dentro, mestre Dmitri?

– Não, não, pode deixar que me viro sozinho – foi a resposta nervosa dele.

– Como quiser, senhor. Estarei aqui na hora determinada para levá-lo novamente a
fazenda.

– Tudo bem, até mais tarde – finalizou, virando-se de costas e adentrando pelo
portão principal.

Fingindo autoconfiança, Dmitri ergueu a cabeça e olhava para todos os lados,


tentando se acostumar com a idéia de conviver todos os dias com tantas crianças.
Para sua surpresa, diferentemente de sua casa onde era o centro de tudo, ninguém
estava olhando para ele e nem dando qualquer sinal de atenção.

Ele sabia que deveria ir até a sala trinta e dois, onde estaria sua professora
Kathinka e a turma da primeira série. Claro que para chegar lá, deveria atravessar o
pátio inteiro, que no momento estava um verdadeiro caos.

Após alguns passos, Dmitri sentiu sua mão sendo segura e instintivamente a puxou
com força, enquanto olhava na direção do atrevido que ousara tocar nele.

Para sua segunda surpresa do dia, era uma menina pequena, talvez da idade dele,
bonitinha, com aparência impecável e um sorriso maior que o mundo.

– Desculpe te segurar, mas você tava andando rápido e eu queria te falar uma
coisa – disse ela, com o rosto começando a corar.

– Pode falar – respondeu Dmitri seriamente. Uma das coisas que ele aprendera
com sua mãe era respeitar e tratar muito bem meninas e mulheres.

– Eu sou da primeira série, hoje é meu primeiro dia aqui e estou perdida no meio de
tanta gente. Você parece perdido também então imaginei que vamos estudar juntos
e podiamos nos ajudar a chegar na sala.
Dmitri se surpreendeu novamente, pois essa menina era perspicaz e percebeu o
quanto ele estava deslocado só de olhar para seu jeito. Ainda um pouco
desconcertado, ele respondeu:

– Tem razão, somos da mesma sala. Acho que podemos nos aju...

– Ótimo, então vem comigo! – quase gritou a menina, puxando-o pela mão antes
que ele conseguisse terminar a frase, pensar a respeito ou mesmo reagir.

Nesse momento Dmitri atravessava o pátio na direção oposta para onde ia,
enquanto era arrastado por aquela garota espevitada. Só após alguns momentos,
ele conseguiu falar:

– Estamos indo pro lado errado, as salas...

– Eu sei, mas precisamos pegar o nosso outro amiguinho que está me esperando
ali no canto. Eu prometi que ia conseguir mais alguém e iriamos todos juntos para a
sala – foi a resposta dela, sem nem olhar para trás.

Dmitri não conseguiu argumentar mais, já que provavelmente, esse tipo de coisa e
de pessoa eram comuns nessa escola. Só restava a ele se adaptar e tentar parecer
o mais calmo possível.

Depois de algumas dezenas de passos, ele viu um outro menino pequeno com o
olhar perdido sentado em um banco.

– Será que eu estava com esse olhar? – se questionava.

– Olha, olha, consegui mais um amiguinho, agora podemos todos ir para a sala! –
chegou gritando.

O garoto levantou sem parecer muito animado e disse apenas:

– Vamos?

– Espera, espera! – protestou Dmitri soltando a mão novamente.

– A gente nem se conhece e papai e mamãe sempre dizem que não devemos
conversar ou andar com estranhos. Será que podemos nos apresentar primeiro?

– Tem razão, como fui mal educada – respondeu a menina, realmente sem graça.

– Então tá, meu nome é Dmitri Ivanov, muito prazer em conhecê-los – disse ele de
forma solene, da forma que ensaiou dezenas de vezes com sua mãe.
– Oi Dmitri, meu nome é Natasha Bykov – respondeu ela com um sorriso meigo e
sem qualquer formalidade.

– Nicolai Petrenco – disse o outro garoto, estendendo a mão.

Dmitri apertou a mão de Nicolai e sentiu-se muito bem em conhecer duas crianças
educadas tão rapidamente. Ele imaginava que talvez a escola não fosse tão ruim
assim afinal.

O que ele não imaginava, era que essa dupla de crianças seriam seus melhores
amigos durante muito mais tempo que a permanência deles nessa escola infantil. O
trio Dmitri, Natasha e Nicolai seriam inseparáveis a partir desse dia.

Há 32 anos...

Natasha havia acabado de sair da sala de aula naquela manhã de segunda-feira e


seu olhar buscava alguém que já estava fora dela há um bom tempo.

Ao notar que quem ela procurava não estava no corredor, andou nervosamente em
direção ao pátio. Chegando lá, viu Dmitri a distância, sentado tranquilamente em
um banco lendo um livro, o que a deixou inconformada a ponto de ir até ele
bufando.

– Não acredito nisso! – disse em um tom nada amigável.

– Não acredita em que, Tasha? – respondeu sem nem levantar os olhos do livro.

– Que você está lendo uma das suas porcarias incompreensíveis!

– Nietzsche é fascinante, você deveria experimentar – disse ele, ao mesmo tempo


que marcava a página e fechava o livro.

– Eu nem tenho tempo para estudar para os exames e você... você... – reclamava
ela, arfando e com raiva.

– Não entendo sua raiva, Tasha – respondeu Dmitri com um sorriso cínico.

– Você sabe que odeio esse seu sorriso – disse ela com um olhar fulminante.

– Mas o que posso fazer? Eu terminei a prova de duas horas em vinte e seis
minutos e decidi esperar vocês aqui fora. Enquanto isso, estou lendo algo que vai
abrir a minha mente.

– Eu sei – falou Natasha conformada, para em seguida sentar-se ao lado dele no


banco.
– Mas não acredito que você consegue ir tão bem nas provas sem se esforçar
quase nada. Em seu tempo livre você lê essas coisas enquanto Nicolai e eu nos
matamos de estudar.

– Bom, não acredito que Nicolai se importe de ficar muito tempo com você. Na
realidade ele diz que gosta de cada minuto – disse Dmitri reabrindo o livro.

– Sim, sim, mas as vezes sinto falta de você para estudar com a gente. Eu gosto do
Nicolai, mas prefiro ficar com você – respondeu Natasha corando levemente.

Dmitri não respondeu e não demonstrou se havia escutado e entendido ou


simplesmente ignorado. Após ler mais três páginas, marcar e fechar o livro
novamente, disse:

– Se o problema for esse, eu te ajudo a estudar, você sabe que não consigo te
negar nada, Tasha.

– Sim, e é só por isso que eu permito você me chamar de Tasha, esse privilégio é
só seu.

– Devo me orgulhar disso? – disse ele cinicamente.

– Deveria seu bobo, você sabe o quanto gosto de você – respondeu ela o
abraçando.

– Eu também gosto de você Tasha, mas o Nicolai gosta muito mais – disse ele se
desvencilhando do abraço.

– Não me importa – balbuciou ela, contrariada.

Um silêncio constrangedor se formou entre os dois amigos que permaneceram


quietos até a chegada de Nicolai, quinze minutos depois.

– Aí estão os dois, foram bem? – perguntou Nicolai enquanto se aproximava.

– Qual a diferença? – resmungou Natasha.

– Acho que fomos bem, Nicolai. Eu estava falando com a Tasha que para as
próximas provas, eu podia ajudar vocês a estudar, que tal? – perguntou Dmitri com
um sorriso.

– Legal Dmitri, acho que vai ser legal. Nós estamos com dificuldade em matemática
e qualquer ajuda é bem vinda.

– Então combinado – disse Dmitri, ao mesmo tempo que extendia o braço no meio
deles.
Natasha e Nicolai já conheciam o ritual, criado por eles na primeira série, três anos
atrás. Ambos extenderam o braço, colocando a mão em cima da de Dmitri.

– Amigos para sempre! – gritaram os três enquanto levantavam os braços ao


mesmo tempo.

Há 31 anos...

A sala do senhor Tols Vinográdon era impecável.

Em estilo colonial, possuia uma mesa espaçosa, cadeiras lustradas e alguns


armários com materiais e documentos. Uma janela de meia parede com cortina
branca permitia a entrada do sol durante toda a manhã caso fosse desejado e uma
porta de carvalho entalhado o mantinha em privacidade total.

Ser o diretor geral da escola Gorky Chekhov era um cargo de prestígio e


Vinográdon fazia questão de aproveitar cada mordomia que lhe era concedida.

Enquanto verificava alguns assuntos que requeriam sua atenção, lembrava-se do


pedido de reunião do professor Paovni, que ministrava aulas de física e química
avançada para o 10º ano. Como aquela manhã de sexta-feira estava livre de
qualquer compromisso urgente, Vinográdon o havia chamado as 11:30 hs.

Faltando apenas três minutos para o horário combinado, o diretor ouviu uma leve
batida na porta.

– Entre – disse ele em alto e bom som, de forma que seu convidado pudesse ouvir
fora da sala.

Timidamente, o professor Luksy Paovni abriu a porta e adentrou. Em seguida a


fechou e seguiu até a mesa, estendendo a mão e dizendo:

– Bom dia diretor Vinográdon, obrigado por me receber.

– Fique a vontade, professor – foi a resposta dele, ao mesmo tempo que retribuia o
cumprimento com um aperto de mão caloroso.

Paovni sentou-se e sabendo que o tempo do diretor era escasso, foi direto ao
assunto:

– Senhor, eu queria conversar sobre um dos alunos do 5º ano. Trouxe-lhe a ficha


para o senhor conhecê-lo melhor – disse ele, colocando uma pasta em cima da
mesa, em frente ao seu ouvinte.

Vinográdon recolheu a pasta, olhou rapidamente a ficha cadastral do aluno e sem


muito interesse, perguntou:
– Qual seria o motivo da conversa, prezado Paovni?

– Esse aluno está tendo aulas particulares comigo, senhor – foi a resposta com
certo receio.

– Como assim? Explique-se, professor – retrucou o diretor, em um tom de


incredulidade, ao mesmo tempo em que se ajeitava na cadeira.

– Ele sempre teve muita facilidade em tirar as notas máximas de todas as


disciplinas, senhor. Desde o ano passado, ele começou a sentir-se entediado e
como um incentivo, seus professores permitiram que ele assistisse algumas aulas
dos anos seguintes.

– Sim, sim, eu me lembro desse caso. Mas o senhor tem que concordar que colocar
uma criança de 11 anos para estudar física avançada e quimica molecular não é
uma estratégia que faça sentido. É óbvio que será uma perda de tempo imensa
para ambos, ele e você.

– Era o que eu pensava, até que eu comecei a ensiná-lo em sala de aula e ele
ultrapassou com folga todos os alunos de 17 anos.

O diretor se espantou, mas o professor continuou sua história:

– Como os demais alunos o atrapalhavam, decidi ministrar algumas aulas


particulares. E estarrecido, notei que seu raciocínio lógico e abstrato ultrapassa o
meu com folga. Para confirmar isso, pedi a professora Noelka que lhe aplicasse
diversos testes de QI.

– E qual foi o resultado? – perguntou o diretor muito interessado.

– Não sabemos, senhor.

– Como não sabem?

– Foi impossível determinar, pois ele ultrapassou todas as escalas.

O diretor se ajeitou na cadeira espantado, pois nunca havia visto algo sequer
parecido com isso. Após alguns instantes de reflexão, disse:

– E qual a sua opinião, professor?

– Que estamos diante de um gênio como não se via há muito tempo nesse planeta.
Para qualquer área que ele se direcionar será o melhor, possivelmente fazendo
descobertas e formulando teorias que deixarão cientistas do mundo todo
boquiabertos.
Após uma respirada funda, Vinográdon começou a imaginar tudo que estava
envolvido com o que ele acabara de ouvir. Imaginou o prestígio que a escola e ele
próprio receberiam caso um gênio tivesse sido educado lá.

Com um sorriso, disse ao professor:

– Imagino que o senhor tenha vindo me pedir autorização para dar uma atenção
especial a esse aluno.

– Sim senhor. Gostaria de ficar responsável pelas matérias que ele vai aprender e
desejo acompanhar de perto seu desempenho, fazendo um relatório detalhado de
cada item.

– Autorização concedida, professor. Forneça tudo que esse aluno precisa e me


mantenha informado de seu progresso.

– Sim senhor, obrigado senhor – disse Paovni, levantando-se animado e já


imaginando as coisas que faria em seguida.

Após um ultimo cumprimento, ele saiu e deixou o diretor imerso em pensamentos


agradáveis. Imaginava a repercussão perante a comunidade científica, os
congressos que poderia ir no mundo todo apresentando esse prodígio e os
dividendos que receberia por tê-lo treinado.

Pegando a pasta em cima da mesa, olhou atentamente a ficha do aluno e com um


sorriso, pensou:

– Dmitri Ivanov, com um pouco de sorte e esforço, o mundo todo ouvirá falar de
você um dia.

O diretor Tols Vinográdon, não podia imaginar o quanto estava correto em seu
pensamento. Ele só não podia imaginar como seria que o mundo conheceria aquele
brilhante e promissor aluno.
Capítulo 09 – Amigos

Há 30 anos...

Desde a sua fundação, a Moldávia manteve como forma de governo a monarquia.


O trono do Amieiro como era chamado, esteve ocupado por 36 gerações da
dinastia Peterhof, cuja origem se perdia desde a época do Império Romano.

Há pouco mais de quatro meses, o Rei Krigor Peterhof havia falecido, garantindo a
sucessão de seu filho único, o príncipe Andres Peterhof, que agora mais do que
nunca estava sozinho, pois seu nascimento havia vitimado a Rainha.

O braço direito do Rei, General Alexei Amakai não sentia-se a vontade com o jovem
príncipe, pois acreditava que alguém com singelos vinte e dois anos não estava
preparado para ostentar a coroa como 37º monarca da Moldávia.

Nas últimas semanas, a percepção ruim sobre o príncipe aumentava cada vez
mais. Ele não levava a sério as obrigações da coroa, não participava dos eventos
solenes onde era requisitado e muito menos preocupava-se com os problemas que
chegavam aos seus ouvidos.

Um sentimento crescente de desconfiança em relação a coroa estava em curso


junto a população. O General Amakai havia avisado o monarca diversas vezes que
o povo estava insatisfeito e isso poderia acarretar uma revolta.

Como sempre, o Rei não dava ouvidos e mantinha o seu comportamento errático e
despreocupado de sempre.

Há duas semanas, esse sentimento negativo ganhou mais força após a divulgação
de diversas viagens do novo Rei, que utilizando-se do tesouro do país estava
passeando por toda a Europa ocidental.

Seu erro fora justamente esse, pois aproveitando esse tempo, o General Alexei
reuniu-se em segredo com outros militares insatisfeitos e com alguns milionários,
dentre eles, Vladimir Ivanov.

– Senhores, essa situação é insustentável! – bradava o General, buscando apoio


entre os presentes.

– E qual a sua sugestão, General? – questionou Vladimir.

– Se os senhores confiarem nas palavras de alguém que só quer o melhor para seu
país, vocês irão acreditar que só existe uma solução viável e definitiva para tudo
isso.
Com muita atenção, todos os homens a mesa naquele momento, discutiam o futuro
de seu país. A reunião havia terminado com um acordo de cooperação mútua e
com a definição de cada passo a ser tomado nos dias seguintes.

E hoje, no dia do retorno de sua majestade, o General Alexei o aguardava na pista


de pouso exclusiva para o avião da realeza. O Rei Andres estava voltando para
casa e solicitou uma escolta até o palácio, algo que ele nunca abria mão.

Junto ao General, trinta oficiais de sua inteira confiança assistiam o avião pousar,
se aproximar e parar. Em seguida, a escada foi colocada para a descida do Rei e
sua pequena comitiva, formada de amigos íntimos e dois guardas.

Ao pisar no chão, o Rei Andres falou animadamente:

– Saudações General.

– Majestade – respondeu ele com uma reverência.

– Por que tantos guardas, General? Está tão preocupado com minha segurança? –
perguntou o Rei de forma jocosa.

– Em absoluto, Senhor. Eles estão aqui apenas para garantir que vossa majestade
seja encaminhado tranquilamente para o local onde passará a noite.

– O Castelo Peterhof é bem próximo General, não preciso de tamanha escolta. –


respondeu o Rei, começando a se afastar.

– Infelizmente sua casa pelos próximos dias não será o castelo de sua familia,
Senhor – retrucou Alexei.

– Explique-se, General! – ordenou o Rei, virando-se rapidamente para encará-lo.

– Guardas! – disse o General, apontando para o Rei.

Em menos de um minuto, os soldados que estavam atrás do General renderam o


Rei, seus amigos e os dois guardas pessoais.

– O que significa isso, General?! – gritava o Rei enquanto era imobilizado.

– Significa que vossa majestade está sendo deposto, será preso e daqui a uns dias,
exilado – respondeu friamente Alexei. – Podem levá-lo, mas sejam cuidadosos e
não causem nenhum dano a nosso amado monarca.

– Isso é traição! Você não pode fazer isso comigo!!!! ALEXEI!!!! – gritava o Rei
enquanto era encaminhado para fora do aeroporto e de lá, para a prisão.
Enquanto olhava o Rei ser levado, o General pensava em como se havia chegado a
essa situação, onde para garantir a soberania de sua pátria, ele precisaria
encabeçar um golpe de estado.

Sem hesitar, ele faria qualquer coisa para proteger seu amado país e o apoio dado
pelos outros militares de alta patente e pelos milionários, garantiria a sua subida e
permanência no poder. Isso era um fato incontestável, do qual ele tinha certeza
absoluta.

O que o General Alexei Amakai nunca poderia imaginar, era a terrível consequencia
que esse ato traria a Moldávia, que dentro de alguns anos seria envolvida em uma
sangrenta guerra que iria exaurir os recursos econômicos de sua bela nação.

Há 25 anos...

O clima frio e tranquilo desse inverno contrastava completamente com o ânimo dos
três amigos reunidos na sala de estar principal da fazenda Nadeyus. O fato dos
pais de Dmitri estarem ausentes em uma reunião de emergência com o General
Alexei, não tornava o ambiente mais agradável ou menos tenso, mas ao menos
permitia que eles conversassem com privacidade.

Após receberem uma bandeja com chá e pães diversos, servida pelo criados, Dmitri
pediu que todos saissem e os deixassem a sós. Enquanto bebiam o chá em
silêncio, pensavam nas possíveis consequencias da informação que receberam há
poucos dias.

Cerca de um ano atrás, o General Alexei havia recebido a visita de emissários do


Kremlin de Moscou, com uma mensagem direta e clara. Os russos exigiam, sem
qualquer possibilidade de negociação, a rendição militar e subordinação total do
governo da Moldávia ao Comitê Central do Soviete Supremo. A partir disso, toda e
qualquer decisão estratégica ou econômica em acordos comerciais com outros
países, deveria passar pelo crivo dos comunistas.

Por considerar o ultimato russo uma afronta, o General Alexei simplesmente


deportou os mensageiros de volta a Moscou, sem enviar qualquer resposta formal.

Sete meses depois, uma nova tentativa de contato foi feita pelos russos. Com
termos mais amenos como "A Moldávia está em uma posição de fronteira que
devemos proteger", "A Moldávia não será anexada a U.R.S.S., apenas queremos
ter a certeza da lealdade do governo" e uma maior flexibilidade sobre as decisões
que o Comitê Central tomaria, um diplomata conversou por dias com o General.

Como não chegaram novamente a um consenso, após a partida do diplomata, o


General Alexei imaginou que o próximo contato seria bem mais ameno e com
certeza poderiam chegar a um acordo muito mais benéfico a Moldávia.
Esse contato seguinte realmente aconteceu, só que de outra forma. Há pouco mais
de quarenta dias, tropas Soviéticas haviam se posicionado na fronteira entre os
dois países.

– É um blefe para me assustar – pensou o General.

Não era. Há quinze dias, ocorreu a invasão por terra com soldados e tanques ao
mesmo tempo em que caças bombardeavam alvos militares nas cidades mais
afastadas da capital. A principio, os russos mantiveram posição próxima a fronteira.

O General entrou em contato com Moscou, tentando falar sobre os termos do


acordo que havia sido oferecido há poucos meses. A resposta foi curta e grossa:
"Sem acordo, exigimos sua rendição e submissão total".

Essa nova afronta foi demais para um General que não estava acostumado a baixar
a cabeça nem para o rei, quanto mais para estrangeiros comunistas que se
achavam donos do mundo.

– Sem acordo também. Vou expulsá-los de volta para o buraco de onde vieram! –
foi a resposta de Alexei.

A guerra havia começado.

E foi essa a primeira notícia que o trio de amigos recebeu. Ainda sem entender
muito o que fazer ou o que pensar sobre isso, a segunda notícia foi mais
devastadora.

Todos os homens capazes e jovens entre 16 a 30 anos estavam automaticamente


convocados para o exército nacional, que iria resistir a invasão Russa. Esse
alistamento compulsório pegou de surpresa a nação inteira, mas havia um
sentimento corrente de que não podiam simplesmente permitir que estrangeiros
chegassem e assumissem tudo.

Assim que terminou de engolir o chá, foi Natasha que quebrou o silêncio ao mesmo
tempo em que se levantava da poltrona:

– Então?

– Então o que? – Questionou Dmitri se levantando também. Nicolai se mantinha em


silêncio.

– Como o que? Vocês foram convocados para a guerra, não vão falar nada?

– E podemos falar o que? Temos escolha ou opção? – respondeu Dmitri


cinicamente.

– Não disse isso. Quero saber o que vocês acham disso tudo.
– Perda de tempo! O General devia ter feito um acordo ao invés de entrar de
cabeça nessa guerra que só vai servir para fazer o povo sofrer – respondeu Dmitri
com raiva.

– Mas temos que defender nossa pátria! – retrucou Natasha

– Eu não estou negando isso. Só digo que nesse caso, uma saída diplomática teria
sido muito mais eficiente.

– Você acha que tudo se resolve conversando?

– Não, mas nesse caso, sim – encerrou Dmitri, se virando e passando a admirar a
parede. Essa era outra característica que Natasha odiava nele.

– Não dê as costas para mim, você sabe o quanto odeio isso! – disse Natasha
espumando de raiva.

Dmitri a ignorou e não saiu da posição em que estava.

– Gente, parem com isso! – disse Nicolai, finalmente quebrando seu silêncio auto-
imposto. Em seguida ficou de pé também.

– Sei que ambos estão tensos, tristes e nervosos, mas brigar entre nós só vai piorar
a situação – concluiu ele.

– Como sempre o apaziguador – disse Dmitri se voltando novamente e encarando


Natasha. – Você devia aprender com Nicolai que seus surtos histéricos não
resolvem nada, Natasha.

Natasha sentiu um frio no peito. Toda vez que Dmitri não a chamava de Tasha é
por que ele estava extremamente nervoso. Talvez ela tivesse subestimado os
sentimentos de seu amigo.

– Tudo bem Dmitri, desculpe. Mas não sei como lidar com isso – foi a resposta
dela, em um tom muito humilde.

– Calma, Natasha – falou Nicolai com carinho – Sei que você está preocupada
conosco ao mesmo tempo que sabe que não temos como evitar isso. Mas fique
tranquila, não vai acontecer nada enquanto estivermos juntos. Eu cuido do Dmitri e
ele cuida de mim.

– Pode ter certeza – respondeu Dmitri – Não deixarei nada acontecer com o Nicolai.

– Nem eu com o Dmitri – afirmou Nicolai.


Natasha olhou para seus dois melhores amigos e sentiu uma tristeza enorme.
Sabia que ficaria longe deles a partir dos próximos dias e que eles estariam em
perigo constante no front de batalha.

Sem falar mais nada, ela foi até Dmitri e o abraçou bem forte. Meio surpreso, ele
retribuiu o carinho.

– Promete que vai voltar bem e cuidar do Nicolai? – perguntou ela.

– Claro, Tasha.

Após alguns segundos, ela o soltou e foi até Nicolai. Repetiu o gesto e o abraçou
com força.

– Você promete voltar bem também? E vai cuidar do Dmitri?

– Claro Natasha – foi a resposta dele, a abraçando bem forte.

– Promete que não vai deixar nada acontecer com ele? Vai trazê-lo são e salvo de
volta? – insistiu ela.

– Natasha... – começou a dizer Nicolai, susurrando no ouvido dela – Eu defenderei


Dmitri com a minha vida se for necessário. Por você, eu não deixarei que nada
aconteça a ele.

– Obrigada – respondeu ela, também sussurrando.

Em seguida, fez sinal para Dmitri se aproximar, abraçando-o também, mantendo


um braço em cada um de seus maiores amigos.

– Amigos para sempre? – disse ela, bem baixinho tentando segurar uma lágrima.

– Amigos para sempre – foi a resposta dos dois, ao mesmo tempo em que a
abraçavam.
Capítulo 10 – Guerra

Há 24 anos... [1º ano da guerra na Moldávia]

Era primavera. Nenhum dos que estavam cercando a pequena vila rural havia
percebido isso, mas as árvores estavam começando a ficar floridas. O perfume que
essas delicadas flores exalavam logo pela manhã também não era percebido.

A 8º Companhia de Infantaria do Exército Nacional da Moldávia só tinha um


objetivo, retomar essa vila que estava ocupada por tropas Soviéticas. Ao notar a
aproximação dos russos, os moradores fugiram apressadamente e deixaram abrigo
e comida a disposição do inimigo.

O General encarregado havia enviado batedores que reportaram vigias em todas as


entradas, o que impedia um ataque total. Ao invés disso, estavam se posicionando
em pontos estratégicos, preparando– se para a batalha que começaria a qualquer
momento.

A guerra na Moldávia já durava quase um ano e as batalhas estavam se


intensificando em áreas afastadas da capital, como esse pequeno vilarejo. Uma das
estratégias do exército vermelho era avançar aos poucos e evitar baixas civis,
afinal, após a ocupação Moscou não queria milícias se vingando de crimes de
guerra.

O General moldaviano não permitia ser chamado pelo nome. Para todo e qualquer
subordinado, ele era “O General” ou simplesmente Senhor. Já os soldados eram
todos chamados religiosamente pela patente e sobrenome.

– Senhor, todos estão posicionados conforme suas instruções – falou um Sargento


que viera ao General apenas para reportar a situação.

– Obrigado Sargento Tankovist, informe todas as unidades que começaremos o


ataque frontal exatamente as 10:30 hs. – respondeu ele – Assim que a artilharia
começar, as demais unidades devem cobrir os soldados que estão avançando.

– Sim Senhor – foi a resposta. Em seguida o Sargento bateu continência e se


retirou para obedecer a ordem de seu superior.

Dois dos soldados que estavam posicionados para o ataque frontal eram
exatamente Dmitri e Nicolai. Eles sabiam que aquela era a posição mais perigosa,
mas o critério de escolha para quem estaria lá era exatamente a agilidade e
velocidade para vencer a distância em campo aberto o mais rápido possível.

Eles sabiam que tinham poucos segundos para entrar na vila, se abrigar e limpar o
caminho para seus companheiros que viriam em seguida. Também estavam cientes
que a cobertura que teriam era de tiros dados a distância que poderiam ou não
acertar os inimigos.

– Essa manobra é muito arriscada, Dmitri – falou Nicolai agachado ao lado do


amigo.

– Obviamente é arriscado para nós, mas é uma forma garantida de realizar a


retomada rapidamente e com poucas baixas. O General é um grande estrategista –
respondeu Dmitri sem se alterar.

– E você fala com essa tranquilidade? Podemos não estar vivos ao final dessa
batalha – argumentou Nicolai.

– Para morrer basta estar vivo, Nicolai – foi a resposta mais fria ainda.

– Você sabe muito bem que preciso te proteger para a Natasha – disse Nicolai com
ironia.

– Prefiro não falar nada a respeito disso, meu amigo – disse Dmitri, se alterando um
pouco dessa vez.

– Tudo bem, tudo bem. Deixa eu ver, temos exatamente dois minutos para avançar
e torcer para que os inimigos não estejam esperando um ataque frontal, não é?

– Eles estão esperando. Por isso que minha primeira ação será derrubar aquele
sujeito que está lá no alto – respondeu Dmitri apontando para uma pequena fumaça
saindo de um telhado.

– Fumar é um péssimo hábito, não é? – disse Nicolai sorrindo.

– Pode apostar – respondeu Dmitri conferindo e engatilhando sua arma.

– Um minuto, meu amigo. Estou vendo o Tenente fazendo o sinal para ficarmos
preparados – disse Nicolai, se posicionando.

– Hoje a noite, brindaremos a Moldávia com mais uma vitória contra os comunas –
respondeu Dmitri com um sorriso de satisfação.

Os dois amigos não falaram mais nada, pois sabiam que suas vidas dependiam dos
próximos minutos. Eles não podiam se dar ao luxo de errar ou hesitar. O inimigo
não teria piedade e eles também não podiam ter.

Exatamente as 10:30 hs da manhã, a 8º Companhia iniciou a invasão. Como tinha


planejado, Dmitri derrubou o primeiro sentinela no momento em que ele virou a
cabeça para olhar a origem do barulho que começara, conseguindo assim uma
pequena folga para os soldados que estavam correndo em direção a entrada da
vila.
Dmitri nunca imaginou comemorar seus dezoito anos matando soldados russos em
solo moldaviano, mas infelizmente não havia qualquer escolha para os jovens de
sua geração.

Há 24 anos, no dia seguinte...

Dmitri estava sentando em silêncio, com a mente totalmente desligada do ambiente


ao seu redor. A tranquilidade do momento contrastava completamente com a
batalha sangrenta que havia ocorrido no dia anterior.

Apesar de mais de setenta baixas, a 8º Companhia venceu a luta e retomou a vila.


Após mais de vinte minutos de tiroteio intenso, os soviéticos tentaram abandonar o
local e foram recebidos pela tocaia montada pelo General moldaviano. Em apenas
três minutos tudo tinha terminado, com poucos remanescentes do exército
vermelho sendo capturados como prisioneiros de guerra.

Após atender os feridos, todos os homens que tinham condições cavaram


sepulturas para os colegas e uma vala coletiva para os russos. Com uma pequena
cerimônia, todos se despediram dos amigos e conhecidos, imaginando que na
próxima vez, possivelmente seriam eles que estariam sendo sepultados
diretamente na terra fria, com apenas um lençol em volta do corpo.

Sem lembrar de qualquer detalhe, Dmitri continuava quieto. Sua posição de


meditação foi aprendida lendo livros de Monges que conseguiam fica na mesma
posição, sem dormir ou comer por mais de três dias. Ele não chegava a tanta
perfeição, mas por algumas horas, era possível.

– Saúde meu amigo! – chegou gritando Nicolai, quebrando a concentração e


"acordando" Dmitri. Nas mãos dele, estavam duas canecas com cerveja, cheias até
a boca.

– Olá Nicolai – respondeu Dmitri secamente, sem se dar ao trabalho de dizer ao


amigo o tempo que ele o fez perder com essa atitude. Voltar ao ponto de meditação
onde ele se encontrava, demoraria pelo menos duas horas.

– Ora, eu trago cerveja e você nem para agradecer – disse ele, sentando-se ao seu
lado, ao mesmo tempo em que oferecia uma das canecas.

– Tudo bem, obrigado – respondeu Dmitri pegando sua cerveja e já começando a


bebê-la.

– Um brinde a nossos companheiros que tombaram bravamente pela pátria – disse


Nicolai, erguendo sua caneca.

– Aos que tombaram idiotamente – respondeu Dmitri batendo os copos.


– O que quer dizer com isso Dmitri? – perguntou Nicolai espantado.

– Não é óbvio? Seria bravamente se estivéssemos falando de soldados que lutaram


da melhor forma possível e perderam para o tamanho do contingente inimigo. Mas
estamos falando de rapazes sem qualquer preparo que correm sem direção e
atiram de qualquer forma, só acertando o inimigo por sorte – respondeu Dmitri de
forma melancólica.

– Você sabe que não tivemos tempo para grandes treinamentos – argumentou
Nicolai, entendendo o ponto de vista do amigo.

– Eu sei, mas isso não significa que vou ficar feliz de ver tantas pessoas morrerem
dessa forma, simplesmente pelo fato de que não sabiam o que estavam fazendo.

– Você pensa demais Dmitri. O que importa em uma guerra são apenas duas
coisas: Ganharmos e estarmos vivos para comemorar – falou Nicolai, virando
quase a caneca inteira de uma vez.

– As vezes gostaria de ter um visão tão simplista de nossa realidade, Nicolai –


respondeu Dmitri, voltando a beber.

Nicolai não falou mais nada, pois sabia que seu melhor amigo as vezes pensava
demais e não adiantava argumentar com ele sobre isso. Enquanto bebia, seu único
pensamento estava em Natascha, no quanto estava feliz pela oportunidade de vê-la
novamente um dia.

Já Dmitri, em silêncio com seus pensamentos, imaginava a quantidade de


moldavianos que ainda tombariam nessa guerra estúpida e se havia realmente
alguma chance de expulsar os russos de seu amado país.

Há 23 anos... [2º ano da guerra na Moldávia]

O silêncio que rodeava a 8º Companhia contrastava completamente com o ruido da


luta que havia ocorrido no dia anterior.

A batalha de Valdai, como ficou conhecida, aconteceu no pé de um pequeno monte


e envolveu além da 8º Companhia, mais duas companhias de infantaria, uma de
artilharia pesada e uma de paraquedistas que surpreenderam os russos quando
marchavam em direção a uma cidade localizada a apenas sete quilômetros a oeste.

Nessa ocasião, os moldavianos celebravam tanto pela pequena quantidade de


baixas como pelo grande prejuízo causado aos inimigos, pois em média caíram
quatro russos para cada moldaviano. A única coisa que salvou o exército vermelho
de um autêntico massacre foi a retirada estratégica que o General inimigo adotou
após trinta e sete minutos de batalha.
Dmitri e Nicolai descansavam sentados e apoiados em uma árvore, estando cada
um virado para um lado, ambos com os fuzis na mão.

– E quando você se escondeu no banheiro das meninas para não levar uma sova
daqueles três valentões? – questionou Nicolai.

– Eu não tinha argumentos e muito menos força, então foi a única saída –
respondeu Dmitri sorrindo.

Sempre que tinham chance, os amigos conversavam sobre os tempos da escola.


As lembranças de um tempo bom aqueciam seus corações e os mantinham
animados para seguir em frente.

– Pena que as meninas não concordaram com sua idéia – disse Nicolai, caindo na
gargalhada.

– Falou o rapaz que nunca fez nada vergonhoso – sentenciou Dmitri.

– Não consigo lembrar de ter feito uma pior que essa.

– Talvez não uma individual, mas em quantidade você ganha de longe. Vou ser um
cara legal e te ajudar a lembrar de algumas hilárias.

– Seu conceito de engraçado é bem diferente do meu, Dmitri.

– Ah é? E que tal quando você perguntou para a Tasha assim : "Natasha, por que
as meninas não tem piu-piu?" – disse ele, com voz infantilizada.

Nicolai corou.

– Não se lembrava disso? A Tasha ficou com tanta vergonha que não falou com
você por uma semana. E quando você levou duas caixas, uma com um sapo para a
aula de anatomia e outra com um presente para a Tasha? Preciso te lembrar o que
ela fez com a caixa do sapo que você entregou a ela por engano?

Nicolai permaneceu em silêncio.

– Posso continuar, meu amigo?

– Não precisa – disse ele finalmente – Você tem razão, mas a maioria das
vergonhas que passei eram por causa da Natasha.

– E você nunca parou para pensar o motivo disso?

– Não sei do que você está falando, Dmitri – respondeu Nicolai secamente.
– Sei, sei. Bom, serei um bom amigo e não vou dizer o que você fez na minha casa
quando experimentou, pela primeira vez, a vodca envelhecida por vinte anos do
meu pai.

– Você sabe que não lembro o que fiz – disse Nicolai com certo constrangimento.

– Essa é a parte boa da história! – respondeu Dmitri rindo mais ainda.

Contagiado pela alegria do amigo, Nicolai não conseguiu evitar de cair na risada
também. Após alguns minutos, aproveitando o silêncio, ele concluiu:

– Será que teremos nossas antigas vidas de volta, meu amigo?

Dmitri suspirou profundamente. Ele tentava não pensar nisso, pois sua opinião era
totalmente formada a respeito desse assunto.

– Claro que não. Mesmo que a Moldavia saia vitoriosa, essa maldita guerra teimará
em nos mudar por dentro. O melhor que podemos desejar é manter nossos valores
inalterados até que possamos um belo dia voltar pra casa e esquecer tudo isso.

– Tem razão... – respondeu Nicolai com um suspiro

– Só de pensar na palavra “guerra”, uma antiga frase me vem a mente “Deixai aqui
toda a esperança, vós que entrais...”

– Dante... Está poético meu amigo, mas eu prefiro não abandonar a esperança.

– Sorte sua conseguir pensar assim – concluiu Dmitri.

E com essa última frase, os amigos fitaram melancolicamente o céu, pensando no


que estava acontecendo com seus entes queridos naquele exato momento. A única
certeza que ambos tinham era que essa maldita guerra já havia custado muito e
custaria muito mais a todos os seus compatriotas.
Capítulo 11 – Promessas

Há 23 anos, dois meses após a batalha de Valdai...

A 8º Companhia estava feliz e animada naquele dia quente e ensolarado, pois além
da pequena folga que eles teriam das batalhas, a solenidade que começaria em
seguida iria prestigiar e valorizar um de seus membros.

Todos os soldados estavam com seus uniformes impecáveis e em posição de


sentido, de frente ao pequeno palanque montado as pressas, que deixaria o mestre
de cerimônia um pouco mais elevado que seus subalternos.

Caminhando com passos firmes e decididos, o General da 4º Companhia que fora


escolhido para falar, subiu ao palaque e sob o olhar respeitoso dos soldados,
iniciou um discurso tão improvisado quanto o palanque onde ele se encontrava.

– Valorosos soldados, estamos aqui hoje para homenagear um moldaviano


corajoso, que com sua bravura honrou sua família, sua pátria e nosso exército.
Suas ações na recente batalha próxima a vila de Belgorod, não apenas salvaram a
vida de diversos companheiros, como mostraram aos comunas com quem eles
estão lidando.

– São de soldados assim que nosso amado Exército Nacional necessita! Se todos
se inspirarem em seu exemplo, essa guerra, que vai entrar em seu terceiro ano, vai
terminar rapidamente com o único desfecho aceitável, a expulsão dos comunas de
todo o nosso território.

– É com muito orgulho que chamo o soldado Dmitri Ivanov, da 8º Companhia! –


finalizou o General, levantando a voz nessa última frase.

Dmitri saiu timidamente do meio de seus companheiros, que agora batiam em seu
ombro, sorriam e gritavam palavras de admiração.

Há apenas alguns dias, o instinto de Dmitri foi crucial para a vitória na batalha de
Belgorod. Nesse dia sua seus companheiros marchavam com tranquilidade, pois
imaginavam alcançar os russos apenas no dia seguinte. Mas sem eles saberem, a
tropa inimiga se antecipou e montou uma cilada um pouco a frente do caminho.

Assim que a 8º Companhia se aproximasse de algumas casas abandonadas, seria


recebida a tiros por muitos inimigos que os aguardavam de tocaia.

Por algum motivo que Dmitri não sabia explicar, sentia que algo estava errado e
essa sensação o incomodava. O silêncio dos animais, inclusive dos pássaros
indicava que algo estranho estava próximo a eles.
Com a certeza que valia a pena averiguar melhor, Dmitri pediu autorização ao seu
General para realizar uma manobra arriscada. Eles vestiram alguns soldados
russos que eram prisioneiros com o uniforme moldaviano, e foram mandados seguir
na frente, estando Dmitri logo atrás para garantir que não falariam nada e nem
sairiam da formação.

Ao se aproximarem da armadilha, os russos mataram rapidamente os prisioneiros


ao mesmo tempo que Dmitri caia junto, fingindo ter sido atingido. Com a certeza
que tinham derrubado a maioria da tropa da Moldávia, os inimigos sairam de sua
proteção e foram abatidos pela 8º Companhia que aguardava mais atrás. O ataque
foi tão rápido, que a tropa russa, pega de surpresa, rendeu-se rapidamente.

Com os soldados capturados nessa manobra, os restantes foram presa fácil no dia
seguinte e a 8º Companhia conquistou uma vitória relativamente fácil, não
perdendo qualquer homem nesse dia. E era para condecorar esse brilhante soldado
que o General da 4º Companhia estava lá.

– Descansar! – disse o General quando Dmitri se aproximou e ficou em posição de


sentido.

– Soldado Dmitri Ivanov, palavras são insuficientes para agradecer os fabulosos


serviços prestados a seu país. São de pessoas como você que nosso povo precisa.

– Obrigado Senhor – respondeu Dmitri.

Nesse momento o General fez um aceno para o soldado que estava dois passos
atrás dele, segurando nas duas mãos uma caixa artesanal, com detalhes em ouro.
Assim que se aproximou, o General abriu a pequena caixa e pegou a medalha que
estava lá.

– É com orgulho e satisfação que concedo ao soldado Dmitri Ivanov a sua primeira
medalha por bravura, a Comenda da Estrela Boreal – disse o General, colocando o
adereço no lado direito de seu peito. – E também o promovo a Sargento.

Essa última parte foi surpresa para Dmitri. Ele não se importava com títulos ou
posições, mas ser promovido tão jovem o deixou ligeiramente orgulhoso de si.

– Sargento Dmitri, sentido! – ordenou o General, sendo prontamente obedecido.

– 8º Companhia, apresentar armas! – gritou o General.

Todos os soldados ficaram em posição, erguendo seus fuzis. Sabiam que isso era
um sinal claro de respeito e alegria ao colega homenageado.

De todos eles, Nicolai era o mais feliz. Naquele dia que Dmitri executou sua
estratégia, era seu dia de ser o batedor. Mesmo sem querer, seu melhor amigo
cumprira a promessa que fizera a Natasha e salvara sua vida. E isso era algo que
ele nunca esqueceria.

Há 23 anos, sete meses após a batalha de Valdai...

A 8º Companhia caminhava naquele melancólico dia de inverno, com o céu coberto


de nuvens escuras e um vento frio que teimava em soprar de forma constante.
Mesmo cansados e desanimados, os soldados estavam felizes com a promessa do
General, que teriam uma folga na primeira cidade que encontrassem pela trilha que
seguiam.

Já haviam se passado alguns dias desde que encontraram a última patrulha russa e
o inverno e o frio com certeza espantara um pouco os invasores.

– Ei Sargento, que tal pedir uma folga mais longa para visitarmos a Natasha? –
disse Nicolai de forma jocosa.

– Claro! Como sou o Sargento, tiro a folga e você como reles Soldado continua em
campanha até eu voltar, que tal? – respondeu Dmitri com bom humor. A
possibilidade de descansar uns dias o deixava mais leve.

– Muito engraçado. Mas já faz tanto tempo que vimos a Natasha que realmente
estou com saudades.

– Eu também. Mas ela teve sorte de ir parar no Castelo Peterhof como assistente
do Ministro. Não tem local mais seguro nesses tempos de guerra – comentou
Dmitri.

– É verdade, mas deviamos ir vê-la mais vezes.

– Durante a folga na cidade eu converso com o Capitão. Nem que seja como uma
"missão oficial" para informar algo ao General Alexei, daremos um pulo até o
Castelo e ficamos um pouco com ela.

– Uau, finalmente um pouco de humanidade vindo do coração de iceberg – concluiu


Nicolai.

– Muito engraçado – respondeu Dmitri secamente.

Após mais algumas horas de caminhada, a tropa vislumbrou a tão sonhada cidade
onde poderiam descansar. Tratava-se da pequena Prytysko, que estava localizada
ao norte da Capital e era conhecida por sua agricultura, que fornecia alimentos para
uma boa parte da região.

Ver a cidade animou os soldados que seguiam mais rapidamente, cantando em


direção a tão sonhada folga.
Aproximando-se de seu superior, Dmitri fez posição de sentido e disse:

– Senhor, após nos alojarmos precisaremos conversar sobre a possibilidade da


minha ida ao castelo Peterhof.

– Claro Sargento, depois vemos isso – respondeu o Capitão extremamente


cansado.

– Ótimo! Nicolai vai ficar muito feliz – Pensou Dmitri se afastando com um sorriso.

Alguns minutos depois, a tropa entrava na cidade conforme mandava o protocolo. O


lider do batalhão ia na frente, oito soldados andavam em duas filas logo atrás com
os fuzis no ombro direito e os demais marchavam de forma síncrona.

Normalmente os habitantes das cidades e vilas recebiam e tratavam muito bem os


meninos do exército (como eram chamados). Não faltavam abraços, gritos,
cumprimentos e convites para comer e dormir em alojamentos ou mesmo nas
casas.

Enquanto marchavam pela entrada de acesso, o silêncio e a ausência de qualquer


pessoa começava a incomodar a todos. Não tinha como eles não serem ouvidos ou
vistos e apesar do frio, pelo menos uma pessoa tinha que estar na rua.

– Que estranho Dmitri – comentou Nicolai.

– Muito. Nunca vimos uma vila tão vazia e quieta como essa.

Dimitri estava incomodado desde que entraram na cidade e o fato de não haver
uma alma viva na rua estava começando a fazer seu instinto gritar.

– Soldados, formação de defesa – gritou o Capitão, fazendo toda a tropa empunhar


suas armas e formar um círculo expandido de forma a cobrir todas as direções.

A tensão era quase palpável a medida que todo o terreno era esmiuçado em busca
de algum sinal da presença dos habitantes. Todos os soldados mantinham os olhos
e ouvidos atentos ao mesmo tempo que as armas engatilhadas se preparavam para
qualquer eventualidade.

Como não foi nada encontrado nada na área central, o Capitão começou a espalhar
seus homens para cobrir uma área maior. Dmitri e Nicolai seguiam por uma rua
estreita entre duas filas de pequenas casas quando avistaram um celeiro enorme.

– Deve ser um dos locais onde guardam as provisões que são encaminhadas para
outras vilas – comentou Dmitri, acertando sem cheio sem querer.

– Vamos até lá – respondeu Nicolai.


Andando com cautela, os dois amigos se aproximaram do celeiro e notaram que as
portas estavam apenas encostadas. Com um sinal, Nicolai indicou a Dmitri que iria
abrir a porta direita de uma vez e pediu cobertura. Ao mesmo tempo em que Dmitri
apontava seu fuzil, Nicolai abriu a porta com um movimento rápido.

O que viram ultrapassou todo e qualquer horror que poderiam imaginar. Em todo o
celeiro uma grande quantidade de corpos ensanguentados estavam abandonados
sem sepultura ou dignidade.

Após o choque violento em que os amigos não puderem acreditar no que viram,
suas narinas foram inundadas com o terrível cheiro que se fazia presente naquela
cena. Rapidamente saíram do local e sem conseguir se controlar, vomitaram
diretamente no chão.

– O-o-o-o-quê acontece-ce-ce-u aqui??? – grunhiu Nicolai, gaguejando e tremendo.


Ao mesmo tempo, soltou sua arma no chão.

– Um massacre, um autêntico massacre – respondeu Dmitri olhando para baixo.

– Mas... Por quê? Quem? Como? – repetia Nicolai sem acreditar no que tinha visto.

– Os malditos russos. Para saquear os mantimentos e mostrar que o povo não


pode contar conosco. Malditos. MALDITOS!!!!! – gritou Dmitri, perdendo a calma e a
cautela. Ele imaginava que não havia mais qualquer pessoa viva nos arredores e
isso foi um grave erro.

Sem eles perceberem, alguém que estava atrás do celeiro ouviu o grito e contornou
para chegar por trás deles. E essa aproximação só foi percebida quando já era
tarde demais.

– Desgraçados!!!! Eu sabia que vocês iriam voltar – foi a afirmação que ouviram,
vindo de uma voz débil e cansada.

Ambos se viraram rapidamente e notaram um camponês ainda vivo, certamente um


habitante daquele infeliz local. Mas o item que realmente chamou a atenção foi a
arma que ele apontava para Dmitri.

– Calma amigo, somos da 8º Companhia do exército da Moldávia, não somos os


malditos russos – falou Dmitri estendendo os braços, tentando dizer ao homem que
não tinha o que temer dele. Mas sua frase caiu em ouvidos surdos.

– Eu sabia que voltariam, por isso não saí daqui! Vocês mataram minha mulher,
meus filhos e meus pais! Agora eu vou matar vocês! – disse o homem sem pensar.
Obviamente a sanidade o tinha abandonado há muito tempo, e qualquer tentativa
de argumentação seria inútil.
Dmitri era o uníco que estava com a arma na mão nesse momento, mas por se
tratar de um cidadão da Moldávia, ele hesitou por um segundo, o que bastou para o
sujeito engatilhar seu revólver e atirar.

Tudo aconteceu muito rápido. Nicolai empurrou o amigo com toda a força,
praticamente se jogando em cima dele. A arma disparou e não atingiu Dmitri, que
instintivamente se ajeitou, apontou e acertou a cabeça do homem que tentara mata-
lo.

Ele caiu imediatamente, quase ao mesmo tempo em que Dmitri soltava sua arma.
O barulho chamou a atenção do resto da Companhia que se dirigiu rapidamente
para o local onde estavam.

– Nicolai... eu... eu não queria – balbuciou ele.

– Tudo bem amigo, creio que você fez um favor a ele – foi a resposta com um
gemido.

– Nicolai! – gritou Dmitri ao ver seu amigo caindo sem oferecer qualquer
resistência. – Não, não, não!!!! O que você fez seu louco? – continuava gritando a
medida que se ajoelhava e apoiava a cabeça do amigo.

– O que eu tinha que fazer. Salvei sua vida e com isso estamos quites, não é? –
respondeu Nicolai com um sorriso.

– Não, não... Você levou o tiro no meu lugar! Como pode fazer isso? – continuava
Dmitri, olhando para a poça de sangue que começava a se formar embaixo do
amigo.

– Eu não podia descumprir a promessa que fiz a Natasha, meu amigo – respondeu
Nicolai começando a falar mais baixo.

– Eu também prometi a ela que te levaria para casa são e salvo – respondeu Dmitri
segurando as lágrimas que começavam a se formar.

– Chegamos a um impasse então... já que um dos dois não poderia cumprir sua
promessa hoje. No final... eu fui o sortudo que consegui manter a minha. Sinto
muito amigo... pelo menos... dessa vez... eu fui melhor... que você – arfava Nicolai
com cada vez mais dificuldade para falar.

– Não fale bobagens, a companhia está chegando e vamos te salvar.

– Não faça promessas... que não poderá cumprir... Dmitri – respondeu Nicolai
quase desmaiando. – Ao invés disso... faça uma que vai cumprir com todas as
suas... forças.

– O que você quer Nicolai?


– Prometa que vai manter... Natasha segura... que não vai permitir... que ninguém
faça... nada com ela – pediu Nicolai olhando nos olhos do amigo e apertando seu
braço direito.

– Eu prometo. Defenderei Tasha com minha vida se for necessário – respondeu


Dmitri com convicção.

– Obrigado... meu amigo – disse Nicolai sorrindo ao mesmo tempo que fechava os
olhos e soltava o braço de Dmitri.

– Aguente firme Nicolai. Nicolai... NICOLAI !!!!!! – gritou Dmitri de forma


desesperada. Ele já havia visto muitas mortes e podia perceber claramente que não
havia mais nada a ser feito.

Esse dia marcaria de forma indelével a alma de Dmitri. Seu melhor amigo morreu
para salvá-lo e a única coisa que pedira em troca foi manter a salvo a mulher que
ele amava.

Ele nunca se esqueceria desse ato e muito menos da promessa, ao menos até o
momento em que poderia cumpri-la, na reta final da guerra que ainda devastaria
seu amado país por vários anos.
Capítulo 12 – Inocentes

Há 22 anos... [3º ano da guerra na Moldávia]

Aquele dia de inverno começara tão frio quanto qualquer outro, com um vento
cortante e o céu escuro, com nuvens que impediam qualquer raio de sol chegar até
o solo da castigada Moldávia em seu terceiro ano de guerra contra os russos, ao
mesmo tempo em que o jovem Segundo-Tenente Dmitri Ivanov, com seus vinte
anos de idade, estava cumprindo uma missão muito importante.

Após a morte de seu grande amigo Nicolai, ele tirou uma licença e voltou ao castelo
Peterhof para contar a Natasha o que havia ocorrido e também para garantir que
sempre a protegeria. Apesar de Natasha chorar muito e claramente sofrer por
Nicolai, ela sentia-se muito grata por ele ter dado sua vida para salvar Dmitri. Esse
sentimento não podia ser negado, mas ao mesmo tempo, nunca foi declarado
explicitamente.

Depois de alguns dias com Natasha, ele voltou a 8° Companhia, mas sentia-se
desgostoso na presença dos demais, sempre se sentindo deslocado e com a
sensação de que faltava alguma coisa. Com isso, mudou sua estratégia e passou a
agir de forma mais solitária, sendo um batedor em regiões próximas a fronteira.
Apesar de andar sem uniforme, para conseguir se passar por um civil, seu
armamento estava oculto na roupa e na mochila que carregava nas costas.

Por mais de uma vez, Dmitri encontrou acampamentos russos, atacou soldados
inimigos pelas costas ou mesmo voltou até a 8° Companhia para avisar o Capitão
sobre as condições de um possível ataque.

Mas o último avistamento ocorrera há cerca de quatro dias e Dmitri aproveitava o


silêncio e a ausência de inimigos para refletir. Ele se lembrava de quando conheceu
Natasha e Nicolai, do grande futuro que sua mãe previa para ele e de como todos
os seus objetivos foram trocados por essa guerra que já durava tanto tempo.

Com um turbilhão de pensamentos, Dmitri seguia em direção ao norte, o mais


provável local da existência de uma tropa soviética e após mais algumas horas de
caminhada tranquila, ele avistou uma pequena cabana, aparentemente vazia.

Foi em uma cidade aparentemente vazia que Nicolai perdeu a vida no ano anterior
e Dmitri não cometeria o mesmo erro duas vezes. Segurando sua arma
engatilhada, que estava discretamente escondida em um bolso de seu casaco, ele
aproximou-se do local sem fazer qualquer barulho.

Circulando a casa a partir da lateral direita, ele notou como as paredes estavam
sujas e abandonadas, indicando que possivelmente estava realmente vazia. Ao
chegar na frente de uma janela, olhou cautelosamente para dentro. O que ele viu foi
tão inesperado, que o fez esquecer-se da prudência e rapidamente voltar para a
frente do imóvel, abrindo a porta (que não estava trancada) ruidosamente.

– Ahhhhh! – gritou um menino que estava lá dentro.

– Eles nos acharam!!!! CORRE!!! – gritou o outro, indo em direção oposta a porta
de entrada.

– Calma, calma, eu sou um soldado da Móldavia, não quis assustá-los – disse


Dmitri desengatilhando a arma discretamente e exibindo as mãos vazias.

Os dois meninos encaravam o estranho com os olhos arregalados e tremendo


muito.

– Calma, não vou fazer mal a vocês. – falava Dmitri enquanto se ajoelhava e ficava
mais ou menos da altura deles. Nessa posição ele conseguiu olhar bem as roupas
esfarrapadas e o quanto eles eram magros e sujos. Não deviam ter mais de oito ou
nove anos.

– Q-Q-Q-Quem é você? O q-q-q-quê faz aqui? – balbuciou o mais velho.

– Segundo-Tenente Dmitri Ivanov, da 8º Companhia de Infantaria. Estou em missão


de reconhecimento procurando acampamentos e soldados inimigos – disse ele ao
mesmo tempo em que colocava a mochila no chão, abria e pegava uma lata de
salsichas.

– Estão com fome? Eu tenho mantimentos, posso ceder um pouco para vocês –
concluiu exibindo a lata.

A fome falou muito mais alto do quê o bom senso nesse momento e os dois garotos
se aproximaram rapidamente, sentando-se na frente do seu visitante, que já abria a
lata e a pousava no chão para que eles se servissem.

Palavras não eram necessárias no momento em que os meninos atacaram


avidamente as salsichas, obrigando Dmitri a abrir uma outra lata. Enquanto
engoliam o conteúdo da segunda, ele aproveitou para perguntar:

– Quem são vocês?

– Eu sou Igor e ele é meu amigo Mikhail – respondeu o mais velho, com a boca
cheia.

– Mas vocês são crianças, o que estão fazendo aqui? – inqueriu Dmitri com
incredulidade.

– Ele é mesmo criança porque tem oito anos, mas eu não sou não, tenho dez! –
respondeu o mais velho em um tom ofendido.
– Não importa, onde estão seus pais?

– Não sabemos – respondeu Igor, terminando de comer a última salsicha – Os


russos invadiram nossas casas e levaram nossos pais para algum lugar e desde
então vivemos juntos e sozinhos aqui.

– Malditos – balbuciou Dmitri, imaginando o motivo das crianças terem ficado para
trás. Ele já tinha ouvido que alguns soldados invasores capturavam os adultos para
trabalhar ou simplesmente para não deixar testemunhas sobre os crimes de guerra
perpetrados por eles. E como não tinham coragem de matar as crianças, deixavam-
as para trás, abandonadas a própria sorte.

– Obrigado tio Dmitri – disse Mikhail, com uma satisfação que há muito tempo não
sentia.

– Tio? Essa foi boa – respondeu Dmitri com um sorriso.

– Você vai cuidar da gente? – perguntou Igor com esperança.

Dmitri engoliu seco, por saber ser impossível para ele ficar e dar a devida atenção a
essas crianças. Ao mesmo tempo se simpatizou com ambos, em especial o menor
e não gostaria de simplesmente virar as costas.

– Eu estou em missão garotos, infelizmente não posso ficar aqui. – respondeu ele
com uma genuína tristeza.

– Só alguns dias, por favor. Ajude-nos a montar algumas armadinhas, fazer um


estoque de frutas silvestres e ensine-nos alguma coisa que nos ajude a viver
sozinhos – pediu Igor, quase implorando.

– Por favor tio Dmitri – pediu Mikhail quase chorando.

Apesar de saber em seu íntimo que não poderia ficar ali nem um minuto mais, tanto
por atrasar sua missão como por fazer parte de todo manual militar a regra de "só
permanecer em uma posição estacionária se for necessário defendê-la", Dmitri não
conseguiu recusar uma segunda vez. Ele sentia que se não ajudasse aqueles dois
meninos, o fim deles seria tão certo quanto rápido.

– Tudo bem, posso ajudá-los por uns dias – foi a resposta que ambos ouviram, um
pouco antes de gritarem de alegria. Dmitri também ficou feliz, pois se pudesse
ajudar esses meninos a sobreviver, talvez sua vida fizesse algum sentido nesses
tempos conturbados de guerra.
Alguns dias depois...

O inverno continuava rigoroso, apesar de que o frio não era o maior inimigo dos
meninos que estavam sob a guarda de Dmitri, pois roupas e cobertores eles
possuíam em abundância. O maior perigo para eles era simplesmente o fantasma
da fome.

Desde que Dmitri havia chegado, ele os ensinou a montar arapucas para pequenos
mamíferos, os ajudou a encontrar frutas silvestres e até os ensinou a reconhecer
alguns cogumelos como comestíveis. A dieta de ambos havia melhorado muito nos
últimos dias.

Dmitri sentia-se feliz por ajudar, mas ele sabia que a cada dia que permanecia ali,
alguma aldeia ou alguma vida era perdida para o exército inimigo. Ele pretendia
confirmar que os garotos já estavam se virando um pouco e partir no mais tardar no
dia seguinte. Obviamente, eles ficariam tristes, mas nada mais podia ser feito.

Após um singelo almoço (um coelho capturado no dia anterior), eles se sentaram
no sofá da sala de estar e descansaram tranquilamente.

– Muito bom o almoço – comentou Igor com um sorriso.

– Fazia tempo que não comíamos bem assim – completou Mikhail, completamente
satisfeito.

– Que bom garotos. Vocês não imaginam o quanto fico feliz de ajudar. Mas... –
respondeu Dmitri, parando de forma abrupta.

– Mas você tem que ir embora, não é? – questionou Igor de forma melancólica.

O silêncio de Dmitri respondeu a pergunta. Por alguns momentos o único som que
quebrava o constrangedor silêncio era o da lenha queimando lentamente na lareira.

– Sim, infelizmente eu tenho que ir – respondeu finalmente.

– Mas tio, você é tão legal e nos trata tão bem – disse Mikhail, com uma clara
tristeza em sua voz.

– Eu sei meninos, mas acima de tudo eu sou um soldado e tenho como missão
defender nossa pátria. E esse objetivo é mais importante que a vida de todos nós.

– Mas por que tem que ser assim? – perguntou Igor.

– Eu não sei Igor. Infelizmente não faço idéia, mas é assim que é – respondeu
Dmitri com toda a sinceridade. Ele já se questionara dezenas de vezes do motivo
dessa guerra terrível a qual eles estavam expostos. – Mas eu gostaria de dizer uma
coisa para vocês antes de ir.
Os meninos se arrumaram no sofá e passaram a prestar muita atenção nas
palavras de seu amigo.

– Eu quero que vocês me prometam uma coisa. Que nunca vão esquecer que
estamos em guerra, e por isso, não podem confiar em qualquer um e nem hesitar
um segundo se virem um soldado inimigo. Por mais que ele possa falar palavras
doces e parecer uma boa pessoa, ele só tem como objetivo matar todos nós.

– Nós sabemos – respondeu Igor.

– Isso não é suficiente rapaz. Me prometam que caso se encontrem com um


soldado inimigo e precisarem lutar vão atacar sem hesitação, mas apenas se não
puderem fugir. Se for possível, vão correr com todas as suas forças para o mais
longe que conseguirem – insistiu Dmitri, dando um tom grave a sua fala.

– Eu prometo! – respondeu Mikhail.

– Eu também! – disse Igor.

Com um grande sorriso, Dmitri se esticou e alisou a cabeça de Igor e em seguida a


de Mikhail.

– Bons garotos – foi seu pensamento antes de relaxar, tentando esquecer que
esses bons momentos acabariam no dia seguinte.

No dia seguinte...

A alvorada havia ocorrido há pouco mais de uma hora e tímidos raios de sol
apareciam entre as nuvens daquele dia que estava um pouco menos frio que o
habitual. Dmitri arrumava suas coisas e com uma pequena ponta de tristeza
preparava-se para seguir sua missão, deixando os dois meninos sozinhos naquela
pequena casa.

Os últimos dias haviam sido tranquilos, o que fazia Dmitri se lembrar de seus pais e
da fazenda onde fora criado. Ele não retornava para casa há mais tempo do que
gostaria de admitir ou lembrar e pretendia remediar isso o mais breve possível.

– Já vai, tio Dmitri? – foi a frase que quebrou o silêncio e a concentração de Dmitri.

– Sim, Mikhail. Infelizmente eu preciso ir – respondeu ele, se virando.

– Eu sei, mas vou sentir sua falta – disse a criança, com a voz embargada.

Dmitri se ajoelhou de forma a fitar o menino nos olhos e disse que toda a
sinceridade:
– Eu também garoto. Vem cá, me dá um abraço – pediu ele, estendendo os braços.

Mikhail quase pulou nos braços de Dmitri, e deu o abraço mais apertado que
conseguiu. Apesar de não admitir, era o adulto que estava mais emocionado com o
carinho do menino. Após mais alguns segundos, eles se separaram quando
ouviram a voz de Igor:

– Eu também vou sentir sua falta, mas não espere um abraço, pois eu já sou quase
adulto e isso é coisa de criança.

– Claro que não, Igor. Sei o quanto você é responsável e tenho certeza que vai
cuidar muito bem do Mikhail daqui em diante – respondeu Dmitri se levantando.

– Pode contar comigo! – respondeu o menino com um sorriso e levantando o


polegar.

Com mais um sorriso, Dmitri alisou a cabeça dos dois e ajeitando a mochila se
encaminhou em direção a porta, abrindo-a rapidamente. Sem resistir, ele virou a
cabeça em direção as crianças e disse com uma sinceridade emocionada:

– Boa sorte meninos, espero revê-los em breve.

– Boa sorte tio Dmitri – foi a resposta de Mikhail, acenando.

– Até logo – concluiu Igor, se esforçando para não chorar, mantendo assim a pose
de adulto.

Sem esperar mais, Dmitri voltou-se novamente, saindo e fechando a porta em


seguida. Sem conseguir concluir se estava fazendo o correto, o senso de dever
estava falando mais alto.

Após alguns minutos de caminhada e sem conseguir olhar para trás novamente, um
pensamento o assombrava:

– Os que mais sofrem nessa maldita guerra são os inocentes. Mas o que mais eu
posso fazer?

– Inocentes... – pensou novamente, fechando as mãos com força e dando um longo


suspiro.

Há 21 anos... [4º ano da guerra na Moldávia]

O verão na Moldávia costumava alternar dias de calor intenso e outros nem tão
quentes. Já fazia alguns anos que a invasão soviética tornara as pessoas apáticas
e um tanto quanto tensas para aproveitar os belos dias dessa estação tão
aguardada.

O fato da guerra demorar tanto tempo era simples. Não interessava aos soviéticos
bombardear o país e destruí-lo (o que eles poderiam fazer facilmente), mas sim,
minar a vontade do povo e torná-los dóceis de serem conquistados. Com isso,
quando o governo fosse derrubado, não haveria revoluções, guerrilha e nem
rebeldes. Inclusive alguns segmentos da sociedade pressionavam o General Alexei
para entrar em acordo com Moscou, coisa que ele repudiava completamente.

Longe do front, o Primeiro-Tenente Dmitri Ivanov conseguia aproveitar um pouco os


raios de sol. Já haviam se passado alguns meses desde que ele deixara para trás a
cabana com aqueles dois garotos e contra sua vontade, não conseguira passar por
lá para ver se estavam bem.

Ele pretendia voltar lá com certeza, mas no momento, só queria apenas esquecer
de tudo e cumprir a promessa que fez a si mesmo, indo ver seus pais. Após sua
última promoção, ele requisitara uma licença para o Capitão, pedido que fora
prontamente atendido. E agora, após dois dias de viagem a cavalo, a bela fazenda
Nadeyus estava muito próxima.

Nestes poucos momentos de paz Dmitri não parava de pensar de como sua vida
havia mudado nos últimos anos. De um estudante promissor, para um soldado de
seu país natal. Claro que ele nunca imaginou todos os horrores que iria presenciar
nestes últimos anos.

A perda de seu amigo Nicolai ainda doía e a promessa feita a Natasha, que não
pode ser cumprida, o atormentava dia e noite. Mesmo contra sua vontade, ele
tentava esquecer tudo, e simplesmente pensava em rever o sorriso de sua mãe. Ele
nunca imaginou que sentiria tanta falta das refeições, dos pastos, do carinho e até
das chatices do seu pai.

Mas agora faltava pouco, em alguns minutos seu lar estaria ao seu alcance.

Após cavalgar mais um pouco, Dmitri chegou a entrada que daria acesso a sua
fazenda. Neste momento ele já deveria estar ouvindo algum dos criados.

Ao invés disso, o silêncio era tão grande que chegava a incomodar. Nem um
pássaro, nem um cavalo, nenhum criado e nem nada. Este silêncio era anormal o
que deixou Dimitri um pouco apreensivo.

Infelizmente, nada em todos estes anos poderia prepará-lo para o que viria a
seguir.

Terminando a última subida, Dmitri chegou em um local de onde poderia visualizar


toda a sua propriedade. E este exato instante, o marcaria pelo resto de sua vida.
Em um segundo, que pareceu uma eternidade, ele conseguiu visualizar seu antigo
e querido lar e até onde a vista alcançava, o cenário era de destruição.

– PAI, MÃE! – gritou ele – Não, não, não, não, não, não, não – repetia ele
desesperadamente.

Chicoteando o cavalo, ele avançou por dentro de sua propriedade. Mesmo a


distância foi possível notar que sua querida casa havia sido queimada, e que todo o
pasto ao redor também estava destruído.

– Não, não, não, não, não, não, não – continuava repetindo em pensamento, com
uma fagulha de esperança de que seus amados progenitores haviam fugido ou sido
capturados.

As tropas soviéticas avançaram sobre algumas fazendas. Caso os moradores os


recebessem bem e fornecessem mantimentos, eram poupados. Essa era a
propaganda do regime soviético.

Em seu íntimo Dmitri sabia que seu pai nunca ajudaria o inimigo, mas também
imaginava que tentaria salvar sua querida mãe.

– Não, não, não, não, não, não, não – continuava martelando em sua cabeça a
medida que avançava se desviando de animais mortos e arvores derrubadas há
muito tempo. Seu objetivo era a casa onde ele passara toda sua infância e
adolescência, e que agora estava reduzida a cinzas.

Após mais alguns instantes, onde cada segundo parecia uma eternidade, seu
querido lar finalmente fora alcançado.

– PAI, MÃE! – gritou ele, mesmo sabendo que era inútil. Não podia haver ninguém
dentro daquela devastação.

– MAMÃE, CADÊ VOCÊ? ONDE VOCÊ SE ESCONDEU? – continuava gritando,


correndo em cada cômodo daquele local outrora feliz. Móveis, enfeites, plantas,
livros e todo o resto. Não havia sobrado nada.

Após percorrer a casa inteira diversas vezes e não encontrar nada, a fagulha da
esperança ainda ardia. Seus pais não estavam lá, provavelmente haviam
escapado.

Ainda desnorteado, Dmitri foi aos fundos da casa saindo por onde seria a cozinha.
Logo após dar dois passos lá fora, a esperança lhe foi arrancada violentamente.

Duas estacas de madeira indicavam o local de dois túmulos, um ao lado do outro,


debaixo de uma das últimas árvores que resistiram de pé.
– NÃO, NÃO PODE SER, NÃO É POSSÍVEL! – gritava ele enquanto caminhava
tropeçando em seus próprios passos.

Não tinha como ele saber, mas um dos fazendeiros vizinhos que sobreviveu ao
ataque, encontrou o corpo dos dois e tentou lhes dar um enterro digno.

– PAPÁ, MAMÃ... – gritou ele novamente, ao mesmo tempo em que seus olhos se
enchiam de lágrimas. – POR QUE, POR QUE, POR QUÊ? – continuou ele, se
prostrando de joelhos, bem em frente aos túmulos.

Quando questionado no futuro, Dmitri nunca soube mensurar quanto tempo ficou lá.
Minutos, horas, o tempo parou de correr e nada mais importava a ele. Em seu
intimo, apenas uma pergunta se mantinha acesa:

"Por quê?"

Por que ele ainda estava vivo? Por que tantos inocentes morreram e ele ainda
estava lá? Qual era o sentido de tudo isso?

Repentinamente, a resposta o atingiu como um murro. Ele ainda estava vivo para
terminar com tudo isso e somente ele poderia dar um basta nesta situação.

– Mamã, Papá, Nicolai, Igor, Mikhail... E tantos outros... Milhares de inocentes... Eu


estou vivo por causa de vocês.

Enquanto falava, ele sacava sua faca de sobrevivência da cintura. Segurando o


cabo em sua mão direita, de forma decidida e sem hesitação, ele fechou sua mão
esquerda na lâmina.

– Mamã, Papá, Nicolai... – repetiu ao mesmo tempo em que cortava sua mão e a
estendia por cima dos túmulos.

– Eu juro a vocês, da mesma forma que seu sangue fora derramado, eu derramo o
meu.

As gotas de seu sangue, vermelho, vivo e quente, começaram a pingar na terra


seca. Dmitri deixou cair uma quantidade abundante pois ele não sentia nada
fisicamente, nenhuma dor, apenas uma resolução avassaladora.

– Eu juro a vocês, esta guerra vai acabar! Não importa a qual custo, não importa o
que eu tenha que fazer, isto vai acabar. Mais nenhum sangue inocente será
derramado em nossa terra. – prometeu ele sem mais nenhuma lágrima nos olhos.

Não havia ninguém para ver os olhos de Dmitri neste instante, mas se qualquer
pessoa que o conhecesse pudesse vê-los agora, não os reconheceriam.
Não existia mais qualquer emoção ou dor, raiva ou ódio, não havia nada, pois a
partir deste momento, seu único objetivo na vida seria cumprir essa promessa, não
importava o preço.

A guerra acabaria, mesmo que o preço fosse sua alma.


Capítulo 13 – Mancha Negra

Há 20 anos... [5º ano da guerra na Moldávia]

Primavera.

Na região do Leste Europeu, esta época do ano constuma ser notada facilmente,
com dezenas de flores e seus aromas doces ou cítricos, de jasmin ou alfazema.

As grandes árvores centenárias se cobrem de folhas novas e preparam-se para


fornecer uma refrescante sombra no verão que se aproxima.

Infelizmente para a grande maioria dos habitantes da Moldávia, estas belezas


naturais estavam distantes de seus pensamentos.

A guerra em sua pátria continuava e não havia qualquer indicação de um fim


próximo. O fato é que os russos não consideravam seu pequeno país como
prioridade, e por isso mantinham tropas reduzidas que mais incomodavam o
governo local do que realmente o ameaçava.

Não era do interesse de Moscou simplesmente anexar e manter um governador


fantoche, mas sim ter a rendição incondicional e um acordo privado de submissão,
oque evitaria uma guerrilha urbana ou movimentos de independência.

E era neste cenário de incertezas, após perder seu lar, amigos e entes queridos,
que o Capitão Dmitri Ivanov vivia.

Tendo sobrevivido a dezenas de batalhas e sendo condecorado em diversas


ocasiões, sua carreira militar estava em rápida ascensão.

E foi em um dia, na estação das flores, que Dmitri adentrou os portões do Castelo
Peterhof, lar da Monarquia do trono do Amieiro, na capital Kishinev.

Os representantes do governo, incluindo o General Alexei, viviam e tomavam todas


as decisões militares e políticas dentro dos muros deste castelo.

Além da posição privilegiada, no alto de uma colina bem fortificada, havia a certeza
de que os russos não destruiriam este respeitado símbolo história moldaviana. A
população não suportaria tamanho desaforo com suas tradições.

E com esta certeza e segurança, muitas famílias influentes enviavam seus filhos
para se protegerem em seus salões. O General Alexei poderia não gostar, mas ele
não iria negar isso a seus principais apoiadores.

Estando ciente de todos estes detalhes, Dmitri entrava no castelo novamente. As


últimas vezes haviam sido visitas rápidas a sua amiga Tasha, mas desta vez não.
Valendo-se de sua influência recém adquirida como Capitão e negociando diversos
favores, ele havia conseguido uma licença para ficar trinta dias no Castelo.

Neste tempo, ele tinha dois compromissos inadiáveis e em seu íntimo sabia que
não haveria outra chance.

O primeiro ele resolveria em breve, pois devia há muito tempo uma conversa com
Tasha, a mulher que indiretamente era o motivo dele estar ali. Se seu amigo
Nicolai não a amasse, quem garantiria que ele teria entregado sua vida tão
rapidamente por causa de uma promessa?

O segundo compromisso seria feito no decorrer dos dias, quando ele conseguisse
uma certa liberdade de movimento, algo as vezes complicado para um conhecido
"herói de guerra".

Dmitri odiava ser chamado assim, pois qual era o heroísmo em matar e não se
deixar morrer? Ele odiava com todas suas forças aquela situação e lamentava cada
vida que era obrigado a tirar.

Mas por hora isso devia ser desconsiderado, já que agora, era a vez de Natasha e
Dmitri não podia adiar por mais tempo.

Natasha Bykov lhe enviara um telegrama que chegou as suas mãos no front de
batalha. Basicamente pedia para que no dia de sua chegada, a encontrasse no
salão Pêssanka. Uma resposta positiva dele pelo mesmo meio incluiu o dia e hora
em que estaria lá.

E hoje, Dmitri caminhava a passos largos para encontrar sua mais antiga amiga,
que certamente o aguardava ansiosamente.

– Capitão Dmitri, fico feliz em lhe ver! – falou alto um desconhecido a sua frente,
quebrando sua concentração e raciocínio.

– Obrigado. – foi a resposta sem qualquer empolgação.

Após mais alguns passos, uma nova abordagem bem entusiasmada:

– Dmitri, que bom que veio nos visitar! – disse uma moça jovem e desconhecida.

Um simples aceno foi a resposta.

– Realmente é difícil andar por aqui tranquilamente. Quem sabe de madrugada? –


pensou rapidamente.

– Não, agora é a vez da Tasha, esqueça todo o resto – foi o pensamento seguinte,
que devolveu seu foco.
Felizmente o salão Pêssanka estava próximo e com apenas mais duas
incovenientes abordagens, ele havia chegado lá.

Não era necessário se anunciar, mas por questões de educação e bom senso, uma
entrada sutil se fazia imprescindível:

– Com licença – falou ao passar por baixo do antigo umbral.

Não houve uma resposta, mas ele conseguiu ver sua amiga no canto esquerdo do
salão, admirando uma pintura.

Após alguns segundos sem qualquer reação, Dmitri terminou de entrar e caminhou
lentamente até a dona de longos cabelos negros, que o aguardava totalmente
imóvel.

A sala Pêssanka guardava uma série de obras de arte da Moldávia e antes da


guerra era um dos ambientes mais visitados do castelo.

Com mais uma dezena de passos, Dmitri se colocou ao lado de Natasha,


permitindo-se olhar para o quadro que era objeto de sua atenção.

A obra de arte possuía um fundo escuro, com a imagem de uma pessoa sentada no
chão, vestindo trapos e rodeada de animais mortos e comida estragada.

– "Sem Sentido", 1854, Ephanius Dumenko, muito conveniente – disse ele,


puxando assunto.

– Sim, representa o sofrimento sem fim que todos nós passamos na vida –
respondeu ela de forma melancólica.

– Tasha... eu...

– Também é muito bom te ver Dmitri. Mas venha, vamos nos sentar, pois acredito
que nossa conversa será longa – respondeu Natasha, virando-se rapidamente e
andando em direção a um banco almofadado a sua esquerda.

Sem falar mais nada, Dmitri a seguiu e sentou-se logo após sua amiga. Agora
ambos estavam confortáveis, mas não necessariamente a vontade.

– Então, como estão as coisas aqui no Castelo? Já é a sua casa há um bom tempo.

– Como sempre, está tudo bem. E certamente é mais tranquilo que o campo de
batalha onde você vive.

– Sim, é óbvio. Mas pergunto sobre você, oque está sentindo.


Neste momento, Natasha cruzou as pernas em posição claramente defensiva.

– Oque estou... sentindo? Não acredito que realmente você se preocupa com isso,
já que nem lembro quando o vi pela última vez.

– Como assim, Tasha? – foi a resposta com surpresa. – Claro que me importo,
você é e sempre será minha melhor amiga.

– Amiga... sim, é claro – foi o comentário juntamente a um suspiro.

– Sabe oque eu acho incrível em você? – perguntou Natasha com a voz


embargada.

– Sua frieza é tamanha... que... eu nem sei oque pensar.

– Não é verdade... eu sempre me importei com...

– Então por quê?

– Por que você não chorou quando me contou da morte de Nicolai? Nem me deu
qualquer detalhe além de que ele foi baleado salvando sua vida? Por que não
chorou quando me contou que sua casa e família foram destruídos? Por que
Dmitri? Por quê? – disse ela com as lágrimas molhando seu belo rosto.

Dmitri ficou em silêncio. Ele realmente não chorou na frente dela, mas lembra
perfeitamente de ter chorado ajoelhado no túmulo dos pais e mais ainda enquanto
Nicolai agonizava em seus braços.

– Talvez... tentei ser forte para consolar você – balbuciou como resposta.

– Mas e você? Onde está o homem inteligente e cheio de paixão que um dia faria
tremer os pilares da ciência? A pessoa mais viva que eu já conheci? Onde está
ele?

– Talvez... esteja morto...

– Não diga isso! – falou ela levantando a voz. – Nicolai morreu, seus pais
morreram, meus pais morreram. Mas estamos vivos e precisamos continuar essa
vida!

– Vida Tasha? Isso é vida para você? – retrucou com incredulidade.

– Milhares de mortos, órfãos abandonados, nossa terra queimando. Não, isso não é
vida para o nosso povo!

– Eu sei, mas a guerra acabará um dia e teremos que continuar vivendo, teremos
que curar as feridas e ajudar as pessoas.
– Se você diz... mas eu... eu... esquece, deixa pra lá...

– Diga Dmitri... por favor fale comigo...

– Não Tasha... pelo contrário...

– Como assim?

– Eu vim falar com você... pela última vez...

Natasha não acreditou no que ouviu.

– Mas, mas... oque está dizendo, seu... seu...

– Exatamente isso.

– Você acha que vai morrer? Não seja idiota... pare de ser dramático...

Ele não respondeu.

– Mesmo porque, se você acha que vai morrer... basta me pedir... uma única vez...

– Pedir?

– Sim. Me peça... e vou embora com você... deste castelo... deste país... vou para
qualquer lugar com você a qualquer momento... por favor – implorou ela.

– Tasha... eu nunca poderia te pedir isso...

– POIS PEÇA! – gritou ela – Me mostre que você realmente se importa comigo, se
importa conosco. Basta pedir e eu... eu...

– Tasha... – sussurrou ao mesmo tempo em que a abraçou abruptamente.

Natasha não aguentou aquele ato de ternura e desabou a chorar. Neste singelo
instante, vários anos de incertezas e tensões haviam acabado de cobrar seu preço.

Após minutos que pareceram uma eternidade de soluços e lágrimas, ela começou a
se acalmar. Um instante após notar que ela se acalmara, Dmitri afastou-se e
decidiu que era hora de encerrar este capítulo em suas vidas.

– Dmitri... eu... eu... te...

Ele não a deixou terminar, posicionando delicadamente a ponta de seu dedo


indicador direito nos lábios dela, que ainda estavam molhados pelas lágrimas, e
fazendo-a se calar imediatamente com a surpresa.
– Agora você vai prestar atenção e me ouvir, sem perguntar nada. Fique quieta e
escute, por favor – falou com um tom de voz gélido e assustador, ao mesmo tempo
em que tirava o dedo e se levantava.

Natasha nunca o ouviu falando assim, nem parecia a pessoa que ela conhecia há
tanto tempo. O choque de estar em uma presença desconhecida a fez travar.

– Somos amigos, mas apenas isso – começou ele com a mesma voz gélida.

– Não te pediria para ir a lugar algum comigo, pois tenho uma missão com a minha
pátria e nada mais importa.

– Nicolai foi um tolo ao se deixar morrer e por isso ele não valia nem a farda que
vestia. É a vergonha do nosso exército.

Natasha não conseguiu acreditar no que ouviu. Aquele homem na frente dela não
era Dmitri Ivanov, seu melhor amigo.

– Eu estou aqui para descansar das batalhas e não quero ser importunado por
fantasias de amor adolescente. Você se humilhar dessa forma é ridículo, está me
decepcionando e envergonhando seu sobrenome.

Natasha sentiu o ar sendo roubado de seus pulmões enquanto ela não conseguia
engolir.

– Então, vamos deixar algo totalmente claro. Eu me importo com você como me
importaria com qualquer amiga ou até mesmo com uma mascote.

– Mas eu já estou cansado de sua fraqueza, seu choro e sua cara de coitada.
Portanto me deixe em paz enquanto eu estiver aqui pois lhe garanto que quando eu
voltar para o front, você não tornará a me ver.

Natasha tremia. Aquilo era um pesadelo do qual ela queria acordar a qualquer
custo.

– Fui claro Natasha? Eu não vou repetir e nem quero olhar na sua cara novamente.
Entendeu?

Não houve resposta. A mulher que ele conhecia desde sempre não piscava, não
conseguia articular uma palavra e mal respirava.

– Ótimo, creio que entendeu. Adeus Natasha, seja feliz e me esqueça. – disse ele
enquanto se virava e andava rapidamente para fora do salão.

Ouvir seu nome da forma como ele nunca falava, e naquele tom frio e distante, foi
demais para ela. Uma forte tontura veio repentinamente, o que a obrigou a se
apoiar no banco, por pouco não desmaiando.

As próximas horas seriam de negação para Natasha Bykov, enquanto ela tentaria
entender oque tinha acontecido. Em seguida sobraria um ódio imenso e uma
tristeza que a derrubaria por semanas.

Natasha tinha acabado de perder seu último amigo, a única coisa que a mantinha
feliz por estar viva.

Já Dmitri estava mudando o foco totalmente para o segundo compromisso


inadiável, pensando em dezenas de detalhes.

Mas mesmo assim, ele não conseguiu evitar um último pensamento em conjunto de
um longo suspiro melancólico:

– Me desculpe Tasha, por favor seja feliz.

Há 19 anos... [6º ano da guerra na Moldávia]

Inverno.

Um frio intenso associado ao vento forte com dias nublados e tristes. Normalmente
esta gélida estação não causava boa impressão e nem animava as pessoas, que
preferiam se manter dentro de seu lar aquecido e protegido.

Inevitavelmente, a extensa guerra contra os soviéticos só serviu para piorar tudo,


transformando até o maior dos otimistas em um cético em relação ao futuro de seu
povo.

Basicamente, a população estava cansada, triste, com fome, frio e sem


perspectivas de um amanhã melhor.

Não que isso influenciasse as decisões do alto comando em exercício. Tanto o


General Alexei como seus principais conselheiros não tinham qualquer intenção de
desistir.

E foi neste cenário que o Major Dmitri Ivanov adentrou novamente, pelo portão
principal, o castelo Peterhof.

Há cerca de quatro meses, em sua última grande batalha, o antigo Major, Mikhail
Stanislav, foi morto pelos inimigos, o que causou a promoção do mais jovem
Capitão daquela companhia.

Após uma campanha vitoriosa pelos meses subsequentes, era hora do mais novo
Major aproveitar uma pequena licença no castelo, sempre seguro e agradável.
Cada vez mais famoso, Dmitri tentava ser discreto. Ele passou pelo portão vestindo
um sobretudo preto, luvas e calça preta e um chapéu escuro que cobria boa parte
de sua face.

Enquanto caminhava praticamente sem ser reconhecido, Dmitri não conseguiu


evitar pensar em Natasha.

Há uma semana, utilizando sua influência, ele havia pedido um grande favor para o
oficial que servia na cidade de Conrat, na região da Gagauzia.

Inventando uma necessidade diplomática, o Capitão Anatoli Zhenya convocou


Natasha Bykov para uma viagem até Orhei, garantindo assim que ela não estaria
no castelo que chamava de lar no dia de hoje.

Misteriosamente, no dia seguinte após ter enviado esta convocação, Anatoli


desapareceu. Futuramente, ninguém poderia perguntar a ele o motivo que o fez
tirar Natasha de lá, e nem o porquê da tal missão diplomática ser falsa.

Tendo a certeza de que Natasha não estava presente, Dmitri continuava


caminhando tranquilamente pelos corredores vazios do castelo.

Parando repentinamente, o Major retirou um pequeno relógio do bolso de seu


casaco e olhou as horas sem qualquer sinal de pressa.

– 14:41 hs... acho que já está na hora – foi seu pensamento, ao mesmo tempo em
que voltava a caminhar e guardava o pequeno relógio.

De forma determinada, Dmitri caminhou em direção ao gabinete do General Alexei,


que o estava aguardando para uma pequena reunião.

As 14:44 hs, ele chegara em frente a porta do gabinete. Educadamente, deu três
pequenas batidas e aguardou.

– Entre, entre – ouviu ele.

Delicadamente o Major empurrou a porta e acessou o local onde os maiorais do


governo tomavam suas decisões. Não havia qualquer hesitação em seus
movimentos ou atitudes, oque fez Alexei falar alegremente:

– Major Dmitri, que prazer finalmente conhece-lo! E você é pontual como um


britânico.

Alexei estava sentado em uma grande cadeira marrom escura, atrás de uma mesa
comprida e cheia de mapas, papéis e canetas. Uma xícara de chá pela metade
indicava que os pequenos luxos não haviam sido esquecidos pelo mandatário.

– Obrigado senhor – respondeu Dmitri educadamente.


– Então, o mais jovem Capitão de nosso exército foi promovido para o mais jovem
Major. E suas campanhas contra os malditos soviéticos sempre são vitoriosas.

– Bondade sua senhor – foi a resposta.

– Então, considerando que esta reunião foi a seu pedido, diga-me, filho de Vladimir,
oque posso fazer por você?

Dmitri respirou fundo e respondeu sem qualquer emoção:

– O senhor pode ir para o inferno.

Alexei se calou por um instante. Entre a incredulidade e a dúvida sobre oque tinha
ouvido, conseguiu responder quase gaguejando:

– E-e-eu creio que não entendi, Major Dmitri.

– Entendeu sim. O maior favor que o senhor pode me fazer é ir para o inferno –
retrucou ele, sem qualquer emoção.

– Ma-ma-mas... como ousa?! Com quem você acha que está falando? – foi a
pergunta, com raiva, ao mesmo tempo em que se levantava.

– Com o desgraçado culpado pela miséria que vive minha amada pátria –
respondeu Dmitri, enquanto se aproximava da mesa, sacava uma arma e apontava
direto para o peito do General.

Alexei sentiu seu sangue gelar. Aquele oficial famoso, um herói de guerra, estava
ameaçando sua vida, utilizando um tom de voz gélido e assustador.

– Major Dmitri, espere, creio que esta havendo um terrível mal entendido aqui. Eu
não sou culpado pela guerra, pelo contrário, eu vivo para defender nosso amado
país – disse o General enquanto tentava ganhar tempo. Ao mesmo tempo, ele abria
discretamente uma gaveta que estava a sua direita.

– É claro. E o senhor está tentando pegar sua arma na gaveta. Para não haver
mais interrupções eu espero o senhor procurar, mas já aviso que é inútil.

Alexei sentiu-se gelar mais ainda. Seu instinto dizia que aquele homem de voz fria
não estava blefando, mas mesmo assim, ele abriu rapidamente a gaveta e
confirmou que estava vazia.

– Mas, mas... como...

– Digamos que tem mais gente neste castelo que não aguenta mais esta guerra
genocida. O senhor não imagina como foi fácil convencer várias pessoas a me
ajudar.

– Traidores sujos... você e seus cúmplices querem me matar... mas não irão...

– Que palavreado forte. Mas está errado, ninguém aqui vai te matar. Agora saia de
trás dessa mesa e fique parado de pé junto a parede que está a sua esquerda. –
disse o Major, apontando a arma para a cabeça de Alexei.

A voz fria e calma de seu oficial era a parte mais perturbadora de tudo isso. Sem
conseguir argumentar o General obedeceu, confiando nas palavras de que não
seria morto.

– O que você quer, uma promoção? Está me mostrando que não estou tão seguro
quanto acredito? Diga-me o seu preço.

– Preço?! Meu preço não pode ser pago por ninguém, a não ser que o senhor traga
meus amigos, minha família e todo o nosso povo de volta da morte.

– O que você quer Major? – perguntou o General, começando a acreditar que


estava diante de um louco.

– O fim da guerra – foi a lacônica resposta.

– Mas é claro, isso é oque todos queremos, por isso iremos resistir até...

– Não General, nosso povo não pode esperar mais. A guerra terminará hoje.

– Você está louco! Acha que me matando e assumindo o governo, você e seu
grupinho traidor vai...

– Já disse que ninguém vai te matar – retrucou, pegando novamente o relógio do


bolso e olhando rapidamente.

– 14:53 hs. Que ironia, após quase sete anos, a guerra vai acabar em sete minutos
– falou Dmitri consigo mesmo.

– Você está louco mesmo, como acha que vai derrotar os soviéticos? – perguntou
Alexei nervosamente, sempre sob a mira inclemente da arma do Major.

– Derrotar? – foi a única resposta, seguida de uma gargalhada alta e terrificante.

A cada instante que passava, Alexei ficava cada vez mais assustado.

– O senhor sabe que não é possível derrotá-los, mas mesmo assim segue nesta
luta insana.

– Mas não mais, ninguém mais vai morrer por causa de sua teimosia, creio que
logo o senhor vai entender.

– Como assim? O que você está dizendo? Isso não faz sentido Major. – reclamou o
General, suando de nervoso, apesar do frio intenso.

– Ah, faz sim. Quer ver como faz todo o sentido?

– Em alguns minutos, precisamente as 15:00 hs, um contingente soviético armado


até os dentes vai invadir Peterhof e assumir o controle do castelo.

O General empalideceu.

– Havia uma lenda muito antiga, de que o castelo Peterhof possuía uma rota de
fuga secreta, e em minha última visita, no ano passado, descobri este acesso nas
cavernas Denissova, que traz direto para as catacumbas no subsolo. Então bastou
indicar o caminho para um General soviético que contatei e que vai adorar ficar com
o crédito.

– Mas... mas... será um massacre... seu louco! – balbuciou o General sentindo o


desespero aflorando violentamente.

– Ah não, não haverá qualquer morte já disse. A maioria dos guardas estarão
vestidos de negro, o que indica que não irão resistir. E os poucos que não estão,
tiveram suas armas sabotadas, de forma que serão facilmente dominados.

Alexei não conseguiu articular uma palavra.

– E o melhor é que logo após o castelo ser dominado, o príncipe Andres que voltou
de seu exílio será reconduzido ao poder. Isso vai legitimar a presença soviética e o
povo vai aceitar sem qualquer problema, já que o retorno do príncipe trouxe a paz
também.

– O que? Aquele idiota será um fantoche... não...

– É claro que será, mas teremos trégua e paz, sem mortes ou uma guerra
destruindo nosso povo. Não será lindo? – perguntou Dmitri dando outra gargalhada.

– Louco... você está entregando nosso país... seu traidor... – bufou com ódio o
General.

Um estampido reverberou pelos corredores silenciosos naquele instante.

– Ahhh!!!! MALDITO! DESGRAÇADO! – gritou o General caído no chão, com as


mãos em seu joelho direito.

– Pode gritar, meus homens garantiram que ninguém estaria por aqui após minha
chegada. Mas ouça... está acontecendo...
Gritos e mais gritos estavam vindo de todas as direções. Ordens de rendição,
pedidos de clemência e choro eram bem notados.

Mas nenhum tiro.

– Não disse? As pessoas estão assustadas, mas ninguém vai morrer.

– MALDITO!!!! Isso não vai ficar assim!!! Todo nosso povo vai odia-lo como um
traidor. Eu vou garantir...

Um novo estampido.

– Ahhhh!!!! – o General voltou a gritar, desta vez segurando o joelho esquerdo.

– Eu prometi entrega-lo vivo, mas creio que um tiro em cada joelho, de forma a
aleija-lo, está dentro do acordo.

– O senhor será julgado por crimes de lesa-pátria e lesa-majestade. Com certeza


será executado, apesar de que será uma punição leve considerando tudo que você
fez. – concluiu Dmitri, se virando e preparando-se para sair.

– Eu não ligo se serei odiado, só me interessa que cumpri a promessa feita a


Mamã, Papá e Nicolai. Eu terminei com a guerra.

Os gritos continuavam, mas a invasão do castelo Peterhof estava destinada a se


desenrolar sem qualquer baixa. Os russos prometeram e cumpriram, apenas entrar
e tomar posse.

Quando estava próximo da porta, Dmitri ainda ouvia o General praguejar.

– Isso não acabará aqui Dmitri Ivanov... eu vou contar para todos... que você traiu e
entregou nossa pátria! Está ouvindo?! O nome Dmitri Ivanov será sinônimo de
infâmia em toda a Moldávia... desgraçado...

Já debaixo do umbral, Dmitri parou, guardou a arma e sem se virar, respondeu:

– Dmitri Ivanov? Está enganado General. O herdeiro de Nadeyus não está mais
aqui. Ele morreu junto a família, em sua bela fazenda.

– Oque? Seu louco... LOUCO!!!

– Sabe por que escolhi esta roupa preta, General? Eu vou lhe dizer, mesmo tendo a
certeza de que alguém como você nunca entenderia.

– Esta veste é um sinal de luto por nosso povo, o povo que o senhor matou e fez
sofrer por quase sete anos.
– E em respeito a todos que se foram, este luto nunca vai me abandonar, pois hoje,
graças ao senhor, no meu coração só existe uma mancha negra.

Após isso, ele voltou a andar e quase saindo da sala, proferiu uma última frase,
uma melancólica constatação que foi ouvida pelo General Alexei.

– Dmitri Ivanov, o 28º de sua dinastia, o 1º de sua geração, o herdeiro de Nadeyus,


o orgulho de Vladimir e o amor de Yeva, está morto. Agora só sobrou uma casca
vazia, onde não existe nada... apenas... uma Mancha Negra.
Capítulo 14 – Sorriso

Em algum lugar...

– Olá? Tem alguém aí?

Escuridão.

– Onde estou? O que estou fazendo aqui?

Escuridão.

– Minnie? Pode acender a luz? Não consigo ver nada.

Escuridão.

– Por que ninguém responde? ONDE ESTÁ TODO MUNDO?!

Escuridão.

– MERDA! ONDE EU ESTOU?

Escuridão.

– O que é aquilo? Um pequeno ponto de luz. Mas está tão longe, como vou chegar
lá?

Um pequeno ponto de luz distante.

– Que droga! Isso é algum tipo de brincadeira? Quem me colocou aqui? Pelo
menos eu posso ir até o ponto de luz.

O pequeno ponto de luz fica mais próximo.

– Estou indo... devagar... mas avançando.

O pequeno ponto de luz fica maior.

– Estou indo... Está ficando maior... Mas o que é aquilo que não estava lá até agora
a pouco?
Algo se aproxima.

– Seja o que for, parece que está deixando o ambiente mais claro. Mas espere,
parece alguém, um vulto que estou reconhecendo.

Um vulto familiar está se aproximando.

– Quem é você? Minnie? Coronel? Pateta? Horácio? Clarabela? Donald? Karen?

Um vulto familiar está muito próximo.

– Quem é você? RESPONDA!

– Engraçado, apesar de inesperado, não posso dizer que me surpreende. Citou


tantas pessoas, mas não se lembrou de mim? Assim ficarei magoada.

O vulto mostrou o rosto.

– N-n-n-ão...n-n-n-n-não...n-não...n-não...n-n-n-não...po-po-po...de...ser...vo-vo-
vo...cê...

O vulto sorriu.

Escuridão.

Há 30 e poucos anos...

Naquela tarde primaveril, o clima não poderia ser mais agradável.

Nem tão quente e nem tão frio, com pássaros cantando e voando alegremente
através do imenso e lindo céu azul.

Normalmente com este clima e especialmente neste horário, Mickey deveria estar
muito feliz no retorno para casa, após um dia de aula tranquilo e sossegado.

Mas hoje...

Entre uma infinidade de sensações e pensamentos naquele momento, o sentimento


de alegria não conseguia se enquadrar em absolutamente nenhum deles.

Afinal, estar com diversos hematomas no rosto e corpo, o nariz com várias
manchas de sangue coagulado, a roupa suja e rasgada com aparência de ter sido
arrastada no chão e para completar estar segurando uma carta de suspensão nas
mãos, não era o melhor dos cenários.

Não saber também como ela iria reagir, no momento era oque mais lhe afligia.

Talvez houvesse compaixão... talvez compreensão... talvez uma bronca... talvez


uma surra. Curiosamente a angustia de não saber, era a razão que estava criando
as poucas lágrimas que rolavam pelos seus olhos.

Claro que o fato dele nunca ter brigado, nem apanhado, nem batido e muito menos
ter sido suspenso, complicava terrivelmente a situação naquele instante.

De qualquer forma, ele não poderia escapar das consequências daquele dia, por
isso falaria a verdade e aceitaria resignado seu castigo.

Após mais alguns minutos, a porta de casa estava ao alcance de suas mãos, e a
maçaneta foi girada ao mesmo tempo em que seu choro era contido.

– Cheguei! – foi o grito após entrar pela porta. Como sempre acontecia, ela
apareceria para lhe dar as boas vindas.

– Bem vindo querido – foi a frase que começou na cozinha e continuou em direção
a sala.

– Como foi seu... – ela falou, um segundo antes de ver seu estado, engolir a
conclusão da frase e correr na direção dele.

– Oque houve? Quem fez isso com você? – Quase gritou, se ajoelhando.

– Eu... eu...

– Fala! Oque aconteceu?

Ele não conseguiu dizer mais nenhuma palavra. O choro por tanto tempo contido foi
liberado imediatamente e um abraço forte foi a resposta dela.

– Calma, calma... vai ficar tudo bem – dizia enquanto o abraçava.

Neste instante, Mickey se sentiu leve. Independente de seu castigo, ele tinha a
certeza que agora estava seguro.

– Vai ficar tudo bem, eu prometo...

– Eu sei...

– Vai ficar tudo bem...


Segunda-Feira, 10 de Março, 09:11...

O sol estava alto no céu daquela manhã de sexta-feira. A ausência de nuvens


indicava claramente que aquele dia seria agradável e sem surpresas.

Os procedimentos de pouso e decolagem seguiam normalmente no Aeroporto


Internacional de Nova Patopolis. Nenhum atraso ou problema havia sido registrado
pelos controladores de plantão.

Há cerca de quarenta e sete minutos, o voo ERJJ-7845 havia recebido autorização


para pousar. Com calma e competência, o piloto realizou as manobras necessárias
para posicionar a aeronave na direção da pista cinco, que sairia no terminal dois.

Vinte e três minutos atrás, o avião frenava na pista e preparava-se para manobrar
em direção aos fingers.

No saguão, uma voz macia anunciava este pouso:

– Voo ERJJ-7845 da Russia Air proveniente da Ucrânia, chegada confirmada no


terminal dois.

Diversas pessoas aguardavam o desembarque dos recém-chegados. Claro que


ainda demoraria o tempo de descer da aeronave, pegar as malas na esteira, passar
pela alfândega e receber o visto de entrada no caso de estrangeiros.

Neste instante, uma única pessoa saía apressadamente do setor de desembarque.


Como ele não havia despachado nenhuma mala (só carregava uma valise de mão),
assim que saiu do avião seguiu para a alfândega. Exatamente por não carregar
nada, não declarou qualquer coisa e nenhum fiscal prestou atenção nele.

Mickey andava a passos firmes, afastando-se com rapidez do terminal dois. Antes
de seguir para seu destino (a área de taxis), parou em frente a um telefone público
e decidiu fazer algumas ligações.

Após discar o primeiro número, ele aguardou que Pateta atendesse.

– Alô?

– Olá Pateta, aqui é o Mickey, tudo bem?


– Tudo ótimo amigo. Que bons ventos fazem você ligar para mim? – perguntou
Pateta com curiosidade.

– Eu preciso muito conversar com você hoje a noite. Será que podemos nos
encontrar na minha casa as 21:00 hs? – perguntou Mickey com um tom de urgência
na voz.

– Claro, claro. Eu imaginava que após você ficar algum tempo fora e voltar, iriamos
conversar em uma pizzaria para você contar como foi a viagem – comentou Pateta,
sem questionar os motivos do amigo.

– Depois falamos disso, pois hoje eu preciso de você na minha casa. É algo muito
importante.

– Então tudo bem. Nos vemos lá as 21:00 hs. – respondeu Pateta, sem se
preocupar. Se Mickey disse ser importante, não seria ele que diria o contrário.

– Obrigado Pateta. Até lá – disse Mickey, desligando em seguida.

Com mais alguma ligações, ele fez o mesmo convite á Horácio, Clarabela e para o
Coronel Cintra. Confirmando a presença de todos em horários marcados a cada
quinze minutos, ele recolocou o fone no gancho muito satisfeito.

Ao seguir para a área de taxis, pensou consigo mesmo:

– Assim eu pego todos hoje mesmo.

A única pessoa para quem ele não telefonou foi Minnie. Ela seria a primeira e
merecia um tratamento especial.

Embarcando no primeiro táxi da fila, falou rapidamente para o motorista:

– Ratópolis, Rua das Hortências, 450. E bem depressa.

– Sim senhor – respondeu o taxista, saindo com pressa da fila e pegando a avenida
principal que circundava o aeroporto.

Mickey preferiu não avisar Minnie que havia chegado. A ideia era surpreendê-la, e
isto ele conseguiria fazer com toda a certeza nas próximas horas.
Quase trinta minutos após sair do aeroporto, Mickey descia em frente a casa de
Minnie. Eram 10:12 da manhã e ela estava batendo algumas almofadas quando o
viu se aproximar do portão.

Ela correu feliz em direção a ele e não conseguiu evitar um grande e saudoso
abraço.

– Que bom que você voltou amorzinho, mas por que não me avisou? Eu te pegaria
no aeroporto – falava ela rapidamente ao mesmo tempo em que o abraçava forte.

– Eu queria te surpreender – foi a resposta sem qualquer emoção.

Minnie estranhou a reação dele. Normalmente após um tempo distante, ele era
extremamente carinhoso. Abraços e beijos empolgados eram comuns nestas
ocasiões e as vezes ele até a carregava no colo. E agora, nem um sorriso?

– Será que aconteceu alguma coisa? – perguntava-se a medida que eles andavam
em direção a porta da sala.

Assim que entraram, Mickey sentou, colocou a valise em cima da mesa e começou
a abri-la.

– Tudo bem amorzinho? Aconteceu alguma coisa? – perguntou ela com uma
preocupação genuína.

– Não, só estou cansado – foi a resposta em um tom seco.

– Ah, vai dizer que você não está com saudades do seu amorzinho – insistiu ela,
abraçando-o por trás.

– Estou – respondeu, da mesma forma gélida.

Minnie estranhou mais ainda. Normalmente um abraço como este seria suficiente
para ele retribuir de forma apaixonada. E onde estava o sorriso?

Ela soltou o abraço, deu a volta para ficar de frente a ele e insistiu:

– Posso saber o que aconteceu, afinal?

Neste momento Mickey ergueu o olhar da valise e a encarou diretamente, dizendo


apenas uma palavra:
– Nada.

Minnie sentiu um calafrio na espinha, pois além da frase sem emoção, o olhar vazio
dele a assustou. Não era o olhar apaixonado e babão a qual ela estava
acostumada, e sim um olhar frio e distante que não era reconhecível. Aquela
pessoa a sua frente não parecia ser o homem que ela amava há tanto tempo.

Receosa, ela se afastou e tomou uma decisão.

Aparentemente o problema que Mickey tinha era bem sério e ele não queria falar
nada naquele momento. Então ela o ajudaria a relaxar e somente após isto,
insistiria para saber o que era.

– Só um minuto – pediu ela, saindo da sala.

Minnie seguiu até o banheiro e ligou o chuveiro para encher a banheira, ajustando a
temperatura para deixar a água bem quentinha. Em seguida foi até seu quarto.

Ela vestia uma blusa rosa e um short justo, uma roupa confortável para ficar em
casa naquele dia agradável. Mas que não era ideal para o que tinha em mente.

Minnie despiu-se e vestiu no lugar seu adorado roupão rosa, depois pegou um
roupão amarelo que tinha de reserva e voltou para a sala.

– Um banho quente de imersão e uma massagem nas costas vão deixá-lo muito
bem – pensava ela no momento que entrava no cômodo – Vou fazer este cabeça
dura sorrir.

Assim que olhou para Mickey, o viu de pé segurando algo que parecia uma pistola
de vacinação bovina.

– Para que isto amorzinho? – perguntou com curiosidade.

– É minha surpresa para você. – foi a resposta novamente sem emoção, a medida
que ele se aproximava.

– Como assim? Para que serve isto? – perguntou ela um pouco preocupada.

Mickey não respondeu e continuou se aproximando.


Sem saber explicar o motivo, Minnie começou a ficar assustada. A voz sem
emoção, o olhar vazio e aquela pistola estranha eram um trio de fatos bem difíceis
de serem ignorados.

– O que você pretende fazer com isto? – perguntou ela dando um passo para trás.

– Não se preocupe, você vai entender tudo em breve – respondeu ele, se


aproximando rapidamente agora.

– Mickey, pare de brincadeira! Você não vai injetar esta coisa em mim sem me
explicar o que é – disse ela, disfarçando o medo em sua voz.

– Você não tem escolha.

Agora Minnie havia se assustado de verdade. Instintivamente algo lhe dizia que não
era Mickey que estava de frente a ela. Ela tentou escapar para a direita de forma
que alcançaria a porta para sair.

Mickey parecia ter lido seu pensamento e colocou-se em posição que a impedia de
dar um passo. Em seguida estava de frente a ela, segurando a pistola na mão
direita, quase na altura de sua cabeça.

– Afaste-se de mim! – gritou Minnie tentando empurrá-lo.

Com um movimento rápido, Mickey agarrou o pescoço dela com a mão esquerda e
o apertou.

– Quieta, sim? Não queremos alarmar os vizinhos.

Minnie segurou o braço dele com as duas mãos. Começando a se sufocar, ela
tentava se desvencilhar.

– Q-q-q-qu-em...é...vo...cê... – balbuciava ela, sentindo o ar lhe sendo roubado.

– Não se preocupe, você vai entender tudo em breve – repetiu ele, aproximando a
pistola na lateral esquerda do pescoço dela.

Enquanto se debatia, Minnie firmou o pé esquerdo e com um movimento violento,


chutou seu agressor com a perna direita, acertando-o na altura dos rins.
A pancada fez Mickey soltá-la e dar dois passos para trás, perdendo um pouco o
equilíbrio. Enquanto ele tentava se manter em pé, Minnie desabava no chão,
tossindo e respirando profundamente.

– Meu amorzinho aprendeu bem – disse ele gemendo e com um sorriso, enquanto
pressionava o local onde fora atingido.

– M-M-Mickey? – disse ela ainda tossindo um pouco.

– Claro que sou eu.

As voz era de Mickey realmente, mas ela continuava não reconhecendo o tom e
muito menos o olhar dele.

Antes que ela pudesse falar qualquer coisa, ele saltou em sua direção.

Minnie não conseguiu reagir e recebeu diretamente o impacto do peso dele em


cima de seu corpo. Com toda a tranquilidade, Mickey soltou a pistola no chão, virou
Minnie para cima, sentou-se na barriga dela e segurou novamente seu pescoço
com a mão esquerda, mas sem apertar.

– Não grite, tudo bem? Eu não vou te machucar, só fique quietinha.

– É você mesmo? Por que está fazendo isto comigo? – perguntou ela com a voz
embargada.

– Porque é necessário. Quer uma prova de que sou eu mesmo?

– Enquanto você chorava achando que íamos morrer no fundo daquele poço, eu te
prometi que iríamos sair de lá e que nunca mais você se sentiria sozinha, pois eu
sempre estaria por perto.

Minnie arregalou os olhos, pois apenas Mickey teria como saber disto.

– Um dia antes de viajar para a Europa, eu falei que não importava o que
acontecesse eu sempre te amaria.

Agora Minnie tinha certeza que era ele e tinha uma certeza maior ainda que algo
muito sério havia acontecido lá.

– Me conte o que está acontecendo, por favor – implorou ela quase chorando.
– Não se preocupe, você vai entender tudo em breve – disse ele mais uma vez. Em
seguida com a mão direita pegou o ombro esquerdo do roupão de Minnie e com um
puxão decidido o rasgou, exibindo o braço dela.

– Não vai demorar nada – disse ele ao mesmo tempo em que soltava a manga
rasgada e pegava a pistola.

Minnie entendia cada vez menos, mas sua única certeza era que ele não poderia
aplicar esta coisa nela. Na posição em que estava não tinha como reagir com as
pernas, apenas com as mãos.

Enquanto Mickey aproximava a pistola do braço esquerdo dela, a mão direita


tateava nervosamente o chão. E sem querer, conseguiu pegar a sua bolsa que
estava próxima ao sofá.

Com um golpe desesperado, acertou em cheio o rosto de Mickey. Pelo menos


desta vez, ter uma bolsa pesada com diversos itens fora muito útil para ela.

A violência do golpe o derrubou. Minnie aproveitou este momento para se levantar


e correr para o lado oposto de onde estavam, entrando pelo corredor, chegando ao
banheiro e trancando a porta. Neste momento a banheira já estava quase cheia,
mas ela não notou este detalhe.

A janela do banheiro era pequena demais para ela sair, mas podia permitir um
pedido de socorro. Ao pensar isso, ela correu para lá e olhou para a rua. Então viu
na calçada a vizinha varrendo as folhas que haviam caído da árvore.

– Socorro, socorro! – gritou para chamar a atenção da vizinha.

A vizinha assustada, olhou imediatamente para a origem do barulho. Ao ver que ela
notara seus gritos, Minnie continuou:

– Meu namorado enlouqueceu e quer me matar! Chame a polícia, rápido! – gritou


ela desesperadamente.

A vizinha nem falou nada, pois pelo tom de voz, percebeu que Minnie falava sério.
Em um instante ela correu para sua casa, de forma que pudesse ligar para a central
de emergência.
Minnie não sabia se a polícia chegaria a tempo, então começou a olhar para os
lados procurando algo que permitisse a ela se defender. Infelizmente ela não teve
tempo de encontrar nada, pois a voz de Mickey associada a tentativas de entrar no
banheiro indicavam que ele não havia desistido.

– Abra esta porta amorzinho – pediu ele calmamente, enquanto socava a porta.

– Vai embora e me deixe em paz! – implorava ela.

– Você não tem escolha – respondeu ele, batendo mais forte.

– Por favor, vai embora! A polícia está chegando. – avisou ela, quase chorando.

Ao ouvir isto, Mickey parou de falar. Simplesmente pegou distância e com um


impulso jogou seu ombro contra a porta.

Minnie deu um passo para trás e notou que estava encostada na parede. Não havia
para onde fugir.

Com mais três golpes, o pequeno fecho da porta simplesmente cedeu. Mickey abriu
a porta tranquilamente, enquanto segurava a pistola na mão direita.

– Me deixa em paz! – gritou Minnie quando ele deu o primeiro passo para dentro.

– Não se preocupe, você vai entender tudo em breve.

Enquanto o via se aproximando, as mãos de Minnie buscavam qualquer coisa que


estivesse a seu alcance. De repente, conseguiu pegar o secador de cabelos que
estava no suporte próximo a banheira. Ela só não percebeu que o mesmo estava
conectado na tomada.

– Vai embora Mickey – ela pediu mais uma vez, sem ter uma resposta.

Minnie sabia que não tinha escolha e assim que Mickey deu mais dois passos, ela
desferiu um golpe violento na cabeça dele utilizando o secador. A força foi tanta
que a parte da frente quebrou e Mickey começou a recuar.

Como primeira reação, ele colocara o braço no caminho. O golpe não foi evitado,
mas o fio do secador enroscou-se em seu cotovelo e a medida que ele buscava o
equilíbrio, a tontura causada pela pancada foi notada por Minnie.
Aproveitando o momento, ela o empurrou para conseguir fugir.

Com o empurrão, ele cambaleou para o lado e escorregou no chão liso. Ainda em
contado com o secador na tomada, Mickey caiu dentro da banheira que estava
cheia.

Para Minnie os próximos segundos duraram séculos. Primeiro um clarão que


iluminou o banheiro. Logo após o grito agudo de Mickey enquanto convulsionava
imerso na água. Ele estava sendo eletrocutado.

Felizmente os fusíveis da casa cumpriram sua finalidade e derrubaram o disjuntor,


mas não a tempo de evitar um grande estrago.

Em cinco segundos tudo estava terminado. Um leve cheiro de queimado permeava


o ambiente e a casa estava em silêncio, exceto pelo barulho da água pingando da
banheira e pelo choro abafado de Minnie que estava de pé olhando para seu
amado inconsciente.

Sem pensar em nada, ela saiu correndo do banheiro em direção ao telefone. Uma
das maiores lições que ela havia aprendido com Mickey neste tempo todo, era que
em caso de emergência, todo o resto devia ficar em segundo plano.

E agora ela tinha que agir rápido, pois Mickey com certeza morreria se não fosse
socorrido imediatamente.
Capítulo 15 – Olhos

Em algum lugar...

– Abra os olhos... Vamos... Acha que pode ficar assim até quando?

Escuridão.

– Ande, não tenho o dia todo.

Luminosidade Intensa.

– Finalmente, achei que o meu menino corajoso tinha se tornado um covarde.

– EU NÃO ACREDITO! NÃO PODE SER VOCÊ! ISSO É ALGUMA BRINCADEIRA


MENTAL DAQUELE DESGRAÇADO?!

– Calma, calma. Precisamos conversar e não temos muito tempo. Então se acalme
e me ouça com muita atenção.

– Mas por quê?! O que aconteceu?! Onde é aqui?!

– Você não sabe? Bom, na verdade eu também não, mas o “detetive” aqui é você.

– Claro, é tão simples. Como eu posso ser tão ingênuo? É óbvio que é um sonho,
não? Como mais eu poderia estar te vendo?

– Acredite no que quiser. Desde pequeno você sempre foi teimoso e parece que
isso nunca vai mudar.

– Nossa, faz tanto tempo. Nem lembro quando foi a última vez que conversamos.
Você não imagina como eu gosto de falar contigo.

– É verdade, muitos anos se passaram.

– Os últimos dias foram tão agitados... Tão ruins... Pelo menos agora estou feliz...

– Não deveria.
– Por que não? Mesmo sendo um sonho... É tão bom te ver... É tão bom ouvir sua
voz... Ver seu olhar carinhoso e ao mesmo tempo decidido...

– Sim, eu sei...

– A senhora não imagina como sinto sua falta... Por favor não vá embora de novo...
Você promete... Mamãe?

Há 30 e poucos anos...

– Ai, isso arde! – gritou ele enquanto o algodão com álcool limpava seu nariz.

– E oque você esperava? – foi a resposta impaciente.

– Não sei, nunca passei por isso – comentou ele com tristeza.

– E nem devia ter passado. Eu li a carta de suspensão, três dias em casa por brigar
no recreio. – Falou ela dando uma pausa e respirando fundo antes de continuar –
Então antes de tomar qualquer atitude, gostaria de ouvir de você oque realmente
aconteceu.

– Ai! – gemeu de novo, com a não tão delicada esfregada de algodão no joelho
ralado.

– Tá bom, vou explicar. Mas promete não ficar brava?

– Não – foi a resposta com um olhar penetrante.

– Tá, vou contar tudo. Já faz uns dias que na hora do recreio três meninos da
minha sala ficavam rindo da Elisabete. Ai! – gemeu enquanto tinha a perna limpa.

– Continue – foi o comentário, em um tom um pouco mais interessado.

– Eu sempre via ela quieta e triste, mas não sabia oque dizer. Mas ontem eu falei
para ela não ligar porque eles eram um bobões. Ai, ai, ai! – reclamou quando foi
tocado sem querer onde tinha um grande hematoma, em baixo da manga direita da
camisa.

– Eu não vi que aqui estava machucado, mas continue – desculpou-se ela, ao


mesmo tempo em que parou para dar total atenção a narrativa.

– Então hoje no recreio, foram mexer com ela de novo e ela disse que eram todos
bobões... mas aí... aí... – hesitou ele, quase chorando.
– Calma querido, pode contar sem medo, eu prometo que não ficarei brava – disse
ela o tranquilizando, pois havia começado a entender tudo.

– Promete? – foi a resposta, com os olhos assustados.

– Sim – retrucou ela com um sorriso.

– Eles não gostaram de ser chamados de bobões e começaram a empurrar ela. Eu


vi e fui até lá dizer para pararem.

– Aí, um disse que eu era um orelhudo intrometido e que era para eu ir embora. Aí
eu disse que eles eram mesmo uns bobões.

– Aí começaram a me empurrar e eu... eu... revidei. Você sempre disse para não
brigar, mas eles tavam maltratando a Elisabete e eu também.

– Sim... continue...

– Aí começaram a me bater e eu bati também e alguém correu pra chamar a


professora.

– Quando ela chegou, dois deles tavam chorando no chão e eu tava sentado no
terceiro dando murros na cabeça dele. E ela me tirou de cima dele dizendo que eu
briguei com todos.

– Sei... mas e a Elisabete?

– Correu quando a briga começou. Aí a professora me levou pro diretor que disse
que eu não podia bater nos coleguinhas e me suspendeu – concluiu ele, se
sentindo muito aliviado.

– Entendi...

– Você disse que não ia ficar brava! – disse ele rapidamente.

– Eu não estou brava, só pensando um pouco – foi a resposta enquanto ela voltava
a limpar os machucados, desta vez com delicadeza.

Mickey ficou em silêncio, pois foi muito boa a sensação de contar tudo pra ela,
mesmo com o medo de levar outra bronca.

Após terminar a limpeza, Mickey trocou de roupa e sentou-se no sofá.

– Posso ver TV? – Perguntou, um pouco amuado.

– Daqui a pouco, antes me diga uma coisa – foi a resposta.


– Você só brigou para defender a Elisabete dos três garotos?

– Foi. Eu sei que brigar é errado, mas oque eu podia fazer?

– Podia ter chamado a professora?

– Sim, mas na hora eu não pensei, só queria que deixassem ela em paz.

– Tudo bem. Você me promete que não vai brigar mais e se necessário, vai chamar
a professora?

– Prometo – foi a resposta com toda a sinceridade.

– Então vem cá – disse ela estendendo os braços.

Mickey se jogou nos braços dela, mas se arrependeu logo em seguida.

– Ai, ai, ai, ai, ai! – tá doendo tudo.

– Eu sei. E também sei que você é um menino muito especial, sabia? Eu te amo
muito, meu menino corajoso – disse ela, abraçando-o com cuidado.

– Eu também te amo muito, mamãe – foi a resposta com um grande e brilhante


sorriso.

Quarta-Feira, 12 de Março...

Escuridão.

Silêncio, mas não total. Um leve som agudo soava em tempos regulares.

O som não incomodava e a sensação era de conforto. Maciez, temperatura


constante e um som intermitente.

Uma voz familiar repetia a mesma palavra. Mesmo sendo conhecida, a palavra era
indistinguível.

O som continuava repetidamente a cada segundo e a voz repetia a mesma palavra.

A cada som e a cada palavra, eles pareciam mais próximos. De repente a palavra
começou a variar levemente, mas o som estava lá, sempre igual e no mesmo tom.

– M....ey.. pi... Mi....y... pi... .i..y... pi...

A escuridão desvanecia, o som e a voz estavam mais próximos. E novas palavras


apareceram.
– El.. mex.. .s .. ol..s... si. acor.e am.r. vol.e p.a mi.

Ficar perto da voz era importante, o som dela fazia o mundo ter sentido. Era seu
objetivo e motivação.

– Acorda meu amor... pi... por favor... pi... volta pra mim... pi...

– Oque... acon... teceu... – balbuciou.

– Você acordou! Você acordou! – a voz ficou tão alta que só ela era ouvida.

Algumas piscadas... palavras inintelegiveis... Mickey havia aberto os olhos.

A primeira coisa que ele sentiu foi Minnie, que o abraçava enquanto as lágrimas
molhavam seu braço esquerdo.

A segunda coisa, foi notar que estava deitado em uma cama de hospital,
aparentemente de uma UTI. Haviam diversos aparelhos em volta dele, um ar
condicionado mantendo a temperatura estável e um som agudo de um monitor
cardíaco.

A última coisa que ele notou foi quando tentou levantar o braço. Seus dois pulsos
estavam amarrados na cama.

– Minnie... onde... eu... estou? Por que... estou... aqui?

Demorou para ela sair daquela posição, e mais um pouco para enxugar parte das
lágrimas e conseguir responder:

– Oque aconteceu com você?

– Eu... que... per... gunto... eu... estava... na... Ucrâ... nia... oque... houve?

Minnie não estava conseguindo raciocinar pois só uma coisa importava.

– Você acordou, vou chamar o doutor para te examinar. Já volto. – disse ela, saindo
do quarto.

– Não... espere... eu... eu...

Uma leve tontura fez o quarto girar, sendo impossível manter os olhos abertos.

– Minnie... – foi sua última palavra antes de desmaiar.


Quinta-Feira, 13 de Março...

– Muito bom Sr. Mickey, creio que no geral está tudo bem – comentou em um tom
levemente surpreso o doutor Dwelling.

– Quase tudo doutor, ainda não sei por que estou amarrado na cama – respondeu o
detetive, forçando os braços para cima.

– Bem, considerando o que o senhor fez, creio que a prevenção é a melhor atitude
no momento.

– Já falei mil vezes, eu não fiz nada! Eu seria incapaz de fazer qualquer mal a ela!
Isso tudo é um engano – argumentou o detetive sem qualquer efeito.

– Bom, o resultado da sua ressonância de hoje está aqui. Podemos discutir sobre
alguns itens interessantes?

– Claro.

– O senhor foi eletrocutado dentro de uma banheira. Sua pele apresentou


queimaduras de segundo grau, mas misteriosamente, seu coração e cérebro não
sofreram tanto dano quanto deveriam.

– Como assim?

– Em casos como este, a vítima pode sofrer uma parada cardíaca ou ter partes do
cérebro danificadas. No seu caso não aconteceu nada, como se algo tivesse
absorvido a carga elétrica.

– Algo oque? – perguntou impacientemente.

– Eu não sei ainda. Só sei que seu exame mostra algo que nunca vi, não é um
tumor, nem hemorragia ou qualquer outra coisa. O senhor tem uma pequena
mancha negra no cérebro.

Esta frase foi como um murro no estômago de Mickey. Repentinamente tudo voltou,
a viagem, a armadilha, a traição de Bykov e o Mancha Neural.

– MANCHAAAA!!!!!!! – gritou o detetive enquanto o médico se afastava.

Algumas horas e muitas, muitas, muitas explicações depois...

– Eu sabia que não era você meu amor – balbuciou Minnie o abraçando e quase
chorando novamente.

– Eu nunca te faria mal...


– Eu sei, eu sei... eu estava com medo de ter te perdido... não sei... o Mancha ter
mandado um impostor para me matar.

– Sim, eu entendo. Mas tudo que eu disse é verdade. E ele ter me controlando
confirma tudo que você me contou.

– Eu acredito em você – disse Minnie se levantando – Também pedi para o doutor


te soltar, mas ele disse que não podia, pelo menos até...

– Até que o pessoal da CIA confirme minha história – completou o detetive


contrariado.

– Sim, mas será logo. Por enquanto descanse, você quase morreu.

– E não morri por que os nanos robôs do Mancha Neural protegeram meu cérebro
ao mesmo tempo que foram destruídos. Não é irônico?

– Sim, mas ainda não entendi o motivo de tudo isso. Por que o Mancha te mandaria
de volta para nos infectar ao invés de simplesmente matá-lo.

– Deve ser sua vingança pessoal por todos os planos que eu frustrei. Ele teria me
superado, tendo todas as pessoas que eu amo sob seu controle.

– Faz sentido. E para piorar, sua amiga assassina também te traiu.

– Isso eu não entendi também. Mas o Mancha a convidou, ele não tinha como
saber que eu estaria junto.

– Sim, e você será o responsável por prender este maníaco psicopata.

– Tem razão, mas preciso pensar como.

– Simples, quando o pessoal da CIA vier, basta falar onde ele está e tudo acabará
bem. – completou ela com um sorriso.

– Certo... mas me diga outra coisa – disse Mickey, mudando de assunto sutilmente.

– O que você quiser amorzinho.

– Desde que eu comecei a explicar, você acreditou em tudo. Percebi pela sua
expressão que não havia qualquer dúvida em seu coração e eu queria saber...

– Por que eu acreditei em tudo, sem pestanejar. É tão simples meu amor – disse
Minnie, em um tom de obviedade.

– Desde que você acordou, seus olhos voltaram ao normal. O brilho nos seus olhos
quando me olha é inconfundível e inesquecível, e exatamente este brilho não
estava presente enquanto você me atacava.

Mickey ficou sem resposta.

– Ficou espantado que eu também sou observadora, senhor detetive? – disse ela,
voltando a abraça-lo.

– Não, é que... – Mickey tentou responder, sem saber oque falar.

– Pois pode ter certeza disto. Eu leio seus olhos, sei quando você está bem, sei o
quanto me ama e sei que agora, neste instante, você voltou a ser meu amorzinho.

Palavras não eram necessárias naquele momento. Mickey não podia abraça-lá,
mas conseguiu retribuir o carinho encostando o rosto na cabeça de sua amada.

E nesta posição, sentindo um delicado perfume, Mickey relaxou e fechou seus


olhos, aqueles que tem o poder de projetar seus sentimentos mais íntimos.

Ironicamente, muito longe dali, praticamente do outro lado do mundo, outra mulher
não tinha alguém para abraçar, na realidade estava sozinha.

Ela olhava melancolicamente para uma parede vazia em um local que, em


situações normais, não poderia ser chamado de "quarto", e pensava:

- Nicolai, suas opiniões me fazem tanta falta. Será que estou fazendo a coisa certa?
Capítulo 16 – Decisão

Em algum lugar...

– Eu gostaria de ficar aqui com você, de verdade. Lamentavelmente as


circunstâncias não são tão boas.

– Quais circunstâncias? Quando esse sonho acabar, tudo estará bem, não?

– Não sei se tudo estará bem.

– Sim, eu não sei o que aconteceu há pouco, mas na verdade, quero saber o que
está acontecendo nesse momento.

– Ah, isso? Você dormiu e por algum motivo não quer acordar desse sono. Por isso
eu estou aqui para te ajudar, meu querido. Você precisa acordar e isso depende de
você.

– Mas, mas, mas... O que fazemos aqui? Na verdade... Onde é aqui? Como estou
dormindo se estamos conversando? Isso não faz sentido.

– Nossa, quantas perguntas. Assim vamos perder muito tempo, então tentarei ser
breve. Algo o fez dormir tão profundamente que seu corpo já desistiu, e agora sua
mente está quase desistindo de acordar.

– Eu não acredito que estou dormindo. E se estiver realmente, por que eu deveria
acordar?

– Pelo simples motivo que você ainda não terminou o que precisa fazer. Você não
deveria estar aqui, por isso permitiram que eu viesse te ajudar a acordar.

– Mas mamãe... Aqui é tão bom... Estou falando com você... Não sinto nada,
apenas uma sensação incrível de paz e tranquilidade... Me deixa ficar aqui, por
favor.

– Eu adoraria querido, mas tudo tem seu tempo. Agora você precisa acordar e
terminar o que começou. Muita gente depende de você e isso não pode ser
ignorado. Você compreende?
– Não. Eu quero ficar nesse local tranquilo... não vale a pena ajudar outras
pessoas.

– Você já chegou tão longe. Por que hesitar quando está tão próximo de terminar
sua missão? Cadê o menino que nunca desiste e se preocupa com todos que ele
ama?

– Ninguém precisa tanto assim de mim, mãe... Eu só quero... descansar... Por


favor, me deixe descansar.

– Nossa, agora quase não o reconheci. Cadê o menino que brigou com três
valentões para salvar uma menina? Agora, existe outra garota que precisa de você.

– Uma garota?

– Sim meu amor. Nesse exato momento ela aguarda sua volta para abraça-lo,
beijá-lo e fazer uma pergunta que irá mudar sua vida.

– É claro... Mi...nnie... Mi...nnie... Eu... sempre... vou... te amar...

– Sim, é ela. E agora você vai acordar e terminar sua missão. Um dia nos veremos
novamente, quando você já tiver feito tudo que precisa fazer. Prometo que vou te
esperar aqui meu filho, mas agora você precisa querer, querer muito acordar.

– Mãe... eu vou... mas volto... pra te ver... me espere...

– Sim amor, você sempre será meu menino corajoso. Mas agora, acorde... acorde...

– Sim... sim...

– Acorde... Acorde... ACORDE!!!!!!!!!

– MÃÃÃÃÃÃÃÃE!!!!!

Luz.

Domingo, 16 de Março, 11:42...

Como de costume aos finais de semana, Ratopólis estava tranquila, com as ruas
vazias e seus habitantes realizando diversas atividades de lazer. Após uma
agradável aurora sem nuvens, um calor aconchegante permeava o ambiente.
Infelizmente tal sensação acolhedora não podia ser notada por quem estivesse
internado em um hospital, cujos recintos são climatizados.

No momento, caso alguém dentro do quarto 310 do Hospital Geral de Ratopolis se


desse ao trabalho de olhar, veria um leve raio de sol se desenhando como um
obelisco na parede branca contrária a janela.

A parca iluminação natural era notável apesar da janela ser lacrada e da cortina
estar abaixada naquele momento.

Sem ter tempo para pensar nas sutilezas das belezas naturais, a única pessoa
presente no quarto estava ciente que em breve receberia dois visitantes não tão
sociáveis, mas após refletir muito, ele já estava preparado para eles.

Após três dias sendo submetido a todo tipo de exame físico e psicológico,
finalmente as visitas haviam sido liberadas para aquele paciente especial, que se
encontrava sentado na pequena poltrona ao lado da cama.

Minnie havia voltado para casa após ficar quase uma semana naquele quarto, mas
agora na iminência da alta, além de querer arrumar tudo para receber seu amado,
que ficaria algum tempo hospedado lá, ela não tinha a menor vontade de
confraternizar com os visitantes que apareceriam nas próximas horas.

Na visão dela, Mickey deveria entregar todas as informações pertinentes sobre o


Mancha Negra, seus planos, localização e em seguida virar as costas para tudo
isso, se preocupando apenas com sua recuperação.

Mas Mickey tinha seus próprios planos, que entravam em conflito direto com os
desejos dela.

– Espero que ela me perdoe – foi o pensamento do detetive, enquando aguardava


os dois agentes da CIA que havia conhecido na delegacia há exatos vinte e três
dias.

Domingo, 16 de Março, 13:18...

– Com licença – pediu a enfermeira que trazia a bandeja com o almoço.

– A vontade – respondeu o paciente.

– Vou deixar aqui na mesinha, tenha um bom apetite – disse ela ao colocar a
bandeja na mesa branca. Em seguida, retirou-se sem falar mais nada.

– Não, obrigado. – pensou o detetive, não conseguindo nem cogitar comer mais
uma porção dessa refeição padronizada.
Há pouco mais de uma hora, ele havia recebido alta juntamente com dezenas de
recomendações para descansar, não se esforçar, não se estressar e nem fazer
nada pelos próximos trinta dias.

Nos minutos seguintes a saida do médico, Mickey tomou um banho e em seguida


arrumou os poucos pertences que ainda estavam lá.

Agora, ele acabara de ser avisado pela portaria que os dois agentes estavam a
caminho de seu quarto.

Como não queria perder tempo, Mickey fizera um relatório completo por escrito, que
foi entregue em mãos ao mensageiro que a CIA enviou.

Considerando o conteúdo do mesmo, o detetive tinha certeza que receberia visitas


em breve.

Passado mais um minuto, os agentes Smith e Anderson estavam batendo em sua


porta, ao mesmo tempo em que entravam.

– Com licença senhor Mouse – falou educadamente Anderson.

– A vontade.

Considerando a fisionomia dos visitantes e o tom empregado, a previsão de Mickey


se cumpriria, isso não seria nada agradável.

Mickey estava sentado na pequena poltrona e os convidou a sentar no sofá


disponível, oque foi prontamente declinado.

– Recebemos o seu relatório e gostaríamos de confirmar algumas coisas – se


prontificou Smith.

– Em que eu puder ajudar, será um prazer – respondeu Mickey, preparando-se


para colocar o plano em prática.

– Então senhor Mickey Mouse, realmente não há qualquer outra informação que
possa nos dar?

– Precisamente.

– Podemos revisar seu relatório? – perguntou Smith claramente desconfiando de


alguma coisa.

– A vontade.
– Resumidamente, o Mancha Negra é responsável pelas mortes no povoado de
Nord e pelos assassinatos. Sendo isso possível com a utilização de um aparato de
controle mental nomeado "Mancha Neural".

– Sim.

– O senhor e a agente Bykov foram convidados para irem até ele e ao chegarem lá
Bykov o traiu e o senhor foi capturado.

– Sim.

– Não está claro se Bykov o traiu por livre espontânea vontade ou se estava sendo
controlada.

– Não tenho certeza.

– Contra sua vontade o senhor foi controlado, voltou para Ratópolis e atacou sua
noiva. O senhor não lembra de nada desde esta captura até acordar no hospital.

– Sim.

– Este controle cessou com um choque que quase o matou.

– Sim.

– O item em suas mãos que seria empregado contra sua noiva também foi
destruído pelo mesmo choque.

– Hum, hum.

– E quanto ao local onde está o criminoso, o senhor não faz a menor idéia de onde
seja, só sabe que fica há horas do aeroporto.

– Exato.

– Mas como o senhor não saberia onde fica se foi até lá?

– Bykov dirigiu, pois só ela sabia ler as indicações no mapa. Eu estava muito
cansado e aproveitei para dormir e quando acordei, estava quase lá. – Respondeu
o detetive com toda a naturalidade.

– O senhor tem certeza absoluta que não consegue dar qualquer indicação de onde
ele está? – Insistiu Smith claramente impaciente.

– Tenho.
– Creio que encerramos por hoje. – interrompeu Anderson. – Gostaria de deixar
nosso cartão, pois tenho certeza que caso possa nos dar qualquer outra
informação, o senhor Mouse irá nos ligar.

– É claro.

– Amador. – balbuciou Smith.

– Muito obrigado por tudo e fique com meus votos para uma rápida recuperação. –
finalizou Anderson se retirando, sendo seguido por Smith.

– Obrigado. – respondeu sorrindo o detetive.

Após alguns segundos de inércia, Mickey levantou-se rapidamente e recolheu seus


pertences. Em seguida, saiu do quarto.

A caminho da portaria do Hospital onde chamaria um táxi que o levaria para a casa
de Minnie, um último pensamento o assolou:

– Espero ter feito a coisa certa.

Domingo, 16 de Março, 17:38...

Após tanto tempo em um quarto de hotel, deitar no confortável sofá da sala de


Minnie causava uma sensação muito mais agradável do que o normal.

Claro que a anfitriã estava tratando muito bem o seu hóspede, com guloseimas e
mais atenção do que ele estava acostumado.

Após voltar da cozinha onde foi deixar o prato do bolo de chocolate que ele havia
acabado de degustar, ela sentou-se no canto direito do sofá e se esgueirou até ficar
deitada ao lado dele.

– Está satisfeito e confortável, amorzinho? – perguntou ela da forma mais delicada


possível.

– Claro, agradeço de coração tudo que está fazendo por mim – foi a resposta
sincera.

– Não precisa agradecer, eu senti tanto sua falta que agora só quero ficar juntinha
de você.

– Eu também senti a sua falta, muito mesmo.


– Que bonitinho. Mas agora vamos ficar bastante tempo juntos, você vai ficar de
férias por um bom tempo. Quem sabe podíamos viajar para um hotel-fazenda, bem
no meio do nada.

– Sim, vamos pensar nisso.

– Viu como eu estava certa? Entregando tudo pra CIA, eles que se virem para deter
aquele assassino e sua amiguinha psicopata.

– Verdade, já fiz minha parte. Agora é com eles.

– Ainda bem que sua memória é ótima, tenho certeza que conseguiu desenhar um
mapa perfeito para eles prenderem o Mancha.

– S-s-sim, é claro – gaguejou o detetive.

Repentinamente Minnie levantou a cabeça e encarou o seu noivo.

– Senhor Mickey, pensa que não te conheço?

– Errr... como assim?

– Você está contrariado pois queria ir junto. Não finja que você acatou minha
opinião assim tão facilmente.

– Ah, tem razão, mas saúde em primeiro lugar não é? – respondeu aliviado.

– Que bom que está pensando assim. – disse ela, se aproximando e o beijando –
Se importa se eu for tomar um banho quente para irmos descansar na nossa
caminha limpa? – concluiu ela, ficando de pé.

– Não, a vontade. Quando você voltar, vamos pra cama.

– Tá, não vou demorar – disse ela saindo da sala, em direção ao banheiro.

– Bom banho.

Após alguns minutos parado, Mickey levantou-se e discretamente retirou o telefone


do gancho.

Ele sabia de cor o número a discar e após alguns segundos foi atendido pelo menu
eletrônico. Escolhendo algumas opções, foi rapidamente direcionado para onde
queria.

Dois toques depois, ouviu uma voz educada:

– Aerolinhas Patinhas, setor internacional. Com quem estou falando?


– Mickey.

– Boa noite e seja bem vindo senhor Mickey. Em que posso ajudá-lo?

– Eu preciso reservar um vôo, o mais breve possível, independente de horário ou


classe.

– Claro senhor. Qual seria o destino?

– Por favor me perdoe Minnie – pensou ele ao mesmo tempo em que falava:

– Kiev, capital da Ucrânia.

Domingo, 16 de Março, 20:12, em algum lugar no estado da Virginia...

Como sempre a sala do agente Anderson estava impregnada de fumaça, um pouco


menos desta vez, já que ele estava acompanhado.

– Não consigo acreditar naquele rato, tenho certeza que ele está escondendo algo!

– Calma agente Smith, logo, logo, saberemos – respondeu Anderson


tranquilamente.

– Com todo o respeito, senhor Anderson, creio que quanto a isso, você está
totalmente errado. Não devíamos ter deixado ele mentir e simplesmente ir para
casa tranquilamente.

– E oque você sugere que façamos, agente Smith? Deveriamos prender um civil
que quase morreu em uma missão, que está sob cuidados médicos, sem qualquer
prova? Talvez interroga-lo após uma overdose de Sódio Pentotal? Ou quem sabe
torturá-lo um pouquinho? – foi a resposta em tom irônico, seguida de uma longa
baforada.

Smith preferiu não responder, pois sabia que qualquer uma das alternativas citadas
era inviável. Mas mesmo assim, não conseguia concordar com a calma de seu
chefe.

– Viu como não é fácil? Quando envolve um civil, temos que agir com os pés no
chão. – comentou Anderson, apagando o cigarro – Imagine se ele realmente está
dizendo a verdade. Então ele nos denuncia por coação ou teremos que nos livrar
dele... e de todos os que sabem que ele trabalhou conosco.

– Eu sei senhor, mas...


– Calma agente. Este tipo que se acha um herói é previsível e sinto que logo
teremos notícias. – concluiu Anderson, acendendo um novo cigarro.

A frustração e contrariedade de Smith o estavam impedindo de argumentar mais,


pelo receio de ofender seu superior.

Mas seus pensamentos foram interrompidos, pois sem esperar, o telefone tocou.

– Anderson... – atendeu o dono da sala, colocando o cigarro apoiado no cinzeiro.

– Sim, pode falar... ah é? Interessante... e para quando? Sei... qual o código do


voo? Hmmm... perfeito, muito obrigado.

O agente desligou o telefone ao mesmo tempo em que pegava o cigarro de volta.


Após uma longa e demorada tragada, levantou a cabeça e soltou a fumaça devagar
pelo nariz.

Smith observou tudo com curiosidade.

– Então agente Smith... – falou Anderson, abrindo um grande sorriso de satisfação


– Creio que dentro de alguns dias iremos fazer um pouco de turismo no Leste
Europeu.

– Como assim? Para onde iremos? – perguntou Smith sem entender.

– Kiev – foi a resposta ao mesmo tempo em que dava outra grande tragada.

Segunda-Feira, 17 de Março, 09:12...

Aquela segunda-feira era especial para o detetive.

Após tantos dias acordando em um quarto de hospital, onde retirava sangue, fazia
exames, era monitorado e comia sempre a mesma porcaria, finalmente ele estava
em casa.

Na casa de Minnie é claro, mas para ele, este local era quase a sua própria
moradia.

Ele havia acordado há cerca de vinte minutos, passou pelo banheiro onde escovou
os dentes e seguiu para a cozinha para preparar o desjejum sua amada.

O objetivo era deixar a mesa pronta com um bule de café fresco, alguns pãezinhos
de leite, queijo, requeijão e algumas frutas. Certamente Minnie apreciaria o esforço.
Após montar tudo, abriu a porta dos fundos e olhou para o céu, que estava limpo e
sem nuvens. Uma longa respiração o deixou mais animado para enfrentar o
pequeno desentendimento que viria a seguir.

Mickey ainda contemplava o céu quando ouviu uma voz sonolenta se aproximando:

– Mickey? Por que levantou tão cedo?

– Amorzinha... vim preparar a mesa para seu café da manhã. – respondeu ele,
enquanto se aproximava para dar um beijo.

Estranhamente, ela deu um passo para trás e o evitou.

– Hummm? O que houve? – perguntou ele espantado.

– Já volto – respondeu ela secamente.

Mickey não entendeu, mas sentou-se e esperou pacientemente seu retorno.

Após alguns minutos, uma mulher de roupão, com os dentes escovados, o rosto
lavado e olhos raivosos voltou para sentar-se ao seu lado.

– Muito bem, fale – foi a única frase em um tom bem agressivo.

– Como assim? – retrucou Mickey sem realmente entender.

– Não me subestime senhor Mickey! Na primeira e única vez que eu acordei e tinha
uma mesa de café da manhã montada, você queria me amaciar para dizer que iria
passar um tempo em Anderville. O seu "tempo" que seria medido em dias,
descambou para meses e passou de um ano! Então... FALE!

– Ops – balbuciou o detetive. De duas uma, ou ele era muito previsível ou ela era
extremamente observadora. De qualquer forma, não adiantaria tentar adoçar a
história, só restava ser o mais lógico e claro possível.

– Tudo bem amorzinha, eu vou falar, mas sinceramente não tenho forças para
argumentar ou rebater qualquer coisa que você não concorde. Portanto, prometa
que vai me deixar explicar tudo sem interromper, aí depois você dá sua opinião.
Promete? – disse Mickey da forma mais coitadinha possível em uma tentativa de
angariar simpatia e apoio.

Ela se restringiu a concordar com a cabeça.

– Vou te contar tudo da forma mais suscinta e lógica possível.

Ela não falou nada, simplesmente cruzou os abraços e o encarou.


– Eu menti para a CIA. Na realidade contei tudo em detalhes do que aconteceu,
exceto uma coisa. Falei que não me lembrava de nada sobre o local onde estaria o
Mancha Negra, pois quem dirigiu foi Bykov e eu havia dormido o tempo todo.

Uma pequena mordida no lábio inferior foi a única reação perceptível.

– Eu fiz isso porque o Mancha tem total vigília sobre a região e o local é
completamente isolado. Caso ele seja informado sobre qualquer movimentação
atípica, basta desaparecer novamente e nunca mais o veríamos.

A pequena mordida rapidamente transformou-se em diversas mordidas no lábio


superior. E suas pernas cruzaram-se.

– É muito perigoso deixá-lo a solta com o poder que ele tem nas mãos, precisamos
detê-lo a todo custo.

– Então te direi qual foi a minha decisão, que na verdade é a mais lógica possível.

As mãos dela que estavam apoiadas nos braços cruzados, começaram a apertar
violentamente seus cotovelos. Mas o silêncio prometido estava sendo mantido.

– Eu não tenho certeza sobre as ordens que aquele louco enfiou na minha cabeça,
mas após terminar minha missão, eventualmente eu deveria voltar para lá. Então o
meu retorno não é atípico e nem vai gerar um aviso que o faça fugir. – falou ele da
forma mais convincente possível.

Os olhos dela estavam se apertando e seu corpo começou a tremer.

– Ontem eu reservei uma passagem para Kiev, saindo amanhã a noite. Eu não
posso permitir que este louco assassino fuja e não vejo outra forma de detê-lo. E
espero que você me perdoe, de coração – finalizou ele, com uma voz muito triste.

Minnie não falou nenhuma palavra durante toda a explicação e neste momento, seu
corpo tremia e seus olhos começavam a marejar.

Mickey não tinha idéia de qual seria a reação dela, apenas a certeza que neste
momento seus sentimentos lutavam abertamente contra seu raciocínio. Feliz ou
infelizmente, o vencedor apareceria em momentos.

Subitamente ela se levantou e socou a mesa, talvez para não socar o nariz dele. No
instante seguinte, arfando e com os olhos marejados encarou o detetive.

– Muito bem, agora é minha vez e eu não quero ouvir um "A" enquanto eu estiver
falando, ok?! Não me interrompa e nem diga nada até eu acabar!

– Tudo bem, tudo bem – respondeu ele com receio.


– Sua explicação é perfeita, mais perfeita que uma escultura de Rodin. E sua lógica
faria inveja ao Sr. Spock.

– Mas o senhor se esqueceu de alguns detalhes importantes, então permita-me


lembrá-lo! – falou aproximando o rosto ao mesmo tempo em que socava a mesa
novamente.

Mickey estava atonito.

– Primeiro, seu médico avisou claramente que qualquer esforço estava proibido,
pois você podia sentir-se mal a qualquer momento. Imagine você desmaiando no
meio do Leste Europeu e capotando o carro que dirige!

Um novo soco na mesa.

– Segundo, o senhor prefere arriscar sua vida em uma viagem ao invés de envolver
a CIA. Não sabia que meu noivo era invulneravel, achei que ele tinha quase morrido
há alguns dias!

Outro murro mais forte.

– Terceiro, você prometeu que em qualquer outra viagem que você fosse, eu o
acompanharia. Ou será que eu havia entendido errado?! E não ouvi o senhor citar
que tem passagem para nós dois!

Mais um murro, no momento em que Mickey engolia seco.

– Concluindo...

Neste instante, Minnie parecia outra pessoa, praticamente perdendo o controle de


sua raiva. Mickey não tinha ideia do que ela faria em seguida e conforme
prometido, não havia dito um "A" até então.

Antes de terminar, ela deixou o corpo ereto e respirou fundo.

– VOCÊ ESTÁ COMPLETAMENTE LOUCO SE ACHA QUE VOU DEIXÁ-LO SAIR


DAQUI SOZINHO! – Gritou ela sem qualquer ressalva.

– Mas... – balbuciou ele.

– EU AINDA NÃO TERMINEI!

Mickey retraiu e calou-se imediatamente.

– Se você tentar sair desta casa sozinho, eu ligarei para a polícia e direi que você
tentou me matar novamente. Talvez te prendam no aeroporto tentando fugir do
país. Quantos dias você acha que vão passar até te soltarem? Acredito que o
suficiente.

Mickey engoliu seco de novo. Ela realmente estava falando sério.

Timidamente ele levantou a mão direita e pediu:

– Posso fazer uma pergunta?

Apesar do aceno positivo, os olhos faiscando de raiva e molhados fizeram o


detetive pesar muito bem as próximas palavras.

– Então você não acredita que eu disse que o Mancha pode fugir? Que é preciso
dete-lo a qualquer custo?

Minnie respirou fundo novamente.

– Eu não disse isso, apenas falei que você não irá sozinho!

– Mas...

– Então, agora, antes do café, ligue para a companhia área e reserve outra
passagem para mim. Vamos pegar aquele assassino e a psicopata que te traiu.

– Mas...

– AGORA!

Sabendo que era inútil discutir, Mickey levantou-se e foi telefonar para reservar a
passagem. Em seu íntimo os argumentos de Minnie o atingiram em cheio.

Como ela deveria estar contaminada com o Mancha Neural, a presença dela
também não seria uma surpresa e em qualquer eventualidade, haveria um plano B.

– Você não vai escapar, desgraçado – foi seu último pensamento antes de pegar o
telefone.

Terça-Feira, 18 de Março, 19:00...

– Senhores passageiros com destino a Paris, vôo FJ3513, embarque imediato no


portão dois.

– Vôo PO5434 proveniente de Sidney, desembarque no Terminal dois.

Os auto falantes no Aeroporto Internacional de Nova Patópolis não silenciavam


nem por um minuto.
Dezenas de vôos aterrisavam e decolavam a cada hora, com os controladores
agindo como maestros de uma sinfonia orquestrada e sem erros.

Para quem aguardava um vôo ou alguém, os terminais eram bem supridos de


opções gastronômicas e culturais.

E era em uma das filiais da StarDucks que Mickey comprava duas unidades do
Mocha, uma bebida gelada com café e chocolate.

Ainda faltava uma hora para o voo, então eles podiam relaxar e beber algo gostoso
antes de entrarem na área da alfândega.

– Senhor Mickey – chamou a moça que montou o pedido do detetive.

– Obrigado – disse ele, pegando os copos e seguindo em direção as mesas.

– Aqui está, Minnie – falou, colocando o copo em frente a ela, que estava sentada.

– Obrigada Mickey – respondeu ela com ironia.

– Espero que você esteja feliz, pois está aqui comigo.

– Claro que estou. Como disse, sozinho você não iria – retrucou, bebendo o
primeiro gole de sua Mocha.

– Eu não tive escolha, mas ficaria mais tranquilo com você aqui.

– Que coincidência, eu também! – foi a resposta, bebendo novamente seu café.

– Tá bom, chega de discussão – desistiu Mickey, enquanto se sentava e tentava


aproveitar sua bebida.

Após alguns minutos de silêncio constrangedor, Minnie decidiu quebrar o gelo:

– Vai dar tudo certo. Eu confio em você e sei que vai conseguir parar aquele louco.
Só não sei como vamos embarcar com isto – concluiu ela, apontando para uma
bolsa cinza que estava em cima de uma pequena mala.

– Obrigado pela confiança. Quanto a isto, não precisamos despachar a mala, irá na
nossa mão. E a bolsa cinza, vou direto na polícia federal e despacho junto a eles,
com minha autorização da CIA. Ainda está no prazo e como quase ninguém faz
isso, é bem rápido.

– Espero que você não precise usar – comentou ela com um olhar preocupado.
– Eu também, mas considerando aquele louco e a agente Bykov, talvez não tenha
opção.

– Você nunca superou totalmente aquela vez que precisou matar, não pense que
eu esqueci.

– Sim, mas foi para salvar a Karen e agora, talvez seja para salvar o mundo. Não
tenho o luxo de hesitar, existe muita coisa em jogo.

A melancolia de Mickey era palpável e o não entendimento exato de seus


sentimentos quanto a isso, faziam as palavras de conforto de sua amada não
serem efetivas.

– Senhores passageiros com destino a Kiev, vôo KM7594, acesso liberado pelo
portão cinco.

– Vamos lá – falou o detetive com determinação.

Minnie levantou-se e o seguiu, pegando os copos e jogando-os no lixo.

Dali eles passariam pela polícia, acessariam a alfândega, apresentariam o


passaporte e seriam liberados para entrar no avião, que decolaria as 20:00 hs.

Minnie sabia que seu amado se preocupava com ela, mas em seu íntimo, preferia
compartilhar de seu destino ao invés de ficar em casa angustiada, aguardando um
telefonema.

Mas Mickey preocupava-se com inúmeras coisas, sendo a principal, que desta vez,
seu arqui inimigo não poderia fugir e ele deveria dete-lo a todo custo, mesmo que
para isso, ele tivesse que mata-lo.
Capítulo 17 – Confiança

Quinta-Feira, 20 de março, 14:37


Hoje

Mickey acordou. No segundo seguinte, estendeu os braços e vomitou tudo que não
tinha no estômago por três vezes. A sensação era péssima e veio seguida de uma
grande tontura.

Ele não sabia que ficara desacordado alguns minutos e nem se lembrava do que
tinha acontecido. Só havia uma certeza estranha de que devia fazer alguma coisa.

Ainda apoiado nos braços, sentiu algo escorrendo pelo seu rosto, saindo do nariz e
ouvidos. Era sangue fresco que começou a pingar na sua frente.

Seus tímpanos sofreram lesões, o que causava uma dor lancinante dentro do
ouvido. Em seu nariz algumas pequenas veias se arrebentaram e completaram o
quadro de sangramento.

Aos poucos as lembranças voltaram. Ele havia decidido atirar na porta do jato
aproveitando o elemento surpresa, mas um segundo antes de pressionar o gatilho,
algo o derrubou violentamente.

Mickey não tinha como saber que o avião alcançara Mach 1 e uma pequena
parcela do estrondo sônico fora sentida por ele, que associado a tudo que sofreu
recentemente, quase o matou.

Ainda muito zonzo e com sangue pingando, ele retomou seu caminho em direção a
porta da cabine.

A recordação de que a porta trancada ainda estava lá deixou de incomoda-lo, pois


ele já havia decidido oque deveria ser feito.

A velocidade havia estabilizado então seus passos eram firmes, pois com ou sem
tontura, ele estava chegando.

Após alguns segundos, que mais pareceram horas, ele finalmente estava
posicionado no local ideal.
Sem qualquer hesitação, pegou novamente a arma e apontou direto para o meio da
porta. Ele tinha consciência que ao contrário dos filmes, era quase impossível
arrancar a fechadura com apenas um tiro.

– Minnie, eu te amo... – foi seu último pensamento ao mesmo tempo em que


pressionava o gatilho.

Quinta-Feira, 20 de março, 11:29...

Mais uma manhã no aeroporto Internacional de Kiev estava quase terminando. Os


restaurantes preparavam o almoço e centenas de pessoas caminhavam
apressadamente, entrando e saindo por seus terminais.

Mas para Mickey, aquela agradável manhã causara um deja vu incômodo. Fazia
exatamente vinte dias que o detetive havia estado lá.

E neste momento, após dois dias, vários voos e conexões, um violento jet leg, aqui
estava ele novamente.

As duas únicas diferenças podiam ser definidas facilmente como sendo uma
agradável, ao invés de Bykov era Minnie que estava com ele, e uma péssima, pois
se na anterior nem havia tantas evidências que o Mancha estava envolvido, agora a
certeza era que ele deveria ser detido.

Sem ânimo para falar muito, Mickey já havia desembarcado, passado pela
alfândega e retirado o item especial que havia sido despachada em Nova Patópolis.
A força policial local, ao entregar a bolsa cinza, olhou de forma admirada para
aquele sujeito simples e educado que tinha uma autorização internacional de porte
de arma.

Após tudo, o casal se permitiu sentar em uma cafeteria e pedir um expresso triplo.
Nada como uma boa dose de cafeína antes de seguir para o perigo eminente que
os aguardava.

– Um brinde – falou Minnie, levantando a xicara.

– A que? – foi a resposta mal humorada.

– A nós. Sobrevivendo ou não, conseguindo ou não, estamos juntos, como sempre


foi e sempre será.

A resposta do detetive foi um silencioso toque na xícara de sua amada.

– Minnie, eu...
– Não precisa falar nada – cortou. – Você realmente acredita nisso, não?

– No que?

– Que eu viveria feliz caso você desse sua vida para me proteger.

Mickey engoliu seco.

– Eu prefiro morrer do que permitir que algo de mal lhe aconteça – retrucou com
muita convicção.

– E por que haveria de ser diferente comigo? – foi a resposta com um sorriso e uma
piscada, enquanto ela tomava seu café.

Mickey ficou pensativo por alguns momentos. Em seguida, retomou o assunto.

– Não seja fatalista. Temos o elemento surpresa, não tem como dar errado. Vamos
deter este louco e voltar para casa juntos.

– Eu sei, não estou preocupada com isso. O fato de dividirmos o mesmo destino já
me basta, por isso, vamos voltar para casa e você não vai mais escapar.

– Escapar?

– Senhor Mickey Mouse, após voltarmos, eu vou te perguntar uma coisa e não
aceitarei nenhuma outra resposta que não seja um "sim".

– Perguntar o que?

– Já disse, após voltarmos, em casa, só nós dois. Se quer saber o que é, trate de
voltar comigo – foi a resposta com outro sorriso.

– Chantagista – concluiu o detetive rindo, enquanto terminava seu café.

– Bom, mudando de assunto, o que faremos agora? – questionou Minnie após o


último gole.

– Vamos alugar um carro e depois seguiremos até o esconderijo dele. Vai demorar
algumas horas, mas iremos tranquilamente.

– E como você pretende chegar lá sem um mapa?

– O mapa está aqui – respondeu Mickey, apontando para a própria cabeça.

– Uia! Você guardou ele dentro da orelha? Como é esperto – disse ela rindo.
– Engraçadinha. Eu não tinha certeza como iria sair de lá, então fiz questão de
decora-lo. Cada estrada, cada curva tem um ponto de referência na minha cabeça.

– Muito bom, por isso que sinto orgulho do meu "Detetive das Trevas".

– Quê? Não seja ridícula.

– Enquanto você não falar: "eu sou a noite"... eu prometo não rir.

Após este claro deboche, o casal se encarou por alguns segundos


constrangedores, mas em seguida não conseguiu conter uma deliciosa risada.

– Bom, que tal fazermos um acordo? – o detetive retomou a conversa.

– Sou toda ouvidos.

– Em agradecimento a todo o seu amor, compreensão e companheirismo, vamos


deter aquele louco, retornar para casa, e...

– E?

– E eu prometo que não importa qual seja a sua pergunta ou o que você queira,
uma viagem, um presente ou um tempo a sós. A resposta será simplesmente SIM.

Os olhos de Minnie brilharam ao ouvir isso.

– Olha, eu não vou esquecer o que você disse agora.

– Não precisa. É uma promessa e terei todo o prazer de cumpri-la.

– Combinado – concluiu ela, sorrindo e estendendo a mão direita.

Mickey esticou o braço, pegou a mão de sua amada e após dois balanços, a puxou
em direção ao seu rosto, beijando-a delicadamente.

– Então vamos? Quanto antes terminarmos isso, mais cedo poderei cumprir minha
promessa.

– Vamos – respondeu ela decididamente enquanto se levantava.

Os próximos passos já estavam decididos. Alugaram um carro, guardaram no porta


malas a pequena bagagem de mão juntamente com a bolsa cinza e seguiram pela
rodovia principal.

Em seu íntimo, Minnie sabia que somente detendo o Mancha Negra ela poderia ter
a vida a dois com a qual sempre sonhou.
Já Mickey tinha certeza absoluta que devia a Minnie uma vida tranquila, sem
grandes preocupações ou problemas.

E com esta sincronia de pensamento e objetivo, ambos seguiam juntos, dando


forças um ao outro. E este vínculo inquebrantável não permitia que aflorasse neles
o instintivo medo da morte, a terra desconhecida de cujo âmbito ninguém jamais
retornou.

Quinta-Feira, 20 de março, 13:19...

Em um pequeno cômodo, com uma cama e sem qualquer conforto, Natasha Bykov
estava pensativa.

Ela sabia que tecnicamente havia traído seus empregadores, mas não era a
possivel detenção em uma prisão federal que a preocupava.

Quando ela reencontrou Dmitri, haviam duas opções, prende-lo como queria a CIA
ou matá-lo como ordenara o governo de sua terra natal. Mas ela não conseguiu
fazer nem uma coisa nem outra.

Após tanto tempo, ela precisava ouvir mais, entender tudo que ele estava fazendo
para então se decidir.

O que ela não esperava era que Dmitri mandaria o agente Mickey de volta para os
Estados Unidos. Ela havia imaginado que ele ficaria preso, e após sua decisão do
que fazer com seu velho amigo, bastaria solta-lo.

Ela começou a se simpatizar com aquele famoso e tagarela detetive de cidade


pequena, mas agora era tarde demais até para uma simples amizade, pois ele
nunca a perdoaria.

Agora, além da preocupação óbvia com o próprio Mickey, Bykov sabia que qualquer
coisa que ele fizesse, conscientemente ou não, a culpa na prática seria dela.

Toda vez que Natasha questionava Dmitri, ele pedia para confiar nele. Mas ela
realmente podia lhe dar este voto de confiança?

– Ele planeja e faz tudo sozinho, como confiar em alguém assim?

– Droga, Dmitri... – pensou ela, enquanto esfregava os olhos, tentando suprimir


uma pequena lágrima.

Natasha Bykov só não poderia imaginar, que em breve, muito em breve, ela teria
que decidir o que fazer, e que esta decisão mudaria o rumo de sua vida.
Quinta-Feira, 20 de março, 14:04...

A sempre tranquila floresta que ficava nos arredores daquele galpão, estava
terrivelmente silenciosa naquela tarde. Como se pressentissem o derradeiro fim que
se aproximava, os pássaros mantinham um silêncio sepulcral.

E foi neste ambiente quieto, cuja ausência de som chegava a incomodar, que
Mickey parou o carro a uma certa distância de seu objetivo.

Após várias horas sem descanso ou pausas, eles finalmente chegaram ao


esconderijo do Mancha, o galpão onde tudo terminaria em breve, de uma forma ou
de outra.

– Amorzinho, não querendo ser chata, eu acredito que você deve fazer uma coisa.
– disse Minnie, quebrando o silêncio que fora mantido desde que seu amado
comentou há cerca de quinze minutos, que eles estavam próximos.

– Deixa eu adivinhar. Você acha que devemos ligar para a CIA – retrucou sem nem
pensar.

– Nossa, como sabe? – foi o questionamento, em um tom que não disfarçava a


surpresa.

– Digamos que é a coisa mais lógica a se fazer. Caso sejamos capturados ou


mortos, eles precisam saber onde está o Mancha. Viu como pensamos parecido? –
concluiu Mickey com um sorriso.

– Dá até medo, né?

– Sim, mas vamos lá, meu telefone está plenamente carregado, então ligarei para
aqueles agentes e pedirei que triangulem nossa posição. Mas espero de coração
que não seja necessário, pois tenho certeza que a chegada de um aparato policial
faria o Mancha fugir.

– Vamos conseguir sim, amorzinho – concluiu ela, segurando a mão de seu amado.

Pegando o cartão guardado na carteira, Mickey segurou firmemente seu celular e


teclou o número contido nele juntamente com todos os dígitos necessários para
uma ligação internacional. Em seguida aguardou pacientemente enquanto tocava o
sinal de chamada.

– Anderson – foi a voz que o detetive ouviu após três toques.

– Boa tarde agente Anderson, aqui é o Mickey, de Ratópolis, lembra? – disse ele
com toda a simpatia possível.
– Claro, como não lembrar. Como está senhor Mouse? Imagino que esteja gozando
de excelente saúde, já que decidiu tirar longas férias.

– Férias? Como assim? – indagou Mickey sem entender realmente.

– Considerando que o senhor está em Kiev, não consigo imaginar outro motivo que
não sejam férias – conclui Anderson em um tom muito irônico.

Mickey empalideceu.

– Mas o que posso fazer pelo senhor? – foi a pergunta disparada em seguida.

– Eu, eu... queria avisar...

– Deixe eu adivinhar – cortou secamente o agente.

– Do nada, o senhor lembrou onde está escondido o facínora do Mancha Negra. E


decidiu heroicamente captura-lo. E antes deste ato que o colocará nos jornais,
decidiu avisar aos incompetentes agentes da CIA para irmos limpar a sujeira.
Acertei?

Mickey travou completamente.

– O que houve? – perguntou Minnie preocupada.

– Mas o senhor não imaginava que iriamos monitorar seu passaporte e nem que
mandariamos colocar um localizador no seu carro alugado, não é verdade?

– Não... não... deixe-me... – balbuciou Mickey tentando se explicar.

– Não se incomode. Considerando tudo que o senhor passou, não iremos acusa-lo
de obstrução da justiça. Estaremos chegando com uma força tarefa imensa em
cerca de quarenta minutos.

– Não... não faça isso...

– Por favor não faça nada até chegarmos – foi a última frase dita antes do telefone
ser desligado.

– Não... espere... não... – tentou falar Mickey, entrando em desespero.

– O que houve? – perguntou Minnie novamente – Fale!

– Eles... a CIA... eles... estão vindo para cá... eles nos seguiram... sabem onde
estamos... não pode ser – balbuciou Mickey sem realmente acreditar.

– Meu Deus! – foi a resposta sussurrada por ela.


– Eles não sabem o que estão fazendo... assim que chegarem aqui... ele vai fugir...
ou haverá um massacre... e a culpa será minha... não, não, não! – se desesperava
cada vez mais o detetive.

– Calma amorzinho, ainda temos tempo, não é?

– Sim, só existe uma alternativa. Vamos seguir com o plano. Sim, sim...

– Então calma... por favor se acalme e mantenha o foco – pediu ela gentilmente.

– Sim, está tudo muito claro. Quando eles chegarem, já teremos detido o Mancha
ou pelo menos ganharemos tempo. Ainda está comigo? – perguntou ele apenas
para ouvir o que já sabia.

– Sempre.

Quinta-Feira, 20 de março, 14:07

De mãos dadas, o valente casal decidiu agir o quanto antes. O fato de estarem
juntos, concedeu a cada um, uma força que sozinhos não possuiriam.

Ainda dentro do carro, Mickey abriu sua bolsa cinza, cujo conteúdo era uma caixa
de madeira pesada e feita sob medida.

Ao pegar a caixa e abri-la, o detetive viu uma das coisas que mais abomina na vida,
mas que infelizmente era necessário neste imprevisível cenário que enfrentaria em
seguida.

Duas pistolas 9 mm semiautomáticas, dois pentes soltos carregados e uma caixa


de munição adicional.

Com movimentos perfeitos, Mickey colocou o pente em cada arma, soltou a trava
de segurança do cão e carregou o primeiro projétil na câmara, desengatilhando
cuidadosamente em seguida. As pistolas estavam carregadas e prontas para
disparar em questão de segundos.

Mesmo não gostando de armas, de tempos em tempos, Mickey e Minnie faziam


diversos cursos de tiro esportivo em Ratópolis.

– Pegue – falou Mickey, entregando uma delas a Minnie.

– Obrigada, espero que não precisemos – comentou ela apreensiva.

– Eu também.
Após um olhar de cumplicidade que lhes era característico, ambos saíram do carro
e se prepararam para invadir o local.

Nos minutos seguintes e com toda a atenção, o casal seguiu cautelosamente até o
galpão, em direção a porta pela qual Mickey entrou da outra vez, que por sinal era o
unico acesso visível.

– Deve estar destrancada – Mickey sussurrou para ela.

– Como sabe?

– Excesso de confiança. Mas desta vez ele não espera uma visita – explicou o
detetive.

Confirmando sua intuição, ao girar o trinco, a porta simplesmente abriu. E antes que
notassem, ambos estavam dentro do galpão.

Tudo estava exatamente igual, uma sala vazia com apenas uma porta na parede
oposta a entrada. Rapidamente eles seguiram até lá, abriram e acessaram o
próximo cômodo.

Da mesma forma, nada havia mudado, a escada que levava a uma porta fechada
continuava lá. Lembranças ruins voltaram a mente do detetive, pois foi nesta
escada que o Mancha havia feito sua aparição.

Com um aceno de mão, Mickey indicou que iria na frente e que deveria ser seguido.
Com passos leves, eles subiram a escada atentos a qualquer som diferente.

Em frente a nova porta, Mickey engatilhou a arma, e girou a maçaneta. Como a


anterior, também estava destrancada.

Ao entrar neste novo cômodo, um arrepio horrível subiu da espinha até o pescoço
do detetive.

Apesar de não haver ninguém, ali era o laboratório onde ele acordara naquele dia.
Por estar amarrado na ocasião sua visão estava limitada, mas agora era possível
ver a quantidade de itens disponíveis ali.

Desde o básico como buretas, placas de petri, béqueres, frascos de erlenmeyer,


bicos de bunsen, pipetas e tubos de ensaio cheios de sangue, juntamente com
equipamentos avançados como centrífugas, autoclaves, deionizador, estufas,
refratômetro, espectrofotômetro, condutivímetro e uma máquina de ultrasom.

Não bastasse tudo isso, diversos equipamentos eletrônicos, pistolas de vacinação e


vários microscópios óticos ligados a grandes computadores. Fechando o cenário,
uma infinidade de gavetas, centenas de frascos com reagentes e produtos
desconhecidos, muitos arquivos e uma maca com cordas.
Outro arrepio, mais forte que o anterior ocorreu quando Mickey viu a sua esquerda
uma pequena mesa de rodinhas com pinças, tesoura cirúrgica, facas, bisturis,
costótomos, agulha para sutura e fios.

– Meu Deus, isso é material para autópsia – pensou, sem falar nada para sua
companheira.

Mesmo sendo espaçosa e larga, não havia qualquer janela, apenas uma porta no
canto extremo direito. A iluminação fraca vinha de algumas lâmpadas que se
alternavam entre acesas e outras claramente queimadas.

– Foi aqui que eu fiquei preso e fui contaminado – sussurrou ele – e também deve
ser onde ele desenvolveu o Mancha Neural.

– Estamos no covil da serpente – foi a resposta.

– Mas nada da mamba-negra – sussurrou ele dando um sorriso pelo trocadilho.

– Não sei se acho isso bom ou ruim – sussurrou em resposta sua parceira.

– Vamos até a próxima porta – pediu o detetive, se encaminhando devagar para


sua direita.

Em alguns momentos, a terceira maçaneta destravada estava sendo girada e com


o nível de tensão explodindo, Mickey olhou pela porta. E oque viu era o que nunca
poderia esperar ver naquele momento.

Prendendo a respiração, silenciosamente ele fechou a porta e virou-se para sua


amada.

– Você fica aqui – ordenou ele em um tom grave e decidido.

– Mas por quê?

– Após esta porta, está o último ambiente deste depósito. Ele só pode estar aí e é
melhor que caso algo saia errado, eu possa contar com um plano B.

– Mas como vou saber? – questionou ela contrariada.

– Se ouvir um tiro, você entra. Entendeu? Eu saberei que posso contar com você
neste instante.

– Mas quem garante que quem atirou é você? – insistiu com a voz angustiada.

– De qualquer forma, terei o elemento surpresa. Por favor confie em mim, só entre
se ouvir um tiro. Promete? – concluiu ele, olhando diretamente em seus olhos.
– Ok. – respondeu ela ainda contrariada enquanto engatilhava a arma.

– Muito bem amorzinha. E não pense que eu esqueci da sua "pergunta", depois que
voltarmos para casa.

– Claro que não – foi a resposta, enquanto ela se aproximava para um longo e
carinhoso beijo.

Quinta-Feira, 20 de março, 14:12...

Mickey havia acabado de passar pela porta do laboratório, encostando-a


delicadamente atrás de si.

Em seguida, uma nova escada para baixo o levara para o último cômodo daquele
local.

O que chamou sua atenção de sobre maneira quando abriu a porta, nem foi ver
uma área enorme, de centenas de metros que se extendiam até uma parede com
uma grande abertura, de onde podia-se enxergar muitas árvores.

A surpresa que o deixara desnorteado era a existência de um grande avião negro,


com um layout parecido com os caças Stealth, que são imunes ao radar e voam em
grandes altitudes.

Essa aeronave possuía uma abertura traseira que estava abaixada, oque permitia
ver uma área de carga, onde estava o Mancha agachado, arrumando algo dentro
de uma caixa.

– De onde este maníaco tirou isso? – era a questão sem resposta – Mas de
qualquer forma, é perfeito – pensou enquanto terminava de descer a escada e se
aproximava sorrateiramente

Após trinta segundos caminhando como um felino, Mickey estava próximo o


suficiente da abertura para mirar bem e se fazer ouvir. Agora era a hora desta
loucura acabar.

– Mancha! – foi a única palavra pronunciada.

– O que? – assustou-se o vilão, levantando rapidamente.

– Acabou Mancha! – disse o detetive apontando sua arma direto para o peito do
vilão.
– Não pode ser, você não pode estar aqui, eu ordenei que após contaminar seus
amigos, você deveria ficar na sua casa. Não é possível, não... – começou a repetir
totalmente desnorteado.

– Esta loucura acaba hoje.

– Você não pode ter resistido ao Mancha Neural, é impossível! Como você fez
isso?! – questionou ele com incredulidade.

– Não é da sua conta, o que importa é que logo, logo, você estará dentro de uma
cela. Agora venha aqui para fora, você vai se sentar e aguardar um pouco – disse
Mickey tentando aparentar segurança.

Mickey se afastou alguns passos, dando espaço para o Mancha sair. Se fosse pelo
olhar do vilão, o detetive seria fulminado ali mesmo.

– Não é possível que você resistiu, eu não posso... ter errado... eu tinha certeza
que estava tudo pronto... para salvar o mundo – balbuciava o Mancha, quase
babando.

– Salvar o mundo?! Você acha que infectar algumas dezenas de bandidos, fazendo
que eles matem algumas centenas de pessoas, vai salvar o mundo? Você
realmente está fora da realidade.

– Não, estava quase pronto... o míssil carregado com o Mancha Neural... a


explosão a 500 kms de altitude... a saturação da atmosfera – continuava relatando
o vilão, ainda inconformado.

– Míssil? Realmente você perdeu completamente a sanidade. Agora, o que você


fez com a agente Bykov?

Ouvir este nome o fez voltar a realidade quase que imediatamente.

– Tasha. Sim, ela compreendeu meus planos, ela me apoiou.

– Cade ela?

– Eu não serei detido por ninguém. Eu vou descobrir o que saiu errado e criarei o
Mancha Neural versão 3.0 – já estava falando o vilão, totalmente recobrado.

– Não vai não! Você vai responder por todos os seus crimes, principalmente o
massacre de Nord – afirmou Mickey com convicção.

Neste instante, o Mancha soltou uma risada sinistra que reverberou por todo o
ambiente.
– Eu não consigo acreditar que alguém tão estupidamente ingênuo como você pode
ter me atrapalhado tanto.

– Ingênuo?

– Rato, você não se perguntou nem por um instante, por que quem mandou você
atrás de mim foi a CIA?

– E deveria? – questionou Mickey sem tirar o olho dele.

– Se minha captura fosse uma operação policial, que me levaria a Corte Penal
Internacional em Haia por genocídio, seus empregadores seriam o FBI ou a
Interpol. Por que foi a agência de inteligência?

– Eu... não sei...

– Porque a CIA não me quer preso, seu idiota! Eles querem o Mancha Neural, seu
imbecil! – afirmou o vilão em tom de completa obviedade.

– Você está louco! – replicou Mickey sem ter certeza disso – Para que eles iriam
querer esta coisa?

– Não é óbvio, idiota? Quanto poder alguém teria se pudesse controlar pessoas,
fazendo com que não tivessem nenhuma moral ou escolha? – argumentou
novamente com absoluta convicção.

Mickey hesitou por um momento pois a lógica fazia sentido. Mas agora, o mais
importante era prender o Mancha.

– Não tente me enganar, já disse que isso acaba hoje, seu psicopata. Agora
responda a minha pergunta, onde está Bykov?

– Seu idiota ingênuo, você quer condenar este mundo? – perguntou o vilão
andando em sua direção.

– Pare aí mesmo, senão eu atiro! – foi a resposta enquanto fazia a mira ficar mais
firme – Onde está Bykov?

O detetive estava totalmente focado em seu inimigo aparente, tanto que não
percebeu um detalhe importante atrás dele.

Ao lado de uma grande caixa próxima a parede, havia uma porta discreta, da
mesma cor. Na verdade esta porta não tinha maçaneta e estava apenas encostada,
portanto, ficava praticamente invisível.

Deste cômodo, uma pessoa ouviu a discussão que começara a pouco e após ficar
em conflito por um tempo considerável, decidiu intervir.
E neste instante, essa mulher estava cerca de cinco metros de seu alvo, o
suficiente para responder, enquanto engatilhava uma arma:

– Aqui.

– Agente Bykov...

– Você tem um segundo para desengatilhar, colocar a trava de segurança e lançar


sua arma longe. E eu não vou contar ate um.

Mickey sabia o quão sério ela falava, então simplesmente obedeceu. Em seguida
ergueu os dois braços e virou-se devagar em direção a sua antiga parceira.

– Não posso dizer que é um prazer agente Bykov, mas eu precisava te perguntar
uma coisa. Por que se uniu a este lunático?

– Não é da sua conta, rato – replicou o Mancha.

– É sim, eu confiei em você, lembra-se? Eu era seu parceiro, então tenho o direito
de saber por que você me traiu.

Natasha não respondeu, mas ficou claramente incomodada.

– Se toquei em um nervo exposto, então responda outra coisa. É verdade que a


CIA quer o Mancha Neural?

– Sim, minhas ordens eram recuperar a pesquisa caso existisse. E se fosse meu
desejo, eu poderia matar Dmitri. – respondeu ela friamente.

– E por que não o fez? – insistiu o detetive.

– Já disse que não é da sua conta. Mas é bom que você esteja aqui, pois irei
descobrir como você resistiu ao Mancha Neural. – falou o Mancha com arrogância.

– Agente Bykov, me escute. Eu não acredito que você apoia a dominação mundial
por este louco ou pior ainda, pelos homens que controlam a CIA.

– Como assim pela CIA? – perguntou ela.

– Por favor acredite em mim, a CIA me seguiu e estará aqui em pouco tempo. Você
precisa destruir o Mancha Neural a qualquer custo.

– Mentiroso! – bradou o vilão, sem realmente acreditar.

– É verdade, eles monitoraram meu passaporte e estarão aqui em menos de 30


minutos. Não podemos permitir que o Mancha Neural caia nas mãos de ninguém.
– Tasha? – perguntou o vilão ainda desconfiado.

– Sim, eles fariam isso. – foi a resposta melancólica.

– Maldição, isso é um retrocesso! – praguejou o Mancha.

– Por favor agente Bykov... Natasha... destrua o Mancha Neural e acabe com esta
loucura de uma vez – implorou o detetive.

Natasha não respondeu.

– Tasha, nisto ele está certo, a CIA não pode por as mãos no Mancha Neural. Creio
que sofrerei um atraso no meu cronograma, mas é melhor do que perder tudo.

– Então o que faremos, Dmitri? – questionou ela sem tirar os olhos de Mickey.

– O necessário – respondeu ele, pressionando um botão oculto em seu punho


esquerdo.

Sem ninguém ver, por estar escondido embaixo de um painel no chão, um display
em letras vermelhas se acendeu no laboratório do cômodo anterior, aparecendo a
seguinte mensagem em Russo:

OZHODANII KODA

– November India Charlie Oscar Lima Alfa India Black End – falou o vilão, com a
boca quase encostada no punho.

Imediatamente o display vermelho mudou o texto para:

KOD PRINYAT

E em apenas dois segundos, começou a se alterar novamente... e novamente... e


novamente...

10:00... 09:59... 09:58...

– Muito bem Tasha, a pesquisa do Mancha Neural está em um chip implantado no


meu corpo. Já a cópia que está aqui não cairá nas mãos de ninguém.

– O que você fez Dmitri?

– Acionei uma bomba que vai mandar este galpão pelos ares em dez minutos.
Agora temos que ir, o jato pode partir rapidamente.

– Não... você não pode... fazer isso – disse o detetive começando a tremer.
– Por que não? Você mesmo disse que a CIA não podia pegar o Mancha Neural.
Vamos Tasha?

Mickey pensava na segurança de Minnie, pois ela não sabia que tinha apenas dez
minutos para fugir. Já o Mancha não podia escapar, então o que ele deveria fazer?

9:36... 9:35... 9:34...

– Ah sim. Tasha, este maldito me atrapalhou pela última vez, mas o erro foi meu ao
ser benevolente. Felizmente posso corrigir isso agora mesmo, mate-o e vamos
embora.

Tanto o detetive quanto Bykov engoliram seco.

– Dmitri... eu...

– Vamos, mate-o logo, não há tempo.

A agente Bykov manteve a mira em seu alvo, mas o dedo indicador não conseguia
se mexer.

– Agente Bykov... Natasha... eu não sei o que você sente por ele e não precisa me
contar. Mas por favor, o que está acontecendo aqui é muito maior do que seu
sentimento, maior até que nossas vidas. Estamos falando de genocídio e
dominação global. – falou Mickey tentando parecer calmo.

– Rápido Tasha, mate-o! – quase gritou o Mancha.

– Natasha... Ainda não é tarde demais... Por favor me ajude a terminar com essa
loucura... Precisamos acabar com isso...

Uma nova confusão de sentimentos preencheu o peito de Natasha Bykov.

Ela realmente tinha muitos sentimentos por Dmitri, mas tão grandes a ponto de
permitir que ele dominasse o mundo? As palavras de Mickey a atingiram em cheio,
fazendo retornar as dúvidas que a atormentaram nos últimos dias.

Neste instante, Natasha estava mirando na cabeça dele, com o polegar no cão e o
indicador no gatilho. Com apenas um movimento, tudo se acabaria.

– TASHA!

– Por favor Nata...

Em um instante ela se decidiu, e após Natasha Bykov movimentar apenas um


dedo, o som seco de um estampido reverberou por todo o galpão.
Quinta-Feira, 20 de março, 14:21

A sensação de receber no corpo um projétil de arma de fogo, um tiro, varia muito de


acordo com o calibre e o local atingido.

Se for direto na cabeça, praticamente não há o que sentir, o cérebro irá se desligar
quase que imediatamente. Já no caso de passar de raspão, uma queimação muito
dolorosa vai indicar o machucado.

Mas neste caso, onde o projétil entrou pelas costas, quebrou uma costela,
atravessou o pulmão direito e saiu pelo peito, a sensação pode ser explicada em
diversas etapas.

Primeiro, a vítima não sente nada, somente uma forte pressão, como se algo
tivesse sido empurrado com muita força no local. Este foi o impacto do projétil.

Em seguida o sangue começa a jorrar pelos dois lados, e uma dormência se irradia
a partir do local, causada pela falta de irrigação sanguínea.

Logo depois vem a dor aguda e lancinante, como se ali tivesse sido perfurado por
uma lança, ao mesmo tempo em que a pressão cai rapidamente, ocasionada pela
perda repentina de sangue.

Apesar de parecer demorado, Natasha Bykov passou por tudo isso em pouco mais
de cinco segundos.

Ao olhar para a origem da dor por puro reflexo e ser surpreendida com um círculo
vermelho se formando acima de seu seio direito, a incredulidade não a deixou falar
nada.

Nenhum dos envolvidos naquele terrível drama entendeu o que havia acontecido,
mas no instante seguinte tudo ficaria claro.

Se voltassemos no tempo apenas cinquenta e dois segundos, veríamos que Minnie


havia desobedecido as ordens que recebera.

A angústia de esperar a volta de Mickey a fez entrar discretamente no último


cômodo, e como todos estavam discutindo freneticamente, ninguém a notou.

Do alto da escada, Minnie viu uma mulher apontando uma arma para seu amor. E o
Mancha mais atrás ordenando que ela fizesse algo.

Por segurança, Minnie mirou na cabeça dela, a única pessoa armada, enquanto
pensava o que fazer em seguida.
Mas ouvir em alto e bom som, a palavra "mate-o", tornou sua decisão muito mais
fácil.

Infelizmente Minnie havia acabado de perceber que atirar em uma pessoa era muito
diferente de fuzilar um alvo negro com pontuação, iguais aos que ela acertava
facilmente nos cursos.

Sua mão começou a tremer e foi difícil manter a mira. Com muito esforço, ela
tentava estabilizar o alvo e prender a respiração.

Mas ao ver a mulher movendo a mão que segurava a arma, ela não conseguiu
esperar mais.

Minnie mirou a cabeça e atirou, mas seu nervosismo e aflição a fez errar, atingindo
seu alvo muito mais abaixo.

Retornando a Bykov, ela havia acabado de descer o cão da arma, desengatilhando


com o polegar. Mickey a havia convencido a ajuda-lo, mas não tinha como Minnie
saber disso.

– Dmi... tri... – balbuciou ela, abaixando o braço, cambaleando dois passos e caindo
pesadamente.

– TASHA! – gritou o vilão quando finalmente entendeu o que tinha acontecido.

Os próximos segundos passaram como em câmera lenta para todos.

– Minnie! Atire no Mancha! – gritou o detetive, se lançando ao chão para sair da


linha de fogo.

Ainda tremendo muito, Minnie tentou refazer a mira e disparou três vezes.

Após um segundo de hesitação, o Mancha se jogou para dentro do avião,


escapando por pouco dos disparos.

Enquanto Mickey corria para pegar sua arma, o Mancha corria para a cabine do
avião e Minnie descia a escada correndo em direção a Mickey.

No momento em que Minnie chegou perto dele, o detetive já tinha toda a estratégia
definida:

– Minnie, você precisa sair daqui, tudo isso vai explodir! Leve Bykov com você!

– Explodir??? Levar ela??? Mas...

Repentinamente, o avião a frente deles ligou seus motores.


– Eu a tinha convencido a me ajudar, ela tinha desengatilhado quando você atirou.

– Eu não sabia! Me descul...

Mickey a puxou rapidamente e a beijou, cortando a frase.

– Tudo bem, saia daqui e leve-a! Pode fazer isso?

– Sim, mas...

O avião começou a se mover ao mesmo tempo em que a porta traseira levantava.

– Você confia em mim? – gritou o detetive, quando o som das turbinas começava a
ficar ensurdecedor.

– SIM! – gritou ela.

– Então saia daqui, eu o deterei e voltarei para você!

– EU TE AMO! – foi a resposta com um grito.

– Eu também! – concluiu ele, se virando e correndo em direção ao avião que se


distanciada mais rápido a cada segundo.

Ao mesmo tempo em que a porta já tinha fechado mais da metade, Mickey se


agarrou ao avião e começou a escalar sua fuselagem por uma escada de serviço.

O som era terrível e o movimento do avião dificultava o apoio para subir cada
degrau, mas ele não desistiria.

Ao chegar no limite da pequena escada, faltavam somente alguns segundos para a


porta fechar totalmente. Sem escolha, Mickey se lançou para dentro do avião,
caindo por quase cinco metros e esborrachando-se no piso da área de cargas.

A pancada o atordoou por preciosos segundos, o que permitiu ao avião ganhar


velocidade. Este tipo de jato não precisa de muito espaço para decolar, pois utiliza
o princípio STOVL, igual aos aviões militares que decolam rapidamente de um
porta-aviões.

Após conseguir se levantar, o detetive começou a correr em direção a cabine, mas


já era tarde demais.

Os possantes motores atingiram um empuxo de 300 Km/Hora em questão de


segundos e o jato se lançou no ar quase que imediatamente.

A subida brusca e a aceleração repentina desequilibraram Mickey completamente,


que caiu e foi jogado para trás como uma marionete sem cordas.
A medida que subia e ganhava velocidade, a inércia mantinha o detetive grudado
no chão, que gemia e se esforçava para levantar.

Mas agora não havia volta, apenas ele podia deter os planos insanos do terrível
Mancha Negra.
Capítulo 18 – Confronto

Quinta-Feira, 20 de março, 14:38...

Mickey atirou.

Na cabine, o Mancha Negra ficou ciente da presença do detetive no mesmo


instante.

– Ahhh! MALDITO! – O projétil havia atravessado a porta e atingindo em cheio o


ombro esquerdo do vilão.

– Eu estou te vendo Mancha! – gritou o detetive pelo buraco deixado na porta.

– Venha até aqui e abra a porta! Agora! Estou apontando para a janela da sua
cabine e você sabe o que uma bala pode fazer nela não é?

– Mal... dito... – gemeu ao se levantar. Ele sabia que um tiro na janela naquela
velocidade iria causar uma descompressão que mataria os dois.

Alternando entre a incredulidade e o ódio puro e simples, o vilão caminhou devagar


até a porta e a abriu.

– Ótimo, agora não tente nada – falou o detetive apontando para a cabeça dele.

– Como é... possível? Você não podia... estar aqui... – gemia ele enquanto tentava
deter o sangramento no ombro com a mão.

– Eu também... não sei... mas estou... e agora... você vai se sentar na cadeira... do
piloto... e me obedecer... – falou Mickey tentando manter o foco.

– Então o herói pegou o vilão, não é? O herói e sua companheira... que atirou em
uma mulher pelas costas e a deixou para morrer.

– Você é o culpado... pela agente Bykov estar lá... ameaçando minha vida... Minnie
não teve escolha – retrucou.

– Claro que não... a vida dela não valia nada para vocês.

– Não a deixamos para morrer... Minnie a tirou de lá... e agora, vamos voltar.

Um alívio indescritível tomou a mente do Mancha, mas esta sensação boa não
durou mais que cinco segundos. Com muita raiva, ele voltou a vociferar:

– Você não entende, seu maldito! Este mundo... precisa ser salvo! Como pode ter
objeções a isso?
– Talvez você esteja certo... mas matar quem você considera indigno... e
transformar o resto em escravos... é a solução errada.

– ENTÃO QUAL É A SOLUÇÃO? DIGA-ME!

– Eu não... sei...

– VOCÊ NÃO SABE DE NADA! Você tem idéia do quanto o ser humano pode ser
podre e ruim?

– Não importa...

– IMPORTA SIM! Você vive sua vidinha de conto de fadas no subúrbio, caçando
ladrõezinhos que nem andam armados. Como poderia entender?

– Mancha...

– NÃO! Agora você vai ouvir! Eu vivi mais de cinco anos destrinchando a maldade
humana, vendo o horror que alguém pode fazer a seu semelhante por estar com
fome, medo ou simplesmente seguindo ordens.

– ...

– Após a guerra eu me debrucei em inúmeros estudos e a conclusão é uma só,


NÃO EXISTE SALVAÇÃO!

– ...

– Eu nunca quis o mal da humanidade, todas as minhas ações visavam conseguir


dinheiro... para um dia garantir a paz duradoura.

– Mancha... eu...

– Me deixe salvar o mundo! Só eu posso fazer isso, seu desgraçado!

O detetive cambaleou por um momento. Ele tinha que tomar muito cuidado, pois um
desmaio agora seria fatal.

– Mancha... sente-se na cadeira do piloto... se eu sentir que vou desmaiar, minha


última ação será atirar na sua cabeça.

Um urro inumano nasceu na garganta do vilão, mas mesmo consumindo pelo ódio,
ele obedeceu.

Após se sentar, ele sentiu o toque do cano da arma no meio de seu pescoço.
– Muito bem... diminua a velocidade para a metade. – foi a primeira ordem.

O vilão pressionou alguns botões e a medida que a velocidade caía, um display que
começou indicando o número 807 estabilizou em 403, que sem Mickey saber,
indicava a velocidade de milhas por hora.

– Mais alguma coisa, senhor herói? – resmungou contrariado, suprimindo um


gemido de dor pelo braço baleado.

– Agora... programe o piloto automático... faça o avião voltar para o local de onde
saímos... programe a rota e o pouso... de forma que você não precise... mais mexer
nos controles – ordenou Mickey, se esforçando para manter a concentração.

– O caminho de volta é bem longo, seu maldito – pensou o vilão, enquanto mexia
nos controles.

Mickey tentava a todo custo se manter impassível, mas seu corpo não estava
ajudando.

Já o Mancha sentia um pouco de sangue escorrendo por dentro do uniforme negro,


associado a uma dor latejante nos ossos do ombro, bem no local onde o projétil
havia-se alojado.

Depois de algum tempo pressionando botões, girando dimmers e digitando


coordenadas, três sinais sonoros curtos e rápidos se fizeram ouvir.

– Pronto rato maldito! A rota está definida, só falta pressionar este botão para ligar
o piloto automático – disse o Mancha apontando para um botão grande, tipo um
interruptor.

– Muito bem... saia daí e vá para a área de carga. Eu vou fechar a cabine e nos...
levar de volta.

– É sua última chance, rato desgraçado! Se voltarmos a CIA vai me torturar até
conseguir o Mancha Neural e como saber o que acontece depois? Se eu escapar,
vai demorar anos até eu ter condições para fazer qualquer coisa. Qual será sua
decisão?

Era difícil para Mickey pensar, mas neste caso, não era necessário.

– Desculpe, mas meu conceito de salvar o mundo é bem diferente de transformar


todos em zumbis lobotomizados. Agora saia dai e vá para a área de carga –
respondeu o detetive com firmeza.

– Tudo bem, a decisão foi sua – balbuciou o Mancha, pressionando o botão do


piloto automático.
O Mancha não mentiu, a rota para voltar foi estipulada devidamente e tinha
acabado de ser efetivada, mas o que ele não contou, é que programou a curva de
retorno com uma guinada totalmente fechada para a esquerda.

O movimento brusco do avião jogou Mickey para trás, tirando sua mira da cabeça
do vilão.

Como uma serpente dando o bote, o Mancha pulou e acertou Mickey


violentamente, que sem querer, lançou a pistola para fora da cabine.

Os antigos inimigos atracaram-se, machucando-se mutuamente enquanto o avião


continuava a curva.

No momento em que a aeronave se endireitou, já estava muito claro de quem era a


vantagem.

Mickey estava no chão tentando reagir enquanto era socado sem piedade. Murros
na cabeça, peito e estômago, sem qualquer pensamento racional, apenas o instinto
puro e simples de alguém que tentava matá-lo.

Mas de repente, uma pontada fortíssima no braço, juntamente com uma tontura
absurda, fez tudo parar.

– Eu devia ter te matado... rato maldito... – arfava o Mancha, tentando se apoiar.

– Mas você... não pode. Não é mesmo? – foi a resposta com desdém.

– Como não... posso? Depois eu... que sou louco.

– Eu finalmente entendi tudo... quem diria que o frio e malévolo Mancha Negra
teria... uma fraqueza? – Continuou falando, enquanto se levantava.

– Fraqueza? Qual fraqueza? Eu mato vo...

Mickey não o deixou concluir.

Com um movimento rápido da perna direita, o detetive girou o corpo e acertou em


cheio o estômago de seu inimigo.

– Mal... dito... – praguejou ele, ao cair de joelhos.

– Sim, é isso... você não pode me matar, não é? Desde nosso primeiro encontro...
você não conseguiu me matar...

– Porque você... teve sorte... desgraçado – retrucou o vilão.


– Não... nesta última vez... eu estava a sua mercê... e você não me matou... agora,
tudo está claro.

– Tudo oque?

– No fundo de seu ser... ainda existe uma alma... Dmitri Ivanov está lá... um homem
honrado que não... mataria um inocente a sangue frio.

– ...

– Irônico não? A CIA mandou contra você... alguém que você... não pode matar –
concluiu o detetive, permitindo-se rir.

– Vamos ver se eu não posso te matar, rato desgraçado! – falou o Mancha pondo-
se de pé e avançando novamente.

Um novo movimento rápido, fez Mickey desviar e acertar um murro, com força, bem
em cima do rim direito do vilão, o que bastou para derrubá-lo novamente. As aulas
de Savate que foram feitas em Anderville para distração eram muito úteis até hoje.

– MAL... DITO!!!!

– Acho que chega, não é? Eu... eu... eu... – balbuciou o detetive cambaleando.

O esforço dos golpes anteriores cobrou seu preço, dando a Mickey uma forte
tontura que o fez cair pesadamente.

A dor da queda o despertou, mas não a tempo de evitar que o Mancha retomasse a
vantagem.

Neste momento o Mancha estava por cima dele, desferido diversos socos com o
punho direito. Após o quarto murro, a boca do detetive começou a sangrar.

– Desta vez... você não vai escapar... – grunhiu o vilão ajoelhado, agarrando o
pescoço do detetive e apertando fortemente.

Em segundos, ficou claro para Mickey que era impossível ganhar usando força
bruta. Seu corpo debilitado estava no limite, o que o obrigaria a utilizar-se de um
golpe sujo.

Fingindo que estava tentando se proteger, o detetive recolheu as pernas em


direção a barriga e quando conseguiu apoiar os pés no peito do vilão, a sorte foi
lançada.
Esticando o braço direito, Mickey agarrou e apertou com toda a força o ombro
baleado do vilão, o que o fez dar um urro de dor assustador, enquanto
instintivamente se levantava para fugir daquela situação.

Neste instante, Mickey usou toda a força que restava para empurrar o Mancha em
direção a porta da cabine.

Tentando se equilibrar, o vilão deu alguns passos para trás e caiu gemendo do lado
de fora, permitindo a Mickey, em um último esforço, se levantar e trancar a porta.

– Aca... bou... – balbuciou ele arfando e apoiado na parede.

Não demorou muito, para que o vilão retornasse a porta e começasse a chuta-la
gritando:

– Abra esta porta... maldito! Você vai... condenar o mundo!

Mickey não respondeu, preferiu cambalear até a poltrona do piloto para se sentar e
recuperar as forças.

– Isso ainda não acabou! Eu te mato! Desgraçado!

O aparente fim durou pouco tempo, pois após alguns instantes, o detetive sentiu
seu sangue gelar ao ouvir:

– A arma... onde está a arma?

Mickey havia esquecido, mas a arma que estava com ele havia caído fora da
cabine. Ao imaginar o movimento que o avião havia feito naquele momento,
possivelmente ela havia deslizado até a parte traseira da aeronave.

– Está me ouvindo rato? Eu vou achar sua arma e acabar com você! Isso ainda não
terminou! – gritou o vilão, correndo pela área de carga.

– Não... não... não... o que eu faço? – tentava raciocinar o detetive, olhando


desesperadamente para todos os lados.

Repentinamente uma alavanca chamou sua atenção. Ela estava no meio dos dois
manches e só tinha duas posições possíveis. "FECHAR", na parte superior,
exatamente para onde apontava e "ABRIR", na parte inferior.

Mickey não era piloto, mas tinha uma pequena noção dos comandos na
cabine. Aquela alavanca, naquela posição, com aqueles dizeres, só poderia ser da
plataforma de acesso traseiro da aeronave.

Mas ele teria coragem de fazer isso?


Com este novo jato de adrenalina nas veias, o detetive teve forças para se levantar
e abrir a porta da cabine novamente.

– Mancha, eu imploro, desista! – gritou ele.

O vilão não respondeu, simplesmente continuou correndo pelos fundos da área de


carga, procurando a arma.

– Eu não quero fazer isso! Por fa...

– Aqui está! – gritou o Mancha, se agachando no canto direito do fundo da área de


carga.

– MANCHA!!!!

Sem resposta.

Neste instante, o detetive teve a certeza de não haver escolha.

Se o Mancha voltasse armado até a cabine, ele poderia matar Mickey e fugir. E isso
ele não poderia permitir.

Com um movimento rápido, Mickey fechou a porta novamente e virou-se até o


painel de controle. Chegando lá, segurou a alavanca e com um último pensamento,
a moveu para a posição "ABRIR":

– Me perdoe, Mancha...

Quase que imediatamente, o avião começou a tremer violentamente por causa da


descompressão.

Mickey se desequilibrou e cambaleou de volta até a porta, onde com muito esforço,
olhou pelo pequeno buraco que ele mesmo havia aberto com um tiro.

O Mancha praguejava e tentava se segurar em algum lugar, mas a inclemente


abertura que não parava de aumentar não lhe dava muitas chances.

Apesar da terrível turbulência, o detetive não conseguia parar de olhar o destino


final de seu nemesis.

Após um último movimento brusco, por não haver qualquer apoio, Mickey viu
claramente o Mancha ser arrancado violentamente do chão, desaparecendo
imediatamente na imensidão azul. Esta cena o tocou profundamente e seus olhos
marejaram.

Com o avião tremendo cada vez mais, um unico pensamento ainda o mantinha
consciente:
– Mi... nnie...

Em um último esforço, o detetive se jogou em direção as poltronas dos pilotos,


onde apoiado, estendeu o braço e devolveu a alavanca na posição "FECHAR".

A tremedeira do jato começava a diminuir ao mesmo tempo em que Mickey


sussurrava uma última palavra:

– A... a... ca... bou...

Escuridão.
Capítulo 19 – Paz

Quinta-Feira, 20 de março...

Os próximos eventos seriam didaticamente narrados a Mickey, mais de uma vez,


pelos próximos dias, após ele ter acordado no hospital.

O antigo galpão, esconderijo do Mancha, realmente havia ido pelos ares.

Minnie havia retirado Natasha Bykov de lá e se afastado o quanto pode. A explosão


não destruiu a floresta em volta, mas milimetricamente, queimou tudo que poderia
dar qualquer pista do Mancha Neural.

Quando a força tarefa da CIA chegou, com carros, helicópteros e um caminhão


repleto de soldados, encontrou Minnie tentando deter o sangramento de Bykov. O
agente Anderson gritou diversas vezes que ordenou que Mickey aguardasse, mas
ela preferiu não ouvir, até que os gritos viraram palavrões.

Após uma lacônica consideração sobre onde Anderson deveria enfiar suas ordens
e autoridade, Minnie foi detida para averiguações enquanto Natasha Bykov era
encaminhada as pressas para um hospital local.

Após alguns minutos e sem ninguém esperar, um jato militar pousou delicadamente
sobre os restos do que fora um galpão.

Depois de diversas ordens para quem estivesse lá dentro saísse, serem ignoradas,
uma equipe de assalto arrombou a plataforma traseira e invadiu.

Como não encontraram nada na área de carga, os soldados derrubaram a porta da


cabine com um aríete e ao confirmarem a ausência do Mancha Negra, chamaram
Anderson.

O agente da CIA, que não parava de fumar nem por um segundo, reconheceu
Mickey desmaiado, machucado e sangrando na cabine. Sem qualquer alternativa,
mandou que o levassem para o hospital enquanto procurava por mais alguma
coisa.

Apesar de parecer que isso encerrava a questão, os próximos dias seriam bem
agitados para todos os envolvidos naquele drama, onde o destino do mundo havia
sido decidido pelas ações de uma única pessoa.

A única certeza que todos tinham é que o Mancha Negra havia desaparecido, e que
mesmo com a ausência do corpo, ele com certeza estava morto.
Esta questão em particular assombraria os pesadelos de Mickey por muito tempo
ainda, mas pelos próximos dias, após acordar, a felicidade de estar vivo e de volta
suplantaria tudo.

Já a agente freelancer Natasha Bykov, havia traído seus empregadores, e isso é o


tipo de coisa que a CIA não perdoava. Se sobrevivesse, seria deportada e terríveis
consequências a aguardariam... ou não?

Uma semana depois, no hospital da Academia Nacional de Ciências da


Ucrânia em Kiev...

– Com licença, podemos entrar? – perguntou Mickey, abrindo a porta do quarto


380A bem devagar.

– Claro, a vontade – respondeu Natasha.

Após essa autorização, o casal entrou discretamente no pequeno quarto.

– Já está vestido normalmente, isto quer dizer que está indo embora? – perguntou
Natasha deitada na cama, com a típica camisola de internação.

– Sim, recebi alta hoje e não queria ir sem falar com você – respondeu o detetive.

– Fico feliz pela lembrança. A propósito, Anderson vai deixar que você
simplesmente vá embora?

– Ele não tem escolha, eu fui um civil voluntário, e não tinha qualquer obrigação de
obedece-lo após o fim da minha "missão oficial".

– Pelo pouco que o conheço, ele adoraria te enfiar na cadeia por uns tempos, então
creio que ele não ficou exatamente feliz com o desfecho disso tudo.

– Nem me fale, acho que minha carreira internacional como agente da CIA afundou
na areia da praia – concluiu Mickey rindo.

– Acredite, você não leva jeito pra coisa. Sem querer ofender, não acredito que
você tenha estômago para isso.

– Talvez tenha razão, mas por hora, não tenho qualquer interesse em sair dos
arredores da minha casinha suburbana.

– Está certo, mas antes de falar o que você veio me dizer, me responde uma
pergunta?

– Sim – retrucou Mickey, sabendo do que se tratava.


– Por quê?

– Só falei a verdade, Natasha.

– Verdade?! Você disse para eles que eu estava sendo controlada... que não tive
controle sobre meus atos...

– Mas é verdade.

– Você sabe muito bem que eu não estava sendo...

– Natasha – cortou o detetive – Você estava sendo controlada por algo pior do que
o Mancha Neural. O que te controlou foi um amor doentio e mal resolvido, mas no
último momento, você conseguiu se livrar dele.

– Sim, eu desisti dele e ia te ajudar... mas não é justo. Por minha causa você quase
morreu e quase machucou quem você ama. Eu devo ser castigada, não posso ficar
sem punição.

– Se quer se punir, faça isso realizando seu trabalho melhor do que nunca. Eu
simplesmente te dei uma segunda chance, aproveite.

– Simplesmente... – balbuciou Natasha.

– Como eu posso te agradecer? – insistiu ela.

– Basta perdoar a Minnie, que está morrendo de vergonha por quase ter te matado
– respondeu o detetive, apontando para sua amada, que até então não dissera uma
palavra.

– Só isso?

– Só? – falou Minnie finalmente – Um tiro nas costas que quebrou uma costela,
perfurou o pulmão e quase te matou. Você acha pouco?

– Não, mas foi você que me tirou de lá. Você não me matou, mas sim, salvou minha
vida.

Minnie corou.

– Me de um abraço sua boba – pediu Bykov, estendendo os braços.

Minnie não conseguiu segurar as lágrimas enquanto abraçava Natasha. A angústia


de ter baleado um ser humano havia lhe atormentado por muitos dias.

– Se eu puder fazer algo por você – sussurrou ela no ouvido de Natasha.


– Eu pensarei em alguma coisa – respondeu ela bem baixinho.

Após alguns momentos, o abraço foi interrompido por uma enfermeira, que pediu
licença e carregava uma bandeja com medicamentos.

– Hora dos remédios moça – disse ela entregando um copo com alguns
comprimidos.

Após serem engolidos, a enfermeira completou:

– Preciso conferir seus curativos.

– Quer que eu saia? – perguntou Mickey por reflexo.

– Falando assim, você nunca me viu trocando de roupa no nosso quarto, sempre de
canto de olho. – respondeu Natasha com toda a naturalidade.

A enfermeira não entendeu a frase e não disse nada, simplesmente abriu a


camisola e fez seu trabalho.

Mickey estava corado e evitou olhar para Minnie, oque não impediu dela cutuca-lo e
encara-lo com um olhar do tipo, "Como assim?".

Prendendo a respiração, o detetive fez um sinal com o dedo indicador,


tentando dizer que explicaria "depois".

Após todo o procedimento, a moça de branco se despediu e saiu do quarto com um


sorriso contido, tentando imaginar as próximas cenas da novela que ela havia
começado involuntariamente.

– Bem, já perguntei o que eu queria. Pode falar, mas já imagino o que seja. – disse
Natasha suspirando.

– Natasha, sobre o Mancha...

– Eu sei, pode ficar tranquilo. Você foi obrigado a matá-lo e isso o está
incomodando.

– Incomodar é uma palavra muito leve. Isso tudo está me consumindo,


principalmente por saber que você o...

– Não diga isso! – cortou ela – Foi este sentimento juvenil e idiota que me cegou
por tanto tempo. E se não fosse por você, minha vida se resumiria agora a uma
cadeia federal.

– Tem razão, mas isso não muda o fato de que fui eu que o eliminei.
– Foi necessário.

– Sim, mas...

– Mickey, creio que você precisa ouvir uma coisa para se libertar disso tudo. Com
toda a sinceridade, eu te perdoo por ter matado o homem que eu amava.

Mickey sentiu-se leve neste instante, pois parecia que haviam tirado 200 Kgs de
seus ombros.

– Obrigado Natasha.

– Não precisa agradecer, só fui sincera.

– E o que você vai fazer depois que sair daqui? – perguntou ele mais animado.

– Não sei. A CIA sempre tem trabalho para uma freelancer que não tem nada a
perder, mas como cumpri a missão passada pelo meu governo, receberei uma boa
gratificação.

– Cumpriu?

– Não importa como aconteceu. Como Dmi... o Mancha foi eliminado, eu poderei
requisitar o pagamento.

– Então...

– Sim, eu preciso de longas férias... talvez eu vá me bronzear nas praias do Caribe


ou meditar em um templo no Tibet.

– Que inveja – comentou Minnie brincando.

– Se quiser, venha também, acho que companhia nunca é demais – respondeu


Natasha de forma sincera.

– Não, estou brincando. Você precisa de um tempo, mas depois disso, venha nos
visitar. Tenho certeza que você adoraria passar um tempo em Ratópolis, e em casa
tem um aconchegante quarto de hóspedes – retrucou ela sem graça.

– Bom saber, prometo que pensarei no caso. – concluiu com um sorriso.

– Bom, vamos terminar de arrumar as malas e ir em seguida. Espero que você


fique bem, Natasha – disse Mickey com uma preocupação sincera.

– Eu estou viva, livre e com o maior problema da minha vida resolvido. Creio que
ficarei bem sim, e devo isso a você – respondeu ela com um sorriso grande e os
olhos emocionados.
– Fico feliz de ter te feito bem – foi a resposta sem graça.

Natasha estendeu os braços em direção ao detetive sem falar mais nada.

Mickey entendeu o recado e a abraçou carinhosamente, o que considerando o


humor dela durante o tempo em que trabalharam juntos, seria algo inimaginável
para ele.

– Obrigada – sussurrou ela, apertando mais o abraço.

– De nada – retrucou, sentindo o quanto ela havia mudado realmente.

Após mais alguns momentos neste abraço caloroso, Natasha falou alto, para Minnie
ouvir:

– Minnie, já pensei no que você pode fazer por mim. Você deve perdoar o Mickey
pelo que farei agora.

– O que você fará? – perguntou o detetive, junto ao ouvido dela.

– Que? – disse Minnie

– Vou te agradecer devidamente – cochichou.

Antes de Mickey conseguir entender, Natasha soltou o abraço e se afastou um


pouco, o suficiente para ficar cara a cara com ele.

Em seguida passou os braços em torno do pescoço do detetive e o puxou em sua


direção.

Sem conseguir evitar, Mickey foi beijado de uma forma tão intensa que
simplesmente não pensou em nada e por puro instinto, retribuiu.

– Ela pensou bem rápido em alguma coisa – balbuciou Minnie, em um tom


incrédulo.

Natasha beijava Mickey de coração aberto e sem esperar nada em troca, pois ela
finalmente estava livre do amor doentio que nutria pelo Mancha Negra.

Sentir o gélido hálito da morte tão de perto e ficar dias imaginando a possibilidade
de uma condenação de prisão perpétua, são experiências que podem mudar
qualquer um.

E agora, aquele homem que a beijava lhe dera uma segunda chance e ela não
devia mais nada a ninguém.
Este beijo era seu grito de libertação, algo que não poderia lhe ser negado, o
mundo seria sua casa e o céu seria o limite.

Já Mickey, experimentava naquele toque um turbilhão de sensações tão intensas,


um fogo que queimava tão forte, uma troca de energia tão poderosa e uma fome e
paixão pela vida reprimida por tanto tempo, que simplesmente não conseguia
resistir, apenas tentava retribuir da melhor forma.

Após quase dois minutos de intensos movimentos dos lábios e línguas, ambos se
afastaram, arfando, com os rostos corados e os corações acelerados.

– Na... ta... – tentou falar Mickey.

– Não... diga... nada – cortou ela, tentando retomar o fôlego.

– Então... estamos... combinadas? – perguntou se virando para Minnie, que até


então estava estática.

Demorou alguns segundos para Minnie conseguir respirar e responder:

– Sim... Você é... surpreendente. Eu gosto disso... eu acho.

Mickey não conseguia pensar direito, só sabia que era melhor ficar quieto, pelo
menos até se recompor. Seu coração ainda pulava no peito ao mesmo tempo em
que lhe faltava ar.

Após alguns segundos de silêncio constrangedor, Natasha respirou fundo e tentou


quebrar o gelo, enquanto se ajeitava na cama:

– Então, adeus meus amigos, adorei ver vocês de novo, mas agora tentarei dormir
um pouco.

– Adeus não, até breve – retrucou Minnie, com toda sinceridade.

– Tchau então – foi a única coisa que Mickey conseguiu dizer, se virando em
direção a porta.

Após sairem do quarto, Natasha ainda conseguiu ouvir Minnie ordenar no corredor:

– Não diga uma palavra!

Mas agora, Natasha Bykov estava sozinha, seu amor e único amigo até então
estava morto, mas ela ganhara novos amigos que viviam do outro lado do mundo.
Quem sabe um dia ela os veria de novo.

Enquanto terminava de se arrumar na cama, um pensamento a fez sorrir.


– Eu consegui Nicolai, fiz nosso amigo parar de se desgraçar. Espero que você
saiba disso e se sinta feliz, onde quer que esteja.

Uma sensação leve e agradável até então desconhecida por Natasha Bykov estava
nascendo em seu peito naquele exato instante.

Ela estava em paz.

Algumas semanas depois, na casa de Minnie...

Mickey e Minnie terminavam de degustar o jantar, um prato simples e leve de


macarrão acompanhado de um bom vinho.

Ela havia cozinhado rapidinho há pouco mais de uma hora, logo depois de um filme
romântico que não foi acompanhado totalmente. Na realidade o casal passou quase
o tempo todo namorando.

Agora, com o estômago cheio, eles podiam conversar um pouco.

– Delicioso, você sabe pescar um homem pelo estômago.

– Não foi nada demais. E você merece após me massagear tanto hoje a tarde.

– Você sabe que adoro fazer isso.

– Sim, quer ir para a sala? Vou recolher aqui e já vou lá.

Mickey concordou com a cabeça, levantou-se e foi até a sala, onde esperaria seu
amor.

Após alguns minutos, ao chegar no sofá, Minnie reconheceu aquele olhar pensativo
e distante.

– Pelo menos agora mudou o motivo – comentou ela sarcasticamente.

– Que? Não entendi – foi a resposta com surpresa.

– Você ficava assim quando pensava na sua amiguinha Karen, mas agora o motivo
é outro – disse ela com obviedade.

Mickey corou.

– Bom, agora que sei o quanto minha amorzinha é observadora, creio que não
adianta negar.

– Tudo bem, já me peguei pensando nela também. Mas posso saber o que está
dentro de sua cachola neste instante?

– Pensando onde ela está agora, sem casa, sem objetivos a longo prazo, sem
responsabilidades com ninguém.

– Ela o impressionou muito, não é?

– Sim, mas no sentido de ser outro tipo de pessoa, alguém que tem uma vida
inatingível para quase todo mundo.

– Deve ser o destino de alguém que perdeu tudo durante a guerra. Eu conversei
com ela um pouco e senti uma imensa melancolia quando ela falou sobre isso –
comentou Minnie

– Verdade. Enfim, espero que ela venha nos visitar um dia.

– Você adoraria não é? – perguntou ela, fingindo ciúmes.

– Já disse, não posso ir contra suas considerações, você me conhece muito bem –
foi a resposta com um sorriso malicioso.

– Então vamos torcer para que ela apareça um dia – concluiu ela o abraçando.

– A propósito, queria sair um pouco amanhã para retomar nossa rotina, os últimos
meses foram bem caóticos – comentou Mickey.

– Deixa eu adivinhar, você quer ir naquela lanchonete onde a garçonete novinha


quase pula no seu pescoço. – foi a resposta em um tom irônico.

– Deixa de ser boba, ela apenas...

– Apenas te admira – cortou Minnie – E claro que você não sabe que a admiração é
apenas o primeiro passo para a atração.

– É só uma menina...

– Claro Sherlock – disse ela com a voz fina e infantilizada.

– Ah, deixa pra lá... ficamos aqui em casa mesmo...

– Você que sabe... não ficando conhecido como o terror das garçonetes – disse ela
com uma gargalhada.

– Prefiro ser conhecido como o terror das agentes da CIA – retrucou ele com ironia.

Minnie ficou quieta por uns segundos, pensando se valia a pena responder isto,
mas preferiu ficar quieta, afinal, ela que tinha provocado.
Após alguns minutos de carinho, Mickey finalmente se lembrou de perguntar uma
coisa.

– Mudando de assunto, quando estávamos na Europa, você me falou sobre uma


pergunta que faria, da qual eu só poderia responder "sim". E até hoje, não sei qual
é.

Minnie sabia que este dia chegaria, mas felizmente ela teve tempo suficiente para
pensar sobre tudo que aconteceu nos últimos meses. Após se sentar
confortavelmente, ela deu uns tapinhas no próprio colo, indicando que Mickey
deveria se deitar.

O detetive não disse nada, apenas obedeceu sua amada, enquanto se


espreguiçava e se ajeitava da melhor forma.

– Sim, eu não fiz a pergunta, mas não é porque eu esqueci, é que, sinto que não é
a hora ainda.

– Como assim?

Minnie respirou fundo, pois sabia que deveria tocar neste assunto com muito
cuidado.

– Mickey, estamos juntos por toda uma vida, você sabe que eu te amo mais do que
tudo, e sinto que a recíproca é verdadeira.

– Com certeza.

– Eu sempre imaginei ter uma vida tranquila a dois, na nossa casinha, sem maiores
ambições do que viver em paz e com um pouco de conforto.

– Parece ótimo para mim.

– Aí de repente você decidiu conhecer o trabalho internacional da CIA. Lembra a


minha primeira reação?

– Você não gostou.

– Sim, por total egoísmo. Porque eu queria você só para mim.

– Eu não ligo.

– Pois deveria. Aí durante a missão você passou a conviver com uma mulher
impressionante, diferente de tudo que já tinha visto. Que fez coisas que eu nunca
faria, que já passou por coisas que fazem nossos problemas parecerem nada.
– Já te expliquei...

– Calma, não estou brava, estou apenas contextualizando – cortou ela, alisando a
cabeça de seu amado.

– Depois ela te traiu, você me atacou, eu quase te matei na banheira, você mentiu
pra CIA, tentou fugir para resolver tudo sozinho, eu quase a matei logo após você
convencê-la a te ajudar, você quase morreu de novo no avião, matou o Mancha
Negra e ainda podia ter ido parar na cadeia.

– Sim, belo resumo. Mas onde quer chegar? – perguntou Mickey sem entender.

– Não acabei ainda, tenha paciência. Após tudo isso, você mentiu pra CIA de novo,
livrou a cara dela e ela ainda o beijou de uma forma intensa que eu nunca vi antes,
sério, fiquei até sem ar enquanto assistia. E pra completar você ficou estranho por
vários dias depois. Obviamente, de uma forma maluca, existe uma atração forte
entre vocês.

– Mas eu já disse...

– Calma – disse ela, cortando-o de novo.

– Então, minha conclusão sobre tudo isso é que pelo fato de que sou praticamente
sua primeira namorada, você ainda precisa experimentar muitas coisas, novas
situações, viagens e até novas amizades.

– Mas o que tudo isso tem a ver? – perguntou Mickey começando a se irritar.

– Tudo bem, vou resumir. No momento em que pensei em te perguntar o que eu


queria, eu estava sendo egoísta e isso não é certo. Por isso, não perguntarei agora.

– Ainda não entendi.

– Não precisa, fique tranquilo que na hora certa, tudo vai se encaixar. Afinal, eu te
amo e isso nunca vai mudar.

Ainda um pouco confuso, o detetive ergueu a cabeça e beijou carinhosamente sua


amada.

– Eu também te amo. Durante a subida do avião, eu só pensava nisso, foi o que me


deu forças.

– Eu sei, você me contou e me deixou muito feliz. Agora descanse e vamos ficar
um pouco aqui juntinhos, só curtindo. Pode ser?

– É o que eu mais quero. – foi a resposta.


– Sim, não é hora para isso – foi o pensamento de Minnie, logo após ele se deitar
em seu colo novamente – ainda existe em seu peito uma necessidade enorme de
aventuras, perigos e sensações.

– Quando esta chama aventureira abrandar, aí ele estará pronto para dizer "sim" ao
casamento. – concluiu seu raciocínio sorrindo, enquanto o alisava.

Já Mickey gastava muito de seu tempo pensando em tudo que aconteceu nos
últimos meses.

O Mancha, que no fundo, bem no fundo era um homem honrado, Natasha, a linda
agente da CIA que vez ou outra arrebatava seus pensamentos, ter a consciência de
quase ter morrido duas vezes, sentir sem qualquer explicação lógica que ele devia
proteger Minnie e ficar sempre com ela e muitos outros detalhes.

Mas ali, naquele momento, ele estava tranquilo, sem pensar em problemas ou no
futuro. Estar com Minnie era a única coisa que importava, já que por tantas vezes
ele imaginou que não a veria novamente.

Sonolento, o detetive estava quase adormecendo tranquilamente no colo da pessoa


que ele mais amava. Alguns segundos antes de se render ao sono, um último
pensamento emergiu em sua mente:

– Guerra, perder tudo, enlouquecer. Após tudo que passou, espero que o Mancha,
digo, que o Dmitri finalmente esteja em paz.
Epílogo

Ele sempre soube que morreria sozinho...

E agora ele caía... sozinho na vastidão infinita do céu... caía a uma velocidade
vertiginosa...

Era difícil pensar... a dor no braço não era nada comparado a agonia que era tentar
respirar...

Estava frio... o ar rarefeito... a dor... tudo se misturava...

E ele caía... sem opção, sem segunda chance...

Fazia tanto tempo que ele havia ouvido aquelas vozes...

– Meu filhinho querido, hoje você vai para a escola, onde terá um futuro brilhante!

– Sabia que eu gosto muito de você?

– Obrigado por salvar minha vida, amigo.

Lembranças invadiam seus pensamentos e tornavam tudo tão caótico...

– Eu prometo que o trarei de volta!

– Eu prometo que a manterei a salvo!

– Eu prometo terminar a guerra!

Tantas promessas... tantos rostos... tanto a fazer... tantas acusações...

– Seu nome será sinônimo de infâmia!

– Confiar no traidor?

– Ele nunca teria aprovado o que você fez!

Tantas frustrações...

– Você é um assassino!

– Você é louco!

– Você é o culpado de tudo!


Tanta dor...

Na noite após o enterro de seu amigo, quando ele chorou por horas, mas ninguém
poderia notar... Sua posição não permitia fraqueza...

Quando olhou para trás pela última vez para seu outrora amado lar, agora reduzido
a um monte miserável de destroços...

Nos dias seguintes após magoar a pessoa que mais o amava, pois ele tinha certeza
que para o bem dela, não poderiam existir vínculos entre eles...

Mas agora ele caía... quase desmaiando...

Na realidade bastava um pequeno toque em um botão oculto na luva direita... só


isto e a salvação viria... mas valeria a pena?

Ele não havia falhado? Com seus pais, seu amigo... Ele estava cansado...

Ele estava muito cansado... não era melhor descansar?

Falhou com ela... Permitiu que ela se ferisse... Talvez ela estivesse morta...

Não é melhor fechar os olhos? Esquecer tudo... finalmente descansar...

Sim, era melhor descansar... ele fechou os olhos... permitiu que a escuridão
chegasse...

Uma escuridão igual ao vazio em sua alma... Uma escuridão convidativa e


desejada... Com os olhos fechados, nada mais era necessário...

Mas sem ele esperar, uma voz foi ouvida:

– Abra estes olhos!

– Quem é?

– Abra os olhos!

– Não!

– Abra os olhos!

– Não! Quero descansar...

– Abra os olhos... toque no botão...

– Não! Acabou...
A consciência se esvaía... como saber o que era real ou apenas fruto de sua
imaginação?

Ele caía... direto para seu descanso... a escuridão o abraçava...

– Abra os olhos... abra os olhos... toque no botão...

– Não!

– Você me deve isto...

– Não!

Ele caía... a sensação estava se tornando agradável... o corpo dormente e a mente


vazia...

– Você precisa terminar o que começou... precisa salvar o mundo... você me deve
isto...

– Preciso?

– Sim, o mundo depende de você... apenas você tem a capacidade de fazer isto...

– Mas eu quero descansar... por favor me deixe ir...

– Ainda não... Em breve, o mundo precisará de você...

– Por favor me deixe ir...

– Tudo a seu tempo... agora, você precisa tocar no botão...

– Para que? Eu falhei com todos que confiaram em mim...

– Nem todos... Aperte o botão...

– Eu sou louco... Todos dizem isso...

– Nem todos... Aperte o botão...

– Mas ela... eu nunca consegui amá-la...

– Eu sei...

– Ela... morreu por minha culpa...

A escuridão insistia no abraço...


– Está enganado... Ela está viva...

– Está?

– Sim... E você precisa falar com ela...

– Eu não falhei na minha promessa?

– Não... E agora toque no botão... Chame-o...

– Ela está viva... Então eu posso descansar...

A escuridão insistia no abraço...

– Não, o mundo depende de você... Se desistir todos vão morrer... Ela vai morrer...

– Eu não entendo...

– Muito em breve... Eles virão para exterminar a todos... Só você poderá dete-los...

– Eles quem?

– Você precisa acha-los... Saberá que são eles...

– Quem?

– Você saberá... E verá ela de novo...

– Sim... eu preciso ve-la... falar com ela...

– Toque no botão... Chame-o agora...

– Sim... sim... sim...

Um simples toque no botão.

A escuridão insistia no abraço...

Quanto tempo havia passado? Um segundo? Dez minutos? Não importava...

Era real? Delírio? Impossível saber... Mas havia a voz...

– Muito bem meu amigo...

– Amigo?
– Sim... Eu vim te dizer para não desistir... Só você poderá dete-los...

– Espere um pouco... Explique... – pediu.

– Não posso... Só posso te dizer isso... Viva e salve o mundo...

– Por favor... – implorou.

– Até breve...

– É você? Responda... – suplicou

– Até breve meu amigo...

– Volte...

A voz sumiu.

– Volte... Volte... Volte...

– Não me deixe sozinho...

– Por favor... não me deixe sozinho...

– Eu sempre soube que morreria sozinho... Tragado pela escuridão...

Repentinamente, em um átimo, tudo chegou ao fim... Com apenas um impacto...

O impacto... Juntamente com um estalo seco de algo se partindo em dois...

O impacto... Forte, repentino, preciso e violento...

Não existiam mais acusações ou frustrações...

Não existia mais qualquer sensação...

Não existia nenhuma dor...

Não existia mais nada...

Apenas o silêncio.

Não havia nada...

Unicamente...

Escuridão.

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