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Ao entrar em contato com a produção visual de Petrillo, a sensação era

de que nada ali era concreto. As imagens e conceitos nos colocavam em


suspensão, pertencendo naquele instante a um novo espaço, interior e
subjetivo, no qual fenômenos de outra ordem podiam acontecer. Imergir
ali era secreto, íntimo, experiência solitária, onde se podia encontrar aquilo
que está dentro. Era um mundo onde as coisas eram diluídas e a matéria já
não estava mais tão firme e sólida, como de costume em nosso ambiente
ordinário; ali era como se pisássemos em solo extraterrestre. Não obstante,
havia naquelas imagens algo de intensa materialidade, uma sensação de
que tudo ali poderia ser encontrado em qualquer lugar físico, do outro lado da
rua, bastava ter os olhos.

O artista lida com um mundo semi-fictício, trazendo a sensação de


que, sim, aquele lugar está aqui, só precisa ser encontrado. O problema é
que aqui não é um conceito puramente espacial, trata-se, também, de uma
localização metafísica, e por isso as obras de Petrillo nos parecem tão
distantes e oníricas, como se fossem mundos-fantasia, onde só se chega com
mágica ou nas costas de um enorme dragão ou uma outra criatura alada. Mas
os não-lugares estão bem aqui. É na pele da pessoa que se ama, no cheiro
do café de um domingo de manhã, na sensação de que a chuva está vindo e
estamos bem abrigados. É no afeto que deve-se buscar o não-lugar de suas
imagens. Nos caminhos secretos do micélio, nas raízes subterrâneas, nas
nervuras de uma folha que acaba de cair, nas veias e artérias de nosso corpo;
nos locais mais orgânicos e terrestres, e que, no entanto, repletos de
memória afetiva, nos conectam uns com os outros.

Para construir, portanto, esse projeto, Petrillo nos emprestou, antes de


tudo, o seu olhar afetivo, orgânico e íntimo, que fundindo-se às nossas poéticas
individuais, criou outras novas conexões. O próximo passo era definir um
recorte de suas obras que mais nos atraiu, onde poderíamos identificar
padrões e definir similaridades. Nas séries “Imateriais” encontramos nosso
principal substrato, em uma delas pelas cores, sóbrias e terrosas, e na
segunda, pelas linhas, orgânicos capilares. Mas toda a produção visual de
Petrillo serviu como norte (sul?), pois, em cada série, um aspecto conversava
com a ideia que já tínhamos elaborado, como, por exemplo, em O arquiteto das
paisagens imaginárias encontramos outros não-lugares, espaços-fantasia, e
também um amarelo que chamava para perto.

O contato e a revisitação frequente de suas obras nos ensinaram a lidar


com o impreciso, o imprevisto, porque a cada linha, a cada gota de tinta
escorrida e mancha que se expandiu, víamos o acaso e a espontaneidade
protagonizando seu processo artístico. Isso nos deu certo conforto e liberdade
para trabalhar, principalmente depois de definido o nosso método e suporte de
criação, que não poderia ser dos mais precisos e planejados.

Conceito e processo criativo

A escolha das roupas de bazar e brechó como suporte foi tanto política
como também foi poética. A produção e o consumo na indústria da moda têm
sido dos maiores geradores de lixo e poluição, sendo, além disso, muitas vezes
responsável por condições insalubres de trabalho em países onde as leis
trabalhistas são mais frágeis. Precisamos repensar nossas relações com o
consumo de moda (mas não só) e também como criadoras, buscando novas
formas de se produzir e adquirir produtos ou mesmo revisitando meios já
esquecidos pelo Mercado de se fazer com as próprias mãos, lenta e
conscientemente.

É preciso pensar uma forma de reeducação no consumo e descarte de


roupas, além de uma nova conscientização em relação às roupas de brechó,
principalmente em nosso país, uma vez que ainda há um imaginário enraizado
de que as peças de brechó podem possuir energias ruins, além do
desconhecimento de sua procedência (ora, e por acaso pensamos na
procedência das roupas que compramos novas, mas produzidas por trabalho
praticamente escravo?). Segundo Lucas Dutra e Victor Miranda, “Por se tratar
de um espaço em que os objetos usados são a forma de auferir lucro, muitas
pessoas acreditam que esses objetos perderam sua função porque um dia
foram descartados.”, por essa razão, o brechó ganhou uma imagem de uma
espécie de depósito, que ainda é muito forte, mas que a medida que nos
reeducamos, vem perdendo força. (2013, p.96)

“Comprar uma peça clássica é mais viável


economicamente em longo prazo, pois uma roupa de fast
fashion em um grande magazine custará mais barato em
curto prazo (pois há pouca qualidade na produção e
materiais utilizados, além de acabamentos e modelagem
inferiores), o que se torna inviável economicamente, porque
precisa ser substituído com mais frequência, ou porque se
tornou obsoleto, ou porque a peça perdeu suas
características iniciais, acarretando dessa forma prejuízos
no âmbito ecológico (consumismo gera lixo) também.”
(BOAS, LEMES, 2012, p.20)

A nossa escolha é política, ressignificamos roupas usadas e as


revitalizamos, resgatamos e as honramos, por toda a sua história, retornando
assim para seu ciclo de vida-útil, precocemente terminado por outras mãos.
Queremos, ao trazer de volta essas peças, fazer com que todo o dispêndio de
energia humana, de recursos e matéria-prima não tenham sido em vão. Mas
nossa escolha também é poética porque há uma esfera potente afetiva na obra
de Petrillo, nossa referência primária, algo de orgânico em suas linhas, formas
e cores, que nos levaram à roupas já vividas, fora do circuito racionalista
instrumental da indústria e do consumo massificado; roupas essencialmente
humanas, cheias de memória e rastros do tempo e do uso que nenhuma roupa
pronta para o consumo rápido possui.

“Se eu vestia a jaqueta, Allon me vestia. Ele estava lá nos


puimentos do cotovelo, puimentos que no jargão técnico da
costura são chamados de "memória". Ele estava lá nas
manchas que estavam na parte inferior da jaqueta; ele
estava lá no cheiro das axilas. Acima de tudo, ele estava lá
no cheiro. (...) Eu vesti a jaqueta de Allon. Não importa
quão gasta estivesse, ela sobreviveu àqueles que a
vestiram e, espero, sobreviverá a mim. Ao pensar nas
roupas como modas passageiras, nós expressamos
apenas uma meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as
roupas que receberam esses corpos sobrevivem. Elas
circulam através de lojas de roupas usadas, de brechós e
de bazares de caridade. Ou são passadas de pai para filho,
de irmã para irmã, de irmão para irmão, de amante para
amante, de amigo para amigo. As roupas recebem a marca
humana. (STALYBRASS, p. 11, 2008)

Definimos, em um primeiro momento, algumas palavras-chave para


guiar nosso conceito e manter a coerência durante todo o processo de criação:
imprevisto, acaso, orgânico, interior/exterior, afetividade e intimidade.
Sabíamos também que a nossa proposta deveria estar alinhada com os
princípios da moda lenta, respeitando os ciclos de vida da roupa e da natureza
e honrando sua utilização. Desta forma, surge a ideia de um método de
tingimento natural das peças, um projeto antigo que uma de nós já queria
colocar em prática há algum tempo. O problema do tingimento natural era que
a cor imaginada não poderia ser precisamente atingida, e por isso, não
poderíamos definir uma paleta de cores antes da realização da tintura. Cada
tecido absorveria os pigmentos naturais de uma forma, além de a
disponibilidade de cores ser mais limitada. Foram feitos testes de cores
possíveis uma semana antes, para minimizar os acidentes, mas o resultado
final continuou sendo uma surpresa.

A descoberta de corantes sintéticos em 1856 por William Perkin fez com


que os corantes naturais se tornassem subestimados ao ponto de praticamente
não serem mais usados. Uma das maneiras de reduzir a poluição gerada pelos
resíduos da água utilizada para processar e tingir os tecidos que serão
utilizados para a confecção de vestuário é utilizar métodos de coloração
naturais, isto é, pela química verde que é o projeto, desenvolvimento,
implementação de produtos químicos e processos para reduzir ou eliminar o
uso e a geração de substâncias perigosas para saúde humana e o meio
ambiente. São retomadas técnicas milenares de tingimento tradicional com
recursos encontrados na própria natureza. O mais interessante do tingimento
natural é que, por demandar grande quantidade de material vegetal para o
processo, seu uso em escala industrial não é tão interessante, o que faz com
que sejam produzidas menos peças e com maior exclusividade, criando laços
entre o consumidor e o produto final, que não será de rápido descarte.

A artista Sasha Duerr, fundadora do Permacouture Institute em 2007,


afirma que o uso de matéria vegetal para o tingimento harmoniza mais
facilmente as cores entre si, devido à maior complexidade da cor produzida,
uma vez que ela é formada por mais de um “pigmento”, enquanto que os
pigmentos sintéticos são menos complexos, sendo compostos de apenas um.
Para ela, a arte tingir com as plantas é como cozinhar, e as cores produzidas
respeitam as estações do ano, pois são utilizadas plantas de sua época
própria.

A cor é um dos fatores mais importantes na venda de uma


peça, porém nos processos de tingimento industriais é a
natureza que fornece seus “recursos” para abastecerem as
tecelagens, como por exemplo, no mundo todo estima-se
que a indústria têxtil usa 378 bilhões de litros de água por
ano. (FLETCHER; GROSE, 2011, p. 37).

Em prática

A primeira etapa da criação foi imaginar que modelos de roupas seriam


mais pertinentes de serem buscados nos bazares, pensando também nas
cores, uma vez que seriam tingidas. Foram feitos croquis iniciais, antes da
busca, para criar uma noção visual de como se comportariam as peças. Assim,
ficou decidido que as roupas a serem procuradas seriam de fibras naturais
(para que o tingimento e a tinta fossem eficazes), camisas sociais de cores o
mais claro possível, como branco e bege, além de calças coringa na paleta de
cores imaginada.

Optamos, pela praticidade de locomoção, bazares localizados no bairro


São Pedro, e não houve grande dificuldade em encontrar as camisas
desejadas. Estavam um pouco sujas e empoeiradas, mas tudo se resolveu na
lavagem. O principal problema encontrado foi o preço, acima do esperado,
considerando o estado das camisas e a estrutura do local, mas o tempo não
nos permitiu fazer muitas buscas, e portanto, saímos com uma camisa por R$
10,00, uma por R$ 5,00, e uma calça por R$ 10,00. O resto das peças
utilizados pertenciam às integrantes, respeitando os nossos princípios de não
gerar mais lixo, usando o que tínhamos a nossa disposição.
Para tingir as camisas, foi escolhida a casca de cebola, que ira conferir
um tom amarelado, mas não um amarelo vibrante como conseguimos com o
açafrão. A escolha foi feita em cima de uma possível paleta de cores, mas
também pela facilidade de ser encontrada, de modo que aproveitamos as de
nossas casas, recolhemos em um restaurante do bairro, como também em
uma escola municipal. As cascas foram fervidas em um tacho de alumínio por
30 minutos, depois acrescentamos três colheres de sal, funcionando como
mordente, isto é, aquilo que faria a cor agarrar na fibra. Para potencializar o
efeito, as camisas ficaram de molho em água gelada antes de serem imersas
no líquido.

Ao final do processo, houve um problema que não era esperado: as


axilas das camisas mancharam bastante, adquirindo uma cor muito mais
intensa que o resto do tecido; isso provavelmente aconteceu devido aos
químicos de desodorantes que entranharam nas fibras e não saíram nas duas
lavagens. Aqui, tiramos de aprendizado, deve-se fazer uma lavagem
caprichada com uma pasta de bicarbonato para que os resíduos sejam
eliminados. Mas Petrillo nos ensinou a lidar bem com o inesperado, e para
contorná-lo, manchamos o resto da camisa com a nossa paleta, o que conferiu
às blusas um aspecto mais interessante que o anterior. Tingidas e
posteriormente manchadas as camisas, finalizamos com uma pintura de veios
que, com as cores atingidas, faziam lembrar folhas secas. Em uma associação
a posteriori, as folhas secas poderiam nos lembrar das roupas que acabam por
ser descartadas em função do tempo de uso e vão parar em bazares ou
brechós.

Com as roupas tingidas e pintadas, finalizamos montando toda a


vestimenta, com a calça de brechó, a saia preta de uma das integrantes, os
sapatos que tínhamos e complementamos com um brinco feito manualmente
de argila. Por fim, fizemos algumas fotos tiradas ao longo de um dia, com
pessoas com as quais nos relacionamos, na casa de uma das integrantes. Não
conhecíamos nenhum fotógrafo que poderia nos ajudar, por isso, tentamos a
sorte com os conhecimentos de uma disciplina do 1º período da faculdade,
Fotografia Instrumental, e uma câmera emprestada.

Em suma, a dinâmica entre nós no processo de criação foi bastante


proveitosa e equilibrada, na melhor medida possível também estávamos em
boa sintonia. Cada uma esteve presente em todas as etapas do projeto,
mesmo que apenas para opinar, quando era uma parte que não exigia duas
mãos, como a criação do pôster que serviu de paratexto e os croquis. A Gisela,
cuja área de interesse é o Design, criou o pôster e fez os slides bastante
coerentes, pensando na identidade visual de todo o projeto, e a Ana Flávia fez
os croquis e parte da pintura das camisas, mas também contando com o auxílio
da Gisela. O interesse em roupas de brechó era mútuo, o que ajudou na
dinâmica e na busca pelas roupas.
Análise semiótica

Observando o nosso produto final, podemos em uma primeira instância


identificar aspectos puramente qualitativos, de um mundo primero, referentes
às formas, cores e texturas. As camisas são largas e de um tecido macio e
relativamente solto, mas sem perder sua estrutura, conferindo um ritmo natural
à roupa, e que, combinado às cores terrosas e que poderiam ser encontradas
na natureza, isto é, não-sintéticas, não-artificiais, criam uma atmosfera
orgânica, terrena. As cores utilizadas representam as folhas secas, e as
manchas procuram traduzir essa sensação de uma maneira mais relacionada à
lembranças sensoriais que realista. O conjunto inteiro carrega em si certa
despretensão, conforto e liberdade, uma vez que pode ser considerado unissex
e comporta vários tipos de corpos; aqui, estamos falando de um mundo
segundo. Conseguimos identificar afetividade e intimidade, na maneira como
as roupas são casuais e, ao mesmo tempo em que se mostram frágeis por sua
leveza, demonstram força, devido à praticidade e tecido com uma
maleabilidade média. A estética mínima também compõe o discurso da roupa,
agora, se falamos em discurso, nos deslocamos para o mundo terceiro. Essas
sensações, transmitidas pelos mundos primeiro e segundo, podem ser
remetidas à ideia de um produto artesanal, que foi feito com as próprias mãos,
de uma confecção mais experimental que comercial, além de ser bastante
versátil, sustentável e inclusiva.

Resultado final e conclusões

A criação das duas peças veio de um projeto antigo de uma das


integrantes de revitalização de roupas de brechó e tingimento natural,
pensando no ideal da moda lenta, e, portanto deve ser comercializada,
retornando ao seu ciclo de vida. A ideia é divulgar a proposta, popularizando-a,
de modo que chegue no mainstream e faça uma real diferença no modo de
produção e criação de Moda.

Mesmo dentro da Academia, acreditamos que entre os alunos da sala,


nem todos conheciam os métodos que utilizamos ou os termos citados. Para
que fosse compreensível, ao apresentar o trabalho nos preocuparemos em
explicar os termos e também em permitir a visualização desses pontos, através
de vídeos e/ou imagens. Se tratando de slow fashion, talvez nem todos ali
presente conheçam o termo, por isso vemos a necessidade de passar as
informações sobre os conceitos. Pensamos que, para que a ideia seja de fato
difundida, precisamos de um processo de conscientização e reeducação para o
consumo de moda (e outros objetos). Em futuras implicações, surge a ideia de
um zine educativo (pequena publicação independente, normalmente impressa
e de fácil distribuição), didático, a ser pensado como produto dessa primeira
experiência prática que vinha sendo amadurecida de tempos.

O contato com essa atividade prática, nos fez entender o processo de


criação como uma etapa fundamental para que um projeto seja muito bem
coeso e complexo, fugindo de uma abordagem de superfície. O olhar
semiológico nos ajudou a compreender as maneiras de se organizar os
conceitos e aplicá-los na prática. Além disso, essa experiência impulsionou a
execução de alguns pequenos projetos individuais, que deverão ser realizados
ao longo dos próximos anos, como o zine didático, já mencionado, mas
também uma série de sacolas, tipo ecobag, que serão tingidas naturalmente e
estampadas com gravuras, a revitalização de roupas de brechós e a criação
de brincos e/ou pingentes de materiais como argila ou biscuit.

FLETCHER, Kate; GROSE, Lynda. Moda e sustentabilidade: design para


mudança. São Paulo: SENAC, 2011.

BOAS, Andrea Janaina Villas, LEMES, Tatiana Tosti. Desenvolvimento de


produtos de moda a partir da valorização dos brechós. 107 folhas. Trabalho de
Conclusão de Curso (Tecnologia em Design de Moda) – Universidade
Tecnológica Federal do Paraná, 2012.

STALYBRASS, Peter. O Casaco de Marx: roupas, memória, dor. Traduzido por


Tomaz Tadeu. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008

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