Você está na página 1de 8

Três Edições Brasileiras de um Romance Nigeriano

Raquel Saraiva

O presente trabalho tem por objetivo empreender uma análise comparativa entre três edições
do livro O Mundo se Despedaça, do nigeriano Chinua Achebe: a primeira, publicada pela
editora Àtica, de 1983, a segunda reeditada pela Companhia das Letras, de 2009, e a terceira,
a mais recente, uma edição especial distribuída pela TAG, de 2019.

O romance

Escrito em inglês pelo nigeriano Chinua Achebe e publicado em Londres, em 1958 – apenas
dois anos antes da independência da Nigéria–, Things Fall Apart, segundo Alberto da Costa e
Silva, é um romance fundador da literatura moderna nigeriana, no qual o povo ibo se
reconhece, e que narra “o começo da desintegração de uma cultura com a chegada no mundo
fechado, que lhe protegia a unidade de valores, do estrangeiro com armas mais fortes e de
pele, costumes e ideias diferentes”. (Silva, 1983, p.4).
Nele conhecemos Okonkwo, um jovem ibo da aldeia de Umófia, que fez o possível para se
desvencilhar da imagem de seu pai – um flautista que acaba execrado e é abandonado para
morrer na floresta –, por meio do trabalho árduo e de suas excelentes habilidades guerreiras.
Aos poucos, o protagonista vai adquirindo status e respeito entre os seus. O familiar mundo de
Okonkwo entra em colapso com a chegada do colonizador que, munido de suas crenças,
valores e poder, destrói a ordem instaurada e impõe seu estilo de vida que é adotado por
diversos membros do povo ibo, entre eles seu filho.
Vale ressaltar que a sociedade descrita no romance, mesmo antes da chegada do colonizador,
possuía suas contradições, hierarquias, jogos de poder. O europeu se aproveita dessas fraturas
para impor-se, o que, obviamente, não justifica sua ação bárbara.
No ano de 1983 a Ática publica a tradução do livro no Brasil, sob o título O mundo se
despedaça, o décimo sétimo volume dos 27 que constituem a coleção Autores Africanos,
“primeiro projeto literário sistêmico acerca das literaturas africanas publicado no Brasil”
(Souza e Ribeiro, 2011), fundamental na divulgação de diversos escritores pouco conhecidos
pelo público.

1
A iniciativa editorial

Entre o final dos anos 1970 e início da década de 1980 o cenário era bastante propício para
iniciativas como a da Ática, uma vez que se tratou de um período no qual era grande o
intercâmbio entre universidades brasileiras e africanas. No Brasil, concomitantemente à
intensificação dos estudos literários e pesquisas sobre cultura africana nos centros
acadêmicos, despontavam movimentos negros nos quais era intensa “a movimentação de
intelectuais, militantes e artistas afro-brasileiros, no que diz respeito ao interesse pelas
literaturas africanas, de modo a constituírem redes de solidariedade e pontes de identificação
entre Brasil e os países africanos, no que diz respeito às lutas e questões flagradas naquele
momento” (Souza e Ribeiro, 2011).
O então editor chefe da Ática, Anderson Fernandes Dias, convida o professor da USP Antônio
Mourão para dirigir a coleção que se propunha a “traçar um mapa literário da África” ao
apresentar ao público brasileiro nomes expressivos da literatura africana de diferentes
correntes políticas e estéticas, tais como Pepetela, Luandino Ferreira, Achebe, entre outros
grandes. Os títulos, referentes aos períodos colonial e pós-colonial, abordavam questões
ligadas ao colonialismo, transformações linguísticas, mudanças engendradas a partir do
conflito entre a tradição e a modernidade, além dos problemas gerados em função da fome e
da seca.
Seguindo sua verve didática, a Ática teve cuidado especial ao elaborar paratextos que
pudessem iniciar o leitor brasileiro nesse rico universo literário, como poderemos constatar
mais adiante.

As edições

Tomamos conhecimento de três edições brasileiras: uma da Ática, de 1983, uma da


Companhia das Letras, de 2009, e outra de 2019, da TAG. Esta última é uma edição especial,
exclusiva para membros da TAG, uma espécie de clube de leitores. Todas as traduções são de
Vera Queiroz Costa e Silva, o que leva a crer que a Companhia das Letras aproveitou a
tradução feita para a Ática.

2
O Mundo se Despedaça, coleção Autores Africanos, Ática, 1983.

O romance de 192 páginas é uma brochura de formato 14x21cm, cuja capa é estampada por
uma fotografia de autoria de Delfim Fujiwara. Nela podemos observar, além do nome do
autor, título do livro e o selo da Coleção Autores Africanos, um mapa do continente africano,
impresso no canto superior esquerdo; no canto inferior direito, a logo da Ática.
Como já mencionado, dada a tradição didática da Ática – uma vez que seu surgimento está
relacionado à produção de material didático – e o desconhecimento do leitor acerca da
literatura africana, todo o aparato paratextual da coleção foi desenvolvido para auxiliar “na
inserção do leitor e na formação de uma massa crítica sobre a recente área de estudos” (Cruz,
p.3). Isso pode ser comprovado logo na orelha da primeira capa, na qual há uma breve sinopse
do romance. Além dela há ainda uma lista de títulos já publicados na coleção e a publicidade
do próximo lançamento, neste caso, O astrolábio do mar, do tunisiano Chems Nadir. Na
quarta capa, uma pequena biografia apresenta Achebe ao público.
Logo depois da página da epígrafe, composta por versos do poema “Segundo Advento”, de
Yeats, encontra-se o prefácio escrito por Alberto da Costa e Silva. Intitulado “Este livro de
Chinua Achebe” esse paratexto se destaca pela riqueza de informações, que vão desde a
análise do romance, sua contextualização histórica e o estilo do autor, até dados geográficos
da aldeia ibo, localizada no “sudeste da Nigéria, ao norte do delta do Níger e ao sul do Benué,

3
numa larga faixa que vai do sudoeste do Níger até as águas do rio Cross” (Silva, 1983, pg.5).
O texto informa como a sociedade ibo se organiza em torno de “laços familiares, no clã e na
linhagem” e como se dão as relações de poder dentro daquele sistema oligárquico em que as
melhores posições eram ocupadas pelos que possuíam terras produtivas, sobretudo as
dedicadas ao cultivo do cará. Silva destaca que Achebe não pinta um cenário idílico em que
tudo funcionava harmoniosamente antes da chegada do europeu, mas descreve uma sociedade
que, como qualquer outra, possui seus infortúnios, jogos de poder, preconceitos e conflitos.
Ainda segundo o autor “A História não é boa nem é má […] nascemos dela, de seus
sofrimentos e remorsos, de seus sonhos e pesadelos” e Okonkwo sente mais piedade pelo pai
(renegado pelos seus) do que pelo filho (assimilado pelo colonizador). Porém, destacamos que
nada pode justificar a violência do colonizador, que, munido de uma pretensa ideia de
superioridade e de uma falsa certeza de dever “civilizatório”, desintegra uma cultura a fim de
estabelecer a sua. O prefácio parece cumprir o objetivo de oferecer uma base para que a
leitura das páginas seguintes seja mais proveitosa.
Achebe emprega vários termos ibo no decorrer da narrativa que são esclarecidos por meio de
uma série de notas de rodapé. No final do livro são disponibilizadas duas listas: uma com as
publicações do escritor nigeriano e outra com sua fortuna crítica.

O Mundo se Despedaça, Companhia das Letras, 2009.

4
Depois de 26 anos O mundo se despedaça é reeditado pela Companhia das Letras. Sem
pertencer a uma coleção específica, como a Coleção Autores Africanos, a primeira diferença
aparente é a capa produzida por Marcos Kotlher que, com a permissão do Museu de
Antropologia e Arqueologia da Universidade de Cambridge, reproduz uma fotografia de
autoria de G. I. Jones.
Como a edição da Ática, é uma brochura em formato 14x21, porém com mais páginas, 240.
Diferentemente da outra edição analisada, esta possui sumário e um glossário de termos ibo
no final do volume, além das notas de rodapé, que também existem na edição de 1983.
Tanto a tradução quanto o prefácio, salvo as mudanças ortográficas, são os mesmas que
encontramos na edição da Ática, elaboradas por Vera Queiroz da Costa e Silva e Alberto da
Costa e Silva. A edição da Companhia das Letras traz informações mais completas, como, por
exemplo, os responsáveis pela revisão do texto.
O maior diferencial talvez seja a disponibilidade do livro, pois se o romance impresso se
esgota com rapidez, é sempre possível comprá-lo em formato digital ou baixar a versão
gratuita pela internet. Já a edição da Ática é uma raridade. Com muita sorte talvez possa ser
encontrada em algum sebo. No mais, se comparada à edição da Coleção Autores Africanos, a
da Companhia das Letras teve um pequeno acréscimo de paratextos – glossário, sumário, e
não possui páginas ilustradas para marcar a abertura de cada nova parte da narrativa, como
ocorre com a da Ática.

O Mundo se Despedaça, TAG, 2019.

5
Diferentemente das edições anteriores, o romance publicado pela TAG possui capa dura
ilustrada pelo designer Edson Ikê. Para sua produção o artista utilizou a xilografia, mesma
técnica empregada na confecção dos demais elementos que acompanham o livro (box
colecionável, marca páginas e revista complementar).

Mais do que a capa, sua maior particularidade em relação às demais edições diz respeito à
quantidade e diversidade de paratextos elaborados com vistas a enriquecer e maximizar a
experiência literária. Além da introdução, do glossário e das notas de rodapé, o leitor tem a
sua disposição uma revista complementar, um site e um canal no You Tube.

A revista tem como proposta aprofundar o conhecimento do público a respeito do povo ibo.
Para isso, fornece um interessante material que aborda o funcionamento do sistema social, as
características inerentes à língua, a importância da tradição oral na formação da literatura, as
diferentes manifestações artísticas, entre outros aspectos.

Na página virtual é possível acessar conteúdo relacionado ao autor e ao livro, incluindo uma
seção dedicada a depoimentos de admiradores ilustres. Barack Obama, Margaret Atwood e
Nelson Mandela foram os notáveis escolhidos para representar os inúmeros admiradores de O
mundo se Despedaça.

Já no canal do You Tube são disponibilizados vídeos de resenha, curadoria (que apresenta ao
associado o conteúdo da caixa do mês, apresentando a edição e seus complementos) e pré-
apresentação da obra.

Tudo isso nos permite afirmar que, ao longo do tempo, as edições brasileiras foram
incrementando seu repertório paratextual.

Contudo, cabe frisar que, mesmo diante deste boom, a literatura africana ainda está longe de
gozar o espaço que merece, principalmente quando pensamos nas escolas e universidades do
país.
Apesar da publicação, no ano de 2003, da lei 10.639, que obriga o ensino da História e
Cultura Afro-brasileira nas escolas, o que ainda vemos, passados 17 anos, é que, apesar das
semelhanças que unem brasileiros e africanos, a literatura daquele continente ainda não é bem
difundida entre nós, inclusive no ambiente acadêmico. Como dito em depoimento concedido
6
por Lucia Castelo Branco: “A Literatura Africana sempre foi um pouco abandonada. Na
UFMG não teve espaço, força e acolhimento do corpo docente [...] sempre permaneceu no
âmbito da disciplina optativa.” É verdade, durante meus anos de graduação uma única vez
tive contato com um autor africano, Coetzee, o único entre os diversos europeus que
estudamos em um curso sobre o gênero romance. Depois disso, só agora, nesta disciplina,
Edições comparadas.
Li uma frase que resume bem a situação: é preciso “corrigir o desvio eurocêntrico que anos de
colonização e branqueamento cultural causaram em nosso olhar”.
Estamos vivendo um momento histórico propício para rever paradigmas e ouvir as vozes
daqueles que injustamente foram relegados a posições subalternas, a despeito do talento
inquestionável que sempre possuíram. Mais do que nunca ecoam as vozes dos que sempre
foram silenciados.
Referências
ACHEBE, Chinua. O Mundo se Despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. São
Paulo: Editora Ática, 1983.

_____. O Mundo se Despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.

_____. O Mundo se Despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. Porto Alegre:
TAG, 2019.

BRANCO, Lucia Castelo. Depoimento oral gravado especialmente para esta disciplina,
outubro de 2020.

SILVA, Alberto da Costa. Este livro de Chinua Achebe. In: ACHEBE, Chinua. O mundo se
despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Editora Ática, 1983. p 4-
10.

CRUZ, Clauber Ribeiro. A Formação da Coleção Autores Africanos.

SOUZA, Joseneida Mendes Eloi; RIBEIRO, Maria de Fátima Maia. De silêncios e memórias:
a Coleção “Autores Africanos” e a legitimação das literaturas africanas no Brasil. UFBA,
2011.

SOUZA, Joseneida Mendes Eloi. Trajetórias das Literaturas Africanas no Brasil: Pensando a
Questão Editorial. Disponível em:

7
http://www.inventario.ufba.br/08/Trajetorias%20das%20Literaturas%20corrigido.pdf

https://www.skoob.com.br/livro/edicoes/19941/edicao:984342. Acesso em: 27 out. 2020.

DEPOIMENTOS de Luiza Reis e Otávio Costa disponíveis em: <https://www1.folha.uol.


com.br/ilustrada/2019/05/na-esteira-de-chimamand-jovens-escritores-da-nigeria-sao-lancados
-no-brasil.shtml.> Acesso em: 27 out. 2020.

Você também pode gostar