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O casal e seus conflitosa

Couples and their conflicts


Françoise Mazuir*

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O Mundo da Saúde, São Paulo - 2012;36(2):360-363
Comunicação • Communication

Introdução te, muito pelo contrário. Não é incomum que o


terapeuta seja, na verdade, convocado como um
Primeiro palco de nossos amores e desamo-
árbitro, tomado como testemunha por cada par-
res, o casal é o teatro privilegiado onde contrace- ceiro para abusar de reclamações e denúncias,
nam nossos conflitos internos e de relacionamen- na esperança secreta de que a palavra “autori-
to, de acordo com cenários bem estabelecidos zada” do profissional terminará por convencer o
e sempre repetitivos. Enquanto esperamos dessa outro que “no entanto, eu é que tinha razão”. A
relação o apoio e o reconforto que garantam uma própria ideia da reconciliação possível é, então,
necessidade de segurança interna, as dificulda- geralmente, algo que está por se construir nes-
des que encontramos em nossas relações de ca- sa primeira fase da terapia. Um e outro deverão
sal provocam, geralmente, grandes sofrimentos, aceitar de ter de largar alguma coisa a que se
agravados pela sensação de impotência, de in- apegam (seja um privilégio do qual se benefi-
compreensão recíproca, e a ilusão sempre pre- ciam, certa visão das coisas e da vida, a explica-
sente e incessantemente decepcionante de um ção que se dão) para integrar e dar um lugar real
amor romântico e que faz bem. Mas, afinal, essas ao outro, na sua diferença – processo de apren-
tensões conjugais, esses conflitos, são o sinal do dizagem que o terapeuta acompanha de forma
fracasso de um projeto a dois e a prova de uma ainda melhor quando há algumas soluções para
“escolha errada” do parceiro? Ou são, na verda- decifrar os mecanismos dos conflitos, e algumas
de, a passagem necessária para uma busca de ferramentas para ajudar a transformação. Vere-
harmonia que mobiliza a superação de si mesmo, mos uma solução e uma ferramenta.
e participa de nossa plena realização como seres
humanos? É nesta opção que apostam os casais Uma das soluções: na realidade,
que se envolvem em um processo terapêutico não sabemos quem fala
para construir novas soluções e transformar as
dificuldades em oportunidades de crescimento, Primeiro tempo importante da terapia: o
para cada um e para o casal. momento em que cada um segue o caminho
da sua própria história. Trata-se de utilizar o
Um pedido muitas vezes velado motivo principal das reclamações e alegações
sobre o outro (“Ele nunca está disponível para
É verdade que, muitas vezes no momento mim. É verdade que, cada vez que eu lhe peço
da consulta, este objetivo ainda não está presen- uma coisa, você já está ocupado!”), para desco-

a. Texto e trechos de citação traduzidos do francês por Isa Tutti.


* Psicóloga pela Universidade de Lyon II. Psicodratista, Terapeuta Familiar e de casal. Consteladora Familiar e Mediadora em Yoga Der-
viche. E-mail: rossimazuir@neuf.fr
brir o que o Sr. Elkaïm designa sob o nome de Em qualquer troca, estamos atentos às nos-
“programa oficial”: “o que eu quero é atenção”, sas necessidades mais profundas e às do
para seguir nosso exemplo. Vemos, então, que outro. A CNV aguça nosso senso de obser-
essa queixa vem na verdade confirmar e refor- vação e nos incita a identificar os comporta-
çar o que ele chama de “a carta do mundo”: mentos e as situações que nos afetam. Nós
“eu não mereço interessar quem quer que seja”. aprendemos também a definir e a formular
Esse esquema de pensamento foi construído nos claramente o que queremos numa dada si-
anos da infância, seja modelando-se ao casal tuação. Por mais elementar que possa pare-
parental, ou pela integração de mensagens re- cer, essa abordagem é um meio poderoso de 361
pressivas dos pais. É assim que o comportamen- transformação (p. 20)1.
to que me causa um problema no outro respon-

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de, na verdade, a um pedido não formulado, a
uma espera que é em si inconsciente. Por mais
Pequeno lembrete de procedimen-
doloroso que possa ser minha vivência no casal
to, em 4 etapas
nesse momento, ele me dá segurança, porque
ele é aquilo que eu conheço. 1 – Separar observação e avaliação
Essa tomada de consciência permite, nesse Numa primeira fase, trata-se de descrever
caso, desmascarar como minha queixa é também claramente a situação da qual queremos falar,
alguma coisa à qual eu me apego, e eu posso, en- sem misturar nenhuma avaliação, e de evitar
tão, ver todos os meios sutis pelos quais eu man- generalizações congeladas, dando preferência a
tenho o outro nessa posição, que, por outro lado, observações circunstanciais. “Esta situação é re-
eu critico. Nesse momento, torna-se indispensá-
almente impossível” torna-se “Quando acontece
vel, naturalmente, assumir nossas necessidades
isso ou aquilo (...)”.
reais e tornar-se responsável por nossas expecta-
Mas cada um conhece a dificuldade de for-
tivas explícitas. O casal está maduro para passar
mular uma observação sem acrescentar nosso
à queixa, ao pedido.
ponto de vista, nossa avaliação. Segundo Krish-
namurti, citado por Rosenberg1, “observar sem
Uma ferramenta de comunicação: avaliar seria mesmo a forma mais elevada da inte-
a CNV ligência humana”, tanto é difícil não acrescentar
Mas quando a interação do casal está mar- nosso julgamento ao que vemos. Essa é, contudo,
cada por reprovações e críticas mútuas, trata-se a condição que permite evitar que o outro se sin-
também de inventar um novo tom para dizer as ta atacado, criticado, fechando-se numa posição
coisas, de aprender a se exprimir para que meu defensiva.
pedido seja entendido pelo outro, sem que ele se Eu posso, por exemplo, conseguir só dizer
sinta acusado e, portanto, sem que ele seja incita- “De qualquer forma, você não se interessa ao que
do a recorrer a mecanismos de defesa utilizados, eu digo” quando o outro continua a olhar sua tela
geralmente, há muitos anos. de computador enquanto eu falo com ele. Mas
A Comunicação Não Violenta, ou ele faz isso porque ele não se interessa, ou para
CNV, criada por Marshall B. Rosenberg nos se proteger de tanto que o assunto lhe é difícil, ou
anos 50, é, portanto, uma ferramenta pre- porque ele tem um trabalho urgente a terminar e
ciosa nesse percurso terapêutico do casal. que não é, para ele, o momento de falar, ou ainda
Rosenberg definiu como “um modo de comuni- será que ele tem essa capacidade de atenção di-
cação, de expressão e de escuta, que facilita o vidida que lhe permite estar plenamente presente
fluxo do coração e nos conecta a nós mesmos em duas atividades ao mesmo tempo?
e aos outros, dando vazão à nossa benevolência O enunciado dos fatos seria simplesmente:
natural” (p. 19)1. “Eu estou falando com você de uma coisa impor-
Poderíamos resumir os princípios da CNV tante para mim, e você continua a olhar sua tela
nesta frase: do computador”.
2 – Identificar e expressar seus senti- eu espero. Quando uma emoção negativa nasce
mentos em mim, está sempre ligada a uma expectativa e
Não temos, geralmente, o costume de expri- a minha necessidade num dado momento, que
mir nossos sentimentos ou mesmo de nos interes- eu considero importantes para mim, mas não le-
sarmos por eles. Acontece que esses sentimentos vadas em consideração pelo outro. Por exemplo,
não expressos (cólera, frustrações, ressentimen- “eu preciso lhe falar olhando-o nos olhos, é im-
tos) têm um custo elevado nas relações de casal: portante para mim ver sua reação ao que eu lhe
os não-ditos alimentam e mantêm as queixas em digo”. Se tal é minha necessidade, a tela entre
relação ao outro e o sentimento de insatisfação nós quando eu lhe falo vai me irritar ou me fazer
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na relação, sob o risco de ressurgir de forma re- sentir que você não se interessa pelo que eu digo.
Podemos treinar para nos tornar responsá-
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pentina e fora do contexto, na primeira oportu-


veis por nossos sentimentos em função de nossas
nidade. O conflito, em vez de ficar conectado
necessidades não satisfeitas, formulando as coi-
com a situação presente, torna-se então a chance
sas segundo uma frase do tipo: eu estou (irritado)
de acertar contas antigas, com pouca chance de
porque EU (preciso olhar nos seus olhos), em vez
chegar a uma conciliação, uma vez que a carga
de eu estou (irritado) porque VOCÊ (não me olha
negativa acumulada é grande.
quando eu falo). Ao expressá-lo dessa maneira,
A expressão de nossos sentimentos verda-
eu não faço uma reprovação, nem uma crítica ao
deiros responde à pergunta: o que é que eu sin-
outro, eu simplesmente enuncio minhas necessi-
to, o que é que me magoa? Após os fatos descri-
dades como elas são.
tos acima, eu expresso o que isso me faz. É por
isso que os sentimentos se expressam sempre na 4 – Pedir aquilo que contribuiria ao
primeira pessoa: eis o que Eu vivo. Isso envolve
nosso bem-estar
apenas a minha pessoa, eu não culpo ninguém,
Um dos motivos da queixa recorrente nos
assumo a responsabilidade de minha vivência in-
casais é a ideia de que, de qualquer maneira, o
terior, sem acusar o outro, mas como uma parti-
outro deveria muito bem saber o que eu quero, o
lha de alguma coisa pessoal. Ao mesmo tempo,
que espero, e eu reclamo que ele “faz de propó-
isso implica aceitar tornar-se vulnerável, mostrar
sito” de não se comportar como eu quero. Acon-
meu mundo interior, mesmo no que pode haver
tece que só a mãe de um recém-nascido pode
de mais frágil. No nosso exemplo: “(...) sua tela
estar conectada ao Outro sem que uma palavra
de computador. De repente, eu me sinto inútil,
seja necessária entre os dois. Como adulto, eu
tenho a impressão que o que eu tenho a lhe dizer
não posso esperar que o outro antecipe, sinta ou
não lhe interessa”.
adivinhe o que se passa comigo. Se eu disser, ao
Não confundir. Se eu disser: “eu me sinto
chegar do trabalho: “Estou arrebentado hoje!”
incompreendido(a) ou ignorado(a)”, eu interpreto
será isso um pedido para que meu parceiro pre-
uma intenção que eu atribuo ao outro, mas eu
pare o jantar? Ou que me faça uma massagem
não estou falando sobre “o que isso me faz”, e
antes de deitar?
qual é a emoção que provoca em mim quando Na última etapa da CNV, é bom exprimir
me sinto mal incompreendido(a) ou ignorado(a). claramente meu pedido, o que eu espero pre-
cisamente do outro nesse momento. Esse pedi-
3 – Identificar a origem de nossos senti- do deve responder, pelo menos, aos seguintes
mentos: nossas necessidades critérios:
Primeiro assumir a responsabilidade por - Ser claro, preciso: “Eu gostaria que você
nossos sentimentos se ocupasse de mim” torna-se: “Eu gostaria que
Essa necessidade de se mostrar com seu você reservasse um quarto de hora para nós con-
mundo interior acentua-se ainda mais na fase se- versarmos. Você está disposto?”;
guinte, quando se trata de nomear as necessida- - Ser formulado de forma positiva, isto é, ex-
des que estão por trás desses sentimentos, que fa- primindo o que nós queremos e não o que nós
lam dessa vez da minha visão de mundo, do que não queremos: “Pare de se irritar” torna-se “Você
poderia me falar num tom mais doce?”; a conciliação: “A: OK. Você teria, na semana, um
- Ser formulado conscientemente: “Estou momento?”. Ou “Você tem uma ideia de como
com tanta sede” torna-se “Você poderia me trazer podemos fazê-lo antes da próxima chuva?”.
um copo de água?”.
E convém, ainda, preocupar-se em pedir um A utilidade da CNV para o casal
retorno, em se assegurar que o outro compreen-
deu mesmo o que eu lhe pedi, não para testar a Além do aspecto, às vezes, artificial que ela
capacidade de ouvir do outro, mas para verificar tem num primeiro momento, essa maneira de se
se eu me expressei claramente. exprimir transforma, pouco a pouco, nossa vi-
são de nós mesmos e do outro. Eu aprendo a (re)
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conhecer minhas necessidades e a expressá-las
Diferenciar pedidos e exigências

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sem me culpabilizar, nem ter rancor pelo outro
Ainda é preciso que esse pedido, se ele res- por não adivinhá-las, nem satisfazê-las. Eu posso,
peitar minha pessoa e minha necessidade real, então, aprofundar o vínculo de empatia comigo
respeite também o outro. Eu reconheço meu di- mesmo e assumir, de maneira adulta, meu pró-
reito de expressar minha necessidade, e eu reco- prio equilíbrio interior. O caminho está aberto
nheço o direito do outro de ter uma necessidade para sair da dependência afetiva que muito fre-
diferente da minha. Coloca-se, agora, a questão quentemente envenena a relação do casal. Então,
da intenção: meu pedido é mesmo um pedido ou ao invés de pensar: “o outro me incomoda e cau-
uma exigência? Ele deixa o outro autenticamen- sa o conflito”, eu me torno capaz, ao longo do
te livre para responder? Quando eu sinto uma tempo, de dizer: “Alguma coisa em mim reage
exigência do outro, há duas opções possíveis: a negativamente. Qual é minha real necessidade e
submissão ou a revolta, mas jamais uma decisão como vou expressá-la?”.
livre. Podemos saber se um pedido era na realida- Nesse caso, eu posso me mostrar como sou
de uma exigência, observando a reação em caso sinceramente enquanto casal, deixar cair a más-
de resposta negativa, quando ao invés de receber cara e, ao me descobrir eu mesmo, oferecer ao
com empatia a recusa do outro, nós reagimos cri- outro uma relação mais verdadeira, mais autên-
ticando, julgando ou culpabilizando. tica. De uma união de personalidades, a relação
Por exemplo: do casal torna-se o lugar onde o ser profundo
A: Você pode cortar a grama? pode se manifestar, para enriquecer cada um.
B: Não, eu não tenho tempo hoje. Resta aquilo que nenhuma técnica pode ofe-
A: Isso é bem do seu estilo! Você só pensa recer ao casal para passar do conflito à harmonia
em você! e que cada um deve decidir por si mesmo: a in-
Ou ainda: A: Bom, tanto pior para a minha tenção genuína de sempre buscar a conciliação,
dor nas costas, vou fazer isso eu mesma! por meio dessa curiosidade sobre o que o outro
O sucesso do processo exige que possamos tem de melhor ao se transformar, nesse caminho
abandonar autenticamente nossas expectativas e de descobertas compartilhadas.
aceitar a resposta do outro. Se for uma recusa, é a “Se você me ama, não me ame”, Sr. Elkaïm,
partir daí que tentamos dar o passo seguinte para O Limiar

Referências
1. Rosenberg MB. Les mots sont des fenêtres (ou bien ils sont des murs): introduction à la communication non violente.
2ème ed. La découverte, slf; 2004.

Recebido em: 2 de dezembro de 2011


Aprovado em: 18 de janeiro de 2012

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