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SUPERMERCADO

escrito por

Dinis V. Dias

história de
Dinis V. Dias e João Duarte Monteiro

FINAL DRAFT

26/10/2020
FADE IN:

EXT. SUPERMERCADO - NOITE

O parque de estacionamento é sombrio, vagamente iluminado por


postes de iluminação pública. De repente, as luzes do
supermercado ligam-se, iluminando agora o parque de
estacionamento vazio. MEL (20 anos) dirige-se à entrada do
supermercado e pára perto da porta, onde se encosta à parede.
Um MENDIGO (60 anos) de face rosada aproxima-se lentamente do
jovem com um cigarro na mão.

MENDIGO
Jovem, tem lume?

MEL
(Retirando um isqueiro do
bolso)
Tenh-

MENDIGO
(Interrompendo)
Tem lume?

Mel entrega o isqueiro ao homem e este recebe-o olhando


fixamente para o jovem. O velho acende o cigarro, cortando a
brisa com a mão. Ao receber o isqueiro de volta, Mel repara
que o mendigo tem o cigarro aceso ao contrário.

MENDIGO (CONT'D)
(Virando costas e
afastando-se)
Muito obrigado, jovem.

MEL
Desculpe...

O homem vira-se de novo para Mel, tirando tragos do cigarro


sem dar conta do facto de este estar ao contrário.
MEL (CONT'D)
Tem o cigarro ao contrário, está a
fumar o filtro.

O velho olha seriamente para Mel sem levar a boca ao cigarro


e, de repente, esboça um sorriso e olha para o cigarro,
admitindo o erro. O mendigo perde gradualmente o sorriso e
atira o cigarro para o chão, apagando-o com a sua bota. O
homem retira um novo cigarro do bolso e o jovem empresta-lhe
o isqueiro outra vez. Mel tenta espreitar discretamente por
cima da mão do velho, enquanto este tenta acender o cigarro.
O mendigo devolve o isqueiro ao jovem, revelando que o
segundo cigarro foi aceso corretamente.
2.

Mel assusta-se com a repentina vénia que o homem lhe faz


enquanto se afasta antes de virar costas, cambaleando. O
jovem suspira e pisca os olhos, não acreditando no que acaba
de ver. Mel tira o telemóvel do bolso que, ao vibrar, o
assusta, levando-o a deixar cair tanto o telemóvel como o
isqueiro. O jovem é surpreendido por um braço que lhe agarra
o pescoço, largando-o de seguida e sendo revelado que o braço
pertence a NINO, que traz consigo uma mochila às costas.

NINO
E quê? ‘Tá tudo?

MEL
(Apertando a mão do amigo)
Não, acabei de partir o telemóvel.

Mel tira o telemóvel do bolso e mostra-o ao amigo.

NINO
Tensíssimo...

MEL
(Guardando o telemóvel)
Pois... Foste rápido.

NINO
(Rindo-se)
O autocarro chegou dez minutos mais
cedo.

MEL
Tché, a sério?

NINO
Yup.

MEL
Tu tens uma sorte...

NINO
(Rindo-se)
Yes. E por falar em sorte...

Nino pega na mochila e retira do bolso exterior duas


raspadinhas, mostra-as a Mel e observa a sua reação.

MEL
(Rindo-se, reticente)
És um cego!

Nino dá uma das raspadinhas a Mel, que a observa.


3.

NINO
Guilty as charged... É verdade, a
NIX?

MEL
Ela tinha dito que já estava a vir
para aqui, mas não sei quanto9
tempo demora.

NINO
Oh, pá... Liga-lhe.

Mel lança um olhar cansado e impotente ao amigo.

NINO (CONT'D)
Pois é, pois é. Liga-lhe do meu.
Nino tira o telemóvel do bolso e empresta-o a Mel, que guarda
a sua raspadinha no bolso e rapidamente efetua a chamada, que
é atendida quase de imediato.

MEL
Estou? (...) Não te estou a ouvir
bem. (...) Diz? (...) Ah, eras tu.
Fizeste-me partir o telemóvel.
(...) Diz? (...) Ok. (...) Ok, até
já.

NINO
Então?

MEL
(Devolvendo o telemóvel ao
amigo)
Ela disse que chega daqui a uns
quinze minutos. Se calhar, vamos
fazendo as compras.

NINO
(Ajeitando a mochila que
traz às costas)
Pode ser.

Os dois amigos entram no supermercado.

INT. SUPERMERCADO - NOITE

Imediatamente após a abertura das portas automáticas,


enquanto os dois amigos entram, uma ligeira brisa ondula-lhes
o cabelo. O som da música ambiente ecoa pelo supermercado,
branco e brilhante. Mel e Nino dirigem-se ao local de
arrumação de carrinhos de compras.
4.

NINO
Então, temos de levar bebidas,
comida... E que mais?

MEL
Hmm...

NINO
A Nix pediu para levarmos alguma
coisa?

MEL
Acho que não.

NINO
Então, shall we go?

Nino retira um carrinho, uma das rodas chiando, e os dois


amigos caminham até às caixas de pagamento, onde páram.

MEL
Aonde vamos primeiro?

NINO
Meh, se calhar despachamos já o
álcool.

MEL
Sabes onde é?

NINO
(Apontando)
Acho que é ali.

Mel repara no relógio de pulso do amigo e ambos começam a


andar para onde Nino apontou. Nino tira do bolso a sua
raspadinha, encosta-a à barra do carrinho e retira do bolso
uma moeda, que usa para raspar cuidadosamente a raspadinha.

MEL
Tché, ganda relógio...

NINO
Gostas?

MEL
É engraçado. Onde é que o
arranjaste?

Nino pára de raspar.

NINO
Vê se adivinhas...
5.

Nino tenta conter um sorriso, enquanto olha fixamente para o


amigo.

MEL
Oh, sei lá...

NINO
A BIA.

MEL
(Estranhando)
Bia?

NINO
Sim, a Bia.

MEL
Não estou a ver quem é.

NINO
Achava que conhecias, é ela que me
arranja tudo.

MEL
Nope.

Nino torna a focar-se em raspar o que falta da sua


raspadinha.

MEL (CONT'D)
Tens ido ao spot?

NINO
Se lá fosse, ligava-te, né?

MEL
Espero bem que sim...

NINO
E também o ZÉROLHO tem parado por
lá...
MEL
Ele sempre foi lá.

NINO
(Claramente constrangido)
Sim, mas agora tem aparecido mais.

Nino pára de raspar.

NINO (CONT'D)
Não ganhei nada.
6.

Os dois amigos chegam à secção das bebidas alcoólicas, Nino


rasga a raspadinha e guarda-a no bolso.

MEL
Não se pode ter sorte em tudo.

Ambos admiram as prateleiras carregadas de garrafas


coloridas. Mel pega em duas garrafas de litro de cerveja e
pousa-as no carrinho, enquanto Nino olha para as bebidas,
pensativo.

MEL (CONT'D)
(Pegando em mais duas
litrosas)
O que é que vais beb-
Nino olha agora para o amigo.

NINO
Não leves tantas.

MEL
Porquê?

NINO
(Com um sorriso crescente)
Pá... Eu só te ia contar na festa,
mas estou a ver que vai ter de ser
agora...

Nino olha em volta, retira a mochila das costas e, segurando


nela, abre-a. Mel arregala os olhos e fica boquiaberto, rindo-
se. Bia (25 anos), ao fundo do corredor, vestida com um robe,
calções de banho e chinelos de quarto, vê os dois amigos e
caminha em direção a eles.

MEL
(Bastante entusiasmado)
Compraste isso à tal Bia?

BIA
Que me lembre, não.

Os dois amigos assustam-se, saltando para trás.

MEL
What the fuck?!

BIA
De facto.

NINO
E quê, Bia-
7.

BIA
(Interrompendo)
Deixa-me adivinhar... Esse saco
pertencia originalmente ao Zé.

NINO
(Admirado)
Como é que tu-

BIA
Eu vejo tudo, xebale, até parece
que não me conh-

MEL
Oh! O que é que se passa?

NINO
(Constrangido)
Eu estava a passar pelo-

BIA
Aquio teu amigo decidiu apropriar-
se de um saco cheio de NDD, achando
que podia escapar às garras do
anterior dono desse delírio
ensacado, aquele a quem vocês
chamam Zérolho.

Mel olha incrédulo para Nino que esboça um sorriso nervoso.

NINO
Eu não-

MEL
Fogo, tu...

BIA
De facto.

Nino fecha a mochila e põe-na de novo às costas.

MEL
Roubas isso e ainda tens a lata de
vir aqui!

NINO
Que é que tem?

MEL
O que é que tem?!

BIA
O moço trabalha aqui.
8.

Nino leva as mãos à cabeça, apercebendo-se realmente da


gravidade da sua atual situação.

NINO
Mas ele não-

MEL
É, trabalha aqui, e agora?

NINO
É sexta à noite, duvido muito que
ele esteja-

BIA
Mas está. Passei por ele há um
bocado e foi por isso mesmo que vim
aqui ter com vocês.

O mendigo passa pelo trio com um pacote de vinho furado na


mão, enquanto tapa um olho com a outra mão e volta a rir-se
para Mel, distraindo-o do problema que tem em nãos durante
segundos.

MEL
Liga à Nix, rápido.

Nino tira o telemóvel do bolso e liga a Nix.

MEL (CONT'D)
(Sem esperança)
Não dá para lhe devolvermos o NDD
sem que haja confusão, pois não?

BIA
(Esboçando um sorriso)
Dar, dá, mas não seria mais
interessante se não devolvessem o
NDD e não houvesse confusão...?

Nino arregala os olhos e abre a boca para falar, mas é


imediatamente interrompido por Nix, que atende a chamada.
NINO
Tou, Nix? (...) E quê? (...)

Mel dá uma cotovelada ao amigo.

NINO (CONT'D)
Temos um problema, Nix. (...) Estás-
me a ouvir? (...) Eu tenho um saco
de NDD do Zé e- (...) Estou? (...)
Diz, diz. (...) Pois, trabalha.
(...) Pois, eu não sabia.
9.

MEL
(Para Bia)
Como é que fazemos isso?

BIA
Como? Dão-me cinquenta por cento do
NDD desse saco.

NINO
(Admirado)
Cinquenta por cento?! Olha a Nix.

Nino passa o telemóvel a Mel e Bia tira uma calculadora com


impressora do bolso do seu robe.

MEL
Então... (...) Tens razão, já-
(...) ‘Tou? (...) Já sabes como é
que ele é. (...) Diz? (...) Ok,
anda rápido. (...) Até já.

Bia devolve o telemóvel a Nino, que o guarda no bolso.

BIA
Então? Sessenta por cento?

NINO
(Revoltado)
Há um bocado não era cinquenta?

BIA
Não sejas Scrooge, o teu amigo já
tem uma raspadinha e tudo...

NINO
Huh?

MEL
(Impaciente e confuso)
Sim, sim, pode ser.

Bia estende a mão a Mel, que a aperta, selando o negócio.

NINO
E a Nix?

MEL
Ela já cá vem ter.

BIA
Entretanto, venham comigo.

Os dois amigos seguem Bia, abandonando o carrinho de compras.


10.

BIA (CONT'D)
Vocês não tinham vindo fazer
compras?

Bia vira-se para trás e Mel e Nino, como que num estado de
transe obediente, assentem ao mesmo tempo.

BIA (CONT'D)
Então, tragam o carrito.

Mel vira-se automaticamente para trás, caminha em direção ao


carrinho e volta rapidamente. No fim do corredor, Bia caminha
com confiança, enquanto Mel e Nino espreitam cuidadosamente,
desviando o seu olhar ora para a esquerda, ora para a
direita. Bia vira-se para trás e vê os dois amigos
escondidos.
BIA (CONT'D)
Venham lá.

A medo, Mel e Nino seguem Bia, intrigados com o seu plano, e


observam-na atentamente a retirar dois sacos de compras dos
bolsos do seu robe e a pousá-los no carrinho de compras.

NINO
O que é que estás-

Bia vira-se instantaneamente para Nino e põe o dedo indicador


à frente dos lábios.

BIA
Shh... Já vais ver.

Os três passam por um corredor onde o mendigo se encontra.


Bia, olhando para o velho, rosna-lhe como um cão e este
responde-lhe silvando como um gato, nunca desviando o olhar
até os três desaparecerem atrás das prateleiras. Chegados à
secção dos aperitivos fritos, Bia pega num pacote de batatas
fritas e põe-no dentro de um dos sacos de comprass.

BIA (CONT'D)
Dá-me o saco de NDD.

NINO
(Retirando a mochila das
costas)
Para quê-

BIA
Anda lá, rápido.

Nino abre a mochila, Bia retira o saco de NDD e põe-no dentro


do outro saco de compras.
11.

BIA (CONT'D)
Fiquem aqui, vou procurar o Zé.

MEL
Procurá-lo?!

Bia dá leves pancadas na orelha de Mel, como quem bruscamente


tenta que a televisão funcione corretamente.

BIA
Sim, até já.

Completamente baralhados, os dois amigos limitam-se a seguir


as firmes ordens de Bia, deixando-a ir.

NINO
(Revoltado)
Então, deste-lhe tudo?

MEL
Está calado, que eu estou-te a
resolver o problema.

Ao virarem-se de novo para o carrinho, assustam-se com o


mendigo, que está quase encostado a eles, rindo-se. Mel e
Nino dão um passo para trás e o homem dá dois goles de vinho
do pacote furado que trás consigo.

MEL (CONT'D)
Desculpe, precisa de-

MENDIGO
(Apontando para o pacote
de vinho)
Eu não, não quero, já tenho aqui.
Muito obrigado, jovem.

O velho ri-se novamente, deixando Mel e Nino pensativos,


olhando-se. O mendigo estende o braço, segurando no pacote de
vinho.
MENDIGO (CONT'D)
São servidos?

NINO
(Levantando o braço)
Por acaso-

Mel baixa o braço de Nino, interrompendo-o.

MEL
Não, obrigado.
12.

O homem ri-se de novo, pega num pacote de batatas fritas da


estante e abre-o. O pacote está vazio. O mendigo arregala os
olhos, volta a tapar um deles com a mão e começa-se a rir,
outra vez, deixando os amigos confusos, outra vez. Rindo-se
ainda mais, o velho aponta com o indicador para trás dos três
amigos, que se viram imdeiatamente. O mendigo larga o pacote
de batatas fritas e desaparece. Zérolho (20 anos), com óculos
com uma das lentes fumada e com um carrinho de reposição de
produtos, está parado a olhar para o trio.

ZÉROLHO
Que é esta merda, huh? O NDD,
caralho?

NINO
Eu não-

ZÉROLHO
Foda-se... NDD, já!

NINO
Não o tenho comigo-

ZÉROLHO
Abre a mochila!

Nino retira a mochila das costas.

ZÉROLHO (CONT'D)
Rápido!

O jovem abre a mochila, que, por estar vazia, deixa Zérolho


furioso. Bia chega de repente ao corredor.

BIA
E quê, caralho?

MEL
Finalmente-

Bia caminha em direção a Nino até estar praticamente


encostada a ele. Mel e Zé não percebem o que se passa, mas
esperam para ver o resultado.

BIA
Onde é que estão as minhas merdas,
Nino?

NINO
(Confuso)
Eu não... O que é que-

Bia empurra Nino de forma agressiva contra as estantes e


aperta-lhe o pescoço.
13.

BIA
(Piscando o olho)
As minhas cenas, onde estão?!

Bia desvia várias vezes os olhos para o lado, sinalizando o


carrinho de compras.

ZÉROLHO
Esse nabo também te roubo cenas?

BIA
E não foram poucas! Onde é que
estão, caralho?!

NINO
(Virando a cabeça na
direção do carrinho)
Estão... Ali.

Bia larga Nino, caminha até ao carrinho, pega num dos sacos
de compras e dirige-se ao fundo do corredor, parando e
virando-se para Nino uma última vez antes de se ir embora,
alongando desnecessariamente a sua peça de teatro.

BIA
Só não te fodo a boca, porque, pelo
que estou a ver, o Zé já vai tratar
disso.

Bia levanta a mão fechada num punho apenas com o polegar


estendido.

BIA (CONT'D)
(Não se esforçando por
esconder sarcasmo)
Boa sorte, Zé.

Bia desaparece por detrás das estantes. Mel está incrédulo. O


zarolho atira-se para o carrinho e tira o saco de compras,
abrindo-o com uma ferocidade animal. Zérolho mostra-se
frustrado e, imediatamente a seguir, furioso, caminhando em
direção a Nino, sendo que o seu caminhar é interrompido por
uma rasteira do mendigo, recém-aparecido, que o faz tropeçar.
O zarolho bate com a cabeça numa das prateleiras e cai ao
chão. Não fica inconsciente, mas está com dificuldades em
levantar-se. O velho, rindo-se ainda mais, senta-se em cima
de Zérolho e abana-se para cima e para baixo.

MENDIGO
Prontos, miúdos? Preparados?

Mel e Nino correm em direção à saída, deixando o velho a


berrar ao longe.
14.

EXT. SUPERMERCADO - NOITE

Os dois amigos, suados e ofegantes, páram e encostam-se à


parede, tentando recuperar o fôlego, descendo até ao chão. As
luzes do supermercado estão agora desligadas e as portas
fechadas. Ouvem-se passos.

NIX
(Confusa)
Estão aí a fazer o quê?

MEL
Nix! Finalmente!

NINO
Nix! Finalmente!

Mel e Nino atiram-se instintivamente para a frente e agarram-


se às pernas de Nix.

NIX
(Ainda confusa)
Vocês estão bem...?

MEL
Sim!

NINO
Sim!

Nix levanta os amigos.

NIX
Já estamos atrasados para o spot.

NINO
(Surpreendido e confuso)
Já?!

NIX
Claro que já. E as cenas?

MEL
Eish...

NINO
Eish...

NIX
Sempre a mesma merda... Siga.
15.

Os três amigos, banhados apenas pela fraca e doentia luz


amarela dos postes de iluminação pública, caminham,
descansados, como se de uma noite como outra qualquer se
tratasse. Mel e Nino verificam os bolsos. Mel pega no seu
telemóvel partido e observa-o, desiludido consigo mesmo. Tira
também do bolso a raspadinha e, com um olhar esperançoso,
começa a raspar.

NINO
Se ganhares alguma cena, fico com
cinquenta por cento.

MEL
Ficas, ficas...

Mel pára subitamente de raspar.

MEL (CONT'D)
(Incrédulo)
Oh! Não acredito...

CUT TO BLACK.

FIM

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