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© Ricardo Martín

Natalia Sanmartin Fenollera é uma jornalista espanhola que trabalha atualmente no jornal diário Cinco Días,
onde é chefe da secção de Opinião.
Em 2013 publicou o seu primeiro romance, O despertar da menina Prim, que rapidamente se tornou um êxito
junto do público e da crítica, tendo sido traduzido para inúmeros países.
O despertar da menina Prim
Natalia Sanmartin Fenollera

Publicado em Portugal por


Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt

Título original:
El despertar de la señorita Prim
© Natalia Sanmartin Fenollera c/o DOSPASSOS Agencia Literaria

Tradução: Artur Lopes Cardoso

Ilustração da capa: © Carlos Martín


Design da capa: © Grupo Planeta

1.ª edição em papel: novembro de 2017

ISBN 978-972-0-68951-1

Este livro respeita


as regras do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa.
A meus pais, Miguel e Cuca,
com amor, gratidão e admiração
Creem que têm saudades do passado,
mas, na realidade, a sua saudade
tem que ver com o futuro

John Henry Newman


A chegada
Em San Ireneo de Arnois, toda a gente comentou a chegada da menina Prim. Na tarde em que a
viram atravessar a aldeia, era apenas uma candidata a caminho de uma entrevista, mas os habitantes
do lugar conheciam-se suficientemente bem para saber que uma vaga era, ali, um bem efémero.
Muitos deles ainda se lembravam do que acontecera, uns anos antes, com a professora da escola
primária. Então, apresentaram-se nada menos do que oito candidatas, mas só a três foi permitido
expor os seus talentos. Isso não revelava desinteresse pela educação – em San Ireneo de Arnois o
nível educativo era primoroso –, mas a convicção, por parte dos seus habitantes, de que não é por
muito escolher que se aumentam as possibilidades de acertar. A proprietária da papelaria, uma
mulher capaz de se entregar, durante uma tarde inteira, a decorar uma simples folha de papel, não
hesitou em qualificar de extravagância a possibilidade de dedicar mais do que uma manhã à seleção
de uma professora. Todos se mostraram de acordo. Naquela comunidade, era às famílias, cada uma
em função do seu perfil, da sua ambição e das suas possibilidades, que competia formar
intelectualmente os filhos. A escola era vista como um elemento subsidiário – indesejável, mas
necessário – em que uma boa parte dos pais se apoiava. Uma boa parte, mas não todos. Assim,
porquê dedicar-lhe tanto tempo?
Aos olhos dos visitantes, San Ireneo de Arnois parecia um lugar ancorado no passado. As antigas
casas de pedra, rodeadas de jardins cheios de rosas, erguiam-se, orgulhosas, em torno de um
punhado de ruas que desembocavam numa praça buliçosa. Ali reinavam pequenos estabelecimentos e
lojas que compravam e vendiam com o ritmo regular de um coração saudável. Os arredores da aldeia
estavam salpicados por quintas minúsculas e oficinas que forneciam bens às lojas locais. Era uma
sociedade reduzida. Na vila, residia um laborioso grupo de agricultores, artesãos, comerciantes e
profissionais, um círculo recolhido e seleto de académicos, e a sóbria comunidade monacal da
abadia de San Ireneo. Aquelas vidas entrelaçadas formavam um verdadeiro universo. Eram as
engrenagens de uma comunidade de pequenos proprietários que se orgulhava de se autoabastecer
através do comércio, da produção artesanal de bens e serviços e do encanto da cortesia local.
Provavelmente, aqueles que diziam que parecia um lugar ancorado no passado tinham razão. E, no
entanto, apenas uns anos antes, ninguém teria vislumbrado ali o menor indício do mercado vivo e
alegre que agora recebia os visitantes.
Que acontecera naquele intervalo? Se, quando ia a caminho do seu novo emprego, a menina Prim
tivesse feito essa pergunta à dona da papelaria, esta ter-lhe-ia explicado que aquele mistério de
prosperidade era fruto da tenacidade de um homem jovem e da sabedoria de um velho monge. Mas
como, no seu percurso apressado em direção à casa, a menina Prim não reparou no belo
estabelecimento, a dona não lhe pôde revelar com orgulho que San Ireneo era, na realidade, uma
florescente colónia de exilados do mundo moderno em busca de uma vida simples e rural.
I

O homem do cadeirão
1
Precisamente no mesmo momento em que o pequeno Septimus se espreguiçava, depois da sesta,
enfiava os dois pés de onze anos numas sapatilhas para uns pés de catorze e se aproximava da janela
do seu quarto, a menina Prim atravessava a oxidada grade do jardim. A criança olhou-a com
curiosidade. À primeira vista, não parecia nervosa, nem sequer um pouco assustada. Também não
tinha aquele ar ameaçador do anterior responsável, aquela aparência de saber perfeitamente que tipo
de livro iria pedir quem quer que ousasse pedir um.
– Se calhar, agrada-nos – disse para consigo, esfregando os olhos com as duas mãos. Depois,
afastou-se da janela, abotoou, à pressa, o casaco e desceu as escadas para ir abrir a porta.
A menina Prim, que naquele momento avançava, calmamente, entre maciços de hortênsias azuis,
começara a sua jornada convencida de que aquele era o dia por que esperara durante toda a vida. Ao
longo dos anos, fantasiara com uma oportunidade como aquela. Desenhara-a, imaginara-a, refletira
sobre cada um dos seus pormenores. E, no entanto, naquela manhã, enquanto atravessava o jardim,
Prudencia Prim teve de reconhecer que, no seu coração, não havia a mais remota aceleração nem a
mais leve agitação que indicasse que chegara o grande dia.
Uma coisa sabia, iriam observá-la com curiosidade. As pessoas costumavam olhar assim para
ela, tinha plena consciência disso. Como também sabia que em nada se parecia com os que
costumavam examiná-la desse modo hostil. Nem todos eram capazes de admitir ter sido vítimas de
um erro histórico fatal, dizia a si própria, com orgulho. Nem todos viviam, como ela, com a sensação
permanente de terem nascido num momento e num meio errados. Nem sequer todos podiam ter
consciência, como ela, de que tudo o que valia a pena admirar, tudo o que era belo, excelso, parecia
estar a desaparecer sem quase deixar rasto. O mundo, queixava-se Prudencia Prim, perdera o gosto
pela harmonia, o equilíbrio e a beleza. E nem todos podiam ver essa verdade, tal como nem todos
podiam sentir, no seu interior, a firme determinação de resistir.
Foi precisamente essa férrea decisão que levou a menina Prim a responder, três dias antes de
atravessar o carreiro de hortênsias, a um breve anúncio publicado no jornal:

«Procura-se espírito feminino que não esteja subjugado pelo mundo. Capaz de exercer
as funções de bibliotecária para um cavalheiro e os seus livros. Com facilidade de convívio
com cães e crianças. De preferência sem experiência laboral. As detentoras de curso
superior e pós-graduação devem abster-se.»

A menina Prim só correspondia em parte àquele perfil. Não estava de modo algum subjugada
pelo mundo, isso era claro. Tal como o era a sua indubitável capacidade de exercer as funções de
bibliotecária de um cavalheiro e dos seus livros. Mas não tinha experiência de lidar com crianças
nem cães e muito menos de conviver com eles. No entanto, para ser sincera, o que mais a preocupava
era a dificuldade de encaixar o seu perfil no requisito «as detentoras de curso superior e pós-
graduação devem abster-se».
A menina Prim considerava-se uma mulher fortemente qualificada. Licenciada em Relações
Internacionais, Ciências Políticas e Antropologia, era doutorada em Sociologia e especialista em
biblioteconomia e arte russa medieval. As pessoas que a conheciam olhavam com curiosidade para
aquele currículo extraordinário, sobretudo atendendo a que a sua titular era uma simples
administrativa sem ambições conhecidas. Não compreendiam, dizia a si própria com displicência,
não compreendiam a ideia de excelência. Como poderiam, num mundo em que nada significava já o
que deveria significar?
– É a nova bibliotecária dele?
A aspirante inclinou a cabeça, surpreendida. Ali, no alpendre do que parecia ser a entrada
principal da casa, deparou-se com o olhar de um miúdo de cabelo loiro e expressão carrancuda.
– É a senhora ou não? – insistiu o pequeno.
– Suponho que ainda é cedo para o dizer – respondeu ela. – Estou aqui por causa do anúncio
posto pelo teu pai.
– Ele não é nenhum pai – limitou-se a replicar o miúdo, antes de dar meia-volta e de se
precipitar, a correr, para o interior da casa.
A menina Prim contemplou, desconcertada, a ombreira da porta. Tinha a certeza absoluta de que
lera, no anúncio, uma referência explícita a um cavalheiro com filhos. Naturalmente, não era
necessário que um cavalheiro tivesse filhos; ao longo da vida, conhecera alguns que os não tinham,
mas, quando uma frase unia a palavra cavalheiro à palavra crianças, que outra coisa se poderia
pensar?
Foi nesse momento que ergueu os olhos e reparou, pela primeira vez, na casa. Atravessara o
jardim tão embrenhada nos seus pensamentos que nem sequer se apercebera dela. Era um edifício
antigo, com uma fachada vermelha descolorida, cheio de janelas e portadas que comunicavam com o
jardim. Uma construção pesada e descascada, com as paredes cobertas de trepadeiras que não
pareciam ter conhecido um jardineiro, cheia de gretas e rachas. O alpendre da frente, formado por
quatro velhas colunas sobre as quais pendia uma enorme glicínia, ostentava um aspeto imponente e
desolador.
– Deve ser gelada, no inverno – murmurou.
Então, consultou o relógio; estava-se quase a meio da tarde e o vento fresco agitava
caprichosamente as cortinas, brancas e leves como velas. «Parece um barco», pensou, «um velho
barco encalhado.» E, dando uma volta, aproximou-se da primeira janela, disposta a encontrar um
anfitrião que tivesse atingido, pelo menos, a maioridade.
Assim que se aproximou da janela, a menina Prim descobriu uma sala grande, muito desordenada,
repleta de livros e crianças. Havia mais livros do que crianças, muitos mais, mas, por qualquer
razão, a relação de forças parecia equilibrada. A candidata contou trinta braços, trinta pernas e
quinze cabeças. Os seus proprietários estavam estendidos em cima do tapete, deitados em velhos
sofás, enrolados em cadeirões de couro desconjuntados. Também observou dois enormes cães
estendidos em cada um dos lados do cadeirão colocado em frente da lareira, de costas para a janela.
O rapazinho que a recebera no alpendre estava ali, no tapete, conscienciosamente inclinado sobre um
caderno. Os restantes levantavam a cabeça de vez em quando, para responder a um interlocutor, cuja
voz parecia brotar diretamente do cadeirão em frente da lareira.
– Vamos começar – disse o homem do cadeirão.
– Podemos pedir pistas? – perguntou uma das crianças.
Em resposta, a voz masculina limitou-se a recitar:

Ultima Cumaei venit iam carminis aetas;


magnus ab integro saeclorum nascitur ordo:
iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;
iam nova progenies caelo demittitur alto.

– E então? – perguntou, ao terminar.


As crianças guardaram silêncio.
– Poderia ser Horácio – respondeu o homem –, mas não é. Vamos, tentem lá outra vez. Quem se
atreve a traduzir?
A candidata, que contemplava a cena escondida atrás dos grossos reposteiros que emolduravam
as cortinas leves, pensou que a pergunta era excessiva. Aquelas crianças eram demasiado novas para
reconhecer uma obra através de uma única citação, sobretudo escrita em latim. Apesar de ter lido
Virgílio com prazer, a menina Prim não aprovava aquele jogo, não o aprovava de modo algum.
– Vou ajudá-los um pouco – continuou a voz vinda do cadeirão. – Estes versos foram dedicados a
um político romano de princípios do Império. Um político que chegou a ser amigo de grandes homens
que já estudámos, como Horácio. Um desses amigos dedicou-lhe estas linhas por ter mediado a Paz
de Brundisium, que, como sabem ou deveriam saber, pôs termo a um confronto entre António e
Octávio.
O homem calou-se e olhou para as crianças – ou foi isso que imaginou a menina Prim no seu
esconderijo – num gesto de muda interrogação que não obteve resposta. Só um dos cães, como se
quisesse dar testemunho do seu interesse por aquele acontecimento histórico, se levantou, aproximou
da lareira e voltou a deitar-se em cima do tapete.
– Estudámos tudo isso, absolutamente tudo, na primavera passada – lamentou-se, então, o homem.
Sem levantarem a cabeça, as crianças mordiscavam pensativamente as esferográficas,
balançavam despreocupadamente os pés, apoiavam as bochechas nas mãos.
– Bando de bestas ignorantes – insistiu a voz, num tom irritado. – Que diabo se passa hoje?
A menina Prim sentiu uma onda de calor subir-lhe ao rosto. Era verdade que não tinha a menor
experiência com miúdos pequenos, mas era mestra numa arte chamada delicadeza. A menina Prim
acreditava firmemente que a delicadeza era a força que movia o universo. Onde esta faltava, sabia-o
por experiência, o mundo tornava-se escuro e tenebroso. Indignada com a cena e um pouco
entorpecida, tentou mexer-se com cuidado no seu esconderijo, mas o inesperado grunhido de um dos
cães fê-la desistir da tentativa.
– Está bem. – O tom do homem tornou-se mais suave. – Vamos tentar outro mais fácil.
– Do mesmo autor? – perguntou uma rapariga.
– Exatamente do mesmo. Estão preparados? Vou recitar apenas meia linha:

… facilis descensus Averno…

Uma inesperada onda de braços erguidos e de exclamações ruidosas de triunfo demonstrou


claramente que, desta vez, os pupilos sabiam a resposta.
– Virgílio! – gritaram um a um, num coro estridente. – É a Eneida!
– É isso mesmo, é isso mesmo – riu o homem, satisfeito. – E aquilo que recitei antes eram as
Éclogas, a IV Écloga. Por conseguinte, o estadista romano que foi amigo de Virgílio e de Horácio
é…
Antes que alguma das crianças pudesse responder, a voz clara e musical da menina Prim emergiu
das cortinas e encheu a sala.
– Asínio Polião, evidentemente.
Quinze cabeças infantis viraram-se em simultâneo para a janela. Surpreendida com a própria
audácia, a candidata deu, instintivamente, um passo atrás. Só a consciência da sua própria dignidade
e a importância do motivo da sua presença a impediram de sair dali a correr.
– Lamento profundamente ter entrado desta maneira – disse, enquanto se dirigia, devagar, para o
centro da sala. – Sei que deveria ter tocado à campainha, mas o jovem que me abriu a porta deixou-
me sozinha no alpendre. Ocorreu-me a ideia de me aproximar da janela e foi então que os ouvi falar
de Virgílio e Polião. Lamento muito, muitíssimo, senhor.
– É a candidata ao posto de bibliotecária?
O homem levantou-se e fez a pergunta num tom suave, como se não se tivesse apercebido de que
uma desconhecida acabava de irromper pela sala através de uma janela. «É um cavalheiro», pensou a
menina Prim com admiração, «um verdadeiro cavalheiro». Talvez o seu juízo houvesse sido
precipitado, talvez tivesse sido demasiado ousada.
– Sim, senhor. Telefonei esta manhã. Vim em resposta ao anúncio.
O homem do cadeirão contemplou-a por segundos, os necessários para se aperceber de que a
mulher que tinha na sua frente era demasiado jovem para o cargo.
– Trouxe o seu currículo, menina…?
– Prim, menina Prudencia Prim – respondeu ela, acrescentando, imediatamente, em jeito de
desculpa: – Sei que não é um nome convencional.
– Diria que é um nome com carácter. Mas, se não se importa, vejamos, para já, o seu currículo.
Trouxe-o consigo?
– No anúncio, dizia que a candidata não deveria ter títulos académicos, pelo que pensei que não
mo pediriam.
– Percebo que não tem títulos académicos superiores. Quero eu dizer nenhum título para além de
certas noções de biblioteconomia, é isso?
– Na realidade, tenho alguns títulos – replicou ela, após uma pausa. – Uns quantos… talvez
mesmo bastantes.
– Bastantes? – O tom do homem do cadeirão endureceu ligeiramente. – Menina Prim, parece-me
que o anúncio era muito claro.
– Era-o, sem dúvida – apressou-se ela a dizer. – Claro que era. Mas permita-me que lhe explique
que não sou uma pessoa convencional do ponto de vista académico. Nunca pretendi tirar partido, a
nível profissional, dos meus títulos, não os utilizo, nunca falo deles e, evidentemente – fez uma pausa
para respirar – pode ter a certeza de que não interferirão no meu trabalho.
Quando se calou, a bibliotecária notou que as crianças e os cães a observavam em silêncio, havia
um bom bocado. Lembrou-se então do que o miúdo do alpendre dissera acerca do homem com quem
estava agora a falar. Seria possível que entre todo aquele exército de criaturas não houvesse um
único filho seu?
– Diga-me – insistiu ele – de que títulos estamos a falar? Mais: de quantos?
A aspirante engoliu em seco, enquanto pensava qual poderia ser a melhor maneira de enfrentar a
espinhosa questão.
– Se me der um papel, posso fazer-lhe um breve esquema.
– Fazer-me um breve esquema? – exclamou ele com estupor. – Mas perdeu o juízo? Por que razão
uma pessoa cujos títulos exigem que sejam expostos num breve esquema se candidata a um lugar que
exclui títulos?
A menina Prim hesitou por um momento, antes de responder. Naturalmente, queria dizer a
verdade, devia dizer a verdade, desejava urgentemente fazê-lo, mas sabia que, se o fizesse, não
conseguiria o emprego. Não podia dizer que sentira uma palpitação ao ler o anúncio. Não podia
explicar que o pulso lhe acelerara, que a vista se lhe enevoara, que naquelas poucas linhas
vislumbrara um repentino amanhecer. Mentir estava, por outro lado, fora de questão. Ainda que
quisesse e, decididamente, não queria, havia aquele pormenor penoso do enrubescimento do nariz. A
menina Prim tinha um nariz dotado de uma grande sensibilidade. Não enrubescia perante gentilezas,
também não o fazia perante gritos, nunca reagia a um dito arrogante nem sequer a um insulto. Mas, em
caso de mentira, em caso de mentira, não havia nada a fazer. Uma inexatidão involuntária, um único
exagero, um inocente engano, e o seu nariz ruborizava-se como uma chama.
– E então? – inquiriu o homem do cadeirão.
– Procurava um refúgio – disse ela bruscamente.
– Um refúgio? Quer dizer um lugar onde viver? – O homem olhou para os sapatos com uma
expressão inquieta. – Menina Prim, começo por lhe pedir que me perdoe pelo que vou dizer. A
pergunta que lhe vou fazer é delicada e é-me penoso formulá-la, mas tenho o dever de o fazer. Será
que está em apuros? Trata-se de um mal-entendido? De um incidente infeliz? Talvez uma pequena
irregularidade legal?
A bibliotecária, que provinha de uma família vigorosamente formada na grandeza da virtude
cívica, reagiu viva e acaloradamente perante tal acusação.
– É claro que não, senhor, de modo algum! Sou uma pessoa honrada, pago os meus impostos,
pago as multas de trânsito, faço pequenas doações a entidades beneficentes. Nunca cometi qualquer
ato delituoso, nem sequer uma infração. Não há uma única mancha nem no meu registo nem no da
minha família. Se quiser comprovar…
– Não é necessário, menina Prim – respondeu ele, desconcertado. – Queira aceitar as minhas
desculpas, é evidente que interpretei mal as suas palavras.
A candidata, perfeitamente serena uns minutos antes, parecia agora profundamente alterada. As
crianças observavam-na sem dizer nada.
– Não compreendo como pôde pensar algo assim – lamentou-se.
– Perdoe-me, peço-lhe – insistiu de novo o homem. – Como posso compensá-la por essa
indelicadeza?
– Podemos contratá-la. – A voz do miúdo desgrenhado que aparecera no alpendre elevou-se
inesperadamente das profundezas do tapete. – Dizes sempre que há que fazer aquilo que, em justiça,
há que fazer. É isso que dizes sempre.
O homem do cadeirão pareceu desconcertado por um instante. Depois, sorriu ao rapazinho, fez
um gesto de aprovação e aproximou-se da candidata com um ar compungido.
– Menina Prim, creio que uma mulher que suporta uma indelicadeza como a que acabo de cometer
sem dar meia-volta e desaparecer merece toda a minha confiança, seja qual for a tarefa de que venha
a ser incumbida. Far-me-ia o favor de aceitar o emprego?
A candidata abriu a boca para dizer não, mas teve imediatamente uma visão fugaz. Contemplou os
longos e sombrios dias de trabalho no escritório, ouviu as entediantes conversas sobre desportos,
recordou os sorrisos trocistas e os olhares maldizentes, rememorou as indelicadezas ditas quase a
meia-voz. Depois, voltou a si e tomou uma decisão. Ao fim e ao cabo, ele era um cavalheiro. E quem
não quereria trabalhar para um cavalheiro?
– Quando começamos, senhor? – E, sem esperar a resposta, deu meia-volta e saiu pela janela,
disposta a ir buscar as malas.
2
Mal entrou naquele que iria ser o seu quarto durante os próximos meses, a bibliotecária sentou-se
na cama e contemplou as grandes janelas que davam para o terraço. Não havia muitos móveis, mas os
que havia eram exatamente aquilo que deveriam ser. Uma otomana estofada com um velho damasco
azul, um enorme espelho veneziano, uma lareira georgiana de ferro, um armário pintado num verde-
azulado e dois tapetes antigos Wilton. «Demasiado luxo para uma bibliotecária», pensou, embora, na
realidade, a palavra correta não fosse luxo. Tudo ali parecia ter sido usado. Tudo fora vivido,
remendado, gasto. Tudo ressumava experiência. «Isto é o que há um século se considerava conforto»,
suspirou a menina Prim, começando a desfazer as malas.
Um rangido na madeira fez com que erguesse os olhos e os pousasse numa pintura colocada sobre
a lareira. Era uma pequena tábua com três figuras esboçadas pela mão de uma criança. O traço não
era mau, era até magnífico para alguém tão jovem, refletiu, enquanto admirava com prazer as
pinceladas do artista.
– É a Santíssima Trindade, de Rublev – disse, atrás de si, uma voz infantil, que já lhe era
familiar.
– Eu sei, muito obrigada, cavalheiro. Aliás, não deveriam bater antes de entrar? – replicou, ao
ver que o miúdo não estava sozinho.
– É que a porta estava aberta, não estava? – perguntou o rapaz aos três companheiros que se
amontoavam atrás dele e que fizeram um gesto de assentimento com a cabeça. – Esta é a minha irmã
Téseris, tem dez anos. Este é o Deka, tem nove, e a Eksi é a mais pequena e só tem sete anos e meio.
Eu chamo-me Septimus. Mas estes não são os nossos nomes verdadeiros – explicou em tom de
confidência.
A menina Prim observou os quatro irmãos e ficou assombrada ao comprovar que eram muito
diferentes. Embora o pequeno Deka tivesse um cabelo loiro e desordenado, como o do irmão mais
velho, a expressão travessa e, ao mesmo tempo, perfeitamente inocente do rosto nada tinha que ver
com o ar reflexivo da criança que a recebera no alpendre. Também não era fácil adivinhar que as
raparigas eram irmãs. Uma possuía uma beleza serena e suave, a outra irradiava encanto graças à
vivacidade.
Téseris segredou, de repente, qualquer coisa ao ouvido do irmão mais velho e, a seguir,
perguntou em voz baixa e suave:
– Menina Prim, acha que é possível atravessar um espelho?
A bibliotecária observou-a, desconcertada, mas não tardou a compreender o que a miúda queria
dizer.
– O meu pai costumava ler-me essa história, antes de eu adormecer – respondeu com um sorriso.
A rapariguinha olhou para o irmão, de soslaio.
– Eu disse-te que ela não compreenderia – afiançou o rapaz, muito seguro de si.
Em vez de replicar, a menina Prim abriu a segunda mala e retirou um quimono de seda natural, de
um verde-jade, que pendurou negligentemente no armário. Com que então lidar com crianças era isso,
pensou, um pouco aborrecida. Era a isso e não a qualquer outra coisa que se referia o anúncio. Não
se tratava de travessuras, de doces e de contos de fadas; tratava-se, quem diria, de mistérios e
adivinhas.
– Gosta do ícone de Rublev? – inquiriu o pequeno, agora entretido a folhear uns quantos livros
que saíam de uma mala.
– Muito – disse a bibliotecária, séria, enquanto colocava cada peça de vestuário no devido lugar.
– É uma obra magnífica.
A pequena Téseris ergueu a cabeça, ao ouvir a resposta.
– Os ícones não são obras, menina Prim, os ícones são janelas.
A bibliotecária deixou de pendurar vestidos e observou-a apreensivamente. Não havia dúvida de
que o homem que governava aquela casa se excedera em relação às crianças. Aos dez anos, não
havia razão para terem aquelas noções absurdas de ícones e janelas. Não é que fosse mau, claro que
não era mau; mas não era natural. Fadas e princesas, dragões e cavaleiros, rimas de Stevenson, bolos
de maçã; era isso que, no seu entender, uma criatura daquela idade deveria conhecer.
– Então foste tu que pintaste esta janela? – perguntou, fingindo desinteresse.
A pequena confirmou com um gesto de cabeça.
– Pintou-a de memória – acrescentou o irmão. – Viu-a na Galeria Tetriakov, há dois anos, sentou-
se diante dela e já não quis ver mais nada. Quando voltámos para casa, começou a pintá-la por todo
o lado. Em todas as salas há janelas dessas.
– Isso é impossível – respondeu secamente a menina Prim. – Ninguém pode pintar de memória
uma obra como esta. Muito menos uma criança de oito anos, como a tua irmã teria então; não pode
ser.
– Mas a menina não estava lá! – protestou Deka, com uma brusquidão inesperada. – Como pode
ter tanta certeza?
Em vez de responder, a bibliotecária aproximou-se lentamente da imagem, abriu a mala e retirou
de lá uma régua e um compasso. Ali estavam, não havia dúvida, a divisão octogonal, o círculo
exterior e interior, a forma do cálice entre as duas figuras.
– Como fizeste isto, Téseris? É impossível que o tenhas feito sozinha, mesmo com uma gravura
ao lado. Alguém te deve ter ajudado. Diz-me a verdade, foi o teu pai, o teu tio ou quem quer que seja
a pessoa que cuida de vocês?
– Ninguém me ajudou – respondeu a criança em voz baixa, mas firme. Depois, dirigiu-se à irmã
mais nova. – Não é verdade, Eksi?
– Ninguém a ajudou. Ela faz as coisas sempre sozinha – ratificou a irmã com solenidade,
enquanto se esforçava por se manter em equilíbrio num pé.
Perplexa perante aquela resistência fraterna, a menina Prim não insistiu. Se se tratasse de adultos,
os seus dotes de interrogação teriam esclarecido o equívoco facilmente. Mas uma criança não era um
adulto; havia uma grande diferença entre uma criança e um adulto. Uma criança podia gritar, podia
chorar ruidosamente, podia reagir de modo absurdo. E então que aconteceria? Uma empregada que,
no primeiro dia de trabalho, enfurece os membros mais vulneráveis da família não pode contar com
boas perspetivas. Sobretudo – estremeceu – depois de ter passado pelo percalço de entrar na casa de
forma irregular.
– E que faziam crianças tão pequenas como vocês na Galeria Tetriakov? Moscovo fica muito
longe daqui.
– Fomos lá para estudar arte – respondeu Septimus.
– Queres dizer com a escola?
As crianças entreolharam-se divertidas.
– Oh, não! – disse o rapaz. – Nós nunca fomos à escola.
A frase, proferida com toda a naturalidade, caiu como uma bomba na mente já um pouco sobre-
excitada da bibliotecária. Crianças sem escolarização, não podia ser verdade. Um grupo de crianças
possivelmente meio selvagens e por escolarizar, mas onde viera parar? A menina Prim recordou a
sua primeira impressão do homem que a contratara. Era, sem a menor dúvida, um indivíduo estranho.
Um extravagante, um anacoreta, quem sabe se não mesmo um louco.
– Menina Prim – a voz baixa e educada do homem do cadeirão chegou ao quarto, através das
escadas –, assim que tenha tido tempo para se instalar, gostaria de falar consigo na biblioteca, por
favor.
A bibliotecária vangloriava-se secretamente de uma qualidade pessoal: a sua tenacidade para
levar a cabo aquilo que considerava correto em cada momento. E, naquele caso, refletiu, o correto
seria pedir desculpa e abandonar imediatamente a casa. Animada por essa ideia, fechou rapidamente
as malas, retocou o penteado diante do espelho, deu uma última vista de olhos ao ícone de Rublev e
preparou-se para cumprir o dever.
– Com certeza – respondeu alto. – Vou já descer.

O homem do cadeirão recebeu-a de pé, com as mãos atrás das costas. Enquanto a bibliotecária
desfazia as malas, dedicara-se a ensaiar a melhor forma de lhe explicar quais iriam ser as suas
funções. Não era tarefa fácil, porque não necessitava de uma bibliotecária comum. Após a saída do
anterior responsável, a biblioteca precisava de uma recatalogação e organização completas. Os
romances, ensaios e livros de história estavam cheios de pó e os de teologia povoavam todas as
divisões da casa, em maior ou menor medida. Na véspera, encontrara as homilias de S. João
Crisóstomo na despensa, entre os frascos de compota e os pacotes de lentilhas. Como teriam chegado
ali? Era difícil saber. Poderiam ter sido as crianças, pois tratavam os livros como se fossem
cadernos ou lápis; mas também poderia ter sido ele. Não era a primeira vez, provavelmente não seria
a última. E, no fundo, tinha de reconhecer que aquilo era o resultado das suas próprias normas.
Lembrava-se muito bem de que o seu pai proibira sempre que os livros saíssem da biblioteca.
Isso obrigara todos os irmãos a escolher entre o ar livre e a leitura. As tardes da sua infância
decorreram, pois, ao lado de Júlio Verne, Alexandre Dumas, Stevenson, Homero, Walter Scott. Lá
fora, ao sol, as restantes crianças gritavam em alvoroço, mas ele estava sempre lá dentro, a ler, a
mente submersa em mundos que os outros mal intuíam. Uns anos depois, quando regressou a casa,
após uma longa ausência, ele próprio alterou as regras. Adorava ver as crianças a ler ao sol,
estendidas na erva do jardim, sentadas nos velhos e confortáveis ramos de algumas árvores,
mordiscando maçãs, engolindo torradas com manteiga, deixando as marcas pegajosas de dedos
naqueles volumes que tanto amava.
– Está bem instalada? – perguntou cortesmente, tentando quebrar o gelo.
– Muito bem, obrigada – respondeu a bibliotecária. – Mas receio que não vá permanecer.
– Permanecer?
– Há demasiadas interrogações no ar. – A menina Prim ergueu ligeiramente o queixo.
– Não entendo a que se refere – disse ele, com delicadeza. – Mas, se puder satisfazer a sua
curiosidade, aqui me tem. Pensava que chegáramos a um acordo.
Ao ouvir a palavra curiosidade, o rosto da bibliotecária endureceu.
– Não é uma questão de curiosidade, mas não sei que tipo de família é este. Vi várias crianças
por escolarizar. Várias crianças, em geral, são já um grande desafio para qualquer pessoa, mas
várias crianças em estado silvestre trata-se, creio, de uma imprudência.
– Estou a ver que a questão da escola lhe chamou a atenção – murmurou ele, franzindo
ligeiramente o sobrolho. – Ora bem, menina Prim, tem razão; se vai trabalhar aqui, tem o direito de
saber que tipo de família é esta, embora deva lembrar-lhe que as crianças não estarão a seu cargo.
Não fazem parte das suas funções.
– Eu sei, senhor, mas as crianças, como hei de dizer, existem.
– Existem, sem dúvida, e, à medida que os dias forem passando, terá cada vez maior consciência
da existência delas.
– Quer com isso dizer que são mal-educadas?
– Quero com isto dizer que as crianças são a minha vida.
A bibliotecária ficou surpreendida perante a resposta. Apesar da sua primeira impressão, parecia
haver naquele homem vislumbres de delicadeza, muito mais delicadeza do que ela imaginara, uma
delicadeza estranha, sóbria e concentrada.
– As crianças… são suas? Quero dizer… algumas são suas?
– Refere-se a se são meus filhos? Não, não são. Quatro são filhos da minha irmã, mas estão sob a
minha tutela desde que ela morreu, há cerca de cinco anos. Os restantes são miúdos de San Ireneo
que vêm aqui assistir às aulas, duas ou três vezes por semana.
A menina Prim baixou os olhos, circunspecta. Agora percebia por que razão aquelas criaturas
eram educadas em casa em vez de irem à escola. Estava perante um caso evidente daquilo a que a
psicologia moderna chama síndrome de luto prolongado. Uma circunstância decerto terrível, mas que
não justificava de modo algum aquele comportamento. Não era bom para as crianças serem educadas
em casa, e, embora fosse difícil e até embaraçoso falar disso, sabia que era seu dever dizê-lo.
– Sinto muito a sua perda – disse, num tom semelhante ao que poderia ter usado para falar com
um animal ferido –, mas não deve fechar-se na dor. Tem de pensar nos seus sobrinhos, deve pensar
neles e no seu futuro. Não pode desejar que o seu desgosto os encerre nesta casa e os prive de uma
educação decente.
Ele contemplou-a por um instante, como se não compreendesse. Depois, baixou os olhos, abanou
a cabeça e esboçou um rápido sorriso. A bibliotecária, que não era propensa ao romantismo, ficou
surpreendida consigo própria ao pensar em como um sorriso inesperado pode iluminar uma sala
escura.
– Uma educação decente? Pensa que sou um homem triste que retém os sobrinhos e não os deixa
frequentar a escola para não se sentir só, correto?
– E não é? – respondeu ela com cautela.
– Não, não sou.
O homem dirigiu-se ao minibar que havia perto de uma das janelas, onde uma dúzia de copos
finos de cristal e seis pesados copos de whisky partilhavam o espaço com uma ampla variedade de
vinhos e licores.
– Quer beber alguma coisa, menina Prim? A esta hora, costumo tomar um aperitivo. Apetece-lhe
um Porto?
– Obrigado, senhor, mas nunca bebo.
– Importa-se de que eu o faça?
– De modo algum, está em sua casa.
O homem virou-se e observou-a com curiosidade, enquanto tentava adivinhar se haveria
sarcasmo por detrás daquelas palavras. Depois, bebeu um gole e pousou o copo diretamente sobre a
mesa, o que provocou um gesto involuntário, quase impercetível, de reprovação no rosto sereno da
bibliotecária.
– A verdade é que a minha opinião acerca da educação regulamentada é muito particular. Mas, se
decidir ficar a trabalhar aqui, bastar-lhe-á saber que educo os meus sobrinhos pessoalmente, porque
estou decidido a dar-lhes a melhor formação possível. Não tenho essas desculpas românticas que me
atribui, menina Prim. Não estou magoado, não me sinto deprimido, nem sequer posso dizer que estou
sozinho. A minha única intenção é que as crianças se possam tornar, um dia, tudo aquilo que a escola
moderna se mostra incapaz de produzir.
– Produzir?
– É a palavra exata, na minha opinião – respondeu ele, com um brilho divertido no olhar.
A bibliotecária permaneceu em silêncio. Seria aquela casa realmente o lugar adequado para uma
mulher como ela? Não se podia dizer que aquele homem fosse desagradável. Não era indelicado,
nem insultuoso, tão-pouco se detetava nos seus olhos o menor vestígio daquele olhar apreciativo que
tivera de suportar durante anos no seu ex-chefe. Porém, não havia delicadeza na forma como falava
com as crianças, nem sensibilidade naquele tom franco, ainda que cortês, com que se dirigia a ela. A
menina Prim teve de reconhecer que, no seu coração, subsistia uma certa mágoa pela torpe
insinuação que fizera acerca da sua pessoa, meia hora antes. E, no entanto, não era só isso. Havia
uma inquietante energia soterrada naquele rosto, algo indefinível que emulava troféus de caça,
antigas gestas e batalhas.
– Então, está decidida a partir? – perguntou, arrancando-a bruscamente aos seus pensamentos.
– Não, não estou. Queria uma explicação e tive uma explicação. Não posso dizer que partilho da
sua visão sombria do sistema educativo, mas compreendo o receio de que a brutalidade do mundo
moderno aniquile a delicadeza de espírito das crianças. Ora bem, se me permite que lhe fale com
franqueza…
– Peço-lhe que o faça.
– Creio que é um pouco extremista na maneira de ver as coisas, embora me pareça que o é porque
se deixa guiar pelas suas convicções, e isso para mim é mais do que suficiente.
– Então, acha que exagero.
– Sim, acho que exagera.
O homem aproximou-se da estante, percorreu vários volumes com os dedos, deteve-se num tomo
velho e grosso, encadernado a couro, e retirou-o com todo o cuidado.
– Sabe o que é isto?
– Receio que não.
– De Trinitate libri.
– Santo Agostinho?
– Vejo que faz honra ao seu currículo. Ou será que tem, digamos, certas inquietações espirituais?
Sentindo-se pouco à vontade perante tal pergunta, a bibliotecária começou a brincar com o anel
de ametistas que usava na mão direita.
– É uma questão delicada e, se isso não o incomodar, preferiria não responder. Creio que tenho o
direito de o não fazer.
– Uma questão delicada – repetiu ele, em voz baixa, enquanto contemplava o livro. – Tem toda a
razão. Desculpe-me, mais uma vez.
A menina Prim mordeu o lábio antes de acrescentar:
– Espero que não haja qualquer problema quanto às minhas convicções pessoais, porque, no caso
de haver, para bem de ambas as partes, deveria dizer-mo agora.
– Absolutamente nenhum. Não foi contratada para dar aulas de teologia.
– É um alívio sabê-lo.
– Tenho a certeza disso – retorquiu ele, com um sorriso.
Fez-se um longo silêncio na sala, quebrado apenas pelas vozes risonhas e distantes das crianças,
vindas do jardim.
– Gostaria de mencionar que os nomes numéricos dos miúdos me surpreenderam muito – disse,
finalmente, a bibliotecária numa tentativa titânica de avançar para terrenos menos conflituosos.
– Na realidade, são alcunhas – riu-se ele – e têm muito que ver com a minha incapacidade de
recordar aniversários. Septimus nasceu em setembro, o irmão, Deka, em outubro, Téseris, em abril e
Eksi, a mais nova, em junho. Sou um amante das línguas clássicas, e este sistema ajudou-me, mais do
que uma vez, a encontrar uma saída quando me vi em apuros.
Enquanto falava, apontou para a desordem da sala. Em cima das mesas e estantes estava
empilhado um grande número de livros, em filas duplas, triplas e até quádruplas, entre enormes
molhos de papéis, velhos mapas, fósseis, minerais e conchas.
– Receio que o estado da minha biblioteca lhe diga tudo o que precisa de saber acerca da minha
capacidade organizativa.
– Não se preocupe, a desordem não me impressiona.
– Regozijo-me com isso, mas aposto que a incomoda.
A menina Prim não soube o que haveria de responder e, uma vez mais, optou por mudar de
assunto.
– A Téseris diz que pinta ícones de memória.
– E, claro, não acredita nisso.
– Insinua que deveria acreditar?
Em vez de responder, o homem voltou a aproximar-se da estante, para arrumar o pesado tomo
encadernado a couro. Depois, dirigiu-se para a lareira, pegou num caderno que repousava sobre a
prateleira e entregou-o à bibliotecária.
– Esta é a lista de todas as obras existentes na biblioteca. Está ordenada por autores; foi
elaborada pelo seu antecessor. Gostaria de que, esta noite, se não estivesse demasiado cansada, lhe
desse uma vista de olhos. Assim, amanhã, estará em condições de perceber qual o trabalho que quero
que faça em relação a este velho e poeirento caos. Acha bem?
A menina Prim desejava continuar a falar, mas compreendeu que, para o seu novo chefe, a
conversa já dera o que tinha a dar.
– Acho perfeito.
– Ótimo. O jantar é às nove e o pequeno-almoço, às oito.
– Se achar bem, preferiria tomar as refeições principais no meu quarto. Posso eu própria cozinhar
qualquer coisa e levá-la.
– Far-lhe-ão chegar as refeições da cozinha, menina Prim. Nesta casa, dispomos de uma boa
logística. Espero que descanse na primeira noite aqui – disse, estendendo-lhe a mão.
A bibliotecária sentiu-se tentada a protestar. Não lhe agradava a ideia de um quase desconhecido
se arrogar o poder de decidir como, quando ou o que devia comer. Não gostava, de modo algum,
daquela forma dominadora de tomar as coisas como garantidas.
– Boa noite, senhor – disse docilmente, antes de se retirar.
3
A menina Prim não soube com certeza se o galo a despertara ou se o seu sobressalto fora
consequência natural de um sono agitado. Havia já quase três semanas que estava naquela casa e
continuava a sentir-se desorientada de cada vez que acordava. Sonolenta, esticou-se preguiçosamente
debaixo dos lençóis e, a seguir, olhou para o relógio. Dispunha ainda de duas horas para se levantar
e começar a trabalhar para ele. Ali em cima estava a salvo, suspirou com alívio. A salvo de ordens
estranhas e sem sentido, de sorrisos inesperados que preludiavam ainda mais ordens, de olhares
desconcertantes, de perguntas cujo significado último não conseguia desvendar. Estaria a troçar dela?
Mais parecia que estava a estudá-la, o que se revelava quase mais irritante.
Ainda a dormitar, olhou de relance para o relógio. Não queria encontrar-se com ele e com as
crianças a caminho da abadia. A menina Prim sempre se considerara uma mulher de espírito aberto,
mas não aprovava o costume de obrigar quatro miúdos a ir todos os dias a pé a um mosteiro, antes de
tomarem o pequeno-almoço. É verdade que, quando voltavam, pareciam extraordinariamente alegres,
apesar da longa caminhada, do ar fresco da manhã e do jejum. Mas, evidentemente, ela sabia de
muitas formas de influenciar crianças.
Quando saiu de casa, meia hora depois, o sol já começava a aquecer. Atravessou rapidamente o
jardim e abriu o portão de ferro, que chiou longa e ruidosamente. Porque se negava aquele homem a
restaurar as coisas? A menina Prim admirava a pulcritude, amava a beleza, e, porque a amava,
incomodava-a ver aquele portão envelhecido, os quadros por restaurar entristeciam-na, ficava
indignada quando encontrava incunábulos manchados de manteiga nas prateleiras da estufa.
– Este homem é um desastre – murmurou, mal-humorada.
Em vez de seguir a estrada, decidiu virar à direita e percorrer um estreito caminho rural que
atravessava os campos de lavoura, cruzava o bosque e chegava à aldeia. Naquela manhã, precisava
urgentemente de comprar cadernos e etiquetas. No dia anterior, tivera um pequeno conflito com o seu
chefe, o quinto desde que chegara. Este entrara na biblioteca e dissera-lhe claramente que não queria
que utilizasse ficheiros informáticos para lhe classificar os livros.
– Muito bem, se é esse o seu desejo, não os utilizarei – respondeu a menina Prim, com uma
docilidade forçada.
Em seguida, acrescentara que também não era a favor das máquinas de escrever, por muito
antigas e poeirentas que fossem.
– Não serei eu a exigi-las – murmurou a bibliotecária, os lábios numa linha fina.
Foi então que não conseguiu resistir a dizer:
– Talvez deseje que catalogue os livros com uma pena?
Ele celebrara aquela ironia com um sorriso agradável, um cavalheirismo requintado e uma
delicadeza admirável. Mas, ao fim de três semanas naquela casa, a menina Prim já tinha perfeita
consciência de que a hipnotizante cortesia servia apenas para a obrigar a fazer as coisas.
– Se insistir muito nesse absurdo arcaísmo, fá-lo-ei à mão, mas aviso-o de que precisarei de
etiquetas. Não transigirei, quanto a este ponto. É uma questão de método, e uma bibliotecária sem
métodos não é uma bibliotecária.
– Minha querida menina Prim – dissera-lhe ele então –, pode usar todas as etiquetas que desejar,
obviamente que as pode usar. A única coisa que lhe peço é que não utilize etiquetas que brilhem no
escuro. Não tenho nada contra etiquetas às cores, absolutamente nada, exceto a minha total convicção
de que não se podem catalogar os sermões de S. Boaventura com verde-limão nem as obras de
Virgílio com cor-de-rosa fluorescente.
A bibliotecária sentira-se profundamente ultrajada com aquela resposta. Com os olhos a lançar
chispas e o nobre nariz empinado, vira-se obrigada a explicar que nunca utilizara etiquetas
fluorescentes, não era o tipo de profissional que recorresse a semelhante material, não precisava de
que ninguém lhe dissesse que uma biblioteca como aquela não admitia marcadores de cores
berrantes. E, então, ele rira-se dela e dissera-lhe algo ainda mais ofensivo:
– Vá lá, Prudencia, estava apenas a brincar, não se dê esses ares superiores. Parece a imagem
viva de A Liberdade guiando o povo.
Perturbada com a recordação daquela cena, a menina Prim interrompeu os pensamentos para
afastar vigorosamente umas silvas que lhe impediam o caminho. Dispunha-se a deixar para trás o
último grupo de árvores, quando chegou até ela o som de várias vozes familiares. No meio de uma
grande área plana, sentadas na erva, as raparigas da casa contemplavam animadamente os dois
irmãos a lutar um contra o outro com algo semelhante a remos ou paus. A bibliotecária agachou-se
atrás de um matagal, para poder observar a cena sem ser vista. Os rapazes usavam velhas máscaras
de esgrima, mas isso não garantia, de modo algum, que estivessem protegidos, caso um deles
desferisse um golpe no outro. Perguntou mais uma vez a si própria se o homem que a contratara
estaria em seu pleno juízo. De pé, no meio da área plana, dava instruções precisas aos dois
contendedores.
– É mesmo típico dele – murmurou, com desprezo, no seu esconderijo. – Primeiro, ensinar as
crianças a combater e, depois, levá-las à igreja.
– Não é louco, se é isso que está a pensar. E não precisa de se preocupar, nunca poria as crianças
em perigo.
A menina Prim virou-se, sobressaltada, e deparou-se com um homem de idade e alto, que a
olhava, sorridente.
– Quem é o senhor? – perguntou, enquanto decidia se deveria sair do matagal ou se seria mais
seguro permanecer onde estava.
– Desculpe, se a assustei. Está lá em casa para organizar a biblioteca, não é? É a menina Prim, se
não estou em erro.
A bibliotecária confirmou com um movimento de cabeça e observou dissimuladamente o
visitante.
– Sou um velho amigo da família. Conheço-os praticamente a todos desde que vieram ao mundo.
Se ele é para eles um pai, eu sou um avô.
– Muito gosto em conhecê-lo, senhor…
– Horacio Delàs, mas trate-me por Horacio.
A menina Prim agradeceu a cortesia e, depois, apontou para os miúdos.
– Diga-me uma coisa, Horacio, o que se deve supor que está a fazer com eles? Treiná-los para
uma guerra?
– Minha querida amiga, ouvi dizer que possuía vários títulos académicos – respondeu o recém-
chegado com afável ironia. – Repare, está a explicar-lhes como lutavam os antigos cavaleiros. Hoje
em dia, a maior parte das crianças não sabe como se empunha uma espada, uma lança ou uma
alabarda, desconhece até o que é um cavaleiro. Observe: se não estou enganado, agora está a
recordar-lhes as seis grandes regras de Godofredo de Preuilly.
– Godofredo de Preuilly?
– A menina não é daqui e não tem por que saber isso, mas foi um cavaleiro que morreu em
meados do século XI. Atribui-se-lhe nada mais nada menos do que a paternidade dos torneios. Há
quem assegure que redigiu as primeiras normas para regular as competições. Não existem dados
históricos muito claros a esse respeito, mas são uns belos e nobres conselhos.
A voz baixa e clara do homem do cadeirão interrompeu a conversa:
– Primeira regra: nunca ferir com a ponta da arma o cavaleiro adversário. Segunda: não lutar fora
das filas. Terceira: nunca atacar sozinho vários adversários. Quarta: não ferir o cavalo do rival.
Quinta: desferir apenas golpes no peito e no rosto…
– Sexta e última regra. – O caminhante voltou-se para a menina Prim e levou, triunfante, a mão à
aba do chapéu. – Nunca investir quando o adversário tiver a viseira da armadura erguida. Não é um
disparate, minha amiga, foi assim que Henrique II de França morreu. Certamente se lembrará de que
a lança de Gabriel de Montgomery lhe atravessou um olho durante um torneio.
A bibliotecária fez um gesto de assentimento e sorriu, estendendo a mão para colher uma amora
tardia, e, depois, olhou de relance para o relógio.
– Perdoe-me, Horácio, mas tenho de me ir embora já. Preciso de ir à aldeia e estar de volta antes
do meio-dia. Suponho que acabarão de brincar às justas e irão para a abadia.
– Não vai, então, juntar-se a eles?
– Receio não ser muito espiritual.
– Não se preocupe. Também não sou. Depois do meu passeio da manhã, volto para casa. Assim,
se mo permitir, acompanhá-la-ei, encantado.
O caminhante ofereceu-lhe um braço, que ela aceitou, agradecida. Pela primeira vez desde que
chegara àquela casa, sentia-se à vontade e descontraída. Tinha a sensação de ter encontrado um
aliado. Um homem razoável, sensato, equilibrado, uma pessoa com quem se podia falar. «É um
cavalheiro», disse para si própria, contente, enquanto caminhavam juntos sob o agradável sol da
manhã. E quem não quereria ter um cavalheiro como aliado?

Três horas depois daquele agradável encontro, a menina Prim empreendeu de novo o caminho
para casa. Iria chegar um pouco atrasada, mas tinha a certeza de que a elegância das etiquetas
brancas e dos cadernos de pele azuis-marinhos funcionaria como um salvo-conduto eficaz para
justificar o seu atraso. Não achava o patrão um homem encantador?, perguntara-lhe a dona da
papelaria, ao saber que trabalhava na casa. A menina Prim não era dessa opinião. Era um homem
diferente, reconhecia isso. Também não tinha a menor relutância em admitir que fora muito generoso
ao dedicar-se daquela maneira às crianças e ao fazer de professor de línguas clássicas de metade dos
miúdos de San Ireneo. Mas não era encantador, pelo menos não quando se tratava de defender as suas
ideias. Não era encantador nas discussões nem nos debates; não cedia um milímetro quanto ao que
considerava ser certo e não sentia a menor compaixão pelos seus adversários, quando descobria que
não estavam à sua altura. A menina Prim encontrava-se há pouco tempo na casa, mas já tivera
oportunidade de o ver em ação. Podia ser o homem mais amável do mundo, mas também era capaz de
ser o mais duro.
– É extraordinário ouvi-la falar assim! – exclamou a dona da papelaria. – Nunca ouvi nenhuma
outra mulher dizer algo semelhante sobre ele. Duro? Deve estar enganada.
De certeza que não o era com as crianças, refletiu, ao sair do estabelecimento. Embora lhes
impusesse disciplina – uma disciplina afetuosa, mas ainda assim disciplina – e lhes exigisse muito
como dono e senhor daquela peculiar escola doméstica. A menina Prim trabalhara, algumas manhãs,
na biblioteca, enquanto os pequenos assistiam às aulas. Protegida pelas enormes pilhas de livros que
tinha de classificar, contemplara a paixão que havia nele quando lhes explicava as questões mais
complexas, a clareza com que se expressava, o modo como os ensinava a pensar. Mas também o
observara, quando fazia perguntas. Não se podia dizer que as crianças o temessem, embora fosse
evidente que ansiavam pelo seu reconhecimento e procuravam obter, a todo o custo, a sua aprovação.
Era enternecedor vê-las gracejar e brincar com ele, entre risos e gritos, mas não tanto vê-las
aproximarem-se, compungidas, quando erravam uma conjugação grega e viam que o seu mentor,
desalentado, franzia o sobrolho e baixava a cabeça.

– Não lhe parece que ele é demasiado rigoroso? – perguntou a bibliotecária ao seu novo amigo,
nessa manhã, depois de este a ter convidado a tomar o pequeno-almoço no jardim, no final do
passeio à aldeia.
– Se é rigoroso? Sou um apaixonado pelo método escolástico, menina Prim, não espere que
critique a exigência académica. Não tenho grande opinião da educação dos últimos cinquenta anos,
não lhe vou mentir.
– Mas trata-se de algo mais do que exigência, Horácio. Os métodos são arcaicos e extravagantes,
ele próprio o é. Suponho que saiba que, quando não está a dar aulas aos miúdos ou a brincar com
eles aos torneios medievais, permanece enclausurado durante muitas horas. Por vezes, fecha-se quase
todo o dia e não é raro que se esqueça da hora do almoço ou do jantar. Acha realmente que tudo isso
faz parte de uma estratégia pedagógica?
O anfitrião riu-se, agradado, enquanto se levantava, entrava em casa e regressava com dois livros
na mão. Depois de se sentar de novo à mesa, serviu-se de uma segunda chávena de café e abriu um
deles.
– Minha querida menina Prim, vou explicar-lhe uma coisa. Leu, certamente, a história de
Pantagruel, de Rabelais.
– Claro que li.
– Ora bem, o que quero que compreenda é que o nosso homem do cadeirão, como lhe chama, tem
muito de Gargântua na sua maneira de educar as crianças.
– A que se refere?
– Deixe-me explicar-lhe. Há uma passagem em Pantagruel na qual Gargântua explica ao filho
tudo o que quer que ele aprenda. De certeza que a conhece. Vamos lá ver, sim, aqui está. Quer lê-la e
ver se lhe lembra alguma coisa?
A menina Prim pegou no livro e começou a ler em voz alta:

«Ordeno e quero que aprendas as línguas na perfeição: a primeira de todas, a grega, como
manda Quintiliano. E a segunda, a latina. E, depois, a hebraica para as Sagradas Escrituras e a
caldeia e a árabe também.»

– Não me vai dizer que está a ensinar hebraico, árabe e caldeu às crianças? – perguntou,
interrompendo a leitura com um ar espantado.
– Oh, não! Embora seja um grande poliglota, especialmente em línguas mortas. Não, não lhes
ensina árabe, mas sim grego, latim e um pouco de aramaico, este último por razões mais sentimentais
do que académicas. Mas continue a ler, continue a ler.
A menina Prim, obediente, pegou de novo no livro:

«E na grega deves formar-te no estilo de Platão; e na latina, no de Cícero. Que não haja
história que não tenhas presente na memória. Para o efeito servir-te-á de ajuda a cosmografia dos
que escreveram acerca disso. Pelas artes liberais, pela geometria, pela aritmética e pela música
já te fiz ter um certo gosto, quando tinhas cinco ou seis anos. Continua, dedicando-te ao que te
falta, e aprende todos os cânones de astronomia.»

– Não quero cansá-la. Permita-me que lhe resuma o resto. Do Direito Civil, quer Gargântua que o
filho aprenda os belos textos e os compare com a filosofia. E, em relação à natureza, ensina-lhe que o
mundo é uma grande escola. Quer que não exista mar, rio ou curso de água, cujos peixes desconheça;
que reconheça todas as aves do céu, todas as árvores e arbustos, todas as ervas da terra, todos os
metais escondidos nos abismos, todas as pedras preciosas do Oriente e do Médio Oriente.
– É impressionante – murmurou a bibliotecária.
– É mesmo. Exige-lhe que estude a medicina e o homem; quer ver no filho um abismo de ciência.
– E é isso que ele quer ver nas crianças? Mas é ridículo, são demasiado jovens.
– Eu considero isso magnífico, não lho ocultarei. É uma aventura académica que me entusiasma.
Mas deixe que lhe mostre outro dos textos que inspiraram esta escola doméstica e compreenderá um
pouco melhor de que se trata. Talvez não o conheça. É a carta de Jerónimo de Estridão a Leta. Como
certamente saberá, Jerónimo fez essa grandiosa tradução…
– A Vulgata.
– É isso mesmo. Viveu muitos anos como eremita no deserto, a estudar as Sagradas Escrituras,
depois, regressou a Roma e, finalmente, instalou-se em Belém. Não há dúvida de que era um gigante
intelectual, um homem com uma mente prodigiosa e uma vontade férrea. Extraordinariamente severo
consigo próprio, muito exigente. Ora bem, num dado momento da sua estada em Belém, recebe uma
carta de uma mulher chamada Leta que lhe pede conselhos sobre a educação da sua jovem filha.
– E recomendou-lhe que a castigasse, obrigando-a a ajoelhar-se com os braços em cruz? –
perguntou, com um sorriso, a menina Prim.
– De modo algum – respondeu, animadamente, o anfitrião. – No meu entender, deu-lhe uma série
de conselhos admiráveis. Na sua carta, explica a Leta que considera fundamental a aprendizagem de
línguas estrangeiras, especialmente latim e grego, desde a mais tenra infância, porque, escreve, «se
os ternos lábios não se formam nisso desde o início, a língua é estragada por um sotaque
estrangeiro». É essa, nem mais nem menos, uma das teses do seu jovem patrão, querida. São
Jerónimo recomenda, como não poderia deixar de ser, a leitura diária das Escrituras.
– Realmente, então… tudo tem um propósito?
– Um dia destes falaremos de propósitos. Entretanto, frua o que vê… e participe. Tenho a certeza
de que pode responder muito melhor do que ele às perguntas da pequena Eksi sobre os defeitos de
carácter das heroínas da literatura inglesa.
De regresso a casa, a menina Prim abriu o portão do jardim e percorreu a velha e outonal álea de
hortênsias com um ar distraído. Nunca encarara a possibilidade de ensinar o que quer que fosse a
uma criança. Na realidade, também nunca ponderara fazê-lo em relação a um adulto. Nem sequer
sabia se seria capaz. Além disso, ele não lho pedira e, provavelmente, nem sequer aprovaria. Ainda
não se esquecera da expressão de deceção que lhe vira no rosto na tarde da sua chegada, quando lhe
confessara que tinha muitos títulos académicos.
– Ele e a sua maldita prepotência – murmurou, indignada.
Não iria preocupar-se com as crianças. O seu próprio trabalho já lhe dava bastante que fazer.
4
Foi pouco mais de um mês depois daquele encontro que a menina Prim começou a reparar nas
primeiras tentativas de atentar contra o seu celibato. A princípio, não deu grande importância ao
facto; ao fim e ao cabo, era lisonjeiro sentir-se o centro do falatório da aldeia. Aquela sociedade era
extraordinariamente tradicional e, como tal, provavelmente questionava-se por que razão uma mulher
jovem e bem-parecida como ela não era casada ou, pelo menos, não estava comprometida. Assim,
quando a senhora Oeillet, proprietária da principal florista da aldeia, lhe perguntou, piscando o olho,
onde deixara a aliança, a menina Prim não ficou surpreendida.
– Não sou casada, se é a isso que se refere – respondeu, com um sorriso, enquanto observava um
vaso de Papaver rhoes, nome que a bibliotecária atribuía às flores a que o resto do mundo chama
papoilas.
A senhora Oeillet confirmou que se referia a isso, exatamente a isso. Em San Ireneo de Arnois, as
mulheres costumavam ter marido. Não era obrigatório, mas conveniente. Além disso, as mulheres
como ela pareciam naturalmente dotadas para o matrimónio. Um rosto bonito, boa figura, maneiras
delicadas, ampla cultura; todos aqueles dons revelavam que o fim para que a menina Prim fora
criada, a razão última da sua existência, não era outro senão o matrimónio.
– É muito amável, mas não tenciono casar – respondeu com firmeza. – Não sou a favor do
casamento. Para mim, não faz o menor sentido.
A florista sorriu com extraordinária doçura, o que surpreendeu a bibliotecária. Não esperava um
sorriso como resposta. Um gesto irado, uma exclamação de espanto, um comentário escandalizado,
eis a reação adequada. As mulheres como a senhora Oeillet, que já haviam passado há muito a idade
madura e avançavam para a velhice com a sólida dignidade de um barco a vapor, ficavam, em regra,
escandalizadas quando ouviam declarações públicas contra o casamento. Era a resposta natural, a
reação decente, em tais situações. E a menina Prim, que fora educada numa família duramente
modelada pela disciplina, gostava que as pessoas reagissem sempre como seria de esperar.
– Estou tão de acordo consigo! – exclamou, finalmente, a proprietária da florista, após um longo
suspiro. – Hoje em dia, o casamento converteu-se num simples acordo legal, com toda essa papelada,
essas frias repartições e registos, essas separações de bens e essas leis que desnaturalizam tudo. Se
fosse a si, no caso de ter de contrair matrimónio em tempos como o nosso, não assinaria isso, claro
que não.
A menina Prim, cuja atenção se concentrava agora num centro de mesas de Zinnias elegans,
perguntou-se se a sua interlocutora estaria no seu perfeito juízo. Não acabara de lhe dizer que parecia
ter sido feita para o casamento? Não se referira à sua evidente vocação para a vida conjugal? Não
lhe elogiara o belo rosto, a vasta cultura e as boas maneiras?
– Espero que não se ofenda – continuou a florista, com uma cortesia requintada –, mas pergunto-
me como se pode chegar a pensar que um funcionário tem algo a fazer num casamento. Parece quase
uma contradição! Um casamento pode ser muitas coisas, umas boas e outras más, mas concordará
certamente comigo em que nenhuma delas tem muito que ver com burocracia.
A menina Prim, que também não conseguia optar pelas zínias, concordou que burocracia e
casamento eram, sem dúvida, realidades que se excluíam. Enquanto pagava o vaso de Papaver
rhoes, refletiu sobre o extraordinário facto de tanto a senhora Oeillet como ela estarem totalmente de
acordo quanto àquele assunto, apesar de abordarem o problema de ângulos divergentes. Não
pensavam da mesma maneira em relação ao casamento, isso era evidente. Mas também era óbvio que
as duas coincidiam no que a união conjugal não era nem poderia alguma vez chegar a ser.
A bibliotecária acabava de sair da florista quando quase esbarrou com o homem do cadeirão.
Surpreendida e contrariada, aludiu à necessidade de tratar de umas coisas no correio, observação
que ele decidiu ignorar.
– A menina Prim entre papoilas… mas parece o título de um quadro. Permita-me que a ajude a
levar a planta. Posso acompanhá-la?
– É muito amável – respondeu ela, com frieza.
O homem do cadeirão pegou no vaso e caminhou ao seu lado.
– Pelo que vejo, esteve a falar com a Hortensia Oeillet. E, naturalmente, ela perguntou-lhe por
que razão não é casada. Estou enganado? – inquiriu, com um sorriso.
– Essa mulher tem umas ideias estranhas acerca do casamento – replicou a bibliotecária.
– O que quer dizer com essa frase críptica é que são diferentes das suas, suponho.
– É claro que são. Sou totalmente contra o casamento.
– A sério?
– Considero-o uma instituição inútil e em decadência.
– É interessante que diga isso – refletiu ele –, porque tenho a impressão oposta. Tenho a sensação
de que, hoje em dia, todos se querem casar. Não sei se se terá apercebido de que há grandes
reivindicações relativamente a esse assunto, em todo o lado, isto já para não falar das pessoas que
proclamam a sua confiança no matrimónio acumulando, ao longo da vida, tantos casamentos quantos
possíveis. Não deixa de ser interessante que seja contra. Na minha opinião, demonstra uma
comovedora inocência.
– O senhor é a favor, evidentemente.
– Inteiramente a favor. Sou um grande defensor do casamento, mas oponho-me rotundamente a
incluir as autoridades civis na sua celebração. Sou da escola da Hortensia, acho surpreendente ver
um funcionário num casamento. A não ser, como é evidente, que se trate de um dos contraentes ou de
um convidado.
A menina Prim baixou a cabeça para dissimular um sorriso.
– E, por aqui, todos pensam como a senhora Oeillet e como o senhor?
– Diria que todos estão aqui porque pensam como eu e a senhora Oeillet, o que é diferente.
A bibliotecária não entendeu a resposta, mas conteve o desejo de replicar. Não queria começar
outra discussão. O instinto de preservação dizia-lhe que, quando iniciava uma disputa com o chefe,
perdia. Sempre se considerara uma grande argumentadora, as pessoas temiam-na, em geral, por isso,
mas agora tinha na sua frente alguém que a superava largamente nesse terreno. Alguém irritante, que
sabia distorcer os argumentos até extremos inverosímeis e conduzia as discussões para terrenos
pantanosos que a faziam sentir-se insegura e ridícula.
– LIGA FEMINISTA DE SAN IRENEO – leu em voz alta um pequeno cartaz colocado perto de uma
casa semioculta por um emaranhado de hera. – Surpreende-me que haja feministas em San Ireneo. É
algo demasiado moderno para este lugar, não acha? – inquiriu com um ar trocista.
Em vez de responder, o seu acompanhante parou, baixou a cabeça, para a poder olhar nos olhos,
e, de seguida, soltou uma gargalhada.
– A sério que acredita nisso? Acredita mesmo que o feminismo é moderno? – perguntou, risonho.
– Realmente, a Prudencia é encantadora.
A menina Prim abriu a boca, disposta a deixar bem claro que uma réplica como aquela constituía
uma falta de respeito, mas pensou melhor.
– Depende daquilo com que se compare – respondeu, mal-humorada. – Há movimentos mais
modernos, mas não negará que, nos seus primórdios, o feminismo foi algo libertador. E, para que
conste, digo-o sem fazer parte das fileiras, nunca me verá defender essa causa.
– É um alívio sabê-lo.
A bibliotecária corou, mas nada disse.
– Mesmo assim, devo dizer-lhe que não estou de acordo quanto a essa pretensa origem
libertadora do movimento – prosseguiu ele. – É evidente que nunca ouviu falar do machado de Carrie
Nation.
A menina Prim mordeu o lábio. Sabia perfeitamente o que se seguiria. Conhecia aquele homem
suficientemente bem para tal. Sabia que a alusão ao tal machado e à sua dona era apenas uma
armadilha para que pudesse dar uma das suas aulas magistrais. Não queria dar-lhe essa satisfação,
desejava ardentemente não lha dar, estava piamente decidida não o fazer. Mas a curiosidade acabou
por ser mais forte.
– Carrie Nation e o seu machado?
– Não sabe quem é?
– Não sei mesmo. Está a inventar tudo isso?
– Inventar? Como pode pensar tal coisa? – protestou ele, num tom ofendido. – Para sua
informação, Carrie Nation foi a fundadora do Movimento da Temperança, um grupúsculo que se opôs
ao consumo de álcool, antes da Lei Seca. Era, decerto, uma velhota muito afetuosa, mas tinha o mau
hábito de irromper pelos bares, brandindo um machado, na companhia de um grupo de amigas, com o
nobre propósito de partir todas as garrafas que encontrasse pelo caminho. Os cronistas da época
contam que media um metro e oitenta e pesava quase oitenta quilos, pelo que pode imaginar até que
ponto a cena era libertadora. Diz-se que, quando morreu, as suas seguidoras lhe inscreveram na
lápide este epitáfio comovedor: «Fiel à causa da abstinência, fez o que pôde.»
– E que tem isso tudo que ver com o feminismo? – perguntou a menina Prim bruscamente, depois
de se ter apercebido de que estava a apreciar a conversa.
– Deixe-me continuar. A menina tem o hábito endiabrado de interromper as pessoas mais velhas.
O movimento da senhora Nation sustentava que o alcoolismo fomentava a violência no lar , pelo que
esteve muito associado às primeiras ligas de defesa dos direitos da mulher. Muitas daquelas
fanáticas destruidoras de bares eram feministas convictas, dessas que considera libertadoras. Que
conste que considero a senhora Nation uma antepassada nobre do movimento. A estupidez chegou,
decididamente, bastante depois.
Indignada, a menina Prim voltou a morder o lábio.
– E, mesmo assim, permitem que haja feministas nesta aldeia encantadora? – perguntou com fria
ironia ao chegar à porta dos correios.
O homem do cadeirão franziu o sobrolho, para se proteger do sol, e abanou a cabeça,
pensativamente.
– Gostaria de as conhecer? Aviso-a de que não são exatamente o tipo de feministas que,
provavelmente, espera que sejam.
– E como sabe o que espero? Se não se importa, gostaria. Estou convencida de que será uma
experiência interessante – respondeu, enquanto se punha em bicos dos pés para lhe arrebatar, com
firmeza, as papoilas.
– Com certeza – disse ele, antes de se decidir a atravessar a rua. – Aliás, creio que teve a honra
de conhecer a presidente. É a nossa amiga comum, a amável e sorridente Hortensia Oeillet.

Hortensia Oeillet não tardou a enviar um convite formal dirigido à menina Prim. Na nota,
assegurava que a Liga Feminista de San Ireneo tinha todo o prazer em incluí-la na próxima reunião,
que decorreria na terça-feira seguinte. A manhã em que o convite chegou surpreendeu, porém, a
bibliotecária, ocupada com outro assunto. Havia pouco mais de três décadas, embora ninguém
soubesse realmente quanto mais, que o seu aniversário se celebrava naquela data. Tratava-se de uma
celebração solene, porque Prudencia Prim era da opinião de que só os vivos celebram o aniversário
e de que essa vantagem face aos mortos deveria ser festejada em condições. No dia do seu
aniversário, a menina Prim levantava-se pontualmente às sete da manhã e começava os preparativos
para o bolo. Punha um avental à cintura, apanhava o cabelo com severidade e seguia fielmente a
receita que a avó deixara em herança à sua mãe e que esta, convencida de que tinha perante si um
futuro extraordinariamente longo, optara por legar em vida à filha.
O bolo da menina Prim gozava de grande popularidade entre o seu reduzido círculo de amigos,
companheiros e conhecidos. Apesar disso, ninguém conseguira averiguar os ingredientes com os
quais criava aquele sabor delicioso e suave. Era uma questão de afeto, dizia ela para retirar
importância ao feito. No entanto, todos suspeitavam de que, muito mais do que de afeto, se tratava de
saber misturar sabiamente na massa um determinado ingrediente silvestre. «Se não o identificam, não
merecem sabê-lo», justificava-se a bibliotecária quando, por vezes, em poucas ocasiões se sentia
invadida por ondas de remorsos por guardar tão severamente o seu segredo.
– Menina Prim, sabia que Emily Brontë estudava alemão, enquanto vigiava o forno na cozinha de
sua casa? – perguntou inesperadamente, naquela manhã, a pequena Eksi, que se dedicava a dar forma
a uma diminuta porção da massa do bolo principal.
– Não, minha querida, não fazia a menor ideia, mas parece muito interessante. Suponho que tenha
sido o teu tio a contar-to.
– Não, ele não sabe muito disso. Contou-me o tio Horacio. Disse que ela passeava pela cozinha
com o livro na mão, enquanto vigiava o pão no forno. Não é muito bonito?
A menina Prim não achava que estudar línguas diante de um forno de carvão, numa cozinha gelada
do século XIX, fosse muito bonito, mas absteve-se de o dizer. Naquela manhã, sentia-se
extraordinariamente feliz. Num gesto inesperado, o homem do cadeirão dera o dia às crianças, para
que a ajudassem a confecionar o bolo. Os três mais velhos estavam, naquele momento, no jardim, a
apanhar folhas de plantas aromáticas, para o ornamentar, enquanto a mais nova colaborava à sua
maneira, elaborando uma versão reduzida. Também a cozinheira andara de um lado para o outro,
durante várias horas, a fim de apresentar uma ementa de aniversário que mostrasse àquela intrusa
quem mandava nos fogões da casa.
A bibliotecária, com os braços lambuzados de farinha até aos cotovelos e as faces coradas do
esforço, contemplou, com satisfação, a velha e bela cozinha, decrépita como tudo o resto, naquela
casa. Aquele espaço sugeria-lhe uma infância perfeita. Uma infância que cheirava a pão acabado de
fazer, a filhoses, a bolachas e a biscoitos. O tipo de infância que nunca vivera, mas que, naquela
casa, era uma realidade quotidiana.
– Menina Prim, acredita em que existe mesmo no mundo uma pessoa como o senhor Darcy? –
perguntou, desta vez, Eksi, que, com os seus sete anos e meio, escrevia histórias em fascículos para
os irmãos.
A bibliotecária, que, umas semanas antes, teria ficado surpreendida ao saber que uma miúda tão
nova lia já aquele tipo de literatura, pousou o rolo da massa, limpou as mãos ao avental e voltou-se
para ela.
– Acredito, Eksi, que Jane Austen merece toda a nossa admiração por ter criado o homem
perfeito. Mas, como és uma menina muito esperta, sabes que não existe ninguém perfeito, ou seja,
que…
– Não há ninguém no mundo como o senhor Darcy – respondeu, alegremente, a pequena.
– Pois eu não afirmaria isso com tanta segurança. – A entrada inesperada do homem do cadeirão
na cozinha surpreendeu muitíssimo a menina Prim, embora o tenha dissimulado com mestria.
– Então existe alguém assim? – perguntou a criança ao tio, que a cumprimentou carinhosamente,
enquanto lhe cobria o nariz com um pouco de farinha.
– Não faço a menor ideia, Eks, e confesso que estou aborrecido de ouvir falar dessa história. O
que eu queria dizer na realidade é que duvido muito de que esse tal Darcy seja um homem perfeito.
Mais, duvido de que a autora tenha pensado num só momento que a personagem era alguém, ainda
que remotamente, perfeito.
A menina Prim, que começara a trabalhar freneticamente a massa, levantou a cabeça e encheu-se
de coragem para intervir.
– Receio que esteja ligeiramente confuso. É possível que não consiga entender claramente a
personagem, uma vez que é do seu sexo e todos sabem que essa circunstância acentua a miopia, mas
qualquer mulher se apercebe sem dificuldade de que o Darcy é um homem que diz exatamente o que é
preciso dizer em cada momento.
– O que é perfeitamente natural – respondeu ele –, se tivermos em conta que é uma personagem
literária por detrás da qual há uma mão que escreve os seus diálogos.
– Exatamente. E por isso dizia eu à Eksi que não existe, não pode existir, um homem assim no
mundo – exclamou, triunfante, a menina Prim, com o nariz mais empinado do que nunca.
– Minha querida Prudencia, não faça batota – replicou o homem do cadeirão, enquanto provava
um pedacinho da massa da miúda, que sentara ao seu colo. – Já lhe disse que não discuto o facto de
não existir no mundo um homem como o Darcy, o que eu discuto é que a personagem represente um
homem perfeito. Como certamente recordará, o romance intitula-se Orgulho e Preconceito porque o
senhor Darcy é orgulhoso e a menina Elizabeth Bennet tem preconceitos. Ergo, menina Prim, o Darcy
não é perfeito, porque o orgulho é o maior dos defeitos de carácter. Ora, um homem orgulhoso é
profundamente imperfeito.
– Como deve, decerto, saber por experiência própria – respondeu a bibliotecária, antes de tapar
a boca com a mão, horrorizada com o que acabara de dizer.
Fez-se um silêncio gélido na cozinha que nem sequer a pequena Eksi, que contemplava,
fascinada, o duelo, ousou quebrar.
– Eu… não queria dizer isso, desculpe-me, por favor. Não sei como fui capaz de o dizer –
balbuciou a bibliotecária com uma voz trémula.
O homem do cadeirão pousou a sobrinha, antes de erguer a cabeça e se dirigir à sua empregada.
– É possível que tenha merecido essa resposta, menina Prim – replicou, com calma. – E se assim
foi, apresento-lhe as minhas desculpas.
– Oh, não, por favor! Não peça desculpa, imploro-lhe – pediu a bibliotecária, ruborizada. – Não
queria dizer isso. Não pretendia dizer isso, acredite.
Ele contemplou-a fixamente em silêncio.
– Na realidade, acredito em si – disse, por fim. – O que seguramente pretendia dizer é que sou
dominador, soberbo e teimoso, não é verdade? E é possível que tenha razão, não o nego.
A menina Prim levou a mão à testa e engoliu em seco, antes de voltar a falar.
– Peço-lhe encarecidamente que não diga isso. Que posso fazer para que me desculpe?
O homem do cadeirão não respondeu. Depois, contornou a enorme mesa de madeira da cozinha e
aproximou-se lentamente da empregada.
– Vá lá, Prudencia, sei perfeitamente que não me quis ofender; não muito, pelo menos. Basta ver a
expressão de horror na sua cara para ter a certeza disso. Façamos uma coisa: que lhe parece
esquecermos este desagradável desencontro e assinarmos uma trégua? – propôs, estendendo-lhe a
mão.
De cabeça baixa, a bibliotecária limpou a mão ao avental antes de lha estender.
– É muito generoso, mas, diga-me, acredita mesmo que poderá esquecer isto? Tem todo o direito
de me despedir, depois de um comentário como este.
– Tenho, sem dúvida, todo o direito do mundo, mas não penso fazê-lo. É demasiado boa no que
toca aos livros. Além disso, algo me diz que não será esta a última vez que terei de lhe perdoar –
disse ele, enquanto aproveitava a confusão do momento para meter rapidamente uma colher na massa
do bolo e a levar à boca.
– Felicito-a. Está francamente bom. Sementes de papoila?
Ainda consternada, a menina Prim abriu desmesuradamente os olhos.
– Como conseguiu adivinhar?
Em vez de responder, o homem do cadeirão pegou resolutamente numa maçã e, depois de piscar o
olho à sobrinha, dirigiu-se para a porta da cozinha.
– Deveria ficar contente por eu ter descoberto o seu segredo – afiançou, antes de sair. – Assim,
poderemos dizer que estamos realmente em paz.
Quando a porta se fechou, a bibliotecária suspirou longa e profundamente. Olhou, por instantes,
pela janela, voltou a meter as mãos na farinha e continuou a amassar o bolo.
– Menina Prim – perguntou Eksi do outro lado da mesa –, não acha que o nosso tio diz sempre
aquilo que há a dizer?
– É possível, querida, é possível – murmurou ela, muito afogueada. Depois, aproximou-se do
forno, abriu-o com cuidado e meteu lá dentro, com um certo ímpeto, poderia mesmo dizer-se com
uma certa euforia, o seu maravilhoso bolo.
5
Acedia-se à sede da Liga Feminista de San Ireneo através de um pequeno caminho adornado por
canteiros de crisântemos. Às cinco em ponto da tarde de terça-feira, hora e data mencionadas no
convite, a graciosa figura da menina Prim bateu à porta, disposta a encontrar-se, por fim, com a fina
flor do poder feminino local. A primeira coisa que a surpreendeu foi ser recebida por uma criada
diminuta de rosto corado, avental engomado e imaculada touca branca. A menina Prim esperara que
uma reunião feminista tivesse prescindido de semelhantes convencionalismos. Era certo que não
tinha experiência na matéria, mas a ideia de um clube como aquele ter ao seu serviço criadas como
aquela não podia deixar de lhe parecer estranha. Apesar de tudo, o seu sentido de beleza antiga
apreciou o sorriso de boas-vindas, a cortesia com que foi acompanhada enquanto subia as escadas e
o modo como, quase por artes mágicas, se encontrou no meio do salão.
– Minha querida amiga, que alegria tê-la aqui, connosco!
Hortensia Oeillet aproximou-se dela, seguida por um grupo de mulheres – a bibliotecária contou
dez –, que se concentraram à sua volta, a ajudaram a instalar-se numa cadeira e lhe depositaram na
mão, com uma pasmosa rapidez, uma chávena de chocolate e dois bolos de nata. A menina Prim
agradeceu, mas declinou habilmente o convite para proferir umas palavras antes de a presidente da
liga abrir a sessão. Enquanto era apresentada às mulheres, pôde comprovar que muitas das
convidadas exerciam uma profissão, o que achou muito natural numa reunião feminina que
propugnava pela libertação do seu sexo. Não tardou, porém, a aperceber-se de algo peculiar. A
bibliotecária estava habituada a esse velho costume social segundo o qual, quando uma pessoa
pergunta a outra a que se dedica, esta responde, em geral, com uma alusão ao seu título académico,
trate-se de medicina, direito, finanças ou da docência universitária. Porém, no salão da Liga
Feminista as conversas seguiam um rumo diferente. Quando a menina Prim perguntava a uma das
convidadas a que se dedicava, a resposta obtida nada tinha que ver com o que esperava.
– Com que então é farmacêutica – comentou, num aparte, a uma delas. – Onde fica a sua
farmácia? Creio ter visto uma na praça.
– Oh, sou, de facto, farmacêutica, mas não tenho uma farmácia. Giro uma pequena escola de
pintura. Em San Ireneo, basta-nos uma farmácia, mas, quando aqui cheguei, não havia ninguém capaz
de ensinar pintura, percebe?
A menina Prim, que certamente não percebia, dirigiu-se, em seguida, a uma mulher elegante,
depois de ter sido informada de que estivera à frente de uma das clínicas de emagrecimento mais
caras e seletas do país.
– Diga-me – quis saber amavelmente – como é que uma profissional com a sua experiência
decidiu estabelecer-se num lugar tão pequeno?
– Na realidade, é muito simples – respondeu a sua interlocutora, com um sorriso –, embora não
me pareça que lho tenham contado com total exatidão. Há já algum tempo que encerrei essa fase
profissional. Já terá visto, com certeza, a minha padaria: fica na praça, ao lado da loja da Hortensia.
Estou a ver que isso a surpreende. Deixei a clínica há cinco anos, imediatamente antes de me mudar
para cá. Tinha conseguido alcançar quase todos os meus objetivos, não me restava muito a fazer e,
naquele momento, precisava de um pouco de simplicidade. E que pode haver de mais simples do que
pão? Devo dizer que tive a imensa sorte de aqui, em San Ireneo, me ter sido permitido ser dona do
meu tempo. Passo a explicar: faço única e exclusivamente o pão da tarde, o do lanche. Dedico-me
aos bolos, às filhós e às especialidades.
– Suponho que seja necessária uma grande coragem para empreender uma mudança tão
extraordinária na vida – murmurou, pouco convictamente, a menina Prim, antes de decidir voltar a
sentar-se junto da lareira.
Acabava de se instalar, quando foi abordada por uma mulher loira, alta e corpulenta que lhe deu
um aperto de mão enérgico.
– Permita-me que me apresente. Chamo-me Clarissa Waste e sou a proprietária de La Gaceta de
San Ireneo. Talvez já conheça a minha sócia, a Herminia.
A bibliotecária respondeu que ainda não tivera o prazer de conhecer Herminia e comentou que
aquela era a primeira oportunidade que tivera de falar com uma jornalista.
– Acho que vai ter de esperar um pouco mais. Não sou jornalista. Digamos antes que sou uma
pequena empresária. A Emma Giovanacci, aquela mulher gorducha que está agora a falar com a
Hortensia, é que é; ou melhor, era, antes de vir para aqui. Agora está concentrada na aventura de
impulsionar o nosso Instituto de Investigação de Iconografia Medieval e de educar em casa cerca de
vinte miúdos da aldeia. Não me pergunte como consegue. Para mim, é um mistério.
A menina Prim reconheceu que a capacidade de desdobramento de alguns elementos do seu sexo
era uma incógnita que, no seu entender, deveria ser estudada a fundo pela ciência. A seguir, perguntou
à convidada o que fazia antes de se dedicar ao setor editorial.
– Era uma mãe de família atarefada. Agora continuo a sê-lo, não é algo de que me queira libertar,
mas concilio a função com o jornal. Antes de viver cá, teria sido impensável fazer algo semelhante.
Oh, já vejo que não sabe! O nosso jornal é vespertino. Fazemo-lo de manhã, enquanto as crianças
estão na escola da menina Mott ou frequentam essas maravilhosas aulas sobre Homero e Ésquilo
ministradas pelo seu chefe. Veja, aqui, a nossa filosofia é que tudo o que é importante acontece
sempre de manhã.
– E se acontecesse alguma coisa importante à tarde? – perguntou, surpreendida, a bibliotecária.
– Teríamos de contar o ocorrido na manhã do dia seguinte. Que mais poderíamos fazer?
Intrigada com aquelas respostas, a menina Prim continuou a circular pelo salão. Descobriu,
assim, que inúmeras famílias de San Ireneo investiam todo o seu tempo e formação, em certos casos
uma singular e especialíssima formação, a supervisionar pessoalmente a educação dos seus filhos e a
dar aulas aos dos outros, atividade que gozava de enorme prestígio social. Muitas daquelas mulheres
eram proprietárias de empresas, pequenos estabelecimentos situados, quase sempre, no andar
inferior das casas, para não perturbar demasiado o ritmo da vida familiar. Os horários não pareciam
constituir problema. Todos partilhavam a ideia de que as mulheres, até em maior medida do que os
homens, deveriam ter a possibilidade de organizar livremente o seu tempo. Por isso, ninguém achava
estranho que a livraria abrisse das dez às duas, o cartório notarial o fizesse das onze às três ou a
clínica dentária começasse a jornada ao meio-dia e a terminasse pontualmente às cinco da tarde.
Quando a menina Prim acabou de se servir da terceira chávena de chocolate, a voz de Hortensia
Oeillet impôs-se sobre a animação.
– Minhas senhoras, senhoras, sentem-se! Temos de dar início à sessão, são quase cinco e meia.
Todas as convidadas – a bibliotecária contou cerca de trinta – se sentaram e prepararam para
ouvir a presidente, que, com um papel na mão, começou a apresentar a ordem do dia.
– O primeiro assunto a abordar é a situação insustentável da nossa querida Amelia e do juiz
Basett.
Um murmúrio de assentimento percorreu o salão. A mulher sentada ao lado da menina Prim
explicou-lhe, em voz baixa, que a jovem Amelia se encontrava numa situação de semiescravatura em
casa de um magistrado que se aposentara, cujas memórias ela o ajudava, havia seis anos, a redigir.
– Imagine, a rapariga trabalha mais de oito horas por dia. É anacrónico e intolerável.
Perante tais palavras, a bibliotecária deu-se conta, pela primeira vez, de que ela própria, em casa
do homem do cadeirão, nunca trabalhava mais do que cinco ou seis horas diárias. A princípio,
atribuíra o horário descontraído às extravagâncias do chefe, mas agora começava a perceber que se
tratava de um valor inegociável em San Ireneo.
– A nossa amiga Amelia – dizia, naquele momento, Hortensia Oeillet – vê-se obrigada a cumprir
um horário inaceitável à luz dos princípios que defendemos em San Ireneo. O juiz já foi advertido
por diversas vezes, mas faz orelhas moucas. Como sabem, a rapariga vai casar em abril do próximo
ano – outro murmúrio, desta vez de felicitação, percorreu a sala – e é provável que não tarde muito
até ser mãe. É, pois, urgente fazermos o possível para resolver esta situação.
Um aplauso acompanhado de várias aclamações coroou as palavras da presidente. Em seguida,
uma mulher baixa e magra, de olhos grandes e rosto extraordinariamente expressivo, levantou-se e
tomou a palavra.
– É a Herminia Treaumont – sussurrou a pessoa sentada ao seu lado –, a diretora de La Gaceta de
San Ireneo. Antes de vir para cá viver, dirigia uma cátedra de poesia isabelina na Universidade da
Pensilvânia.
Herminia Treaumont falou em voz alta, serena e bem modulada.
– Minhas queridas amigas, creio que a nossa presidente explicou com clareza a situação laboral
da Amelia. Algumas de vós sabem que tenho sido, com frequência, sua confidente e que conheço
muito de perto as dificuldades que enfrenta em casa do juiz, apesar de saber quanto ele a aprecia.
Não só se está a tornar impossível para ela, sujeita a esse horário, preparar qualquer tipo de evento,
como há muito tempo que não se pode dedicar ao estudo e à leitura, que, como sabem, são dois dos
pilares da nossa pequena comunidade.
A oradora fez uma pausa para beber um gole de água, após o que retomou imediatamente a sua
intervenção.
– Quando a Amelia aqui chegou, muitas de vós lembrar-se-ão disso, era uma jovem que se tinha a
si mesma e ao seu gosto por literatura em muito boa conta. Tudo isso mudou quando, poucos meses
depois, descobriu que àquilo a que o mundo chamava literatura, San Ireneo chamava perda de tempo.
Ainda me lembro da manhã em que entrou no meu gabinete com os olhos brilhantes de emoção e uma
velha antologia de poemas de John Donne. Foi aqui que descobriu que a inteligência, esse dom
maravilhoso, cresce no silêncio e não no ruído. Foi aqui que aprendeu que a mente humana,
verdadeiramente humana, se nutre de tempo, de trabalho e de disciplina.
Outro aplauso, ruidoso e animado, sacudiu a sala.
– É maravilhosa, não acha? – comentou, num sussurro, a mulher sentada ao lado da menina Prim.
– Nunca perco a coluna dela, às terças-feiras. Não deixe de a ler. Vai adorar.
– A proposta que a direção apresenta à Liga Feminista – continuou Herminia Treaumont – é a
seguinte: como sabem, a Amelia tem um gosto extraordinário. Se se lhe entregar um velho retalho de
tecido, um bule, meia dúzia de rosas e um espelho que perdeu parte do revestimento faz deles uma
obra de arte. Por isso, pensámos que esta associação poderia fazer uma coleta para a ajudar a abrir
uma pequena empresa de decoração (em San Ireneo não há nada de semelhante e julgo que, se
houvesse, isso nos beneficiaria a todos) e libertar-se das limitações de qualquer assalariado. Receio
que o seu futuro marido não revele muito talento para a jardinagem. Não poderão viver com apenas
um salário. Pelo menos, de momento.
– Mas quem ajudará o juiz a terminar as suas memórias? – objetou, num tom preocupado, uma das
mulheres presentes.
– As suas memórias? As suas memórias? As suas memórias que vão para o diabo! – respondeu,
com inesperada energia, a oradora, imediatamente secundada por um coro de aplausos.
Uma vez terminada a votação, que apoiou por unanimidade a proposta da coleta, a reunião
prosseguiu sem sobressaltos. O ponto seguinte da ordem do dia, apresentado por Hortensia Oeillet,
abordou a conveniência de impulsionar a criação de uma companhia de teatro que completasse a
educação literária das crianças da aldeia. Todas as presentes manifestaram a sua concordância. Não
era possível estudar Shakespeare, Racine ou Molière sem sair das páginas de um livro, explicou,
com firmeza, a presidente. Não se podia entender Ésquilo ou Sófocles sem se subtrair às limitações
de uma carteira (ao ouvir isto, a menina Prim, absolutamente extasiada, não conseguiu evitar dizer
com paixão: «Quem sabe se no Hades o meu ato é considerado santo?»). Era inimaginável amar
Corneille ou Schiller – prosseguiu, energicamente, Hortensia Oeillet – sem ter tido a oportunidade de
presenciar, no palco, a violenta beleza e o heroísmo das suas personagens.
– Bravo! Bravo! – exclamou a bibliotecária, levantando-se, no meio de estrondosos aplausos,
batidas de solas no chão e frenéticas pancadas com colheres. Uns minutos depois, a menina Prim
saboreava a quarta chávena de chocolate, quando uma mulher gorducha e sorridente, que a sua
vizinha de cadeira identificou como Emma Giovanacci, se levantou para apresentar o último ponto da
ordem do dia.
– A terceira e última proposta desta reunião tem que ver com a conveniência de procurar um
marido para a nova residente em San Ireneo, a jovem menina Prim.
A bibliotecária sobressaltou-se violentamente. Pálida e trémula, levantou-se, pousou a chávena
em cima da mesa e procurou com os olhos a presidente.
– Desculpe, Hortensia – disse, com uma frieza que não escondia a sua irritação –, mas não
compreendo o que tudo isto significa.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala.
– Querida Emma, como pudeste…? – balbuciou a presidente, olhando para a mulher que lera o
último ponto da ordem do dia. – Não vês que a menina Prim está aqui, aqui, connosco?
Horrorizada, a oradora olhou para a folha que tinha nas mãos.
– Mas figurava na ordem do dia! – gemeu, depois de ser informada de que a pessoa a que fizera
referência era aquela jovem bem-parecida que passara o serão perto da lareira e que agora
procurava desesperadamente a mala.
Assim que a encontrou, a bibliotecária dirigiu-se precipitadamente para a porta do salão,
disposta a abandonar aquele lugar sem esperar ser escoltada pela criada de touca branca, que, tal
como muitas outras mulheres da aldeia, ocupava uma cadeira na reunião. De nada serviram os
pedidos de desculpa de Emma Giovanacci e as doridas súplicas de Hortensia Oeillet. Também não a
demoveram as palavras tranquilizadoras de Clarissa Waste, que explicou à menina Prim que a
procura de marido era uma atividade habitual entre as damas feministas de San Ireneo.
– E dizem-se feministas? – exclamou, indignada, a bibliotecária, enfrentando-as. – Será que, nos
nossos dias, ainda acreditam que a mulher deve depender de um homem?
– Mas, querida, olhe para si, por um momento. – A voz clara e suave de Herminia Treaumont
paralisou a menina Prim. – Vive em casa de um homem, trabalha o dia inteiro submetida às ordens de
um homem e recebe um salário desse mesmo homem, que, no primeiro dia de cada mês, paga
pontualmente todas as suas despesas. A sério que tem a ilusão de se haver libertado da dependência
masculina?
– Não é a mesma coisa, e a senhora sabe-lo – respondeu, em voz rouca, a bibliotecária.
– Obviamente que não é o mesmo. A maioria das mulheres casadas desta aldeia não depende,
nem sequer remotamente, dos maridos na medida em que a menina depende do seu chefe. Como
donas de empresas, algumas delas são a principal fonte de rendimento da família e muitas constituem
a primeira fonte de poupança, já que formam intelectualmente os filhos e transformam em rendimento
disponível o orçamento que o resto do mundo desperdiça em colégios medíocres. Nenhuma delas se
sente obrigada a pedir licença se desejar tratar de algo pessoal, como ouso adivinhar que tem de
fazer no seu trabalho. Nenhuma tem de guardar para si as suas opiniões, como estou certa de que faz,
com frequência, nas conversas que mantém com o seu chefe.
A menina Prim abriu a boca para protestar, mas algo no olhar da sua adversária a fez voltar a
fechá-la.
– Nenhuma – prosseguiu Herminia Treaumont – se lembraria de apresentar um atestado médico
de cada vez que está doente nem esperaria suportar olhares condescendentes quando anuncia algo tão
natural como um nascimento. Vê aquele quadro pequeno com uma legenda inscrita, sobre a lareira?
A bibliotecária olhou, contrariada, para a parede.
– Foi escrito há muitos anos pelo homem por quem mais tenho gratidão na vida, depois do meu
mentor académico e do meu próprio pai. Lamentavelmente, creio que é a maior verdade que alguma
vez se disse sobre este assunto. Leia-o, leia-o bem e atreva-se a dizer que não é verdade.
A menina Prim leu em silêncio:

«Dez mil mulheres desfilaram, um dia, pelas ruas de Londres, a gritar: “Não queremos que nos
ditem!” Pouco depois, converteram-se em datilógrafas.»1

– Acreditem, minhas senhoras, que, se desejasse realmente um marido, eu própria o procuraria –


afiançou a bibliotecária antes de sair da sala batendo com a porta, o nariz mais empinado do que
nunca.

– Vamos, Prudencia, não se zangue assim, realmente não vale a pena.


Horacio Delàs serviu à menina Prim uma chávena de chá fumegante, que ela rejeitou com
delicadeza.
– Não pode imaginar quão desagradável foi para mim – murmurou. – Não imagina como fiquei
envergonhada.
Após a sua violenta e precipitada saída da Liga Feminista, a bibliotecária dirigira-se para casa
do único habitante masculino que, excluindo o seu próprio chefe, conhecia na aldeia.
– Este lugar é estranho, está cheio de pessoas esquisitas – disse, suspirando.
– Espero que não me considere tal coisa. Não se esqueça de que sou uma delas – respondeu o
anfitrião, oferecendo-lhe um cálice de conhaque, que ela aceitou, agradecida.
A menina Prim assegurou-lhe que não se referia a ele. Desde que chegara a San Ireneo, tentara
integrar-se, mas os seus esforços tinham sido vãos. Havia muitas, demasiadas questões por
esclarecer; a primeira: o seu próprio chefe. Quem era? A que se dedicava? Porque ia sempre à
abadia de madrugada? Porque estava mergulhado em velhos livros durante dias a fio, sem reparar
sequer que chegara a hora do almoço ou do jantar? Seria um eremita urbano? A menina Prim ouvira
falar deles. Loucos dedicados à oração, místicos que viviam nas cidades em adoração constante, tal
como os primeiros eremitas do deserto ou os misteriosos staretz russos. Seria o homem do cadeirão
um eremita urbano?
– Para que conste, não tenho nada contra os eremitas e ainda menos contra os urbanos. Sempre
respeitei todas as formas de espiritualidade – sublinhou.
– Claro que sim, minha amiga. Mas, acredite, ele não é um eremita.
– Então, o que é? Porque não pode negar que o seu zelo religioso fica acima da média.
– Claro que fica acima da média. Não posso acreditar que seja tão pouco perspicaz. Não se
apercebeu de que trabalha às ordens de um convertido?
– Um convertido?
– Estava convencido de que o sabia.
– De modo algum. Convertido de quê?
– Do ceticismo, naturalmente. De que mais poderia ser? Convirá que, se existe um dragão, esse é
o único de que vale a pena fugir.
Perplexa, a bibliotecária interrogou-se se não estaria a começar a ficar um pouco toldada devido
ao conhaque.
– Pelo menos reparou que não se trata de um homem comum – insistiu o anfitrião.
A menina Prim reconheceu que não era fácil considerar o homem do cadeirão comum.
– A que se dedica? – inquiriu, antes de levar de novo o copo aos lábios.
– Ao estudo.
– Ninguém pode viver do estudo.
– Também é professor.
– De quinze crianças a quem não cobra sequer o lanche.
– Verdade, mas é uma das suas ocupações. Se quer saber qual a sua principal fonte de
rendimentos, dir-lhe-ei que goza de um grande prestígio como especialista em línguas mortas,
colabora em inúmeras publicações e, uma ou duas vezes por ano, dá ciclos de conferências em várias
universidades. Além de tudo isto, que lhe proporciona mais prestígio do que dinheiro, administra
uma boa parte do património da família. Na realidade, não precisa de muito para viver. É um homem
austero, como certamente terá comprovado.
– Ciclos de conferências? Ignorava que o latim e o grego dessem para tanto – comentou a menina
Prim, com um risinho.
Horacio Delàs olhou-a com um misto de surpresa e consternação.
– Latim e grego? Minha querida Prudencia, deixa-me, uma vez mais, sem palavras. O seu homem
do cadeirão domina cerca de uma vintena de línguas, metade das quais mortas. E, quando digo
mortas, não me refiro simplesmente ao aramaico ou ao sânscrito; refiro-me ao ugarítico, ao siro-
caldaico, ao púnico cartaginês ou a velhos dialetos do copto, como o saídico e o faiúmico. Já lhe
disse que está às ordens de um indivíduo pouco comum. Vê-o ir à abadia todas as manhãs porque é
um apaixonado fiel da velha liturgia romana. Vive entrincheirado neste pequeno lugar, entregue a
vulgares deveres vicinais, porque foi ele que, sob inspiração desse ancião que quase já não sai da
abadia, impulsionou esta espécie de colónia.
– Colónia? Que quer dizer com isso?
Pela segunda vez, Horacio Delàs olhou, com pasmo, para a sua convidada.
– Ora, Prudencia, não me vai dizer que ignora que San Ireneo é um pequeno reduto para exilados
da confusão e agitação modernas. Se é precisamente isso que atrai pessoas tão diversas e vindas de
tantos lugares! Começo a pensar que aceitou essa oferta de trabalho absolutamente às cegas. Não
posso crer que, até agora, não tenha notado em nada fora do comum no nosso estilo de vida…
Animada pelos efeitos do conhaque, a menina Prim confessou que reparara em qualquer coisa. Já
ali estava há tempo suficiente para analisar as particularidades, fazer um juízo, um retrato, mas o
resultado fora uma obra impressionista. Porém, se quisesse ser sincera consigo própria, tinha de
admitir que apenas conseguira elaborar um esboço. Reparara, no entanto, numa ou noutra
peculiaridade. Naquela povoação recôndita viviam famílias de origens muito diferentes. Todas
dispunham de habitação própria, de uma pequena empresa ou de um terreno de cultivo. Os bens
primários eram produzidos na aldeia e geravam um comércio local florescente e próspero. A
princípio, não se apercebera disso, entre outras razões porque não precisara de comprar muitos
objetos. Quando necessitava de meias, sapatos ou qualquer outro produto pessoal, anotava-o num
caderninho e esperava pela sua visita quinzenal à cidade, onde satisfazia todas as necessidades.
Arejava o apartamento, regava as plantas, falava com a mãe, tomava café com amigos, ia às compras
e, ao anoitecer, regressava.
Contudo, pouco a pouco, foi-se dando conta de que havia ali algo oculto. Nos arredores de San
Ireneo de Arnois não existiam indústrias, grandes empresas ou escritórios. Todos os
estabelecimentos vendiam produtos de elevada qualidade, elaborados artesanalmente em diminutas
explorações agrícolas ou oficinas. A roupa tinha a etiqueta de três ou quatro alfaiates; o calçado, a de
outros tantos sapateiros; a pequena papelaria exibia o encanto do produto feito à medida; as lojas de
bens alimentares eram acolhedoras, repletas de produtos frescos, conservas caseiras, leite do dia e
pão acabado de fazer na padaria da esquina. Apesar de, inicialmente, a menina Prim ter visto nisso
uma prova de fervor ecologista, não tardou a aperceber-se do seu erro. O que quer que fosse que
nutria aquela aldeia estava longe de ter cor verde. Tratava-se, isso, sim, de uma tranquila e pacífica
comunidade de proprietários. A escala de vida em San Ireneo era muito pequena e, admitiu a menina
Prim para si própria, também estranhamente harmoniosa.
– São uma espécie de distributistas?
– Sim, entre muitas outras coisas. Realmente, surpreende-me, Prudencia. Pensei que se tivesse
informado, antes de vir para cá – insistiu o anfitrião.
– Mas ainda há quem defenda isso? Julgava que essas velhas ideias de regresso a uma economia
tradicional, simples e familiar, tivessem desaparecido há muito tempo.
– É claro que há, encontra-se no lugar deste país onde quase todos eles vivem. E não só os deste
país. Ou será que também não se apercebeu da sugestiva variedade de apelidos que aqui temos?
– O que acho estranho é que o senhor seja um deles. Não imaginava que fosse amigo das utopias.
O anfitrião bebeu um longo gole de conhaque e, depois, olhou-a afetuosamente.
– Utopia seria pensar que o mundo pode fazer marcha atrás e reorganizar-se na sua totalidade.
Mas não há nada de utópico nesta pequena aldeia, Prudencia, o que há é um enorme privilégio. Hoje
em dia, para se viver de forma tranquila e simples há que refugiar-se numa pequena comunidade,
numa aldeia, num lugar onde não cheguem o estrondo e a hostilidade dessas urbes desmesuradas.
Num canto como este, onde se sabe que a duzentos quilómetros respira, caso desejemos regressar,
uma vigorosa e exuberante urbe desmesurada.
A menina Prim, pensativa, pousou o copo vazio em cima da mesa.
– O que é certo é que parece um lugar muito próspero.
– É-o, em todos os sentidos.
– Suponho que se possa dizer que fugiram da cidade. São uma espécie de foragidos românticos,
não é?
– Fugimos da cidade, quanto a isso tem razão, mas nem todos o fizemos pelos mesmos motivos.
Alguns, como o velho juiz Basett e eu, tomaram a decisão depois de terem aproveitado ao máximo a
vida, porque sabem que encontrar um ambiente tranquilo e culto como o que aqui se formou é um
privilégio raro. Outros, como a Herminia Treaumont, são reformistas, sem tirar nem pôr. Chegaram à
conclusão de que o estilo de vida atual desgasta as mulheres, desnaturaliza as famílias, pulveriza a
capacidade de reflexão humana, e desejam experimentar outras fórmulas. Há um terceiro grupo, a que
pertence o homem do cadeirão, cujo objetivo é fugir, literalmente, do dragão. Querem proteger os
filhos da influência do mundo, regressar à pureza de costumes, recuperar o esplendor da velha
cultura.
Horacio Delàs fez uma pausa para se servir de outro copo.
– Veja se entende o que tento dizer-lhe, Prudencia: uma pessoa não pode construir um mundo à
sua medida, mas pode, isso sim, construir uma aldeia. Aqui, todos pertencemos, por assim dizer, a
um clube de refugiados. O seu patrão é um dos poucos habitantes que tem raízes familiares em San
Ireneo. Regressou há uns anos e concretizou a ideia. Não sei se saberá que a família paterna dele
viveu neste lugar durante séculos.
A menina Prim, que ouvira com muita atenção a explicação do amigo, suspirou, resignada.
– Diga-me, Horacio… há mais alguma coisa que eu deva saber acerca desta aldeia?
– Claro que há, querida – respondeu ele, piscando-lhe um olho, enquanto se dispunha a saborear
a bebida. – Mas não penso dizer-lha.

1
G. K. Chesterton.
6
– E então? Porque decidiu aceitar este trabalho? – perguntou, uns dias depois, o homem do
cadeirão à menina Prim, enquanto devorava despreocupadamente uma fatia de ananás.
A bibliotecária não respondeu. Como estava atarefada a limpar e etiquetar uma edição em cinco
tomos da Histórica Eclesiástica, de Beda, o Venerável, fez de conta que não ouvira a pergunta.
Estava um dia luminoso e os raios de sol faziam sobressair a grossa camada de pó que cobria os
livros e os suaves tons de mel do seu cabelo.
– Vá lá, Prudencia, ouviu-me perfeitamente. Diga-me por que razão uma mulher com a sua
preparação decidiu aceitar um emprego obscuro como este?
A menina Prim ergueu a cabeça, consciente de que não poderia esquivar-se ao diálogo. Não
voltara a falar com o chefe desde o incidente da cozinha, no dia do seu aniversário, exceto sobre o
que era imprescindível para levar a cabo as suas tarefas de bibliotecária. Não queria falar com ele,
não desejava fazê-lo, sentia dentro de si a firme convicção de que não o deveria fazer. Por qualquer
razão, ficava absurdamente nervosa e mal conseguia dissimular a irritação quando ambos se
encontravam na mesma sala ou se cruzavam num corredor. A bibliotecária observou-o à socapa,
enquanto comia fruta calmamente ao sol de novembro. Depois, baixou os olhos e decidiu responder à
pergunta.
– Creio que foi para fugir do ruído.
O homem do cadeirão não conseguiu dissimular um sorriso.
– Menina Prim, desde que a conheço, nunca me defraudou com uma resposta. É maravilhoso
interrogá-la, não há em si qualquer vestígio de conversa de circunstância. Por conseguinte foi o
ruído… Refere-se ao barulho da cidade?
A bibliotecária, que continuava a segurar na obra de S. Beda, olhou-o com compaixão.
– Refiro-me ao ruído da mente, ao fragor.
Ele observou-a, interessado.
– Ao fragor?
– Exatamente.
– Poderia ter a amabilidade de elaborar um pouco mais? – perguntou, enquanto lhe oferecia uma
rodela de ananás.
A menina Prim desatou o avental, pousou o tomo e o espanador, e aceitou a fruta. Entretanto, o
homem do cadeirão puxara duas velhas poltronas para junto de uma das janelas da biblioteca e
pediu-lhe educadamente que se sentasse.
– Fale-me do fragor, menina Prim. Nunca imaginei que uma cabeça tão bela e delicada como a
sua albergasse uma tormenta, acredite.
– Nunca sentiu essa espécie de ruído interior?
Antes de responder, ele cortou, com cuidado, outro pedaço de fruta, dividiu-o ao meio e
ofereceu-lhe uma parte.
– Para ser sincero, ouvi-o durante quase toda a minha vida.
A bibliotecária parou de comer, surpreendida.
– A sério? Mas não parece esse tipo de pessoa. Como conseguiu apagá-lo?
Cego pela claridade, o homem do cadeirão fechou os olhos e apoiou os pés num vaso velho.
– Não consegui.
– Então, continua a ouvi-lo?
– Não disse isso. Só disse que eu não o consegui.
– Mas, se não o conseguiu, continua a ouvi-lo – insistiu a menina Prim, desconcertada.
– Digamos que deixei de o ouvir em grande medida, mas que não é uma façanha que possa
atribuir ao meu esforço. Uma mulher tão instruída como a menina deveria saber de que tipo de
distinção estou a falar.
– Aproveita todas as ocasiões para criticar a minha formação, não é? – replicou ela, com
aspereza. – Porque o faz?
Ele virou a cabeça e contemplou-a por momentos, antes de lhe responder.
– Não adivinha? A Prudencia é um produto perfeito do sistema educativo moderno. Ora, para
alguém que está em guerra permanente com esse sistema, como é o meu caso, isso representa uma
provocação irresistível. Além disso – acrescentou num tom trocista – não se esqueça de que sou
bastante mais velho do que a Prudencia.
A menina Prim pegou noutro pedaço de ananás e olhou, maliciosamente, para o rosto do homem
ao seu lado.
– Calculo que deva ter, pelo menos, a idade de Beda, o Venerável.
– Digamos que tenho uns quantos anos a mais.
– Digamos que tem mais cinco anos e seis meses do que eu, para sermos exatos.
O homem do cadeirão abriu os olhos mesmo a tempo de ver a bibliotecária levantar-se
precipitadamente da cadeira e dirigir-se de novo para o meio da sala. Seguiu-a, com meio ananás
numa mão e a faca na outra.
– Fale-me do ruído, menina Prim.
– Porque deveria fazê-lo? – protestou ela, afogueada.
– Porque quero conhecê-la. Está aqui há quase dois meses e pouco sei sobre si.
A bibliotecária virou-lhe costas, subiu a um velho escadote de madeira e começou a colocar a
História Eclesiástica, de Beda, o Venerável, numa das prateleiras da estante.
– Não creio que lhe possa dizer muito.
– Pode, pelo menos, tentar dizer-me algo.
– Mas, se o fizer, deixar-me-á trabalhar em paz?
– Tem a minha palavra.
Depois de exalar um suspiro, a menina Prim deu meia-volta e sentou-se, com cuidado, no terceiro
degrau do escadote.
– Aviso-o de que não sei como explicar as coisas por completo – começou. – Digamos que há
dias, embora felizmente sejam poucos, em que tenho a sensação de que, dentro da minha cabeça, há
como que uma centrifugadora. Nessas alturas, não sou uma companhia muito agradável e também não
durmo lá muito bem. É como se tivesse um vazio no meio da cabeça, um vazio onde deveria haver
algo, mas onde não há nada, absolutamente nada, exceto um ruído ensurdecedor. – Fez uma pausa,
olhou para o rosto preocupado do chefe e sorriu, com um trejeito suave. – Não ponha essa cara, não é
nada grave; acontece a muitas pessoas, controla-se com comprimidos. Mas se me disse que sentiu o
mesmo, deve saber o que é.
– Porque não desaparece, a seu ver?
– Não sei.
– Não sabe?
A bibliotecária apanhou o cabelo cuidadosamente na nuca, antes de voltar a falar.
– Às vezes, penso que tem que ver com a perda.
Chegada a este ponto vacilou, mas a expressão seriamente interessada do rosto dele animou-a a
continuar.
– Vamos lá ver como lho posso explicar. Num certo sentido, sempre me considerei uma mulher
moderna; uma mulher livre, independente, com não sei quantos títulos académicos. O senhor sabe-o e
ambos sabemos que me despreza por isso. – O homem do cadeirão esboçou um gesto de protesto
educado, que foi displicentemente ignorado. – Mas tenho de reconhecer que, ao mesmo tempo,
sempre carreguei uma pesada nostalgia, um desejo de deter a passagem do tempo, de recuperar
coisas perdidas. A consciência de que tudo, absolutamente tudo, faz parte de um caminho em que não
há volta atrás.
– Que significa para si tudo?
– O mesmo que para si, suponho. A vida inteira, a beleza, o amor, a amizade, até a infância;
sobretudo, a infância. Antes, ainda não há muito tempo, costumava pensar que tinha uma
sensibilidade própria de outro século, estava convencida de que tinha nascido no momento errado e
de que era por isso que a vulgaridade, a fealdade e a falta de delicadeza me incomodavam tanto.
Julgava que essa nostalgia tinha que ver com o anseio por uma beleza que já não existe, uma época
que, um dia, nos disse adeus e desapareceu.
– E agora?
– Agora trabalho para alguém que, efetivamente, vive mergulhado noutro século e pude
comprovar que o meu problema não é esse.
O homem do cadeirão soltou uma gargalhada alegre e contagiosa, que fez com que a bibliotecária
corasse de satisfação.
– Deveria despedi-la por isso. Sabia o que dizia quando a avisei de que teria de lhe perdoar mais
do que uma vez.
A menina Prim levantou-se, sorridente, e começou a limpar cuidadosamente uma edição
deteriorada do Monológio, de Anselmo de Cantuária.
– Agora é a sua vez – disse. – Porque o ouvia?
Ele tardou uns momentos a responder.
– Pela mesma razão de todos, suponho. É o som de uma guerra.
– Essa metáfora é muito, mas mesmo muito, tipicamente sua – interrompeu-o ela, rindo. – Mas
que desencadeava essa guerra? Tem de reconhecer que há sempre um motivo. Por vezes, um carácter
indómito ou uma personalidade instável. Pode ser a doença, uma fraqueza moral, o medo da morte,
da passagem do tempo… Qual é a sua desculpa?
– Está enganada, Prudencia, não são muitas coisas, mas apenas uma. Na realidade, aquilo que
desencadeia a guerra não é tanto a ausência de algo, é mais a falta de uma peça. E, quando falta uma
peça, num puzzle, por exemplo, quando falta a peça principal, nada funciona. Gosta de puzzles?
– Acontece-me em relação a eles o mesmo que acontece à maioria das pessoas perante algo que
lhes oferece resistência; não retiro prazer daquilo que não consigo dominar.
– As pessoas que gostam de puzzles – continuou ele – podem passar noites inteiras a tentar
encaixar uma única peça. A minha irmã fazia-o. Eu acordava de madrugada e encontrava-a
ensimesmada diante de um puzzle. Não me refiro, naturalmente, a um pequeno entretenimento infantil,
falo desses quadros grandiosos que incluem milhares e milhares de pequenas peças. Sabe a que me
refiro?
– Claro que sim.
– Pois bem, o que lhe estou a tentar explicar é que há pessoas, Prudencia, que um belo dia têm
consciência de que lhes falta a peça principal de um puzzle que não podem completar. Sentem apenas
que há algo que não funciona ou que nada funciona, até que descubram ou, melhor, até que lhes seja
permitido que descubram a peça em falta.
– Isso soa a esoterismo ou gnosticismo – murmurou a bibliotecária.
– De modo algum. Não se trata de um conhecimento obscuro, de uma sabedoria para iniciados. É
antes, isso, sim, o tipo de descoberta que Edgar Allan Poe descreve em A Carta Roubada. Leu o
livro? Claro que leu. Pois bem, tal como no conto de Poe, a peça que falta ou a carta roubada está
ali, na mesma sala que nós, ante os nossos olhos, mas não a podemos ver, não temos consciência da
sua presença. Até que, um belo dia…
A menina Prim mexeu-se, pouco à vontade, no degrau do escadote.
– Tenho de continuar a tratar do Monológio – disse, recuperando o seu sereno e distante tom
profissional.
O homem do cadeirão olhou-a com curiosidade.
– Como sempre, a menina Prim foge para o seu refúgio, quando sente a ameaça do sobrenatural.
Porque fica tão preocupada por falar de coisas em que não acredita? Não parece muito razoável.
A bibliotecária, que se dedicava já a limpar um novo tomo, não respondeu. Que poderia dizer?
Não tinha o menor interesse em discutir coisas em que não acreditava; não tinha a menor dúvida de
que algo que não existia não a podia afetar fosse como fosse; não era o sobrenatural que temia, mas a
influência que a conversa e a convicção do homem do cadeirão pudessem exercer sobre ela. Como
explicar que aquilo que temia era acabar por acreditar em algo que não existia, apenas porque ele
acreditava?
– Sossegue, Prudencia. Nenhum homem pode converter-se a si próprio ou converter outro tendo
como única ferramenta a sua própria vontade, não se preocupe. Somos causas segundas, lembra-se?
Por muito que nos empenhemos, a iniciativa não é nossa.
– Não sou tomista – respondeu a bibliotecária secamente, contrariada pela sensação de ter
deixado transparecer os seus temores.
Surpreendido, ele olhou-a como um pai olha para uma filha que se orgulha de não saber ler.
– Esse, menina Prim, é o seu grande problema.
7
As desculpas da Liga Feminista chegaram uns dias depois às mãos da bibliotecária sob a forma
de doze rosas comte de Chambord. Uma dúzia de rosas teria bastado como pedido formal de perdão,
mas uma dúzia de comte de Chambord era mais do que isso: era um sofisticado tratado de paz. A
bibliotecária detetou rapidamente a mão entendida de Hortensia Oeillet na escolha das flores, assim
como a de Herminia Treaumont – quem poderia ser se não ela? – nos versos isabelinos que
encabeçavam o cartão.

Vai e apanha uma estrela fugaz.


Fecunda a raiz da mandrágora.
Diz-me para onde foi o passado
Ou quem fendeu a pata do diabo.
Ensina-me a escutar o canto da sereia,
a afastar o aguilhão da inveja
e descobre qual é o vento
que impulsiona uma mente honesta.2

Abaixo do poema, leu:

Queridíssima Prudencia:
Poderá perdoar-nos algum dia? Não a culparíamos se não pudesse. Desoladas, arrependidas e
profundamente envergonhadas, enviamos um pouco de velha bellezza envolvida nas nossas mais
sinceras desculpas.
Hortensia Oeillet
P.S. A Herminia achou que os versos de John Donne lhe alegrariam o dia. Não são
maravilhosos?

– É claro que são – murmurou, satisfeita, a bibliotecária, enquanto mergulhava o delicado nariz
no ramo.
Desde o dia daquele infausto incidente, a menina Prim não parara de pensar na peculiar
idiossincrasia do grupo feminino que a acolhera em San Ireneo. E, quando mais pensava, menos
grave lhe parecia a ofensa de que fora alvo. Isso não significava que aprovasse aquele
comportamento, mas, de certa maneira, agora via, com alguma indulgência, a cena que tivera com
aquelas mulheres. É verdade que haviam tido uma atuação algo desrespeitosa e grosseira, na qual a
delicadeza e o tato tinham brilhado pela ausência, mas, de algum modo, a bibliotecária começara a
suspeitar de que, sob aquela conspiração tosca, havia uma certa forma de amor.
Amor? Da primeira vez que tal ideia lhe ocorreu, não pôde evitar um sobressalto. Não era uma
mulher sentimental, mas, para dizer a verdade, era difícil não detetar um certo amor – um amor
ruidoso, um amor desajeitado e maternal – no modo como aquelas mulheres se tinham proposto dotá-
la de um marido. Enquanto colocava, com mãos hábeis, o ramo de rosas numa jarra de vidro, disse a
si mesma que, se as damas de San Ireneo consideravam um marido o maior bem a que uma mulher
pode aspirar e estavam decididas a esforçar-se para lho conseguir, quem era ela para as julgar? Se
estavam dispostas a perder tempo e a investir os seus desvelos naquele objetivo, quem era ela para
receber como um insulto aquilo que não podia ser, de modo algum, outra coisa senão um sincero e
caloroso presente?
Por outro lado, tinha de reconhecer que a ideia do casamento não a repugnava totalmente. Sem
dúvida que, em público, afirmara sempre o contrário, mas, como muitas mulheres da sua espécie, a
menina Prim costumava desprezar aquilo que secretamente temia nunca vir a ter. Olhou uma vez mais
para trás e recordou os rostos afogueados de Hortensia Oeillet e Emma Giovanacci e o discurso
sereno de Herminia Treaumont. Se uma mulher sofisticada e inteligente como Herminia considerava
o casamento um tesouro incalculável para o bem-estar de uma mulher, quem era ela para pôr isso em
dúvida de forma tão taxativa? Alguma vez estudara o assunto em profundidade? Em alguma ocasião
se sentara, armada de lápis e papel, para enumerar os prós e os contras daquele estado de vida?
Fizera-o? A menina Prim teve de reconhecer que não.
Ao mesmo tempo, também não podia dizer que a sua posição fosse abertamente favorável ao
casamento. A união conjugal – disse para si mesma, enquanto se cobria com uma manta de lã,
disposta a gozar o pôr do sol na varanda do quarto – era, sem dúvida, para outro tipo de mulheres.
Mulheres com uma certa flexibilidade de caráter, mulheres dadas ao conformismo, mulheres que não
se pareciam importar com a necessidade de assumir conceitos como transação ou compromisso.
Decididamente, a menina Prim não era uma delas. Não se via a transigir sobre o que quer que fosse.
Não se tratava de não querer – sempre valorizara positivamente o conceito em abstrato –, mas nunca
se achava capaz de o aplicar no concreto. Havia nela uma certa resistência – comprovara-o em
diversas ocasiões ao longo da vida – a renunciar, ainda que só em parte, aos seus juízos sobre as
coisas.
Apesar de tal resistência lhe parecer aborrecida, de certo modo também se sentia secretamente
orgulhosa dela. Porque deveria dizer que um determinado compositor era superior a outro – disse, de
si para consigo, evocando uma acalorada discussão musical em casa de uns amigos – quando estava
absolutamente convencida de isso não ser verdade? Porque deveria aceitar, enquanto amável solução
de compromisso, que eram, provavelmente, talentos difíceis de comparar, se os considerava
totalmente comparáveis? Porque deveria fingir, num modo ainda mais servil de transação, que a
primazia de um ou de outro dependia, em grande parte, do estado de espírito do ouvinte? A menina
Prim considerava que os compromissos desse tipo constituíam uma espécie de indecência intelectual.
E, apesar de por vezes se decidir a praticá-los a bem das relações sociais, o certo é que lhe
repugnava fazê-lo.
O céu começava a tingir-se de cor-de-rosa quando notou que alguém batia à porta.
– Prudencia – ouviu o homem do cadeirão dizer –, tenho de sair para tratar de umas coisas na
aldeia e receio que hoje seja o dia de folga dos empregados. Poderia ter a amabilidade de dar uma
vista de olhos aos miúdos? Estão a brincar no jardim. Lamento fazer-lhe este pedido, mas não tenho
alternativa.
Consciente de que o seu pôr do sol estava irremediavelmente comprometido, a bibliotecária
assegurou, num tom amável, que cuidaria das crianças. Não eram normais, refletiu, enquanto descia
as escadas. Não liam coisas normais, nunca brincavam a coisas normais, nem sequer diziam coisas
normais. Isso não significava que fossem desagradáveis ou mal-educadas – na realidade, tinha de
reconhecer que eram encantadoras –, mas não se pareciam em nada com as crianças que costumava
ver em casa dos amigos, na rua ou nos restaurantes. Quando falava com elas, tinha, na maioria dos
casos, a estranha sensação de estar a ser interrogada. Eram os miúdos quem conduzia a conversa.
Eram também eles que salpicavam os diálogos de informações estranhas que a bibliotecária
considerava profundamente inadequadas para a sua idade.
– Hoje, aprendemos coisas acerca dos arquimandritas e dos staretz russos, menina Prim.
Conhece a história do staretz Ambrosio e das peruas? – perguntara-lhe, uma manhã, Téseris, na
cozinha, enquanto preparava umas tostas de queijo fundido.
A menina Prim, muito séria, confessou que sabia um pouco sobre os staretz, mas nunca ouvira
falar do tal Ambrosio e muito menos de peruas. Assim que terminou essa sincera declaração de
ignorância, a bibliotecária assistiu a uma estranha dissertação infantil sobre temas tão diversos como
o staretz Ambrosio e o mosteiro de Optina, as semelhanças entre este e o staretz Zósima e uma
história de umas peruas que se negavam terminantemente a comer.
– Um dia, uma camponesa que cuidava das peruas de um latifundiário foi ver o staretz –
explicou-lhe a rapariga. – Estava muito triste porque as peruas morriam, e o latifundiário queria
despedi-la. Quando os peregrinos que estavam no mosteiro ouviram as suas queixas, começaram a
rir-se e disseram-lhe que não incomodasse o monge com parvoíces tão pouco elevadas. Mas o
staretz Ambrosio aproximou-se dela, ouviu-a com muita atenção e, por fim, perguntou-lhe o que dava
de comer às peruas. Depois, aconselhou-a a mudar-lhes a comida e benzeu-a. Quando a mulher se foi
embora, todos perguntaram ao monge por que razão se preocupava com umas peruas. Sabe o que lhes
respondeu?
– Não faço a menor ideia – replicou, aborrecida, a menina Prim.
– Disse-lhes que estavam cegos, tão cegos que não eram capazes de ver que toda a vida daquela
mulher girava em torno das pobres peruas. O staretz Ambrosio não dividia os problemas em grandes
ou pequenos, como todos fazem. Dizia sempre que os anjos estão nas coisas simples, que nunca há
anjos onde as coisas são complicadas. Pensava que as coisas pequenas eram importantes.

Não, não se podia dizer que fossem crianças normais, suspirou a bibliotecária, enquanto se
dirigia, num passo estugado, para o jardim. Depois de atravessar a álea de hortênsias, virou à direita
para entrar num caramanchão formado pelas copas de seis grandes plátanos cujas folhas tinham
começado a cair. Era ali, nos dois velhos bancos de ferro, que ficava o quartel-general infantil da
casa. Quando viram a menina Prim entrar no seu santuário, as crianças separaram-se imediatamente.
– O vosso tio pediu-me que não vos perdesse de vista, pelo que resolvi vir até aqui, ver o que
estavam a fazer – disse-lhes com franqueza.
– Não estamos a fazer nada, apenas líamos um livro de quando éramos pequenos – respondeu
Septimus.
– Ah! E que liam? – perguntou a bibliotecária, enquanto observava dissimuladamente o pequeno
livro de capa amarela que o miúdo tinha na mão.
– A história de um sapo que gostava de conduzir – respondeu ele, com o arzinho de superioridade
de quem julga ter um segredo impossível de desvendar.
A menina Prim sorriu com benevolência.
– Um sapo amigo de uma toupeira, uma ratazana e um texugo?
Surpreendidas, as crianças moveram a cabeça, em sinal de assentimento.
– Conhece-o? É um livro velho, bastante velho. Já existia quando a avó era pequena. É muito
antigo – disse Septimus, com imensa seriedade.
A bibliotecária reteve outro sorriso.
– Li-o e também o estudei.
– Estudá-lo? Porquê? Não passa de um livro para crianças! – exclamou Téseris de olhos
esbugalhados.
A menina Prim cruzou os braços e olhou para o horizonte, sobre as cabeças dos miúdos.
– Porque não é apenas um livro para crianças: é literatura. E a literatura estuda-se, analisa-se,
procuram-se as suas influências, investiga-se o que se quis dizer com ela.
As crianças olharam-na fixamente, enquanto a suave luz da tarde, que penetrava através das
folhas amarelecidas das árvores, lhes desenhava sombras vacilantes nos rostos.
– O nosso tio diz que fazer isso com os livros é estragá-los – referiu, finalmente, Septimus. – Ele
odeia tudo o que tem que ver com a análise textual, nunca nos obrigou a fazê-la.
Uma onda de fria indignação percorreu a bibliotecária.
– Ah, sim? – murmurou, com aspereza. – Com que então diz isso? Custa-me crer que tenha
conseguido que reconheçam Virgílio a partir de um único verso. É possível fazer isso sem estudar ou
analisar? Não sabem partes da Eneida de cor? Julgo que foi isso que presenciei na tarde em que aqui
cheguei.
– Sabemos muitas partes de poemas e histórias de cor; é a primeira coisa que fazemos em relação
a todos os livros – disse Téseris, com a sua voz suave. – Mas ele diz que é assim que se aprende a
amar os livros, que amar tem muito que ver com a memória. Diz que, quando os homens se
apaixonam pelas mulheres, aprendem de cor a sua cara, para, depois, a poderem recordar; fixam a
cor dos seus olhos, a cor do seu cabelo, se gostam de música, se preferem chocolate ou bolachas,
como se chamam os seus irmãos, se escrevem um diário, se têm um gato…
A expressão da menina Prim suavizou-se um pouco. Ali estava, uma vez mais, aquela estranha,
obscura e concentrada delicadeza, aquele irritante ego masculino mesclado com inesperados fiapos
de delicadeza.
– Com os livros é a mesma coisa – continuou Téseris. – Na aula, aprendemos algumas partes de
cor e dizemo-las em voz alta. E, depois, lemos os livros, discutimo-los e voltamos a lê-los.
A bibliotecária despiu cuidadosamente o casaco e sentou-se no banco.
– Ou seja, o vosso tio acha que é preciso fruir os livros e não analisá-los.
– Sim, mas não diz isso só acerca dos livros. Diz o mesmo da música e dos quadros. Lembra-se
do dia em que chegou? Lembra-se de que viu o ícone de Rublev e o mediu com um compasso? –
perguntou Téseris.
A menina Prim corou, ao suspeitar de que aquela miúda estava prestes a questionar a sua maneira
de abordar a arte.
– Lembro-me, sim – replicou, secamente.
– Não acreditou quando lhe disse que nenhum adulto me tinha ajudado a pintar o ícone. Os
adultos ter-me-iam dito que utilizasse o compasso. O meu tio disse-me que um ícone é uma janela
entre este mundo e o outro, que foi isso que aprendeu com os velhos staretz, que é isso que os velhos
atonitas ensinam e que foi assim que sempre se pintaram.
A menina Prim mexeu-se nervosamente no banco. Havia algo de perturbador naquelas crianças,
embora não pudesse explicar muito bem o quê. Algo inquietante, que convivia com uma luminosa e
radiante inocência e com aquela ternura com que veneravam todas as palavras que saíam da boca do
homem do cadeirão.
– Gostam muito dele, não é? Refiro-me ao vosso tio.
– Sim – disse o pequeno Deka, ao mesmo tempo que os irmãos o confirmavam com um
movimento da cabeça. E acrescentou imediatamente: – Ele diz sempre a verdade.
– Será que as outras pessoas mentem? – perguntou a bibliotecária, surpreendida com a resposta.
– As pessoas mentem às crianças – respondeu Septimus num tom grave. – Toda a gente o faz e
ninguém acha errado. Quando a nossa mãe morreu, disseram-nos que se tinha transformado num anjo.
– E não foi isso que aconteceu? – murmurou, comovida, a menina Prim.
Septimus olhou para a irmã, que abanou a cabeça com firmeza.
– Nenhum homem se pode transformar em anjo, menina Prim. Os homens são homens, e os anjos
são anjos; são coisas diferentes. Repare nas árvores e nos veados. Acha que uma árvore se poderia
transformar num veado?
A bibliotecária negou com um gesto.
– Talvez seja uma forma de o explicar ou até mesmo uma lenda. E que têm de mau as lendas? Que
me dizem dos contos de fadas? Não gostam de contos de fadas? – inquiriu, fazendo um esforço para
mudar de assunto.
– Claro que gostamos – respondeu, timidamente, Eksi. – Gostamos muitíssimo.
– E qual é o vosso preferido?
– A história da Redenção – respondeu com simplicidade a irmã mais velha.
Atónita perante tal resposta, a menina Prim não soube o que retrucar. Aquela estranha afirmação
revelava que, apesar dos seus esforços titânicos, apesar da sua insistência e da sua arrogância, o
homem do cadeirão não conseguira transmitir às crianças nem sequer os rudimentos básicos de uma
crença tão importante para ele. Não conseguira explicar o contexto histórico da sua religião. Como
era possível? Tantas caminhadas matutinas até à abadia, tantas leituras teológicas, tanta velha liturgia
em latim, tantos jogos medievais e que conseguira? Quatro miúdos convencidos de que aqueles textos
que ele tanto amava eram tão-só contos de fadas.
– Mas, Tes, isso não é exatamente um conto de fadas. Os contos de fadas são histórias cheias de
fantasia e aventura, destinam-se a entreter. Não datam de uma época determinada nem falam de
pessoas e lugares que existiram.
– Oh, mas isso já nós sabemos – disse a pequena. – Sabemos que não se trata de um conto de
fadas normal. Sabemos que é um conto de fadas real.
A bibliotecária acomodou-se, pensativa, no velho banco de ferro.
– Queres dizer que se parece com os contos de fadas? É isso? – perguntou, intrigada.
– Não, claro que não. A Redenção não se parece em nada com os contos de fadas, menina Prim.
São os contos de fadas e as velhas lendas que se parecem com a Redenção. Nunca reparou nisso? É
como quando se copia, num papel, uma árvore de um jardim. A árvore do jardim não se parece com o
desenho, não é? É o desenho que se parece um pouco, só um pouquinho, com a árvore verdadeira.
A menina Prim, que começara a sentir calor, um calor febril e asfixiante, permaneceu sentada, em
silêncio, durante um longo momento.
O sol quase se pusera já, lá longe, quando, por fim, se levantou, autorizou as crianças a irem
brincar junto do tanque de carpas e empreendeu, lentamente, o caminho de regresso ao quarto.
2
Go and catch a falling star / Get with child a mandrake root / Tell me where all past years are / Or who cleft the devil’s foot /
Teach me to hear mermaids singing / Or to keep off envy’s stinging / And find / What wind / Serves to advance an honest mind».
«Song», John Donne (1572-1531).
II

É inverno na estepe russa


1
Em meados de novembro, a menina Prim teve oportunidade de conhecer a mãe do seu chefe.
Chegou sem se anunciar, com um elegante chapéu e seguida por uma criada carregada de malas. As
crianças receberam-na em alvoroço, o que revelou à bibliotecária que, sob aquele aspeto imponente,
se escondia uma avó atenta e dedicada. Um juízo que manteve, apesar de notar que grande parte da
alegria dos miúdos tinha que ver com a chegada do buldogue que a acompanhava e com os inúmeros
presentes que trazia. A primeira coisa que a menina Prim pôde constatar foi a sua extrema beleza.
Uma mulher bela e elegante é uma obra de arte, ouvira sempre dizer a seu pai. Se esse princípio
estivesse correto, e a bibliotecária achava que sim, a dama que acabava de chegar àquela casa era
um Botticelli, um Leonardo, mesmo um Rafael.
– Onde está o meu filho? – perguntou asperamente, enquanto a criada a ajudava a tirar uma
imponente estola de raposa siberiana.
– Receio que esteja na abadia – respondeu a bibliotecária.
– A abadia – repetiu, num tom acre, a senhora, enquanto se instalava numa velha e confortável
poltrona. – Se se ocupasse menos da abadia e mais das paredes desta casa, tudo estaria muito melhor.
E a senhora… é?
– Desculpe, deveria ter-me apresentado. Chamo-me Prudencia Prim. Estou aqui em casa para pôr
a biblioteca em ordem.
A senhora olhou-a por instantes, sem proferir palavra. Observou-lhe atentamente o rosto,
examinou com pormenor a sua figura, deteve o olhar no seu cabelo impecável e, a seguir, pediu à
criada que lhe trouxesse uma chávena de café.
– E nele? Veio também para pôr uma certa ordem nele?
A bibliotecária corou intensamente. Apesar de a recém-chegada ser uma mulher linda e a menina
Prim amar a beleza, não estava disposta a ignorar certas insinuações. E, entre todas as insinuações
possíveis, aquela era a que menos estava disposta a tolerar.
– Não sei a que se refere – respondeu, secamente.
A recém-chegada levantou os olhos de novo, fixou-os nela e sorriu com ironia.
– Antes de mais, menina Prim, devo dizer-lhe que não gosto de ter de esticar o pescoço para
manter uma conversa. Faça o favor de se sentar. No tempo do meu pai, um bibliotecário não se
considerava propriamente um empregado, tratava-se de um cargo de confiança, e não era habitual que
mantivessem essa rigidez quando se falava com eles. Sou uma mulher antiquada, não gosto de mudar
os meus hábitos.
A menina Prim sentou-se, obedientemente, numa poltrona. Interrompera o trabalho e tinha a
consciência dolorosa de que Os Nove Livros da História, de Heródoto, a esperavam na biblioteca.
– Não quis ofendê-la, mas decerto não negará que tem um chefe peculiar. Ou será que não se
apercebeu disso? Não receie falar livremente, querida, é meu filho. Se há mulher no mundo que o
conhece profundamente sou eu, menina Print.
A bibliotecária abriu a boca para esclarecer a ortografia do seu apelido, mas pensou melhor e
decidiu calar-se. Era evidente que aquela senhora não nascera para ser interrompida e muito menos
contrariada. Provavelmente, nunca, ao longo da vida, tivera a experiência de ser interrompida ou
contrariada.
– É um chefe agradável e generoso, não tenho qualquer motivo de queixa. Quanto ao seu carácter,
compreender-me-á se lhe disser que não considero correto nem adequado pronunciar-me sobre isso.
A sua interlocutora permaneceu em silêncio, enquanto tirava as luvas.
– É um alívio ouvir isso, menina Prim. Alegra-me comprovar que é exatamente o que dizem que
é. Quero fazer-lhe uma confissão: tenho o mau hábito de testar as pessoas antes de nelas depositar a
mínima confiança. Decerto se apercebeu de que, no intervalo de meio minuto, fiz uma insinuação
malévola sobre as suas intenções nesta casa, a convidei a murmurar sobre os defeitos de carácter do
seu chefe e pronunciei deliberadamente mal o seu apelido. A menina, porém, respondeu com
dignidade à minha insinuação, rejeitou cortesmente o meu convite e ignorou o meu erro. É tão
impecável como o meu filho assegura, sem dúvida que o é.
Perante estas palavras, a bibliotecária sentiu-se confusa. A ideia de ter sido posta à prova por
uma mulher desconhecida não era lisonjeira. E, no entanto, não se sentia ofendida. Não só pela sua
evidente vitória no exame, mas também porque, apesar dos seus desagradáveis preconceitos em
relação às pessoas com muitos títulos académicos, o chefe a considerara, perante a própria mãe,
impecável.
– É muito amável – balbuciou.
– Limito-me a ser sincera.
Quando a velha senhora se preparava para saborear o primeiro gole de café, a criada entrou de
novo na sala, acendeu a lareira e correu as cortinas, para ocultar um exterior cinzento e sem brilho.
– Gosta do outono? – perguntou a senhora inesperadamente.
– Acho-o romântico – respondeu a menina Prim, que voltou a corar perante o pensamento de que
aquela mulher pudesse interpretar erradamente as suas palavras. – Refiro-me ao romantismo como
movimento artístico, é claro, não ao sentimento.
Em vez de responder, a mãe do homem do cadeirão, ofereceu-lhe uma chávena de café fumegante.
– Eu cá detesto-o. Pensei sempre que esse poeta, Elliot, se enganou totalmente com o verso. O
mês mais cruel não é abril, mas novembro, sem a menor dúvida. Abril é um mês maravilhoso, cheio
de sol, de luz e de glicínias em flor. Conhece Itália?
Desconcertada com as reviravoltas da conversa, a bibliotecária respondeu que, de facto,
conhecia Itália.
– Quer dizer que viveu lá?
A menina Prim esclareceu que não vivera lá.
– Então, deveria fazê-lo. Deveria fazê-lo já, antes que seja tarde.
– Não creio que seja possível de momento – respondeu, inquieta, perante a possibilidade de
aquele convite repentino ocultar o desejo de se ver livre dos seus serviços.
O riso da forasteira, alegre e cristalino, quebrou a calma que reinava na sala.
– Quando chegar à minha idade, saberá que tudo é possível. Olhe para o meu filho. Há uns anos,
tinha à sua frente uma brilhantíssima carreira académica, era um homem inteligente e encantador, com
um futuro deslumbrante. E que resta disso? Ei-lo enterrado nesta aldeia minúscula, entrincheirado na
velha casa da família paterna, com quatro crianças a seu cargo e empenhado em percorrer a pé, todos
os dias, antes do pequeno almoço, três quilómetros até um velho mosteiro. Acredite em mim quando
lhe digo que tudo é possível, oh se é.
– Mas ele parece muito feliz aqui – atreveu-se a aventurar a menina Prim.
– E é, claro que é. Isso é o mais irritante de tudo. Tenho de reconhecer que fez um grande trabalho
neste lugar. Não imagina o que era há apenas uns anos.
A bibliotecária, que se esquecera havia já um bom bocado da dolorosa imagem dos volumes de
Heródoto em cima da mesa, acomodou-se na poltrona, disposta a satisfazer a sua nunca inteiramente
saciada curiosidade em relação à aldeia e ao chefe.
– Como lhe ocorreu a ideia de criar a colónia? Não é qualquer pessoa que decide acometer uma
empresa tão extraordinária.
A velha senhora pousou a chávena em cima da mesa, inclinou a cabeça para trás e semicerrou os
olhos, como se fizesse um esforço tremendo para se lembrar.
– Oxalá soubesse. Na realidade, não creio que tenha havido apenas um fator. Como é evidente,
teve que ver com o seu encontro com esse velho beneditino nonagenário, de quem julgo que deve ter
ouvido falar.
A menina Prim recostou-se na poltrona e saboreou outro gole da bebida que a senhora lhe servira.
– Lembro-me de que tinha acabado de terminar um ciclo de conferências – prosseguiu ela –, pelo
que fez uma pausa para assistir a um seminário universitário em Kansas. Algo deve ter descoberto
ali, não me pergunte o quê. Nesse verão, foi ao Egito, depois visitou Simonos Petras, em Athos, e
também esteve em Barroux, com os beneditinos. Ao regressar, disse-me que decidira viver, durante
uns meses, na abadia de San Ireneo. Imagine, num mosteiro de beneditinos tradicionalistas, ele que
não tinha posto os pés numa igreja durante vinte anos. Julguei que não aguentaria; mas, um ano
depois, pediu-me autorização para reabrir a casa e foi assim que começou esta longa história. Mas
não estranhe, a vida é surpreendente.
A bibliotecária, pensativa, guardou silêncio.
– Mas e as crianças? – perguntou. – Não a preocupa que ele as influencie demasiado?
– Preocupar-me? – exclamou a velha senhora, surpreendida. – Minha querida menina Prim, os
meus netos são as únicas crianças que conheço que sabem recitar Dante, Virgílio ou Racine, que leem
textos clássicos na língua original, que reconhecem a maioria das grandes peças musicais só ouvindo
uns quantos acordes. Não só não estou preocupada como estou orgulhosa, francamente orgulhosa. É
uma das poucas coisas que aprovo neste retiro eremítico que o meu filho escolheu e que, não lhe
mentirei, detesto profundamente.
– Não me referia à cultura, mas à religião. Não a preocupa que sejam, por assim dizer, demasiado
religiosos, precocemente religiosos? Sabe a que me refiro.
A mulher voltou a olhar com incredulidade para a bibliotecária e, sem responder, soltou uma
alegre gargalhada.
– Minha querida, vejo que sabe muito pouco sobre a casa onde vive – disse, com os olhos
brilhantes de se rir.
A menina Prim olhou-a, sem compreender.
– Que quer dizer?
A velha senhora contemplou-a, sorridente.
– O que quero dizer é que não foi o meu filho que inculcou essas crenças nas criaturas. Já tinha
dado um ou outro passo, quando os tomou a seu cargo, após a morte da minha filha. Havia descoberto
a profundidade do pensamento e da cultura cristã e apreciava extraordinariamente a beleza do culto.
Mas ainda não tinha dado o passo final; estava, por assim dizer, no umbral. Não compreende o que
estou a tentar dizer-lhe? Não foi ele que o fez, foram elas. Foram as crianças, precisamente as
crianças, que o guiaram até onde agora está.
A chegada da mãe do homem do cadeirão marcou um antes e um depois na existência da menina
Prim. Desde aquele primeiro encontro, a vida social da bibliotecária tornou-se consideravelmente
mais rica. A velha senhora adotou-a logo como uma inseparável dama de companhia e não tardou a
considerar absolutamente natural levá-la consigo aos encontros sociais que lhe preenchiam, todos os
dias, a agenda.
– Hoje, temos de ir visitar a pobre menina Mott – disse, uma tarde, quando se aproximavam da
aldeia. – Não a conhece, evidentemente, mas é a nossa professora primária. Eu própria participei na
sua seleção, há já vários anos, e sinto-me de certo modo responsável por ela; por isso, visito-a
sempre que venho a San Ireneo. É aqui. Naturalmente, na primavera é um pouco mais belo do que
agora, mas, diga-me, não é encantador?
A menina Prim reconheceu que nunca vira uma escola como aquela. Situada no centro da aldeia,
mais precisamente na praça principal, a escola de Eugenia Mott estava rodeada por uma cerca de
madeira literalmente esmagada pelo peso de abundantes roseiras, cuja frondosidade o outono já
conseguira domar. Dois enormes plátanos, um de cada lado do edifício, enquadravam a porta de
entrada. Sobre o dintel, estava pendurado um cartaz que desafiava orgulhosamente os jovens alunos
com uma velha máxima latina: SAPERE AUDE.
Eram cinco da tarde. Havia já algum tempo que as crianças tinham terminado as aulas e a menina
Mott se dedicava a dar brilho à antiga placa de latão que a escola conservava, como memória de
épocas gloriosas. Era uma mulher madura, de cerca de sessenta anos, figura roliça e sorriso afável.
Recebeu as duas visitantes com as faces coradas e as mãos lambuzadas de limpa metais. Solícita,
levou-as imediatamente para o interior da escola. A menina Prim gostava da escola?, perguntou,
enquanto introduzia as duas mulheres na sala ampla onde dava aulas. Que amável! Não era mérito
seu, evidentemente; a escola já fora construída há muitos anos. Mas, agora que a menina Prim o
mencionava, tinha de reconhecer que toda a gente lhe perguntava como conseguia aquelas rosas
perfeitas num jardim infestado de crianças barulhentas.
Naturalmente, havia um truque; uma professora não podia superar as dificuldades que se lhe
deparavam na vida, se não tivesse um truque. O seu consistia em atribuir a cada aluno uma roseira,
no princípio do ano letivo. Essa pequena distinção estimulava o orgulho da criança e levava-a a
desenvolver o sentido de responsabilidade. Ela tinha apenas os alunos durante três anos; ensinava-
lhes pouco mais do que a ler e escrever, uns laivos de geometria, um pouco de aritmética e talvez até
umas noções de retórica.
Enquanto o discurso da menina Mott enchia o silêncio da escola e aturdia a delicada
sensibilidade da bibliotecária, a mãe do homem do cadeirão manteve-se em silêncio. Aparentemente
ensimesmada nos seus pensamentos, percorreu a sala em passos lentos, até parar diante do velho
cabide de madeira a abarrotar de bibes cheios de nódoas de aguarela. Depois, voltou-se e ergueu os
belos e experientes olhos para o rosto da professora.
– É feliz aqui, Eugenia?
A pergunta apanhou desprevenida a menina Mott, que corou ligeiramente e teve de pigarrear antes
de responder.
– Que pergunta tão peculiar! Diria que sim, com certeza que sim. Porque não haveria de o ser?
A mãe do homem do cadeirão sentou-se numa das carteiras e observou, com interesse, uma breve
inscrição gravada na madeira.
– Eu diria que o que é peculiar não é a minha pergunta, mas a sua resposta. Porque não haveria de
o ser? Em primeiro lugar, porque o estado natural do homem não é a felicidade. Talvez porque
educar, ano após ano, tantas crianças pode esgotar qualquer pessoa. Ou até – a velha senhora baixou,
quase impercetivelmente, o tom de voz – porque, ao fim e ao cabo, ele não regressou.
De repente, a bibliotecária sentiu-se pouco à vontade. O comentário da mãe do seu chefe parecia
fazer referência a um certo tipo de desamor. A menina Prim desaprovava tanto o desamor quanto as
suas consequências. Não gostava do que fazia às pessoas, não lhe agradava contemplar os seus
estragos, não apreciava a visão das suas vitórias. Por isso, e antes que a professora se decidisse a
responder, apressou-se a expressar o desejo de ir passear entre crisântemos e loureiros.
– Que delicada é, Prudencia! Mas não se preocupe, é uma velha história e não me incomoda
minimamente partilhá-la. Na realidade, tenho de reconhecer que aprendi a viver com isso e a ser
razoavelmente feliz. Não, o meu marido não voltou, claro que não voltou; mas já não o espero. Não
poderia viver, se continuasse a esperar.
– Alegra-me ouvir isso – sentenciou, com dureza, a velha senhora. – Há algo sinistro na ideia de
esperar. Nunca esperei por ninguém. Contudo, o meu filho considera que é uma virtude.
– Considera a espera uma virtude? – perguntou a menina Prim, interessada. – Em que sentido?
– Oh, ele refere-se a outra coisa – exclamou a professora com tristeza –, não a algo tão tonto e
sentimental como o amor de uma mulher abandonada.
– Não sei se ele se refere a outra coisa; o que sei é que a Eugenia fez bem em deixar de esperar –
interrompeu-a, severamente, a mãe do homem do cadeirão. – E agora diga-me uma coisa: conhece
Itália?
A bibliotecária sobressaltou-se ao ouvir tais palavras. Aquela mulher – era impossível não
reparar nisso – parecia ter uma fixação insistente em conseguir que as pessoas conhecessem Itália. A
menina Prim não tinha nada contra Itália, um país maravilhoso em todos os aspetos, mas porquê o
empenho? A seu ver, havia algo quase descortês na ideia de mandar continuamente toda a gente
atravessar a Europa.
– Como disse à Prudencia no dia em que a conheci, considero que a educação de uma mulher não
está de modo algum completa, se não viver durante algum tempo em Itália. Há algo de tosco na mente
das mulheres que não passaram por essa experiência. É vital para a formação intelectual feminina.
– Só feminina? E que me diz dos homens? – perguntou a bibliotecária.
A velha senhora olhou-a com ironia.
– Os homens? Deixemos que os homens cuidem de si próprios. Já temos bastante que fazer com
as nossas coisas, não acha? É muito jovem e muito inexperiente, Prudencia, mas vou dizer-lhe uma
coisa. No dia em que grande parte dos jantares que reúnam homens e mulheres deixe de estar
dividida em dois ghettos, um masculino, onde se fala de política e economia, e outro feminino, onde
triunfam as anedotas e a maledicência, nesse dia, teremos autoridade para dizer alguma coisa acerca
da formação dos homens. O que vou dizer-lhe escandalizá-la-á, sem dúvida, mas digo-o na mesma: a
maioria das mulheres não tem conversa. Não a tem, e isto é o mais grave, não porque não possa, mas
porque não se dá ao trabalho de a tentar ter.
A bibliotecária trocou um olhar de compreensão resignada com a menina Mott, que se apressou a
mudar de assunto e a explicar que, na sua opinião, os clássicos greco-romanos eram a pedra angular
da educação, quer masculina quer feminina.
– Permita que lhe faça uma pergunta sobre o seu filho. Onde completou os estudos? – perguntou a
menina Prim.
– Gosto de pensar que o meu filho se educou a si próprio. Claro que nós lhe demos todas as
ferramentas, ferramentas de primeira qualidade: grandes colégios, bons professores. Mas o mérito de
as ter utilizado como fez é dele.
– É um homem brilhante – disse a menina Mott.
– É um homem brilhante que desperdiçou o seu talento – sentenciou, amargamente, a velha
senhora, enquanto se levantava para se despedir da professora, que acompanhou as duas mulheres até
à porta do jardim e lhes disse adeus com um sorriso.
A velha senhora e a bibliotecária caminharam durante um bom bocado, lado a lado, mergulhadas
nos seus pensamentos. Apesar de a menina Prim estar desejosa de continuar a inquiri-la sobre o
modo como o seu chefe fora educado, não ousou importunar o mutismo da companheira. Foi esta que
retomou a conversa, explicando que o marido de Eugenia Mott a abandonara numa manhã, três meses
antes de se mudar para San Ireneo, sem uma única palavra. Depois, perguntou à bibliotecária a sua
opinião sobre a professora.
– Dá a impressão de ser uma mulher boa e simples, embora não me pareça particularmente
brilhante. Surpreende-me que tivesse sido escolhida como professora; julgava que em San Ireneo se
atribuía grande importância à educação.
– Quer com isso dizer que a acha vulgar?
A bibliotecária olhou, consternada, para a velha senhora. Como era possível que uma mulher tão
elegante se dirigisse aos seus semelhantes com tamanha falta de respeito e delicadeza? Por muitas
voltas que desse, não conseguia entender. Não conseguia habituar-se à frieza dos seus comentários, à
sua brusca sinceridade, ao seu hábito de falar, olhar e até ouvir com aquela expressão de indiscutível
autoridade.
– O que quero dizer é que esperava alguém… menos simples. Está bem preparada
academicamente? – respondeu com subtileza.
– De modo algum, é uma simples professora primária, extremamente simples.
– Mas a educação baseada nos clássicos que é ministrada em San Ireneo… Nem toda a gente está
preparada para ensinar isso.
A velha senhora virou-se para a bibliotecária com um gesto cansado.
– Minha querida menina Prim, ainda não compreendeu como funcionam as coisas aqui? A
Eugenia Mott é uma professora simples, extremamente simples, porque aquilo que San Ireneo
desejava contratar para os seus filhos era exatamente isso: uma professora sem pretensões
intelectuais.
– Desculpe, se insisto – disse a bibliotecária, desconcertada –, mas não consigo entender por que
razão um lugar em que as crianças representam a Antígona em grego pode querer uma mestre-escola
sem aspirações intelectuais.
Pela segunda vez, a velha senhora parou e olhou para a acompanhante com uma expressão grave.
– Porque, na realidade, não precisam de ninguém que ensine o que quer que seja às crianças. São
eles que educam pessoalmente os seus filhos; são eles que os ensinam a recitar poemas de Ariosto
antes de aprenderem a ler, que lhes explicam a geometria de Euclides utilizando como livro didático
Os Elementos, que brincam com eles fazendo-os ouvir um fragmento de um moteto de Palestrina para
que adivinhem qual é. São eles, querida, que atravessam meia Europa periodicamente para sentar os
rebentos diante do Noli me tangere, de Fra Angelico, para lhes mostrar o altar-mor de S. João de
Latrão, para os confrontar com o capitel do Templo de Afrodite.
– Mas então para que querem uma professora?
– Para que cuide de todo esse trabalho, para que o conserve, para que o proteja. Ou, em termos
que a menina compreenda melhor: para que não o estrague. Ficou escandalizada? Se contratassem
uma professora cheia de teorias sobre pedagogia, sociologia, psicologia infantil e todas essas
ciências modernistas, teriam a raposa dentro do galinheiro. Pense as coisas nestes termos: se
estivesse convencida de que o mundo se esqueceu de como pensar e educar, se acreditasse que tinha
arrancado a beleza da literatura e da arte, se pensasse que havia afogado a força da verdade,
permitiria que esse mundo ensinasse alguma coisa aos seus filhos?
– Percebo agora por que motivo o seu filho não queria uma pessoa pós-graduada para a
biblioteca – murmurou a menina Prim, com tristeza.
A velha senhora olhou-a e sorriu com doçura.
– Ah, mas contratou-a, não foi? Deve ter visto em si algo de especial para o fazer, não é verdade?
Ora diga-me lá: que pensa que foi?
A menina Prim respondeu que não sabia, embora suspeitasse de que tivera que ver com um certo
mal-entendido ocorrido no dia da sua chegada.
– Não se iluda, querida – insistiu a velha senhora. – Ele não é um sentimental. Acredite quando
lhe digo que deve ter visto realmente algo interessante em si. – E, com a habitual brusquidão,
acrescentou: – Pergunto-me o que foi que viu.
2
Havia dez dias que a menina Prim só trocava umas breves frases com o homem do cadeirão.
Ocupado com as crianças, as aulas, as visitas à abadia e a companhia da mãe, nos últimos tempos,
tornara-se uma presença esquiva. Enquanto mordiscava uma torrada ao pequeno-almoço, a
bibliotecária disse a si própria que não precisava da companhia dele. E era verdade. Uma mulher
como ela, que gozava de boa saúde psicológica e de uma gloriosa independência, era perfeitamente
capaz de se entreter sem precisar de conversa. Contudo, tinha de reconhecer que lhe fazia um pouco
de falta aquele sentido de humor masculino que aligeirava o trabalho e as enormes filas de livros a
classificar.
À tarde, a menina Prim recebeu um bilhete de Herminia Treaumont, no qual esta lhe pedia que
aceitasse um convite para se juntar ao grupo encarregado de organizar as festividades natalícias de
San Ireneo. Enquanto terminava o café, leu a missiva em silêncio e, atendendo a que o trabalho
previsto para a jornada era leve, decidiu pegar no casaco comprido e no chapéu e ir à reunião no
salão de chá da aldeia.
O dia estava frio, e a bibliotecária estugou o passo, rumo ao portão do jardim.
– Vai à aldeia, Prudencia? Posso levá-la, se não vir nisso qualquer inconveniente.
O homem do cadeirão fez a proposta do interior do automóvel. A menina Prim titubeou, mas uma
olhadela ao céu baixo e cinzento levou-a aceitar a oferta.
– Obrigada – disse, instalando-se no lugar do pendura. – Estou convencida de que vai nevar de
um momento para o outro.
Ele sorriu amavelmente, mas não respondeu.
– Quer que aumente o nível do aquecimento? – perguntou.
A bibliotecária assegurou-o de que a temperatura do carro estava perfeita.
– E, se não é indiscrição, diga-me porque vai à aldeia numa tarde tão fria?
– Vou encontrar-me com a Herminia Treaumont e outros habitantes de San Ireneo para falarmos
sobre as festas de Natal.
– Estou a ver. Parece que se integrou plenamente na nossa pequena comunidade. Então… já lhes
perdoou?
A menina Prim, que tivera o especial cuidado de evitar sempre que o incidente da Liga Feminista
chegasse aos ouvidos do chefe, ruborizou-se.
– Não sabia que estava tão a par das minhas peripécias em San Ireneo. Suponho que tenha sido o
seu amigo, o senhor Delàs.
– Receio que confie demasiado na discrição de trinta testemunhas. Contaram-me essa história aí
umas cinco vezes e devo dizer que, em todas elas, a sua reação me pareceu magnífica.
A bibliotecária riu, agradecida, mas rejeitou, com um gesto, o elogio.
– Não me sinto muito orgulhosa disso, acredite. Apercebi-me de que o que aconteceu, ainda que
embaraçoso para mim, foi feito com a melhor intenção. Não foi muito cortês da minha parte
comportar-me naqueles moldes, especialmente com a menina Treaumont, uma mulher maravilhosa.
– Esplêndida – limitou-se a responder o homem do cadeirão.
A bibliotecária, encolhida no assento dianteiro do carro, sentiu de súbito um certo mal-estar.
– É uma mulher muito bela, não acha? – perguntou, olhando de soslaio para o perfil do seu chefe,
cuja atenção continuava centrada na estrada.
– Claro que sim, uma das mulheres mais atraentes que conheci. E, além disso, muito inteligente.
Por momentos, nenhum dos dois disse uma palavra. A menina Prim limitou-se a olhar pela janela,
em silêncio. As velhas árvores nuas que ladeavam a estrada e a luz fria e cinzenta davam à paisagem
um aspeto dramático e sombrio.
– Deve ter sido uma grande beleza – disse, por fim, sentindo uma estranha opressão no estômago.
– Dizia que…?
– Dizia – repetiu ela com paciência – que deve ter sido uma grande beleza.
– Refere-se à minha mãe?
– À sua mãe? De modo algum, porque haveria de me referir agora à sua mãe? Refiro-me à menina
Treaumont.
– Não é assim tão velha – respondeu ele, surpreendido. – Não suficientemente velha para dizer
que deve ter sido uma grande beleza.
– Acha?
– Claro que sim. É mais nova do que eu e, provavelmente, só um pouco mais velha do que a
Prudencia.
– Oh – disse a bibliotecária.
Ele olhou-a, intrigado, e depois voltou a fixar os olhos na estrada.
– Não acredita? É mesmo verdade.
– Acredito, evidentemente – retorquiu ela –, embora seja surpreendente.
– O que é que é surpreendente?
A bibliotecária, que começara a sentir-se melhor e já não notava aquela estranha opressão na
boca do estômago, abriu um pouco a janela, deixando entrar uma rajada de ar gelado.
– Há mulheres que têm a infelicidade de murchar antes do tempo – murmurou.
– Murchar antes do tempo? Que disparate. Na minha opinião, a Herminia é uma mulher jovem e
atraente.
A menina Prim, que subitamente voltara a sentir a mesma e aborrecida opressão no estômago, não
disse nada.
– Porque não diz nada?
– E que poderia eu dizer?
– Suponho que poderia fazer qualquer observação sobre o que acaba de comentar.
– Preferiria não o fazer.
– Porquê?
– Não seria delicado continuar a falar de outra mulher com um homem, especialmente sobre
aspetos que este não domina.
– Com que então é assim – disse ele, tentando disfarçar um sorriso.
Ambos prosseguiram a viagem sem dizer palavra até que o automóvel parou em frente do salão
de chã, onde o comité de festejos esperava a bibliotecária.
– Quer que a venha buscar? – perguntou ele, cortesmente, enquanto se inclinava sobre o assento,
para lhe abrir a porta.
– Não é necessário, muito obrigada – respondeu ela, com frieza. – Penso voltar a pé.
– Menina Prim, olhe para o céu; vai cair um grande nevão.
– Tenho perfeita consciência disso, obrigada.
– Pois, se tem perfeita consciência disso, nada tenho a dizer. Espero que passe uma boa tarde –
disse ele, de sobrolho franzido, antes de voltar a ligar o motor.
A bibliotecária endireitou o chapéu diante da montra do salão de chá. Sentia-se irritada, não o
conseguia ocultar. Aqueles elogios desmedidos a Herminia Treaumont haviam-na incomodado
profundamente, era absurdo negá-lo. Mas a que mulher não teriam incomodado? Que mulher não teria
achado desagradável viajar na companhia de um homem que não faz senão desfazer-se em elogios a
outra pessoa? Que tipo de homem insiste uma e outra vez na extrema beleza de uma mulher diante de
outra? Era uma falta intolerável de cortesia. E a menina Prim abandonara o emprego, deixara a sua
vida na cidade, o seu trabalho e a sua família, precisamente devido à falta de cortesia. Se a cortesia
desaparecia de um grupo humano, tudo se podia dar por perdido. Sabia-o bem porque o vira na
própria casa. Assistira ao desaparecimento da cortesia, ano após ano, na relação entre os seus pais.
Experimentara na própria pele os efeitos da ausência de cortesia na sua relação com a irmã. E agora,
quando parecia que chegara a um lugar onde a formalidade ainda tinha uma razão de ser,
precisamente agora, acabava de passar pela experiência de ser transportada de automóvel por um
homem que, durante toda a viagem, não parara de falar das excelsas qualidades e da beleza
deslumbrante de outra mulher.
Era uma mulher interessante, e depois? Ela própria não o era? Era atraente, muito bem; não se
podia dizer o mesmo acerca de si? Ele era totalmente livre de se sentir enfeitiçado por aquela
mulher, se quisesse, não tinha qualquer objeção a levantar, mas seria necessário exibi-lo de maneira
tão óbvia? A seu ver, as sociedades civilizadas tinham habitações para que os indivíduos pudessem
dar livre curso aos seus sentimentos sem que os outros se sentissem obrigados a contemplá-los. Os
excessos sentimentais – pensou, enquanto ajeitava a gola do casaco – eram próprios de sociedades
primitivas e de indivíduos igualmente primitivos. Além disso, não era ela uma empregada? Seria
necessário submeter uma empregada a uma exibição de sentimentos como a que ele acabara de fazer
no automóvel? A menina Prim pensava que não. E não só o pensava como estava plenamente
convencida de que o mais provável era que existisse algum tipo de norma que proscrevesse aquele
comportamento.
Ainda aborrecida, devido ao incidente, entrou no estabelecimento, onde o ambiente cálido da
sala, iluminada por pequenos candeeiros em cima das mesas, a acolheu.
– Que alegria voltar a vê-la, menina Prim. – A voz suave e tranquila de Herminia Treaumont, que
se levantara da mesa para a receber, fê-la voltar à realidade.
– Eu também me alegro por vê-la, menina Treaumont.
– Trate-me por Herminia, por favor, e permita-me que a trate por Prudencia. Nenhuma de nós tem
idade para manter um tratamento tão formal. Não acha?
– Claro que sim – respondeu a bibliotecária, corando até à raiz do cabelo.
Apesar do seu estado de espírito alterado, a menina Prim não tardou em participar na conversa.
Além da anfitriã, encontravam-se na mesa outras três mulheres e dois cavalheiros. Um deles foi-lhe
apresentado como o juiz Basett, um homem baixo, robusto, de sobrancelhas e bigode espessos e um
olhar que só focava quando o tema da conversa era do seu interesse. O outro era um jovem que dava
pelo nome de François Flavel, o único veterinário da zona. As mulheres apresentaram-se como a
senhora Von Larstrom, proprietária do hotel San Ireneo; a menina, já idosa, Miles, uma enciclopédia
viva no que se refere a tradições, e a jovem Amelia Lime, secretária do juiz. Depois de debater um a
um os principais assuntos relacionados com os preparativos natalícios, e que incluíam desde os hinos
do coro até à decoração das ruas com grinaldas feitas de ramos, frutos silvestres e uma esplêndida
iluminação de círios, o comité abordou a organização dos pratos fortes dos festejos. Durante mais de
uma hora, anotaram-se todos os pormenores ainda por resolver. Depois, a conversa girou em torno de
assuntos mais pessoais. Foi então que a menina Prim aproximou a cadeira da do veterinário e, com a
recordação ainda dolorosa do comportamento do homem do cadeirão, se dispôs a exibir todo o seu
encanto.
– Adoro animais – disse com o melhor dos sorrisos.
O destinatário sorriu de volta e ia responder amavelmente, quando a voz grossa do juiz Basett
interrompeu a incipiente conversa.
– Isso é porque nunca esteve numa quinta, não é? Aposto que nunca viu uma vaca parir. Pergunte,
pergunte aqui ao nosso veterinário se é agradável enfiar o braço até ao ombro nas partes pudendas de
uma vaca. Ora, diga-me, querida, teve alguma vez oportunidade de ver uma vaca parir?
A menina Prim empertigou-se e cerrou os dentes.
– Claro que não, mas compreendo que se possa gostar de animais sem se ter presenciado
semelhante espetáculo.
O jovem veterinário apressou-se a confirmar o ponto de vista da bibliotecária. Era perfeitamente
possível amar animais sem se ter de passar pela experiência de explorar o seu aparelho reprodutivo.
Milhões de pessoas o tinham feito, ao longo da história.
– É possível que ambos tenham razão, mas creio que é importante distinguir o amor pelos
animais, que é uma coisa nobre e forte, dessa pieguice sentimental que algumas pessoas tomam como
tal. Dou como provado que não é esse, naturalmente, o seu caso, cara jovem.
– Naturalmente – corroborou o veterinário com simpatia.
A bibliotecária não disse nada.
– Tem um cão? – perguntou, a seguir, o juiz.
A menina Prim respondeu que, infelizmente, não tinha cão.
– Talvez um gato? Tem cara de ser dona de gato. Pensei nisso no preciso momento em que a vi.
– Também me ocorreu essa ideia – comentou, alegremente, o jovem. – Há em si algo de felino, se
me permite dizê-lo.
A menina Prim assegurou calorosamente que aceitava, encantada, o elogio, mas o seu sentido de
honra obrigou-a a deixar bem claro que, apesar das aparências, nunca tivera um gato.
– Um canário? – prosseguiu o magistrado.
A bibliotecária abanou a cabeça.
– Uma tartaruga? – aventurou o veterinário.
A menina Prim foi obrigada a confessar que nunca convivera com um animal com carapaça.
– Talvez um peixe? – insistiu o juiz, em cuja voz se começava a notar uma ligeira impaciência.
– Nunca tive um animal – respondeu a bibliotecária, numa tentativa de pôr termo àquela escalada
inquisitiva. – Fui sempre da opinião de que a ausência do objeto amado purifica o amor.
– É uma boa teoria – apressou-se a retorquir o magistrado, satisfeito. – Se a maioria dos homens
a seguisse, provavelmente não existiria divórcio e, se pensar bem, nem sequer casamento.
O veterinário de San Ireneo contemplou, em silêncio, a menina Prim.
– Quer dizer que ama os cães em abstrato?
– Exatamente – respondeu ela, com um sorriso.
– E os gatos?
– A mesma coisa.
– E os peixes, os canários e os hámsteres?
A bibliotecária, que estava a começar a ficar irritada, agradeceu a rápida e taxativa intervenção
do juiz, que ordenou ao jovem François que pusesse termo ao interrogatório.
– Mas isso é quase desumano – disse, então, este. – Não posso acreditar que uma mulher tão doce
como a menina ame em abstrato.
A menina Prim ajeitou uma madeixa de cabelo rebelde e baixou os olhos.
– Não disse isso – murmurou.
– Ah isso é que disse – interveio de novo o magistrado. – Disse que a ausência do objeto amado
purifica o amor. É uma teoria esplêndida, já lho afiancei, não a estrague agora por falta de coragem.
A bibliotecária mudou de posição na cadeira. Ao seu lado, as outras mulheres discutiam sobre
como proteger do vento os círios que decorariam a árvore de Natal. Olhou para elas com inveja,
antes de voltar à carga.
– Se há algo de que me orgulho, juiz Basett, é de ter coragem. Mas devo dizer que, quando falava
da ausência do objeto amado, me referia ao amor cortês. Era uma licença poética, não me referia ao
amor real.
O jovem veterinário olhou-a bem nos olhos antes de falar.
– Quer então dizer que o amor pelos animais é como o amor cortês? Um amor sublimado?
– Quero dizer que o amor pelos animais não é amor.
O magistrado acolheu esta declaração com uma enorme gargalhada.
– Sim, senhor – disse, na sua voz rouca. – Sim, senhor. É uma mulher a sério. Eis a maior verdade
sobre este assunto que ouvi desde há muito. Ora bem, diga-me uma coisa: se crê que o amor aos
animais não é amor nem nunca teve um animal em casa, por que diabo disse que gosta de animais?
A bibliotecária olhou para o veterinário e o que viu nos seus olhos obrigou-a a ser sincera. Era
inútil continuar a fingir. O fluxo de simpatia que se estabelecera entre eles, assim que tinham sido
apresentados, desaparecera por completo. E que outra coisa se poderia esperar? A tarde começara
mal, com aquela desagradável conversa com o chefe; o facto de se manter na mesma tónica não a
deveria surpreender.
– Pretendia apenas ser amável – disse, dirigindo-se ao veterinário, que desviou logo os olhos
para as torradas com manteiga e mel em cima da mesa.
– Nesta aldeia temos o hábito de ser francos, sabe? Foi uma das razões pelas quais alguns de nós
vieram para aqui, para fugir das conversas de salão – declarou, secamente, o velho magistrado.
Ao ouvir aquelas palavras, a menina Prim pôs-se muito direita.
– Deixe-me que lhe diga, juiz Basett, que ser amável não é o mesmo que manter uma conversa de
salão.
– Tem razão – interveio o veterinário, encarando-a. – Pode ser-se amável e dizer-se a verdade,
nada o impede.
A bibliotecária corou e, ao fazê-lo, apercebeu-se de algo que a encheu de espanto: dissera uma
mentira, sem ter consciência disso. Ela, que se orgulhava de ser incapaz de mentir, fizera-o e nada em
si mudara. Não corara, não se alterara, nem tivera taquicardia. Tentara impressionar aquele jovem
com uma estúpida e ridícula mentira e fizera-o sem sentir uma palpitação. Era a primeira vez que
isso acontecia? Profundamente envergonhada, teve de confessar a si própria que não. Eis que, dentro
de si, surgiu uma enorme e silenciosa pergunta: era possível que aquilo a que chamara, com orgulho,
ao longo da vida, a sua delicadeza fosse unicamente uma fachada eficiente e discreta para mentir?
Nunca transigira quanto às suas opiniões firmes sobre as coisas, isso era certo. Mas não era também
certo que, quando se tratava de agradar em relação a assuntos que não eram vitais para si, que não
punham em causa o seu sentido das coisas, fora falsa?
– Desculpem-me – disse, levantando-se precipitadamente. – Mas acho que tenho de me ir
embora.
Todos os companheiros de mesa se levantaram.
– Não a ofendi com as minhas palavras, pois não? – perguntou, inquieto, o veterinário, que,
perante o sobressalto da bibliotecária, parecia ter recuperado a sua simpatia por ela.
– Ofendida? Porquê? – interveio Herminia Treaumont.
– Não se preocupe, Herminia, estávamos a brincar – respondeu, com doçura, a menina Prim. –
Falámos de animais e de conversas de salão, nada que pudesse ofender alguém.
– A nossa hóspede é uma descoberta, Herminia, entusiasmou-nos com a sua conversa – disse o
juiz. – Pergunto-me se quereria trabalhar para mim agora que a jovem Amelia pensa deixar-me e sou
acusado de ser um escravizador de jovenzinhas.
– Vá lá, não diga disparates – respondeu a aludida, com afeto.
A bibliotecária riu, com prazer.
– É uma oferta tentadora – disse –, mas receio já ter um trabalho que adoro.
– Muito bem, muito bem, mas pense nisso. Gosto das mulheres com a cabeça no lugar.
Depois de se despedir de todos e de combinar com Herminia que lhe faria uma visita à sede do
jornal, na quarta-feira seguinte, a menina Prim abandonou o salão de chá. Antes de sair, levantou a
gola do casaco e preparou-se para empreender o caminho de regresso.
Lá fora, as ruas começavam, lentamente, a cobrir-se de branco.

Mal percorrera um quilómetro, antes de entrar na floresta, quando ouviu o som de um automóvel
atrás de si.
– Prudencia, devo avisá-la de que, se se mete na floresta com esses sapatos, corre o risco de
perder os pés e teremos de a ir resgatar. Permite-me que a leve para casa? Prometo não dizer nada
que possa incomodá-la. Mais, prometo não dizer absolutamente nada.
A bibliotecária olhou para o homem do cadeirão com um misto de alívio e de gratidão. Calculara
mal a resistência dos sapatos à neve. Doíam-lhe os pés, já mal os sentia, não desejava perdê-los e
muito menos ser resgatada.
– Ficar-lhe-ia muito agradecida. Sou obrigada a reconhecer que tinha razão quando me avisou de
que não deveria voltar para casa a pé.
– A menina Prim a dar-me razão… não posso acreditar. Deve estar doente; é, com certeza, o
efeito do frio – disse ele, inclinando-se para lhe abrir a porta e oferecendo-lhe uma manta para
cobrir os joelhos. – Está gelada. Um gole de conhaque? Já sei que pensa que sou um alcoólico
irrecuperável, mas esqueça por esta vez os seus impiedosos juízos e beba um pouco. Isso ajudá-la-á
a recuperar o calor.
A bibliotecária obedeceu, sem dizer palavra, enquanto ele ligava o motor e aumentava a
temperatura. Tinha demasiado frio para se pôr a discutir, mas algo naquelas palavras a levou a falar.
– Juízos impiedosos? A sério que acredita que eu teço juízos impiedosos? E eu que pensava que a
sua religião é que era contra a bebida. Parece-me surpreendente que me acuse a mim de fazer juízos
impiedosos. Sempre me considerei uma pessoa tolerante.
– Uma pessoa tolerante? – ripostou ele, a rir. – Vamos lá, Prudencia, diria antes que é uma pessoa
extremamente rigorosa. Reconheço que é uma virtude maravilhosa no seu trabalho e sou o primeiro a
beneficiar dela, mas deve ser uma carga muito pesada para umas costas tão frágeis como as suas.
A bibliotecária mordeu o lábio ao lembrar-se da tarde no salão de chá e da sua angústia perante a
facilidade com que caía na mentira social.
– Quanto à minha religião e à bebida, está um pouco confusa, embora deva dizer, em sua defesa,
que se trata de uma confusão comum. A bebida, tal como os restantes dons da criação, é boa,
Prudencia. É do uso errado ou do abuso que provêm os efeitos negativos.
Pela segunda vez naquele dia, a menina Prim reconheceu que o seu interlocutor poderia ter razão.
Mas não eram nem a bebida nem a religião que lhe ocupavam, nesse momento, a mente.
– Com que então pensa que sou rigorosa? Eu também o pensava, mas hoje descobri que não é
verdade e que sou uma mulher profundamente hipócrita e com tendência para mentir.
O homem do cadeirão olhou-a, surpreendido.
– Senti-me tentado a fazer um comentário jocoso sobre o que acaba de dizer, mas vejo que está
preocupada. Posso perguntar-lhe o que aconteceu? Prometo ser delicado, se é que isso é possível.
Depois de hesitar por um instante, a bibliotecária decidiu-se a falar. Estava muito cansada,
ansiava por desabafar com alguém, pousar sobre outros ombros a inquietação que sentia. Uma mulher
virtuosa como ela, que investira, ao longo da vida, enormes doses de boa vontade para dominar os
seus defeitos e saíra vitoriosa de não poucas batalhas, tinha agora de se render e de reconhecer que a
sua delicadeza, essa qualidade que elevara a uma arte, era apenas uma máscara que ocultava a
hipocrisia e a mentira social.
– Está a ver – disse, depois de narrar a história do seu amor pelos animais, o veterinário e o juiz
Basett. – Sou uma vulgar hipócrita. Uma mentirosa.
– Diria antes que é tonta. – Eis a resposta simples e concisa do seu interlocutor.
A menina Prim olhou-o com espanto e, a seguir, desapertou com um gesto brusco o cinto de
segurança.
– Pare imediatamente o carro – disse, com uma ira que mal conseguia conter.
– Que diz?
– Que pare imediatamente o carro. Não quero passar nem mais um minuto consigo.
O homem do cadeirão parou o automóvel e levantou as mãos do volante.
– Por que diabo é tão exagerada?
– Exagerada? Acha que exagero? Pede-me que lhe abra o coração, promete-me ser delicado e,
assim que caio na armadilha e lhe confio as minhas preocupações, a sua resposta é um insulto.
Preciso de lhe lembrar que me chamou tonta? O senhor que se orgulha de ser um cavalheiro,
precisamente o senhor.
– Sim, eu, precisamente eu – replicou ele, com brusquidão. – Não se engane a meu respeito,
Prudencia, sou um homem exatamente igual a todos os outros, talvez até pior do que os outros.
Espero que não seja para si, porque, evidentemente, não o é para mim.
A bibliotecária fez menção de sair do carro, mas ele deteve-a com firmeza.
– Oiça-me bem. Chamei-lhe tonta porque me parece que afligir-se dessa maneira com aquilo que
me contou é comportar-se como uma tonta. Sou um homem franco, certamente demasiado franco e tem
razão: não sou delicado. Mas creio que, por esta altura, já deveria saber o suficiente acerca de mim
para compreender que, ainda que não seja um exemplo de delicadeza, sou uma pessoa decente. Se lhe
digo que me conte algo é porque estou interessado em ajudá-la. Deixe-me, pois, falar e ouça o que
tenho a dizer-lhe.
– Não o farei se não retirar o seu insulto – ripostou ela, secamente.
– Está bem, retiro o que disse. Mas que conste que não era um insulto; qualificava um
comportamento, não a qualificava a si.
– Não recomece com as suas distinções teológicas, não me vai enganar de novo.
– Pode fazer o favor de me ouvir? – insistiu ele, espaçando deliberada e lentamente as palavras.
A bibliotecária ergueu os olhos e fixou-o. O dia começara mal. Fora um erro aceitar o convite
para ir ao salão de chá. Fora um erro também permitir que ele a levasse à aldeia de carro. Se não
tivesse aceitado a oferta, não teria sido obrigada a ouvir aqueles rasgados elogios a uma beleza que
não era a sua. Também não se teria deixado levar pelo flirt com o veterinário e muito menos teria
dito aquele disparate acerca de quanto gostava de animais. Ela, que sempre tivera medo de cães e
sentira repugnância por gatos. Como pudera ser tão estúpida?
– Tem razão, sou uma tonta – disse com lágrimas nos olhos.
Ele pegou-lhe suavemente numa mão e olhou-a com uma expressão que a bibliotecária não soube
interpretar.
– Vá lá, Prudencia, não é tonta, só se comporta como tal. Não chore, por favor, já vê que os
indivíduos como eu não sabem como lidar com lágrimas, não nos foi concedido tal dom. Ouça-me
com atenção: o que acontece é que há algumas coisas que a fazem sofrer e fazem-na sofrer
simplesmente porque não as compreende bem.
Ela secou as lágrimas e sorriu.
– Entre nós tudo se reduz sempre a eu não compreender as coisas e o senhor sim, não é verdade?
– Não, não é exatamente certo, não inteiramente, pelo menos. Vai ouvir-me agora?
A menina Prim assegurou-lhe que estava disposta a fazê-lo. Ele ligou o motor, ofereceu à
bibliotecária outro gole de conhaque e acomodou-se no assento, antes de falar.
– Em primeiro lugar, não existe a vitória definitiva de cada um sobre os seus próprios defeitos,
Prudencia, não é algo que funcione pela mera força de vontade. Temos uma natureza defeituosa, uma
espécie de velha locomotiva ferida e, por conseguinte, por muito que nos empenhemos, tendemos
sempre a falhar. Angustiar-se com isso é absurdo e, ainda que fique um pouco zangada ao ouvi-lo,
também soberba. O que há que fazer, embora saiba que esta resposta não lhe agrada, é pedir ajuda a
quem fez a máquina, de cada vez que se falha. De qualquer modo, deixar que a melhore, injetando-lhe
de vez em quando uma boa dose de óleo.
– Essa é uma explicação religiosa, e eu não sou religiosa. Por favor, não utilize esse argumento
comigo, não serve – disse ela, com o nariz vermelho, devido ao frio e ao choro.
Ele encostou a nuca ao apoio de cabeça do assento e riu-se.
– Essa resposta não é digna de uma mente lúcida, Prudencia. E é um dos frutos da educação
antitomista de que se orgulha tanto. A questão, aqui ou em qualquer outra discussão, não é se a minha
resposta é ou não religiosa, mas sim se é ou não correta. Não vê a diferença? Contra-argumente,
Prudencia, diga-me que julga que o que eu digo não está certo, mas não me responda que o meu
argumento não serve porque é religioso. A única razão pela qual o meu argumento pode não servir
aqui ou no fim do mundo é simplesmente porque é falso.
– Está bem, então digo-lhe que não serve porque é falso.
– A sério? Isso quer dizer que acredita que o ser humano é capaz de alcançar a perfeição e
manter-se nesse nível de excelência moral graças às suas próprias forças. Não acredita, pois, que
errar é humano? Acha que o homem não falha?
– Claro que não acredito nisso, sei perfeitamente que errar é humano e que ninguém é perfeito.
– Ou seja, no fundo acredita que uma boa parte do que lhe disse é verdade. O que acontece é que
só reconhece a verdade quando esta se apresenta com vestes seculares.
A menina Prim olhou para o homem do cadeirão através da penumbra e perguntou-se por que
motivo, mesmo em momentos sombrios como aquele, as conversas com ele eram muito mais
interessantes do que as que mantinha com o resto do mundo. Porque é que o único homem com quem
falar era uma atividade tão estimulante tinha de ser também o mais teimoso e odioso da sua espécie.
– Tenho frio. Importa-se de me levar para casa?
– Importar-me? Estou sempre disposto a levá-la para casa, Prudencia.
3
Às terças e sextas-feiras de manhã, os pequenos iam à escola da menina Mott. Embora os irmãos
se encontrassem numa fase já demasiado avançada para frequentar as aulas da professora, também
eles recebiam parte da instrução fora de casa. Três vezes por semana, assistiam a aulas de língua em
casa de Herminia Treaumont; duas outras aprendiam biologia no consultório do médico da aldeia; em
casa de Horacio Delàs, estudava-se história, na de Hortensia Oeillet, botânica, na de Emma
Giovanacci, música, e assim sucessivamente. Foi precisamente numa terça-feira de manhã que os
dois mais novos irromperam pelo salão carregados de notícias.
– Avó! Menina Prim! O marido da menina Mott voltou! – gritou Eksi, mal transpôs a porta da sala
onde as duas mulheres se dedicavam às suas tarefas, uma a despachar a correspondência e a outra a
catalogar as obras de Swift.
– E trouxe rebuçados para todas as crianças! – continuou Deka, que chegava a correr, carregando
os livros da irmã.
A mãe do homem do cadeirão levantou a sobrancelha esquerda e continuou a escrever, enquanto
indicava aos netos que esperassem que ela acabasse o que estava a fazer naquele momento. Foi a
menina Prim que se virou e celebrou com eles as novidades. Apesar da sua inexperiência com
crianças, a bibliotecária não percebia de todo a comedida frieza daquela avó e a sua capacidade de
antepor as normas e boas maneiras à espontaneidade dos netos. Embora, ao mesmo tempo, algo
dentro de si lhe dissesse que, provavelmente, aquelas criaturas eram tão encantadoras e educadas
graças, em parte, à disciplina marcial que ela lhes impusera.
– O marido da menina Mott? Têm a certeza? Mas que notícia emocionante! – exclamou, enquanto
fechava cuidadosamente uma terceira edição de A batalha entre os livros antigos e os modernos.
– É isso mesmo, é isso mesmo, contem à menina Prim e deixem a vossa pobre avó acabar de
tratar da correspondência – aprovou a velha senhora, depois de lançar um olhar à bibliotecária.
As crianças não conseguiram dar muitos pormenores do que acontecera na escola. À hora do
recreio, quando brincavam, tinham ouvido a professora murmurar:
– Meu Deus, voltou.
Todos se viraram para a porta e viram um homem alto e corpulento, com um sobretudo velho e
umas botas cobertas de lama, que sorria, emocionado.
– Tinha os olhos arrasados de lágrimas – explicou Eksi, cujo gosto precoce pela leitura excedia
largamente a sua fluidez verbal.
– Queres dizer rasos, minha querida – corrigiu a avó, olhando-a com afeto por cima dos óculos
que usava para ler.
– O marido da menina Mott é tão grande como um dos gigantes de Gulliver, avó – disse Deka.
A senhora atestou ao neto que esperava que as desculpas apresentadas pelo senhor Mott à mulher
por aqueles anos de ausência tivessem, pelo menos, metade do tamanho dos gigantes de Swift e que a
penitência que recebesse das suas mãos também não ficasse atrás.
– Avó, se a menina Mott é casada… porque não lhe chamam senhora Mott? – perguntou Eksi.
– Porque o senhor Mott saiu de casa um dia e nunca mais voltou. És muita pequena para saber
isso, mas pior do que ser-se viúva é ser-se casada com um homem desaparecido. A pobre Eugenia
Mott – a mãe do homem do cadeirão olhou para a menina Prim – não suportava que as pessoas lhe
perguntassem constantemente onde estava o marido, pelo que, um belo dia, decidiu passar a ser
menina, começar uma vida nova e deixar de ter de dar explicações.
– Uma decisão muito sensata – respondeu a bibliotecária.
– Sou da mesma opinião.
À medida que as semanas passavam, a menina Prim começava a sentir-se mais à vontade na
companhia da velha senhora. Não aprovava a sua rudeza aristocrática – fazê-lo teria sido contrário à
sua natureza, e a menina Prim nunca atentava contra a sua natureza –, mas começava a apreciar
aquela sinceridade áspera que se manifestava quer sob a forma de juízos implacáveis quer de elogios
deliciosos. A bibliotecária descobrira na severidade daquele carácter uma explicação para a
assombrosa força que sempre admirara nas velhas dinastias. Essa férrea capacidade de manter
hábitos e juízos, ao longo de guerras, reveses e revoluções. Essa virtude de se lembrar sempre e a
todos os momentos de quem se era e donde se vinha mais do que ocupar-se, como os modernos
faziam, com adivinhar para onde se ia.
– Prudencia – disse –, talvez devêssemos ir fazer uma visita à Eugenia, não acha? As mulheres
como ela não sabem, muitas vezes, como reagir perante estes avatares. Não queria que aquele
canalha voltasse a troçar dela.
A menina Prim concordou que a possibilidade de Eugenia Mott ser enganada de novo era algo a
ter em consideração e aceitou de bom grado a sugestão da velha senhora. Levantaram-se ambas,
interrompendo as respetivas ocupações, e prepararam-se para enfrentar a fria tarde de inverno, com a
criada como motorista.
A casa de Eugenia Mott ficava nos arredores de San Ireneo. Era uma pequena construção de
pedra com os caixilhos das janelas caiados, na qual se destacavam, como que pinceladas a óleo, uma
pequena porta e umas portadas vermelhas. Lindos canteiros de crisântemos de inverno davam ao
edifício o velho encanto que caracterizava a maior parte das residências de San Ireneo. Enquanto se
aproximavam da casa, a menina Prim perdeu-se em pensamentos e veio-lhe inesperadamente à
memória uma frase: «Que beleza salvará o mundo?»
«Quem dissera aquilo?» Fora certamente um russo, soava mesmo ao tipo de reflexões a que os
russos se entregavam. Uma coisa era certa: não se tratava de uma frase desconhecida, tinha a certeza
de a ter lido e ouvido inúmeras vezes e em diferentes versões, mas não se conseguia lembrar da sua
origem. Enquanto observava a criada debater-se com o ferrolho da cerca do jardim, pensou que o
homem do cadeirão decerto saberia.
– A porta está aberta, minha senhora. Que fazemos? Talvez devêssemos entrar.
– É claro que devemos entrar. A pobre mulher deve ter-se deixado cair nos braços da dor –
respondeu, com firmeza, a velha senhora enquanto empurrava a porta e entrava no acanhado
vestíbulo.
«Que beleza salvará o mundo?», repetiu em silêncio a bibliotecária, seguindo a mãe do seu
chefe até à porta da sala da menina Mott. Ele saberia de quem era a citação; perguntar-lho-ia assim
que regressasse a casa.
– Pelo amor de Deus, Eugenia!
Alarmada com a exclamação, a menina Prim espreitou por cima do ombro da senhora, cuja figura
ocupava a porta estreita e não a deixava ver o que se passava na sala. No meio do espaço, a menina
Mott refugiava-se nuns braços. Uns braços que em nada se pareciam com o que a bibliotecária
entendia por dor e que rodeavam a professora, numa tentativa de a consolar, na aflição.
– Olá, mãe, quanto me alegra que tenha chegado – disse, com um sorriso, o seu proprietário,
enquanto se soltava suavemente dos braços de uma chorosa menina Mott.

A bibliotecária foi incapaz de reagir, quando viu a menina Mott nos braços do homem do
cadeirão. Como é natural, não se alarmou; era uma mulher pouco dada a alarmes. Também não retirou
daí conclusões precipitadas; o facto de Eugenia ser uma mulher madura, aliado à sua falta de graça
natural, impedia-a de sequer imaginar um vislumbre de romance entre as duas partes. Mais do que
imaginar, a bibliotecária experimentou. Não experimentou, evidentemente, ciúmes; a menina Prim
desprezava intimamente as pessoas que deixavam que os ciúmes as atormentassem. Também não foi
rejeição; se quisesse ser sincera consigo, não havia nada no homem do cadeirão que inspirasse,
ainda que remotamente, rejeição. Tinha até de admitir que, de um ponto de vista estético, o chefe era
um tipo de ser humano agradável à vista. A menina Prim não se envergonhava desse juízo nem
retirava dele qualquer conclusão. O seu profundo sentido da beleza permitia-lhe afirmá-lo com a
mesma desenvoltura com que poderia ter feito uma observação semelhante sobre um cisne ou um
cavalo.
Que experimentou então? A resposta chegou enquanto observava, em silêncio, as calmas
explicações do homem do cadeirão e as tentativas severas da sua mãe para consolar a atribulada
professora: experimentara inveja. Inveja da professora de meia-idade da aldeia? A menina Prim teve
de admitir que sim. Não sentira inveja, ao vê-la refugiada nos braços do chefe, sentira-a ao observar
que ele lhe dedicava uma atenção e uma delicadeza que nunca demonstrara por ela. A bibliotecária
sentiu-se envergonhada ante a mera possibilidade de alguém lhe ler nos olhos aquilo que pensava. E,
ao mesmo tempo e pela primeira vez, perguntou-se se não teria chegado o momento de pedir às
senhoras de San Ireneo que a ajudassem a procurar marido. Ao fim e ao cabo, uma reação como
aquela só poderia ser fruto do que os psicólogos chamavam um processo de transferência. Talvez
precisasse mesmo de um marido. Talvez precisasse dele urgentemente.
– Eugenia, suponho que lhe irá dizer que sim. – A voz dura da mãe do homem do cadeirão
arrancou a menina Prim dos seus devaneios conjugais.
– Mãe – interrompeu-a o filho num tom de advertência.
– Crê que não o devo perdoar? – lamentou-se a professora. – Talvez não devesse, mas sonhei
tantas vezes com o seu regresso e parece tão arrependido…
– Disparates – respondeu asperamente a velha senhora. – É óbvio que está arrependido. Quando
partiu ainda era jovem e estava cheio de vida, o mundo era, então, apaixonante. Agora, está a chegar
à idade em que todos sabemos que deixa de o ser.
– Chega, mãe, para com isso.
– Acha que lhe devo dizer que não? – choramingou Eugenia Mott.
O homem do cadeirão aproximou-se da mãe, antes de esta poder responder, e disse-lhe numa voz
baixa, mas audível:
– Lembro-te de que é uma decisão dela. Não se trata da tua vida nem da minha.
– Ela não tem experiência neste campo e tu também não; sei perfeitamente como resolver uma
situação destas. Não deve permitir que ele volte, não deve deixar que esse homem ponha, jamais, os
pés em sua casa.
– Porquê? – perguntou, então, ele, num tom baixo e severo que a menina Prim nunca lhe ouvira. –
Talvez porque também não o permitiste?
O olhar que a velha senhora dirigiu ao filho foi tão terrível que a bibliotecária pensou que uma
porta se abrira, de repente, e entrara uma corrente de ar frio na sala.
– Como te atreves?... – exclamou ela, entre dentes, antes de se levantar, pegar no casaco e sair da
sala, seguida da criada.
O homem do cadeirão não tentou detê-la. Mas, quando a porta se fechou, sentou-se no sofá e
pousou a testa nas mãos.
– A culpada de tudo isto sou eu – gemeu a menina Mott, enquanto torcia nervosamente o cinto do
vestido. – Não deveria ter-lhe telefonado, tê-lo envolvido nisto. Agora a sua mãe zangou-se. Sou
estúpida, não tenho, nem nunca tive, carácter, mas não deveria permitir que os meus problemas…
– Por favor, Eugenia, não se preocupe com isso. Nada é culpa sua e, de qualquer modo, não tem a
menor importância. Agora, temos de falar sobre como vamos resolver isto, sobre o que quer fazer
com a sua vida e sobre se, nela, há um lugar para o seu marido.
Nesse ponto da conversa, a bibliotecária pigarreou ligeiramente.
– Sim, menina Prim? – disse ele, levantando a cabeça e olhando para ela pela primeira vez desde
que entrara na sala.
– Quer que vá buscar a sua mãe?
– Ficar-lhe-ia muito agradecido. Não posso deixar a menina Mott neste estado, mas fui um pouco
brusco com ela. Lamento que tenha sido obrigada a presenciá-lo.
A bibliotecária voltou a sentir uma ponta de inveja, uma inveja estranha e inoportuna, misturada,
em partes iguais, com algo muito parecido com a compaixão.
– Não se preocupe – respondeu. – Vou já falar com ela.
Quando saiu de casa, não tardou a avistar a senhora. Acompanhada da sua criada, estava sentada
num banco sob uma cameleira. A menina Prim aproximou-se lentamente e sentou-se a seu lado, em
silêncio. Entretanto, a criada aproveitou para se levantar e ir buscar o automóvel. Assim que ficaram
a sós, a senhora não tardou a falar.
– Deve estar a perguntar-se por que razão o meu filho disse aquilo que disse, não é verdade?
– De modo algum – respondeu a bibliotecária. – São assuntos de família.
– Efetivamente, são.
– No entanto e já que mo pergunta, há uma coisa que não entendo.
A velha senhora virou-se para ela, interessada.
– Ora diga lá o que não entende.
– É só que me surpreende que o seu filho tenha falado de assuntos tão pessoais em público. Não é
dele fazer algo semelhante.
A senhora apanhou uma camélia de um rosa-pálido do chão e começou a desfolhá-la com tristeza.
– Não, não é dele. Mas não conseguiu evitá-lo.
– Porquê? Nunca conheci ninguém tão capaz de evitar uma indelicadeza como ele.
– Porquê? Porque me culpa, querida, e, quando um filho culpa uma mãe, por mais que queira
evitá-lo, esse sentimento acaba sempre por vir à superfície.
Desta volta, foi a menina Prim quem apanhou outra camélia e a observou, enquanto a girava entre
os dedos. Começava a anoitecer e o ar era cada vez mais frio. De repente, tirou o cachecol e pô-lo
sobre os ombros da velha senhora.
– Por vezes, dizemos coisas sem pensar. Não expressam o que sentimos, mas a tensão do
momento ou o desejo de ganhar a discussão. Não me pareceu que o seu filho exprimisse dor ou
rancor quando disse aquilo, creio simplesmente que pretendia acabar com a conversa.
A velha mulher estremeceu, perante uma rajada de ar frio, e, depois, fixou os olhos nos da
bibliotecária.
– Minha querida Prudencia, há momentos na vida em que todos nos vemos confrontados com
dilemas que preferíamos não ter de resolver. Embora, em cada vida, esse dilema se apresente sob
roupagens distintas, a essência é sempre a mesma. Há um sacrifício e é preciso escolher uma vítima:
nós próprios ou os outros.
A bibliotecária começou a desfolhar a camélia, lentamente.
– Naturalmente, quando se trata dos filhos, não deveria haver a menor dificuldade. Eles estão
sempre em primeiro lugar. Vive-se, vigia-se, ouve-se, brinca-se, ensina-se, faz-se tudo a pensar
neles. Mas, um belo dia, chega o grande dilema, esse que magoa o coração, que maltrata o espírito,
que ameaça a autoestima. Chega um dia e coloca em cima da mesa a possibilidade de escolher entre
dois caminhos; no fim de cada um deles, há um sacrifício à espera. Se se tomar o da direita, o
sacrifício recai sobre o próprio; se se seguir o da esquerda, são eles os atingidos. Está a
compreender?
– Continue, por favor.
– Dito desta maneira parece muito pouco elaborado, não é? Perguntará como se pode escolher o
caminho da esquerda e permitir que sejam eles a suportar o fardo. Mas não é assim tão simples,
querida, porque, quando uma pessoa decide seguir pelo segundo caminho, nunca se permite ver a
realidade tal qual é e sem desculpas. Diz a si própria que, se não tiver como objetivo a felicidade,
eles também sofrerão. Diz que tem direito a ser feliz e que só existe uma vida. Diz que eles estão
melhor assim; que são pequenos e que, mais cedo ou mais tarde, superarão. Mas a verdade é que se
faz uma escolha e a verdade também é que essa escolha tem sempre um preço.
A menina Prim virou-se para a velha senhora e pousou as mãos entre as dela. Depois olhou-a e,
pela primeira vez, pareceu-lhe encolhida, pequena e frágil.
– Eu vi-me perante esse dilema, Prudencia. Os pormenores não são importantes, basta que saiba
que podia escolher o caminho da direita, mas escolhi o da esquerda; foi esse que escolhi.
O som da buzina do automóvel que a criada estacionara em frente da casa interrompeu a conversa
entre as duas mulheres. A bibliotecária levantou-se e ajudou a companheira a aproximar-se do carro,
enquanto pequenos flocos de neve começavam a cair sobre o jardim.
– É melhor que volte para casa, está gelada. Eu ficarei à espera do seu filho, não se preocupe.
– Não me preocupo, minha querida, há muito tempo que deixei de o fazer – respondeu a senhora,
enquanto a menina Prim a ajudava a instalar-se no automóvel.
Quando o carro se afastou, a bibliotecária foi ter com o homem do cadeirão que, nesse momento,
se despedia de uma menina Mott sorridente e descontraída. Enquanto se dirigiam para o automóvel, a
menina Prim perguntou suavemente:
– Então, está tudo resolvido?
O homem do cadeirão despiu o sobretudo e pousou-o sobre os ombros da empregada, que lhe
agradeceu em silêncio.
– Tudo resolvido.
– Voltará a viver com ele?
– Fá-lo-á se ele cumprir certas condições que assegura estar disposto a cumprir. Falámos pelo
telefone e creio que é sincero. Quero, no entanto, vê-lo pessoalmente e explicar-lhe melhor o plano.
– O plano? Mas há um plano?
– Claro que há um plano.
– Embora não mo vá contar, não é verdade?
– Inteiramente verdade.
Caminharam em silêncio. Os trilhos de San Ireneo começavam a desvanecer-se sob a neve,
quando ele voltou a falar.
– Ela está bem?
A menina Prim procurou as palavras apropriadas antes de responder.
– Suponho que sim, mas está muito triste. Pensa que o senhor a culpa por algo que aconteceu há
muitos anos.
O homem do cadeirão permaneceu em silêncio, por uns instantes.
– Não é verdade, perdoei-lhe há também muitos anos, quando era rapaz. Ela é que se culpa a si
própria, mas não é capaz de o reconhecer. É mais fácil projetar a culpa nos outros e defender-se
disso do que encontrá-la dentro de si, onde não há defesa possível.
– Mas disse-lhe uma coisa muito dura, esta tarde. Eu própria fiquei surpreendida por ter sido
capaz de dizer algo assim diante de todos.
Enquanto o chefe tirava as chaves do carro e lhe abria a porta, a bibliotecária perguntou-se se
não teria ido longe de mais ao proferir tais palavras. Depois de ter ligado o motor e posto o
aquecimento no máximo, ele voltou-se para ela e disse-lhe:
– O problema da minha mãe é que não há ninguém a cuja autoridade se possa submeter. Perdeu os
pais há muitos anos, perdeu também o marido. Não leva em consideração a opinião dos familiares,
nunca o fez, e muito menos a dos filhos. Não há disciplina humana ou espiritual a que submeta a sua
vontade. Guia-se unicamente pelos seus juízos, e os seus juízos são também o único tribunal
encarregado de a repreender, quando comete um erro. Imagina como seria a Prudencia, se não tivesse
perto de si pessoas capazes de a influenciar? Ninguém que lhe pudesse apontar defeitos, ninguém que
lhe fizesse frente quando se excedesse, ninguém para a corrigir quando errasse.
A menina Prim disse que, de facto, não imaginava.
– A minha mãe não tem essa pessoa ou pessoas, que são uma bênção na vida e cuja função
consiste em dizer aquilo que, de maneira alguma, queremos ouvir. Esta noite, estive prestes a cometer
um erro cujo preço seria pago por uma pessoa fraca e inocente e não pude permitir tal coisa. Foi só
isso. Não há rancor, nem culpa nem acusação da minha parte. Pelo contrário, sou um filho que ama
profundamente a mãe, acredite.
A bibliotecária voltou a sentir a insistente sensação de inveja que a acompanhara durante toda a
tarde. Já estava a chegar a casa, quando se lembrou de uma coisa que deveria perguntar.
– Que beleza salvará o mundo? – murmurou.
O homem do cadeirão observou-a com curiosidade na penumbra do carro.
– Dostoiévski, Prudencia? Dostoiévski? No seu lugar, começaria a preocupar-me.
A menina Prim, coberta calidamente pelo sobretudo do chefe, sorriu, feliz, ao abrigo da
escuridão.
4
Durante as semanas seguintes, os habitantes de San Ireneo de Arnois foram descobrindo as
particularidades do plano que haveria de transformar o esposo da menina Mott num marido
sedentário. À medida que se foram conhecendo os pormenores, o entusiasmo alastrou entre os
habitantes. A solução arbitrada pelo homem do cadeirão e aprovada por ambos os cônjuges tinha
como objetivo ajudar a professora de San Ireneo a superar o maior e mais grave obstáculo à
recuperação do seu casamento: a desconfiança. Duas premissas foram consideradas imprescindíveis
para alcançar tal fim. A primeira passava por arranjar um emprego ao arrependido senhor Mott; a
segunda, conseguir, graças a esse emprego, que a mulher se sentisse segura e deixasse de temer que
ele voltasse a abandonar o lar. Como consegui-lo? A resposta surpreendeu a menina Prim pela sua
simplicidade. San Ireneo de Arnois não tinha um quiosque. Não dispunha de um lugar onde se
pudessem comprar jornais, revistas, contos infantis, cadernetas, fascículos, cromos, lápis de cor e
guloseimas. Ora, o lugar adequado para o instalar era a praça da aldeia, perto dos estabelecimentos
principais e a poucos metros da escola primária.
A princípio, a bibliotecária não compreendeu a peça fundamental do plano. Concordava que um
emprego digno era a grande necessidade de qualquer homem, sobretudo de um homem profundamente
arrependido que quer refazer a vida, mas não entendia por que razão um simples quiosque era tão
importante para o êxito daquela empresa. Foi Hortensia Oeillet quem lhe abriu os olhos para a
verdadeira natureza da ideia.
– É para que ela o possa ver, Prudencia. Já reparou? Fica apenas a uns quantos metros da janela
da escola. Basta-lhe aproximar-se um pouco, e ei-lo, diante dela, a vender La Gaceta de San Ireneo,
romances policiais, doces e moldes de costura. Não lhe parece perfeito?
A menina Prim não achava. Não lhe parecia digno que um homem permanecesse enjaulado num
habitáculo de quatro paredes só para que a mulher comprovasse que continuava ali. Não achava que
fosse saudável para a mulher ter consciência de que o marido talvez não fugisse pela simples razão
de lhe ser impossível fazê-lo. Não considerava apropriado que um casal visse a sua intimidade
exposta na praça da aldeia e perante os olhos de todos os habitantes. Não tardou, porém, a mudar de
opinião. A passagem dos dias revelou aos habitantes de San Ireneo que entre o quiosque e a escola
começara a estabelecer-se uma corrente de amor. Não passava despercebido a ninguém o facto de o
senhor Mott obsequiar os clientes com sorrisos distraídos, quando a mulher se aproximava da janela
da escola ou aparecia no jardim. Nenhum deles pôde deixar de reparar na mudança do penteado da
professora, na progressiva melhoria do corte dos seus vestidos, na substituição das confortáveis
botas de sola de borracha por elegantes sapatos de salto alto. E assim floresceu o amor conjugal em
San Ireneo, perante os olhos de todos, abrigado por esses dias frios e soalheiros que, na região,
precedem sempre o Natal.
Foi precisamente nesse ambiente que a menina Prim reafirmou a ideia de pôr nas mãos das
mulheres da aldeia o seu futuro matrimonial.
– Tem a certeza, querida? – perguntou-lhe Hortensia Oeillet, na manhã em que a bibliotecária lhe
transmitiu as suas intenções, em frente de uma chávena de chá, nas traseiras da loja de flores.
– Suponho que não, quem pode ter? Mas creio que, se até agora não encontrei o homem
adequado, isso se pode dever à minha negligência.
– Oh, mas a culpa não é sua, não funciona assim – protestou Emma Giovanacci, que também fora
convidada para tomar uma bebida.
– A Emma tem razão, Prudencia, não é uma questão de negligência, pelo menos não apenas disso.
É mais como… Leu A Carta Roubada, de Edgar Allan Poe?
– Outra vez? Não me vai dizer que esse relato também se pode aplicar ao enamoramento? Não
compreendo o que se passa nesta aldeia em relação a esse conto. Aplicam-no a tudo.
– A tudo? Bem, não sei a que se refere – respondeu, surpreendida, a florista. – O que sei é que
essa pequena história descreve perfeitamente a descoberta do amor. Não acha, Emma?
A amiga apressou-se a confirmar. Ela própria experimentara a força dessa afirmação. Dois anos
depois da morte do marido, iniciara uma incipiente amizade com um velho companheiro dele
chamado Edmundo Giovanacci, um homem afável e calmo, com quem costumava tomar uma chávena
de chá, de vez em quando.
– Foi há muitos anos. Naquela altura, eu ainda era jovem e não vivia em San Ireneo, estava muito
atarefada a construir um futuro. Tive de trabalhar duramente, porque o meu primeiro marido, que
Deus o tenha perdoado, esbanjou o nosso dinheiro sem que eu o soubesse. O Edmundo sabia que tudo
aquilo era esgotante para mim, que eu tinha pouca vontade de viver. Limitava-se a levar-me a um
lugar agradável e pedia duas chávenas de chá. Assim fez, semana após semana, durante oito anos.
– Oito anos? Mas isso é muito tempo – comentou a menina Prim.
– Claro que é muito tempo, a Emma sempre foi uma mulher preguiçosa – riu-se Hortensia, dando
um beliscão à amiga.
– Na verdade, nunca gostei de mudanças – respondeu esta, um pouco incomodada. – Foi por isso
que vim para cá viver.
A florista serviu duas grandes fatias de bolo de maçã às convidadas e, depois, encheu as
chávenas com um chá chinês fumegante.
– Mas acabou por mudar, não é? – perguntou a bibliotecária.
– Oh, sim, não tive outro remédio.
– Porquê? Ele fez-lhe um ultimato?
– Não exatamente. O Edmundo veio para aqui, e acabei por vir atrás dele. Não pense que foi
imediato, as coisas na vida real raramente são imediatas. Passei muitas semanas sem o ver, muitas,
até que, um dia, me levantei e me dei conta de que me faltava algo aparentemente minúsculo, mas
com uma enorme importância. Faltava aquele chá, faltavam as conversas e os passeios, faltavam os
agradáveis encontros à tarde. Talvez lhe pareça um disparate, mas não sabe como as pequenas coisas
são importantes, à medida que vamos envelhecendo.
A menina Prim bebeu um gole de chá e acomodou-se na poltrona das traseiras da loja. Também
ela acreditava no valor das pequenas coisas. O primeiro café da manhã, bebido numa chávena
Limoges. A luz do sol, quando penetrava através das portadas da janela e desenhava sombras no
chão. As leituras de verão interrompidas pela sesta. A expressão dos olhos das crianças quando
contam algo que acabam de aprender. As coisas pequenas construíam as grandes, não havia dúvida.
De repente, sem saber muito bem porquê, pensou no staretz Ambrosio e nas peruas.
– É como um romance policial, Prudencia, exatamente assim – dizia, naquele momento, a florista.
– A que se refere? – perguntou a bibliotecária.
– Ao amor, refiro-me ao amor. Já existe, não duvide disso. Só tem de descobrir onde está, seguir-
lhe o rasto, investigar. Tal como faz um detetive.
A menina Prim riu-se antes de responder.
– Mas isso é absurdo! O que está a tentar dizer-me é que já existe um candidato, o Candidato, e
que só tenho de descobrir qual é, certo?
As duas mulheres olharam-na com indulgência e disseram-lhe que sim.
– Muito bem, nunca ouvira nada semelhante, mas suponhamos, por um momento, que era assim,
suponhamo-lo por um momento. Como poderia descobri-lo? Quais as pistas?
– Ah, as pistas. Só há uma pista, uma única pista – respondeu Hortensia.
A bibliotecária apanhou o cabelo na nuca e aproximou a cadeira da mesa.
– E é…? – perguntou.
– A harmonia, obviamente. A áαρμονια dos Gregos, a harmonia dos Romanos. A Herminia
explicar-lho-ia melhor, sabe tanto dessas coisas… Enfim, como expressá-lo? Creio que a definição
clássica alude ao equilíbrio das proporções entre as partes de um todo. Como na escultura de um
corpo ou num rosto humano belo, como na forma como uma pessoa põe as flores num jarrão e as
combina de dez maneiras diferentes até alcançar o ponto em que a alma se sente satisfeita. A
Prudencia, que é uma mulher com tantos títulos académicos, sabe certamente que harmonia vem de
άρμόξω, que significa «ajustar-se», «ligar-se». É essa a pista definitiva, querida, a que a ajudará a
descobrir a chave do seu policial.
A menina Prim refletiu enquanto mordiscava uma fatia de bolo.
– Mas não será aborrecido? Não será monótono casar com a harmonia?
As duas amigas olharam-na com benevolência.
– Creio que não nos explicámos nada bem, Prudencia – disse Hortensia. – Não é o marido que
deve ser harmonioso, não é nele que deve procurar a harmonia, não. É no casamento, na combinação
de ambos que a deve encontrar.
– E não é só nisso – acrescentou a sua amiga –, mas na rotina, especialmente na rotina. Não é?
– Claro que é. É óbvio que, nesse sentido, o pobre Balzac não tinha razão, não sabia nada do
assunto – disse a florista, enquanto voltava a encher o bule.
– Balzac? – perguntou a menina Prim, um pouco confusa.
– É curioso que aqueles que vomitam palavras mais azedas contra o casamento são quem menos
sabe acerca dele. Passou a vida inteira a persegui-lo, a suspirar por ele… e para quê? Para o
conseguir no fim, quando já estava doente e sem esperança. Uma mulher horrível, a condessa Hanska,
que sempre me pareceu o que de pior havia no nosso sexo. Diga-me, pois, como era possível que ele
nada soubesse acerca do casamento?
– Mas que dizia Balzac sobre o casamento? – insistiu a bibliotecária.
– Dizia que o casal deve lutar sempre contra um monstro sombrio – respondeu Emma, piscando o
olho.
– Referia-se à rotina – afirmou a amiga.
– E não é verdade?
– De maneira alguma. Não só não é verdade, como é o maior engano do mundo, Prudencia. A
causa de muito sofrimento, acredite.
Emma Giovanacci pigarreou ligeiramente e, aproximando a cadeira da mesinha do chá, dispôs-se
a falar de novo:
– Já alguma vez viu as flores que crescem na estepe russa?
A menina Prim respondeu que, lamentavelmente, nunca visitara a estepe russa.
– Pois deveria visitar. A estepe calmuca, perto de Estalinegrado, é um lugar triste, árido e
monótono. Se a visitar no inverno, a paisagem é desoladora. Mas experimente ir lá na primavera e
verá o que encontra.
A bibliotecária arqueou as sobrancelhas à espera de uma resposta.
– Tulipas – sussurrou Emma Giovanacci.
– Tulipas?
– Tulipas. Frescas e delicadas tulipas selvagens. Tulipas que nascem todos os anos e cobrem a
estepe, sem terem sido cultivadas. Pois é exatamente disso que se trata, Prudencia. A rotina é como a
estepe; não é nenhum monstro, é um alimento. Se conseguir que algo cresça lá, pode ter a certeza de
que será forte e verdadeiro. São as pequenas coisas de cada dia de que falávamos. Mas o pobre
Balzac, com todo o seu sentimentalismo romântico e sombrio, não podia sabê-lo, pois não?
– As pequenas coisas… – repetiu a menina Prim. – Bem, suponhamos que sigo os vossos
conselhos. Podem ajudar-me na investigação? Ou tenho de fazer tudo sozinha?
As duas mulheres entreolharam-se, divertidas, mas foi a florista quem falou.
– A investigação cabe-lhe a si, nós só podemos orientá-la um pouco. Para começar, poderia
elaborar uma lista de todos os homens que conhece e que reúnem as condições objetivas mínimas
para se tornarem maridos. A essa lista, acrescentaremos mais um ou outro nome, pois há sempre
candidatos que passam despercebidos aos olhos de uma pessoa, e quanto a isso, nós as duas, devido
à idade, temos mais experiência. A partir daí, poderá começar a trabalhar, concorda?
A bibliotecária, que começara a sentir uma excitação enorme perante a ideia de desvendar aquele
antiquado mistério detetivesco, garantiu que achava bem, maravilhosamente bem.

O primeiro nome que ocorreu à menina Prim foi o do seu antigo chefe, Augusto Oliver. Apesar de
a sua primeira reação ter sido um desagradável arrepio, teve de reconhecer que, se se tratava de
aplicar um método de investigação científico, não poderia fazer uma lista de possíveis maridos em
que ele não figurasse. Quisera casar com ela? A menina Prim achava que não. Augusto Oliver era o
tipo de homem que gostava de prometer coisas que não pensava cumprir. Durante três anos, fingiu
compreender a preocupação da sua empregada com um horário mais razoável – a menina Prim
trabalhava das dez da manhã às dez da noite – e comprometeu-se, mais de uma vez, a fazer todos os
possíveis por alterá-lo. Mas não tardou a ser evidente que o cumprimento dessas promessas não
figurava entre os seus propósitos. O senhor Oliver gostava de ficar a sós com a sua empregada mais
eficiente, ao final do dia. Nessa altura, costumava sair do gabinete e ficar de pé atrás dela, a fingir
que lia por cima do seu ombro. Por vezes, quando tivera um almoço de trabalho e bebera algum licor,
dava mais um passo e inclinava-se para lhe falar quase ao ouvido, o que provocava nela um
sobressalto imediato. Era um homem atraente, pelo menos poderia ter sido, se não deixasse nela
aquela desagradável sensação de prepotência.
Não tardou a que aquilo que começara por ser um pequeno mal-estar – que uma rapariga sente
quando se apercebe de que atrai o chefe – acabasse por se transformar numa situação insustentável.
Aos elogios sucederam-se os convites para sair, e os convites para sair, sempre rejeitados
cortesmente, acabaram por gerar tensões. Teria sido diferente, se tivesse aceitado algum daqueles
jantares? Era difícil dizer. O chefe e a empregada ter-se-iam casado, se a menina Prim tivesse
respondido afirmativamente à absurda proposta de casamento que ele lhe fizera no dia em que
anunciou que deixava o trabalho?
– Mas então esse canalha estava realmente apaixonado por si? – perguntou a mãe do homem do
cadeirão, que ouvia atentamente as reflexões da bibliotecária enquanto ambas tiravam, de grandes
caixas de cartão branco, os ornamentos de Natal.
– Claro que não. Foi um impulso de caça, o tipo de instinto que faz com que um gato impeça um
rato de fugir, mesmo que depois não se dê sequer ao trabalho de lhe fincar o dente. Não, não creio
que quisesse casar comigo, queria ganhar a partida, é tudo.
A mãe do homem do cadeirão desenrolou, pensativa, uma fita brilhante de veludo carmesim.
– Era atraente?
– Suponho que sim.
– Inteligente?
– Não de forma excecional. – A menina Prim pensou fugazmente no homem do cadeirão.
– Honesto?
– Minimamente.
– Divertido?
– À maneira dele.
– E à sua?
– Receio que não.
– Rico?
– Muito.
– Então já o pode riscar – declarou, num tom decidido, a velha senhora. – Um homem não
demasiado honesto pode manter-se nos limites da decência, se tiver a sorte de não dever muito à
beleza e dispuser de escassos recursos. Mas, se a esse mesmo homem, acrescentarmos dinheiro e um
físico atraente, o caminho para a desgraça já está traçado.
A bibliotecária concordou com um gesto e riscou o primeiro nome da lista.
– Vamos, minha querida, não percamos tempo. Quem é o seguinte?
O seguinte, explicou com nostalgia, fora o seu grande amor durante vários anos, o primeiro
homem por quem se apaixonara e o primeiro que a amara. Na altura, ele era apenas um jovem
professor, calado e discreto, que lia Husserl com devoção, praticava um pouco de esgrima e
ensinava alemão.
– Não lho recomendo, conheço bem o tipo. Crê realmente que poderia voltar a gostar dele? –
perguntou, depreciativamente, a mãe do homem do cadeirão.
A menina Prim estava convencida de que não, embora, ao mesmo tempo, devesse reconhecer que
não era a primeira vez que fazia essa pergunta a si própria.
– Porque acabou? – perguntou a velha senhora.
– Suponho que porque o que havia entre nós não era amor – respondeu a bibliotecária, com uma
estrela de Natal na mão.
– E porque sabe que não o era?
– Porque eu pensava mais no meu próprio bem-estar do que no dele. E creio que, à sua maneira,
ele fazia o mesmo.
– Quanto altruísmo! Começa a parecer-se com o meu filho – disse a senhora, com ironia.
A menina Prim corou, mas não respondeu.
– Nesse caso, damos também como perdido o admirador de Husserl?
– Damo-lo como perdido.
A criada da velha senhora entrou na biblioteca para trazer a bandeja com o lanche, acender as
luzes, correr as grandes cortinas e avivar as chamas. Os seus movimentos silenciosos e metódicos
quase passaram despercebidos às duas mulheres, entregues a desembalar as frágeis figuras natalícias
e a invocar fantasmas de homens do passado.
– Acho que deveria riscar os três seguintes – disse a bibliotecária, pensativa, quando a porta se
fechou, depois de a criada sair.
– Sou da mesma opinião, Prudencia. O mero facto de os denominar assim, os três seguintes, em
bloco, e sem qualquer vestígio de individualização, deveria indicar-lhe o que significam para si.
Acredite em mim: nenhuma mulher se deveria casar com um homem que identifica como parte de um
grupo, é um pormenor que por si próprio não augura nada de bom.
A menina Prim riu com gosto e reconheceu que nenhum daqueles três homens tinha a menor
possibilidade de se tornar seu marido. Riscou os nomes e, quando passou ao sexto candidato,
reparou que era um dos incluídos por Hortensia e Emma.
– O veterinário? – A menina Prim desatou a rir. – O veterinário? Como pode ter-lhes passado
pela cabeça incluí-lo?
– Tanto quanto sei, foi uma sugestão da Herminia. Ao que parece, viu-a ligeiramente interessada
por ele no dia em que foram apresentados.
A bibliotecária lembrou-se do flirt no salão de chá e voltou a ruborizar-se. Será que não podia
fazer nada naquela aldeia que passasse despercebido aos olhos dos habitantes? Tinha de reconhecer
que o jovem veterinário a atraíra, mas daí a ser o tema preferido de conversa ia uma grande
distância. Era verdade que lhe sorrira, lhe prestara atenção e tentara (sem êxito) agradar-lhe, mas não
constituía isso uma prerrogativa que qualquer pessoa podia exercer, sem ter de ser comentada
publicamente? Além disso, o que nenhuma das senhoras de San Ireneo sabia era que parte da atração
que o veterinário despertara nela, naquela tarde, se devia ao facto de estar profundamente zangada
com o homem do cadeirão. Ter-lhe-ia o veterinário despertado a atenção, se não estivesse
absolutamente indignada com o comportamento descortês do seu chefe? Teria sorrido tanto? A
menina Prim sabia exatamente qual a resposta.
– Não quer dar-lhe uma oportunidade? – perguntou, curiosa, a velha senhora. – Conheço
suficientemente bem a Hortensia para saber que arranjará um encontro, sem esforço, e fará com que o
pobre homem julgue que a ideia foi dele.
– Receio que o pobre homem, como lhe chama, não queira saber nada de uma mulher que pensa
que o amor pelos animais não é amor. Não fui muito oportuna na conversa, no dia em que a Herminia
nos apresentou. Receio tê-lo ferido nos sentimentos.
A mãe do homem do cadeirão olhou-a, surpreendida, por cima dos óculos.
– Ferir nos sentimentos? Pelo amor de Deus, que se passa com os homens de hoje? No tempo do
meu marido, do meu pai, dos meus irmãos, a ideia de que a conversa de uma mulher pudesse ferir os
sentimentos de um homem teria sido considerada ridícula. Um homem que se sente ferido por uma
conversa num salão de chá é inconsistente. A verdade é que não imagino o que viu nele nessa tarde.
A bibliotecária permaneceu em silêncio, enquanto desembrulhava cuidadosamente as figuras que,
todos os anos em dezembro, ornamentavam a sala da casa.
– São maravilhosas – disse, com admiração.
– Têm mais de quatro séculos, foram feitas à mão por monges irlandeses. O meu marido, que não
teve irmãs, herdou-as da mãe, que as herdara, por sua vez, da dela, e foi assim durante gerações.
Pensava deixar as figuras à minha única filha, mas não pôde ser. Serão para a Téseris, naturalmente –
disse, com uma certa tristeza na voz.
A menina Prim guardou um silêncio respeitoso.
– E então que vamos fazer em relação ao veterinário ferido? – perguntou a velha senhora, fazendo
um esforço para sair do seu ensimesmamento. – Sairá com ele?
– É possível, depende da forma como me pedir – respondeu, risonha, a bibliotecária. – Vejamos,
aqui há dois nomes que não conheço e… uma interrogação. Que significa isto?
A mãe do homem do cadeirão pigarreou e redobrou o interesse pelos ornamentos de Natal.
– Deve ser um erro, não menciona qualquer nome, é só um signo – murmurou a menina Prim.
– Eu diria que não se trata de um erro. Parece-me que as nossas queridas Hortensia e Emma não
dão ponto sem nó – declarou a velha senhora, com um sorriso.
– Que quer dizer? Que representa esse ponto de interrogação? É algum homem em concreto?
– Às vezes, tem uma maneira muito extravagante de se exprimir, Prudencia. Existe, por acaso,
algum homem em abstrato? Pelo menos, algum com quem sair?
A bibliotecária não respondeu.
– Naturalmente, esse sinal corresponde a um homem em concreto. É evidente que as nossas
amigas de San Ireneo conhecem um candidato a marido que ainda não detetou.
– Quer dizer que ainda não o conheço?
– Crê que, se não o conhecesse, se dariam o trabalho de ocultar o nome sob um ponto de
interrogação? É claro que o conhece, minha querida, é disso que se trata. De ocultar aos seus olhos
um candidato em que ainda não pensou ou no qual se nega a pensar. Ocorre-lhe algum cavalheiro com
essas características? – inquiriu a velha senhora, olhando-a inquisitivamente nos olhos.
A menina Prim baixou o olhar e começou a remexer, nervosamente, na caixa das figuras de Natal,
até apanhar um pastorinho com uma ovelha aos ombros.
– Gostaria que não se empenhasse tanto em manipular essas figuras – disse, friamente, a velha
senhora. – Um marido é para uma vida inteira, mas essas figuras sobreviveram a várias. E seria bom
que continuassem a fazê-lo, não acha?
5
A Gaceta de San Ireneo ocupava um dos poucos prédios da aldeia, se é que se pode designar
assim uma velha construção de pedra e madeira com três pisos. Era um edifício estreito cujas
escadas interiores ocupavam quase metade de cada andar. Como todos os estabelecimentos
comerciais da aldeia, contava com uma cuidada placa de ferro e um pequeno jardim, mas todos os
habitantes de San Ireneo concordavam que o que de mais valioso o jornal possuía era a diretora. A
menina Prim chegou à uma da tarde, acompanhada de uma bandeja de bolos acabados de fazer. Ao
fim de quase quatro meses de ali residir, tinha perfeita consciência de que o chá, o café ou o
chocolate, a pastelaria fina e um bom licor eram elementos imprescindíveis nas reuniões sociais de
San Ireneo.
– A princípio, também fiquei um pouco surpreendida, mas acabei por me dar conta de que é um
elemento de civilização – comentou Herminia Treaumont, depois de agradecer à bibliotecária a
gentileza gastronómica e de a convidar a percorrer as diminutas instalações do jornal.
– Civilização? A mim parece-me uma relíquia do passado – disse esta. – Quem tem tempo, hoje
em dia, para lanches como os nossos?
A diretora mostrava-lhe, nesse momento, a velha rotativa de ferro com que se imprimiam os
quatrocentos exemplares diários do jornal.
– Que beleza! Ainda funciona?
– Claro que funciona. É uma relíquia do passado, como diz, mas a civilização tem implícita em si
própria a ideia de memória. Os selvagens perpetuam apenas umas quantas tradições, não podem dar-
lhes forma escrita, não têm vocação de permanência.
– E isso pode aplicar-se ao chá, aos pastéis de nata e aos biscoitos.
– E a uma conversa, também, naturalmente. Nós, selvagens modernos, temos as nossas próprias
limitações. Já não nos resta tempo para nos sentarmos a uma mesa a conversar sobre o divino e o
humano. Não só não temos tempo como também já não o sabemos fazer.
A menina Prim examinou com interesse um exemplar do jornal daquela tarde.
– O que a Herminia quer dizer é que as tradições são um muro para conter a degradação e a
incultura, certo? – perguntou. – Concordo consigo, mas nunca me teria ocorrido aplicar esse
princípio às toneladas de produtos de pastelaria que se consomem nas reuniões de San Ireneo.
Desataram ambas a rir, enquanto transpunham a porta do gabinete da diretora, separado por um
painel de vidro da minúscula redação. Na sala, a dois passos de uma secretária a abarrotar de livros
e papéis, havia uma mesa de chá com uma toalha imaculada, sobre a qual repousava uma bandeja de
doces, uma cafeteira, uma leiteira com natas e uma fruteira.
– É uma mulher extremamente civilizada – disse a bibliotecária, com um sorriso. – Diga-me uma
coisa. Sobre o que escrevem aqui? Há notícias em San Ireneo? Ou inventam-nas?
– Claro que há notícias em San Ireneo – respondeu a anfitriã. – Onde há um grupo humano há
sempre notícias. Outra coisa é aquilo que considera uma notícia e qual é o filtro que aplica para o
determinar. Isto é um jornal à moda antiga, Prudencia, não só contamos os pequenos acontecimentos
da comunidade como também os debatemos.
– Debater? Quem? E sobre o quê?
– Todos nós e sobre qualquer coisa. Sobre política, economia, arte, educação, literatura,
religião… Está surpreendida? Olhe em volta, repare na sua própria vida, examine as suas relações.
Não lhe parece que a vida é um debate contínuo?
A menina Prim visualizou-se por instantes na biblioteca a discutir o fragor com o homem do
cadeirão. Em seguida, contemplou-se a debater o casamento com Hortensia Oeillet, o feminismo com
as feministas, a educação com a mãe do chefe, contos de fadas com as crianças lá de casa. Sim, de
certo modo, a vida era um debate contínuo, com certeza que sim.
– De vez em quando, na realidade uma ou duas vezes por mês, organizamos debates públicos no
nosso clube socrático e, depois, publicamo-los.
A bibliotecária pegou num pastel de nata e mordiscou-o ao de leve.
– Um clube socrático? Refere-se a um clube de debates?
– Não pode imaginar o êxito que tem, vem gente de todas as localidades vizinhas. Outras vezes,
não é um debate ao vivo, mas em fascículos. Um belo dia, alguém publica um artigo, uma segunda
pessoa responde, depois uma terceira, uma quarta, até uma quinta, e todos nós assistimos ao duelo.
A menina Prim perguntou se o chefe participava naquelas batalhas.
– Evidentemente que sim. E ganha, com muita frequência.
A bibliotecária replicou que isso não a espantava minimamente.
– Pois eu duvido muito de que alguma vez tenha utilizado toda a sua artilharia contra si. Vê-lo
discutir com o Horacio Delàs é um verdadeiro espetáculo.
– O Horacio é um homem encantador – disse a menina Prim.
– Alegra-me que tenha reparado nisso.
A bibliotecária observou a anfitriã com interesse. A diretora de La Gaceta de San Ireneo tinha
esse encanto indefinível das pessoas que calam mais do que dizem. A menina Prim sempre tivera a
sensação de que tais pessoas contavam com uma importante vantagem em relação aos outros. Nunca
diziam inconveniências, não lhes ocorriam ideias extravagantes, nunca tinham de se arrepender das
suas palavras ou matizar comentários. Ela tentara sempre comportar-se assim, tentara não dizer nada
que pudesse prejudicar outrem ou a si própria, mas não era fácil. Contudo, Herminia Treaumont
dominava aquela arte. Embora lhe custasse, a bibliotecária conseguia compreender agora o atrativo
de que o homem do cadeirão falara.
– As miúdas preocupam-me – declarou, de repente, lembrando-se de um assunto sobre o qual
queria falar há algum tempo.
A diretora do jornal olhou-a, espantada.
– A que se refere?
– Refiro-me à sua educação. Não, não falo das crenças, isso é tema demasiado extraordinário
para me preocupar. Falo da delicadeza.
– Será que pensa que não estão a ser criadas com delicadeza? O tio é um cavalheiro, um homem
encantadoramente sensível e cortês. Posso dar provas disso.
A menina Prim sentiu um mal-estar no estômago que a levou a perguntar-se se os bolos estariam
em condições.
– Não duvido de que seja extremamente sensível e cortês, mas foi a própria Herminia que o
disse: é um homem. Rodeia estas rapariguinhas unicamente de clássicos greco-romanos, de literatura
medieval e poesia renascentista, de pintura e escultura barroca.
– Tem graça ouvi-la dizer tal coisa, porque ele detesta o barroco. A mim, porém, isso parece-me
fantástico – disse Herminia Treaumont, servindo-se de um pouco de fruta.
A menina Prim esforçou-se por encontrar as palavras adequadas. Se fosse uma dessas pessoas
que calam mais do que falam, tê-las-ia encontrado, mas não era. E, como não era, provavelmente, a
melhor solução passava por ser direta.
– Não vi qualquer vestígio do livro Mulherzinhas lá em casa.
A anfitriã olhou-a, surpreendida.
– Mulherzinhas?
– Mulherzinhas.
– Mas isso é impossível, não posso acreditar.
A bibliotecária sorriu, aliviada. Por momentos, temera que Herminia Treaumont pertencesse a
esse grupo de almas toscas, incapazes de compreender o valor radical de uma velha edição de
Mulherzinhas num plano de educação.
– Tem de estar enganada, Prudencia. Provavelmente, existe uma biblioteca para as raparigas, não
posso acreditar não tenha dado por ela. Pelo que sei, a Eksi já leu Jane Austen.
– É verdade, mas Jane Austen é Jane Austen. Nem sequer ele pode ignorá-la, é demasiado
importante para que possa ser esquecida. Mas devo dizer que a única vez que o ouvi falar de Jane
Austen foi para criticar o Darcy.
A diretora do jornal serviu-se de uma chávena de chocolate e ofereceu outra à menina Prim.
– Todos os homens que conheço criticam o Darcy. Consideram-no aborrecido e impertinente.
– Porquê? – inquiriu a bibliotecária, intrigada.
– Suponho que tenham consciência de que perdem quase todo o brilho quando comparados com
ele.
A menina Prim permaneceu em silêncio, enquanto relembrava certa discussão na cozinha.
– Teremos de falar disso com ele – declarou a anfitriã.
– Do meu humilde ponto de vista, a questão relacionada com Mulherzinhas é o mais grave –
insistiu a bibliotecária. – Sempre pensei que a infância de uma rapariga sem esse livro deve parecer
um deserto.
– Penso exatamente o mesmo.
Ambas permaneceram caladas. Uma das redatoras do jornal bateu à porta. Herminia Treaumont
deu-lhe umas instruções breves e precisas antes de fechar a porta e se sentar de novo ao lado da sua
convidada.
– Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Prudencia. Essas raparigas têm sido extraordinariamente
educadas, têm uma formação única. Gostaria de que isso ficasse bem claro, em nome da verdade.
A menina Prim aproximou a cadeira da mesa e falou num tom decidido.
– Nenhuma formação fica completa, se faltar esse bocadinho de Concord. Já sei que o seu valor
literário não é comparável com o de muitas outras obras. Não se trata disso, ambas o sabemos. Trata-
se de beleza, de delicadeza, de segurança. Quando forem mais velhas e a vida as magoar, e não
duvide de que a vida as irá magoar, poderão sempre olhar para trás e refugiar-se, durante umas
horas, nessa velha história sentimental. Chegarão cansadas do trabalho, esgotadas do trânsito,
doridas da tensão e dos problemas e, no fundo dos seus cérebros, encontrarão uma porta que lhes
permitirá instalar-se na velha sala de Orchard House, com o seu transcendentalismo puritano e
adocicado, o piano, a alegre lareira e a bendita árvore de Natal.
– Sempre quis ser como a Jo March – murmurou, com nostalgia, Herminia Treaumont.
– Pois é melhor que não lhe diga quem eu quis ser.
– Porquê?
– Porque mostra o tipo de infância que tive.
– Vá lá, Prudencia, a Meg?
– Não.
– A Amy?
– Não
– A pobre Beth?
– Não.
– Não será a tia March?
– Não, a tia March, não. A senhora March.
– A senhora March? A sério? Porquê?
A menina Prim refletiu por instantes no motivo. Tinha que ver com o carácter da sua própria mãe,
uma mulher sensível e artística, mas nada parecida com a progenitora das March. Não havia nela o
menor vestígio daquela mulher sólida e forte, mas doce e compreensiva, que figurava nas páginas do
livro. A bibliotecária pensara muitas vezes que, se tivesse tido de escolher um adjetivo para
descrever a mãe, teria optado por consolável.
– Consolável?
– A minha mãe foi uma personagem eminentemente dramática. Pertence a esse tipo de mulheres
que exigem apoio, mesmo quando a desgraça não se abate sobre elas, mas sobre os outros. Quando o
meu pai perdeu o emprego, há uns anos, quem se fechou durante dias a chorar e lamentar-se foi ela.
Ele ficou sozinho na sala, calado e cabisbaixo. Quando perdi a bolsa da universidade, ela passou
duas semanas sem se sentar à mesa. O mesmo aconteceu quando o marido da minha irmã mais velha a
abandonou. A Virginia não pôde chorar, porque ao seu lado estava uma mulher que envergava um
cilício e não parava de se lamentar pela sua sorte.
Herminia Treaumont pousou as mãos nas da menina Prim.
– Lamento muito, Prudencia. Mas porquê a senhora March? Não teria sido mais lógico
identificar-se com uma das filhas?
A menina Prim apertou as mãos da anfitriã.
– Fui sempre uma mulher realista, Herminia, e as mulheres realistas começam por ser
rapariguinhas realistas. Era bastante nova quando li o livro. Na altura, não gostava da minha mãe,
mas sabia que tinha uma mãe. Não podia fingir que não. O que podia fazer era imaginar que tipo de
mãe eu seria, quando fosse mais velha. E essa mãe era a querida Marmee March.
A diretora do jornal de San Ireneo levantou-se, aproximou-se de uma das estantes do escritório e
tirou um pequeno livro castanho com o título gravado a dourado.
– Estou convencida de que tem de haver uma explicação razoável para tudo isso – explicou.
– E há mesmo – respondeu a menina Prim. – Não existe nenhuma mulher lá em casa, nenhuma.
Depois de meditar por momentos, Herminia Treaumont aproximou-se da bibliotecária e estendeu-
lhe, decidida, o livro, uma edição de Mulherzinhas de 1893.
– Diz que não existe nenhuma mulher lá em casa? Ah isso é que há, Prudencia. Agora, há mesmo.

A menina Prim acabava de deixar Herminia Treaumont, quando ouviu uma voz agradável e
familiar atrás de si:
– Há dias que queria telefonar-lhe, Prudencia. Como está? Por incrível que pareça, num lugar tão
pequeno como este, perdi-lhe completamente o rasto.
A bibliotecária virou-se e deparou-se com o sorriso de Horacio Delàs. De cachecol vermelho ao
pescoço e um velho sobretudo azul-marinho, levava os braços cheios de embrulhos.
– Esperava que me beijasse a mão, Horacio, mas vejo que é impossível – disse ela, num tom
brincalhão.
Ele inclinou-se cortesmente e, depois, indicou, com um gesto, os embrulhos.
– Nada me agradaria mais, querida. Fá-lo-ia, se não estivesse atarantado devido a esta tarefa
infernal.
– Tarefa?
– Como denominaria o encargo de comprar objetos inúteis para quinze crianças e uma dúzia de
adultos?
A bibliotecária sorriu. Gostava daquele homem, havia algo nas suas maneiras, algo caloroso e
reconfortante, que a fazia sentir-se à vontade.
– Talvez arte?
– Arte? Espere até ver o seu, antes de ser tão generosa.
– Mas é possível que tenha comprado também um presente para mim? – exclamou ela, comovida.
– Claro que lhe comprei um presente. Não esperaria que o Natal chegasse e a deixássemos
abandonada, como uma criança que se portou mal. Não deve ficar surpreendida se receber várias
prendas, durante as festas. Consta-me que se tornou muito popular nesta nossa estranha colónia.
A menina Prim estremeceu, mais de satisfação do que de frio, sob o suave casaco de caxemira.
– Perdoe-me, Prudencia, sou um verdadeiro canalha ao mantê-la parada na rua, com esta
temperatura. Acompanha-me à livraria? Tenho de comprar algo para esse velho beneditino que se
esconde de nós na sua cela.
A menina Prim mostrou-se encantada perante a ideia de desfrutar de um momento dedicado às
compras. As ruas de San Ireneo mostravam já a iluminação de Natal. Montras ornamentadas com
grinaldas de urze e azevinho, velas acesas, diversos presépios e poinsétias animavam os peões a
entrar nas lojas à procura de presentes. Lá dentro, os comerciantes ofereciam aos clientes chávenas
de chá e chocolate quente, bolachas, filhós e bolinhos cobertos de glacé, como se fosse neve.
– Que pensa comprar-lhe? – perguntou a bibliotecária, quando entraram no estabelecimento.
– Sou um velho sentimental, sabe? – suspirou o amigo. – No outro dia, fui vê-lo à abadia e
estivemos a falar sobre a infância. Falou-me do tempo em que frequentava a escola, da ternura da
mãe, do catecismo…
– Vai comprar-lhe um catecismo? Suponho que seja, evidentemente, o de Trento – interrompeu-o,
com um sorriso.
Em vez de responder, Horacio Delàs aproximou-se de uma estante e pegou num livro
avermelhado com as capas muito desgastadas. A bibliotecária reparou na lombada.
– O abade Fleury?
– O Catecismo Histórico. Uma primeira edição de 1683, uma joia.
– É mesmo – replicou uma voz doce e educada, atrás deles. – Não imaginas como foi difícil
consegui-la. Cheguei esta manhã de Edimburgo.
A menina Prim voltou-se e deu de caras com uma mulher de aspeto severo, extremamente magra e
com uns olhos maliciosos e inteligentes.
– Deve ser a nossa famosa Prudencia Prim. Permita-me que me apresente, sou a Virginia Pille, a
livreira de San Ireneo.
– Muito gosto em conhecê-la, senhora Pille – respondeu a bibliotecária, estendendo-lhe a mão.
– Trate-me por Virginia, por favor, é assim que todos me chamam.
– Deveria saber, Prudencia, que está a falar com a mulher mais poderosa da aldeia – murmurou
Horacio Delàs.
A dona da livraria desatou a rir, e a menina Prim apercebeu-se de quão clara e cristalina era a
sua voz.
– Que disparate, Horacio, toda a gente sabe que a mulher mais poderosa da aldeia é a Herminia.
Não se mexe uma folha em San Ireneo sem que ela o saiba.
– É possível, mas todas as folhas que se mexem nesta aldeia pertencem a algum dos teus livros –
esclareceu ele, com afeto.
Virginia Pille soltou outra gargalhada, alegremente.
– Tem uma linda livraria – disse a bibliotecária depois de dar uma olhadela às velhas estantes de
madeira pintadas de azul, às mesas desengonçadas cheias de livros e inscrições feitas à navalha, aos
candeeiros de secretária espalhados pelos cantos do estabelecimento e ao samovar antigo, de prata,
junto ao balcão.
– Obrigada, sou da mesma opinião. Aceitam uma chávena de chá? – perguntou a livreira.
Enquanto Virginia preparava uma infusão, a menina Prim respirou fundo e perguntou:
– Krasnodar?
Virginia Pille levantou os olhos e observou-a com curiosidade.
– Vejo que tem bom olfato. Colhido, secado e embalado especialmente para mim. Tenho bons
amigos na velha Rússia.
– Em Sochi?
– Exatamente. Sabe como se prepara, certo?
A bibliotecária anuiu, sorrindo, enquanto apreciava o aroma intenso do chá que se espalhava pela
sala. Depois de se sentar a uma pequena mesa, atrás do balcão, admirou com prazer o velho serviço
de Meissen e as colherezinhas de prata harmoniosamente diferentes, pensando que, para uma mulher
como ela, aquilo se parecia muito com felicidade.
– Receio que sejam demasiado sofisticadas para mim – suspirou Horacio Delàs. – Ilustrem um
pouco um pobre cavalheiro que tem bebido, durante toda a vida, chá a granel.
– Tanto quanto sei, em Sochi, utilizam-se apenas as três folhas superiores da planta e as restantes
deitam-se fora. É esse o segredo do seu sabor – explicou a menina Prim.
– Além disso, só se cultiva de maio a setembro. O clima faz o resto – acrescentou a proprietária
da livraria.
Horacio Delàs bebeu um gole e elogiou entusiasticamente a qualidade da infusão. Em seguida,
apontou para o velho catecismo.
– Foi muito difícil consegui-lo?
– Para ele, nada é muito – respondeu a livreira, com simplicidade.
A bibliotecária, que se entretivera a folhear uma coletânea tridimensional de contos infantis,
virou-se para perguntar:
– Que tem esse monge de especial? Porque é tão popular?
A dona da livraria olhou para o amigo com uma expressão interrogativa.
– Não o conhece?
Ele negou com um movimento da cabeça. Então, Virginia Pille baixou os olhos e brincou com a
tampa do samovar, antes de se decidir a replicar:
– A resposta mais óbvia é que foi ele, juntamente com o homem para quem trabalha, quem fundou
esta colónia.
– E a menos óbvia?
– A menos óbvia é que é o único homem que conheço com um pé neste mundo e outro no outro.
A menina Prim sobressaltou-se.
– Quer dizer que está a morrer?
– A morrer? – Virginia Pille voltou a soltar uma das suas gargalhadas cristalinas. – Não, espero
que não! Porque lhe ocorreu tal ideia?
– Vamos lá ver como lho explicamos sem a escandalizar, Prudencia – interveio Horacio Delàs. –
O que a Virginia quer dizer é que o velho mito platónico da caverna se fez realidade nesse monge
beneditino. Ele é o audaz prisioneiro libertado da caverna que regressa ao desolado mundo das
sombras, onde estamos todos nós, depois de ter visto o mundo real.
A livreira de San Ireneo olhou para a menina Prim e disse-lhe em voz baixa:
– O Horacio diz tudo de uma forma muito poética, Prudencia, mas trata-se de algo tão simples
como isto: o nosso querido pater é um homem capaz de ver o que os demais não conseguem.
Perante tais palavras, a bibliotecária sentiu uma onda de indignação cansada. Ver o que os demais
não conseguem? Naquela aldeia, era impossível não se aperceber disso, residiam mais excêntricos
do que era possível imaginar. A menina Prim desconfiava, por uma questão de princípio, de quem
afirmava ver coisas invisíveis. No mundo que ela conhecia, um mundo seguro, limpo e confortável,
as coisas invisíveis eram coisas invisíveis. Se não se viam, não existiam. Naturalmente, nada tinha a
objetar em relação a esse tipo de muletas que tornam a vida mais suportável – as filosofias e as
crenças espirituais, os contos que se narram às crianças, as emoções, os sentimentos, as sensações –,
mas desde que ficasse bem claro que tais realidades não existiam ou, no caso de existirem, era
unicamente na mente ou no coração de quem as experimentava. No mundo real, tal como ela o
concebia, tudo era suscetível de se plasmar ou registar. Quer fosse através da poesia ou da arte, quer
da literatura ou da música, tudo deveria ter uma tradução no mundo visível. As coisas invisíveis,
repetiu para si, só existem na imaginação. E então, quase como se tivesse vislumbrado algo, pensou
em escuros e enigmáticos espelhos.
– Quer dizer que é um místico? – perguntou friamente.
– Se o é, é demasiado humilde para o reconhecer – disse Horacio Delàs, enquanto pedia com um
olhar à dona da livraria que voltasse a usar o samovar e lhe enchesse a chávena. – Mas há que dizer
que a existir algo, e é um cético que o diz, ele tem uma estranha familiaridade com esse algo, seja lá
o que for.
A menina Prim sorriu com altivez.
– E porque deduz isso? É algo no olhar dele? Há uma auréola à volta da sua figura?
– Não é tanto o que se lhe vê no olhar – interveio suavemente Virginia – , antes o que ele vê no
olhar dos outros.
– Querem dizer que adivinha o que pensamos? – inquiriu a bibliotecária com um trejeito irónico.
– Queremos dizer que sabe o que cada um de nós é.
A menina Prim sentiu-se, de súbito, pouco à vontade. Parecia-lhe inquietante a ideia de um ancião
andar pelo mundo a adivinhar o que os outros são. E não só inquietante, mas também inadequada. Era
um modo subtil e misterioso de atentar contra a intimidade de uma pessoa, no melhor dos casos, ou
uma forma grosseira de enganar, no pior. Fosse como fosse, havia naquilo algo de incorreto;
incorreto e desagradavelmente mórbido. A menina Prim negava-se rotundamente a que lhe
adivinhassem a essência. Negava-se por uma questão de princípio e também de fim.
– E eu que pensava que era um homem com um espírito científico – disse, com um gesto de pesar.
– Ah, mas não sou? – respondeu o amigo, fingindo-se espantado.
– Não pode sê-lo e, ao mesmo tempo, acreditar que esse indivíduo adivinha coisas.
– Naturalmente que não posso. Mas eu não disse isso; limitei-me a dizer que esse indivíduo,
como lhe chama, sabe coisas.
Virginia Pille começou a retirar, em silêncio, o serviço de chá.
– E, por acaso, não é a mesma coisa? – insistiu a menina Prim.
– É claro que não. Desafio-a a aproximar-se um dia e a falar com ele.
– Não penso fazê-lo. Obrigada.
– Porquê? Tem medo?
A bibliotecária fez um trejeito displicente.
– Medo? De um pobre monge nonagenário?
Horacio olhou para a proprietária da livraria antes de responder.
– Diga-me uma coisa, Prudencia: há algum buraco negro na sua jovem vida? Algo com que seja
obrigada a viver e de que quereria libertar-se? Uma mancha na consciência? Um temor por resolver?
Um rumor de desespero?
– E se houvesse? – ripostou a bibliotecária, empinando o queixo. – Toda a gente tem não um, mas
muitos.
– Tem razão. Todos nós os temos. Mas o que estou a tentar dizer-lhe é que ele os conhece.
Conhece o que há nas consciências, lê nelas como se fossem um livro aberto.
– Isso é impossível.
– A única coisa a fazer é ir vê-lo. Talvez não lhe diga nada de revelador, nem sempre o faz. Mas,
diga-lhe o que lhe disser, seja o que for, acertará no alvo, garanto-lho.
Depois de ele pagar o livro e de agradecer à dona da livraria o chá e a conversa, saíram os dois
do estabelecimento rumo a uma noite fria e iluminada de San Ireneo.
– Continuo a insistir em que me surpreende ouvir isso de um homem que não se caracteriza
precisamente por ser crédulo – disse a menina Prim.
Horacio Delàs, que carregava agora mais um embrulho – o catecismo do abade Fleury –, sorriu
afavelmente à bibliotecária.
– É precisamente esse o cerne da questão, Prudencia. O meu ceticismo não é pirrónico, mas
científico. Aceito qualquer pressuposto que seja suportado por uma prova empírica.
– Ah, sim? – respondeu a bibliotecária. – E há uma prova empírica que confirme essa faculdade a
que se referiu e segundo a qual o velho monge sabe o que cada um de nós é?
O acompanhante parou e olhou-a nos olhos.
– Pergunta se há uma prova? É evidente que há.
– E qual é, pode saber-se?
A menina Prim adivinhou o que Horacio Delàs ia dizer-lhe um segundo antes de este o proferir.
– Os buracos negros da minha vida, evidentemente.
6
A notícia do desaparecimento do senhor Mott abalou a placidez de San Ireneo com a violência
repentina de um murro no estômago. A menina Prim soube no talho, enquanto escolhia um enorme
peru que pensava assar para a Consoada, às escondidas da cozinheira, embora ainda não soubesse
como.
– Eu bem disse que não me agradava – lamentava-se o talhante. – Disse-o logo que vi a maneira
como atendia as pessoas no quiosque. Parecia olhar sempre mais além de cada cliente, como um leão
enjaulado, ansioso por escapar às grades. Pobre menina Mott, homens como aquele nunca mudam.
A bibliotecária saiu à pressa do estabelecimento e correu para a escola. Lá chegada, parou,
desanimada, em frente da porta. Não ousava tocar. Não se atrevia a fazer outra coisa senão
permanecer ali de pé, em silêncio, com um enorme peru nos braços. Uns movimentos atrás das
cortinas, lentos e dissimulados, levaram-na a ter esperança de que alguém houvesse detetado a sua
presença e a convidasse a entrar. Uns minutos depois, a porta abriu-se e o homem do cadeirão pediu-
lhe, com uma expressão séria, que fizesse o favor de passar.
– Então foi-se embora? – perguntou, ainda ofegante, devido à corrida e ao peso do peru.
A sala de aula estava vazia. Não havia crianças, nem bibes, nem caixas de lápis, nem giz na base
do quadro, nem mapas, nem figuras de madeira para ensinar geometria. Um arrepio percorreu as
costas da bibliotecária. Quem se fora embora? Ou senhor ou a senhora Mott?
– Foram-se embora os dois – disse, lentamente, o homem do cadeirão –, mas receio que não
tenham ido juntos. Afinal de contas, talvez a minha mãe estivesse certa. Lamento muito pela Eugenia,
não merecia ser tratada assim.
A senhora Prim sentiu pena da professora, mas ainda não percebia o que acontecera ao certo.
– Para onde foi a menina Mott? Que aconteceu?
– O senhor Mott voltou a desaparecer. Ontem, à noite, não voltou para casa, deixou-lhe uma nota
a dizer-lhe que tentara, mas que se sentia preso. Ela fez as malas e foi para casa da irmã. Creio que
não voltará.
A bibliotecária contemplou o chefe com compaixão. Levantou-se suavemente e sentou-se a seu
lado.
– Considero-o demasiado inteligente para se sentir culpado pelo que aconteceu.
Ele levantou a cabeça e sorriu distraidamente.
– Não me sinto culpado, mas responsável. A Eugenia é uma mulher muito frágil e romântica, toda
ela é sensibilidade, deveria ter sido mais prudente e tê-la aconselhado melhor.
Ao ouvir «toda ela é sensibilidade», a menina Prim sentiu uma dor bem dentro de si.
– Tem alguma coisa contra a sensibilidade?
– Nada, de maneira alguma, é uma qualidade maravilhosa, mas não é o instrumento adequado
para pensar.
– Quer dizer que nós, as pessoas sensíveis, não sabemos pensar?
O homem do cadeirão voltou a olhá-la, desta vez com curiosidade.
– Ah, mas estamos a falar de si?
A bibliotecária corou e fez menção de se levantar da cadeira, mas ele deteve-a com um gesto.
– É claro que não estamos a falar de mim – disse, de nariz empinado. – Acontece apenas que não
percebo o que a sensibilidade tem que ver com a imprudência, a ingenuidade ou a falta de juízo, que
é o que me parece que quer apontar quando fala da pobre menina Mott.
– A sensibilidade é um dom, Prudencia, tenho perfeita consciência disso, mas não é o instrumento
adequado para pensar e, quando se utiliza para pensar, não só não nos leva a bom porto, como nos
conduz ao desastre. Acontece o mesmo com as orelhas e a comida. A orelha é um órgão admirável, a
sua conceção maravilhosa foi pensada até ao mais ínfimo pormenor para facilitar a audição. Mas
tente usá-la para comer e verá o resultado.
A bibliotecária riu-se e, ao fazê-lo, arrancou, pela primeira vez, um sorriso ao interlocutor.
– Com que então pensa que a Eugenia Mott quis comer com as orelhas e que o senhor não foi
suficientemente forte, hábil ou responsável para o notar, correto?
– Soa muito pouco lisonjeiro, mas suponho que sim, suponho que assim é.
Depois de meditar em silêncio, a menina Prim levantou-se bruscamente e fez frente ao chefe.
– Pois permita-me que lhe diga que é incrivelmente altivo.
Ele olhou-a, surpreendido com aquela explosão de energia e com o sorriso triunfante no seu
rosto.
– Pretende começar uma discussão? – inquiriu, num tom incrédulo. – Porque, se é isso que
pretende, devo avisá-la de que não é um bom dia para o fazer.
– De modo algum – respondeu ela. – Pretendo apenas ajudá-lo. Deveria saber que o mundo não
age de acordo com os seus conselhos. É possível que lhe pareça estranho, mas é o que acontece. Sim,
pode ser que impressione algumas pessoas e deslumbre outras com essa sua sabedoria e essa
cortesia que irradia, mesmo quando é impertinente, mas não se iluda. As pessoas que o rodeiam
ouvem-no. No entanto, isso não quer dizer que lhe obedeçam sempre nem que sigam, em todos os
momentos, as suas indicações.
O homem do cadeirão parecia agora confuso, circunstância que a bibliotecária aproveitou para
continuar a falar.
– Não o negue, de nada serve negá-lo. Esta manhã, levantou-se convencido de que o sofrimento
da Eugenia Mott se devia a si e à sua pretensa irresponsabilidade. Isso não só representa um fardo
enorme e gratuito sobre os seus ombros, como demonstra um apreço excessivo pelo valor dos seus
juízos, se permite que lho diga.
– Serviria de alguma coisa não lho permitir?
A menina Prim fez uma pausa, aparentemente satisfeita com o efeito das suas palavras. Tinha
consciência de que conseguira mudar o estado de espírito do interlocutor. A infelicidade da menina
Mott era um acontecimento lamentável e deplorava-o, mas, no seu íntimo, estava convencida de que o
homem do cadeirão agira leal e corretamente e não estava disposta a permitir que ele se castigasse
pelos conselhos que dera. Agora, ficara levemente aborrecido com ela, mas já não se mostrava
cabisbaixo e a sua voz recuperara o matiz de tambores de guerra que tanto a alarmara no primeiro
encontro. Porém, não estava satisfeita. Precisava de continuar a pressioná-lo, era necessário que o
fizesse; e ela, não havia dúvida, sabia muito bem como.
– Porque desterrou a Louise May Alcott das vidas da Téseris e da Eksi? – perguntou de repente.
– Que diz? – Desta vez a expressão do homem do cadeirão mudou radicalmente. – Que se passa
consigo, Prudencia? O pequeno-almoço caiu-lhe mal?
– Caiu-me maravilhosamente, obrigada. Diga-me lá, por que razão o fez?
Ele contemplou-a por instantes em silêncio.
– Se não fosse um cavalheiro, tirava-lhe a febre agora mesmo. De que diabo está a falar?
– Falo de Mulherzinhas, evidentemente.
– Mulherzinhas? Mas que diabo tem que ver com isto a obra Mulherzinhas?
A bibliotecária pigarreou, para ganhar tempo.
– Não tem nada que ver diretamente, mas indiretamente tem.
Ele olhou-a com crescente incredulidade.
– Estou à espera de que me explique.
– Ora bem… – A menina Prim recorreu a toda a capacidade de improvisação de que foi capaz e
olhou, com uma expressão séria, para o homem do cadeirão. – De certo modo, todos somos o que
lemos.
– Desculpe?
– De certo modo, somos fruto das nossas leituras.
– A sério? O que acaba de dizer é muito interessante, dá-me algumas ideias acerca da sua pessoa.
A bibliotecária endireitou as costas, decidida a não permitir que ele vencesse a discussão.
– Não estamos a falar de mim, estamos a falar da menina Mott.
– Pois eu tinha a impressão de que estávamos a falar de Louise May Alcott.
– Não vê qualquer relação entre o que aconteceu à Eugenia Mott e as suas leituras, pois não?
– Tem toda a razão. Não vejo. – O homem do cadeirão baixou os olhos e sorriu. – Prudencia, se
está a tentar distrair-me com uma conversa deliberadamente absurda para que não continue a
lamentar-me pela minha responsabilidade na desgraça da Eugenia Mott, creia que lhe agradeço, mas
não tente levar-me a acreditar nessa estupidez de que somos o que lemos. Não é digno de si.
A bibliotecária levantou-se e começou a andar nervosamente pela sala de aula.
– Não me parece que seja estupidez. Não posso falar por si, mas, no meu caso, posso afirmar que
grande parte da minha personalidade tem que ver com as minhas leituras. Por isso – torceu as mãos
–, preocupa-me comprovar certas ausências na formação literária das raparigas. Não digo que sejam
premeditadas, talvez me tenha precipitado ao acusá-lo disso, mas são ausências. E, provavelmente,
têm que ver com o facto de, por muito que tente, o senhor não ser uma mulher.
– Por muito que o tente…?
A menina Prim fez um trejeito.
– O que quero dizer…
– Sei perfeitamente o que quis dizer. Minha querida Prudencia – o homem do cadeirão riu-se ao
se aperceber, pela primeira vez, do peru –, se há alguém que se preocupa com a importância das
leituras na vida destas crianças, sou eu. Escolhi cuidadosamente não só quais, mas também quando e
como essas leituras passariam a fazer parte da existência dos meus sobrinhos.
A bibliotecária tentou falar, mas ele interrompeu-a firmemente com um olhar.
– Apesar do caos que vê na minha biblioteca e na minha casa em geral, essa desordem que a
incomoda tão profundamente, não há uma única vírgula improvisada na educação das crianças. Não
há um único livro que passe pelas suas mãos sem passar primeiro pelas minhas. Não foi por acaso
que leram Carroll antes de Dickens, e este antes de Homero. Não há nada de fortuito no facto de
terem aprendido a rimar com Stevenson antes de chegarem a Tennyson, nem que tenham chegado a
Tennyson antes de Virgílio. Descobriram a Branca de Neve, Peter Rabbit e as crianças perdidas antes
de Oliver Twist, Gulliver e Robinson Crusoe, e estes antes de Ulisses, D. Quixote, Fausto ou o Rei
Lear. Estão a ser educadas com boas leituras para que, depois, sejam capazes de assimilar grandes
leituras. Aliás, antes que comece a expor-me as suas sensatas e irritantes teorias pedagógicas, dir-
lhe-ei que sei perfeitamente que cada um destes jovens é diferente. Por isso, são eles que marcam o
ritmo, não eu. Mas os degraus da escada que sobem foram construídos por mim utilizando a
experiência acumulada, durante muitos séculos, por outros, que me precederam. Outros a quem estou
profundamente grato.
A menina Prim, que ouvira com atenção as palavras do seu interlocutor, pigarreou suavemente
antes de falar.
– E o livro Mulherzinhas? Onde encaixa nesse plano? Imagino que não seja na secção de grandes
leituras, mas espero que haja um lugar para ele, pelo menos entre as boas leituras.
– Pois devo reconhecer que não há.
– Mas porquê? – protestou a bibliotecária. – Não compreende que uma coisa é a erudição e outra,
muito diferente, é a delicadeza. Sabe muito de literatura, mas não sabe nada de feminilidade.
– Por muito que tente.
– Não leve isto a brincar, porque é importante. E, para sua informação, dir-lhe-ei que a Herminia
pensa como eu. Ninguém diz que Louise May Alcott seja Jane Austen, mas Stevenson também não é
Dante.
O homem do cadeirão olhou-a atentamente.
– Sabe o que me surpreende em tudo isto, Prudencia? Olho para si, uma mulher com inúmeros
títulos académicos, uma mulher moderna e decidida, e não consigo imaginá-la a ler Mulherzinhas.
A menina Prim empinou o nariz arrebitado com mais fervor do que nunca.
– E pode saber-se porquê?
– Porque é uma obra pirosa e piegas e, se há algo a que sou, sem dúvida, hostil é ao
sentimentalismo. Regozijo-me com o facto de ambas reconhecerem que Louise May Alcott não é Jane
Austen, porque, efetivamente, não o é.
– Leu-o? – perguntou a bibliotecária. – Refiro-me ao livro Mulherzinhas?
– Não, não li – respondeu ele, calmamente.
– Então, por uma vez na vida, deixe de pontificar e leia-o, antes de expressar uma opinião.
O homem do cadeirão desatou a rir e olhou-a com renovado interesse.
– Está a pedir-me que leia Mulherzinhas? Eu?
– Sim, o senhor. O mínimo que pode fazer antes de condenar uma obra é lê-la, não acha?
– Mas que me diz acerca da menina Mott? Já nos esquecemos da menina Mott?
A bibliotecária levantou-se, vestiu o casaco e enfiou as luvas, pegou no peru e, enquanto se
dirigia para a porta, murmurou:
– Claro que não nos esquecemos da menina Mott. Aposto consigo o que quiser em como ela
também não leu essa obra.

O jantar de Consoada foi um êxito, apesar de ter sido precedido de uma dura discussão pejada de
censuras, acusações e indícios de soluços por parte da cozinheira. A menina Prim conseguiu impor-
se com habilidade e coragem. Ao fim e ao cabo, explicou cuidadosamente ao ciumento dragão que
guardava a cozinha, o Natal era uma celebração familiar e fraterna, um momento de partilha e
celebração. E que melhor forma pode haver de partilhar e festejar do que cozinharem juntas?
Desconcertada perante tal eloquência, a cozinheira cedera, por fim, embora não sem antes sublinhar
que o Natal era bastante mais do que isso, muito mais do que isso. Fora o que aprendera; o que a sua
mãe lhe ensinara, e que lhe fora, por seu turno, ensinado pela sua própria mãe; assim o explicava
também o velho pater que habitava na abadia e o mesmo dizia o próprio senhor. Não, aquilo era
apenas uma pequena parte do Natal, a menos importante, se é que lhe permitiam que o dissesse.
– Claro que lhe permitimos que o diga, senhora Rouan, porque é a verdade. E a verdade não
muda, como bem sabe.
O olhar desesperado da menina Prim interrompeu o discurso do homem do cadeirão, que acabava
de entrar na cozinha, atraído pelo aroma delicioso do peru.
– Creio, porém, que não é uma noite para discussões e zangas – disse, apercebendo-se da tensão
entre as duas mulheres. Depois, aproximou-se da cozinheira e sussurrou-lhe ao ouvido: – Deixe-a
cozinhar, senhora Rouan. Esse peru nunca poderá competir com o seu aprimorado rosbife, quanto a
isso não há dúvida.
A cozinheira, impante, não disse nem mais uma palavra e dedicou-se à tarefa de terminar um
soufflé, enquanto vigiava os três tipos de bolos que coziam no forno. Uma hora e meia depois, o
jantar estava pronto; as crianças, alvoraçadas perante a ideia de se deitarem bastante mais tarde do
que costume; a mesa, posta com uma impecável toalha de linho e um antiquíssimo serviço da família,
e os convidados – Horacio Delàs e o juiz Basett, que, há uns anos, jantavam lá em casa nessa data –,
confortavelmente instalados no salão. Enquanto a menina Prim se vestia para o jantar, podia ouvir a
agitação de visitas, felicitações, risos, abraços e canções.
Meia hora depois, sentada à mesa enorme e comprida da sala de jantar, enquanto ouvia a
conversa animada dos convivas e sorria, de vez em quando, ao homem do cadeirão, a menina Prim
sentiu nostalgia, embora não soubesse dizer exatamente de quê. Assistiu à leitura que a criança mais
nova fez do Evangelho de S. Lucas e que todos, do primeiro ao último, ouviram em silêncio.
Caminhou animadamente com eles, depois de jantar, quando, armados de círios, cachecóis e casacos
compridos, se dirigiram, no frio gelado da noite, para a missa do galo na velha abadia. Mas deixou-
os ali, à porta do antigo mosteiro, cujos vitrais brilhavam, iluminados como um farol na noite.
– Não quer mesmo vir? – encorajou-a Horacio Delàs. – Como sabe, não sou crente, mas assisto
por respeito e apreço. Siga o meu conselho, pelo menos numa noite como esta, vale a pena. A antiga
liturgia romana é de uma beleza incomparável.
– Obrigada, Horacio, mas estou muito cansada – respondeu, amavelmente, a bibliotecária,
enquanto observava toda a gente de San Ireneo chegar em grupos pequenos e grandes, com inúmeras
crianças agasalhadas até à ponta dos cabelos por causa do frio, um frio que atravessava a roupa e
penetrava nos ossos.
As estrelas brilhavam no céu quando a menina Prim deu meia-volta e se dirigiu para casa.
Chegada à bifurcação do caminho, parou subitamente, olhou para o relógio e, depois de vacilar por
instantes, tomou a senda que conduzia à aldeia. As alegres luzes das montras estavam apagadas, mas
as janelas das casas, suavemente iluminadas, como se esperassem que os seus habitantes
regressassem do ofício religioso, davam às ruas um aspeto cálido e acolhedor. A bibliotecária
chegou à praça principal e, com um passo decidido, dirigiu-se para o velho salão de chá, que ainda
estava aberto. Lá dentro, as mesas e o balcão encontravam-se vazios. Só ao fim de uns instantes
avistou, junto de uma janela, uma mulher inclinada sobre uma chávena, com um livro na mão.
– Julguei que estivesse com os outros na abadia – disse a menina Prim.
A mãe do homem do cadeirão levantou a cabeça e, com um gesto silencioso, convidou a
bibliotecária a sentar-se.
– Nunca vou, é demasiado emotivo para mim. Saio de casa com eles, acompanho-os todo o
caminho e, ao chegar, digo aos miúdos que a avó prefere sentar-se lá trás. Fiz sempre isso, desde que
têm o uso da razão, mas sabe uma coisa?
– Este ano não resultou – respondeu a bibliotecária com um sorriso travesso, enquanto tirava o
cachecol e as luvas e pedia ao empregado de mesa uma chávena de chocolate quente.
A velha senhora olhou-a, surpreendida.
– É muito perspicaz.
A menina Prim riu-se e assegurou-a de que a sua perspicácia era apenas um pouco de
experiência.
– Podemos enganar as crianças durante algum tempo, mas a maioria dos adultos não se apercebe
do momento em que esse período de graça expira.
A companheira concordou, pensativa.
– Esta noite fui com eles, como sempre. Entrei com eles, como sempre, esperei por que se
sentassem com o meu filho no banco da família e, quando lhes disse que a avó ia sentar-se lá atrás,
como sempre, disseram-me algo inaudito.
– Deixe-me adivinhar.
– Não creio que consiga. «Agasalha-te bem à saída, avó», foi o que me disseram. Nunca fiquei
tão espantada, nunca em toda a minha vida. Não soube o que havia de dizer; murmurei algo
incoerente. E, depois, que podia fazer senão isso?, saí a toda a pressa.
A menina Prim sorriu com doçura e gentileza. Sabia que aquela era a última noite da velha
senhora lá em casa, assim como sabia – pelo menos fora o que supusera – que aquele seria o lugar
onde a poderia encontrar. Depois da catástrofe conjugal de Eugenia Mott, a bibliotecária mal
conseguira trocar umas palavras com ela. Tinham sido dias complicados, cheios de compras, cartões
de Natal, pequenas incumbências e trabalho atrasado. A bibliotecária observou, em silêncio, a
companheira enquanto mordiscava um bocado de bolo de limão. Aprendera a apreciar aquela mulher,
aprendera a apreciá-la e a respeitá-la. Mas, desde o dia da conversa sob a cameleira de Eugenia
Mott, a frágil confiança que se instalara entre elas parecia ter-se evaporado. A menina Prim
costumava pensar que talvez as confidências fossem uma espécie de fantasia romântica que nunca
acontecera, a não ser na sua imaginação. Voltaria a ver a velha senhora, depois daquela noite? A
bibliotecária estremeceu. Provavelmente, talvez mesmo de certeza, não voltariam a ver-se.
– Lembra-se da tarde em que me disse que tinham sido as crianças as responsáveis pela viagem
vital do seu filho em relação à qual se sente tão descontente?
– Claro que me lembro.
A menina Prim fez uma pausa para untar uma torrada de pão rústico com manteiga e compota.
– Como é que isso aconteceu? – perguntou.
A mãe do homem do cadeirão não respondeu, limitando-se a barrar outra torrada.
– O que quero dizer é o seguinte – continuou a bibliotecária. – Como é possível? Como podem
crianças tão novas provocar uma mudança tão grande e tão profunda?
A velha senhora parou de comer e levantou os olhos.
– Foi através da Téseris.
– A Téseris?
– Foram essas surpreendentes e maravilhosas intuições que ela tem. Contou-lhe já que a
Redenção é um conto de fadas real? É uma ideia inaudita numa rapariguinha de dez anos, mas não
foi, de modo algum, a primeira pessoa a formulá-la. Houve outros, Tolkien, por exemplo, a fazê-lo
antes dela. Alguma vez falou com a minha neta durante um bom bocado?
– Claro que sim – respondeu a menina Prim.
– É uma criança estranha, não acha?
– De facto, é. Diria que é diferente de todas as que conheci. Às vezes, dá a impressão de que
guarda um segredo.
A bibliotecária mordeu o lábio. Apesar da sua repugnância natural pelos discursos metafísicos,
tinha de reconhecer que aquela criatura dava sempre a impressão de habitar profundidades
inalcançáveis aos outros.
– Foi sempre diferente, desde muito pequena.
– Diferente? Que quer dizer com isso?
A velha senhora concentrou-se em dissolver o torrão de açúcar que acabara de deitar na chávena.
– A minha neta tem uma familiaridade surpreendente com o sobrenatural, desde mesmo muito
pequena. E o mais interessante de tudo é que, durante muito tempo, não conseguiu entender que a nós,
que aos outros, não acontecesse o mesmo.
– Quer dizer…? – A menina Prim engoliu em seco. – Quer dizer que a Téseris é como que uma
pequena mística? Não pode estar a falar a sério.
A mãe do homem do cadeirão cortou lentamente uma fatia de bolo, pousando-a no prato da
bibliotecária, e, a seguir, cortou outra, que depositou com cuidado no seu.
– Não, Prudencia, não estou a dizer que a minha neta seja uma mística. Não sei que aspeto têm os
místicos, embora esteja convencida de que não são parecidos com ela. O certo é que não suspeitava
de como o sobrenatural pode tocar o natural até o ter visto refletido nela.
A menina Prim, que se esquecera do bolo, olhava agora fixamente para a senhora. E, enquanto o
fazia, lembrou-se da tarde da sua chegada lá a casa.
– Da primeira vez que a vi, a Téseris falou-me de um espelho. Pensei que se referisse à Alice.
A velha senhora sorriu, suavemente.
– A Téseris voa muito mais alto do que a Alice. Videmus nunc per speculum in aenigmate.3 Sabe
um pouco de latim? Agora vemos como que através de um espelho, vemos obscuramente, como num
enigma. Só depois é que veremos tudo tal qual é, quando conhecermos da mesma forma que somos
conhecidos.
A menina Prim pigarreou suavemente. Lá fora, recomeçara a nevar.
– Mas se acredita em tudo isso, porque não ficou hoje na abadia, com a sua família? Porque
mantém essa distância?
A mãe do homem do cadeirão pegou na chávena com as delicadas mãos e acabou de beber o chá.
Depois, olhou severamente para a bibliotecária e falou em voz baixa, quase num sussurro.
– Porque não posso. Ainda não estou preparada, não me sinto preparada.
– Preparada? Preparada para quê?
– Preparada para quê? – A velha senhora sorriu, com um trejeito. – Preparada para depor as
armas, minha querida. Preparada para baixar esta velha cabeça orgulhosa e depor as armas.

3
São Paulo, I Epístola aos Coríntios.
III

Desemaranhando meadas
1
A partida da mãe do homem do cadeirão deixou um vazio estranho na casa. Lá fora, o tempo
continuava frio, a neve acumulava-se no parapeito das janelas, atravancava as portas, gelava sobre
os ramos das árvores. Lá dentro, o trabalho avançava, apesar das frequentes interrupções das
crianças, que queimavam a sua inesgotável energia a correr, a brincar e a esconder-se nas salas,
corredores e escadas da casa. A bibliotecária passava as tardes a classificar aqueles tomos pesados
e cobertos de pó. Alguns, cujo único valor consistia em terem permanecido ali durante longos e
solitários anos. Outros, verdadeiros sobreviventes trazidos pelos antepassados da família, quando,
havia muito tempo, chegaram a San Ireneo e ali se fixaram. A menina Prim gostava daqueles livros.
Comovia-a a ideia de que ali, naquelas velhas estantes, tinham presenciado lenta e silenciosamente à
chegada das noites e ao nascer dos dias.
– Fico maravilhado por nunca a ter ouvido espirrar, Prudencia. Esses livros têm mais pó do que
aquilo que a espécie humana é capaz de suportar.
O homem do cadeirão entrou na biblioteca a bufar e armado de um gorro, um cachecol que lhe
tapava o rosto, um sobretudo grosso e pesadas botas de neve.
– De certeza que é o senhor que está debaixo disso tudo? – perguntou a bibliotecária, com ironia.
– Ria-se, se quiser, mas lá fora está um frio dos demónios. Não se pode estar no jardim por mais
de meia hora – respondeu ele, enquanto tirava o cachecol, o gorro, as luvas e o sobretudo.
– Deveria tirar as botas e calçar algo quente. Quer que peça o lanche?
– Se quisesse ter essa amabilidade, ficar-lhe-ia muito agradecido. Maldita neve, tenho as mãos
tão frias que não sou capaz de desapertar os cordões – queixou-se.
A menina Prim aproximou-se silenciosamente. Agachou-se, com o máximo cuidado para não se
ajoelhar, e começou a desapertar-lhe os cordões.
– É muito amável. E, creia-me, aprecio o gesto pelo que vale – disse ele, com um sorriso.
– Que quer dizer com isso? – inquiriu ela, com aspereza, enquanto se esforçava por manter o
equilíbrio, ao mesmo tempo que tentava evitar ajoelhar-se e vencer o desafio.
– Que creio adivinhar o significado hierárquico que dá a determinadas atitudes e gestos.
– Se fosse assim, não faria isto, não acha?
– Claro que faria. O seu sentido de dever, tão prussiano, leva-lhe sempre a melhor.
A bibliotecária apertou os lábios e prosseguiu a tarefa.
– Acho que já está.
– Obrigado – respondeu ele, suavemente.
A menina Prim pegou no tabuleiro que a cozinheira deixara em cima da mesa do vestíbulo.
Depois da última discussão que tinham tido, as duas mulheres haviam acordado tacitamente evitar-se
e esquivar-se a qualquer tipo de conversa. Cumprimentavam-se, quando se cruzavam nos corredores,
na cozinha ou no jardim. Mas, para além desse mínimo de urbanidade, a relação entre ambas era tão
fria como aquele inverno. A bibliotecária estava satisfeita com o acordo; ao fim e ao cabo, ela não
fazia parte do pessoal doméstico. Quando precisava de alguma coisa, dizia-o a uma das três
raparigas da aldeia que trabalhavam lá em casa como empregadas de limpeza, amas improvisadas e
encarregadas de tudo o que fosse preciso. Não precisava de modo algum de falar com o dragão dos
fogões. E, no entanto, refletiu, enquanto pousava o lanche em cima da mesa diante da lareira, tinha de
reconhecer que a senhora Rouan era uma mulher eficiente. Os seus sonhos recheados, a sua esponjosa
tarte de queijo, o delicioso bolo de cenoura e as finíssimas sanduíches cortadas em triângulos e
dispostas em quatro pequenos montes, cada um com o seu sabor, eram insuperáveis. Nos tabuleiros
nunca faltavam o chá chinês, o leite com nata e as torradas de pão caseiro barradas generosamente
com manteiga e mel. Tudo aquilo, verdade seja dita, era mérito da cozinheira.
O homem do cadeirão esfregou as mãos e contemplou, em silêncio, o ritual seguido pela menina
Prim ao servir o lanche. A casa estava inusitadamente silenciosa, pois as crianças encontravam-se na
estufa, a ver o jardineiro fazer estacas e cuidar com mimo dos rebentos que cresciam em pequenos
vasos, à espera de poderem ser transplantados para o jardim, no ano seguinte.
– É fascinante a variedade de livros que estão acumulados nesta sala – comentou a bibliotecária.
– Estive a fazer o exercício de tentar adivinhar quais pertenceram a homens e quais a mulheres.
O homem do cadeirão sorriu, enquanto mexia lentamente o chá.
– Não me parece um exercício muito difícil. Julgo que é bastante simples identificar a literatura
dirigida a mulheres: basta reparar no sexo do autor. É curioso que os homens escrevam
maioritariamente para ambos os sexos, enquanto as autoras dirigem os seus livros às mulheres.
Salvo, evidentemente, honrosas exceções.
A menina Prim respirou fundo, pegou numa sanduíche de foie gras e, depois, ergueu os olhos e
fitou o rosto do seu interlocutor.
– Não creio que as escritoras tenham sempre dirigido os seus livros às mulheres – replicou. – É
um fenómeno sociológico bastante moderno. Há menos de um século, os homens liam as escritoras
com a mesma naturalidade com que liam os autores.
– Embora com menos prazer – respondeu, a rir, o homem do cadeirão.
A bibliotecária pousou a sanduíche no prato.
– Ora, diga-me – perguntou num tom glacial –, de que se ri?
Ele contemplou-a com um sereno regozijo.
– De si, obviamente. Acaso não é o que faço sempre?
– E que acha tão engraçado em mim, neste momento, se me permite a pergunta?
– O facto de ter sempre uma resposta psicossociológica para tudo. Deveria aprender a olhar para
o mundo tal como ele é, Prudencia, não como gostaria que fosse. Não é preciso ser-se muito
perspicaz para perceber que qualquer rapaz sente um enorme prazer a ler A Ilha do Tesouro,
enquanto ficaria enjoado perante a mera ideia de ler…
– Por exemplo, Mulherzinhas?
Ele anuiu com um gesto de cabeça, a sorrir.
– Por exemplo, Mulherzinhas.
– A propósito – a menina Prim levantou o nariz com arrogância –, sempre o leu? Ou sentiu algum
enjoo que o impediu de empreender a tarefa?
O homem do cadeirão afastou os pés da lareira, endireitou-se na poltrona e inclinou-se para a
frente, como se se preparasse para comentar um jogo de xadrez. Pelo contrário, a bibliotecária
apoiou-se suavemente no encosto da cadeira e cruzou os braços sobre o peito, à espera de uma
explicação.
– Li-o.
A menina Prim esbugalhou os olhos, surpreendida, mas recompôs-se imediatamente, voltando a
adotar uma atitude de desafio.
– E então?
– Devo reconhecer que tem um certo encanto.
– Ena!
– E, nesse sentido, não vejo qualquer inconveniente em que seja lido pelas raparigas, mas devo
acrescentar que também não vejo o menor interesse.
– Que quer dizer com isso?
– Quero dizer que é um romance menor, piegas e sentimental.
A bibliotecária afastou-se do encosto da cadeira e o seu rosto ensombrou-se.
– O que é o maior pecado que o ser humano pode cometer, não é verdade? – exclamou num tom
cortante. – Ser sentimental é para si uma forma de delinquência ou mesmo uma perversão, certo? As
pessoas geladas e inteligentes não têm sentimentos. Isso é coisa do vulgo e, quando muito, das
mulheres com pouca formação.
O homem do cadeirão esticou as pernas e recostou-se de novo.
– Não diria que é coisa do vulgo – replicou lentamente. – Ficaria surpreendida com o bom gosto
literário que o homem comum demonstrou em certos períodos da história.
– Períodos que passaram e nunca mais voltarão, evidentemente.
– Não sei se nunca será a palavra adequada, embora suspeite de que sim. Mas, já que o
menciona, devo dizer que as mulheres com pouca formação e o sentimentalismo constituem uma
equação certa. Claro que, nos nossos dias, o mal atinge também as mulheres de formação superior.
– Como acontece no meu caso, é claro.
– Como acontece no seu caso, evidentemente.
A menina Prim cerrou os dentes até sentir o maxilar ranger, sob a pele do rosto. Não queria
perder o controlo, a pior coisa que alguém acusado de sentimentalismo poderia fazer era perder o
controlo. Tinha a obrigação de demonstrar àquele homem que os sentimentos não constituíam um
obstáculo a que raciocinasse devidamente. Tendo em vista este objetivo, lutou consigo própria,
durante uns segundos, que lhe pareceram eternos.
– Diga-me – perguntou com uma suavidade forçada –, como pode ser tão frio?
Ele ergueu a cabeça e olhou-a, surpreendido.
– Frio? Eu? Pensa que sou frio?
– Odeia o sentimentalismo, acaba de o dizer.
– É verdade que detesto o sentimentalismo, mas isso não faz de mim uma pessoa fria. Uma coisa
é o sentimentalismo e outra, o sentimento, Prudencia. O sentimentalismo é uma patologia da razão ou,
se preferir, uma patologia dos sentimentos, que crescem, que se excedem, que ocupam um lugar que
não lhes cabe, que enlouquecem e obscurecem a razão. Não ser sentimental não significa carecer de
sentimentos, mas apenas saber orientá-los. O ideal, quanto a isto, sei que estaremos de acordo, é ter
uma cabeça moderada e um coração sensível.
A bibliotecária permaneceu em silêncio, por uns instantes, os necessários para suavizar a tensão
da mandíbula. Como sempre que discutia com aquele homem, doía-lhe a cabeça. Não percebia a
lógica da sua conversa. Como tinham chegado àquele ponto da discussão? Em que momento haviam
passado da literatura feminina para a patologia dos sentimentos?
– Dickens lia Elizabeth Gaskell; o seu adorado Newman lia Jane Austen e Henry James lia Edith
Wharton – disse lentamente.
– Três boas escritoras. Três mulheres inteligentes e pouco sentimentais.
– A questão não é se são boas ou más escritoras ou se são ou não sentimentais. A questão é que
houve um tempo em que os homens, os grandes homens, liam romances escritos por mulheres.
– Está bem – concedeu o homem do cadeirão, afastando um pouco mais o seu assento da lareira
–, mas, na minha opinião, há que atribuir isso a duas boas razões. Primeira, ao facto de uma mulher
publicar ainda ter o encanto da audácia; e, segunda, que as mulheres ainda apresentavam um ponto de
vista razoável, mas diferente, acerca do mundo. Hoje em dia, a literatura feminina perdeu essa
capacidade de nos incitar a deslocar o ponto de mira, de nos fazer reorientar o nosso olhar. Quando
leio um romance feminino, tenho a impressão de que a autora não faz mais do que olhar-se a si
própria.
A menina Prim contemplou fixamente o chefe. A escandalosa naturalidade com que fazia todo o
tipo de juízos incorretos indignava-a. A maioria das pessoas tinha vergonha de pensar coisas como
aquela, quanto mais dizê-las. Ele dizia-as calmamente, quase com alegria.
– Talvez as mulheres olhem para si próprias porque passaram demasiado tempo a olhar para
outros – murmurou entre dentes.
– Vamos, Prudencia, isso é demasiado simplista para si.
– Está enganado – replicou ela, levantando-se bruscamente e dirigindo-se para a estante onde
estivera a trabalhar. – Nada é demasiado simplista para mim. Sou uma mulher dominada pelos
sentimentos, lembra-se?
O homem do cadeirão levantou-se, pegou no gorro, no sobretudo e no cachecol, e encaminhou-se
para a porta da biblioteca.
– Diria que é uma mulher que olha excessivamente para si.
– A sério? – Sem se aperceber, a bibliotecária ouviu-se responder com voz trémula. – E que me
diz de si? Também olha para si?
Ele virou a cabeça e esboçou um meio sorriso da porta.
– Tenho de confessar que acho muito mais interessante olhar para si.
Assim que o homem do cadeirão saiu da sala, os tremores da menina Prim transformaram-se
numa catadupa de lágrimas grossas, que começaram a deslizar-lhe em silêncio pelo rosto. Sentia-se
insultada, maltratada e gozada. Estava farta daquele jogo dialético em que ela desempenhava sempre
o papel de rato e ele, o de gato. No entanto, havia algo que ainda a irritava e lamentava mais: a
convicção de que ele não tinha consciência desse maltrato nem nunca tencionara brincar ao que quer
que fosse com ela; a consciência de que o seu drama, o seu pequeno e absurdo drama, nada
significava para o causador daquela aflição, e o facto de, ainda que isso lhe custasse, o causador
dessa aflição se ter tornado alguém importante para si. Ele era a resposta ao ponto de interrogação
que Hortensia e Emma haviam introduzido na lista de candidatos; assim era e de nada valia continuar
a ocultar isso a si própria. Conhecia os sintomas, conhecia-os bem de mais.
Que pensava ele realmente dela? A menina Prim confessava abertamente a sua ignorância quanto
a isso. Por vezes, parecia sentir uma certa atração por ela, era ridículo negá-lo. Mas, doutras, era
evidente que a considerava portadora de todos os defeitos e deformações de caráter na raça humana,
o que a levava a convencer-se de que essa pretensa atração só existia na sua mente. Uma mente
profundamente sentimental e exaltada, como ele se encarregava de lhe relembrar de tempos a tempos.
Também era possível que aquela atitude fosse fruto do seu interesse em converter-se numa espécie de
Pigmalião e fazer dela uma representante perfeita do seu sexo. A menina Prim tremia ante a
possibilidade de se ver obrigada a desempenhar o papel de Galateia ou, pior ainda, o de Eliza
Doolittle, naquele drama. Mas, por mais doloroso que fosse, não se tratava apenas disso. Havia uma
terceira hipótese, ainda mais terrível, tão terrível que sentia calafrios só de pensar nela. Talvez ele
dedicasse o seu tempo livre a debater com ela todo o tipo de questões pura e simplesmente porque
não tinha nada melhor para fazer. Chegada a este ponto, a angústia da bibliotecária cresceu até
transbordar e adotar uma feroz violência. Tinha de fazer qualquer coisa para esclarecer aquela
dúvida, tinha de fazer qualquer coisa.
Depois de assoar discretamente o nariz, olhou para as grandes janelas da biblioteca, através das
quais se via o jardim. A neve continuava a cair em flocos pesados e grandes. Parecia impossível ir à
aldeia com aquele tempo e, no entanto, precisava urgentemente de o fazer. Chegara o momento de ter
uma conversa profunda e sincera com as senhoras de San Ireneo; chegara o momento de pôr as cartas
em cima da mesa, naquele absurdo jogo detetivesco em busca de marido e de as consultar acerca da
situação em que se encontrava perante o chefe e do que deveria fazer, à luz disso. Enquanto
contemplava, com tristeza, a neve cair, convencida de que aquela conversa teria de ser adiada até
que o tempo melhorasse, viu o velho jardineiro sair da estufa e dirigir-se para a garagem. Veloz
como um raio, levantou-se, abandonou a sala, pegou num casacão grosso, num cachecol e num par de
botas de borracha e saiu, disparada, à procura do condutor.
O trajeto foi lento e pesado, em parte devido à neve que cobria a estrada e obrigava a circular
com uma extrema prudência, em parte também pela total ausência de conversa do jardineiro,
resignado a levar a bibliotecária, mas fiel aos longos anos de amizade com a cozinheira da casa.
Finalmente, o automóvel entrou na aldeia e a menina Prim foi depositada em casa de Hortensia
Oeillet, que a recebeu com grandes manifestações de alegria e surpresa.
– Minha querida Prudencia, que visita inesperada numa tarde tão terrível como esta! Entre, minha
amiga, tire o casaco e sente-se, enquanto lhe preparo um chá – exclamou.
– Não se incomode, Hortensia, acabei de tomar um. Mas aceitarei uma chávena de chocolate
quente, saber-me-á muito bem. Peço-lhe ainda o favor de fazer um litro de café.
Hortensia olhou para a convidada com consternação.
– Café? Meu Deus, deve ter acontecido algo grave, nunca toma café.
– Não, não é grave, mas é importante. Recorro a si porque preciso do seu conselho, do seu e do
das senhoras tão sensatas com quem se dá. O que quero dizer é que preciso que celebremos uma
espécie de…
– Conclave extraordinário?
A menina Prim suspirou de alívio.
– É isso que lhes chamam?
– É isso que lhes chamamos. Sente-se, querida. Vou telefonar à Emma, à Virgina e à Herminia.
Acho que isso bastará. Não queremos que toda San Ireneo fique a saber, pois não? – A florista sorriu,
carinhosamente, enquanto se dirigia para a cozinha.
A menina Prim deixou-se cair num sofá estrategicamente colocado diante da lareira. A sala de
Hortensia Oeillet era uma divisão pequena, mas harmoniosa. Velhas fotografias, jarras adornadas
com camélias, desenhos infantis que representavam plantas – a bibliotecária lembrou-se de que a sua
anfitriã era a botânica de San Ireneo –, quadros feitos com pétalas secas e livros, muitos livros,
faziam com que fosse muito difícil não se sentir bem ali.
– Que sala tão bela, Hortensia! – exclamou a bibliotecária, quando a amiga voltou carregada com
uma caneca de chocolate quente, um prato de bolinhos de manteiga, biscoitos de limão e um bolo de
creme, pousando tudo em cima da mesa, em frente do lume.
– Gosta? É um pouco antiquada, mas em San Ireneo apreciamos as coisas antigas. Vivemos
sempre com um pé no passado, como sabe, querida.
A menina Prim garantiu-lhe que sabia e também que começara a apreciar isso.
– Ah, quanto me alegra ouvi-lo! Temia que nunca chegasse a adaptar-se, é tão diferente. Ao fim e
ao cabo, aqui vivemos um pouco à margem do mundo.
– Ou mesmo contra mundum – ripostou a bibliotecária, a rir, enquanto aceitava o chocolate.
– Pois é, pois é. Que queria dizer-lhe…? As nossas convidadas já vêm a caminho, estarão aqui
dentro de cinco minutos e o café estará pronto dentro de três. Convidei também a Lulú Thiberville,
espero que não se importe.
– A Lulú Thiberville?
– É a mulher mais idosa e de mais categoria de San Ireneo, está prestes a fazer noventa e cinco
anos. Avisei-a porque é um poço de sabedoria e porque… – Hortensia Oeillet hesitou e olhou de
soslaio para a menina Prim – enterrou nada mais, nada menos do que três maridos. Não me disse qual
o motivo por que precisa de conselho, mas algo no seu olhar me levou a imaginar que pode tratar-se
de um assunto, digamos assim, romântico. Por isso, pensei nela.
A bibliotecária ruborizou-se intensamente.
– Fez muito bem. Creio que terei muito prazer em conhecer a Lulú Thiberville – disse, com um
sorriso.
A senhora Thiberville revelou-se uma velha feia, enxuta e baixa, de voz grave e imperiosa,
dotada na extraordinária arte de se transformar no centro de qualquer reunião. Envergava um velho
casaco de astracã, do qual se soltava um cheiro suave a naftalina, e usava um pequeno chapéu
cinzento adornado com uma pena.
– Com que então é a menina – disse, mal entrou na sala, seguida do resto das convidadas, que a
ajudaram a instalar-se junto do lume, lhe pousaram os pés sobre um pequeno escabelo e se
espalharam à sua volta, como se se tratasse de uma abelha-rainha.
– E então? – perguntou. – A que devo a honra?
Hortensia Oeillet apresentou a bibliotecária e em breves palavras explicou o pouco que sabia do
assunto. A menina Prim viera de surpresa, indubitavelmente agitada e intranquila, em busca de ajuda.
Solicitara a celebração de um conclave extraordinário, uma reunião não prevista que as senhoras de
San Ireneo celebravam quando algum motivo urgente a isso obrigava.
– Minha querida Prudencia, quer ter a amabilidade de nos contar o seu problema?
Animada pelo sorriso de Herminia Treaumont, a menina Prim começou a falar. Num gesto de
deferência para com Lulú Thiberville, explicou, antes de mais, o extravagante método que
concordara em utilizar na sua procura por marido e contou que, nessa mesma tarde, chegara à
conclusão de que o candidato oculto atrás do ponto de interrogação era o seu próprio chefe. Depois,
descreveu a estranha e tensa relação que mantinha com ele, as animadas conversas e confidências, os
sorrisos e as atenções, bem como os abruptos exercícios de crítica. Esforçando-se por se manter
serena, confessou que, malgrado seu, tinha de reconhecer sentir uma certa atração por ele. Não
percebia porquê, dado que se tratava de um homem estranho, carente de qualquer vestígio de
sensibilidade e intoleravelmente dominador. Como qualquer mulher autossuficiente, a menina Prim
era contra qualquer tipo de domínio. Na sua opinião, a relação conjugal deveria assentar na mais
sofisticada e delicada igualdade.
– Começa mal – interrompeu-a a abelha-mestra.
– Porquê? – indagou, espantada, a bibliotecária.
Herminia Treaumont, inquieta na cadeira, abriu a boca, disposta a intervir, mas um gesto
imperioso da velha senhora obrigou-a a calar-se.
– Todo esse discurso igualitário é uma suprema estupidez – sentenciou a velha senhora, com
dureza.
– Mas porquê? – voltou a perguntar a menina Prim.
– Minha querida Prudencia… – começou Hortensia Oeillet –, o que a Lulú quer dizer…
– Faz o favor de te calar, Hortensia – interrompeu a velha senhora. – Não preciso de que ninguém
explique o que quero dizer. Tenho a certeza de que a Emma e tu sois em parte responsáveis pela
agitação em que esta criatura vive, sempre às voltas com as vossas absurdas teorias orientais acerca
da harmonia, o todo e as partes. Já lhe falaram da harmonia, do todo e das partes, não é verdade,
querida?
A bibliotecária pediu desculpa à anfitriã com um olhar e, de seguida, respondeu que, de facto,
fora instruída sobre a teoria da harmonia, do todo e das partes.
– Esqueça isso também. É outra estupidez.
– Lulú, por favor, gostaria de que… – Hortensia Oeillet falou num tom suave, mas firme.
– Hortensia – ripostou a velha senhora, numa voz cansada –, suponho que se, aos meus noventa e
cinco anos, me convidaram para um conclave extraordinário, foi para permitir que desse a minha
opinião, correto?
– Com certeza que sim, minha querida.
– Claro que sim, Lulú – interveio Herminia Treaumont, com cautela –, só que em relação a este
tipo de questões existem diversas abordagens. Estou certa de que a Hortensia e a Emma tiveram a
melhor das intenções ao…
– Obviamente que tiveram, Herminia, não sejas ridícula, ninguém põe isso em causa. – A
diminuta velhinha endireitou-se no cadeirão e olhou fixamente para a bibliotecária. – Ouça-me bem,
menina Prim, tem na sua frente uma mulher que enterrou três maridos. Creio que isso me dá uma certa
autoridade para falar sobre o assunto, e é essa autoridade que me permite dizer-lhe que a igualdade
não tem nada que ver com o casamento. A base de um bom casamento, de um casamento
razoavelmente feliz… porque não existe, desengane-se, um que seja feliz por inteiro… é
precisamente a desigualdade, que é indispensável para que entre duas pessoas possa existir
admiração mútua. Oiça com atenção o que lhe vou dizer: não deve aspirar a um marido igual a si,
deve aspirar a um marido absoluta e completamente melhor do que a menina.
A bibliotecária abriu a boca para protestar, mas o brilho irritado do olhar da velha senhora
levou-a a desistir. Junto da lareira, Virginia Pille reprimia um sorriso.
– Pergunto-me se aquilo que afirma sobre a admiração – comentou a menina Prim – só se pode
aplicar às mulheres ou se os homens devem também casar com as mulheres que admiram.
– É evidente que o devem fazer. Devem aspirar a mulheres que, sob um ou vários pontos de vista,
sejam melhores do que eles. Se evocar a história, verá que a maioria dos grandes homens, os
verdadeiramente grandes, escolheu sempre mulheres admiráveis.
– Mas, então, essa admiração não exclui a igualdade, senhora Thiberville. Se admiro o meu
marido e ele me admira a mim, estamos em igualdade de condições – replicou a bibliotecária,
levantando o nariz dois graus.
A velha senhora virou, com dificuldade, a cabeça e olhou para Virginia Pille, que voltou a sorrir
em silêncio.
– Minha querida menina Prim, se reparar bem, perceberá que só se pode admirar aquilo que não
se possui. Não se admira noutra pessoa uma qualidade que se tem, admira-se o que está ausente em
nós e se vê brilhar no outro em todo o seu esplendor. Está a compreender?
– Estamos, Lulú – retorquiu Herminia Treaumont, enquanto a bibliotecária e as restantes senhoras
faziam um gesto de assentimento.
– Ora bem, isto não é sabedoria, mas lógica elementar. Se duas pessoas se admiram mutuamente,
isso significa que não são iguais, porque, se o fossem, não se admirariam. São diferentes, já que cada
uma admira na outra aquilo que não encontra em si própria. É a diferença, e não a igualdade, que
alimenta a admiração entre duas pessoas, daí que a igualdade não tenha nada que ver com um bom
casamento, e, pelo contrário, a diferença tenha muito. Dizer o contrário é pura charlatanice, muito
frequente no nosso tempo e muito própria de quem não aprendeu a raciocinar.
A bibliotecária baixou a cabeça e aceitou serenamente a reprimenda.
– De qualquer modo, Lulú – a voz cristalina de Virginia Pille encheu a sala –, o que a menina
Prim quer é a nossa opinião sobre a sua situação atual com o chefe e sobre o facto de se sentir
atraída por ele.
– Admira-o, criança? – inquiriu com repentina afetuosidade a velha senhora.
– Suponho que, em muitos sentidos, admiro, embora noutros o deteste profundamente.
– Ah, isso não é um impedimento, de forma alguma. Eu detestei intensamente todos os meus
maridos, e isso não me impediu de amar muitíssimo os três.
Nesse momento, Herminia Treaumont pigarreou discretamente. A bibliotecária voltou-se para ela,
enquanto Lulú Thiberville se recostava no cadeirão e fechava os olhos.
– Prudencia – disse –, gostaria de lhe contar uma coisa. Observei-a mais do que uma vez na
companhia do seu chefe e creio que é muito possível que essa atração que sente por ele seja mútua,
creio-o sinceramente.
A menina Prim pegou com calma numa bolacha de limão e inclinou-se para a frente, como se
fizesse um esforço para ouvir melhor.
– Está a falar a sério? – perguntou. – Sei que são bons amigos.
Lulú abriu os olhos e tossiu ruidosamente, o que fez com que a anfitriã se levantasse de súbito e
fosse buscar um copo de água à cozinha.
– Somos bons amigos, mas isso é agora. Há alguns anos, fomos bastante mais do que amigos.
A menina Prim retesou as costas e cerrou as maxilas.
– Oh!
– Claro que isso foi há muito tempo, tudo acabou.
– Oh! – repetiu a bibliotecária. E fazendo um esforço titânico para controlar o mal-estar,
perguntou: – Que aconteceu?
Herminia Treaumont aproximou a cadeira do lume e, depois de uma pausa, como se fizesse um
grande esforço para escolher as palavras, começou a falar:
– Não lhe vou dar pormenores da relação que mantivemos porque não vem a propósito, mas
parece-me importante dizer-lhe por que terminámos. Estivemos juntos durante uma época
maravilhosa, mas, ao fim desse tempo, o homem pelo qual estava apaixonada então converteu-se no
homem que conhece agora e tudo mudou.
– Deixou-o?
– Ele é que me deixou a mim.
A menina Prim soltou um quase impercetível suspiro de alívio.
– Não deveria sentir-se aliviada – afirmou a abelha-mestra, a quem nada escapava. – Se fosse um
pouco mais sensata, perguntaria à Herminia por que motivo ele a deixou.
– Porque a deixou? – perguntou serenamente a bibliotecária.
Um ruído suave na porta, que rangeu ao ser aberta, fez com que todas, exceto Lulú Thiberville,
cuja artrite a obrigava a manter uma posição perpetuamente solene, virassem a cabeça. Um enorme
gato de pelo comprido entrou na sala, aproximou-se da mesa e, dando um salto, subiu para o regaço
da anfitriã, que sorriu com doçura e começou a acariciar o animal. Então, a voz de Herminia
Treaumont soou distante, como se viesse de um sonho.
– Porque eu não acreditava naquilo em que ele começou a acreditar.
Por uns instantes, ninguém disse nada. Ouvia-se apenas o tiquetaque do relógio que marcava os
acontecimentos daquela tarde na sala de Hortensia Oeillet. Lá fora, a neve começara a cair com
menos força. Os flocos eram mais pequenos e leves, de tal modo que, por vezes, pareciam esvoaçar
caprichosamente no ar, empurrados pelo vento frio de fevereiro.
– Mas não posso acreditar que tenha sido esse o motivo – balbuciou, por fim, a bibliotecária. –
Quer dizer que deixou a mulher que amava só por essa razão?
– Quero dizer que, quando essa porta se abriu diante dele, tudo o que o unia a mim desapareceu.
Foi algo que lhe mudou a vida de um modo inaudito, e que eu não pude ou talvez não quis partilhar.
Claro que tentámos, Prudencia, posso atestar que tentámos, mas era tão evidente que ele vivia num
mundo e eu, noutro; que ele falava uma língua e eu, outra; que ele via…
– Por favor – interrompeu a menina Prim, irritada. – Por favor, não venham mais uma vez com
essa de que ele via coisas que os outros não conseguiam ver.
– Não num sentido físico, claro que não – explicou Herminia, lentamente. – Estou apenas a tentar
dizer-lhe que chegámos a um ponto em que, se ele não me tivesse deixado, provavelmente teria sido
eu a fazê-lo.
A bibliotecária levantou-se e aproximou-se da lareira para atiçar o lume. Ao fazê-lo, sentiu os
olhares das mulheres ali presentes. Só Lulú Thiberville, enterrada no cadeirão, de olhos fechados,
parecia manter-se à margem da conversa.
– Quer dizer que o facto de eu não acreditar naquilo em que ele acredita me impedirá de me
apaixonar realmente por ele?
Herminia Treaumont acariciou suavemente o gato, antes de responder:
– Não, querida, não. O que quero dizer-lhe é que o facto de não acreditar naquilo em que ele
acredita fará com que ele nunca, jamais, consinta em apaixonar-se realmente por si.
2
«Não pode ser», murmurou, entre dentes, a menina Prim, ao sair a toda a pressa da casa de
Hortensia Oeillet. O serão terminara de uma maneira desagradável. Era evidente que todas aquelas
mulheres, com exceção da velha senhora, olhavam para ela com pena. Era evidente também que todas
acreditavam piamente no relato de Herminia Treaumont. Todas, exceto ela, que se recusava a crer
que um homem inteligente e ilustrado pudesse permitir que as suas ideias o separassem da pessoa
que amava. Enquanto se esforçava penosamente por caminhar sobre a neve, apercebeu-se de que,
naquele momento, tinha um problema ainda mais urgente a resolver. Como regressaria a casa, com
um tempo como aquele? A anfitriã insistira em avisar alguém para a vir buscar, mas a menina Prim
manifestara firmemente a sua intenção de não aceitar tal proposta. Agora, apercebia-se de que fora
insensata, ao sair assim de casa de Hortensia. Deveria ter esperado pelo jardineiro de Lulú
Thiberville, que fazia o papel de chauffeur e que ficara de a ir buscar às oito da noite.
Sentira-se humilhada com a confissão de Herminia. Acabara por ser uma confidência inesperada
e um gesto de incompreensível mau gosto. A menina Prim acreditava firmemente que certas coisas
nunca deveriam ser reveladas. Mas, sendo necessário fazê-lo, não seria o melhor meio uma conversa
privada? Não teria sido mais correto que Herminia tivesse aproveitado a sua visita ao jornal para lhe
confessar que tivera uma relação amorosa com o homem para quem trabalhava? A menina Prim não
tinha qualquer dúvida quanto a isso nem quanto ao papel que a anfitriã deveria ter desempenhado no
incidente. Não poderia tê-la avisado do que aí vinha? Não poderia ter-lhe dito que falasse a sós com
Herminia? Tinha a certeza de que essa teria sido a maneira certa de fazer as coisas.
Toda aquela história era uma estupidez, meditou, enquanto fazia um esforço sobre-humano para
atravessar a rua. Não podia acreditar que o seu chefe se tivesse comportado de uma forma tão vil.
Em momento algum, mostrara hostilidade em relação a ela pelo facto de pensarem de maneiras
diferentes. Nunca fizera qualquer insinuação de que isso pudesse constituir um problema. Embora a
relação que mantinham se cingisse oficialmente ao vínculo entre patrão e empregada,
extraoficialmente fora mais além. As discussões e as conversas, as confidências e os debates, tudo
isso ultrapassava a barreira de um contrato. E, durante todo aquele tempo, nunca tivera a sensação de
que a desprezasse ou subestimasse pelo facto de não professar as suas crenças.
Talvez Herminia se tivesse enganado a si própria, refletiu, enquanto tentava proteger-se de uma
rajada de vento gelado. Era uma mulher delicada, inteligente e sensível, mas isso não garantia que
fosse imune ao autoengano. A menina Prim tinha uma teoria sua sobre o autoengano, segundo a qual
este grassava especialmente e com maior crueldade entre os membros do sexo feminino. Isso não
significava que um homem não pudesse cair nesse mecanismo psicológico, mas fazia-o de modo
muito mais superficial e consideravelmente menos elaborado. O autoengano na mulher, meditou
enquanto tentava não escorregar num declive do caminho, era uma arma introspetiva de enorme poder
e sofisticação. Uma espécie de monstro marinho com enormes tentáculos, que poderiam crescer ao
longo dos anos e envenenar não só a vítima, mas também muitas outras pessoas à sua volta. Ela podia
atestá-lo; conhecia o processo por experiência própria. Vira esse monstro emergir das profundezas
da mente da sua mãe e observara como se abatera, qual lula gigante, sobre a vida do seu pai.
– Não será este um dia estranho para fazer turismo, minha imprudente Prudencia?
A bibliotecária apreciava sinceramente a amizade de Horacio Delàs, mas nunca até essa noite se
apercebera do quão isso era verdade.
– Horacio, não pode imaginar a alegria que sinto ao vê-lo!
O amigo riu-se ruidosamente e, a seguir, ofereceu-lhe o braço.
– Não pense que tenho o hábito de passear em noites como esta. A Hortensia telefonou-me e
disse-me que, a esta altura, já deveria estar caída numa valeta.
A menina Prim sorriu, aliviada.
– Foi uma estupidez da minha parte.
– E, segundo me contaram, não é a primeira vez que acontece.
– Não – respondeu, baixando a cabeça.
– Vá lá, não fique triste, querida. Posso oferecer-lhe uma boa lareira e um jantar quente. Sabe que
não conduzo, pelo que o transporte não está incluído na oferta, mas telefonaremos lá para casa, para
que mandem o jardineiro vir buscá-la, depois de jantar. Agora, precisa de se aquecer um pouco, de
descansar e de comer.
A bibliotecária não respondeu, mas deixou-se conduzir docilmente até casa do amigo. Este abriu
o portão do amplo jardim repleto de cameleiras e guiou a convidada. Do edifício de pedra, tal como
das restantes casas de San Ireneo, saía, pelas janelas, uma luz, que parecia convidar o caminhante a
parar e entrar. Depois de se lavar, de trocar as botas por uns velhos chinelos vários números maiores
do que o seu e saborear um bom jantar, acompanhado de um excelente vinho, a menina Prim foi
convidada a sentar-se num cadeirão, em frente da lareira e tomar uma chávena de chá.
– Poderia dizer que estou no paraíso, Horacio. Não sabe como me sinto bem, poderia ficar aqui
toda a noite.
O anfitrião, que saboreava um copo de whisky, sorriu, de contentamento.
– Pode fazê-lo, mas não creio que isso fosse do agrado do seu chefe. Mandará alguém vir buscá-
la dentro de uma hora.
– Não, não me parece que fosse – respondeu a bibliotecária, a rir. – Porque serão todos os
habitantes de San Ireneo tão bons anfitriões? Nas reuniões, nunca faltam doces, bolos ou deliciosos
assados, uma boa lareira e conversa animada.
– São os vetustos prazeres da velha civilização, Prudencia.
– Suponho que sim – suspirou ela, enquanto deixava cair as enormes babuchas e aproximava os
pés descalços do lume, cujo crepitar era o único som que se ouvia na sala.
Pelas janelas via-se a neve cair, abafando os improváveis sons que pudessem ouvir-se na aldeia
àquela hora. A menina Prim fixou o fogo. Começava a avaliar o verdadeiro alcance do que pensara,
dissera e ouvira ao longo do dia. E o resultado não lhe agradava.
– Creio que hoje fiz um verdadeiro disparate – disse, como se falasse consigo própria.
– Refere-se a tentar voltar para casa sozinha? Não é para tanto, não aconteceu nada. Não vale a
pena pensar mais no assunto.
– Refiro-me a ter confessado publicamente que me sinto atraída pelo homem para quem trabalho,
quando, neste momento, não sei ao certo se isso será verdade.
A bibliotecária julgou que o anfitrião não ouvira as suas palavras, mas não tardou a perceber que
estava enganada.
– Fui estúpida, não acha?
Horacio Delàs serviu-se de mais dois dedos de whisky antes de responder.
– Obviamente, não diria estúpida, mas um pouco imprudente.
A convidada sorriu, sem desviar os olhos do lume.
– Que diferentes são os dois! Ele não teria tido piedade de mim.
– Claro que teria tido, Prudencia, não seja tão dura com ele. Conheço-o suficientemente bem para
saber que nunca a magoaria deliberadamente.
– Isso é um aviso? – perguntou ela, com altivez.
– De modo algum, claro que não. Não conheço os sentimentos dele, querida, não lhe posso dizer
se sente algo mais do que simpatia e interesse por si. Mas não acaba de me dizer que não tem a
certeza de sentir essa atração de que fala?
A bibliotecária desviou o olhar e não respondeu.
– Estou a ver – disse o amigo. – Nesse caso, receio bem que não tenha outro remédio senão
averiguar se é correspondida.
– Ou antes se existe algum impedimento a que o seja.
– Agora é que não a entendo – atestou ele, fitando-a com curiosidade.
Em poucas palavras, a menina Prim narrou os acontecimentos do conclave extraordinário.
– Acredita que possa ser verdade? Não lhe parece que, se o fosse, seria o cúmulo da intolerância
e do fanatismo? Acha possível? Conhece-o bem.
– Conheço-o bem, mas não estou na pele dele, minha amiga. Receio que a única maneira de obter
uma resposta é perguntando-lhe.
– Perguntar-lhe? Mas isso é impossível, equivaleria a confessar-lhe os meus sentimentos; é
totalmente absurdo.
– Mais devagar, Prudencia. Não me disse que foi esse o motivo por que ele rompeu com a
Herminia?
A bibliotecária confirmou com um movimento da cabeça.
– Pois é da Herminia que tem de falar e não de si. É da relação que ele manteve com ela que deve
falar. Julgo que esse é o primeiro troço do caminho e creio que o deve iniciar quanto antes. Escusado
será dizer que lhe desejo toda a sorte do mundo.
A menina Prim calou-se e ficou pensativa durante uns momentos. Depois, afastou os pés do lume,
calçou lentamente as meias e as botas e olhou, muito séria, para o anfitrião.
– Tem uma mente maravilhosamente feminina, Horacio. Não, por favor, não proteste, sei que não
o considera um elogio. Mas a verdade é que eu o considero um elogio, um grande e categórico
elogio.
Antes que o amigo pudesse replicar, a campainha da porta informou-os de que o jardineiro a
esperava e o serão chegara ao fim.

Naquela noite, a menina Prim dormiu mal. Não conseguia perceber como pudera ser tão
impulsiva. Em vez de se sentir aliviada por ter finalmente confessado que se interessava mais pelo
chefe do que alguma vez ousara reconhecer, estava agitada. Não conseguia deixar de pensar que, uma
vez expresso por palavras, o que sentia parecia ter assumido dimensões desproporcionadas. Ainda
que bem-intencionadas, as mulheres de San Ireneo haviam interpretado os seus sentimentos como
uma declaração de amor, quase como uma proposta de casamento. Se não fosse por isso, por que
outra razão uma velha senhora como Lulú Thiberville teria querido instruí-la sobre os fundamentos
da vida conjugal? A bibliotecária agitou-se, angustiada, ante a perspetiva de as senhoras de San
Ireneo começarem a trabalhar para a casar com o homem do cadeirão. Será que ninguém as informara
de que a atração entre um homem e uma mulher nem sempre desemboca numa relação sentimental?
Não sabiam sequer que nem todas as relações sentimentais têm como fim o casamento? A menina
Prim suavizara a sua opinião sobre o vínculo conjugal, mas isso não significava que fizesse dele algo
absoluto. Além disso, havia que ter em conta outros fatores. E se o chefe se inteirasse da celebração
daquele conclave extraordinário? E se, no fundo, ela estivesse enganada, e ele não sentisse o menor
interesse por ela?
Angustiada com tais temores, saltou da cama, vestiu um casaco e saiu discretamente do quarto.
Reinava o silêncio. Passou em bicos dos pés em frente dos quartos das crianças, atravessou o
corredor e desceu as escadas até ao amplo hall do piso inferior. A porta da rua estava aberta, como
era costume em San Ireneo, onde as portas fechadas eram vistas como uma falta de delicadeza para
com os vizinhos.
Assim que chegou ao jardim, uma rajada de ar gelado deixou-a sem fôlego. A tremer, calculou
que poderia permanecer ali fora cerca de cinco minutos. Utilizava o truque desde miúda. Quando não
conseguia conciliar o sono, levantava-se, a meio da noite e ia para a rua, onde permanecia até que o
vento, a chuva ou o calor a fizessem sentir a falta da tranquilidade do quarto. Nesse momento,
voltava para casa e dormia placidamente, durante o resto da noite.
– Prudencia, tem o estranho costume de desafiar o frio com calçado leve. Se fosse a si, iria para
o quarto e calçaria umas botas de neve.
Perante a voz do homem do cadeirão, a menina Prim virou-se, sobressaltada.
– Acordei-o? – perguntou. – Lamento muito, tentei fazer o menor ruído possível.
Ele sorriu suavemente, fechou o sobretudo e soprou para as mãos, a fim de as aquecer.
– Não me acordou, a esta hora estou sempre acordado.
– Como as corujas? – inquiriu a bibliotecária, com um sorriso trocista.
– Mais como os cães pastores. A Eksi tem pesadelos, por vezes, e acorda a chorar entre as duas e
as três da manhã. É a ovelha mais frágil do meu rebanho.
– A sério? Nunca a ouvi.
– Chora muito baixinho, é preciso estar acordado para a ouvir.
A menina Prim concordou, pensativa. Depois, esfregou vigorosamente as mãos.
– Que tal entrarmos e tomarmos uma bebida quente? Está gelada, Prudencia.
– Quando propõe uma bebida quente, refere-se a um whisky? – perguntou ela, com malícia.
– Quando proponho uma bebida quente, refiro-me a um cacau, a um chocolate ou a um ponche de
leite e rum. Nada que a possa embriagar.
A bibliotecária riu-se e entraram ambos em casa. O homem do cadeirão abriu a porta da
biblioteca, acendeu um pequeno candeeiro e ajoelhou-se diante da lareira para tratar do lume.
– Vai acender a lareira? Está calor suficiente aqui dentro.
– Eu sei, mas não concebo uma sala no inverno com a lareira apagada. O lume é muito mais do
que um meio de aquecer uma sala. Para mim, é o coração de qualquer casa.
– Não vou contestar isso – retorquiu ela, a rir. – Não a estas horas e desde que se ofereça para a
acender. Quer que prepare umas chávenas de cacau?
– Seria ótimo – murmurou ele, enquanto avivava o lume.
A menina Prim dirigiu-se à velha cozinha da casa e começou a fazer o cacau. Era a oportunidade
de seguir o conselho de Horacio e interrogar o chefe sobre o seu passado sentimental. Enquanto
mexia lentamente a bebida com uma colher de pau, teve consciência da enorme dificuldade da
operação. Como lhe poderia fazer perguntas sobre a sua relação com uma mulher, quando,
oficialmente, desconhecia esse vínculo? Claro que, refletiu, também não havia nada de extraordinário
na possibilidade de o conhecer. Não numa pequena aldeia onde todos sabiam o passado uns dos
outros.
Quando voltou para a biblioteca, na lareira brilhava um lume vivo e esplendoroso. Pousou o
tabuleiro sobre a mesa de chá e instalou-se numa das poltronas, enquanto o homem do cadeirão fazia
o mesmo. Depois, serviu as chávenas, pegou numa bolacha de manteiga, descalçou os chinelos e
aproximou os pés do lume.
– Nunca me tinha contado que a Herminia e o senhor tiveram uma relação amorosa – disse, com
estudada ligeireza e sem ousar erguer os olhos da chávena.
Ele mexeu lentamente o cacau e bebeu um gole, antes de responder.
– Há muitas coisas da minha vida que não lhe contei. Não sabia que tinha de o fazer, mas, se for
importante para si, não vejo inconveniente em começar agora.
A menina Prim corou, afastou os pés da lareira e pousou-os na poltrona.
– É óbvio que não tem de o fazer. Mas falámos tantas vezes da Herminia que me parece
surpreendente que o assunto não tenha surgido, simplesmente.
– Simplesmente – repetiu ele, em voz baixa.
Ambos fixaram o lume durante uns minutos. Do fundo da casa chegou o som distante e familiar de
três badaladas num relógio.
– Toda a gente sabe que as mulheres sentimentais também são curiosas e maldizentes –
acrescentou subitamente a bibliotecária. – Sendo assim, explique, porque terminaram a relação?
O homem do cadeirão olhou-a, divertido.
– Se há algo de que estou convencido, Prudencia, é de que não é uma pessoa curiosa.
A menina Prim sorriu, enquanto se endireitava, para despir o casaco.
– Não, não sou, mas adoro sociologia, lembra-se? A natureza humana interessa-me.
– Os sociólogos não se interessam pela natureza humana. Os sociólogos contentam-se com
estudar o comportamento humano em comunidade, o que é algo bastante mais restrito e muito menos
interessante.
A bibliotecária levantou a cabeça e olhou-o placidamente. Estava firmemente decidida a resistir
à provocação. Claro que não iria ser uma tarefa fácil, nada que tivesse que ver com ele podia ser
uma tarefa fácil. Teria sido muito ingénuo da sua parte pensar o contrário.
– Deixou-a?
– Não.
– Isso é muito elegante da sua parte, mas não é verdade.
– Se sabe que não é verdade, porque mo pergunta? Não me conhece minimamente, se pensa que
vou vangloriar-me de ter acabado com uma mulher – respondeu ele, num tom brusco.
A menina Prim mordeu o lábio e mudou de posição. Aquilo ia ser difícil, muito difícil,
extraordinariamente difícil.
– Estou certa de que não o teria feito, se não houvesse uma razão muito forte. E, para que conste,
também sei que não tenho o direito de lhe fazer esta pergunta.
– Quanto a isso, tem razão. Não tem qualquer direito de mo perguntar.
Em condições normais, a bibliotecária teria terminado ali o interrogatório. Profundamente
envergonhada, teria pedido desculpa e subido as escadas a correr, em busca de um refúgio seguro
para o seu opróbrio. Mas as circunstâncias não eram, de modo algum, normais. Naquela noite, a
menina Prim estava consumida por uma febre inquisitiva que a levava a continuar a fazer perguntas
que ultrapassavam os limites da cortesia, até da prudência e mesmo do bom senso. Desejava saber a
verdade, não ia recuar enquanto não conseguisse conhecê-la.
– Foi pelas suas ideias? Talvez porque o senhor é extremamente religioso e ela não?
Ele olhou, pensativo, para a chávena que a empregada tinha sobre os joelhos. Depois, abanou
lentamente a cabeça e sorriu.
– Ideias, Prudencia? Então pensa que a fé é uma ideia? Pensa que é uma ideologia? Algo assim
como a economia de mercado, o comunismo ou a luta pelos direitos dos animais? – O seu tom era,
agora, levemente trocista.
– De certo modo, sim – replicou ela, com altivez. – É uma maneira de ver o mundo, uma visão
sobre como deve ser a existência, além de uma valiosa ajuda para suavizar as dificuldades da vida.
– A sério que pensa assim?
– Naturalmente. E penso-o, em parte, graças a si. Se não fosse assim, por que razão teria uma
pessoa tão sensata, inteligente e racional decidido tentar converter-se?
Ele apoiou a cabeça entre as mãos e esboçou um leve sorriso.
– Tentar? É um verdadeiro diamante em bruto, menina Prim.
– Não pretende com isso fazer-me um elogio, pois não? – murmurou ela, com tristeza.
Em vez de responder, o homem do cadeirão levantou-se e aproximou-se da lareira. Pegou no
atiçador, reavivou o lume e, de olhos fixos nas chamas, começou a falar.
– Ninguém tenta converter-se, Prudencia. Já lho disse uma vez, mas está visto que não
compreendeu. Já viu um adulto quando brinca com uma criança e deixa que ela o apanhe? A criança
tem a impressão de que foi ela que apanhou o adulto, mas todos aqueles que observam sabem
perfeitamente o que aconteceu.
– Console-toi, tu ne me chercherais pas si tu ne m’avais trouvé, não é? – murmurou a
bibliotecária. – «Não me procurarias, se não me tivesses encontrado já.»
– Exatamente. Vejo que leu Pascal. Ninguém inicia essa demanda se não encontrou já o que
procura. E ninguém encontra o que procura, o Ele que procura, se este não tomar a iniciativa de se
deixar encontrar. Acredite quando lhe digo que se trata de um jogo em que todas as cartas estão na
mesma mão.
– Fala como se crer fosse algo irresistível, mas não é. É possível dizer não. A criança pode dizer
ao adulto: «Não quero brincar, deixa-me em paz.»
O homem do cadeirão bebeu o resto do cacau. Depois, acomodou-se na poltrona e olhou
fixamente para a empregada.
– É evidente que se pode dizer não. E, sob muitos pontos de vista, a vida é muito mais simples
quando se diz não. O que é normal é que até aquele que diz sim olhe para trás e perceba que disse
muitas vezes não, ao longo da vida.
A bibliotecária franziu o sobrolho.
– A vida é muito mais simples quando se diz não? A vida é muito mais simples e fácil de
suportar, quando se acredita que não se acaba num caixão debaixo da terra. Não o negue, é puro
senso comum.
Ele levantou-se e voltou a atiçar o lume.
– Como crença teórica, pode ser um bordão, durante algum tempo, sem a menor dúvida. Mas as
crenças teóricas não salvam ninguém. A fé não é algo teórico, Prudencia. Uma conversão é algo tão
teórico como um tiro na cabeça.
A menina Prim voltou a morder o lábio. A conversa não seguia o rumo que previra. Tudo aquilo
era muito revelador, mas ela não queria falar de religião, não lhe interessava minimamente falar de
religião. A única coisa que desejava saber era por que razão esse tiro na cabeça acabara com a
relação entre o seu chefe e Herminia Treaumont.
– Então foi por isso? – insistiu com teimosia. – Deixou-a por isso?
Ele olhou-a em silêncio, durante uns segundos, como se tentasse adivinhar o que haveria atrás
daquela pergunta.
– Acharia absurdo, se assim fosse?
– Acharia que, na realidade, não a amava.
– Não, quanto a isso, está enganada – respondeu ele com firmeza. – Amava-a, sim, amava-a
profundamente. Mas chegou um dia ou talvez um momento, não sei, em que me apercebi de que ela
estava adormecida, enquanto eu estava plena, absoluta e totalmente acordado. Tinha trepado, tal
como um gato trepa a um telhado, e via perante mim um horizonte belo, terrível e misterioso. Se a
amava, pergunta? É claro que a amava. Talvez se a tivesse amado menos, talvez se tivesse sido
menos importante para mim, não tivesse sentido a necessidade de terminar.
A menina Prim, que começara a sentir uma dor familiar no estômago, pigarreou, antes de voltar a
falar.
– Pensava que as pessoas religiosas estavam mais perto dos outros do que as demais.
– Não posso falar pelos outros, Prudencia. Sei o que significou para mim e não pretendo falar em
nome de mais ninguém. Foi a minha pedra de toque, o paralelo que dividiu a minha vida ao meio e
lhe deu um sentido absoluto. Não é fácil, e quem disser o contrário está enganado. Implicou uma
rutura, uma catarse intelectual, uma cirurgia de coração aberto. Como uma árvore, quando a arrancam
da terra e a plantam noutro lugar, como o que pensamos que deve sentir um bebé quando enfrenta a
terrível beleza do nascimento.
O homem do cadeirão fez uma pausa.
– E há outra coisa – prosseguiu –, algo que tem que ver com a capacidade de vislumbrar mais
além do momento, com a necessidade de esquadrinhar o horizonte, de o estudar com o mesmo zelo
com que um marinheiro estuda uma carta de navegação. Não fique surpreendida, Prudencia, a minha
história é tão velha como o mundo. Não fui o primeiro e também não serei o último. Sei o que está a
pensar. Voltaria atrás, se pudesse? Não, claro que não voltaria atrás. Será que um homem que
despertou quer viver adormecido?
A menina Prim apertou o roupão e olhou para as mãos avermelhadas do calor. Tudo era, pois,
verdade. Que ingénua fora ao pensar que aquilo constituía apenas uma parte da sua personalidade;
que pouca perspicácia demonstrara ao não intuir que, fosse o que fosse que mudara a sua maneira de
ser, era muito forte, algo profundo e perturbado. Herminia tinha razão. Nunca antes vira esse brilho
nos olhos dele. Nunca se apercebera daquela expressão de força, de convicção, de áspera e estranha
alegria.
– Então, não há esperança – murmurou com um suspiro. – Não é verdade?
Ele olhou-a, pensativo, antes de responder.
– Esperança, Prudencia? Claro que há esperança. Eu tenho esperança, a minha vida inteira é pura
esperança.
A bibliotecária levantou-se e pegou no tabuleiro com todo o cuidado.
– É muito tarde. Se não se importa, vou dormir. Estou cansada e, ao contrário de si, esta noite não
tenho esperança.
Antes que o homem do cadeirão pudesse responder, a menina Prim fechara silenciosamente a
porta da sala atrás de si.
3
Prudencia Prim dobrou cuidadosamente o quimono verde-jade, antes de o meter na mala. Na
realidade, pensou, com tristeza, enquanto guardava um par de sapatos numa bolsa de algodão, o
trabalho já não a retinha ali. A biblioteca do homem que a contratara estava perfeitamente
classificada e ordenada. Os livros de história encontravam-se nas estantes de história; os de
filosofia, nas estantes destinadas à filosofia; a literatura e a poesia descansavam no lugar adequado; a
ciência e a matemática ocupavam ao milímetro o seu espaço; e a teologia – a grande paixão daquela
casa, a rainha absoluta da biblioteca – sobressaía, imponente, pulcra e perfeita. Enquanto observava,
de vez em quando, o reflexo dos seus olhos vermelhos no espelho, lembrou-se da primeira conversa
que tivera, uns meses antes, com o homem que a contratara.

– Sabe o que é isto, menina Prim?


– Não, senhor.
– De Trinitate libri.
– Santo Agostinho?

A menina Prim sorriu melancolicamente e continuou a guardar parte do seu vestuário. Pensava
deixar no armário peças de roupa para vários dias, as necessárias para se despedir e decidir,
calmamente, o que deveria fazer de seguida. Não podia continuar. Sobretudo agora que sabia o que
sentia, que sabia também que não era nem poderia ser correspondida. Mas para onde iria? E, acima
de tudo, como explicaria a sua partida? Aproximou-se, lentamente, da grande janela do quarto, abriu
as cortinas e deu uma vista de olhos lá para fora. A manhã estava fria e, sob a luz do sol, a neve
brilhava como mármore polido. Acordara tarde. Afinal de contas, depois da conversa da noite
anterior, não lhe restavam muitas coisas a fazer, exceto enfrentar o chefe para lhe comunicar a sua
partida.
Apesar da tristeza e da deceção que a paralisavam, também se sentia aliviada. Os últimos dias
tinham sido demasiado agitados para uma mulher como ela, habituada à ordem, ao equilíbrio e à
pulcritude. Meditara demasiado, preocupara-se demasiado, revira uma e outra vez as palavras,
registara os sorrisos, analisara os olhares. O romance, reconheceu com infinita sabedoria, pode ser
uma carga extraordinariamente pesada para a psique feminina. Agora, precisava era de um lugar
agradável e distante onde descansar, um refúgio onde escrever, uma Arcádia onde se pudesse rodear
de beleza e desfrutar do esplendor na relva e as glicínias em flor.
Claro que também lhe doía a ferida, não queria nem podia negá-lo. Havia muito que não sentia
aquela sensação de angústia no estômago, aquela dificuldade em ordenar os pensamentos, aquela
impossibilidade de olhar para o horizonte e vislumbrar luz. Tudo, porém, passaria. A menina Prim
tinha a certeza disso. Conhecia-se suficientemente bem para poder calibrar quais seriam os limites
temporais da sua tristeza. Na primavera, o mais tarde no princípio do verão, o sol voltaria a brilhar.

– Posso falar consigo um momento?


A bibliotecária abriu, com cautela, a porta do escritório do homem do cadeirão. Inclinado sobre
um documento, este indicou-lhe, com um gesto, que se aproximasse da mesa e se sentasse. Obediente,
ela assim fez. Durante uns minutos, os suficientes para ensaiar mentalmente como comunicaria a
notícia da sua partida, o único som que se ouviu foi o crepitar do lume na lareira.
– Repare nisto, Prudencia – disse ele, estendendo-lhe o fac-símile de dois pequenos fragmentos
de papiro.
A menina Prim suspirou e olhou para o rosto do homem do cadeirão. Não detetou nele qualquer
sinal de que não tivesse dormido. Não havia o menor vestígio de tensão ou nervosismo. Não entreviu
qualquer indício de que a conversa que haviam mantido na madrugada anterior tivesse alterado de
alguma forma o seu estado de espírito.
– Sente-se bem? – perguntou ele, preocupado, ao observar a palidez da empregada. – Parece
cansada.
A bibliotecária assegurou que se encontrava perfeitamente e que a palidez se devia única e
exclusivamente à falta de sono.
– Ontem, conversámos até muito tarde, é verdade. Veja isto – disse, apontando para o manuscrito.
– Que acha? Já tinha visto algo assim?
A menina Prim examinou a cópia com atenção.
– O que é?
– Um fac-símile do P52, mundialmente conhecido como papiro Rylands.
– Deixe-me adivinhar… Um pedacinho do Livro da Sabedoria? Ou talvez do Livro de Daniel?
– Nem uma coisa nem outra, não tem sorte. São uns versículos do Evangelho de São João. Repare
bem, foi escrito em grego koiné. Observe estas linhas:

ΡΗΣΩ ΤΗ ΑΛΘΕΙΑ ΠΠΣ ΩΝ ΕΚ ΤΗΣ ΑΛΗΘΕΙ


ΑΣ ΑΚΟΥΕΙ ΙΟΥ ΤΗΣ ΦΩΝΗΣ ΛΕΓΕΙ ΑΥΤΩ
Ο ΠΙΛΑΤΟΣ ΤΙ ΕΣΤΙΝ ΑΛΗΘΕΙΑ ΚΑΙ ΤΟΥΤΟ4

– Tenho a certeza de que até uma ilustre jacobina como a menina já ouviu isto. Quer que lhe
traduza a frase?
A bibliotecária não respondeu. Em seguida, examinou os dois fragmentos amarelos e diminutos.
– É muito antigo?
– O mais antigo encontrado até agora. Foi datado de cerca do ano 125 d.C. Foi encontrado no
deserto do Egito, por Grenfell, um egiptólogo inglês. A opinião maioritária situa-o cerca de trinta
anos depois do original que João escreveu em Éfeso. Acha muito? Venha cá. Vou mostrar-lhe uma
coisa.
O homem do cadeirão abriu um enorme arquivo situado no canto do escritório, do qual foi
extraindo aquilo que a menina Prim identificou como fac-símiles de diversos papiros, pergaminhos e
códices.
– Sabe o que é isto? – inquiriu, apontando para um deles.
A bibliotecária fez que não com a cabeça.
– É um dos papiros de Oxirrinco. Ouviu falar deles?
Sem deixar de recorrer à mímica, a menina Prim voltou a negar.
– Também os devemos a Grenfell. Encontrou-os juntamente com Arthur Hunt, outro arqueólogo
britânico, nos finais do século XIX, num depósito de lixo perto de Oxirrinco, no Egito. Desenterraram
muitos fragmentos de grandes obras da Antiguidade; acho que este que tem agora na mão a vai
encantar. É um extrato de A República, de Platão.
– A sério? – inquiriu a bibliotecária, admirada.
– A sério. Sabe quantos anos separam Platão dos primeiros fragmentos das suas obras que
possuímos?
– Não faço a menor ideia.
– Pois vou dizer-lhe: aproximadamente mil e duzentos. Os textos que temos do pensamento de
Platão e, através dele, do de Sócrates, as obras que todos lemos e estudámos, são cópias realizadas
mais de dez séculos depois de os originais terem sido escritos.
A menina Prim examinou com atenção a cópia do papiro, enquanto o chefe retirava do arquivo um
volumoso manuscrito.
– E isto? Imagina o que possa ser isto?
A bibliotecária, que parecia ter-se esquecido do motivo da sua visita, examinou o manuscrito.
– Vejamos – disse, com um sorriso –, isto consigo decifrar. Pelo menos é latim. Tácito?
O homem do cadeirão abanou a cabeça.
– Júlio César. De Bello Civili, Sobre a Guerra Civil. Este manuscrito é o Laurentianus
Ashburnhamensis, o mais antigo que se conserva dessa obra. Sabe de que época é? Não, claro que
não sabe. É do século X, um pouco mais de mil anos depois de César ter escrito o original. A cópia
mais antiga que temos do Comentário Sobre a Guerra das Gálias data de cerca de novecentos e
cinquenta anos depois do original.
– Que interessante! – murmurou a bibliotecária.
O empregador voltou a pegar no fac-símile do papiro Rylands.
– Interessante é pouco, Prudencia, é absolutamente fascinante. Compreende agora o que é o
Rylands? Sabe quantas cópias temos, só em grego koiné, do que os quatro evangelistas escreveram?
Cerca de cinco mil e seiscentas. Sabe quantas temos de, por exemplo, Comentário Sobre a Guerra
das Gálias? Dez cópias, apenas dez. E, agora, repare – disse, enquanto examinava outro fac-símile –,
que tal se dá com Homero?
A menina Prim garantiu que, se alguma vez tivesse a desgraça de ser condenada a prisão
perpétua, levaria Homero consigo. Enquanto o homem do cadeirão continuava a falar com enorme
entusiasmo de papiros, pergaminhos e cópias, a bibliotecária recordou-se, com tristeza, do motivo da
sua visita. Sentiria a falta dele, isso era evidente; mas não só dele, também de tudo aquilo que tinha
que ver com ele. As conversas, as leituras, os debates, as crianças, os livros e a própria San Ireneo.
– Agora que acabou a biblioteca – dizia-lhe, nesse momento, o chefe – talvez pudesse ajudar-me
a classificar todo este material. Tenho de dar uma conferência em Londres, no próximo mês, sobre os
papiros Bodmer.
– Receio que não seja possível – respondeu a menina Prim, resistindo heroicamente à tentação de
perguntar o que era um papiro Bodmer.
Ele olhou-a, surpreendido.
– Porquê?
A bibliotecária cruzou as pernas com cuidado e inspirou, antes de falar.
– Porque julgo ter terminado o meu trabalho aqui. Vim dizer-lhe que decidi ir-me embora. Já
concluí o trabalho, pelo que não vejo motivo para prolongar a minha estada.
Sem dizer uma palavra, o homem do cadeirão guardou os documentos e devolveu-os ao arquivo
donde os tirara. Depois, aproximou-se da lareira, libertou uma poltrona cheia de livros e, com um
gesto, indicou à empregada que se sentasse.
– Aconteceu alguma coisa que eu deva saber, Prudencia? – perguntou.
– De modo algum.
– Alguém a ofendeu ou a magoou nesta casa?
– Sempre fui tratada maravilhosamente.
– Terei sido eu? Disse algo que a aborreceu? Cometi uma dessas faltas de delicadeza de que me
acusa constantemente?
A menina Prim baixou a cabeça, tentando esconder o rosto.
– Não tem nada que ver consigo – murmurou.
– Olhe para mim, por favor – pediu ele.
A bibliotecária levantou a cabeça e, ao fazê-lo, apercebeu-se de que tinha de encontrar
imediatamente um pretexto, de que tinha de conceber depressa uma explicação, se não queria que ele
descobrisse ou, pelo menos, intuísse a razão da sua partida.
– Preciso de ir para Itália – disse, de repente.
– Precisa de ir para Itália? Porquê?
A tremer, a menina Prim brincou nervosamente com o anel de ametistas.
– Tem que ver com a minha formação. A educação feminina não fica completa, se não se viveu,
durante algum tempo, em Itália.
– Mas ainda precisa de acumular mais formação? Com que propósito? – inquiriu ele, espantado.
– Será que está a tentar bater algum recorde?
A bibliotecária esboçou um sorriso, perante aquele rosto absolutamente desconcertado.
– Nota-se que não ouve com atenção a sua mãe – disse, com os olhos brilhantes. – Tem uma bela
teoria sobre a influência que a vida em Itália exerce sobre a conversa e as maneiras de qualquer
membro do sexo feminino.
– Está a falar a sério?
– Totalmente a sério.
O homem do cadeirão baixou a cabeça e olhou para o chão, antes de voltar a falar.
– Essa teoria é uma suprema estupidez. Sabe isso, não sabe?
– Lembro-lhe de que está a falar da sua mãe – advertiu a bibliotecária, num tom de simulada
censura. – Duvido muito de que tenha dito uma única estupidez em toda a sua vida.
– Pois receio bem que nesta ocasião o tenha feito.
– Seja como for, vou-me embora. Preciso de viajar, há demasiado tempo que aqui estou.
– Eu julgava que se sentia aqui bem – murmurou ele.
Consciente de que não poderia dominar, por muito mais tempo, as suas emoções, a menina Prim
levantou-se, decidida.
– Não se ponha sentimental – recomendou com aparente despreocupação, enquanto caminhava na
direção da porta.
– Sentirei a sua falta, Prudencia – disse o homem do cadeirão, erguendo a cabeça.
– Isso é muito cortês, mas não demasiado verdadeiro, e o senhor sabe-o.
– A sério que pensa isso? – inquiriu ele, numa voz rouca, um segundo antes de a bibliotecária
abrir a porta e sair.

A menina Prim fechou a porta do escritório e dirigiu-se apressadamente para o quarto.


Atravessou o corredor, até chegar ao vestíbulo do primeiro andar, subiu um lanço de escadas,
percorreu um novo corredor e finalmente chegou ao quarto. Depois, fechou a porta com cuidado,
descalçou os sapatos e, após ter contemplado durante uns segundos o teto de masseira, desatou a
chorar desconsoladamente. Porque chorava assim? Nunca fora uma mulher sentimental. Se quisesse
ser sincera consigo própria – e naquele momento era difícil não o ser –, o que sentia por aquele
homem não poderia ser considerado amor. Fora uma atração forjada praticamente a contracorrente,
talvez um desafio, até mesmo um enamoramento ligeiro, mas não era amor.
Perdida nos seus pensamentos, ouviu um suave ranger proveniente da porta. Alguém parara no
corredor, embora não parece disposto a manifestar a sua presença. A bibliotecária levantou-se da
cama e aproximou-se silenciosamente da ombreira. Com o coração acelerado e sem esperar que o
som voltasse a repetir-se, agarrou na maçaneta e abriu energicamente a porta.
– Que fazes aí? – perguntou, surpreendida.
A cabeça loira e desgrenhada de Septimus recuou.
– Não estava à escuta – disse, com total convicção.
A expressão da menina Prim suavizou-se e fez-lhe sinal para que entrasse.
– Vai-se embora, não é? – inquiriu o rapaz, depois de ter observado a mala semifeita, em cima da
cama.
– Quem te disse tal coisa?
– O jardineiro. Ouve tudo pela janela do escritório. Porque chora? Alguém lhe bateu?
A bibliotecária, que, nesse momento, dobrava com delicadeza uma blusa vermelha de malha,
sobressaltou-se.
– Bater-me? Claro que não me bateram. Tu só choras quando te batem?
A criança meditou, durante uns segundos.
– Eu nunca choro – retorquiu, com firmeza. – Nem sequer quando alguém me bate.
– Fazes muito bem – ouviu-se dizer a menina Prim. – Quero dizer que, por vezes, precisamos de
chorar, mas é bom que não seja por tudo e por nada.
– Talvez pudesse chorar numa guerra – refletiu o miúdo. – Numa guerra, provavelmente seria
capaz de o fazer. Justifica-se, certamente.
– Seria completamente justificado – asseverou ela.
– Oiça – disse Septimus, ao observar as lágrimas que corriam silenciosamente pelo rosto da
bibliotecária –, gostaria de que não chorasse tanto.
– Lamento não poder fazer-te a vontade. Acontece que, ao contrário de ti, choro em tempos de
paz.
O pequeno observou detidamente aquele rosto avermelhado e, depois, estudou, com interesse, os
inúmeros frascos de cosméticos que se encontravam em cima da lareira.
– Que posso fazer para que não chore?
– Receio que não possas fazer nada – respondeu, comovida, a menina Prim. – Isto não te vai
servir de muito, agora que ainda és novo, mas, quando fores mais velho e vires uma mulher chorar,
lembra-te de que o melhor que podes fazer é não fazer absolutamente nada.
– Isso é muito fácil.
A bibliotecária desatou a rir, enquanto se esforçava por limpar as lágrimas.
– Fácil? Espera até seres mais velho. Não há nada mais difícil.
– De certeza que ir para a guerra é mais difícil e caçar uma baleia com arpões, também – ripostou
o rapaz, olhando com toda a atenção para o que se encontrava do outro lado da janela.
– Talvez caçar uma baleia com arpões seja mais difícil – concedeu a bibliotecária.
– Sabe que mais? – perguntou o miúdo de olhos cravados no chão. – Acho que vamos sentir a sua
falta.
– Eu também sentirei a vossa – murmurou ela. – Vem cá. Serias capaz de me dar um beijo?
Septimus deu imediatamente um passo atrás.
– Não – respondeu, decidido –, nada de beijos. Nunca dou beijos. Não gosto de beijos.
– Penso que esse problema também se resolverá, quando fores crescido – sorriu a bibliotecária.
– Não aposte nisso – replicou o rapaz antes de se dirigir para a porta e sair a correr.

– Com que então vai-se embora – suspirou a senhora Rouan, enquanto convidava a menina Prim a
sentar-se à velha mesa de mármore da cozinha.
A bibliotecária sentou-se e aceitou uma chávena de consommé de pato que a cozinheira
amavelmente lhe ofereceu.
– É verdade, senhora Rouan, vou-me embora.
Na lareira crepitava um lume vivo e, no velho fogão de lenha, estava a ser preparado um enorme
cozido. Lá fora, o sol parecia ter-se escondido e umas nuvens escuras pressagiavam outra noite de
neve.
– Vamos sentir a sua falta – murmurou a mulher. – E, como sabe, as coisas entre nós não foram
fáceis.
– Não, não foram – disse, suavemente, a bibliotecária.
– Não aprecio mudanças, nunca apreciei. E, se quer que seja sincera – a cozinheira lançou um
olhar furtivo ao cozido –, também não gosto de ver mulheres novas aqui em casa. Cada uma faz as
coisas à sua maneira, e Deus sabe que, à medida que os anos passam, é difícil mudar.
A menina Prim esboçou um sorriso doce.
– Compreendo-a perfeitamente, senhora Rouan. Gostaria de lhe pedir desculpa por todas as vezes
que possa ter sido incómoda ou pouco delicada consigo.
A cozinheira sorriu, por sua vez, e estendeu uma das mãos velhas e grossas, para dar umas
palmadinhas na da menina Prim.
– Oh, fomos as duas muito teimosas, menina. Não sou uma mulher fácil, nunca o fui. E estou
habituada a que as coisas se façam à minha maneira. A mãe do senhor, por exemplo, também tive
problemas com ela, a princípio.
– A sério? – indagou a bibliotecária, enquanto tentava, sem êxito, imaginar a mãe do chefe a
discutir pontos de vista com a cozinheira.
– Claro que ela é uma velha senhora, conhece o pessoal. Sabe que a cozinheira é o coração da
casa e que é melhor dar-se bem com ela. Mas não é, certamente, uma mulher fácil. – Baixando a voz
até um sussurro, confidenciou: – Sabia que é meio alemã?
– Austríaca.
– É a mesma coisa. No dia em que a conheci, pediu-me que lhe fizesse um strüdel. Disse-lhe que
achava muito bem e que não havia o menor problema. Sempre fiz strüdel para os meninos. Ah, mas o
que ela queria não era um strüdel, não era um strüdel normal. Queria um topfenstrudel. Por acaso
sabe o que isso é?
A menina Prim garantiu-lhe que nunca ouvira mencionar semelhante nome.
– Foi precisamente isso que eu disse. A senhora mostrou-se muito atenciosa e escreveu-me a
receita. Mas uma pessoa não gosta que uma senhora chegue à sua cozinha, logo no primeiro dia, lhe
peça um topfenstrudel e, ainda por cima, lhe dê uma receita. Percebe o que quero dizer?
A bibliotecária concordou, compreensiva.
– Que é um topfenstrudel?
– É apenas um strüdel com recheio de queijo – resmungou a cozinheira. – Lá, eles chamam a esse
queijo topfen. Não é difícil de fazer, claro que não. Por isso, peguei na receita e fi-lo, naturalmente
que o fiz. Que outra coisa podia fazer?
– E ela gostou?
A senhora Rouan levantou-se e aproximou-se do fogão. Levantou a tampa da panela, inclinou a
velha cabeça para inspirar o aroma, pegou numa colher de pau e provou o conteúdo com satisfação.
– O problema foi esse – explicou, enquanto voltava a sentar-se à mesa. – Passei toda a manhã na
cozinha, de volta do famoso topfenstrudel, comprei o melhor queijo que encontrei e segui a receita,
passo a passo. Quando ficou pronto e o levámos para a mesa numa linda travessa de Meissen
ornamentada com folhas do jardim, sabe o que me disse?
A menina Prim garantiu-lhe que não fazia a mais pálida ideia.
– «Senhora Rouan» – disse-me – «senhora Rouan, não trouxe o vanillesoße. Onde está o
vanillesoße, senhora Rouan?»
A bibliotecária ocultou um sorriso com a chávena de caldo.
– «Não sei o que é esse tal vanillesoße, senhora», disse-lhe, muito séria. «Durante toda a minha
vida de cozinheira, e posso garantir-lhe que servi em muitas casas, nunca ouvi falar desse
vanillesoße.»
– O que é o vanillesoße? – perguntou a menina Prim.
– Creme de baunilha, apenas isso. Mas como poderia eu sabê-lo? E também como poderia saber
que o topfenstrudel se servia com creme de baunilha?
A bibliotecária apressou-se a assegurar-lhe que ninguém teria podido adivinhar esse ínfimo
pormenor.
– Mas há que reconhecer que é uma senhora – continuou a cozinheira. – Naturalmente, não deu
logo o braço a torcer. Mas, no dia seguinte, apareceu na cozinha, e disse-me: «Senhora Rouan, o
topfenstrudel de ontem estava delicioso, mas, pelo que pude ver, os meninos estão muito habituados
ao seu strüdel. Assim, se faz favor, de hoje em diante, esqueceremos o topfenstrudel e o vanillesoße
e voltaremos ao seu strüdel.»
– E acabou tudo – suspirou, com um sorriso, a menina Prim.
A senhora Rouan levantou-se para apagar o lume do fogão.
– Agora, tem de repousar durante duas horas – murmurou. – Que estava eu a dizer?
– Dizia que aí acabou tudo.
A cozinheira olhou-a com estranheza.
– Acabar? Foi precisamente o contrário. Ali não acabou tudo. Foi ali realmente que tudo
começou.
A bibliotecária concordou, pensativa, e depois olhou para a janela. No jardim, tinham começado
a cair grossos flocos de neve.
– Senhora Rouan, lembra-se do bolo que fiz no dia dos meus anos?
A mulher sorriu, amavelmente.
– Lembro-me. O senhor e os meninos gostaram muito. Foi muito amável da sua parte, mandar-nos
um pedaço aqui para a cozinha. Todos gostámos muito. É uma receita de família, não é? São sempre
as melhores.
A menina Prim voltou a olhar para a janela. Para lá do jardim, do caminho e dos terrenos
agrícolas, chegou o som distante e solene dos sinos da abadia.
– Estão a tocar as vésperas – disse a cozinheira.
– Eu sei – murmurou a bibliotecária, sem desviar os olhos da paisagem. – Gostaria de ter a
receita do meu bolo de aniversário, senhora Rouan?
A mulher fitou-a, assombrada.
– Mas, menina, eu julgava que essa receita…
– Eu também pensava o mesmo – sorriu a menina Prim. – Gostaria de a ter?
A cozinheira, com os olhos brilhantes de emoção, estendeu a mão calosa e pousou-a na da
bibliotecária.
– Seria uma honra, menina, uma grande honra.

4
«Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.» Pilatos replicou-lhe: «Que é a Verdade?», Jo 18, 37-38.
4
A menina Prim elaborou cuidadosamente a lista de pessoas que deveria visitar antes de se ir
embora. Sabia que a notícia da sua partida se espalharia rapidamente pela aldeia e não queria que os
amigos tomassem conhecimento através de alguém que não ela própria. Enquanto caminhava pelas
ruas de San Ireneo, rumo a casa de Horacio Delàs, lembrou-se do dia da sua chegada. Atravessara as
ruas apressadamente, lamentando não encontrar um único táxi, quase sem reparar nas linhas solenes
das sólidas casas de pedra nem no encanto das alegres e cuidadas lojas. Quão pouca consciência
tivera então – precisamente ela, que adorava a beleza – do coração palpitante que se ocultava por
detrás daquelas paredes.
Passara uma semana desde que descobrira o seu engano em relação aos sentimentos do chefe, e a
dor que esse facto suscitou nela fora substituída por uma serena e calada tristeza. Não se tratava
apenas de desamor – a menina Prim revoltava-se interiormente contra a ideia de estar a sofrer os
efeitos dessa doença da alma –, mas da perspetiva de ter de abandonar a aldeia, de abandonar aquele
lugar acolhedor, aquelas pitorescas pessoas, aquela maneira de viver. Não desejava partir, confessou
a si própria enquanto caminhava pela aldeia, não desejava de modo algum fazê-lo. Mas será que
poderia fazer outra coisa?

– Ainda me lembro de quando aqui chegou, tão jovem e inexperiente e sem saber nada deste
lugar.
Depois de oferecer uma cadeira à convidada, Horacio Delàs instalou-se no velho cadeirão donde
costumava observar o mundo – uma observação intelectual, amável e tranquila – e olhou com
curiosidade para a bibliotecária.
A menina Prim pigarreou antes de responder.
– Só passaram seis meses, Horacio. Espero continuar igualmente jovem.
O amigo sorriu, enquanto lhe oferecia um copo de vinho e uma fatia de queijo, que cortou com
uma faca enorme.
– Mas agora sabe muito mais acerca de nós.
A bibliotecária confirmou, enquanto levava o copo aos lábios.
– E, mesmo assim, deixa-nos – prosseguiu ele. – Essa conversa foi realmente assim tão dura?
Será mesmo impossível para si voltar a página e continuar junto de nós?
A menina Prim olhou-o com tristeza. Ponderara nisso mesmo, todos os dias, desde a noite em que
conversara com o homem do cadeirão. Não poderia continuar como estava? Não poderia ignorar
aquilo, fingir que nunca acontecera, continuar a fazer o seu trabalho tal como até àquele momento?
– Não posso – disse.
– Está assim tão apaixonada por ele?
A bibliotecária levantou-se para endireitar um dos quadros que cobriam as paredes da sala do
amigo.
– Não sei – replicou, voltando a sentar-se. – Queria dizer que certamente não se trata de amor,
que talvez seja apenas um enamoramento fugaz. Mas, no fundo, não é isso, pelo menos não é só isso.
– E então? – indagou ele. – Que mais é?
– Receio não saber explicar-lhe. Não é fácil sabermos o que sentimos, Horacio. Há correntes que
se cruzam, correntes subterrâneas, forças contraditórias que se misturam e confundem.
– Meadas – murmurou o amigo.
– Meadas?
– Sim, meadas. Como as que ajudávamos as nossas mães ou as nossas avós a desenredar. É claro
que não é fácil sabermos o que sentimos, Prudencia, sobretudo quando os sentimentos são intensos,
se não mesmo contraditórios. A natureza humana não é simples.
A bibliotecária aceitou outra fatia de queijo.
– De certo modo – confessou –, creio que estou aborrecida com ele.
– Parece-me muito natural – respondeu o amigo. – O orgulho é um dos grandes nós da meada.
– Eu não sou orgulhosa – protestou ela, incomodada com a ideia de ser vista como uma meada.
– Obviamente que não, minha amiga, claro que não. E que me diz do amor-próprio?
A bibliotecária meditou cuidadosamente sobre a pergunta.
– É possível – reconheceu.
Horacio Delàs sorriu para si e entregou-se à tarefa de descascar o queijo.
– Então, chamemos-lhe amor-próprio. Sentiu-se rejeitada, e isso, como é natural, é doloroso.
Embora, se não me engano, não tenha chegado a ser rejeitada, pois não?
– Não – respondeu ela, momentaneamente animada.
– Mas, mesmo assim, tem a certeza de que ele não nutre qualquer sentimento por si?
A bibliotecária refletiu antes de responder. Lá fora, do outro lado das janelas, um céu baixo e
cinzento cobria a aldeia.
– Não creio que possa garantir tal coisa – suspirou. – O que posso dizer é que, mesmo que tais
sentimentos existissem, ele nunca permitiria que se transformassem em algo profundo. Descobri que
há uma razão muito mais forte do que eu poderia imaginar. Uma razão tão determinante que não se
pode dizer que tenha que ver com ele, fazendo antes parte dele. Sabe o que quero dizer? Talvez se
sinta atraído por mim, Horacio, talvez não. Mas, ainda que sentisse, não deixaria que isso fosse mais
longe e, provavelmente, teria razão ao agir assim, porque talvez não funcionasse.
– Razão e vontade – murmurou o amigo. – Não consegue compreender, pois não? É só sentimento.
A menina Prim mudou de posição na cadeira. Não queria voltar a falar de razão e sentimentos,
não desejava ser de novo acusada de sentimentalismo, não tinha a menor intenção de iniciar outra
longa e entediante discussão sobre o assunto. Como se tivesse adivinhado os pensamentos da
convidada, Horacio Delàs perguntou:
– Alguma vez pensou no que teria acontecido se as coisas tivessem corrido como esperava? Se,
enfim, ele se tivesse apaixonado por si.
A bibliotecária confessou que não se detivera em tal ideia.
– Certamente, teria iniciado uma relação que desembocaria em casamento muito antes do que
pensa.
A menina Prim semicerrou as pálpebras, decidida a imaginar a cena.
– E então? – perguntou, aparentemente satisfeita com o que vislumbrara.
– E então? Minha querida Prudencia, casar com um homem como ele significa casar
radicalmente.
– Que quer dizer com isso de casar radicalmente?
– Quero dizer, casar realmente, casar até à morte. Nada de divórcio, minha amiga, é isso que
quero dizer.
A bibliotecária bebeu, distraída, outro gole de vinho. A ideia de ser amada por alguém até ao dia
em que morresse parecera-lhe sempre comovedora, mas, ao mesmo tempo, inquietava-a
profundamente e, verdade seja dita, provocava-lhe um certo enjoo.
– Bem – disse, cautelosamente –, nada de divórcio para ele. Mas nada me impediria de, se as
coisas não corressem bem, me divorciar, certo?
– É verdade – disse o amigo –, nada a impediria. Mas a Prudencia é uma pessoa honesta. Acharia
correto aceitar um compromisso como este, sabendo que o seu nível de entrega não é, nem por
sombras, semelhante ao dele? Sentir-se-ia bem conhecendo essa diferença? Poderia olhá-lo
lealmente nos olhos sabendo que, em caso de naufrágio, iria abandonar o barco num salva-vidas e ele
não se permitiria deixar o convés?
A menina Prim, que nunca ponderara tal ideia, teve de confessar que não se sentiria bem.
– Mas não é só isso, Prudencia. Conseguiria seguir com a sua vida com a consciência de que,
apesar do divórcio, haveria alguém que se consideraria casado consigo, até ao último segundo da sua
existência?
Atraída e, ao mesmo tempo, assustada com a terrível beleza daquela imagem, a bibliotecária
aceitou também que havia que levar em conta esse ponto de vista.
– De qualquer modo – acrescentou, com nostalgia –, nem sequer poderia divorciar-me. Conheço-
o suficientemente bem para saber que se recusaria a contrair um casamento civil, pelo que, na
realidade, eu nem sequer teria a opção. Podia abandoná-lo, claro, mas será que isso alteraria as
coisas? Sentir-me-ia sempre ligada a ele, porque saberia que ele se teria considerado sempre unido a
mim.
Horacio Delàs sorriu, enquanto tirava um havano do bolso de cima do casaco.
– Incomoda-a que fume, querida?
Como mandava a sua férrea educação, a menina Prim garantiu que não a incomodava de modo
algum.
– Mas nunca compreendi que prazer pode haver em fumar um charuto – disse, a sorrir. – Tem um
aroma demasiado intenso. Porque não fuma cachimbo? É extremamente elegante e cheira muito
melhor.
O anfitrião acendeu a havano, aspirou e olhou para a convidada através do fumo.
– Porque o cachimbo exige um compromisso, Prudencia, o cachimbo exige constância, fidelidade
e compromisso. De certo modo, e para que entenda melhor, o havano está para o romance como o
cachimbo está para o casamento.
A bibliotecária desatou a rir, enquanto olhava afetuosamente para o amigo.
– E então? – inquiriu este, de repente. – Para onde irá?
– Para Itália, já lho disse.
– Mas mantém essa ideia? Pensava que tinha sido uma resposta irrefletida. Não acredita nessa
história de que é necessário viver em Itália para completar a formação, correto?
Um pouco perturbada devido ao cheiro intenso do havano, mas absolutamente decidida a não o
deixar transparecer, a menina Prim pareceu perder-se, por instantes, em pensamentos.
– Não, não acredito – disse, por fim. – Não vou à procura de formação, Horacio. Aquilo que
procuro é realização, procuro perfeição e beleza.
– Compreendo. E acha que a encontrará em Itália?
A bibliotecária levantou-se do cadeirão e aproximou-se de uma das janelas. O jardim estava
coberto por um intenso manto branco, no qual só os ramos das velhas árvores sobressaíam como
traços escuros e duros pintados a carvão.
– Não sei – suspirou. – Não pense que não tenho consciência de que talvez não exista o que
procuro, de que talvez nunca o encontre, mas, apesar disso, será que existe no mundo um lugar mais
cheio de beleza do que Itália?
Apercebendo-se subitamente da crescente palidez da convidada, Horacio Delàs apagou o havano
e olhou-a com indissimulável afeto.
– Quero que saiba que gosto muito de si, querida, e que sentirei profundamente a sua falta.
Comovida, a menina Prim aproximou-se do amigo, sentou-se no braço do cadeirão e segurou
numa das mãos dele entre as suas.
– Não teria conseguido adaptar-me a este lugar, não fosse o Horacio. Não teria conseguido
compreender o pouco que consegui compreender sem a sua ajuda, o seu cavalheirismo e a sua
companhia. Não tenho palavras para a minha gratidão, Horacio.
– Que disparate! – respondeu ele, tentando ocultar a emoção com um enérgico passou-bem. E,
após um longo silêncio, acrescentou em voz baixa – Voltará?
Ela também se calou antes de responder.
– Oxalá soubesse, Horacio. Oxalá soubesse.

Hortensia Oeillet estava a compor um vistoso ramo de rosas, quando, através da montra da loja,
viu chegar a menina Prim. Emocionada, esboçou um sorriso, escondeu rapidamente o bouquet atrás
do balcão e correu para as traseiras, a fim de pôr a água a ferver. Acabava de tirar uma tarte de
cenoura da despensa, quando ouviu o tilintar da campainha.
– Vi-a a atravessar a rua, através da montra – disse, enquanto abraçava a bibliotecária. – A
Virgina, a Emma e a Herminia estão a caminho. Vou pôr a placa na porta, para que ninguém,
absolutamente ninguém, nos incomode. Então, parte dentro de uma semana. Não sabe quanto o
lamento.
A menina Prim seguiu a florista até às traseiras. Na lareira, ardia um lume vivo e a mesinha de
chá, também utilizada para tratar da contabilidade da empresa, estava coberta por uma toalha de
damasco azul e repleta de comida. A bibliotecária sorriu e aspirou o cheiro fragrante da infusão.
– Ah, como vou sentir a falta da velha civilização de San Ireneo! – disse, piscando o olho à
anfitriã.
– É apenas um lanchinho de despedida – respondeu esta, com um sorriso. – Cada uma de nós
contribuiu com uma coisa. A Emma trouxe o seu bolo de limão e essa tarte de queijo cuja receita não
dá a ninguém. A Herminia encarregou-se das sanduíches de foie gras e maçã e dos canapés de
rosbife. A Virginia assegurou o seu chá de Krasnodar; e a tarte de cenoura, as torradas, a manteiga e
o mel foram da minha responsabilidade. É pena não termos também o seu fabuloso bolo de
aniversário.
– Agora é também da senhora Rouan – disse a menina Prim, enquanto se sentava em frente da
lareira –, é um segredo partilhado.
– A sério? A senhora Rouan é uma boa mulher, apesar de ser muito teimosa – comentou a anfitriã,
pousando o bule na mesa.
– Eu também sou.
Enquanto conversavam, começaram a chegar à florista as restantes convidadas. A primeira foi
Emma Giovanacci, apressada e ofegante; depois, foi a vez de Virginia Pille, que envergava um
casaco de pelo de camelo, bem quente e que a deixava quase irreconhecível, e, por fim, chegou
Herminia Treaumont, frágil e sofisticada, qual flor de estufa.
– Ponderou realmente a sua decisão, Prudencia? – inquiriu a diretora do jornal de San Ireneo,
quando, uns minutos depois, as cinco mulheres começaram a comer, partilhando animadamente o
calor da lareira.
Todas olharam com curiosidade para a bibliotecária, enquanto ela engolia à pressa um canapé de
rosbife.
– Tinha razão, Herminia, naquilo que me disse. Depois de o comprovar, não posso ficar aqui.
– Teria preferido não a ter – respondeu esta com um gesto de pesar. – Sei que não fui muito
delicada na tarde em que lhe contei tudo. Pensei muito nisso desde então e acho que a deveria ter
informado antes e em privado. Gostaria de lhe pedir desculpa aqui, diante de todas, e também de que
acreditasse em mim quando lhe digo que em momento algum tive intenção de a magoar.
A menina Prim sorriu e, aproximando-se da mesa, pousou suavemente a mão sobre a da amiga.
– Nunca pensei que tivesse tentado fazer algo semelhante. Devo confessar, agora que estamos a
falar sinceramente, que teria preferido ser informada em privado, mas nunca duvidei da sua
honestidade. Tive, isso sim – disse, com uma piscadela de olho –, muitos ciúmes de si.
– A sério? Não há a menor razão para isso, creia-me. Ele aprecia-me muito, mas não de uma
maneira que a possa preocupar.
Hortensia Oeillet levantou-se da mesa e encheu de novo o bule. O aroma do chá de Krasnodar
voltou a inundar a sala.
– Bem, tudo isso já passou – disse, alegremente, Emma Giovanacci. – E, caso alguém ainda não
se tenha apercebido disso, é evidente que em San Ireneo de Arnois temos um homem que destroça
facilmente corações. Mais interessante é que o faz sem se dar conta disso.
Todas desataram a rir, enquanto enchiam as chávenas.
– Oh, estou convencida de que o sabe – interveio Virginia Pille. – Como poderia não o saber?
Não quero dizer que o faça de propósito, é um verdadeiro cavalheiro, no sentido que ainda aqui
damos a essa palavra. Mas é possível que não se aperceba de uma coisa assim?
A bibliotecária pareceu meditar na pergunta, enquanto hesitava entre comer uma fatia de tarte de
cenoura ou as torradas com manteiga e mel.
– A única coisa que posso dizer a esse respeito – afirmou, depois de se decidir pela tarte – é que
foi sempre primorosamente correto comigo. Não posso dizer que tenha brincado alguma vez, de
forma consciente, com os meus sentimentos nem que tenha tentado aproveitar-se dessa circunstância.
– É claro, Prudencia, naturalmente foi assim que as coisas se passaram. Mas é disso que se trata,
não acha? – perguntou Hortensia.
– A que se refere?
– O fascínio da correção, evidentemente. Haverá algo mais poderoso?
– Acha mesmo? – indagou a menina Prim, interessada. – Eu tinha a impressão de que funcionava
ao contrário. Sempre ouvi dizer que as mulheres se sentiam atraídas pelos canalhas.
Tanto a florista quanto as restantes convidadas negaram rotundamente a afirmação da
bibliotecária com um gesto de cabeça.
– Isso não é verdade, Prudencia, pelo menos se estivermos a falar de mulheres adultas e dotadas
de um certo equilíbrio – afirmou Virginia Pille assim que o bolo de limão lhe permitiu falar. – Claro
que todas sabemos a que se refere. Qualquer jovenzinha sente essa obscura atração de que fala, mas
as coisas mudam quando se torna mulher.
– Não estou absolutamente certa de que seja assim, Virginia – respondeu esta. – Diria muito
sobre a nossa inteligência e a nossa sensatez, mas temo que a realidade seja diferente. O mundo está
cheio de mulheres adultas enredadas em relações terríveis com homens profundamente desonestos.
– A maturidade a que me refiro não é cronológica, Prudencia, e, de qualquer modo, essas
mulheres não constituem a maioria – insistiu a livreira.
Herminia Treaumont serviu-se de outra chávena de chá antes de se acomodar novamente na
cadeira e de se dispor a falar.
– Suponho que parece obsessivo voltarmos sempre à mesma fonte, mas que me diz do duelo entre
o Darcy e o Wickham? Ou do confronto entre o Knightley e o Frank Churchill? Estou convencida de
que Jane Austen é a pedra de toque nesta matéria. Não creio que encontre uma única mulher no
mundo que, depois de ler Orgulho e Preconceito, tome o partido do Wickham e não o do Darcy, ou
que depois de mergulhar em Emma, se sinta fascinada pelo Frank Churchill e despreze o Knightley.
Disse-lhe isto em tempos, lembra-se? Todos os homens detestam o Darcy porque perdem brilho
quando comparados com ele. E todas as mulheres o adoram porque, uma vez redimido do seu
orgulho, é o ideal de um homem: firme de carácter, sincero e honesto.
– E rico, está a esquecer-se disto. Dez mil libras anuais tornam atraente qualquer ser humano –
acrescentou Emma Giovanacci com malícia.
– Tudo isso é verdade – reconheceu a bibliotecária, com os olhos brilhantes. – Mas, infelizmente,
o mundo moderno pensa de outra maneira. São muito poucas as mulheres que leem literatura inglesa
do século XIX e, hoje em dia, ainda menos.
Emma Giovanacci suspirou ao de leve.
– Desviámo-nos da questão, minhas senhoras. A pergunta era: será que o nosso homem tem
consciência de tudo isto, como diz a Virginia, ou trata-se antes de algo a que poderíamos chamar
dano colateral da personalidade?
– Sempre achei que era muito parecido com o pai – interveio Hortensia Oeillet. – Claro que este,
sim, tinha perfeita consciência do efeito que produzia nas mulheres.
A menina Prim parou de comer e olhou para a anfitriã, mostrando-se interessada.
– Conheceu o pai dele?
– Claro – respondeu a florista. – Sou uma das poucas pessoas de San Ireneo que já aqui viviam
antes de a colónia ser criada.
– E como era ele?
– Um verdadeiro canalha, mas tenho de reconhecer que era um canalha atraente e com classe.
Atraente até que nos apercebêssemos de que era um canalha.
A bibliotecária olhou-a com curiosidade.
– Quando diz que era um canalha, refere-se exatamente ao quê?
– A ter o hábito de abandonar a família. Havia sempre uma mulher, embora durasse pouco. Esses
homens são assim. Conheci muitos, nunca mudam. Suponho que amava a mulher com quem era
casado, ela era uma beleza e ainda hoje é bonita; mas isso não o impedia de ter uma aventura com
uma diferente de cada vez que ela dava meia-volta. Foi muito doloroso para ela, muito doloroso.
– E os filhos?
– Sofreram de outra maneira, porque ele era um pai muito afetuoso. Sofreram quando a mãe,
cansada daquele tormento, decidiu não o deixar voltar mais.
A menina Prim viu-se sentada debaixo de uma cameleira, numa noite gelada, ao lado de uma
velha senhora que falava com amargura de ter de escolher entre dois caminhos.
– Então foi isso – murmurou.
– É muito difícil julgar essas situações. Muitas mulheres teriam feito exatamente o mesmo que
ela, mas os filhos adoravam o pai e sofreram muito quando tudo acabou. Ela não cedeu, nunca mais o
deixou entrar na sua vida e também não facilitou o encontro com os filhos. Ele morreu sozinho e
longe de todos.
Herminia Treaumont levantou-se para pôr dois troncos de madeira na lareira.
– Então em que ficamos? – perguntou Virginia Pille, depois de exalar um profundo suspiro. – O
nosso homem tem consciência da atração que desperta ou não faz a menor ideia dos estragos que
causa?
Todas olharam, expectantes, para a bibliotecária, que, com um sorriso, começou a beber o último
gole da sua terceira chávena de chá.
– Diria que não faz a menor ideia – afiançou, com suavidade. – E que é precisamente esse o seu
encanto.
5
A menina Prim não previra quanto lhe iria custar despedir-se das crianças. Se, à chegada, alguém
a tivesse avisado dessa possibilidade, teria sorrido com desdém e seguido caminho. Nunca fora
especialmente propensa a deixar-se seduzir pela ternura que a infância inspira. Não se podia dizer
que não gostasse de crianças, mas fazia parte desse grupo humano que só lhes descobre o encanto
quando se torna pai ou mãe. E que, mesmo quando isso acontece, constata com alívio que as únicas
que lhes despertam interesse e atenção são precisamente os seus próprios filhos. A menina Prim não
era uma dessas pessoas que param na rua para acariciar um bebé, que falam, na fila de um cinema,
com uma criança agarrada à mão da mãe, que devolvem com alegria uma bola de futebol no meio do
bulício de um grupo de alunos. Daí que se tenha surpreendido quando se apercebeu da emoção que
sentia perante a ideia de ter de se separar das quatros crianças com que convivera durante os últimos
meses.
– E nunca mais voltaremos a vê-la? – perguntou, nessa tarde, a pequena Eksi, depois de a
bibliotecária ter acabado de anunciar a sua partida.
Sentados na biblioteca, os quatro miúdos rodeavam a menina Prim com a seriedade de um
conselho de guerra.
Esta fez uma longa pausa, antes de responder.
– Nunca é uma palavra muito exagerada. Quem sabe o que pode acontecer? Talvez voltemos a
ver-nos antes do que pensam, talvez vão a Itália estudar Bernini ou Giotto e nos encontremos lá.
A expressão de desconfiança dos pequenos animou-a a prosseguir.
– Imaginem que vão ver a basílica de S. Francisco. Sabem onde fica?
– Em Assis – respondeu Téseris da velha otomana da biblioteca.
– É isso mesmo – confirmou, alegremente, a bibliotecária –, fica em Assis. Imaginem que vão a
Assis ver os frescos de Giotto. Entram na basílica superior, avançam, impressionados com a beleza
daqueles tetos e paredes cheios de cenas da vida de Il Poverello e, quando estão mais concentrados a
admirar a pintura, ouvem atrás de vocês uma voz conhecida que diz…
– … Nem vos passe pela cabeça tocar neles! – exclamou Deka, com um sorriso travesso.
A menina Prim piscou-lhe o olho, enquanto se preparava para abrir uma lata de bolachas de
maçã. Entrincheirado no lugar do homem do cadeirão, desta vez foi Septimus quem falou:
– Não me parece que possamos ir vê-la a Assis, nós já conhecemos Assis. Fomos lá quando
éramos pequenos.
A bibliotecária reprimiu um sorriso e começou a distribuir as bolachas.
– Acho que nunca mais voltaremos a vê-la – repetiu, com pesar, Eksi, do tapete. – Irá para Itália
viver aventuras e nunca quererá voltar, como fez a mulher de Robert Browning.
A menina Prim riu-se, divertida.
– Não teria tanta certeza disso. Não me parece que a minha viagem tenha alguma coisa que ver
com a da mulher de Robert Browning, que, aliás, se chamava Elizabeth Browning. Ela estava
apaixonada, partiu por amor, lembras-te?
– E a menina também – respondeu a miúda com convicção.
– Eu? – exclamou a bibliotecária, assombrada. – Vou partir por amor? Mas que ideia tão absurda!
Não me vou embora por amor. Porque te ocorreu isso?
– Não foi a mim que me ocorreu, foi ao nosso jardineiro – respondeu a rapariguinha.
– Ouve tudo pela janela da biblioteca – confirmou o irmão mais velho. – De certeza que nos está
a ouvir agora.
A menina Prim lançou um olhar furtivo à janela, para se certificar de que se encontrava
hermeticamente fechada.
– O jardineiro não pôde ouvir uma coisa que não é verdade. A sério que pensam que, se fosse
para Itália por amor, o diria a alguém? Além disso, não se deve bisbilhotar nem contar mexericos,
não é um hábito bonito. Tenho a certeza de que se trata de um engano, certamente não se referia a
mim.
– Referia-se a si – disse Deka, com a firmeza de uma pedra.
A bibliotecária distribuiu uma segunda dose de bolachas, enquanto procurava uma forma de sair
daquele embaraço.
– Como sabes? Por acaso disse o meu nome?
As crianças trocaram olhares eloquentes.
– Se lhe dissermos, ficará zangada com ele? – perguntou Septimus com cautela.
– Claro que não.
Após uma pausa, em que pareceu avaliar a sinceridade da resposta, o rapazinho decidiu-se a
continuar:
– O que ele disse foi: «Ela vai para Itália à procura de um marido.» Ela é a menina, é assim que
lhe chama – explicou.
A menina Prim respirou fundo, mas nada disse. A sala ficou mergulhada numa calma solene,
durante uns minutos. Depois, um barulho na porta fê-los virar a cabeça; os dois enormes cães da casa
entraram, roçaram nos joelhos da bibliotecária e deitaram-se no tapete.
– Ela – murmurou a menina Prim. Depois, levantou a cabeça e dirigiu-se aos miúdos. – Sentirão a
minha falta, quando me for embora?
– Claro que sim, embora só o possamos saber mesmo quando já aqui não estiver – respondeu,
filosoficamente, Septimus.
– Não tivemos pena, quando os outros se foram embora – interveio Téseris, com suavidade. –
Mas eles não eram como a menina.
A menina Prim fixou o olhar no lume. Ardiam-lhe os olhos, era um ardor aquoso e agradável.
Sentia-se reconfortada com a honestidade dos miúdos, a simplicidade com que falavam do que lhes
desagradava e daquilo de que gostavam, a ausência de fingimento que havia nos seus juízos, a falta
daquelas enormes meadas que emaranhavam tão frequentemente as relações dos adultos.
– Ele também gosta de si. Está triste porque se vai embora – declarou Eksi, enquanto acariciava o
longo e abundante pelo de um dos cães.
A bibliotecária sorriu e voltou a contemplar as chamas.
– Certamente também gostava do bibliotecário anterior. Do que ele gosta é que se faça bem o
trabalho, é só isso.
– Ele não gostava do anterior. Batia nos cães.
– A sério? – inquiriu a menina Prim, horrorizada.
Os irmãos confirmaram com um movimento de cabeça.
– Gostaria de ir a Itália consigo – afiançou novamente Eksi. – Poderíamos estudar coisas e a
menina poderia procurar esse marido.
Por instantes, a menina Prim visualizou-se a passear por Florença. Viu-se a entrar na Academia
num passo lento e sonhador, observou-se enquanto admirava, fascinada, o David e imaginou que uma
figura ao seu lado, lhe dizia, num tom trocista, ao ouvido: «Já está preparada para tirar a régua e o
compasso da mala?»
– Não tenho a menor intenção de procurar marido, Eksi, a sério que não – disse num tom áspero,
inquieta perante tal visão.
– Menina Prim – a voz de Téseris chegou com a textura de um sonho –, eu acredito que
voltaremos a vê-la.
A bibliotecária afagou a cabeça das três crianças sentadas no tapete e olhou com afeto para a que
estava reclinada na otomana.
– Acreditas mesmo? – perguntou com um sorriso.
A pequena respondeu com uma inclinação de cabeça.
– Então, tenho a certeza de que voltaremos a ver-nos. A certeza absoluta.

O bilhete de Lulú Thiberville foi uma surpresa para a menina Prim. A notícia de que a velha
senhora se queria despedir dela deixou-a num inquietante desassossego. Era uma personalidade
imponente, tivera plena consciência disso na tarde em que a conhecera. Ora, a menina Prim pensava
que, tal como as forças da natureza, as personalidades imponentes eram perigosas e imprevisíveis.
Enquanto atravessa San Ireneo, para se dirigir até à casa dos Thiberville, distribuiu sorrisos e
cumprimentos por comerciantes e residentes. Todos lhe responderam afetuosamente. Cumprimentou o
talhante, com quem aprendera a cozinhar o peru de Natal. Sorriu ao sapateiro, que, nos últimos
meses, cuidara com esmero dos seus sapatos. Trocou umas palavras com a dona da papelaria, que lhe
reservava, todos os meses, um pacote do seu papel de carta artesanal, agora que adquirira o hábito
de trocar correspondência. Entrou no consultório do médico, a quem agradeceu o xarope que
receitara, umas semanas antes, às crianças. Despediu-se das donas da retrosaria, onde começara a
comprar a roupa interior, agora que sabia que, em San Ireneo de Arnois, esses artigos eram de
qualidade idêntica ou superior aos da cidade.
O vestíbulo do velho casarão onde Lulú Thiberville vivia cheirava a alpista e a medicamentos,
mas também ao bolo e às torradas que haviam sido confecionados na cozinha para receber a
bibliotecária. Esta encontrou a senhora deitada num divã, junto da janela. Ao seu lado, em cima da
mesa de pé de galo, estava colocado um pesado serviço de prata para o chá. A menina Prim
aproximou-se e sentou-se num escabelo pequeno e fofo.
– Pelo amor de Deus, criatura, sente-se numa cadeira! – exclamou a velha senhora, numa voz
fraca. – Ainda fica com dores de costas.
A bibliotecária assegurou que estava muitíssimo cómoda no assento. Nunca dobrava as costas,
aprendera a evitá-lo em criança.
– Reparei nisso, sim. Senta-se corretamente, com as costas direitas e na borda da cadeira. É um
alívio pensar que ainda há mulheres que se sabem sentar. Fico doente ao ver todas essas criaturas
que andam pela rua de costas dobradas, o peito metido para dentro e os ombros virados para a frente.
A culpa é das escolas modernas. Conte-me, menina Prim, aprendeu a sentar-se assim numa escola?
A bibliotecária explicou que não fora a escola a responsável pela sua disciplina em matéria de
postura corporal, mas sim uma velha tia da sua mãe que a ensinara a andar, desde criança, com livros
na cabeça e a sentar-se com a delicada rigidez de uma rainha egípcia.
– Antes, ensinavam isso nas escolas. Claro que elas eram, então, um lugar onde as crianças
aprendiam coisas. Hoje, são fábricas de indisciplina, viveiros de monstros, ignorantes e mal-
educados.
A menina olhou, preocupada, para a velha senhora.
– Não afirmaria isso de uma forma tão taxativa – murmurou.
– É evidente que não o faria, sou eu quem o diz. Conheceu, por acaso, as velhas escolas?
A bibliotecária confessou docilmente que não.
– Então, não pode comparar. O que diz não passa de juízos bem-intencionados. Ora, as pessoas
que emitem juízos otimistas, como parece ser o seu caso, não só não ajudam a melhorar as coisas,
como contribuem para as agravar. Transmitem a falsa perceção de que tudo está a correr bem,
quando, não se iluda, o mundo vai totalmente mal. Mas, explique-me – perguntou, ao mesmo tempo
que fazia sinal à cozinheira para que deixasse duas travessas numa mesinha de apoio, junto à mesa de
pé de galo –, porque nos deixa? Vai-se embora por causa daquele assunto de que falámos em casa da
Hortensia?
A menina Prim confirmou com um movimento de cabeça. Esperava não ter de voltar a aprofundar
o assunto. Ao longo da última semana, tivera a sensação de que não fizera outra coisa senão
despedir-se de pessoas que tentavam explorar, uma e outra vez, essa questão. Como se adivinhasse
os seus pensamentos, a senhora voltou a falar.
– Não se preocupe, não lhe vou pedir que me faça um relato. Esta aldeia é pequena, suponho que
não julgará que preciso de fazer perguntas diretas sobre as coisas para me inteirar delas.
A bibliotecária, que começara a servir o chá, estremeceu.
– Tinha esperança de que os meus assuntos íntimos não tivessem sido divulgados. Talvez tenha
sido ingénua.
A velha senhora sorriu com ironia e pegou na chávena que a convidada acabara de lhe servir.
– Não é ingénua. É apenas jovem.
– Não será a mesma coisa?
– Antes, era, deveria sê-lo. Claro que hoje em dia todas sabem.
A menina Prim observou, muito séria, o rosto da velha senhora.
– Que quer dizer com isso?
– Que a juventude deveria ser tão ingénua quanto a nossa natureza nos permite, criança. O jovem
ainda caminha com uma certa inocência, ainda olha para o mundo com surpresa e ilusão. Mais tarde,
com o decurso do tempo, descobre que as coisas não são como imaginava e vai mudando. Então,
perde essa luminosidade, perda essa inocência, o olhar turva-se-lhe e escurece. Num certo sentido, é
muito triste, mas, noutro, inevitável, porque são precisamente essas dores que conduzem à
maturidade.
A bibliotecária pegou numa torrada com manteiga.
– E acha que isso mudou?
– Com certeza que mudou. É preciso ser lunático ou néscio para não se perceber que mudou.
Hoje, os jovens prolongam a infância para além do que cabe cronologicamente, são imaturos e
irresponsáveis numa idade em que já não o deveriam ser. Mas, ao mesmo tempo, perdem muito
depressa a candura, perdem a inocência e a frescura. Achará estranho o que vou dizer, mas
envelhecem depressa.
– Envelhecer? Que ideia tão extraordinária!
A velha senhora bebeu um gole de chá e, com um gesto, indicou à convidada que lhe servisse um
pedaço de bolo.
– O ceticismo foi sempre considerado uma doença da maturidade, Prudencia, mas, pouco a
pouco, deixou de o ser. Todas essas crianças cresceram na ignorância dos grandes ideais, daqueles
que forjaram gerações antigas ao longo dos séculos e as tornaram fortes. Ensinaram-nos a olhá-los
com desdém ou a substituí-los por algo que não lhes assenta bem e os desilude. Desse modo, matam
o que é mais valioso, eu diria mesmo a única coisa verdadeiramente valiosa, que a juventude tem em
comparação com a maturidade. É terrível falar assim, não julgue que não me dou conta.
A menina Prim perguntou a si própria como poderia uma mulher de noventa e cinco anos, que
passava grande parte do tempo deitada num velho divã, fazer juízos tão taxativos sobre o sistema
escolar e os defeitos dos jovens. Antes que pudesse voltar a falar, a senhora inclinou-se para a frente
e sorriu, com astúcia.
– Acha que sou demasiado velha para conhecer o mundo moderno e os seus problemas.
– Claro que não – mentiu a bibliotecária.
– Não seja mentirosa, criança. Em parte, tem razão, mas há algo que deve levar em conta. Por
aqui passa um grande número de pessoas diferentes, gostam de visitar a aldeia, vêm à colónia como
se viessem a um museu. E eu sou uma mulher observadora, querida, na minha idade, pouco mais se
pode fazer do que observar.
A menina Prim esboçou um protesto que a velha senhora se limitou a ignorar.
– Contudo, isso também não basta; nunca nos devemos fiar unicamente da nossa própria
experiência. A experiência de uma única vida humana é um campo de estudo estreito, mesmo que se
trate de uma vida longa como a minha. É fácil enganarmo-nos, Deus sabe como é fácil.
Lulú Thiberville fez uma pausa, como se lhe faltasse o ar, e, depois, continuou.
– Porque, no fundo, é sempre o mesmo, sabe? Trata-se sempre do mesmo. Os velhos erros
gigantescos que emergem, uma e outra vez, das profundezas, quais monstros à espreita. Se
pudéssemos sentar-nos à janela e ver passar a história humana, sabe o que veríamos?
Levemente inquieta, a menina Prim garantiu que não.
– Então, eu digo-lhe. Veria uma cadeia imensa de erros repetidos através dos séculos, eis o que
veria. Contemplá-los-ia cobertos de diferentes roupagens, ocultos atrás de diversas máscaras,
camuflados sob inúmeros disfarces, sempre os mesmos. Não, não é fácil darmo-nos conta disso,
obviamente que não. É preciso estarmos muito despertos e termos os olhos bem abertos para
detetarmos essas velhas e malignas ameaças que regressam uma e outra vez. Pensa que desvairo?
Não, querida. Não consegue ver isso, a maioria das pessoas já não é capaz. Mas está a escurecer e
sinto a noite cair. Que julga que essas pobres crianças estão a receber nas escolas?
A bibliotecária pestanejou, ao mesmo tempo que fazia um esforço por desvendar o discurso da
velha senhora.
– Suponho que estejam a receber conhecimentos.
Lulú Thiberville endireitou-se com uma agilidade inesperada.
– Está enganada. O que recebem é sofismo, sofismo pestilento e podre. Os sofistas ocuparam as
escolas e trabalham em prol da sua causa.
– Não é um pouco pessimista? – indagou, com o maior cuidado, a menina Prim, enquanto olhava
dissimuladamente para o relógio.
A velha senhora observou-a em silêncio.
– Pessimista? De modo algum, minha querida. Mas que pode fazer uma sentinela senão avisar do
que observa? Não há sentinelas pessimistas ou otimistas, Prudencia. Há sentinelas despertas e
sentinelas adormecidas.
A bibliotecária suspirou e olhou pela janela. Não entendia de todo o alcance das meditações da
senhora Thiberville. Para quem quisesse aventurar-se a descobrir-lhe a personalidade, aquela mulher
requeria mais do que uma tarde de atenção. Era demasiado densa para um chá com torradas, era
escura e misteriosa como uma chávena de chocolate quente.
– Com que então o seu próximo destino é Itália – disse, mudando bruscamente de assunto e
enchendo de novo a chávena da convidada. – Para que zona de Itália vai?
A menina Prim confessou que ainda não lhe sabia responder. Claro que sabia qual seria o
primeiro destino: decidira começar por Florença; poderia deixar de o fazer? Passaria parte do
inverno em Florença, faria da cidade o seu quartel-general e, a partir daí, conceberia um plano para
conhecer o país, os seus recantos, para percorrer os seus palazzi, as suas villas e as suas igrejas,
para se embeber da beleza por que tanto ansiava. Julgava saber onde terminaria a estada: Roma. Mas
entre uma cidade e a outra? A menina Prim não podia dizer para onde iria. E, apesar de não o saber
ou talvez precisamente por não o saber, sentia-se extraordinariamente feliz.
Lulú Thiberville ouviu pacientemente todas aquelas explicações. Só depois de o ter feito fechou
os olhos, recostou-se melhor no divã e disse:
– Tem de ir a Nórcia.
A bibliotecária cruzou as pernas e olhou de novo, com resignação, para a janela. Desde que
anunciara que partiria para Itália, toda a aldeia de San Ireneo se dedicara a dizer-lhe onde deveria ir
e o que não podia deixar de ver.
– Nórcia – repetiu.
– A terra natal do Benito – acrescentou a velha senhora no mesmo tom com que mencionaria um
amigo de há muito. E, a seguir, acrescentou: – É lá que vivem uns monges com que simpatizo.
A menina Prim guardou um silêncio contido. A ideia de que Lulú Thiberville se preparava para a
encarregar de uma missão que a obrigava a deslocar-se a um lugar onde não pensara ir causou-lhe
uma intensa sensação de mal-estar. Sempre achara que era uma desconsideração utilizar a idade
como pretexto para obrigar os outros a determinadas coisas. Ao fim e ao cabo, ela tinha os seus
próprios planos, os seus próprios deveres e obrigações. Não tinha a menor intenção de ir visitar
monges com quem Lulú Thiberville resolvera simpatizar, era evidente que não tinha.
– Não se precipite – disse então a velha senhora com aquele ar de abelha-mestra que a
bibliotecária tanto admirara no primeiro encontro. – Não pretendo encarregá-la de uma missão no
coração de Itália. Quer ter a gentileza de me trazer esse livro verde que está na estante? E, depois,
aquele vermelho em cima do piano?
A menina Prim foi buscar os dois volumes, que eram afinal dois enormes álbuns de fotografias. A
anfitriã pegou neles com as mãos magras e começou a voltar as páginas. Passados cinco minutos, que
pareceram quinze, encontrou o que procurava.
– Aqui está – disse. E indicou à convidada um conjunto de fotografias que esta examinou
atentamente.
– Parece um lugar muito belo – murmurou – e também um belo mosteiro.
– San Benedetto – confirmou a dama, com um suave sotaque italiano.
– San Benedetto?
– Exatamente. Não lhe parece música?
– Na verdade, sim – respondeu a bibliotecária, enquanto examinava as fotografias. – Mas esses
monges… que estranho, pensei que seriam todos muito velhos.
– Sabe pouco da vida – murmurou Lulú Thiberville com regozijo. – A tradição não tem idade,
criança. A modernidade é que envelhece. Antes que esqueça: deve descer à cripta.
– Porquê? – indagou a menina Prim, a quem a perspetiva de descer a qualquer tipo de cripta não
entusiasmava de modo algum.
A velha senhora olhou-a com a severidade de uma professora perante uma criança que se
empenha em não compreender e em relação à qual começa a suspeitar de que talvez não valha a pena
ensinar.
– Veja isto – disse, depois de ter passado várias páginas do álbum. – Não lhe parece belo?
A bibliotecária dirigiu o olhar para as fotografias e concordou. Nórcia possuía uma sóbria praça
coroada por uma estátua de S. Bento. Num dos extremos, erguia-se uma basílica homónima com uma
fachada branca onde sobressaía uma rosácea. «Século XIII, provavelmente», registou a metódica
mente da menina Prim. Noutra das imagens via-se, entre as montanhas, uma pradaria imensa e deserta
onde milhares de papoilas, girassóis, violetas e outras flores silvestres lembravam um maravilhoso
tapete natural.
– Que maravilha! – exclamou, admirada. – Parece um planalto.
– É uma comparação muito apropriada, uma vez que é um planalto – respondeu a anfitriã. – Na
aldeia, há um hotel encantador onde pode ficar alojada, o Palazzo Seneca, gerido por uma família
adorável. É perfeito para si. O melhor que lá se pode fazer é descansar, observar a vida e conviver
com a gente local. Não sabe quão inspirador é cruzarmo-nos com o povo que se dirige para o
mercado, cumprimentar os aldeões, ver os monges a cultivar a terra e a entoar cânticos gregorianos
entre as paredes da cripta. Estão a restaurar um segundo mosteiro. Talvez precisem de ajuda.
– Nórcia – repetiu, em voz baixa, a menina Prim. – Quem sabe?
Lulu Thiberville estudou-a com renovada atenção.
– Acho que lhe fará muito bem, Prudencia. Abrandará essa dureza modernista.
A bibliotecária riu-se, enquanto mexia os dois torrões de açúcar mascavado que costumava pôr
no chá.
– Dureza modernista? Que quer dizer com isso?
A velha senhora endireitou-se para observar melhor a convidada.
– Olhe para mim, criança, e diga-me o que vê. Talvez uma velhinha doce?
Sorridente, a menina Prim negou com um movimento de cabeça.
– Não diria tanto.
– E faria bem. Sou uma mulher dura. Sabe porquê? Sou dura porque sou velha. Agora olhe para
si. Que vê?
O sorriso desapareceu lentamente do rosto da bibliotecária.
– Não sei, é difícil julgarmo-nos a nós próprios.
– Então eu digo-lhe: uma mulher jovem e dura.
– Não sei em que se baseia para fazer essa afirmação – respondeu, com aspereza, a menina Prim,
que nunca se considerara dura.
– Não se ofenda, criança, talvez me tenha explicado mal. Não quis dizer que a menina,
concretamente, seja dura. O que quero dizer é que as mulheres modernas o são, em maior ou menor
medida.
A bibliotecária abriu e fechou, nervosamente, o fecho éclair da carteira, antes de replicar. Tendo
em conta a última explicação, talvez não se pudesse dizer que tivesse sido insultada pessoalmente,
mas fora-o de forma geral. E, quer fosse de um modo pessoal ou genérico, o seu sentido de honra
obrigava-a a protestar. Lulú Thiberville ouviu-a em silêncio, com um leve sorriso nos lábios, após o
que voltou a falar.
– Está então a questionar-se em que me baseio para fazer tal afirmação, não é?
A menina Prim confessou que, de facto, assim era.
– Baseio-me na ânsia, minha filha. Pura e simplesmente na ânsia.
– Na ânsia? Ânsia de quê?
A velha senhora fez uma pausa impercetível antes de continuar e, quando voltou a falar, a sua voz
soou como se nunca mais tencionasse calar-se.
– A ânsia que todas vocês mostram de demonstrar o vosso valor, de assegurar que podem
conseguir tudo. A ânsia de triunfar e a ânsia, ainda maior, de não fracassar; a ânsia de não serem
consideradas menos, mas mais, só por serem exatamente o que cada uma julga ser ou, melhor, o que
vos fizeram crer que são. A ânsia inexplicável de que o mundo reconheça como mérito o simples
facto de serem mulheres. Ah, mas está a ficar zangada comigo, não é?
A bibliotecária, de lábios cerrados e os nós dos dedos quase brancos, não respondeu.
– Evidentemente que está zangada. E, no entanto, basta ouvi-la falar do homem para quem
trabalha para perceber que, em parte, aquilo que digo é verdade. Porque parece tão zangada? Porque
compara e regista tudo, como se a vida se medisse com régua e esquadro? Porque tem tanto medo de
perder o seu lugar, de ficar para trás? Porque se defende tanto, querida?
A menina Prim olhou para a velha senhora sem saber o que dizer. Tentou acalmar-se, enquanto
refletia na melhor maneira de responder ao que acabava de ouvir. Enquanto o fazia, a voz de Lulú
Thiberville, áspera e cansada, voltou a ouvir-se.
– Diz que quer encontrar a beleza, mas não será assim que o irá conseguir, minha amiga. Não o
conseguirá enquanto cuidar de si como se tudo girasse à sua volta. Será que não percebe? É
exatamente ao contrário, justamente ao contrário. Não tem de cuidar de si, tem de ser ferida. O que
tento explicar-lhe, criança, é que enquanto não permitir que essa beleza que procura a fira, enquanto
não permitir que a quebre e a derrube, não a conseguirá encontrar.
A bibliotecária levantou-se, enquanto sacudia bruscamente duas ou três migalhas de bolo da saia
de tweed. Olhou friamente para a velha senhora deitada no divã, que inclinou a cabeça em jeito de
silenciosa despedida, e saiu da sala e da vida de Lulú Thiberville, firmemente decidida a nunca mais
regressar.
6
Nos últimos dias da sua estada em San Ireneo de Arnois, a menina Prim tentou evitar, tanto quanto
possível, o homem do cadeirão. Não sabia se era imaginação sua, mas, durante aqueles últimos
momentos de malas, pacotes e despedidas, tinha a sensação de que também ele se esquivava, com
idêntico zelo. O tempo tornara-se especialmente frio, como sempre acontecia em finais de fevereiro,
e os campos gelados davam à casa e ao jardim o aspeto de uma paisagem pictórica inerte. Na manhã
da sua partida, a bibliotecária estava no quarto, a dar uma última olhadela às malas. Não faltava
nada. Os escassos livros que trouxera, as roupas e sapatos, um ou outro objeto pessoal e os inúmeros
presentes recebidos nas últimas horas de amigos e vizinhos de todos os cantos da aldeia. A menina
Prim contemplou a volumosa bagagem com um sorriso triste. Depois de abrir e fechar as gavetas da
cómoda e das mesas de cabeceira, para verificar se se esquecera de alguma coisa, endireitou-se e
olhou, com nostalgia, para a janela. Precisamente nesse instante, ouviu um ruído surdo que a
sobressaltou; uma bola de neve acabava de ser atirada contra o vidro. Surpreendida, abriu a porta da
varanda e espreitou para o jardim. O vento cortava a pele e o vento infiltrava-se na roupa. Lá fora,
agasalhado até aos olhos, estava o homem do cadeirão.
– Desce? – gritou ele.
– Se desço? Estamos a vários graus abaixo de zero, não é um dia muito agradável para passear
pelo jardim.
O homem do cadeirão sorriu ou pelo menos assim deduziu a bibliotecária, ao constatar que os
seus olhos, única parte visível do rosto, se semicerravam.
– Acho que é um dia perfeito, porque, entre outras coisas, para este jardim e para si não vai haver
outro melhor. Não terei o prazer de os ver juntos, a partir de hoje.
– Isso é verdade – murmurou a menina Prim.
– Que disse? – voltou ele a gritar.
– Disse que isso é verdade – repetiu ela. – Mas o jardineiro virá buscar-me dentro de meia hora,
pelo que não tenho muito tempo para falar.
O homem do cadeirão aproximou-se de casa, até ficar por baixo da janela da empregada.
– Vá lá, Prudencia, vai mesmo dizer-me que não tem tempo para se despedir de mim?
Com os cotovelos apoiados no parapeito, ela pareceu meditar na pergunta, por um momento.
– Tem razão. Deixe-me só vestir um casaco, já desço.
Enquanto descia as escadas rapidamente, a bibliotecária apercebeu-se do nervosismo que se
apoderara de si. Embora lhe custasse reconhecê-lo, ainda não conseguira aplacá-lo. Apesar daquelas
noites de reflexão, apesar das conversas, dos conselhos e das confidências, apesar das lágrimas
derramadas, das recriminações e da pedagogia sobre quão absurdo fora aquele enamoramento
repentino, não conseguira silenciá-lo. Não conseguira aplacar aquela agitação, aquele acidente
violento que arrastara para o fundo do oceano o seu refinado, belo e tão cultivado equilíbrio.
– Deveria fazer mais exercício, está muito congestionada.
– Oh! – retrucou ela, perguntando-se pela enésima vez porque seria aquele homem incapaz de
distinguir sinceridade de inconveniência.
O jardim estava frio, um frio intenso e desolador, quando ambos começaram a caminhar rumo à
parte sul, onde num velho caramanchão repousavam ferramentas de jardinagem, vasos vazios,
utensílios inúteis de todas as formas e tamanhos, uma mesa pintada de branco e quatro cadeiras de
jardim arrebicadas, que já existiam lá em casa há mais anos do que qualquer pessoa se recordava.
– Porque não arranja este caramanchão? – inquiriu a menina Prim, sentando-se numa das
cadeiras.
– Porque gosto dele assim.
– Porquê? – Algures, dentro de si, a bibliotecária ouviu o rumor de sabres.
Ele olhou-a em silêncio, como se ponderasse se se tratava de uma pergunta inocente ou de uma
provocação.
– Porquê… o quê?
– Porque é que só gosta das coisas velhas?
– Isso não é inteiramente verdade. Há coisas novas de que gosto.
– Tem a certeza? – perguntou ela. – Diga-me uma.
O anfitrião exibiu aquele sorriso que a menina Prim já aprendera a interpretar.
– De si, por exemplo.
Ela suspirou, com simulado desalento.
– Não sei se devo tomar isso como um elogio. Alegra-me que não me considere velha, mas não é
assim tão claro que me sinta lisonjeada por ser considerada uma coisa.
O homem do cadeirão desatou a rir e, ao fazê-lo, a bibliotecária sentiu que os olhos marejarem-
se de lágrimas. Baixou a cabeça e, quando a levantou, o olhar cruzou-se com o dele.
– Lamento – disse. – A ideia de partir entristece-me.
– A sério?
A menina olhou-o com um misto de censura e de surpresa.
– Claro que sim – insistiu com o olhar brilhante de emoção.
– Alegra-me sabê-lo – replicou ele –, porque também lamento que se vá embora. Foi uma
adversária magnífica, além de uma grande companheira. Sentirei a falta das nossas discussões.
A bibliotecária baixou os olhos e sorriu com malícia.
– Não seja mentiroso. Sabe perfeitamente que não sou uma adversária à sua altura. Sempre
venceu, nas nossas discussões, sempre retorceu os meus argumentos e sempre teve a virtude de me
fazer perder as estribeiras.
– A virtude? – indagou ele, com um sorriso trocista.
– A virtude – insistiu ela, olhando-o fixamente. – Quando cheguei aqui, tinha dificuldade em
aceitar um ponto de vista diferente do meu. Receio que nisso seja parecida consigo.
– Pois, quanto a mim, em compensação, devo reconhecer que, à força de ataques, me ajudou a
compreender certas coisas.
Resistindo à tentação de responder que nunca atacara ninguém, a menina Prim endireitou-se
suavemente na cadeira e inclinou-se sobre a mesa, como se se dispusesse a ouvir algo muito
interessante.
– Como por exemplo?
– Como tudo aquilo a que chama delicadeza, suponho.
– Isso é uma verdadeira surpresa para mim – afiançou ela, satisfeita. – Tinha a impressão de que
desprezava a delicadeza.
– Não é verdade.
– Pensava que a considerava, como hei de dizer, uma qualidade fraca.
– Considero-a um atributo feminino – A bibliotecária esboçou uma careta. – Mas isso não quer
dizer que não possa, ou até que não deva, estar presente no caráter de um homem.
– Mas não está no seu.
– Não, não está no meu. Eis porque foi muito enriquecedor conhecê-la.
Ambos permaneceram em silêncio durante alguns minutos, enquanto viam a neve cair através das
grandes janelas do velho caramanchão. Depois, a menina Prim voltou a falar.
– Queria agradecer-lhe.
– O quê?
– Nada e tudo. Tenho a sensação de que devo fazê-lo, de que certamente me aperceberei, em
algum momento, de que deveria tê-lo feito, e não quero, quando isso acontecer, sentir que perdi a
oportunidade. Compreende-me?
– De modo algum – replicou ele, calmamente.
A bibliotecária contemplou-o, desanimada, e questionou-se como era possível que no mesmo ser
humano coexistisse uma inteligência tão brilhante com aquela exasperante, férrea e obtusa
insensibilidade. Na sua opinião, o que acabava de dizer era perfeitamente compreensível. Metade da
humanidade, se não a humanidade inteira, sentira, num dado momento, o impulso, a intuição, a
convicção de que deveria agradecer algo a alguém. Porém, muitos haviam permitido que esse
agradecimento lhes secasse nos lábios, e a menina Prim não desejava ser um deles.
– É uma pessoa estranha. Carece totalmente de empatia – disse.
– E, no entanto, aprecia-me – respondeu ele.
– A vaidade é outro dos seus grandes defeitos – prosseguiu ela, sem se alterar. – Eu diria com o
devido respeito, que essa, sim, é a verdade.
O homem do cadeirão olhou-a com um sorriso.
– Mas, apesar disso, somos amigos – afiançou, olhando-a nos olhos.
– Somos – respondeu ela, suavemente. E, depois, num daqueles acessos emotivos que a sacudiam
de vez em quando e a levavam a dizer coisas de forma abrupta e quase sem respirar, acrescentou: –
Acredita realmente que é impossível o amor entre duas pessoas diferentes?
Ele levantou-se e fechou a porta do velho alpendre, para impedir que a neve entrasse, impelida
pelo vento.
– Nunca disse isso – respondeu lentamente, enquanto se sentava. – Não, não acredito que seja
impossível. Diria que é muito comum.
– Mas o senhor – balbuciou a menina Prim, perguntando-se que estranha imprudência se
apoderara dela para consentir em dizer algo semelhante. – O senhor e a Herminia…
– Terminámos a relação por sermos muito diferentes? – O homem do cadeirão abanou
vigorosamente a cabeça. – Não compreendeu, Prudencia. Não compreendeu o que tentei explicar-lhe
há dias, sobre esse assunto.
– Talvez não se tenha explicado bem – replicou ela friamente, incomodada com a ideia de ser
considerada incapaz de compreender fosse o que fosse. – Talvez tenha sido demasiado críptico.
– Então, vou explicar de forma muito simples.
A menina Prim questionou-se se, em defesa da própria dignidade, não deveria protestar perante
aquela condescendência pedagógica, mas, como geralmente acontecia nas conversas com o chefe, a
curiosidade venceu sem qualquer margem para dúvidas a dignidade.
– Estou a ouvir.
– Imagine, por instantes, que duas pessoas muito diferentes, como a Prudencia e eu, tinham
decidido ir juntas a São Petersburgo. Está a seguir-me?
– Perfeitamente.
– Concordará que, provavelmente, discutiríamos durante todo o caminho.
– Muito provavelmente.
– Eu quereria ficar alojado em mosteiros e conversar com velhos staretz, enquanto a Prudencia
insistiria em reservar hotéis bem equipados e extremamente limpos. Eu quereria andar pelas ruas de
pequenas aldeias e lugares insignificantes, antes de chegarmos ao nosso destino; quanto a si, decerto
planearia com pormenor o percurso e acharia aborrecido parar em lugares quase desprovidos de
interesse histórico ou artístico. Mas, apesar de todas essas dificuldades, mais cedo ou mais tarde,
chegaríamos juntos a São Petersburgo.
– E então? – inquiriu a bibliotecária, os cotovelos apoiados na mesa.
– Deixe-me continuar, estou a tentar não ser críptico. Agora, imagine que decidimos empreender
outra viagem. Mas, desta vez, quer ir a São Petersburgo e eu desejo ir ao Taiti. Que pensa que
aconteceria?
A menina Prim esboçou um sorriso triste.
– Que, mais cedo ou mais tarde, os nossos caminhos se separariam – afiançou.
– Vejo que percebeu.
– A menos – murmurou a bibliotecária, após uma longa pausa –, a menos que o convencesse a ir a
São Petersburgo e não ao Taiti.
Ele tirou as luvas e olhou-a, intrigado.
– Mas isso é uma parte do problema, Prudencia. Eu não quero que ninguém me convença a ir a
São Petersburgo e, se tivesse o menor receio de que alguém pudesse consegui-lo, teria o máximo
cuidado para não me arriscar.
– Mas acontece que também – a menina Prim fez um esforço para encontrar as palavras –,
também me poderia convencer a ir ao Taiti.
O homem do cadeirão calou-se por um instante que pareceu eterno à bibliotecária.
– Eu iria até ao fim do mundo para a convencer a ir ao Taiti – declarou numa voz com uma
estranha intensidade. – Faria tudo o que estivesse ao meu alcance, absolutamente tudo, para a
convencer. Mas julgo que a nossa viagem seria um fracasso, um terrível fracasso, se para si não fosse
claro que queria conhecer o Taiti, antes de empreender a viagem.
– Nunca quis convencer-me a ir ao Taiti – murmurou ela.
– Como sabe isso?
– Como sei o quê?
– Como sabe que não quis?
– Porque nunca me forçou a nada nem me pressionou em relação ao que quer que fosse. Nada fez
para me convencer. É provavelmente por isso que somos amigos, sempre respeitou as minhas
opiniões.
O homem do cadeirão recostou-se na velha cadeira de ferro do caramanchão.
– É verdade, não a obriguei a nada e também não a pressionei em relação ao que quer que fosse.
Mas, se não o fiz, foi porque pensei que teria sido contraproducente, apenas isso. Não me atribua
mérito, já que é um mérito para si, que não tenho.
– Fosse por que razão fosse – respondeu a bibliotecária –, não tentou ir ao fim do mundo para me
convencer a ir ao Taiti.
– É isso que pensa? – perguntou, com um sorriso. – Talvez algum dia se aperceba de que se pode
ir ao fim do mundo sem sair de uma sala, Prudencia.
– Agora, voltou a ser críptico – respondeu ela e, depois de uma pausa, declarou com um ar
malicioso: – Diga-me uma coisa, se eu quisesse ir ao Taiti, se nunca tivesse pensado em ir a São
Petersburgo, ter-se-ia atrevido a pedir-me que fizéssemos a viagem juntos?
O homem do cadeirão baixou a cabeça e esboçou um sorriso.
– E quanto a si? – perguntou ele, em voz baixa, olhando-a nos olhos. – Teria vindo?
A bibliotecária abriu a boca para responder, mas, antes que o pudesse fazer, um rosto maduro e
rude espreitou à porta.
– São horas, menina.
A menina Prim, corada, levantou-se ao mesmo tempo que o chefe. Este estendeu-lhe a mão e
disse:
– Em São Petersburgo está muito frio, Prudencia. Sei-o porque já lá estive. Mas, talvez um dia…
– hesitou.
A bibliotecária dirigiu-se lentamente e em silêncio para a porta. Antes de a transpor, virou-se e
contemplou, por uma última vez, o homem do cadeirão, de pé, à porta do velho caramanchão.
– Não creio – murmurou.

A menina Prim não olhou para trás, para contemplar, uma última vez, a casa e o jardim. De
acordo com os seus desejos, expressos com a firmeza de uma ordem militar, nem as crianças, nem a
cozinheira, nem as raparigas da aldeia, nem sequer o homem do cadeirão a acompanharam à porta,
para se despedir. A menina Prim não gostava de despedidas. Apesar de todas aquelas injustas
acusações de sentimentalismo, tinha perfeita consciência de que não apreciava cenas emotivas, não
sabia como lidar com elas, nunca acertava no tom para as enfrentar. Isso não acontecia com ele,
meditou enquanto se mexia no assento traseiro do carro e olhava furtivamente para o rosto sério do
jardineiro. Ele sabia sempre, ou quase sempre, como se comportar. Era capaz de manter um olhar, um
sorriso ou uma expressão séria, adequados a cada momento. A menina Prim achava que isso não
tinha que ver com maneiras. Não com as que se podem adquirir lendo reportagens em revistas e
semanários, também não com as que costumam ser mencionadas em livros de etiqueta, nem sequer
com aquelas de que fazem gala as pessoas que se orgulham de ter boas maneiras. Nada disso tinha
que ver com a sua forma de agir. Talvez porque aquilo que ele tinha e que ela apreciava não consistia
em algo que se pudesse ler, estudar ou imitar. Não se ensinava e também não se aprendia; respirava-
se, simplesmente. Parecia tão natural, tão simples, tão intimamente ligado a quem o exibia que só ao
fim de algum tempo, só ao fim de umas semanas ou até de alguns meses, o outro se apercebia de que
quão sereno e harmonioso era aquele comportamento. Nem os semanários, nem os livros de etiqueta,
nem os cursos por correspondência poderiam competir com aquelas maneiras. Era um código
aperfeiçoado por séculos de prática, respirado desde o berço, inspirado nos alvores do amor cortês
e da cavalaria.
Enquanto meditava sobre aquilo, o automóvel conduzido pelo jardineiro dobrou uma curva da
estrada e deixou ver a enorme e sólida estrutura da abadia de San Ireneo. A bibliotecária contemplou
as velhas paredes de pedra, admirou a beleza regular das suas linhas e, a seguir, consultou o relógio.
Tinha tempo de sobra para chegar à estação. Saíra de casa quase com duas horas de antecedência,
quando o trajeto a percorrer de carro não levava mais de meia hora. A menina Prim era firme
defensora não só da pontualidade, mas também, e sobretudo, da previsão. Em nome desta, decidira ir
para a estação com duas horas de antecedência e, para glória dela naquele momento, naquele preciso
momento, acabava de experimentar um intenso desejo de conhecer o velho monge que habitava
aquele espaço. O ancião que, durante o longo inverno de San Ireneo de Arnois, decidira
cuidadosamente evitar.
– Poderíamos parar por um momento no mosteiro? – perguntou ao jardineiro.
– Com certeza que sim, menina. Quer comprar um pouco de mel?
– Não – respondeu ela, olhando para o homem através do espelho retrovisor. – Na realidade,
gostaria de falar um momento com o pater.
– Com o pater? – inquiriu ele, surpreendido. – Tem a certeza?
– A certeza absoluta – retorquiu ela, empinando o queixo com firmeza. – Poderia ajudar-me?
– Claro que sim – assegurou o jardineiro enquanto tomava o desvio que ladeava os campos
agrícolas e conduzia diretamente à porta da abadia.
Depois de uma troca de palavras com o monge encarregado da portaria, a menina Prim entrou no
mosteiro e foi conduzida à receção, onde lhe pediram que esperasse uns minutos. Ali, contemplou as
paredes nuas do edifício, até que um jovem monge com um avental de trabalho por cima do hábito a
cumprimentou com um sorriso e a convidou a acompanhá-lo até à horta.
– Está a apanhar o fresco – disse, como única explicação e sem reparar na incongruência das suas
palavras, numa manhã em que o termómetro marcava vários graus abaixo de zero.
Depois de atravessar um longo corredor, passar por um austero e silencioso claustro e entrar na
pequena horta, a bibliotecária foi levada até um canto onde se encontrava sentado um homem muito
idoso.
– A menina Prim veio vê-lo – disse o jovem religioso, antes de fazer sinal à bibliotecária para
que se aproximasse.
O velho endireitou-se, autorizou, com um sorriso suave, o religioso a retirar-se e convidou a
visitante a sentar-se a seu lado.
– Sente-se, por favor – murmurou. – Estava à sua espera.
– À minha espera? – indagou ela, com a preocupação de quem suspeita que está a ser confundida
com outrem. – Não sei se sabe quem sou, padre, chamo-me Prudencia Prim e estive a trabalhar,
durante vários meses, como bibliotecária em…
– Sei perfeitamente quem é – interrompeu-a suavemente o monge – e esperava-a. Tardou muito a
vir.
A menina Prim observou o rosto enrugado do ancião e o corpo frágil e magro e perguntou-se se
aquele homem estaria no seu perfeito juízo.
– Eles falaram-me muito de si – explicou ele, fitando-a com uns olhos onde ela julgou adivinhar
uma sombra de regozijo.
– Eles? Refere-se ao homem para quem trabalho?
– Refiro-me a toda a gente que a conhece e a aprecia.
A bibliotecária corou de satisfação. Nunca lhe teria ocorrido que alguém pudesse ter ido visitar
aquele monge nonagenário para lhe falar dela. Nunca pensara que a sua presença pudesse atravessar
aquelas grossas paredes e penetrar na silenciosa e profunda rotina do beneditino. Antes que
conseguisse voltar a falar, o monge disse:
– Vai para Itália.
A menina Prim confirmou que, de facto, assim era.
– Porquê?
– Porquê?
– Isso mesmo.
A bibliotecária franziu ligeiramente o sobrolho. Hesitava em explicar todas as razões e
vicissitudes que tinham motivado a partida. Tudo aquilo fazia parte da sua vida privada e não tinha
qualquer motivo para envolver o velho monge nela. Por outro lado, como explicar por que razão
partia? Mais, refletiu subitamente, saberia de facto por que motivo partia?
– Suponho que não sei inteiramente. Se perguntar às pessoas que me conhecem, obterá muitas
respostas. Uns dir-lhe-ão que me vou embora porque tive uma desilusão sentimental, outros explicar-
lhe-ão que parto porque preciso de me soltar de uma certa dureza moderna e haverá ainda um grupo
que lhe assegurará que vou à procura de marido.
O monge sorriu, de repente, e o seu sorriso, franco e sereno, fez com que a convidada
descontraísse.
– E a menina – voltou a insistir, com suavidade – porque acha que parte?
– Não sei – respondeu ela, com simplicidade.
– As pessoas que abandonam um lugar, sem motivo, fogem de algo ou procuram algo. A qual dos
grupos julga pertencer?
A bibliotecária meditou longamente na resposta. Quando voltou a falar, observou que o velho
estava de olhos fechados.
– Creio que a ambos – disse em voz baixa, com receio de que ele tivesse adormecido –, talvez
seja isso que deva averiguar.
O monge abriu os olhos lentamente e contemplou a horta coberta de neve.
– Permita-me que lhe faça uma pergunta – disse, como se não tivesse ouvido as últimas palavras
da visitante. – Como fecha as portas? Deixa-as entreabertas, empurra-as suavemente ou fecha-as com
força?
A menina Prim esbugalhou os olhos, surpreendida, mas recuperou imediatamente a compostura.
Tinha agora a certeza: aquele monge perdera o juízo.
– Creio que as deixo entreabertas ou que as fecho suavemente. Uma coisa é certa, nunca bato com
a porta.
– Durante o noviciado, ensinam os cartuxos a fecharem as portas voltando-se para ativar
cuidadosamente o mecanismo, sem as empurrar nem deixar que se fechem sozinhas. Sabe porque lhes
é exigida tal coisa?
A menina Prim respondeu que não conseguia sequer imaginar.
– Para que aprendam a não ter pressa, para que aprendam a fazer uma coisa depois de outra, para
os treinar na mesura, na paciência, no silêncio e no cumprimento de cada gesto. – O ancião fez uma
pausa. – Perguntar-se-á por que lhe conto isto. Conto-lhe porque é esse o espírito com que se deve
empreender uma viagem, qualquer viagem. Se a realizar à pressa, sem qualquer repouso ou pausa,
regressará sem ter encontrado o que procura.
– O problema – confessou a bibliotecária, depois de meditar naquelas palavras –, é que não sei o
que procuro.
O monge lançou-lhe um olhar compassivo.
– Então talvez a viagem permita que o averigue.
A menina Prim suspirou. Receara que o velho monge tentasse adivinhar os buracos negros da sua
vida, receara que o seu olhar a atravessasse e lhe adivinhasse o mais negro dos segredos. Mas aquele
homem não passava de um velhinho amável e cansado, não era o terrível visionário com um pé em
cada mundo que ela temera.
– Tinham-me dito que era capaz de ler consciências. Avisaram-me de que me diria coisas que me
surpreenderiam e perturbariam – disse, de repente.
O ancião tremeu sob o velho hábito e, depois, falou com uma estranha doçura.
– Há muitos anos, quando era apenas um jovem, tive um mestre. Foi ele quem me ensinou que o
sacerdote, qualquer sacerdote, deve ser sempre um cavalheiro.
A bibliotecária pestanejou sem compreender.
– Veio aqui temendo que eu lhe dissesse algo que a assombrasse, a perturbasse ou agitasse. Que
tipo de cortesia seria a minha, se tivesse agido assim na primeira vez que me visita e sem que me
tivesse pedido conselho? Não tenha medo de mim, menina Prim. Estarei aqui para si. Estarei aqui,
esperando que encontre o que procura e que, depois, volte cá para mo contar. Pode ter a certeza de
que estarei consigo, sem sair da minha velha cela, mesmo enquanto se dedicar à sua busca.
– Pode ir-se ao fim do mundo sem se sair de uma sala – murmurou a bibliotecária.
– Disseram-me que valoriza a delicadeza e que anseia pela beleza – prosseguiu o ancião. –
Procure, então, a beleza, menina Prim. Procure-a no silêncio, procure-a na calma, procure-a na noite
e procure-a também na aurora. Pare para fechar as portas, enquanto a procura, e não fique
surpreendida se descobrir que ela não vive nos museus nem se esconde nos palácios. Não fique
surpreendida se descobrir que a beleza não é um quê, mas sim um quem.
A bibliotecária olhou para o rosto do velho beneditino e perguntou-se o que lhe teria ele podido
ensinar, se tivesse aceitado vê-lo antes, tal como lhe sugerira Horacio. Depois, o frio intenso fê-la
olhar para o relógio. Estava a fazer-se tarde e o comboio esperava-a.
– Receio ter de me ir embora – disse. – Agradeço as suas palavras, mas está a fazer-se tarde e
preciso de chegar a tempo à estação.
– Parta – retorquiu o ancião –, não deve chegar tarde. Não é maneira de começar uma viagem tão
importante como a que vai empreender.
A menina Prim levantou-se e despediu-se com calorosa cortesia. Depois, começou a andar na
direção da abadia, mas, antes de atravessar a horta, retrocedeu e perguntou ao ancião, que continuava
sentado no banco:
– Pater, gostaria de lhe fazer uma pergunta. Ao longo dos últimos meses, ouvi dizer muitas coisas
sobre o amor e o casamento. Deram-me vários conselhos, expuseram-me inúmeras teorias. Diga-me,
qual é, no seu entender, o segredo de um casamento feliz?
O monge esbugalhou os olhos, como se fosse a primeira vez que ouvia semelhante pergunta.
Sorrindo, levantou-se com dificuldade e aproximou-se, lentamente, da bibliotecária.
– Como decerto compreenderá, não posso saber muito disso. Na realidade, nenhum homem
dedicado a Deus desde a mais tenra juventude, como é o meu caso, o pode fazer. Com certeza que as
pessoas que lhe deram esses conselhos sabem o que é o casamento e podem dizer-lhe muito mais
sobre ele do que eu. E, no entanto…
– No entanto? – indagou a menina Prim, dolorosamente consciente da velocidade a que avançava
o ponteiro dos minutos do relógio.
– No entanto, julgo poder dizer-lhe o que constitui o cerne sobrenatural do casamento, aquilo sem
o qual ele não chega a ser mais do que um castelo de cartas colocadas mais ou menos ao acaso.
– E que é? – insistiu a bibliotecária, levada pelo desejo febril já não de deixar portas
entreabertas, mas sim de as fechar, batendo com elas.
– É, querida menina, que o casamento não é coisa de dois, mas sim de três.
Atónita perante tal resposta, a menina Prim abriu a boca para responder, mas a lembrança do
relógio impediu-a. Apertou a mão ao velho monge, deu meia-volta e abandonou apressadamente a
abadia de San Ireneo, rumo à estação de caminho de ferro.
Nórcia
Prudencia Prim desceu rapidamente as escadas de saída da cripta da basílica de San Benedetto e,
depois de tirar o cordão carmesim que separava a entrada do resto do edifício, passou para o
exterior. A frescura da manhã bateu-lhe no rosto, enquanto descia os degraus e avançava pela praça
principal de Nórcia. As barracas da feira ainda estavam fechadas ou só agora começavam a dar
sinais de atividade, na expetativa de oferecer aos primeiros viajantes pequenas recordações de
artesanato local. Nas lojas de norcineria, abarrotadas de todo o tipo de enchidos, prosciutti,
mortadelas, salsichões e outros produtos, como lentilhas, massas de todas as formas e cores, arrozes
e as trufas mais deliciosas, os comerciantes levantavam grades, corriam os ferrolhos, abriam portas e
adornavam a parte exterior dos estabelecimentos com cestas e atraentes mostras dos seus géneros. O
Consistório, com a bandeira de Itália a ondular ao vento, e, diante dele, o Museu Eclesiástico de
Castelluccio, eram-lhe lugares deliciosamente familiares. No entanto, só ali vivia há dezasseis
semanas.
Era uma manhã de sexta-feira e, como de costume, a menina Prim dobrou a esquina da basílica e
dirigiu-se para a pequena esplanada do bar Veneza para tomar o pequeno-almoço. Animada ante a
perspetiva de um refrigério abundante, sentou-se numa mesa, pegou na lista e acariciou com o olhar
as ofertas de prosciutto e cabeça de javali. Quando o empregado apareceu, para tomar nota do
pedido, com o mesmo sorriso afável com que a recebia todos os dias, a bibliotecária suspirou,
satisfeita.
– Buongiorno, signorina.
– Buongiorno, Giovanni.
– Cappuccino?
– Cappuccino – confirmou. – E um pouco desse prosciutto excelente que tem sempre.
O homem fitou-a com uma expressão de dúvida.
– Prosciutto? Acho que não, deve estar enganada.
A menina Prim olhou-o, surpreendida. Abriu a boca, disposta a replicar, mas, em vez disso,
esboçou um sorriso sobressaltado.
– Claro que não, Giovanni, que despistada sou.
– Umas torradas de queijo fresco e compota?
– Isso mesmo.
A bibliotecária acomodou-se na cadeira e semicerrou os olhos. Chegara em princípios de maio,
mesmo a tempo de desfrutar do esplendor da primavera. Aquela primavera que, todos os anos,
inundava de flores o Piano Grande dos Montes Sibilinos, uma enorme planície rodeada de
montanhas, que se estendia, como um lago silencioso, a poucos quilómetros de Nórcia. Aconselhada
pela proprietária do seu hotel, a bibliotecária subira, certa manhã, ao planalto e contemplara a
grandiosa beleza daquele infindável tapete tecido por milhares de papoilas, pequenas margaridas,
trevos e violetas, dentes-de-leão, ranúnculos amarelos, cor-de-rosa e vermelhos, gentianellas
azuladas, campainhas e muitas outras espécies silvestres. Naquela manhã, a menina Prim pisou esse
tapete e sentou-se nele, passeou, maravilhada, entre as flores, ajoelhou-se e, quem o diria, até se
recostou. Dali, avistou, com olhos deslumbrados, a diminuta e isolada aldeia de Castelluccio, que,
qual reino perdido numa terra encantada, emergia daquele esplendor como uma ilha emerge do mar.
No entanto, não foi essa explosão da natureza que conseguiu retê-la. Não foram as velhas
montanhas dos Sibilinos, o vermelho intenso das papoilas nem os esbeltos ciprestes plantados nos
campos de trigo. Nem os olhares serenos dos monges nem a austera luminosidade dos seus cantos.
Foi muito mais que tudo aquilo e um pouco de tudo aquilo que a levou a permanecer ali.
Atravessara a Itália de norte a sul e de leste a oeste. Embebera-se da grandeza das cidades do
esplendor das paisagens. Claudicara perante as deslumbrantes costas da Ligúria e de Amalfi,
passeado pelas costas lombardas, rendera-se à harmonia de Florença, à beleza de Veneza, ao espírito
de Roma. Deixara-se seduzir pelo bulício de Nápoles e perdera a noção do tempo nas costas de
Cinque Terre; extasiara-se com a luminosidade de Bari e deambulara pela sobriedade de Milão.
Durante dois longos meses percorrera ruelas, portos, palácios, campos e jardins, vagueara por
aldeias da Toscânia e passeara por terras de Piemonte. Mas só na Úmbria, naquele canto da Úmbria,
decidiu, por fim, desfazer as malas.
– Que coisa tão pequena e tão grande que é a felicidade – murmurou, enquanto devorava as
torradas de queijo fresco e compota e bebia, devagar, o cappuccino.
Tinha de planear o dia. Pensara dedicar a manhã a responder ao correio – a menina Prim era uma
das poucas hóspedes do hotel, se não mesmo a única, que ainda enviava e recebia correio postal – e
a tarde, a visitar Spoleto. Que agradável perspetiva a de passar as horas sentada numa esplanada, a
observar pessoas, a ler, de vez em quando, poesia – desde que chegara a Itália, só era capaz de ler
poesia – e a aspirar o calor suave daquele ar estival. Começou a segunda torrada e chamou, com um
gesto, o empregado, que da porta do café, via, com um sorriso benévolo, a manhã avançar.
– Cappuccino, signora?
– Cappuccino, Giovanni.
– O carteiro deixou ontem aqui correspondência registada para si – disse, poucos minutos depois,
Giovanni, enquanto pousava na mesa o fragrante café, outra torrada e uma bandeja com três
sobrescritos.
– Obrigada.
– Prego.
A menina Prim abriu o primeiro sobrescrito, leu o conteúdo e colocou-o sobre a mesa. Bebeu um
gole de cappuccino, abriu o segundo envelope, leu-o e colocou-o sobre a mesa. Durante uns minutos,
não fez outra coisa senão ler a folha dentro do sobrescrito. Em seguida, desdobrou uma página de
jornal anexa à carta, estendeu-a sobre a mesa e examinou-a com atenção. Era uma página de anúncios
classificados de La Gaceta de San Ireneo. No fim da terceira coluna havia um texto, assinalado com
um círculo vermelho.

Procura-se professora heterodoxa para escola muito pouco ortodoxa. Capaz de ensinar o
trivium – gramática grega e latina, retórica e dialética – a crianças com idades compreendidas
entre seis e onze anos. De preferência sem experiência profissional. As detentoras de curso
superior e pós-graduação devem abster-se.

Quando o seu olhar pousou nas duas últimas frases, o coração da menina Prim acelerou. Depois,
respirou lentamente e os batimentos normalizaram. Finalmente, ali estava: chegara o momento.
Durante aqueles meses de viagem, mantivera regularmente correspondência com alguns dos seus
amigos de San Ireneo. Ninguém o mencionara, nem ela nem eles. Mas, de certo modo, todos
esperavam que o momento chegasse. Tantas cartas enviadas e recebidas, tantos episódios a recordar,
tantos pequenos acontecimentos encerrados em folhas de papel que iam e vinham de norte para sul e
vice-versa, mantendo a bibliotecária ligada ao lugar de que tanto lhe custara afastar-se e que tanto
temia reencontrar.
Tudo mudara tanto, ao longo desses meses. Por vezes, ficava surpreendida, ao lembrar-se da
indignação que sentira quando deixara San Ireneo, naquele fevereiro frio. Da ira que se apoderara
dela quando saíra da casa de Lulú Thiberville, da querida Lulú Thiberville, com quem trocara
correspondência durante o último mês. Como poderia deixar de escrever a Lulú, depois de ter
descido à cripta pela sétima vez? Como não escrever depois de ter caminhado, de se ter ajoelhado e
até, quem o diria?, de se ter deitado no tapete de mil cores que escondiam os Montes Sibilinos.
Como poderia não lhe explicar que ali aprendera a olhar, a observar o horizonte, a fechar os olhos e
a viajar pelo passado, a identificar monstros e icebergues, a compreender e a apreciar o trabalho
árduo da sentinela.
Também escrevia, com frequência, ao seu querido e adorado Horacio. Como não haveria de falar
a Horacio do dia em que conseguira, pela primeira vez, contemplar Giotto sem o dissecar. Como não
haveria de lhe explicar que, em algumas aldeias da região, as crianças ainda jogam futebol no adro
das igrejas, como faziam todas as crianças de todas as aldeias da Europa antes de a Europa se ter
esquecido dos adros e dos jogos. Como haveria de não falar a Horacio do silêncio das tardes de
Spoleto, da beleza das ruelas de Gubbio, da tranquilidade dos jardins que rodeiam o convento de S.
Damião. Sentia falta do amigo, daquela amabilidade intensa e cavalheiresca. Mas também sabia que
não era só disso que o seu coração tinha saudades.
– Cappuccino, signora?
– Não, muito obrigada, Giovanni. A conta, per favore.
A menina Prim pagou o pequeno-almoço, pegou nos três sobrescritos e saiu da esplanada do café
Venecia, tal como em qualquer outro dia. Atravessou a praça principal de Nórcia e parou para falar
com o carabiniere, a quem perguntou pela mulher e pela mãe, exatamente como em qualquer outro
dia. Parou, por um momento, na loja do mosteiro de San Benedetto, comprou uns quantos objetos,
pagou-os e saiu com um sorriso, tal como em qualquer outro dia. Depois, aproximou-se do hotel,
estrategicamente situado a um passo da praça, dirigiu-se até à receção e esperou, com paciência, por
que a responsável atendesse um casal de namorados japoneses que perguntavam com gestos e risos
como chegar a Assis. A menina Prim olhou-os e também sorriu.

Tutti li miei penser parlan d’Amore5

Desde que empreendera a viagem, não parava de se lembrar de poemas. A poesia inundava-lhe a
mente com o mesmo vigor com que as flores silvestres fertilizavam o Piano Grande. Não brotava
dela; a menina Prim sempre sentira respeito suficiente pela poesia para não consentir que brotasse
dela. Mas, desde que, certa manhã, ao espreitar o mar, em Santa Margherita Ligure, murmurara com
assombro e desconcerto «E temo e spero; ed ardo e son un ghiaccio»6, sentia-se invadida por
poemas esquecidos, poemas estudados, poemas aprendidos, dissecados e analisados. Se em Santa
Margherita Ligure foi Petrarca, em Nápoles foi Bocaccio. Se em Florença foi Virgílio, em Veneza foi
a vez de Juvenal. E o curioso é que, em nenhuma daquelas invasões líricas, a menina Prim sentiu o
menor desejo de estudar, dissecar ou analisar. A poesia parecia ter-se apoderado dela, de o ter feito
sem rasto de estudo, de dissecação ou de análise. Não era ela quem desfrutava dos poemas, eram
eles que se recreavam nela. Caíam-lhe na mente – ou seria na alma? – logo ao amanhecer, quando se
levantava, para contemplar o nascer do sol. Impressionavam-na ao meio-dia, enquanto observava os
beneditinos a cultivar a terra e deixar pontualmente as enxadas para rezar o ângelus. Embalavam-na
ao entardecer, quando se sentava nos cafés até que a falta de luz e o fresco da tarde a arrancavam do
seu ensimesmamento.
Naquele febril arrebatamento poético, a menina Prim tentara recorrer aos seus autores preferidos,
mas a única coisa que lhe chegava agora aos lábios eram versos soltos de Ronsard, tercetos de Dante
ou stanzas de Spenser. A princípio, sentira-se contrariada pela impossibilidade de recitar exatamente
aquilo que queria, mas em breve comprovou que aquela velha métrica exercia um poder balsâmico
sobre a sua alma. Quem poderia manter-se tenso ou preocupado, ao ouvir, de vez em quando, na
mente os ecos da rainha Gloriana e dos seus cavaleiros? Como era possível evitar sorrir, quando
cada uma dessas poesias lhe dava a entender que o ano, o mês, o dia, a estação, o sítio e até mesmo o
instante eram benditos? Era impossível lutar contra aquilo, e ela não desejava de modo algum lutar.
As imagens poéticas que sempre a haviam comovido pela sua terrível e desesperada humanidade já
não se fixavam na sua mente, não se apoderavam dela; pelo contrário, fugiam e perdiam-se na
luminosidade do dia. Então, voltava a beleza e regressava a harmonia; e a menina Prim rendia-se. E,
com a sua rendição, Dante, Virgílio e Petrarca voltavam também.
– Devem seguir aquela estrada – explicava, nesse momento, a rececionista pela enésima vez ao
casal nipónico. Subitamente consciente de que outra hóspede continuava à espera, fez um gesto com
as mãos, como que a pedir desculpa.
A menina Prim sorriu com benevolência, sentou-se numa cadeira e voltou a sorrir.
Aprendera a fechar as portas. Aprendera a abri-las suavemente e a fechá-las com cuidadosa
exatidão. E, quando se aprende a fechar portas, refletiu enquanto observava o casal, aprende-se, de
certo modo, a abrir e fechar corretamente tudo o resto. O tempo parecia esticar-se indefinidamente
quando se faziam as coisas corretamente. Congelava, detinha-se, parava de súbito como um relógio
sem corda. Então, as coisas pequenas, as coisas necessárias, incluindo as rotineiras, especialmente
as que se fazem com as mãos – como é misterioso que o homem possa fazer coisas belas com as
mãos – transformavam-se em simples obras de arte, no final do dia.
Abandonara o esforço por alcançar por si própria a virtude perfeita. Descobrira quão esgotante
pode ser, quão inumano e erróneo é viver escravizada por tal esforço. Agora que conhecia a sua
pesada imperfeição, agora que tinha consciência da sua fragilidade e da sua contingência, já não
carregava o estorvo pesado do martelo e do cinzel. Não é que se tivesse rendido à imperfeição nem
que se tivesse habituado a ela, mas já não suportava semelhante carga em solidão, já não arrastava o
jugo, já não se surpreendia quando descobria que dera um passo errado. Sabia também que tudo
aquilo não duraria, que, depois dessa doçura, chegariam os poços, as grutas, os túneis e os
desfiladeiros. Mas, de momento, só recebia presentes e, de momento, limitava-se a aprender a
aceitá-los.
– Não, signori, não é esse desvio. Acho que vou dar-lhes este mapa, explica melhor o caminho.
Na semana anterior, recebera um telefonema de Augusto Olivier, o seu antigo chefe. Precisava
dela com urgência, sentia a sua falta, queria que voltasse a trabalhar com ele. Naturalmente, deixaria
de ser administrativa, uma mulher como ela nunca deveria ter trabalhado no departamento
administrativo, tinha demasiado talento e capacidades para continuar a prestar serviços em tarefas
administrativas. A menina Prim rira, em silêncio. Durante quarenta longos segundos, não conseguira
dizer palavra, porque não fizera outra coisa senão rir-se em silêncio. E, depois, dissera que não e
desligara.
Não desejava voltar a trabalhar ali. Não suportava a ideia de se enfiar novamente naquele lugar
estreito e escuro, de se fechar naquela cela monótona e cinzenta em que passara uma boa parte da
vida. Não queria voltar a ouvir conversas mesquinhas, não desejava participar nelas, não queria
sequer dar-lhes azo. E, evidentemente, não tinha a menor intenção de voltar a jogar aquele jogo
sórdido de ofertas e evasivas com o chefe.
Também havia a questão do ar. Agora, a menina Prim precisava de ar. Precisava de o sentir na
cara, ao caminhar, precisava de o cheirar e de o respirar. Por vezes, dava consigo a pensar em quanto
tempo vivera sem necessidade de ar. Nas manhãs invernosas na cidade, saía de casa agasalhada até à
ponta dos cabelos, dirigia-se rapidamente para o metro, descia as escadas entre dezenas de pessoas e
entrava, aos empurrões, na carruagem. Ao sair do metro, voltava a subir as escadas no meio de uma
multidão, corria até ao átrio do escritório e lá passava o longo dia. Em que momento da vida se
esquecera da existência do ar? Caminhar sem ter de correr, um prazer tão simples como passear sem
pressa, deambular, vaguear, até bisbilhotar. Quando é que algo tão simples e humilde se convertera
num luxo?
Não, não desejava voltar, não queria voltar.
– É isso, signori, desejo que passem um bom dia.
O casal japonês despediu-se da rececionista com um sorriso. Esta olhou para a hóspede que
aguardava e, com um gesto, pediu desculpa, indicando que estava à sua disposição. Mas a hóspede
não se mexeu.
– Posso ajudá-la, signora?
A menina Prim, de olhos postos no piano que presidia à entrada do hotel, não respondeu.
– Signora – insistiu a rececionista –, posso ajudá-la?
– Aconteceu um imprevisto – disse ela, por fim, aproximando-se lentamente da receção – e
receio ter de partir dentro de uma hora. Lamento muito o transtorno que isso possa representar para o
hotel. Seria possível dar-me imediatamente a conta, por favor?
– Com certeza que sim – respondeu a empregada, com uma expressão consternada. – Espero que
não se trate de uma má notícia.
– Uma má notícia? Oh, não, claro que não – sorriu a bibliotecária, cuja mente estava agora
ocupada com galerias de espelhos.
A rececionista devolveu-lhe o sorriso com simpatia.
– De facto – prosseguiu, com olhos brilhantes, a menina Prim enquanto visualizava uma porta
fechada com infinita paciência –, é, pelo contrário, uma boa notícia, uma extraordinária notícia. Eu
diria – e suspirou, sem deixar de sorrir – que é uma estranha e maravilhosa notícia.

– L’amor che move il sole e l’altre stelle7 – murmurou, meia hora depois a rececionista, ao ver
aquela delicada e bela mulher transpor a porta do hotel e dirigir-se, de queixo erguido e com um
sorriso suave nos lábios, para o táxi que a esperava à porta.

5
«Todos os meus pensamentos falam de amor», Dante Alighieri, Vida Nova.
6
«E temo e espero; e ardo e sou gelo», Francesco Petrarca, Canzoniere.
7
«O amor que move o sol e as outras estrelas», Dante Alighieri, Divina Comédia.

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