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ISSN: 1517-4522
revsoc@ufrgs.br
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Brasil
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Sociologias, Porto Alegre, ano 13, no 27, mai./ago. 2011, p. 382-409
Resumo
Centrado no livro de Sartre, “Colonialismo e Neocolonialismo - Situações
V”, e no seu prefácio escrito para o livro Les Dammés de La Terre, de Frantz Fanon,
o presente artigo propõe percorrer algumas considerações sartrianas a respeito de
Fanon e o colonialismo francês na Argélia, tendo como pano de fundo a comple-
xidade das relações sociais em países colonizados. Como representantes do pen-
samento anticolonial e críticos das alienações geradas pelo colonialismo, Sartre e
Fanon elaboraram críticas radicais sobre as estratégias de violência, subordinação
e desumanização que atingiram o colonizado africano, instigados pela reconstru-
ção social com o uso da violência, buscando-se assim um novo homem em sua
verdadeira humanidade.
Palavras-chave: Neocolonialismo. Imperialismo. Argélia. Violência.
I. Considerações Iniciais
I
solamento, solidão, ansiedade e angústia, nas palavras
do amigo e biógrafo John Gerassi, permearam a exis-
tência tumultuada do filósofo Jean Paul Sartre, associa-
dos ao brilhantismo, vivacidade e audácia de uma in-
teligência que buscou rever nas relações sujeito/objeto
suas dicotomias, buscando atingir a compreensão do real. Em 1933-1934,
ele escreve A Transcendência do Ego, apoiado em Husserl, para quem a
consciência significava sempre a consciência de um objeto que não tinha
conteúdo em si mesmo, postulando a existência de um ego transcenden-
tal “por trás” da consciência, como possibilidade de estudo do objeto se-
parado do eu que o via e/ou conhecia. Em outras palavras, trata-se de pôr
o mundo entre parênteses para estudá-lo isoladamente. Já, para Sartre, o
ego está do lado de fora, está no mundo: Não é em algum retiro que nos
descobrimos a nós mesmos: é na estrada, na cidade, no meio da multidão,
coisa entre coisas, homem entre homens (Geraasi, 1990, p. 123).
Mas as preocupações sociais que marcariam seu futuro não afloram
nos primeiros anos que antecedem ao início da Segunda Guerra Mundial.
A Transcendência do Ego será escrita em Berlim, neste período, sem que a
chegada do nazi-fascismo, com suas comemorações triunfais, viesse atra-
palhá-lo. Será necessário um tempo maior para que sua prisão e posterior
participação na Resistência Francesa possam operar as mudanças que as
décadas de 1950/1960 irão conhecer. Vale ressaltar ainda que, se a 2ª
Guerra, o colaboracionismo francês, o Partido Comunista, o anti-semitis-
mo, a morte de colegas e amigos judeus, entre eles Paul Nizan, traições,
delações e alienações são partes de um motor que fez desabrochar o
filósofo odiado do seu século, desde os tempos da École Normal, Sartre
já manifestava decepção e descrédito pela burguesia que freqüentava o
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pria filosofia, quando, como dizia Marx, ela torna-se mundo, encaminhada
para a expressão de uma determinada corrente política. Em outros termos,
longe da filosofia contemplativa, Sartre falava de filosofia e filósofos com-
prometidos com a ação política e a transformação do homem. Acresce que,
para ele, as situações dadas no conjunto do mundo irão determinar a morte
de uma corrente filosófica. No caso da filosofia de Marx, por exemplo,
somente após a destruição do mesmo sistema econômico capitalista que a
engendrou, somente depois que o regime político e os homens se modi-
ficassem, o marxismo seria superado. Marx afirmava: ou o socialismo ou a
barbárie, vale dizer que, ou ultrapassamos as contradições do capitalismo
ou seremos constrangidos a trabalhar por exploração. Mesmo considerando
as modificações experimentadas pelo capitalismo, Sartre, ainda na década
de 1960, via no marxismo uma filosofia insuperável. Após a publicação de
“O Existencialismo é um Humanismo”, será necessário posicionar-se frente
à independência das Colônias, tomar partido diante dos movimentos de
libertação nacional e dos novos Estados que surgem a partir de 1945. Tarefa
difícil, porque uma incomensurável remodelação do mapa-múndi coloca-
rá na ordem do dia as oposições colonizador/colonizado, branco/negro,
cristão/não cristão, ocidental/não ocidental, obrigando os intelectuais de
maneira geral, e Sartre em particular, a debruçarem-se sobre este Outro
que caminha em direção às Metrópoles.
1 Foi, provavelmente, a partir dos anos 60 do século XX que a palavra negritude passou a
figurar os dicionários da língua portuguesa, vinda do francês — négritude, com uso já comum,
nesse idioma, desde a década dos 30, quando escritores negros nascidos em colônias da
França,usando-o como sua segunda língua, criaram-na e passaram a utilizá-la para exprimir
algo novo que sentiam sem que houvessem antes encontrado termo apropriado para defini-lo.
A negritude, considerada em sua essência, não nasceu, contudo, na Europa, mas em terras da
América, talvez sob a inspiração do movimento New Negro, surgido dos Estados Unidos, em
começos deste século, do qual participaram grandes poetas negros norte-americanos como
Langston Hughes, Countee Lee, Jean Toomer e Claude McKay; todos com grande influência
sobre a obra dos poetas francófonos da região das Antilhas e do Caribe, em especial sobre a
de Aimé Césaire, da Martinica, e a de Léon-Gontran Damas, da Guiana. Foi, portanto, através
de autores franceses da América, que chegou ao mundo europeu a palavra négritude, usada,
a partir de um certo momento, por alguns intelectuais negros, como estandarte, bandeira de
luta, selo de identidade étnica, sinal do orgulho que sentiam tanto por serem negros, como
pelas suas origens. Waldir Freitas Oliveira. Leopold Sedar Senghor e a Negritude – Revista Afro-
Ásia 25-26 (2001). p. 409-410
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V. Considerações Finais
Não se pode afirmar que Sartre saiu em defesa de uma lógica das
consequências, do dente por dente, do olho por olho, a lógica da vingan-
ça e do revide. Trata-se de uma violência transformadora, de uma trans-
figuração salvadora que resgata a dignidade e a identidade perdidas do
colonizado, pois os últimos devem ser os primeiros, não podem ser senão
após um afrontamento decisivo e a morte dos protagonistas (Fanon, 2001,
p. 32). Antes de tudo, o filósofo lembra que o colonizado foi submeti-
do a uma selvageria colonial que penetrou, ao longo dos anos, por suas
cabeças e poros. Tal como Fanon, Sartre lembra que a descolonização é
um encontro entre forças antagônicas, que jamais passa despercebida.
A força é o único recurso do colonizado. Sua fúria e sua revolta contra
o colonizador, portanto, é construída sob uma lógica simples e mordaz:
o aprendizado de humilhação, dor e fome, suscitará em
seus corpos uma ira vulcânica, cujo poder é igual ao da
pressão que se exerce sobre eles. (...) No primeiro momento
da revolta, é preciso matar; abater um europeu é matar dois
coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo
um opressor e um oprimido: restam um homem morto e
um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente
um solo nacional sob a planta dos pés. (Sartre, 1979, p. 14)
Fanon alertava sobre o papel nem sempre positivo das elites eco-
nômicas e intelectuais que, após se unirem na defesa dos interesses em
comum, colocavam-se contrárias a uma ação violenta revolucionária.
A burguesia colonialista, que havia permanecido até então
em seu leito de plumas, entra em ação. Introduz uma nova
noção que é, falando propriamente, uma criação da situa-
ção colonial: a não violência (Fanon, 2001, p. 54).
tempestade. Para Sartre, fomos homens à custa dele; ele se faz homem à
nossa custa (Sartre, 1979, p. 23). Daí Fanon considerar os colonizados os
escravos dos tempos modernos. A independência significaria, antes de
tudo, uma reparação moral e o resgate da dignidade silenciada. A cons-
cientização por uma causa em comum, da história coletiva e do destino
nacional, contra o analfabetismo e a miséria. A violência representa a prá-
xis absoluta. Somente ela impedirá a morte da sociedade autóctone e a
petrificação dos indivíduos. É a constatação de que a liberdade somente
poderá ser obtida por meios violentos, em franca luta armada, tal como
na Indochina, Indonésia e no norte da África. Parafraseando Fanon, ob-
serva Sartre: A Europa pôs as patas em nossos continentes, urge golpe-á-
las até que ela se retire (Sartre, 1979, p. 7).
Como o próprio Sartre afirma, o sistema colonial não é um mecanismo
abstrato, mas possui um lado funcional consumado pela própria realidade
perversa instalada nas colônias. O sofrimento, a fome, a violência, respec-
tivamente sentidas e praticadas contra os colonos, não são abstratos. Tudo
conflui para a dominação cultural, política e para o lucro da metrópole.
Sartre, ao analisar Fanon, atenta para o fato histórico das tradições
racistas francesas. No entanto, seu sentido não é mais especificado pela
antropometria de Hankins, H.L. Gordon e Leaky, pelo arianismo do Con-
de Henri de Boulainvilliers e Arthur de Gobineau ou pelo geneticismo
biológico, mas se manifesta de uma forma sutil e esmagadora na idéia
de um humanismo ambíguo, que defende a liberdade, fraternidade e
igualdade, ao mesmo tempo em que se proliferam discursos racistas que
taxam negros como inferiores, ladrões, homicidas e sujos.
Cabe, aqui, repensar ou rever as contribuições teóricas desses dois
autores à luz dos desdobramentos dos processos de independência (na
maioria, sangrentos) dos países africanos, a partir do final dos anos 1950.-
os incêndios na capital francesa, com envolvimento de imigrantes argeli-
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Abstract
Centered on Sartre’s book “Colonialismo e Neocolonialismo – Situações V”
and on the foreword written by philosopher Jean-Paul Sartre for Frantz Fanon’s
book, Les Dammés de la Terre, the present article intends to explore some Sartrian
considerations on both Fanon and the French colonialism in Algeria, building
upon the complexity of social relationships in colonized countries. As representa-
tives of anticolonial thought and critics of the alienation generated by colonialism,
Sartre and Fanon elaborated radical criticism on the strategies of violence, subor-
dination and dehumanization that affected the colonized African, urged by the
social reconstruction using violence, looking for a new man in his true humanity.
Keywords: Neocolonialism. Imperialism. Algeria. Violence
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Recebido: 29/03/2011
Aceite final: 13/05/2011