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DE 9 A 12 DE OUTUBRO
Resumo:
Abstract:
The current work present an anchored text in reading a work of philosopher Gaston
Bachelard. To be facing reflections that mix and related remembrance and
imagination to memory, I was to wonder if our memories were made up of
experiences or could think of them , too, in the imagination of experiences . From the
book " The poetic reverie " , this text seeks to reflect on imagination and memory in
Bachelard with emphasis on childhood and seeks to question the opening of
Geography dialogue to geographical experience guided by imagination and memory.
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- Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Campinas. E-mail
de contato: juliana.maddalena@ufjf.edu.br
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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
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1 – Introdução
O presente trabalho vislumbra apresentar um texto ancorado na leitura de
uma obra do filósofo Gaston Bachelard. A partir do livro “A poética do devaneio”,
procurarei construir uma escrita pensante a fim de produzir um texto como mote
para uma discussão reflexiva no GT Fenomenologia da experiência geográfica do XI
ENANPEGE. Trata-se, portanto, de um texto como componente reflexivo no
movimento de construção de uma tese de doutorado em curso.
Tenho buscado no processo de doutoramento, ler e me apropriar das
discussões sobre memória e experiência, no entanto, as leituras iniciais de Gaston
Bachelard têm me levado a um universo reflexivo sobre imaginação e memória. O
filósofo diz na obra “A poética do devaneio” que ao “reexaminar com um olhar novo
as imagens fielmente amadas, tão solidamente fixadas na minha memória que já
não sei se estou a recordar ou imaginar quando as reencontro em meus devaneios.”
(BACHELARD, 2009, p. 2). E na obra “A poética do espaço” questiona se o que foi
terá sido mesmo. Ao estar diante de trechos que misturam e relacionam recordação
e imaginação à memória, fiquei a me questionar se nossas memórias eram
compostas por experiências vividas ou se poderia pensá-las, também, na
imaginação sobre experiências vividas. Então, quando acreditara fechar a temática
do texto em imaginação e memória nas duas obras citadas de Bachelard, os
questionamentos se intensificaram ao pensar sobre essa relação na infância.
Quando o autor discorre sobre “os devaneios voltados para a infância” nossa
unidade pode ser compreendida também pelas narrativas de outras pessoas, o que
nos permite imaginar e criar imagens e lembranças dos tempos de nossa primeira
vida e sugere que nossa infância pode ser reimaginada. Imaginada? Reimaginada?
Rememorada? Se para o filósofo a imaginação lê os microfilmes da memória, o que
registramos nesses filmes? Acrescentando, “ao sonhar com a infância, regressamos
à morada dos devaneios, aos devaneios que nos abriram o mundo. É esse devaneio
que nos faz primeiro habitante do mundo da solidão. E habitamos melhor o mundo
quando o habitamos como a criança solitária habita as imagens. Nos devaneios da
criança, a imagem prevalece acima de tudo. As experiências só vem depois.”
(BACHELARD, 2009, p.97).
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Olhar para trás na travessia para ilha do passado e ver vários rostos.
Rostos que nos compõem. Rostos daqueles que fomos que acompanhados das
narrativas daqueles que conosco conviveram, nos compõem e desenham nossa
unidade. Quantas vezes compomos cenas de nossas infâncias que foram
construídas através de narrativas que ora duvidamos, ora acreditamos. Cenas que
não sabemos se vivemos ou se inventamos a partir daquilo que ouvíamos sobre nós
mesmos. Mas sobre mim, sei que ao certo me compõem. Todo esse conjunto de
cenas e narrativas nos ajudam a construir nosso ser. Ao olhar para trás podemos ver
rostos com sons narrados por inúmeras conversas ao longo da vida daquela infância
que parece não ter fim.
Talvez, por um tempo, tenha tido a preocupação em compreender os
fatos e não os valores do passado e nosso filósofo Bachelard nos alerta que para
revive-los é preciso sonhar. Alçar voo como a criança em seus devaneios na solidão.
Ouso completar, flutuar. Flutuar por entre tantas narrativas, sons, imagens e sabores
sobre nós mesmos. É tornar-se de fora, mas olhando para dentro, um espectador de
nós mesmos. Um espectador que consegue realizar saltos temporais por entre suas
lembranças significativas, podendo, inclusive, resignificá-las, numa possibilidade de
ser em devaneio que pela imaginação, ou por sua fluidez, constrói outra relação
espaço-tempo, como no amadurecer da vida que tende-se a voltar mais à infância.
Para o autor, nesta união entre imaginação e memória podemos imaginar reviver o
passado. “Eu retinha com uma memória imaginária toda infância que ainda não
conhecia e que no entanto reconhecia.” (Ibid, p.117). Será que também me imagino
lembrar? Ou que me lembro do imaginado?
Para o autor, existe uma permanência na alma humana “de um núcleo da
infância, uma infância imóvel, mas sempre viva, fora da história, oculta para os
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outros, disfarçada em história quando a contamos, mas que só tem um ser real nos
instantes de iluminação, ou seja, nos instantes de sua existência poética”
(BACHELARD, 2009, p.94). Neste núcleo se “unem mais intimamente a imaginação
e a memória. É aí que o ser infância liga o real ao imaginário, vivendo com toda
imaginação as imagens da realidade.” (Ibid, p.102)
Ao mesmo tempo em que Bachelard nos sinaliza essa íntima união,
também demarca que poético-análise “deve devolver-nos todos os privilégios da
imaginação. Um de seus exemplos me fez questionar o verbo devolver, trata-se do
pai que busca a lua para o filho. Ao brincar com uma criança tudo que é criado e
imaginado está legitimado por ser “brincadeira de crianças”, inclusive buscar a lua.
Parece que o poeta continua a fazer isso e a “brincar” como criança. Ele traz a
infância em sua poesia e em seu ser poeta. Para a criança, seu pai e para o poeta,
vale buscar a lua, mas se o verbo era devolver, quando isto se perde? Como? Por
quê? É um corte? Existe uma castração da imaginação?
A infância com sua permanência e núcleo habita em nós, ela é
continuidade, como também é descontinuidade na medida em que cortamos nosso
potencial de imaginar. Se tem a continuidade da infância, a imaginação está lá
dentro. Incubada. Aguardando um novo desabrochar. O que é capaz de trazer o
reflorescer da imaginação? Quando apanharemos ou esperaremos pela lua? Neste
ressurgir também se encontra a ideia de continuidade da infância por toda vida.
Durante as travessias para a ilha do passado muitas narrativas ecoam em
nosso ser. São as inúmeras lembranças que nos contam nossas lembranças.
Aprendemos como éramos com tais narrativas. Para Bachelard, “devemos
redescobrir o nosso ser desconhecido. (...) Quando o devaneio vai tão longe,
admiramo-nos do nosso próprio passado, admiramo-nos de ter sido essa criança.”
(ibid, p.111). Nesta admiração do próprio ser, o passado da infância é visto pelo
belo, sem marcas do calendário e recheadas pelo embelezamento das estações do
poeta. Seja pelos poetas ou pelas pessoas de nosso convívio, as infâncias partilhas
embelezam e enriquecem a nossa.
A memória pode ser considerada como prática individual, social e
coletiva. Ela se apoia em situações que vivemos, experiências que acumulamos e
em objetos que despertam nossas relações estabelecidas em algum momento e
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se ainda nos compõe. O filosofo aponta a graça do poeta para este redespertar da
cosmicidade da infância. Uma qualidade do ser cósmico que habita em nós nas
continuidades e descontinuidade de nossa infância e em nossa capacidade de
sermos sonhadores.
O que significa estar num Programa de Pós-Graduação em Geografia e ter
oportunidade de construir um movimento reflexivo sobre imaginação e memória? No
meu entendimento é encontrar pares para dialogar sobre a constituição do ser em
suas diferentes dimensões. É retomar a epígrafe de José Saramago para ponderar o
habitar lugares transbordando memórias repletas de sentimentos que podem nos
permitir, amedrontar, negar, encorajar e tantos outros verbos que pautam nossas
relações com espaços e lugares.
Mas como ir além? Como refletir sobre a experiência geográfica a partir da
imaginação e memória dos lugares? Em que medida a geografia tem tido abertura à
experiência geográfica para valores do passado não organizados pelo calendário?
Como a imaginação e a memória compõem a geografia? Como são as experiências
geográficas pela imaginação e pela memória? Um adulto apresenta sua experiência
geográfica da infância? Como ela é? É colorida?
Para navegarmos no mar do passado buscamos rotas conhecidas e pela
imaginação temos condição de criarmos novos caminhos. Inúmeros caminhos pelo
labirinto de nossa memória. Caminhos que não saberemos se imaginamos ou se
nos lembramos, mas certamente eles compõem nosso ser.
Na obra “A Poética do espaço”, Bachelard (1993) apresenta a “casa como
nosso canto do mundo” (p.22) e diz que “as lembranças do mundo exterior nunca
terão a mesma tonalidade das lembranças da casa.” (ibid, p.23) e que ela integraliza
pensamentos, lembranças e sonhos. Seguindo este raciocínio, o filosofo aponta que
“o espaço chama a ação, e antes da ação a imaginação trabalha.” (ibid, p.27), logo,
como refletir sobre as relações topofílicas e a experiência geográfica para além da
dimensão física do espaço? Se na infância a experiência é posterior às imagens e a
imaginação pode anteceder a ação nos espaços, como são essas paisagens
imaginadas na infância? Assim, a infância está na origem das maiores paisagens.
Na infância construímos paisagens imaginárias. Ora em lugares nunca antes
visitados, ora presentes naqueles que outrora já vistamos. Conseguimos transver a
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paisagem. Transver a paisagem vista pelos adultos ou por aqueles sem imaginação.
Mas isto é possível? Ser sem imaginação? Se tem a continuidade da infância, a
imaginação está lá dentro, aguardando um novo desabrochar.
A partir dessa relação entre a poesia, memórias inventadas e imaginação,
recorro ao poeta Manoel de Barros, em Manoel por Manoel.
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora
tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço
outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba.
Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era
lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de
gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos.
Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser
criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um
pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua as
coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu
falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido
onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino
e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. (BARROS, 2003)
4 - Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Alain M. Mozart, Mário
Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1993.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
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