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Terra Manchada de Sangue

Conflitos agrários e mortes no campo no Brasil DEMOCRÁTICO

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
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Modesto Florenzano

EDITORA HUMANITAS

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Artur Zimerman

Terra Manchada de Sangue


Conflitos agrários e mortes no campo no Brasil DEMOCRÁTICO

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Copyright © 2010 Artur Zimerman

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH-USP

PALAVRAS-CHAVE: ???

SERVÇO EDITORAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO


editorafflch@usp.br

Coordenação Editorial
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840

Projeto de Capa
Daniel Targownik e Paula Zimerman Targownik

Projeto Gráfico e Diagramação


Selma M. Consoli Jacintho – MTb n. 28.839

Revisão
Camila Amaral Souza

Foi feito o depósito legal


Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Novembro 2010

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Agradecimentos

Este livro é resultado da pesquisa realizada em meu pós-


doutoramento pelo departamento de ciência política (DCP) da
Universidade de São Paulo (USP) entre os anos 2007 e 2009, sobre
a violência agrária no Brasil, no período de redemocratização.
Minha esposa Lucia acompanhou esta trajetória, com afinco
e dedicação, sabendo que havia uma “causa maior” pela qual teria
que me dedicar durante esta pesquisa. Minha mãe também foi
motivo de inspiração e apoio.
Agradeço primeiramente à minha supervisora e ao meu co-
supervisor, dra. Maria Hermínia Tavares de Almeida e dr. Gláucio
Ary Dillon Soares, respectivamente. Ambos acreditaram na pes-
quisa e prestaram o apoio necessário a este empreendimento. Os
alunos que participaram do seminário de pesquisa organizado pela
supervisora acima mencionada e pelo dr. Leandro Piquet Carneiro
deram sugestões valiosas para o aperfeiçoamento do trabalho. Não
menciono os vários nomes, por receio de esquecer alguém, já que
todos foram de vital relevância. O professor Bernardo Ricupero fez
chegar este manuscrito à editora Humanitas, permitindo o início
da avaliação desta obra. E os dotes artísticos de Daniel Targownik
e Paula Zimerman Targownik coroaram o livro com a bela capa
por eles projetada.
Em determinado momento da pesquisa senti necessidade de
ter contato com a realidade da problemática sobre a violência agrá-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

ria e não me restringir ao apoio bibliográfico, que permitiu-me


construir vultuoso banco de dados. Nesse período, final de 2007,
decidi realizar estudo de campo onde morrem mais pessoas por
disputas de terra no país, nas regiões sul e sudeste do estado do
Pará. A primeira pessoa que me colocou em contato com indiví-
duos-chave para entender esse conflito foi Leonardo Sakamoto, ao
qual deixo um agradecimento especial. A partir dele conheci vá-
rias pessoas que me ajudaram a desvendar as mortes agrárias. Al-
guns coordenadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) foram de
imensa presteza. Dentre eles, cito José Affonso Batista, de Marabá,
juntamente com os membros da CPT desta cidade, e Frei Henri de
Rosiers e Ana de Sousa Pinto (a “Aninha”), da CPT de Xinguara,
ajudaram a entender o conflito em seus mínimos detalhes e deram
apoio logístico, além de travar contatos na região com outros líde-
res atuantes em movimentos sociais diversos, entidades, sindicatos
de trabalhadores rurais, cooperativas e afins. Muitos deles foram
entrevistados e seus depoimentos constam na última parte deste
livro. Fiquei impressionado com a perseverança destes homens e
mulheres que, mesmo com ameaças de morte, continuam aquilo
que julgam como objetivo-mor, ou seja, a defesa de pessoas que
provavelmente não poderiam se defender sozinhas.
Como pesquisador, tentei manter-me neutro por toda a pes-
quisa e, inclusive, entrevistei pessoas que supostamente estão “do
outro lado” deste conflito e que representam os ruralistas, ou fa-
zendeiros de extensas áreas. Não tive grandes êxitos com este outro
lado, pois não encontrei suficiente abertura, mas não pude deixar,
igualmente, de dar ouvidos, para manter-me afastado e tentar ser o
mais objetivo possível, sem sucumbir ao viés de militante de uma
causa, o qual claramente não sou. Minha intenção era puramente
acadêmica, apesar de, por vezes, não conseguir a isenção necessá-
ria.

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Agradecimentos

Novos colegas que conheci desde que vinculei-me à minha


nova instituição de ensino e pesquisa, a Universidade Federal do
ABC, deram sua parcela de contribuição. Dentre eles, devo men-
cionar Arilson Favareto, colega que gentilmente redigiu o prefácio
e que comentou a versão anterior deste livro, possibilitando-me
revisá-lo. De maneira geral, gostaria de agradecer a todos os do-
centes da área de Ciências Sociais Aplicadas e, especificamente, do
Bacharelado em Políticas Públicas da UFABC.
Muitas pessoas que colaboraram para o surgimento deste li-
vro não puderam ser lembradas neste pequeno espaço para agrade-
cimentos. Peço desculpas por deixar de incluí-las. Apesar de todo
o apoio recebido, sou o único responsável por possíveis erros e fa-
lhas que possivelmente existam nesta obra.
O livro não teria existido se não fosse o apoio duplo da
FAPESP, tanto como agência financiadora do meu pós-doutorado
no DCP/USP, como copatrocinadora desta publicação. É claro que
a Editora Humanitas continua sendo sempre lembrada, com seus
excelentes profissionais que estão prontos a nos auxiliar nas várias
etapas de publicação e, por isso, este é o segundo livro que publico
junto a esta editora que tanto prestigio.

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Sumário

Prólogo ................................................................................................. 11

Prefácio ................................................................................................. 15

Parte I – Examinando a violência agrária no Brasil: A agricultura familiar


é uma solução viável? ............................................................................ 23
Brasil menos urbano ........................................................................ 23
Governos da recente democracia e a questão da terra ....................... 26
Classificação da violência agrária no Brasil ....................................... 31
Perfil das vítimas da violência agrária: quantos, quem, aonde .......... 36
Redução do número de vítimas pela redistribuição de terra ............. 44
Análise de dados .............................................................................. 57
Conclusão da parte I ........................................................................ 67

Parte II – ‘Pobres’ camponeses mortos: pobreza e desigualdade como


determinantes da violência agrária nos municípios brasileiros ............... 71
Introdução ....................................................................................... 71
Renda e pobreza rural ...................................................................... 73
Definição de pobreza ....................................................................... 78
Mensuração de pobreza/indigência ................................................... 80
Desigualdade ................................................................................... 89
Mensuração de desigualdade ............................................................ 91
Pobreza, desigualdade e violência agrária coletiva .......................... 102
Pobreza e desigualdade levam à violência agrária? ......................... 113
Análise de dados ............................................................................ 114
Conclusão da parte II ..................................................................... 121

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Parte III – Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região


do Brasil onde mais se mata ................................................................ 123
Entrevista com José Batista Affonso – Coordenador da CPT
em Marabá (e advogado) ................................................................ 125
Entrevista com Emmanuel Wambergue (MANO) – Dirigente
da Copserviços em Marabá (e ex-coordenador da CPT na cidade) ... 145
Entrevista com Antônio Gomes – Presidente do sindicato dos
trabalhadores rurais (Fetagri) de Marabá ........................................ 158
Entrevista com Maria Joel Dias da Costa (Joelma) – Presidente do
sindicato dos trabalhadores rurais (Fetagri) de Rondon do Pará ..... 158
Entrevista com o cabo Manuel de Oliveira Sérvalo ......................... 167
Entrevista com Josiel – Gerente do banco Caixa Econômica
Federal, em Marabá ....................................................................... 168
Entrevista com Marcos Antônio Reis – Missionário do CIMI ........ 168
Entrevista com James de Senna Simpson – Representante do
Sindicato dos Produtores Rurais de Marabá ................................... 172
Entrevista com Charles Trocate – Coordenador regional do
MST em Marabá ............................................................................ 193
Entrevista com Juíza Cláudia Regina Favacho Moura – Vara
agrária de Marabá ................................................................................
Entrevista com Ana de Souza Pinto (“Aninha”) – Socióloga e
coordenadora da CPT de Xinguara (PA) ........................................ 202
Fechamento ................................................................................... 214

Bibliografia ......................................................................................... 217

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Prólogo

Prólogo

Com o retorno da democracia no país, as liberdades civis e


os direitos políticos voltaram a vigorar. Muitas organizações pas-
saram a representar cidadãos de diversas camadas e origens sociais,
e os conflitos aumentaram exponencialmente, com o Estado inca-
paz de satisfazer todas as partes e fazer reinar a “justiça”, além de
apaziguar os ânimos dos mais radicais.
No campo, organizações como Movimento dos Sem-Terra
(MST), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) de um lado, e ou-
tras como a União Democrática Ruralista (UDR) e sindicatos pa-
tronais de outro, lutavam para reivindicar o que julgavam seus
direitos, seja referente aos “direitos morais de cidadão” ou direitos
de propriedade. A confrontação era inevitável, ainda mais sem que
o Estado interviesse para solucionar os problemas agrários no Brasil,
ou por meio de intervenção precária e ineficaz.
Nesse cenário de oportunidades e representatividade pós-
regime militar, os grupos foram em busca do que julgavam ser
seus direitos. Dos confrontos vieram as mortes em consequência
de conflitos de terra. O presente livro não apenas descreve a situa-
ção de conflitos no campo, como procura explicá-la de maneira
sucinta, trazendo “velhas receitas” de como reduzir o risco de mor-
te por causa de disputas de terra, num país de proporções conti-
nentais como o Brasil e testando várias hipóteses formuladas.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Mais ainda: não nos satisfazemos apenas com a coleta de


dados e a metodologia quantitativa, e sim, acrescentamos a esse
método recursos qualitativos, por meio de entrevistas com perso-
nalidades que vivenciam esse conflito em sua rotina, sejam campo-
neses1, fazendeiros, ou pessoas que estão relacionadas a esses grupos
de alguma maneira. Essa junção de formas, a nosso ver, enriquece a
análise.
O livro é dividido em três partes:
I. Explicação sistemática sobre a violência agrária no
país, com dados sobre as mortes de camponeses em disputas
de terra, seja como consequência da luta entre os próprios
camponeses ou frente aos grandes fazendeiros e o Estado bra-
sileiro, e indicando uma possível redução de vítimas por meio
de políticas públicas que endossem a agricultura familiar ao
invés da agricultura patronal. Essa parte utiliza-se dos da-
dos existentes sobre todo o país e o intuito seria testar a
hipótese de que maior concentração da terra eleva o risco de
mais violência e mortes agrárias.
II. Ênfase sobre a pobreza e a desigualdade no Brasil
como parte dos determinantes que podem levar (ou não) à
violência agrária e à morte de pessoas, resultante de disputas
por terra. Tanto a desigualdade como a pobreza atingem o
Brasil de maneira intensa e, em se tratando de país emer-
gente, onde grande parte das exportações tem origem em
atividades agropecuárias, e onde a pobreza concentra-se mais

1
O termo “camponês”, neste livro, se refere ao agricultor familiar, em geral com
pouca ou nenhuma terra, mas que trabalha no campo, em atividades agropecuárias
distintas. O camponês pode ser o trabalhador rural, o trabalhador sem terra e o
pequeno proprietário, que se sustenta (quando consegue) do produto de seu traba-
lho na terra. A literatura atual indica que o camponês se tornou um agricultor, não
mais em relação a seu modo de vida, mas à sua profissão específica (WANDERLEI
2000). No entanto, apesar dessa mudança, o livro caracteriza o camponês sobre
seu modo de vida e relação com a terra, e não profissão apenas.

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Prólogo

fortemente em zonas rurais, nada mais natural do que exa-


minar essas características quando avaliamos o risco de vio-
lência agrária.
III. Entrevistas com líderes na região mais perigosa
do país, campeã em mortes por disputas de terra. Essa parte
utiliza-se de linguajar acessível sobre os problemas e os de-
safios enfrentados na luta pela terra e na consequente violên-
cia agrária. Tanto pessoas ligadas aos camponeses como aos
grandes fazendeiros dão seus depoimentos e mostram sua
visão de mundo sobre tal conflito. As ideias dos entrevista-
dos estão conservadas em sua totalidade, sem modificação
alguma. Quase todas as entrevistas foram gravadas em áudio.

A parte das entrevistas complementa os estudos empíricos


quantitativos e dá um fechamento à ideia desse livro, que seria
unir a metodologia quantitativa, com suas regras rigorosas, à aná-
lise qualitativa a qual relata as experiências e vivências dos interlo-
cutores nesse conflito agrário. Entretanto, devemos ressaltar que
não queremos mostrar um lado da moeda apenas, já que essa
temática suscita a ‘abordagem fácil’, típica de panfletagem ideoló-
gica como casualmente nos deparamos na literatura. Portanto, na
parte das entrevistas, incluímos lados opostos do conflito agrário
no país, mesmo que, por muitas vezes o ‘mesmo lado’ entre em
conflito consigo mesmo.
Esse é o primeiro passo para unir os dois tipos de metodolo-
gia, na tentativa de explicar e compreender melhor esse embate. O
Estado, independentemente dos governos ou linhas ideológicas
adotadas, são chamados à razão, pois sua abstenção usual faz cres-
cer a quantidade de perdedores, de ambos os lados.

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Prefácio

Na literatura clássica a questão agrária se assenta em dois pi-


lares. Evitar a forte concentração da propriedade fundiária seria ne-
cessário para aumentar o número de produtores, visando fazer frente
à crescente demanda por alimentos nas sociedades em processo de
industrialização. E teria, ainda, a função de incorporar ao mundo
produtivo uma massa de trabalhadores que, de outra forma, se cons-
tituiriam em um subproletariado, pressionando para baixo os pa-
drões salariais e bloqueando a formação de um forte mercado
consumidor interno.
Como se sabe, a sociedade brasileira resolveu, pela via conser-
vadora, estes dois constrangimentos à formação social e econômica
do país. Sob o ângulo da produção de alimentos, tratou-se de au-
mentar exponencialmente a produtividade do setor agropecuário,
baseado em crédito farto e numa forte modernização tecnológica,
com custos sociais e ambientais nada desprezíveis. Sob o ângulo da
formação do mercado de trabalho, esta foi justamente uma das prin-
cipais mazelas nacionais. Os patamares de remuneração dos traba-
lhadores no momento da industrialização foram baixos e não se
constituiu um mercado interno forte. Com isso, o forte crescimento
experimentado pelo Brasil nos anos setenta, quando o país cresceu a
taxas recordes, não se traduziu em dinamização da economia em
bases sólidas. Um dos resultados foi a estagnação econômica que
perdurou nas duas décadas seguintes, só arrefecendo na primeira
década do novo milênio. Pior, a este bloqueio se somou outro cons-
trangimento: o Brasil dos anos noventa experimentou os mesmos

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

processos de reestruturação industrial que haviam afetado as nações


mais ricas na década anterior e, hoje, não se pode dizer que a
redistribuição da terra teria uma capacidade decisiva de afetar signifi-
cativamente a formação dos salários ou do nível de emprego. Se as
duas dimensões da questão agrária foram resolvidas, ainda que de
maneira tão insatisfatória, por que esse tema continua presente na agen-
da pública?
Este livro de Artur Zimerman oferece uma abordagem pouco
usual sobre o tema, baseada em rigorosa análise quantitativa de indi-
cadores relativos aos conflitos agrários, concentração fundiária, pobre-
za e desigualdade nas áreas rurais. A maneira minuciosa e sistemática
com que o autor analisa esses dados permite respostas que não foram
alcançadas por outros trabalhos dedicados ao tema.
Na primeira parte do livro, o autor analisa e corrobora a hipóte-
se de que o risco de violência agrária é maior onde a terra é distribuída
de maneira mais desigual. Uma afirmação que questiona o argumento
tantas vezes usado de que os conflitos aconteceriam porque insuflados
por organizações de luta pela terra e em áreas escolhidas com o simples
intuito de ganhar repercussão nos meios de comunicação.
Na segunda parte do livro, mostra-se uma forte correspondên-
cia entre a ocorrência de indicadores de pobreza e desigualdade e si-
tuações de violência agrária. Mais uma vez, o principal resultado de tal
demonstração é a evidência de que os conflitos ocorrem onde as condi-
ções são favoráveis a isso. E que na raiz destes conflitos estão condições
de vida abaixo dos mínimos aceitáveis.
Na terceira parte, finalmente, o autor compila um conjunto de
entrevistas conduzidas por ele junto a lideranças de movimentos so-
ciais e outras organizações. Ali são explorados aspectos que comple-
mentam as análises quantitativas que caracterizam as duas partes
anteriores do livro.
Além das constatações de cada uma destas três partes do livro,
uma surpresa que surge da leitura destas páginas é a constatação de

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Prólogo

que o número de mortos em conflitos agrários é superior ao mínimo


convencionado entre organizações internacionais para considerar que
um país encontra-se em situação de guerra civil. Isto é, ao contrário do
que muitos imaginam, este tipo de conflito no Brasil, em plena virada
do século XXI, não é algo periférico e residual.
Outra constatação que pode causar alguma surpresa: o número
de conflitos foi muito maior no período da democratização do que no
período da ditadura militar, quando se desencadeou um forte processo
de êxodo rural e a expropriação de um amplo número de agricultores
e trabalhadores rurais. A resposta para esse aparente paradoxo não é de
todo desconhecida. Como se sabe, em períodos democráticos os confli-
tos podem aflorar, pois há maior liberdade de expressão e de organiza-
ção e, com isso, as demandas até então reprimidas encontram um
ambiente em que podem aflorar e até mesmo se exacerbar. Mas é curi-
oso notar que agora, na primeira década dos anos 2000, justamente
quando se tem um governo democrático cuja origem é mais próxima
dos movimentos sociais, o número de conflitos volta a recuar forte-
mente.
Ocorre que não é somente pelas características do regime polí-
tico que se pode entender a manifestação dos conflitos agrários. Este é,
sem dúvida, um dos lados cruciais da questão. Mas há um outro igual-
mente importante: no atual momento da história brasileira, a questão
agrária se torna mais ou menos aguda de acordo com os movimentos
de expansão ou retração da economia nacional; ou, mais especifica-
mente, de acordo com o ritmo com que se dá o acesso dos setores mais
pobres aos benefícios desses momentos de crescimento econômico.
Dito de outra forma, todos esperavam que, sob os mandatos do
Partido dos Trabalhadores à frente do Executivo Federal, ocorressem
tanto uma explosão no número de ocupações de terra como um volu-
me muito maior de assentamentos de famílias de trabalhadores rurais
sem-terra. Nem uma coisa nem outra foram vistas. E seria uma brutal
ingenuidade atribuir tal situação a algum tipo de docilidade dos mo-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

vimentos sociais rurais, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-


Terra em particular, em relação ao governo federal.
Tal situação só pode ser entendida quando se observa o que
aconteceu com as estatísticas de desigualdade e pobreza desta década.
Pela primeira vez, ao menos desde que se tem registro desses dados,
houve uma forte redução em ambos os indicadores, concomitante-
mente, e de forma combinada a um período de crescimento continua-
do da economia. Como mostra um dos principais especialistas no tema,
Marcelo Neri, em regiões como o Nordeste, onde se concentra boa
parte da pobreza rural, as taxas de crescimento foram similares às da
China, campeã mundial nesse quesito. E, no conjunto do país, nada
menos do que o equivalente à metade da população da França passou
para as classes A, B e C desde 2003. Mais importante, essa situação
inédita não pode ser creditada exclusivamente à expansão dos progra-
mas sociais. Pois, se assim fosse, haveria apenas uma forte redução no
momento de introdução desses programas. O que se observa é uma
redução continuada ao longo do período, para a qual contribuíram,
além dos programas de transferência de renda, o crescimento da eco-
nomia, o aumento da formalização do trabalho, a expansão do crédito
popular.
Ora, não é difícil entender as razões do recuo na demanda por
assentamentos – e, por extensão, nas situações de conflito agrário –
quando se tem uma expansão das possibilidades de acesso a renda e
que não passam pela penúria que envolve os longos períodos acampa-
dos em beiras de estradas ou em confronto com jagunços ou forças
policiais, e quando se relembra que há uma tendência histórica de
perda da importância da agricultura, tanto na formação das rendas
relativamente aos outros setores econômicos, como na ocupação de
trabalho.
O risco, como mostra outro especialista, Ricardo Paes de Bar-
ros, é justamente que se considere que, por estar no caminho certo,
basta fazer mais do mesmo. Segundo ele, no caso dos programas so-

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Prólogo

ciais, vale o mesmo que acontece com os processos de inovação


tecnológica: ou se consegue uma atualização permamente, ou os efei-
tos positivos se esvaem em pouco tempo. E é aí que a questão agrária
volta a mostrar seu sentido. Hoje, a questão agrária não pode cumprir
mais o papel preconizado pelas teorias clássicas, mas nem por isso ela
é menos importante. É verdade que, mesmo se fossem assentados ime-
diatamente todos os demandantes pela reforma agrária, ou mesmo
que se triplicasse esse número, não haveria alteração significativa da
estrutura agrária, não se mudaria drasticamente a oferta de alimentos,
nem haveria um impacto brutal no mercado de trabalho urbano. Mas,
também é verdade que em muitas regiões não há como equacionar
dilemas econômicos, sociais ou ambientais sem mexer na estrutura
fundiária. Hoje, a questão agrária se manifesta, portanto, na questão
regional, na questão social, na questão ambiental.
Os números e as análises apresentadas no livro de Zimerman
sugerem que não faz sentido pensar a questão agrária com o mesmo
referencial teórico e político dos anos sessenta. Entretanto, mostra tam-
bém que, nem por isso, há razões para ser mais tímido na política de
assentamentos. Por isso é uma leitura obrigatória para aqueles que
querem entender e atualizar sua compreensão sobre os conflitos agrá-
rios no Brasil.

São Paulo, Julho de 2010

Arilson Favareto
Sociólogo, Professor de Análise Econômica da
Universidade Federal do ABC (UFABC) e
Pesquisador-Colaborador do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (CEBRAP)

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Ajuntamento de moradores do acampamento/ocupação João Canuto (MST) na


entrada do local, por ocasião da prisão de 8 moradores.

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Prólogo

Dedico esta obra ao esperado Ariel.

Já havia plantado árvores e escrito livros...faltava sua iluminada presença.

BARUCH HABA! BEM-VINDO!

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Parte I

Examinando a violência agrária no Brasil:


A agricultura familiar é uma solução viável?1

Brasil menos urbano


Primeiramente, é de extrema relevância ressaltar a impor-
tância do debate sobre o Brasil rural, pois ele é mais rural do que se
imagina. Dados oficiais demonstram que a população brasileira no
campo é pequena. Porém, o tamanho da população rural brasileira
deve ser reinterpretado. Apesar de o IBGE ser um instituto sério,
sua metodologia em relação à quantidade de pessoas vivendo no
campo é questionável, não devido à sua integridade e capacidade,
mas às definições adotadas por esse órgão.
A definição legal de cidade, conferida pelo decreto-lei
o
(n 311) do então presidente Getúlio Vargas em 1938, no Estado
Novo, é meramente administrativa e não demográfica, e engloba
toda sede de município existente, independente da densidade
populacional, quantidade de habitantes, infraestrutura urbana etc.
Há, inclusive, cidades com populações minúsculas que somam
poucas dezenas de habitantes, como União da Serra (RS).

1
Apresentado no 49º Encontro da International Studies Association (ISA), março de
2008, em San Francisco, CA (EUA).

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 1: Classificação de municípios e população urbano-rural


do IPEA/IBGE/NESUR-Unicamp
População brasileira total População urbana População rural
169 799 170 (100%) 137 953 959 (81%) 31 845 211 (19%)

Fonte: IPEA/IBGE/NESUR-Unicamp (1999,2002).

Portanto, o Brasil rural ‘oficial’ é constituído por apenas


19% da população total, nível que classifica o Brasil no mesmo
patamar de muitos países desenvolvidos.
Estudos recentes do Banco Mundial (FERRANTI et alli,
2005) revelaram que países da América Latina são, em média,
quase duas vezes mais rurais do que mostravam as estatísticas
oficiais, e o Brasil não é exceção à regra.
Apesar de cada país da região tratar diferentemente o con-
ceito de população rural, eles encaravam povoados de duas mil
pessoas, localizados em áreas remotas, como cidades. Esse núme-
ro abarcava somente 24% da população, em média, como sendo
rural. Se utilizarmos uma definição de ruralidade mais próxima
da realidade, como faz a OCDE, indicando todos os lugares que
possuem menos de 150 habitantes por km² e se localizam a mais
de uma hora de viagem da cidade mais próxima com mais de 100
mil habitantes, isso elevaria a 42% o índice de população rural
dos países latino-americanos (THE ECONOMIST, 19/02/2005,
p. 38).
Veiga sugere mensurar o grau de urbanização de acordo
com a densidade populacional e a localização geográfica (VEIGA,
2004), mas não vai tão longe como a OCDE. Ele propõe que
sejam incluídos como cidades os municípios que contenham ao
menos 80 habitantes por km². Nesse caso, 452 municípios con-
templariam 67% da população brasileira (em conjunto com os

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Examinando a violência agrária no Brasil

municípios ambivalentes, ou seja, aqueles entre 50 e 100 mil


habitantes2 – 426 municípios a parte). Por fim, o Brasil rural
seria formado por 4.617 municípios e 55 milhões de brasileiros.

Tabela 2: Classificação de municípios e população urbano-rural.


Municípios urbanos Municípios rurais Municípios ambivalentes
452 (8%) 4617 (84%) 426 (8%)
População urbana População rural População brasileira total
114 354 244 (67%) 55 444 926 (33%) 169 799 170 (100%)
Total de municípios 5495 (100%)

Fonte: Baseado em dados de Veiga (2002).

Julgamos procedente a definição de Veiga, já que reflete uma


realidade populacional e seria o meio termo entre as posições do
IBGE e da OCDE e, portanto, adotaremos esse critério no presente
artigo.
Há uma discrepância de mais de 14 milhões de pessoas que
foram simplesmente ignoradas na criação e direcionamento de
políticas públicas e orçamento público e privado para responder às
questões de curto e longo prazo nas zonas que podem ser classifica-
das como rurais, de acordo com o critério apresentado e que confe-
re com definições aplicadas por organizações conceituadas na
comunidade internacional.

Nosso intuito em trazer à tona o debate sobre a subrepresen-


tação da população rural brasileira nas estatísticas oficiais é o de
demonstrar o quanto esse setor está enfraquecido e merece atenção
governamental.

2
Inclui, também, aqueles com menos de 50 mil, mas com densidade superior a 80
habitantes por km².

25

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

A população camponesa ficou à deriva dos cuidados institu-


cionais e o problema da falta de terra, em um país onde deveria
haver abundância desse recurso natural por sua dimensão, se
aprofundou, com conflitos agrários, responsáveis por grande quan-
tidade de vítimas fatais.
A seguir, faremos uma prévia dos vinte anos que sucederam
o regime militar no Brasil com a redemocratização. Serão aborda-
dos dados e fatos que podem ter contribuído para a eclosão da
violência coletiva em conflitos de disputa de terra.

Governos da recente democracia e a questão da terra


No Brasil existem 2,5 milhões de camponeses sem-terra
(VEIGA, 2003), além dos pequenos proprietários3 que somam cerca
de 4 milhões de produtores familiares (GRAZIANO, 1999, p.23),
os quais têm que buscar fontes adicionais de sustento que nem
sempre estão disponíveis. Apesar disso, foram assentadas um pou-
co mais de 1 milhão de famílias4, o crédito rural é insuficiente e,
de fato, beneficia poucos camponeses (ver figuras 4 e 8). Nessas
condições, não há muitas alternativas aos agricultores para que
continuem a exercer suas funções5.
A violência no campo seria uma consequência do conflito
entre os que buscam condições mínimas de sobrevivência no meio
rural e os que possuem largas extensões de terra, contanto que exis-
tam mecanismos de organização dos interesses desse setor, como

3
Estes passam, muitas vezes, despercebidos, pois não têm a mídia a seu dispor
(GRAZIANO, 1999).
4
Baseado no cálculo de órgãos oficiais de governo no período da redemocratização
do país.
5
Uma possibilidade seria a migração às cidades, geralmente localizadas em regiões
mais prósperas do país, como sudeste e sul, porém, isso os tiraria de suas funções.

26

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 26 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

sindicatos, movimentos sociais e similares. Com o término da di-


tadura militar ficou mais fácil se organizar, pois há maior liberda-
de política e menor controle, que é característico de um estado
autoritário.
A abertura política com a redemocratização permitiu a arti-
culação entre os movimentos sociais e entidades de defesa dos tra-
balhadores rurais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra
(MST), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras Organiza-
ções Não-Governamentais (ONGs).
O governo democrático pode tanto prevenir a ocorrência de
confronto entre camponeses e grandes proprietários de terra com
políticas públicas adequadas, como também se posicionar a favor
de um dos lados ou até mesmo não interferir. A eclosão da violên-
cia depende, em parte, de ações ou inações governamentais.
Após duas décadas de autoritarismo, o governo Sarney (1985
– 1990) colocou a reforma agrária na agenda, resgatando do Esta-
tuto da Terra6 a desapropriação como instrumento de sua política
governamental. Acreditava que isso seria a solução para o proble-
ma da violência no campo e se comprometeu com o assentamento
de 1,4 milhão de famílias, meta muito superior ao realizado du-
rante essa gestão (apenas 82.689 famílias, de acordo aos dados ofi-
ciais).
A iniciativa governamental enfrentou a oposição dos pro-
prietários rurais que, por sua vez, formaram a União Democrática

6
O Estatuto da Terra foi criado pela lei 4.504, de 30/11/1964, pelo regime militar
que acabava de ser instalado no país. Sua criação era a estratégia utilizada pelos
governantes para apaziguar os camponeses e tranquilizar os grandes proprietários
de terra. Suas metas eram basicamente duas: (1) a execução de uma reforma agrária
e (2) o desenvolvimento da agricultura. Após mais de 4 décadas de sua criação, o
Estatuto da Terra conseguiu executar apenas a segunda meta, não levando a cabo
uma reforma agrária séria, que redistribuísse terra aos que mais necessitavam.

27

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Ruralista (UDR), em 1985, justamente para se opor ao programa


de reforma agrária. Não foi coincidência a criação dessa entidade
apenas poucos dias após a divulgação do Plano Nacional de Refor-
ma Agrária (PNRA), comandada por Caiado e disposta a represen-
tar os ruralistas, inclusive no Congresso Nacional com forte lobby.
A nova agenda dos grandes proprietários demarcou suas priorida-
des. Dois principais traços marcam os grupos dominantes no cam-
po: a defesa da propriedade como direito absoluto e o recurso à
violência para assegurá-la (BRUNO, 2003, p.285).
Em 1987, o presidente da UDR admitiu que o grupo havia
comprado 4 mil armas e que já tinham mais de 70 mil armas ao
todo (Human Rights Watch 1991, p.30). As condições para um
alto índice de violência agrária estavam dadas. De um lado, cam-
poneses dispostos a ocupar terras que legalmente não lhes perten-
ciam. De outro, grandes proprietários que se armavam e
contratavam pistoleiros para a defesa de suas terras. No meio, a
polícia e o exército que, muitas vezes, utilizavam de força desne-
cessária.
Como se não bastasse,
(...) há justificação legal tanto para os invasores de terra como para os
donos dessas terras: enquanto a constituição informalmente legitima as
invasões, o código civil justifica a resistência dos grandes fazendeiros
na tentativa de evacuar os ocupantes. De um lado o INCRA advoga em
favor dos camponeses e, de outro, as cortes se valem das leis que permi-
tem a reintegração de posse. Como não há instituição que determina
qual tipo de reivindicação deve prevalecer sobre o outro, o resultado é a
ocorrência de conflitos rurais (ALSTON et alli, 1999, p.137).

Os processos jurídicos e legais são demorados e onerosos e,


quando não resolvidos pela força bruta antes mesmo de acionar a
justiça, a tensão das audiências e a complexidade do sistema legal
podem servir como estímulo para mais violência por parte de am-
bos os lados. Na verdade, os dois lados se servem da violência:

28

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Examinando a violência agrária no Brasil

enquanto os grandes proprietários tentam tirar invasores/ocupan-


tes de suas terras, estes últimos entram em choque para que as
instituições intercedam e iniciem o processo de expropriação das
terras em litígio. A criação de leis agrárias e políticas públicas
claras e direcionadas se fazem necessárias.
A ocupação da terra é atualmente a principal estratégia do
movimento camponês na luta pelo acesso a (mais) terra.
Assim, os camponeses sem-terra [e parte dos pequenos proprietários
que não possuem terra suficiente para sua subsistência] pressionam o
Estado a dar respostas imediatas para a resolução dos conflitos fundiários
e implantar projetos de assentamentos rurais (FELICIANO, 2003, p.73),

mesmo que haja um impedimento legal com relação à desapropri-


ação de terra invadida.
O governo Collor (e seu sucessor após o impeachment, Itamar
Franco) assentou apenas 35.600 famílias (1990 – 1994). A de-
manda por terra era muito superior aos números irrisórios que o
estado brasileiro proporcionava. Somente no governo Fernando
Henrique esse número cresceu bastante e registrou o assentamento
de 584.655 famílias nos dois mandatos que exerceu7 (1995 – 2002).
No primeiro mandato do governo Lula (2003 – 2006) foram as-
sentadas cerca de 380 mil famílias, de acordo com MDA e INCRA8.
A explicação da bibliografia existente no Brasil sobre o tema
da violência agrária é a desigualdade fundiária (ALMEIDA, 2000;
GUANZIROLI et alli, 2001; INCRA, 2001; KAY, 2001;
ROMERO, 1998; TEIXEIRA, 2006): os camponeses se apossam
de terras como meio de protesto e manifestação, ferindo o direito à
7
Esses são os números oficiais, porém, eles contabilizam assentados atendidos por
Estados e municípios, áreas sem nenhuma infraestrutura, “assentados” que ainda
não estão nas terras, além de pessoas que vivem há décadas no mesmo local.
8
Apesar disso, movimentos como o MST discordam dos números apresentados e
dos valores investidos que foram divulgados – cerca de 4 bilhões de reais para a
obtenção de terras (Barbieri 2007, entrevista).

29

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

propriedade privada; os grandes fazendeiros contratam pistoleiros


e bandos armados para defenderem a integridade de suas terras;
em alguns casos há a intervenção da polícia e exército, inclusive
com mandatos judiciais. O resultado é o confronto violento.
Essa é uma literatura mais voltada à discussão da reforma agrá-
ria do que ao estudo da violência propriamente dito (FELICIANO,
2003; FELÍCIO, 2006; GUANZIROLI, et alli. 2001). A violência
agrária é mencionada geralmente como resultado da reforma agrária
fracassada, mas não o objeto central de análise.
O passo vagaroso com que a reforma agrária brasileira anda,
mesmo sem rupturas no Estado, pode contribuir à falta de expec-
tativa dos possíveis beneficiados, tornando-os mais radicais, orga-
nizando-se e invadindo/ocupando terras, acelerando a reação dos
proprietários e da polícia.
As reformas agrárias que tiveram êxito [no mundo] foram rápidas, cus-
taram pouco e beneficiaram milhões de famílias. A do Japão, por
exemplo, praticamente confiscou as terras dos grandes proprietários,
transferindo um terço da área agrícola do país a 4 milhões de famílias
em apenas 21 meses. No Brasil de hoje, só é desapropriado quem quer
e pode aguardar com calma a sentença judicial que lhe atribuirá uma
indenização de valor escandaloso (VEIGA, 1996).

Por vezes, ocorre a “encomenda” de invasões por parte de


alguns grandes proprietários que querem vender rapidamente lo-
tes de suas terras a um preço acima do mercado, pressionando o
governo a indenizar o grande fazendeiro pelo preço declarado, ge-
ralmente superior ao preço dessa commodity na região (ALSTON et
alli, 1999, p.140). E isso à custa de vidas humanas.
Apesar da modernização técnica e crescimento da agricultu-
ra com o papel determinante do agronegócio, não houve mudança
na estrutura agrária (INCRA, 2005, p.38). Com mais liberdade
política, há a permissão da mobilização coletiva dos camponeses,
de um lado, e a contra-ofensiva dos donos de terra, de outro.

30

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Examinando a violência agrária no Brasil

Classificação da violência agrária no Brasil


Podemos chamar o conflito agrário no país de insurgência
camponesa? Na literatura brasileira, insurgência caracteriza-se por
“movimentos populares de rebeldia social protagonizada por ca-
madas oprimidas da população” (RAMOS, p.17)9. Nesse caso, a
camada oprimida é constituída por camponeses, que rebelaria con-
tra seus patrões e/ou contra o Estado. Mas, essa definição é muito
vaga.
De acordo com a literatura internacional, “insurgência é um
fenômeno que une diversos elementos em uma mistura explosiva.
Ela combina três elementos: primeiro, o ‘espírito’ da ‘rebelião’ cam-
ponesa tradicional; segundo, a ideologia e a organização da ‘revo-
lução’ moderna; e terceiro, as doutrinas operacionais de guerrilha”
(DESAI e ECKSTEIN, 1990, p.442).
Digamos que o “espírito” de rebelião os trabalhadores rurais
possuem, especialmente os sem-terra, que percorrem o país mobi-
lizando pessoas e conscientizando cada família rural de seu direito
de ocupar terras improdutivas.
A “ideologia” (segundo elemento) os camponeses brasileiros
também têm. Por exemplo, pessoas que estão interessadas em se
juntar ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) encon-
tram-se regularmente para aprender mais sobre as regras e ideais da
organização. Dos membros é esperado que sejam empenhados nos
ideais socialistas: o MST se vê lutando uma revolução que coloque o
país nas mãos da classe trabalhadora (WOLFORD, 1996, p.458).
Eles são muito organizados, especialmente desde a substi-
tuição do regime militar pelo democrático. A presença do terceiro
elemento (doutrinas de guerrilha) não é muito evidente. Porém,
de qualquer maneira, há autores que não encontram evidência al-

9
O contexto específico seria o de insurgência escravagista ou quilombola.

31

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

guma nas ações de treinamento de guerrilha (WRIGHT e


WOLFORD, 2003, p. 314-5). Os líderes do MST afirmam que a
maior parte da retórica revolucionária é apenas utilizada como
motivação de seus membros (PADGETT, 1998), mas não como
uma agenda de facto para a transformação do Brasil em país socia-
lista. É uma tática de grupos revolucionários para obter mais com-
prometimento dos recrutados, quando a promessa vem no lugar de
pagamento efetivo (WEINSTEIN, 2004).
O conflito de terra é caracterizado pela luta social, pois os
camponeses se cansaram de esperar por um programa de reforma
agrária prometido há tempos e nunca implementado, portanto, co-
meçaram a invadir terra alheia improdutiva. Isso gerou um conflito
com os proprietários originais (que tiveram suas terras ocupadas ou
como possíveis alvos a ocupações futuras) e o Estado. Muitas pessoas
morreram nesses confrontos, porém, está longe de ser uma guerra
civil, onde os trabalhadores rurais objetivam tomar o poder político.
No máximo, eles querem a terra improdutiva de terceiros.
No Brasil, os conflitos agrários das duas últimas décadas
produziram mais mortes do que a quantidade mínima em consen-
so para a classificação de guerra civil (que é, de acordo com algumas
definições, mais de 1000 mortes). Devemos chamá-los de guerra
civil? Certamente não. Conforme (uma das) definição(ões) ela deve
(1) desafiar a soberania de um país reconhecido internacionalmen-
te; (2) ocorrer dentro das fronteiras do país; (3) envolver o estado
como um dos principais combatentes; (4) contar com os rebeldes
armados que se opõem ao governo (SAMBANIS, 2000,
p. 779-802). A soberania brasileira não está ameaçada, e o país
tenta acomodar esse conflito por meio de reforma agrária e desa-
propriação de terra, concomitantemente. Os “rebeldes” (se é que
podem ser chamados assim) opõem-se à política agrária específica
dos governos brasileiros passados, porém não almejam tomar o poder
político de suas lideranças. Eles “somente” querem terra. E os pro-

32

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Examinando a violência agrária no Brasil

prietários “somente” querem manter suas terras (mesmo improdu-


tivas) em suas próprias mãos. Esse conflito de interesses pode ser
solucionado pelo governo por meio de políticas públicas agrárias
específicas.
Em outros países, conflitos de terra resultaram em guerras
civis. Um dos estudos mais conclusivos sobre guerrilhas modernas
da América Latina afirma que a posse de terra e a estrutura agrária
estão presentes nas rebeliões de Cuba, Venezuela, Guatemala,
Colombia, Peru, Nicarágua, e El Salvador (WICKHAM-
CROWLEY, 1992, p. 306-7). Por exemplo, em 1969, no Peru, o
presidente Alvarado fez uma reforma agrária que excluiu parte dos
camponeses de seus benefícios, elevando a violência. A violência
agrária brasileira é alta e a maioria das mortes tem ocorrido em
distantes localidades, de difícil acesso (veja tabela 4 e o mapa 1),
inclusive para a polícia. É uma situação que cria um “mundo para-
lelo”, deixando o Estado ausente ou em baixo perfil, facilitando
aos grandes proprietários de terras ou a grupos de camponeses re-
solverem as disputas de terra pela força e por seus próprios julga-
mentos, excluindo a participação das instituições legais.
O jornal O Estado de São Paulo cobriu a agenda política do
MST e confirmou que seu objetivo final é derrubar o capitalismo
(CARVALHO, 2002).
Nos primeiros dias do surgimento desse movimento, certa-
mente seus objetivos incluíam a “intenção de expropriar todos os
grandes proprietários de terras, implementar a produção coletiva
em novos assentamentos e elaborar um conjunto de leis para mu-
dar o sistema político do Brasil”. Os ativistas, nessa época, esta-
vam convencidos de que eles lutavam contra uma classe, da elite
dos proprietários de terras, e não contra um proprietário específico
(WRIGHT e WOLFORD, 2003, p.309).
Em geral, os membros utilizavam instrumentos agrícolas,
como garfos e foices, mas não armas de fogo. Esses instrumentos

33

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Chapéu de sol, com iniciais do movimento camponês, apoiado em parede de


casa pau a pique.

podem auxiliar na defesa contra os grandes proprietários ou a polí-


cia, caso sejam atacados com o objetivo de expulsarem os camponeses
de uma área invadida. Os camponeses estão em uma posição bem in-
ferior em relação ao poder de fogo do estado ou de segurança privados.
Portanto, a “revolução” está somente no imaginário de uma minoria
de membros dos movimentos camponeses. Pesquisadores afirmam que
a maioria de invasores que eles entrevistaram juntou-se ao MST “para
receber terras estariam surpresos se os mesmos fossem engajados
involuntariamente numa tentativa para derrubar o regime”. Eles ape-
nas queriam recursos suficientes para comprar maquinaria agrícola ou
um novo par de sapatos (WRIGHT e WOLFORD ,2003, p.313).
Os ideais dos movimentos camponeses mudaram ao longo dos
anos da mesma maneira como ocorreu com o partido dos trabalhado-
res (PT) do presidente Lula. No começo o PT era um partido de es-

34

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Examinando a violência agrária no Brasil

querda mais radical e, como estratégia para se eleger, moveu-se em


direção ao centro (essa, de acordo a DOWNS, 1999, é a estratégia de
partidos que buscam se eleger).
De qualquer forma, a violência é real e as pessoas estão morren-
do em disputas de terra. Mesmo que a “revolução” seja um termo que
não devamos utilizar para os assassinatos rurais no Brasil, podemos
fazer uso do termo “pequenas insurgências”. Essas pequenas insurgências
ocorrem, em sua maioria, em alguns estados federativos distantes dos
grandes centros, pelos dois lados do conflito: (1) camponeses e seus
simpatizantes pressionando o governo federal para agilizar e estender
a reforma agrária, reduzindo de maneira significativa a desigualdade
de terra nas zonas rurais, uma das mais concentradas do mundo; (2)
donos de grandes extensões de terra e seus seguranças pessoais, para
conservar suas propriedades privadas (mesmo que evidenciadas, mui-
tas vezes, por documentos forjados nos cartórios, comumente conheci-
dos como “grilagem de terra”).
Portanto, nessa investigação, referimo-nos à violência agrária
no Brasil, desde o período da redemocratização, como pequenas
insurgências, mesmo que o terceiro elemento (doutrinas operacionais
de guerrilha, de acordo com DESAI e ECKSTEIN, 1990) esteja au-
sente. Os termos disputa de terra ou conflitos de terra dá uma impres-
são errônea de que estes sejam conflitos de vizinhos apenas. Pequenas
insurgências incluem o governo como parte do problema e, certamen-
te, ele pode ser parte da solução também.
Curiosamente, as mortes agrárias do período estudado da
redemocratização (1985-2005) ultrapassaram em muito as mortes
agrárias do período ditatorial (1964-1984), representando 62 e 38%
de todas as mortes agrárias entre 1964-2005, respectivamente10.

10
O período do regime militar é baseado em dados do MST (1986) e os dados do
período de redemocratização baseiam-se na CPT (1985-2005).

35

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Há poucos trabalhos quantitativos sobre a violência agrária


no Brasil, principalmente por falta de dados disponíveis. Com a
escalada desse tipo de violência nas últimas décadas, multiplica-
ram-se os estudos acadêmicos da literatura internacional, mas são
raras as pesquisas comparativas e quantitativas sobre o Brasil. Um
aprofundamento desse tema é necessário para melhorar o conheci-
mento das causas e do recurso à violência (KAY, 2001, p.741).
Portanto, pretendemos contribuir para uma melhor compreensão
do tema, por meio do auxílio de dados, apresentados no item a
seguir.

Perfil das vítimas da violência agrária: quantos, quem, aonde


Como não há dados sobre as vítimas fatais desse tipo de con-
flito do lado do grande proprietário (capangas, seguranças, fami-
liares) e do estado (policiais11, soldados, juízes), disponibilizaremos
dados sobre as vítimas fatais do lado camponês e dos que os defen-
dem, grupo onde há a maior quantidade de mortes.
No quadro da página seguinte podemos observar as diferen-
tes profissões e/ou categorias das vítimas fatais12, para identificar
quais os grupos mais afetados dentre os camponeses e seus defen-
sores.

11
Há exceções quando policiais recusam cumprir suas funções e acabam sendo víti-
mas fatais.
12
A classificação completa de cada categoria consta no anexo I.

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Examinando a violência agrária no Brasil

Tabela 3: Quantidade de mortos13 em conflitos de terra entre


1985 – 2005 por categoria/profissão.
Categoria/Profissão
Advo- Assen- Garim Indio Lide- Outro Pequeno Pequeno Polí- Pos- Reli- Sindi- Traba Sem- Total
gado, tado -peiro rança arrenda- proprie- tico seiro gioso calista - Terra de
funcio- tário tário lhador Mor-
nalismo rural tes
público
21 61 44 70 62 63 19 139 6 343 10 81 204 173 1296
1,62% 4,71% 3,39 5,40 4,78 4,86 1,47% 10,73% 0,46 26,47 0,77 6,25 15,7 13,35 100%
% % % % % % % % % %

Fonte: Baseado em dados da Comissão Pastoral da Terra (1985 – 2005).

O grupo mais vitimizado como consequência de conflitos


de terra entre os camponeses (mais de ¼ do total de mortes) é
formado pelos posseiros. O confronto entre polícia e/ou seguranças
do proprietário com os que tomaram posse de um pedaço de terra
sem direito legal a ela provoca elevado nível de violência. Os tra-
balhadores rurais e sem-terra são os próximos da lista, em ordem
descrescente. As invasões e ocupações de terra fazem muitas víti-
mas fatais. Os pequenos proprietários também são vítimas na ten-
tativa de aumentar suas terras, insuficientes para a subsistência
familiar. Os quatro grupos juntos são responsáveis por mais
de 66% de todas as “mortes agrárias” no Brasil, nas últimas duas
décadas.
Apesar de a mídia extra-dimensionar a participação e a vio-
lência contra os sem-terra especificamente, vários outros grupos
sofrem com os conflitos de terra, como, por exemplo, índios e
quilombolas, garimpeiros, líderes de movimentos sociais, assenta-
dos, pequenos arrendatários, sindicalistas e religiosos. Poucos po-
líticos foram mortos, pois, geralmente, eles próprios possuem
muitas terras e não se posicionam a favor das camadas mais
desfavorecidas da sociedade rural, a não ser em tempos de eleições
com promessas vazias.

13
A Comissão Pastoral da Terra apenas considera as mortes que fazem parte do gru-
po camponês ou seus defensores.

37

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 37 18/3/2011, 15:16


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Um grupo que nos surpreende por também ser vítima é cons-


tituído por assentados. Estes, já conquistaram seu pedaço de terra
e, supostamente, poderiam ficar fora dos conflitos existentes, pois
são os consagrados pela reforma agrária. Porém, o pedaço que ga-
nharam, por vezes, continua sendo insuficiente para a subsistên-
cia. Ou, mesmo sendo recompensados com a terra tão sonhada, são
solidários e até ativos na luta dos que ainda não foram beneficiados
pela reforma agrária para aquisição de um terreno de plantio e
criação de animais.

Camponeses do acampamento/ocupação Comunidade União Batente (Liga dos


Camponeses Pobres), da Fazenda Batente (sul do Pará) em reunião para discutir
assuntos relacionados à violência agrária, tanto externa (com fazendeiros) como
interna (de conflitos de moradores).

38

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 38 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

O Brasil é um país com diferenças regionais muito acentua-


das e, por esse motivo, é importante verificar quantas mortes ocor-
rem em cada estado em números absolutos e proporcionais à
quantidade de municípios e população existentes.
Podemos visualizar, na tabela da próxima página que, em
números absolutos, o Pará (392) é o estado mais violento, seguido
por um empate entre Maranhão e Mato Grosso (ambos com 113).
Nos outros estados, as vítimas não ultrapassam os 100 pelos 21
anos da contagem. A região Norte é a mais violenta a frente do
Nordeste e Centro-oeste, em contraste com o bem menos violento
Sudeste e Sul.
Como os estados brasileiros diferem bastante em relação ao
número de municípios que cada um abrange, variando de 15 (RR)
a 853 (MG)14, seria conveniente enumerar proporcionalmente o
número de mortes de cada estado. O Pará (2,74) continua na lide-
rança na frente de Roraima (1,60) e Rondônia (1,12). Todos de
uma mesma região: Norte. O Mato Grosso (0,80) aparece em se-
guida. Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio Grande do Norte apa-
recem empatados em último lugar (0,02). O Norte é a região mais
violenta proporcionalmente em número de municípios (1,29), se-
guido pelo Centro-oeste (0,36), Nordeste (0,20), Sudeste (0,08) e
Sul (0,06).

14
Não nos referimos ao Distrito Federal. Para efeito dessa pesquisa, incluímos o DF
como parte do estado de Goiás, somente por propósitos de análise.

39

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 4: Mortes agrárias por estados brasileiros (1985 – 2005).


Região Estado Federativo Mortes Municípios (mortes/munic.) Mortes por 100,000 15
Norte RO (Rondônia) 58 52 (1,12) 11,71
AC (Acre) 15 22 (0,68) 8,01
AM (Amazonas) 43 62 (0,69) 6,10
RR (Roraima) 24 15 (1,60) 31,02
PA (Pará) 392 143 (2,74) 18,92
AP (Amapá) 6 16 (0,38) 11,46
TO (Tocantins) 40 139 (0,29) 13,46
Total da região norte 578 449 (1,29) 38,86
Nordeste MA (Maranhão) 113 217 (0,52) 4,94
PI (Piauí) 16 223 (0,07) 1,52
CE (Ceará) 17 184 (0,09) 0,80
RN (Rio Grande Norte) 4 167 (0,02) 0,54
PB (Paraíba) 20 223 (0,09) 2,01
PE (Pernambuco) 61 185 (0,33) 3,28
AL (Alagoas) 19 102 (0,19) 2,16
SE (Sergipe) 4 75 (0,05) 0,78
BA (Bahia) 99 417 (0,24) 2,30
Total da região nordeste 353 1793 (0,20) 2,39
Sudeste MG (Minas Gerais) 75 853 (0,09) 2,33
ES (Espírito Santo) 15 78 (0,19) 2,37
RJ (Rio de Janeiro) 23 92 (0,25) 4,04
SP (São Paulo) 15 645 (0,02) 0,61
Total da região sudeste 128 1668 (0,08) 1,87
Sul PR (Paraná) 46 399 (0,12) 2,59
SC (Santa Catarina) 13 293 (0,04) 1,14
RS (Rio Grande do Sul) 12 496 (0,02) 0,64
Total da região sul 71 1188 (0,06) 1,48
Centro- MS (Mato Grosso Sul) 32 78 (0,41) 9,67
Oeste MT (Mato Grosso) 113 141 (0,80) 21,87
GO (Goiás) 21 246 (0,09) 3,02
Total da região centro-oeste 166 465 (0,36) 10,75
Total Brasil 1296 5563 (0,23) 4,07

Fonte: Autoria própria (baseado em dados da CPT 1985 – 2005 e IBGE).

15
Dados estimados do IBGE para a população rural – ano 2000.

40

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 40 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

Além dos estados se diferenciarem proporcionalmente pela


quantidade de municípios, eles também variam em relação ao ta-
manho de suas populações rurais. Por causa disso, incluimos na
tabela a relação do número de mortes em conflitos agrários por
100 mil habitantes. Roraima (31,02) possui a maior quantidade,
seguido pelo Mato Grosso (21,87), Pará (18,92) e Tocantins (13,46).
Entre os menos violentos por 100 mil habitantes estão Rio Grande
do Norte (0,54) e São Paulo (0,61). A ordem descendente das re-
giões mais violentas para as menos violentas é a seguinte: Norte
(38,86), Centro-oeste (10,75), Nordeste (2,39), Sudeste (1,87) e
Sul (1,48).
O Brasil, como um todo, entre 1985-2005, possui 1.296
mortes agrárias, 0,23 mortes por município, e 4,07 mortes por
100 mil habitantes rurais.
De acordo com dados apresentados na tabela anterior, verifi-
camos que o estado do Pará é um dos mais violentos nas várias
categorias apresentadas. Proporcionalmente, a região em que se
encontra (Norte) é a mais violenta. O Centro-oeste vem logo em
seguida, com o estado de Mato Grosso liderando em níveis de vio-
lência. A região Nordeste é o terceiro lugar, mas com números
bem mais modestos que as já mencionadas regiões. O Sudeste e o
Sul apresentam muito pouca violência agrária.
Mesmo os estados brasileiros podem apresentar concentrações
em relação a mortes em certos municípios e em outros simplesmen-
te não ocorrer violência. Para não atribuir aos estados a característica
de violentos, consideramos, na tabela da página 43, a desagregação
dos dados aos municípios. Apresentamos os 40 municípios com maior
quantidade de mortes resultantes de conflitos agrários no Brasil,
indicando o estado a que pertence o município, o número de mortes,
e o número proporcional de mortes em relação à população rural do
município, já que, em geral, os envolvidos, de alguma forma, per-
tencem à camada rural da população.

41

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 41 18/3/2011, 15:16


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Cidades do Pará lideram o número de mortes: Aparecem 15


vezes na lista dos 40 primeiros colocados, sendo que fazem parte
dos 7 primeiros. Xinguara (59) e Marabá (42) são os municípios
onde ocorreu o maior número de vítimas fatais resultante de con-
flitos agrários. É importante frisar que o estado poderia ser violen-
to em poucas cidades e num evento específico. Apesar de não
apresentarmos o quadro com informações temporais, para saber se
há incidência uniforme de eventos durante todo o período (1985 –
2005), podemos afirmar, com base nos dados estudados, que mesmo
nos municípios mais violentos, as mortes ocorrem anualmente e
estão presentes em inúmeros eventos.
Maranhão aparece com 6 municípios, Rondônia com 5 e Mato
Grosso com 4. O Sul (PR) e Sudeste (ES) apresentam apenas 1
município cada, com poucas vítimas. Em casos em que a ocorrên-
cia estava registrada em dois municípios adjacentes, optou-se por
incluí-la no primeiro município mencionado.
Dos 5 municípios mais violentos proporcionalmente em re-
lação a população rural (Xinguara, Mucajaí, Rio Maria, Redenção
e São João do Araguaia) apenas um (Mucajaí, RR) localiza-se fora
do estado do Pará, porém, ainda na região Norte.
A desagregação de dados é relevante para descobrirmos cada
vez mais informações a respeito de municípios e localidades e, para
que, com isso, possam ser criadas políticas públicas específicas para
cada problema pontual.
Não é apenas a violência agrária que deixa mais vítimas em
números absolutos nas regiões Norte e Nordeste, reduzindo de
maneira drástica nas regiões Sudeste e Sul. Algumas das muitas
variáveis que deixam certas localidades com maior tendência a esse
tipo de crime são: desigualdade (de terra e de renda), (baixo nível
de) educação, economia (em crise), (alta densidade da) população
rural e (baixo) índice de desenvolvimento humano, que também
acompanham essa trajetória.

42

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 42 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

Tabela 5: Municípios com mais mortes agrárias (1985 – 2005)16


Posição 40 Municípios Estado Mortes Mortes/Pop.Rural (%) 17

1 Xinguara PA 59 0,66
2 Marabá PA 42 0,12
3 Eldorado dos Carajás PA 28 0,18
4 São Félix do Xingu PA 26 0,12
5 Parauapebas PA 22 0,18
São João do Araguaia PA 22 0,22
7 Rio Maria PA 20 0,43
Mucajaí RR 20 0,47
9 Santa Luzia MA 18 0,04
Novo Repartimento PA 18 0,07
11 Benjamin Constant AM 17 0,18
12 Alta Floresta MT 15 0,15
13 Tailândia PA 13 0,13
14 Aripuanã MT 12 0,09
15 Curionópolis PA 11 0,18
Paragominas PA 11 0,06
17 Jauru MT 10 0,15
Conceição do Araguaia PA 10 0,07
Corumbiara RO 10 0,12
20 São Gabriel da Cachoeira AM 9 0,05
Juína MT 9 0,12
Redenção PA 9 0,25
Santana do Araguaia PA 9 0,06
24 Imperatriz MA 8 0,07
Pau Brasil BA 7 0,16
Coroatá MA 7 0,03
Grajaú MA 7 0,03
Terra Nova do Norte MT 7 0,09
Porto Murtinho MS 7 0,14
Ariquemes RO 7 0,04
Araguatins TO 7 0,07
32 Santa Leopoldina ES 6 0,06
Bacabal MA 6 0,03
Bom Jardim MA 6 0,03
Tucumã PA 6 0,07
Rio Bonito do Iguaçu PR 6 0,05
Salto do Jacuí RS 6 0,20
Nova Mamoré RO 6 0,08
Pimenta Bueno RO 6 0,11
Vilhena RO 6 0,20
Fonte: Baseado em dados da Comissão Pastoral da Terra (1985 – 2005).

16
Esse número representa 531 mortes agrárias, e 41% de todas as mortes desse gêne-
ro no Brasil.
17
Segundo o censo do ano de 2000 (IBGE).

43

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 43 18/3/2011, 16:03


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Estudando algumas dessas variáveis, podemos observar que


as regiões norte e nordeste apresentam os piores índices socioeco-
nômicos e as regiões sudeste e sul os melhores. Já a região centro-
oeste aparece em níveis intermediários. Não é coincidência quando
o mapa número 1 (anexo II) exibe a distribuição da população
rural pelo país. As mortes agrárias dos 40 municípios onde elas
ocorreram em maior quantidade encontram-se em regiões onde
vive grande parte da população rural. Não é de se estranhar
que mortes ‘agrárias’ ocorram em locais onde a população rural
resida18. Esse mapa específico nos dá uma noção geográfica real da
população rural e dos crimes agrários por todo Brasil.
Portanto, onde há uma população rural maior e mais aglo-
merada, índice de desigualdade e pobreza mais acentuado, maior
analfabetismo e nível geral de IDH deficiente, ocorre também mais
violência, que é motivada, entre outros fatores, pela busca de um
pedaço de terra para subsistência e sustento familiar.
Mesmo com essa tendência geral dos dados para as diferen-
tes regiões do Brasil, queremos encontrar fatores que venham a
motivar ou inibir o aumento de mortes agrárias. Portanto, discuti-
remos na sequência, dois tipos de agricultura que podem associar-
se ao maior ou menor nível de violência no campo, ou seja, a
agricultura familiar e a patronal.

Redução do número de vítimas pela redistribuição de terra


A distribuição altamente desigual de terra no país persiste
por décadas, como demonstra a tabela seguinte, e pode contribuir
com a insatisfação camponesa levando os grupos menos favoreci-
dos do campo a demonstrar alguma forma de repúdio, o que pro-

18
Se bem que, certas mortes agrárias ocorreram em regiões urbanas, esse não era o
comum para crimes de origem agrária.

44

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 44 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

vocaria reação em rede dos grandes proprietários. Ou seja, elevar-


se-ia o nível da violência agrária.
Um pequeno proprietário, que já possui espaço para planta-
ção insuficiente para a subsistência de sua família, quando passa
adiante sua herança aos filhos, aumenta em várias vezes o proble-
ma de seus descendentes. A situação os obriga a deixar a terra her-
dada para apenas um dos filhos (geralmente o mais velho do sexo
masculino) e tentar a vida na cidade ou se rebelar contra grandes
proprietários e/ou estado.

Tabela 6 – Evolução da estrutura fundiária 1966/1992:


Porcentagem sobre o total das terras do Brasil.
Distribuição das terras rurais 1966 1972 1978 1992
Propriedade com menos de 100 ha. 20,49 % 16,4 % 13,5 % 15,4 %
Propriedade com mais de 1000 ha. 45,1 % 47,0 % 53,3 % 55,2 %

Fonte: INCRA (1992).

Em geral, a agricultura familiar está relacionada a pequenos


lotes de terra em que a própria família labora, com a contratação
esporádica de um ou outro trabalhador assalariado em tempos de
maior necessidade de mão de obra, como no caso das colheitas.
Além disso, há maior diversificação da produção e ênfase nos
insumos internos produzidos.
A agricultura patronal, pelo contrário, desvincula os proprie-
tários do trabalho braçal no campo, ficando estes encarregados da
administração dos muitos assalariados da fazenda (ROMERO, 1998,
p.77), isto quando estes não contratam administradores externos,
indo morar nos centros urbanos. Comumente, esse tipo de agricul-
tura localiza-se em grandes extensões de terra, a organização é alta-
mente centralizada, com ênfase na especialização e padronização de
práticas agrícolas, além da dependência de insumos comprados.

45

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 45 18/3/2011, 15:16


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Por que a violência agrária ocorre em maior grau nos muni-


cípios e estados mencionados no item anterior, e com as catego-
rias/profissões estudadas? Há alguma relação com outros contextos?
Nesse item, tentaremos entender melhor a temática, além de rela-
cionar a desigualdade na distribuição da terra com o alto grau de
violência agrária.
Para isso, sugerimos a seguinte hipótese: “Em localidades
onde a terra é mais bem distribuída entre a população rural,
o risco de violência agrária é menor do que nas regiões onde
ela encontra-se, em grande parte, nas mãos de donos de vas-
tas extensões de terra”.
A melhor distribuição da terra, nesse livro, será representa-
da pela agricultura familiar, e o oposto pela agricultura patronal19.
Mensuramos a violência agrária pela quantidade de mortes (do lado
camponês) provenientes de disputa por terra no campo. Optamos
por essa medida ao invés de outros índices de concentração de ter-
ra, pois a literatura insiste nos termos de agricultura patronal e
familiar como, respectivamente, problema e solução à reforma agrá-
ria e à redução de conflitos no campo, supostamente reduzindo a
violência. Porém, em geral, estes termos não são empiricamente
testados, principalmente no contexto da violência agrária.
Podemos verificar a hipótese proposta na diferenciação en-
tre agricultura familiar e agricultura patronal. Os países que os-
tentam os melhores índices de desenvolvimento humano (IDH)
apresentam uma forte presença de agricultura familiar, que se ba-
seou na garantia do acesso à terra. Além de contribuir para dina-

19
Haverá casos nos quais a unidade de agricultura familiar é suficientemente grande
e a unidade da agricultura patronal é muito pequena. Porém, essa não é a regra. De
qualquer maneira, na análise estatística (não na parte descritiva), consideramos as
unidades de agricultura familiar e patronal de renda baixa, para ajustar e compen-
sar pelas exceções nas respectivas categorias.

46

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 46 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

mizar o crescimento econômico, a agricultura familiar garantiu


uma transição socialmente equilibrada entre uma economia de base
rural para uma economia urbana e industrial. O contraste é gritan-
te com os desequilíbrios socioeconômicos que caracterizam a maioria
dos países em desenvolvimento, especialmente os latino-america-
nos e o Brasil em particular (GUANZIROLI et alli, 2001).
No Brasil, os municípios que tiveram os maiores IDHs me-
didos pela ONU, em 1998, foram municípios com predomínio da
agricultura familiar (VEIGA, 2000, p.125-128).
Estudos revelam que a predominância da agricultura patro-
nal cria condições precárias de moradia, reduz a quantidade de
equipamentos de lazer e eleva a delinquência infanto-juvenil, ao
contrário do que ocorre com locais onde a agricultura familiar é
predominante (BUTTIMER, 1995)20. Os grandes proprietários e
empresários rurais, em face da revitalização do movimento de ocu-
pação de terras durante a Nova República, reagem violentamente
contra a invasão de suas terras. “Não se trata de um ato individual
e esporádico, mas de violência ritualizada e institucionalizada, que
implica a formação de milícias, a contratação de capangas e a lista
dos marcados para morrer e os massacres” (BRUNO, 2003, p.285-
286). É de se supor que a violência agrária esteja relacionada a essa
diferenciação entre os dois tipos de agricultura mencionados.
Veremos, a seguir, a análise dos dados referentes à agricultu-
ra familiar, de um lado, e à patronal, de outro, para relacioná-las
posteriormente ao nível de violência agrária.
É evidente a desigualdade do número de estabelecimentos
rurais e o tamanho dessas propriedades: enquanto a agricultura
familiar representa 88% dos estabelecimentos agrários, ela ocupa

20
Essas descobertas referem-se a algumas regiões dos Estados Unidos. Mesmo assim,
acreditamos que resultados semelhantes possam ser generalizados (inclusive ao Brasil).

47

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 47 18/3/2011, 15:16


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

apenas 31% das terras. Já a agricultura patronal representa apenas


12% dos estabelecimentos agrários no Brasil, mas ocupa 69% das
terras no país. Esse desnível entre número de estabelecimentos e
área ocupada é imenso.

Figura 2: Estabelecimentos rurais no Brasil, 1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

Figura 3: Área rural no Brasil, 1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

48

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 48 18/3/2011, 16:04


Examinando a violência agrária no Brasil

Apesar de maioria, os agricultores familiares recebem pouco


financiamento de bancos estatais ou privados (26% do volume to-
tal) em comparação com os agricultores patronais (74% do total).
Podemos supor que a pouca informação e a falta de garantias para
oferecer aos bancos caso não possam cumprir com os contratos as-
sumidos sejam relevantes ao baixo acesso de agricultores familia-
res ao crédito.
Enquanto os agricultores familiares receberam, em média,
R$227,00 por estabelecimento, os agricultores patronais recebe-
ram quase 22 vezes mais (R$4.925,00) por estabelecimento. O
equivalente à área por hectare na agricultura familiar seria de
R$9,00, e na patronal de R$11,00, levando em consideração que
essa última é bem mais improdutiva que o primeiro tipo.

Figura 4: Porcentagem do financiamento à


agricultura no Brasil, 1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

Os agricultores familiares receberam, entre 1985 e 2005,


52% do lucro, enquanto os agricultores patronais ficaram com os
48% restantes. Porém, os primeiros representam 88% dos estabe-

49

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

lecimentos e seu lucro é bem menor proporcionalmente, em rela-


ção ao dos agricultores patronais.

Figura 5: Lucro atribuído à agricultura no Brasil, 1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

Dessa maneira, a renda total, em média, de cada estabeleci-


mento da agricultura familiar foi de R$2.118,00, enquanto a de
agricultura patronal foi 7 vezes superior, ou seja, R$19.048,00 ao
ano. No entanto, se calcularmos a renda proporcional à area total
dos estabelecimentos de agricultura familiar e patronal, no pri-
meiro tipo o valor corresponde a R$104,00/hectare, e no segundo
R$44,00/hectare. Ou seja, a agricultura familiar rende 2,4 vezes
mais por hectare do que a patronal. Concluimos, com isso, que a
terra em que é praticada a agricultura familiar é muito mais pro-
dutiva e explorada intensamente do que a da agricultura patronal.
As diferenças são gritantes.
Mostraremos, a seguir, as diferenças inter-regionais, desa-
gregando os dados pelas diferentes regiões, já que o país apresenta
uma desigualdade intensa.

50

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 50 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

No nordeste há maior diferença entre o número de estabele-


cimentos da agricultura familiar e da patronal, seguidos pelo sul,
sudeste, norte e centro-oeste. Isso indica, à primeira vista, que há
maior igualdade na distribuição de estabelecimentos, pois muitas
famílias se ocupam da agricultura familiar. Porém, isso não garan-
te uma distribuição de terras menos desigual, pois além do núme-
ro de estabelecimentos existentes, devemos verificar também a àrea
que estes ocupam.

Figura 6: Número de estabelecimentos rurais por região


brasileira, 1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

Em geral, a agricultura patronal ocupa maiores extensões de


terra, em todas as regiões. No nordeste há um desnível acentuado
em relação ao número de estabelecimentos e a quantidade de terras
de cada tipo de agricultura. No centro-oeste esse desnível também
é grande. Aliás, em todo o país há inequidade abrupta, mesmo que
em algumas regiões o tema seja mais alarmante que em outras.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 51 18/3/2011, 16:08


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Proporcionalmente, a região Nordeste apresenta o menor


tamanho médio de estabelecimento rural de agricultura familiar
(17 ha.)21, o Sul vem a seguir (com 21 ha.), o sudeste (30 ha.),
Norte (57 ha.) e, por último, o Centro-oeste (com 84 ha.). Em
relação aos estabelecimentos agrários da agricultura patronal, a
ordem é a seguinte, do menor tamanho ao maior: Sudeste (com a
média de 222 ha.), seguido pelo Nordeste (com 269 ha.), Sul (283
ha.), Norte (com 1.008 ha.) e, finalmente, Centro-oeste (apresen-
tando 1.324 ha. em média).
A agricultura patronal, sendo de maior tamanho, pode im-
por seu poder político e econômico às unidades de agricultura fa-
miliar, principalmente se elas forem pequenas. Geralmente, os
grandes proprietários (patronais) empregam, em certas épocas do
ano, parte dos membros que formam a agricultura familiar, haven-
do uma complementação de renda e criando uma dependência destes
em função dos donos de terra. Portanto, de um lado, o norte e o
centro-oeste apresentam um domínio de vastas extensões das uni-
dades de agricultura patronal e, de outro, o nordeste apresenta
unidades de agricultura familiar muito pequenas, em média. Não
é coincidência que essas três regiões mencionadas são as que têm
maior quantidade de vítimas agrárias em seu perímetro.
Se fôssemos relativizar as unidades de agricultura patronal
em relação às unidades de agricultura familiar, novamente as três
regiões sugeridas encabeçariam a lista das maiores diferenças. No
norte, as unidades de agricultura patronal, em média, são 18 vezes
maiores que as unidades de agricultura familiar. No nordeste e no
centro-oeste as patronais são 16 vezes, em média, maiores que as
familiares. Já no sul essa relação passa para 13 vezes e no sudeste

21
É compreensível, já que há uma grande disparidade entre o número de estabeleci-
mentos de agricultura familiar e patronal. A questão é saber se as famílias podem
subsistir em tão ínfimo espaço de plantação.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 52 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

para 7 vezes maior a unidade de agricultura patronal do que a


familiar.

Figura 7: Área dos estabelecimentos rurais por região brasileira,


1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

Apenas na região sul há menor discrepância entre os tipos


de agricultura e o nível de crédito de cada um. Presume-se que o
nível de informação, educação e a renda per capita tem sua função
na aquisição de crédito e apresentação de garantias aos emprésti-
mos adquiridos.
O crédito em relação ao número total de estabelecimentos
de cada um dos tipos (agricultura familiar e patronal) em cada
região varia. Na agricultura familiar, o crédito médio vai desde
R$65 por estabelecimento (no caso de todos haverem recebido)
para o Nordeste, R$132 para o Norte, R$227 para o Sudeste,
R$568 para o Sul, e R$574 para o Centro-oeste. No caso da agri-
cultura patronal, R$2.183 ao Nordeste, R$2.294 ao Norte,
R$4.934 para o Sudeste, R$7.701 para o Sul, e R$9.006 para o
Centro-oeste. A relação entre os dois tipos de agricultura em cada

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

região, favorável à agricultura patronal, é de 14 vezes mais crédito


para a agricultura patronal do que para a familiar na região Sul, 16
vezes mais para a agricultura patronal no Centro-oeste, 17 vezes
mais a agricultura patronal do Norte, 22 vezes mais para a agricul-
tura patronal no Sudeste e, finalmente, 34 vezes mais crédito para
a agricultura patronal do que a familiar para a região Nordeste.

Figura 8: Financiamento rural, por região, 1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

Analisando proporcionalmente as diversas regiões do Brasil,


levando em consideração o número total de estabelecimentos ru-
rais, o lucro das unidades de agricultura patronal em relação à fa-
miliar seria, no Nordeste, cerca de 9 vezes maior; no Centro-oeste
seria cerca de 8 vezes maior; no Sul e Sudeste 5 vezes, e no Nordes-
te 4 vezes maior na patronal que na familiar.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 54 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

Figura 9: Lucro agrícola, por região brasileira, 1985 – 2005.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA).

Após mostrar as diferenças regionais entre a agricultura fa-


miliar e a patronal, nas figuras seguintes indicamos as diferenças
regionais e estaduais no número de mortes.

Figuras 10 e 11: Mortes agrárias, por estado; por região, 1985 – 2005

Fonte: Autoria própria (baseado em dados da Comissão Pastoral da Terra, 1985 – 2005
55

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 55 18/3/2011, 15:16


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

É bem possível que o estado do Pará tenha elevado o índice


regional de mortes agrárias, assim como os estados do Mato Gros-
so, Maranhão e Bahia tenham também elevado o índice em suas
respectivas regiões, mesmo que no Pará a quantidade seja bem
superior à desses outros estados.
Em adicional, devemos ressaltar que não há obrigatoriedade
de que os estados mais violentos em conflitos agrários nas duas
décadas estudadas sejam os que indicaram grandes diferenças en-
tre a agricultura patronal e familiar. Outras variáveis podem inter-
vir entre as mencionadas.

Tabela 7: Diferenças entre a agricultura familiar e a patronal em


relação ao tamanho médio de estabelecimentos agrários em cada
município, com ou sem mortes no campo.
Agricultura Familiar Agricultura Patronal
Média da área/estabelecimento para cada município
(medido em hectares)
Sem mortes
agrárias
37 372
Com mortes
agrárias
48 789

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA 2003 e CPT 1985-2005).

A tabela acima mostra que o tamanho médio de cada estabe-


lecimento em municípios onde houve ao menos 1 morte como re-
sultado de conflito agrário entre 1985 – 2005 era maior, tanto na
agricultura familiar como na patronal. No entanto, a diferença do
tamanho dos estabelecimentos entre os municípios com mortes na
agricultura patronal é bem maior (2,12 vezes) do que na agricul-
tura familiar (apenas 1,3 vezes). Portanto, devemos prestar aten-

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Examinando a violência agrária no Brasil

ção ao tamanho da unidade de agricultura patronal em testes esta-


tísticos mais refinados. As unidades maiores podem apresentar ris-
co mais elevado de mortes agrárias.

Análise de dados
Nessa seção apresentaremos a evidência empírica com o tes-
te da hipótese sugerida no início da seção anterior. A literatura
aponta para maior violência quando há uma alta concentração,
porém, não demonstra isso. Com mais unidades de agricultura fa-
miliar, o nível de morte causado por conflitos agrários se reduziria,
enquanto que maior número de propriedades da agricultura pa-
tronal elevaria o nível de morte agrária22.
Os governos brasileiros (desde a redemocratização) têm tra-
balhado para a reforma agrária e sua intenção é redistribuir terra à
população rural mais carente, mesmo que a quantidade de assenta-
mentos efetivamente implantados por alguns governos seja irrisó-
ria. As políticas públicas mostram esse rumo. Agora testaremos se
há uma associação entre o nível de violência agrária e a quantidade
de agricultura familiar ou patronal, de acordo com cada município
brasileiro, além de outras variáveis.
Após a exibição da tabela das variáveis independentes, mos-
traremos uma tabela de regressão logística, com análise multivariada
de efeito aleatório. Ela foi realizada por meio do programa SPSS
versão 15.0, com as diferentes categorias mostradas na tabela des-
critiva número 3 como variáveis dependentes, as quais tentaremos
explicar em modelos diversos.

22
No entanto, devemos frisar que a preocupação deste capítulo centra-se na violên-
cia agrária e não na desigualdade, mesmo que essa última afete nosso principal
objeto de estudo (o que será objeto de análise no próximo capítulo).

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 8: Descrição das variáveis independentes.


Variáveis Independentes
Nome Descrição Fonte Valores
RURPOP Número da população rural IBGE (2000) Transform. em quartis
NUESTFF Número de estabelecimentos da INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
agricultura familiar
TOAREAFF Área total da agric. familiar INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
TOCREFF Crédito total agric. familiar INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
TOPROFF Lucro total da agric. familiar INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
NUESTFF27500 Número de estabelecimentos da INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
agric. fam. de baixa renda (até
R$27.500,00/ano)
NUESTPA Número de estabelecimentos da INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
agricultura patronal
TOAREAPA Área total da agric. patronal INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
TOCREPA Crédito total agric. patronal INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
TOPROPA Lucro total da agric. patronal INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
NUESTPA27500 Número de estabelecimentos da INCRA/FAO (2000) Transform. em quartis
agric. patronal baixa renda (até
27.500,00/ano)

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA 2000).

Dos 15 diferentes modelos de categoria de mortes agrárias,


explicaremos o geral, o posseiro, o trabalhador rural, o sem-terra, e
o pequeno proprietário. Juntos (aparte do modelo geral), eles re-
presentam mais de 66 pontos percentuais de todas as mortes agrá-
rias ocorridas entre 1985 – 2005.

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Tabela 9: Modelos geral e de categorias diferentes de mortes agrárias no Brasil (por municípios)1.
Variáveis Dependentes

Variáveis Mortes Advogado,fu Assen- Garim- Índio Liderança Outro Pequeno Pequeno Político Posseiro Religi-oso Sindi- Traba- Sem-terra
agrárias ncional. tado peiro arrenda- proprie- calista lhador
Independentes geral público tário tário rural (14)
(1) (2) (8) (9) (12) (15)
(3) (4) (13)
(5) (6) (7) (10) (11)

População rural 2,314*** 2,065** 3,051*** 1,786 2,119*** 3,752*** 2,426*** 3,302*** 1,824*** 0,612 2,115*** 4,350** 2,992*** 2,791*** 2,030***

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[RURPOP] (0,067) (0,338) (0,235) (0,393) (0,284) (0,216) (0,213) (0,418) (0,153) (0,767) (0,132) (0,639) (0,195) (0,138) (0,136)

Nº de estabelecs. da 0,932 0,777 0,745 0,681 0,974 0,559*** 0,683* 0,531 1,183 3,751 0,891 0,840 0,926 0,792* 1,211
agricultura familiar
(0,072) (0,368) (0,232) (0,431) (0,297) (0,207) (0,226) (0,403) (0,160) (0,916) (0,134) (0,494) (0,186) (0,137) (0,150)

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[NUESTFF]

Área total da 0,949 0,949 1,437 1,362 0,756 0,916 1,309 1,580 1,173 0,790 1,399** 3,059 0,947 0,958 0,789*
agricultura familiar
(0,069) (0,373) (0,233) (0,434) (0,279) (0,210) (0,230) (0,450) (0,148) (0,777) (0,132) (0,695) (0,185) (0,137) (0,143)
[TOAREAFF]

Crédito total da 1,017 0,885 1,061 1,196 0,677 1,946*** 1,130 1,845 0,928 0,988 0,976 0,767 0,987 1,092 1,024
agricultura familiar
(0,059) (0,317) (0,184) (0,346) (0,240) (0,187) (0,188) (0,379) (0,118) (0,531) (0,102) (0,343) (0,151) (0,116) (0,120)
Examinando a violência agrária no Brasil

[TOCREFF]

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ções (ou municípios) para o ano de 2000.
Nº de estabelecs. da 0,902* 1,491 0,607*** 0,965 1,015 1,181 1,023 1,286 0,843 0,957 0,852* 0,490** 1,057 0,888 0,887
agricultura familiar de
baixa renda (0,055) (0,316) (0,175) (0,323) (0,229) (0,168) (0,180) (0,350) (0,112) (0,530) (0,097) (0,348) (0,147) (0,108) (0,114)

[NUESTFF27500]

Nº de estabelecs. da 0,770*** 1,673 0,503*** 1,033 0,833 0,692 0,551** 0,280*** 1,179 0,831 1,096 0,492 0,657** 0,937 0,521***
agricultura patronal
(0,078) (0,421) (0,249) (0,482) (0,313) (0,231) (0,255) (0,447) (0,163) (0,782) (0,142) (0,528) (0,206) (0,158) (0,160)
[NUESTPA]

Área total da 2,000*** 0,754 2,361*** 2,596* 3,420*** 2,844*** 2,596*** 5,445*** 1,352** 779930,4 1,928*** 7,356** 2,193*** 1,849*** 2,399***
agricultura patronal
(0,075) (0,387) (0,256) (0,530) (0,333) (0,241) (0,276) (0,611) (0,153) (346,657) (0,140) (1,012) (0,206) (0,155) (0,161)
[TOAREAPA]

Crédito total da 0,790*** 0,793 0,863 0,535* 1,122 0,532*** 0,759 1,041 0,831 0,661 0,669*** 1,203 0,860 0,711*** 0,852
agricultura patronal
(0,064) (0,344) (0,195) 0,358 (0,247) (0,182) (0,200) (0,375) (0,131) (0,571) (0,110) (0,382) (0,163) (0,122) (0,128)
[TOCREPA]

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Nº estabelecs. da 1,434*** 0,983 1,947** 1,444 0,801 1,379 2,047** 1,539 1,153 1,422 1,206 1,856 1,626** 1,757*** 2,403***
agricultura patronal de
baixa renda (0,085) (0,446) (0,275) (0,519) (0,329) (0,259) (0,295) (0,535) (0,170) (0,823) (0,149) (0,538) (0,230) (0,173) (0,187)

[NUESTPA27500]

Hosmer & Lemeshow 0,181 0,414 0,061 0,832 0,135 0,058 0,896 0,999 0,012 0,996 0,736 0,948 0,000 0,459 0,026

Significância: * p ≤ 0,1; ** p ≤ 0,05; e *** p ≤ 0,01. OR (odds ratio) na primeira


linha de cada variável seguido do erro-padrão entre parênteses. N=5.505 observa-
Teste de ajuste do
modelo

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA 2000).


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Modelo 1 – geral
Podemos observar que, no modelo geral, o qual inclui todas
as mortes agrárias entre 1985 – 2005 na mesma equação, quanto
maior a população rural, o risco de morte agrária cresce 2,3 vezes.
Cada estabelecimento adicional de agricultura familiar de
baixa renda reduz um pouco o risco de morte agrária (0,9 vezes),
enquanto que um estabelecimento adicional de agricultura patro-
nal aumenta o risco de morte agrária em 1,4 vezes. A explicação
para esses dados seria a ínfima capacidade que uma unidade de
baixa renda da agricultura patronal tem para investir na produção
e, ao invés disso, o investimento seria empregado no cercamento
da propriedade improdutiva, a qual emprega poucos trabalhado-
res (principalmente vigias para a proteção contra a invasão das ter-
ras por posseiros e outros grupos).
A mesma linha de pensamento pode ser seguida por quanto
maior crédito um agricultor patronal recebe, menor os riscos de
morte agrária (0,8 vezes), pois o dinheiro será utilizado na produti-
vidade da terra, empregará trabalhadores que terão condições dig-
nas de sustento e, portanto, não haverá razões aparentes para o uso
de violência ou luta por disputa de terra.
Maior número de estabelecimentos da agricultura patronal
reduz o risco de mortes agrárias (em 0,8 vezes). Porém, o contrário
ocorre para a área total do mesmo tipo de estabelecimento agríco-
la: maior área total da agricultura patronal aumenta em duas vezes
o risco de morte agrária. Podemos notar que o número de estabele-
cimentos da agricultura patronal não é relevante como a área total
do mesmo tipo de agricultura. No Brasil, poucas unidades patro-
nais ocupam milhões de hectares em algumas regiões.

Modelo 11 – posseiros
Esse modelo inclui mais que um quarto das mortes agrárias
totais. Presumidamente, os que invadem uma propriedade priva-

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Examinando a violência agrária no Brasil

da e vivem em área ilegal podem ser atacados pelos proprietários


originais (ou seus seguranças) e pela polícia (no caso de haver or-
dem judicial de evacuação da área em questão).
Algumas variáveis desse modelo se parecem com o modelo
geral: população rural (risco de morte agrária de 2,1 vezes), núme-
ro de estabelecimentos da agricultura familiar de baixa renda (0,9
vezes), área total da agricultura patronal (1,9 vezes), crédito total
da agricultura patronal (0,7 vezes).
A área total da agricultura familiar é estatisticamente signi-
ficativa e aumenta o risco de morte dos posseiros em 1,4 vezes a
cada hectare adicionado a área desse tipo de propriedade. A ideia
dessa variável específica é que, quanto maior a área invadida, maior
o risco de morte do posseiro. Ele encontra-se numa área invadida,
portanto, o dono legal se arriscará na prática de um ato de violên-
cia se a área for grande o suficiente para “valer” o homicídio, na
lógica do proprietário. No caso da área invadida pelo posseiro não
ser tão grande, o proprietário não colocará sua liberdade em risco
para um pedaço de terra com baixo valor agregado.

Modelo 14 – trabalhador rural


Os trabalhadores rurais recebem seus salários tanto da agri-
cultura patronal como da familiar. Porém, o primeiro tipo empre-
ga muito mais trabalhadores nas atividades agrárias quando a terra
é produtiva. O fator tecnologia é relevante para medir o nível de
empregabilidade, já que a agricultura patronal, em geral, tem mais
recursos disponíveis e uma máquina pode substituir o trabalho de
muitos empregados. Esse grupo é o segundo que mais morre em
disputas de terra e violência (16% de todas as mortes
agrárias).
Esse modelo explica as mortes de trabalhadores rurais em
conflitos de terra. As descobertas semelhantes às que foram encon-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

tradas no modelo geral são para as variáveis seguintes: população


rural (2,8 vezes maior risco com o crescimento da população), área
total da agricultura patronal (1,8 vezes maior risco quando adicio-
na-se um hectare à área), crédito total da agricultura patronal (0,7
vezes, significando que, quanto mais dinheiro chega ao donos das
terras, ele investirá o dinheiro na terra, fazendo ela mais produtiva
e empregando mais trabalhadores, reduzindo o risco de morte agrá-
ria, já que suas necessidades estarão satisfeitas com trabalho e salá-
rios razoáveis), número de estabelecimentos da agricultura patronal
de baixa renda (1,8 vezes mais risco para cada unidade adicional de
agricultura patronal de baixa renda, pela mesma razão como des-
crito no modelo geral).
Um maior número de estabelecimentos da agricultura fa-
miliar reduz o risco do trabalhador rural morrer em conflitos de
terra em 0,8 vezes. Se a quantidade de estabelecimentos da agri-
cultura familiar aumenta, mais trabalhos serão criados para satis-
fazer a demanda, menos trabalhadores rurais estarão no mercado e
a situação deve melhorar. As circunstâncias farão com que os tra-
balhadores rurais sejam menos vulneráveis a conflitos de terra.

Modelo 15 – Sem-terra
Camponeses que não são proprietários de terra e que não
estão empregados de maneira permanente como trabalhadores ru-
rais (mesmo que façam bicos esporádicos) pertencem à categoria
dos sem-terra. Há vários grupos muito bem organizados que per-
tencem a essa categoria, os quais representam mais que 13% das
mortes em conflitos agrários.
As variáveis semelhantes às do modelo geral são: população
rural (mais que o dobro do risco de morte para os sem-terra), nú-
mero de estabelecimentos da agricultura patronal (reduz o risco de
morte de sem-terra em conflito agrário pela metade), área total da

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Examinando a violência agrária no Brasil

agricultura patronal (aumenta em 2,4 vezes o risco de o sem-terra


morrer em conflitos agrários e a ideia é que quanto maior a quan-
tidade de terra destinada à agricultura patronal, menos terra so-
brará para os sem-terra, num jogo de soma zero), número de
estabelecimentos patronais de baixa renda (a cada estabelecimento
de fazendeiro “pobre” adicionada, o risco de morte de sem-terra
cresce em 2,4 vezes pelos mesmos motivos descritos em outros
modelos).
A discrepância com o modelo geral está presente na área
total da agricultura familiar. Esse modelo faz com que a variável
seja significativa e, a cada hectare adicionado à área de agricultura
familiar, há uma redução no risco de morte de sem-terra em confli-
tos agrários em 0,8 vezes. Na América Latina existem muitas uni-
dades agrícolas minúsculas (minifúndios), o que dificulta a
subsistência. Quando se acrescenta espaço (área) a uma determina-
da família, haverá maior condição de subsistência e, portanto, será
possível subsistir de sua produção e o objetivo da redistribuição de
terra fará sentido e reduzirá a quantidade de mortes agrárias.

Modelo 9 – Pequenos proprietários


Este grupo já possui um pedaço de terra em que laboram e
produzem para o sustento de suas famílias. Os pequenos proprie-
tários representam mais que 10% de todas as mortes por disputas
de terra para o período 1985 – 2005. Por que eles ainda morrem se
já alcançaram o objetivo de ter legalmente seu pedaço de terra?
Talvez o espaço que possuem não seja suficiente para tirar o sus-
tento, ou talvez os agricultores patronais vizinhos estejam interes-
sados em expulsar esses pequenos proprietários para ficarem com
suas terras e aumentar seu espaço físico.
O presente modelo apresenta duas variáveis semelhantes ao
do modelo geral: população rural (1,8 vezes maior o risco de morte

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

para o pequeno proprietário – mais pessoas podem fazer com que a


já pequena propriedade fique menor ainda) e, finalmente, área to-
tal da agricultura patronal (1,4 vezes maior risco de morte para
pequenos proprietários a cada hectare adicionado à unidade do fa-
zendeiro). Não há mais características distintas, além das variáveis
já mencionadas.
O teste de Hosmer & Lemeshow (HL) mostra o ajuste de
cada modelo e é elementar para nossa análise, verificando se as
variáveis se ajustam bem ao mesmo modelo. Sua interpretação diz
que quanto maior o nível de significância do teste, maior é a pro-
babilidade de acerto do valor da variável dependente por meio da
utilização da regressão. Valores próximos a 1 indicam um bom
ajuste do modelo. Esse teste compara valores esperados ajustados
aos valores reais por grupo de observações. Tais grupos são dividi-
dos em subgrupos de tamanho semelhante. E assim, se as diferen-
ças são grandes, rejeita-se o modelo por prover um ajustamento
insuficiente aos dados. Caso contrário, o modelo ajusta-se bem.
No nosso caso, o teste de ajuste de cada modelo varia entre si. No
modelo geral, o teste de Hosmer e Lemeshow é baixo (0,181). Po-
rém, claramente, o ajuste do modelo se dissipou por todos os mo-
delos restantes exibidos na tabela. Os modelos analisados com bom
desempenho são para as mortes agrárias de posseiros (0,736) e de
trabalhadores rurais (0,459). Juntos, esses dois modelos incluem
mais que 42% de todas as mortes agrárias (variáveis dependentes).
Após a análise do modelo geral e mais quatro outros mode-
los de diferentes categorias de mortes agrárias, disponibilizaremos
outra tabela de regressão logística que divide o país em 5 grupos
(regiões). A variável dependente de cada modelo são as mortes agrá-
rias geral (sem categoria específica). A intenção é observar se existe
uma diferenciação do risco de morte agrária para cada região, que
incluirá seus próprios municípios e, portanto, o N varia. A região
Norte possui 449 municípios analisados, o Nordeste 1.785, o Su-

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Examinando a violência agrária no Brasil

deste 1.666, o Sul 1.159, e o Centro-oeste 446. Essa análise é rele-


vante, pois um município específico pode estar “condenado” só
por pertencer a uma região determinada, ou ao contrário. Como
sabemos, o Brasil é muito desigual em se tratando do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH). Educação, mortalidade, índi-
ces de desenvolvimento etc. variam radicalmente entre as regiões.

Tabela 10: Modelos de mortes agrárias para


diferentes regiões brasileiras24
Região/Variável População N. estabeleci- Área total Lucro total Crédito total N. estabeleci- Área total Lucro total Crédito total da
rural mentos da da da da mentos da da da agricultura
agricultura agricultura agricultura agricultura agricultura agricultura agricultura patronal
familiar familiar familiar familiar patronal patronal patronal
Norte 1,504** 1,035 0,795 1,210 1,037 1,142 1,783*** 1,101 1,125
(0,174) (0,261) (0,185) (0,246) (0,135) (0,191) (0,175) (0,153) (0,142)
N=449
HL251=0,262
Nordeste 1,934*** 0,858 0,659*** 1,292* 1,022 0,807* 1,792*** 1,411*** 0,884
(0,131) (0,131) (0,109) (0,133) (0,094) (0,118) (0,117) (0,106) (0,098)
N=1785(2)
HL=0,828
Sudeste 2,015*** 1,046 1,111 1,227 0,996 0,879 1,874*** 0,802 0,658**
(0,152) (0,224) (0,212) (0,196) (0,165) (0,193) (0,192) (0,139) (0,171)
N=1666
HL=0,634
Sul 2,796*** 1,460 0,655 0,487** 1,009 0,522** 2,372*** 1,290 1,163
(0,232) (0,370) (0,349) (0,324) (0,275) (0,273) (0,272) (0,245) (0,234)
N=1159
HL=0,216
Centro-Oeste 2,395*** 1,295 0,926 0,650* 1,282 1,029 1,689 1,006 1,271
(0,201) (0,236) (0,267) (0,227) (0,194) (0,293) (0,462) (0,205) (0,242)
N=446
HL=0,583

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do INCRA e IBGE 2000).

24
A tabela apresenta a regressão binária logística de efeito-aleatório realizada no
SPSS 15.0. Significância: * p ≤ 0,1; ** p ≤ 0,05; e *** p ≤ 0,01. OR (odds ratio) na
primeira linha de cada variável, seguida pelo erro-padrão entre parênteses. O nú-
mero de observações (ou municípios) e o ajuste do modelo do teste de Hosmer e
Lemeshow (HL) são mostrados para cada variável independente, para o ano 2000.
Dessa vez, os modelos estão na posição horizontal.
25
Teste de ajuste do modelo de Hosmer e Lemeshow (HL).

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Parece que há certa consistência em duas variáveis indepen-


dentes a respeito das diferentes regiões: o aumento da população
rural eleva o risco de mortes agrárias em cada uma das regiões
brasileiras (variando entre 1,5 a 2,8 vezes maior risco de morte); e
uma maior área de agricultura patronal leva a mais mortes (com
exceção da região Centro-oeste, a qual não mostra significância).
Os resultados de lucro total da agricultura familiar são
instigantes. Enquanto que para a região Sul e Centro-oeste um
maior lucro da agricultura familiar significa um risco reduzido de
mortes agrárias (para a metade, aproximadamente), no Nordeste
um maior lucro da agricultura familiar aumenta o risco de morte
agrária em 1,3 vezes. A explicação para essa incongruência é que o
Nordeste representa a região com maior desigualdade entre pobres
e ricos. É certo que a figura 6 mostra que há mais de 2 milhões de
unidades da agricultura familiar contra cerca de 160 mil unidades
de agricultura patronal. Porém, especificamente nessa região, o
tamanho da agricultura familiar é incrivelmente pequeno e, em
geral, a área é insuficiente para subsistência. A miséria é muito
grande e a dependência dos patrões ainda prevalece. Quando o lu-
cro das unidades de agricultura familiar é melhor do que a média,
elas passam a se informar de sua situação comprometida e organi-
zam-se para rebelar e invadir grandes extensões de terra, para au-
mentar suas terras. Essa é a receita para a violência.
Podemos notar que outra variável, área total da agricultura
familiar, é significativa apenas ao Nordeste, sendo negativa sua
direção. Isto é, para cada hectare adicional da agricultura familiar
no Nordeste, há uma redução do risco de mortes agrárias em 0,7
vezes, e essa região é a única significativa.
O número de estabelecimentos da agricultura patronal não
é tão relevante como a área ocupada por esse tipo de agricultura,
mesmo quando vemos que as regiões Nordeste e Sul têm risco
reduzido de mortes agrárias (0,8 e 0,5 vezes, respectivamente).

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Examinando a violência agrária no Brasil

Os últimos dois modelos apresentam apenas uma variável


significativa cada, sendo: lucro total da agricultura patronal e
crédito total da agricultura patronal, respectivamente. No pri-
meiro, na região Nordeste, aumentando o lucro da agricultura
patronal, eleva-se também o risco de mortes agrárias para 1,4
vezes. No segundo, no Sudeste, aumentando o crédito da agri-
cultura patronal, reduz-se o risco de mortes agrárias para 0,7 ve-
zes. No Sudeste, de qualquer maneira há pouca violência agrária
e é a região que recebe a maior parte do crédito patronal (veja
figura 8). Lá há maior supervisão nas condições de trabalho dos
trabalhadores rurais e menor desigualdade entre ricos e pobres.
Ao que tudo indica, como parte das condições para a obtenção de
crédito, deve haver uma relação assertiva de não exploração entre
trabalhadores e patrões. Os bancos e o governo não querem pre-
judicar sua própria imagem conferindo crédito a patrões que pra-
ticam a “escravidão moderna”, por exemplo. Atualmente, o lucro
dos bancos não é a única equação a ser levada em conta na hora de
emprestar. Uma boa imagem certamente melhorará o lucro dessa
empresa.
Os únicos modelos regionais que apresentaram um ajuste
aceitável para todo o modelo foram das regiões Nordeste (0,828)
e Sudeste (0,634). Juntas, elas representam 3.451 municípios,
ou 63% de todos os municípios brasileiros. Portanto, esses mo-
delos têm êxito na explicação da especificidade de mortes agrári-
as regionalmente.

Conclusão da parte I
Conseguimos comprovar a hipótese sugerida, mesmo que
com algumas ressalvas. Em geral, o risco de mortes agrárias é maior
em localidades onde a terra é distribuída mais desigualmente.

67

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

As associações confirmadas foram:


• mais unidades de agricultura familiar à menor risco de
mortes agrárias (para trabalhador rural);
• maior área de agricultura familiar à menor risco de vio-
lência (para sem-terra);
• mais unidades de agricultura familiar de baixa renda à
menor risco de mortes agrárias (geral, posseiros);
• maior área da agricultura patronal à maior risco de
violência (para todos os grupos investigados);
• mais unidades de agricultura patronal de baixa renda
à maior risco de mortes agrárias (geral, posseiro, traba-
lhador rural, sem-terra).
• população rural maior à maior risco de mortes sobre
disputas de terra (para todos os grupos investigados).

Particularidades e limitações existem. Um exemplo que pode


ser mencionado é o número de estabelecimentos da agricultura
patronal, que não funciona como uma boa mensuração como a área
ocupada por esse tipo de agricultura. Provavelmente há poucos
estabelecimentos desse tipo (em relação à quantidade de estabele-
cimentos da agricultura familiar) ocupando gigantescas áreas, como
é comum em alguns dos estados brasileiros e nem tanto em outros.
No entanto, isso não invalida os modelos apresentados.
O mesmo pode ser sugerido para as diferentes regiões e suas
particularidades, sendo o Nordeste e Sudeste um bom exemplo de
contrastes. Maior lucro da agricultura familiar no Nordeste apre-
senta um resultado inesperado de aumento da violência. Isso por
conta das desigualdades extremas dessa região quando comparada
com o Sudeste.
Portanto, pesquisas realizadas sobre um país como o Brasil,
devem desagregar a análise em regiões distintas, para propósitos

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 68 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

comparativos. Costumam dizer que há muitos “Brasis”, com reali-


dades bem contrastantes. Um estudioso do tema que não desagre-
ga quando possível, terá dificuldades na explicação dos resultados
encontrados.
As políticas atuais de reforma agrária (desde a redemo-
cratização até o presente) provaram estar equivocadas, pois moti-
vam a violência: os camponeses sem-terra sabem que o único ca-
minho para pressionar o governo é ocupar terra e utilizar de
violência.
Nesse momento, o INCRA intervirá e expropriará a terra
em benefício dos camponeses. Os grandes fazendeiros farão todos
os esforços para salvaguardar seu direito de propriedade (mesmo
que, por vezes, os documentos são produzidos ilegalmente, mais
popularmente conhecidos como grilagem). Esse é o cenário típico
da violência agrária que estamos acostumados a acompanhar na
mídia. O Estado deve mudar esse modelo. A ação afirmativa é
mandatória, mas deve ser realizada de maneira mais responsável e
diferente da atual, evitando conflitos sociais mais radicais, que re-
sultam em mortes por disputas de terra.
O período da redemocratização aponta a um nível alto de
mortes agrárias resultantes de pequenas insurgências originadas de
disputas por terra. O regime democrático ainda não encontrou uma
fórmula que reduzisse esse tipo de violência. Com a reinstalação da
democracia, ressurgiram oportunidades de conflito entre muitas
forças antagonistas (como essa dos movimentos sociais e campone-
ses de um lado, e grandes proprietários de terra e seus defensores
do outro; ou entre os próprios camponeses). Em um regime autori-
tário essas forças não teriam esse poder de autonomia de ação e
seriam reprimidas duramente. O regime democrático é muito im-
portante à preservação da paz ao longo do tempo nas áreas rurais.
No entanto, em curto prazo, para países que não tiveram uma de-
mocracia de maneira ininterrupta, ou seja, ela não é madura e nem

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

está consolidada, pode gerar certa instabilidade que, possivelmen-


te, se transforme em violência entre grupos com interesses contrá-
rios. A própria redução da desigualdade pode minar o recrutamento
de camponeses e dificultar tal confronto entre as partes. Os níveis
de violência agrária podem ser reduzidos pela implementação de
políticas públicas adequadas, como redução da desigualdade, den-
tre muitas outras. A redistribuição de terra em si reduz a violência
– os meios para tal devem ser reavaliados e modificados.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 70 18/3/2011, 15:16


Examinando a violência agrária no Brasil

Parte II

‘Pobres’ camponeses mortos:


pobreza e desigualdade como determinantes
da violência agrária nos municípios brasileiros1

Introdução
Na maioria dos países latino americanos a pobreza é mais rural do que
urbana,[...] entretanto, os estudos mais influentes sobre a pobreza têm
um viés urbano muito forte – criando um grande vácuo para a com-
preensão da natureza e da magnitude da pobreza rural (LÓPEZ e
VALDÉS, 2001, p.1).

O mesmo ocorre com o Brasil pois possui regiões altamente


urbanizadas, sendo que cerca de metade dos pobres vivem em áre-
as rurais. Só para se ter uma ideia, aproximadamente metade da
população rural vive no nordeste e essa região tem a mais alta inci-
dência de pobreza no Brasil. E ainda, muitos dos pobres urbanos
do nordeste, principalmente em tempos de seca, são migrantes
recentes de áreas rurais (WORLD BANK, 1995, p.38). As alter-
nativas dos pobres para sair desse círculo vicioso no campo são
parcas, diferente do que ocorre nas zonas urbanas, com a presença
de oportunidades variadas.

1
Apresentado no 50º Encontro da International Studies Association (ISA), fevereiro de
2009, em New York, NY (EUA).

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Bebê brincando com os cachorros no acampamento.

Portanto, no âmbito desse capítulo, discutiremos tanto a


pobreza rural como a desigualdade, que afeta de maneira seme-
lhante o quadro crônico que o Brasil apresenta. Mesmo que tenha
havido certas melhorias na última década, a magnitude desse pro-
blema é evidente e requer políticas públicas urgentes na área, além
das que foram criadas nos últimos anos.
Após detalhar e mensurar dados de pobreza e desigualdade,
buscaremos relacioná-los descritivamente com a violência agrária
coletiva para que, caso eles apontem indícios de associação, reali-
zaremos a análise de inferência causal entre alguns indicadores de
pobreza e desigualdade e entre a violência agrária coletiva. Frisa-
mos o termo coletiva para diferenciar de violência individual. Da-
mos ênfase à violência na qual o ator é coletivo e a violência ocorre
por meio de organização. O indivíduo faz parte de uma estrutura e

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 72 18/3/2011, 15:16


‘Pobres’ camponeses mortos

a violência é diferente da criminal. Tentaremos associar essa vio-


lência agrária (variável a ser explicada) com a incidência de pobre-
za e desigualdade no Brasil. Outras variáveis relevantes de controle
devem fazer parte dessa equação.

Renda e pobreza rural


Ao passo que a estratificação ocupacional nas cidades define a
renda (isto é, o cidadão receberá seu sustento de acordo com sua
ocupação profissional), no campo, em geral, a renda se define pela
quantidade de terras que um determinado cidadão possui, seja ela
titulada ou não. A renda pode ser gerada a partir do acesso à terra.
Por isso, a renda é uma função da posse ou propriedade da terra nas
regiões rurais.
As propriedades dos agricultores pobres [...] variam de um a cinco hec-
tares, dependendo da pressão da população sobre as terras cultiváveis.
Essas extensões de terra, segundo as evidências encontradas, se não fo-
rem irrigadas ou de cultivo intensivo, não tem condições de abrigar
níveis de consumo acima da linha de pobreza absoluta, sem outras fon-
tes de renda (LÓPEZ e VALDÉS, 2001, p.4).

Vemos que, além do acesso à terra, deve-se ter acesso a quan-


tidade suficiente para que as famílias não fiquem abaixo da linha da
pobreza e possam se sustentar com o que produzem (arrendatários
ou proprietários) ou ganham (assalariados rurais).
No caso dos domicílios rurais pobres, o problema principal é que os
trabalhadores não recebem o suficiente. Parte da razão é a falta de aces-
so à terra e a falta de trabalho em período integral. Muitos trabalhado-
res rurais ganham pouco pois eles só podem obter um trabalho
temporário (WORLD BANK, 1995, p.17)

já que contratações vultuosas ocorrem somente nas épocas de maior


necessidade, como colheitas, que duram pouco tempo.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

O título da propriedade é muito importante na hora de ad-


quirir crédito rural e colocar suas terras como garantia de quitação
da dívida, essencial a produção no campo. No entanto, a proporção
de agricultores mais pobres que detém a titularidade de suas terras
é baixa. Isso os impede, também, de vender a gleba a preços de
mercado, limitando sua capacidade de mudar de profissão e proli-
ferando a pobreza no campo (LÓPEZ e VALDÉS, 2001, p.5).
Mesmo que a renda seja avaliada pelo tamanho da terra, é
importante levar em consideração o uso da terra em questão e o
tamanho do país. Por exemplo, se a terra é utilizada para o cultivo
de arroz, a área de plantio pode ser bem pequena (uma média de 5
acres), mas intensamente produtiva e lucrativa. Em contraste, se a
terra é utilizada para pasto, mesmo com uma propriedade enorme
(aproximadamente 100 acres), o camponês pode ser pobre2. Além
disso, países pequenos não dispõem de muita terra para dividir
entre os camponeses, caso estes sejam numerosos.
Em relação à renda, devemos considerar outras questões, como
plantações de produtos permanentes e não permanentes, que va-
riam em relação ao tempo necessário para o retorno do investimen-
to. Um pequeno proprietário que não dispõe de tempo de espera
de retorno do investimento, pelo fato de seu recurso ser escasso,
provavelmente irá cultivar produtos que deem lucro imediato (em
menos de 1 ano), ao contrário de grandes proprietários que têm
capital de investimento e podem esperar anos sem ter ganhos. Tra-
tamentos diferenciados para a mesma terra podem trazer resulta-
dos diversos. Um camponês que se utiliza do processo agrícola de
queimadas (antes de começar o cultivo), em contraste com aquele
que não o faz, terá resultados diferentes. Os que utilizam fertili-
zantes, diferentemente dos que não o fazem, perceberão alterações
na hora da colheita. Existem, ainda, outros que usam pesticidas

2
Baseado em entrevista com James C. Scott, em 14/09/2004.

74

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‘Pobres’ camponeses mortos

para fazer as plantas resistirem às pragas e provocar modificações


nos resultados. Entretanto, os que produzem alimentos orgânicos
recebem um preço, alto num mercado específico, mesmo que a
plantação seja mais vulnerável e corra maior risco de ser atacada
por insetos e pragas. Apesar das muitas variáveis influírem na ren-
da do camponês, a questão agrária ainda é incipiente e não apre-
senta dados para tantas possíveis influências na renda da população
rural, que tem como fonte primordial de sobrevivência o trabalho
exercido no campo.
Há uma relação inversa entre o tamanho da terra e a produti-
vidade. Pequenas propriedades rurais são mais intensamente ex-
ploradas e produzem mais por hectare do que as grandes extensões
de terra (NETTING, 1993; CRAMER e PONTARA, 1998, p.114-
115; ZIMERMAN, 2008b). Porém, mesmo assim, ao menos em
duas situações isso não possibilita o sustento do pequeno agricul-
tor: (a) a propriedade (ou o arrendamento) é tão ínfima que não
consegue suprir as necessidades básicas da família; e/ou (b) catás-
trofes naturais, como seca, inundações etc. impedem que a família
subsista com o que planta, ou cria.
Quando a renda é baixa ou mesmo inexistente, o que é ca-
racterístico de parte substantiva da população rural, em compara-
ção com a urbana, a pobreza faz com que as necessidades básicas
dos camponeses não possam ser atendidas e estes ficam à mercê da
solidariedade de sua comunidade ou de empregos ou subempregos
que possam satisfazer as necessidades elementares das famílias que
dependem do campo para seu sustento3, ou mesmo de programas
governamentais de transferência de renda. Há pouco investimento
governamental nas regiões rurais do país (WORLD BANK, 1995,

3
Não nos referimos à possibilidade de migração às cidades, em busca de melhores
condições de vida.

75

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

p.16), talvez pelo baixo retorno que isso acarretaria na esfera eleito-
ral. Portanto, os pobres do campo dependem da retirada direta de
produtos essenciais à sua subsistência do meio ambiente e, mais
especificamente, da agricultura (DASGUPTA, 1998, p. 43)4, ain-
da que passa a ser cada vez mais comum ocorrer uma diversificação
de rendas nos domicílios agrícolas do Brasil (KAGEYAMA, 2003),
possibilitando renda oriunda de atividade não agrícola ou mesmo
de não-trabalho (como aposentadorias ou pensões) (KAGEYAMA,
2001)5.

Tabela 1 – Proporção de pobres nos meios urbano e rural, Brasil


e regiões, 1990.6
Regiões Metropolitana Urbana Rural

Sul 17,6 16,8 28,9

Sudeste 26,9 17,7 27,1

Nordeste 43,4 43,8 49,1

Centro-Oeste 22,4 23,2 31,8

Norte 43,4 43,2 -

Brasil 28,9 26,8 39,2

Fonte: PNUD/IPEA (1997).

4
Mesmo que em seu texto o autor tenha se referido às regiões da África subsaariana
e do subcontinente Indiano especificamente, essa ‘regra’ serve também aos campo-
neses do Brasil.
5
“Um domicílio agrícola que possua rendas não-agrícolas tem, em média, renda per
capita 69% maior que um domicílio em que a agricultura é a única fonte de renda”
(KAGEYAMA 2001, p.68).
6
Meio rural no norte não investigado pela PNAD, e estado do Tocantins incluído
em Goiás.

76

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‘Pobres’ camponeses mortos

No campo é onde há proporcionalmente mais pobres do que


nas regiões urbanas ou metropolitanas. A diferença é superior a
10%, em média, como podemos observar na tabela 1. Regiões
menos industrializadas são também as mais pobres. Para se ter
uma ideia, em 1998 no Brasil, enquanto o rendimento médio fa-
miliar per capita no campo era de R$102,90, ele correspondia a
apenas 35% do rendimento médio na área urbana, que era de
R$292,40 (SCHNEIDER e FIALHO, 2000, p.120).
A pobreza faz com que cada vez mais pessoas procurem uma
fonte alternativa de renda. A busca por terra pode ser um caminho
viável, já que é demonstrado que o acesso a terra alivia a pobreza
(VEIGA, 2003). Essa busca pode ocorrer tanto de maneira pacífica
como violenta. A segunda possibilidade é a mais viável, já que
terra é um bem escasso e valorizado, impossibilitando sua aquisi-
ção por meios legais à grande parte da população rural que depen-
de dela para tirar seu sustento.
Tanto a literatura internacional como a nacional abordam a
questão da revolta e rebelião de camponeses quando não há condi-
ções de sustento e a pobreza é exacerbada. O camponês não se rebe-
la quando possui o mínimo necessário para que sua família
sobreviva. Somente quando, em tempos difíceis, ele não recebe o
auxílio da comunidade que o rodeia, ou de seu patrão, ou mesmo
do Estado em forma de auxílio, para que sua situação não ultrapas-
se o mínimo necessário, é que ele irá lutar contra a atual ordem7
(SCOTT, 1976).
Quando observamos os conflitos no campo, podemos notar
que eles ocorrem onde há uma degradação econômica na vida dos
camponeses. De acordo a Martins (1981, p.12), “as grandes inqui-
etações no campo, os conflitos cada vez mais numerosos, são deter-
minados pelo processo de expropriação da terra”, quando estes

7
Ver economia moral (SCOTT, 1976).

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

camponeses não têm de onde extrair mais seu sustento, que sem-
pre foi baseado no trabalho com a terra. O que as forças do Estado
brasileiro combatiam era, na verdade, a insurreição e a subversão
dos pobres do campo (MARTINS, 1981) e o autor se referia ao
longo da história brasileira, tanto em relação aos cangaceiros que
nada mais eram do que camponeses expropriados, como aos mili-
tares que queriam impor a ordem, e até aos pequenos produtores
rurais que passaram por um processo de empobrecimento gradativo
e as condições sociais de vida no campo se agravaram (POLI, 2008,
p.53). Para muitos, a pobreza rural levava à insurreição, acarretan-
do a repressão tanto do Estado como de seus aliados.
No entanto, alguns autores afirmam que, independente da
situação de sobrevivência do camponês, há sempre o ímpeto de
melhorar de vida e, se veem chance de sucesso na luta contra donos
de terra para dividir entre si sua propriedade, não hesitarão em
lutar contra eles8 (POPKIN, 1979). Enquanto na economia moral
a pobreza tem uma parte na eclosão da violência, na economia po-
lítica, ela não é necessária.

Definição de pobreza
Mas, afinal, como podemos definir a pobreza rural, para que
possamos posteriormente associá-la (ou não) à ocorrência de vio-
lência agrária no Brasil? Determinar o que é pobreza e traduzir
essa definição em um critério para tantas variedades dos progra-
mas de combate à pobreza é uma função difícil, tanto no nível
conceitual como de mensuração (BONNEN, 1966, p.462).
A pobreza é a exclusão da participação social, de posses, e de
uma qualidade de vida decente (HESSELBERG, 1997, p.239). Ela

8
Ver economia política (POPKIN, 1979).

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 78 18/3/2011, 15:16


‘Pobres’ camponeses mortos

“[...] pode ser entendida como uma situação de carência de condi-


ções para satisfazer as necessidades básicas, capazes de permitir ao
indivíduo ou a sua família recurso para supri-las” (SCHNEIDER e
FIALHO, 2000, p.118), não possuindo uma única face, facilmen-
te reconhecida e rotulada (JOHNSON, 2002, p.127). As pessoas
são consideradas pobres quando são incapazes de satisfazer suas
necessidades básicas como alimentação, vestuário, abrigo, e saúde
(YAPA, 1996, p.707). Se a renda familiar for menor que o nível
mínimo de necessidades de uma família desse tipo, então a família
é considerada pobre; de outra maneira, ela não é pobre (HILL, 1985).
Dentre os pobres, podemos incluir os indigentes, que são
atingidos pela pobreza de maneira mais severa, e chegam a viver
dependendo de caridade. Enquanto pobres podem se autossuprir,
mesmo que beirando a capacidade mínima de sobrevivência, os
indigentes já ultrapassaram essa capacidade e não conseguem ge-
rar seu próprio sustento.
Nessa pesquisa, como tratamos de quase a totalidade dos
municípios brasileiros (5.505), o foco será na literatura sobre o
desenvolvimento, que apresenta a pobreza como um problema eco-
nômico. De acordo com essa literatura, a pobreza poderia ser redu-
zida pelo crescimento econômico, aumento do investimento, criação
de empregos e aumento da renda. Mesmo com profundas diferen-
ças filosóficas, tanto a economia neoclássica, como o marxismo e o
desenvolvimento sustentável consideram o desenvolvimento como
solução à pobreza (YAPA, 1996, p.727). Contudo, por ocasião da
extrema desigualdade no Brasil, o crescimento econômico é menos
necessário para reduções de pobreza, se não for acompanhado de
redistribuição. O crescimento sozinho seria insuficiente para
erradicar a pobreza em um prazo razoável de tempo (MEDEIROS,
2000, p. 45; 52-3).
Para o Brasil, país emergente, que apresenta uma população
pobre relativamente grande, com desigualdade de renda entre as

79

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

mais acentuadas do mundo9, tanto a pobreza rural como a desi-


gualdade rural devem ser analisadas lado a lado.
O próprio Banco Mundial afirma que
a pobreza é uma chamada para ação, uma chamada para mudar o mun-
do, para que muitos mais tenham o suficiente para comer, um abrigo
adequado, acesso a serviços de educação e saúde, proteção da violência,
e uma voz no que ocorre em suas comunidades (WORLD BANK, 2008).

Provavelmente, essa instituição não se referia às revoltas e


rebeliões contra o Estado e/ou grandes proprietários para modifi-
car a ordem das coisas. Porém, essa chamada de ação poderia muito
bem ir na direção da violência10 para obter o mínimo necessário
para a sobrevivência física, caso o Estado não respondesse com po-
líticas de redução de pobreza e desigualdade.

Mensuração de pobreza/indigência
Além da grande diversidade na definição de pobreza, exis-
tem muitos métodos para medir esse fenômeno. A discussão de
pobreza é, em geral, colocada em termos de escalas de renda, já
que, para satisfazer as necessidades básicas, os recursos monetá-
rios devem ser levados em consideração. Porém, há estudiosos
que mensuram a pobreza pelo consumo necessário e não pela ren-
da. Esse índice poderia incluir pessoas na economia informal e os
autônomos, o que a renda muitas vezes não abarca. No Brasil,
vários autores, como Pastore, Zylberstajn, Pagoto 1983; Hoffmann,
2000; Rocha 2000, utilizam a renda para o tema da pobreza, ou
seja, pessoas que apresentam renda inferior a um mínimo estipu-

9
Só para se ter uma ideia, em 1998, no Brasil, 1% dos mais ricos da população,
somava uma renda quase igual aos 50% dos mais pobres (SCHNEIDER e FIALHO,
2000, p.119).

80

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 80 18/3/2011, 15:16


‘Pobres’ camponeses mortos

lado na sociedade têm dificuldades de satisfazer suas necessidades


básicas e, portanto, são considerados pobres.
A desnutrição crônica entre crianças no país é altamente
correlacionada com a renda familiar, já a desnutrição adulta é mais
comum (superando os 10 por cento) entre os homens que vivem
em zonas rurais do nordeste e do centro-sul (WORLD BANK,
1995, p.69). Devido a essa alta correlação entre essas duas variá-
veis, optamos por utilizar a renda como medida de pobreza. No
entanto, “esforços devem ser feitos para que haja um consenso na
mensuração da pobreza” (WORLD BANK, 1995, p.18). Para que
uma pessoa ou família seja considerada pobre, sua renda deve atin-
gir o mínimo necessário para que consiga sobreviver na sociedade.
Primeiramente, são levadas em consideração as necessidades
nutricionais. Os parâmetros divulgados pela Organização para a
Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), relativos, às
necessidades dos diferentes nutrientes, são utilizados para o esta-
belecimento das necessidades nutricionais médias da população que
se deseja estudar em relação à incidência de pobreza. Além disso,
separa-se pobreza de indigência, sendo o último usado para desig-
nar os que se situam abaixo da linha de pobreza e cuja renda é
insuficiente para adquirir a cesta alimentar que permita atender às
suas necessidades nutricionais, sendo que no Brasil somente as ne-
cessidades calóricas são utilizadas (ROCHA, 2000, p. 2-3).
A metodologia para a construção da linha de pobreza (LP) e
da linha de indigência (LI) é determinada pela disponibilidade de
dados estatísticos (ROCHA, 2000, p.13). São consideradas pobres
as pessoas cuja renda for igual ou menor do que um valor pré-
estabelecido (HOFFMANN, 1998, p.217). Os dados deixam a de-
sejar, pois não somente as categorias estatísticas estão erradas como

10
Apesar do Banco Mundial incluir em seu texto o termo proteção da violência, ela
poderia surgir com a própria violência.

81

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também os números dentro dessas categorias (MacCORMACK
1986, p.1; HOFFMANN, 1998)11. A coleta de dados é realizada
de uma maneira em que as informações dos domicílios são inexatas
e, por exemplo, os maridos sabem muito pouco sobre as atividades
econômicas das esposas e esses dados errôneos são compilados ge-
rando uma relação espúria.
A falta de consenso na literatura mostra a dificuldade de estimação de
uma linha de pobreza para o Brasil que sirva de indicador de pobreza
extrema. A tabela seguinte mostra as divergências nos valores de linhas
de pobreza no país, estimadas por diferentes métodos, expressas em
reais per capita correntes de setembro de 1999 [...]. O limite abaixo do
qual a renda familiar per capita pode ser considerada insuficiente varia
bastante (MEDEIROS, 2005, p.115).

11
Além disso, essa medida não retrata as condições de vida, já que, por exemplo,
uma família com doentes necessitará de maior renda do que uma família sã. Po-
rém, numa população inteira, os números tendem a se normalizar. Há também
uma ausência de critério para estabelecer essas linhas (de pobreza e indigência) e a
escolha do valor tem muito de arbitrário, mesmo que isso não venha a afetar a
validade desde que os critérios para a construção dessas linhas sejam consistentes.

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 82 18/3/2011, 15:30


Tabela 2: Valores das linhas de pobreza calculadas
por diferentes métodos.
Método Valor per Fonte
capita
QUANTIL DA DISTRIBUIÇÃO DA RENDA
33% mais pobres 80,97 Pnad 1999
40% mais pobres 100,00 Pnad 1999
FRAÇÃO DA RENDA MEDIANA
Metade da renda mediana 65,00 Pnad 1999
Dois terços da renda mediana 86,67 Pnad 1999
RELAÇÃO COM A RENDA MÉDIA
Metade da renda média 126,29 Pnad1999
Um terço da renda média 84,19 Pnad 1999
PÚBLICO-ALVO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
¼ salário mínimo 34,00 Loas (Lei 8.742/93)
CUSTO DE CESTA BÁSICA
½ salário mínimo 68,00 Hoffmann 2000, p.97
OPINIÃO REPRESENTATIVA FAMÍLIA 4
PESSOAS 236,66 PPV 96-97
Renda familiar mínima média 255,30 PPV 96-97
Renda familiar mínima mediana 140,00-149,99 PPV 96-97
Faixa renda familiar mínima modal
MENOR RENDA MANUTENÇÃO
PRÓPRIA FAMÍLIA (NE/SE) 164,64 PPV 96-97
Opinião sobre mínimo como função da renda
observada
MULTIPLICAÇÃO DO CUSTO DOS
ALIMENTOS 113,61 Barros, Mendonça e
Cesta necessidades calóricas (RM SP) 82,12 Santos 1999, p.224
Cesta necessidades calóricas (rural SP) 150,62 ou Barros, Mendonça e
Cesta necessidades calóricas (RM SP) 223,89 Santos, p. 224
Cesta necessidades calóricas (BR urbano) 126,00 Ferreira, Lanjouw e
Neri 2000, p. 10
Cepal 2001, p. 223

Fontes indicadas na própria tabela, extraída de Medeiros, 2005, p.115.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Atualmente, os valores do salário mínimo no país estão sen-


do reajustados e ele tem se valorizado. No entanto, os valores mos-
trados na tabela são de anos anteriores a essa tendência.
Nesse capítulo trabalharemos com as mensurações do IPEA
para os anos de 1991 e 2000, especialmente focando esta última
medição, mais atual e na mesma moeda corrente. Os valores não
são muito diferentes do equivalente a ½ e ¼ do salário mínimo
apresentado, apenas com o reajuste da época. O valor é único tanto
para o Brasil como para regiões urbanas e rurais.
Dizer que a linha de pobreza deve ser distinta segundo áreas geográfi-
cas é assumir que uma unidade de renda tem significados distintos em
cada uma dessas unidades. Em outras palavras, implica reconhecer que
R$100,00 não têm o mesmo efeito sobre o bem-estar das pessoas na
zona rural que os mesmos R$100,00 na zona urbana. Embora isso seja
bastante pertinente, cria-se um problema para a comparação da pobre-
za entre áreas geográficas, pois duas unidades de medidas diferentes
não podem ser comparadas de forma direta. Estar dez reais abaixo da
linha de pobreza não significa o mesmo nas zonas rural e urbana [...].
[T]udo indica ser mais conveniente estimar uma linha de pobreza úni-
ca para todo o Brasil que represente uma situação de pobreza extrema e
assumir a responsabilidade pelas desvantagens decorrentes dessa deci-
são (MEDEIROS, 2005, p.118-119).

Obviamente isso pode influir nos resultados, porém, a falta


de dados desagregados impossibilita o cálculo melhor elaborado e
a metodologia deve permitir a comparação.
Frequentemente encontram-se 2 maneiras diferentes de se
medir a pobreza no Brasil:
(a) salário mínimo como referência – a linha de indigência
tem o chefe do domicílio ganhando até 25% do salário mínimo, e
a linha de pobreza tem o chefe de domicílio ganhando até 50% do
salário mínimo;
(b) cesta básica como referência.

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‘Pobres’ camponeses mortos

Na atual investigação, adotaremos o salário mínimo vigente na


ocasião da mensuração, conforme sua definicão na Constituiçào de
1988, ou seja,
salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, [supostamen-
te] capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família
com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe pre-
servem o poder aquisitivo (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FE-
DERATIVA DO BRASIL, cap.II, art.7°, inciso IV).

Trabalharemos com o valor per capita do salário mínimo, em


reais, que pode ser calculado utilizando o valor da família e dividi-
do por 3. Os valores que forem inferiores a 50% do salário mínimo
per capita representarão a população pobre, e os do salário mínimo
per capita inferior a 25% representarão a população indigente.
Podemos visualizar duas décadas de mensuração (1991 e
2000), sendo que somente no estado de Roraima, em média, o
percentual de pobres aumenta da primeira contagem (1991) para a
segunda (2000). Em todos os outros estados há uma redução na
proporção de pobres, indicando uma elevação na renda das cama-
das menos favorecidas. Em relação aos indigentes, os dados exi-
bem a mesma direção. Dessa vez, além de Roraima, no Piauí
também aumenta a proporção de indigentes de 1991 para 2000,
porém, em todos os outros estados esse percentual decresce. Pode-
se observar melhor na Figura 1 a tendência de redução da pobreza
e indigência de 1991 a 2000 para cada região brasileira.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 3: Proporção de pobres e indigentes12 por estados


brasileiros (para 1991 e 2000)13.
Região Estado Federativo Pobres (%) em Pobres (%) em 2000 Indigentes (%) Indigentes (%)
1991 em 1991 em 2000
Norte RO (Rondônia) 75.17 69.72 46.00 43.83
AC (Acre) 80.67 76.24 50.47 49.67
AM (Amazonas) 77.63 74.92 50.42 49.63
RR (Roraima) 73.30 76.13 47.98 53.72
PA (Pará) 74.67 68.47 47.61 42.61
AP (Amapá) 78.57 66.62 52.55 39.24
TO (Tocantins) 78.96 66.48 52.04 38.92
Total da região norte 77.02 69.52 76.84 49.41
Norde MA (Maranhão) 79.85 68.56 52.97 42.27
ste PI (Piauí) 72.01 58.06 33.88 45.31
CE (Ceará) 48.07 36.78 19.63 14.17
RN (Rio G. Norte) 71.23 62.67 43.88 37.78
PB (Paraíba) 70.02 58.09 42.77 34.42
PE (Pernambuco) 57.49 40.76 28.79 17.81
AL (Alagoas) 55.05 41.03 27.59 19.41
SE (Sergipe) 61.91 45.23 32.70 21.73
BA (Bahia) 58.43 41.95 29.88 19.13
Total da região nordeste 64.15 50.55 64.82 36.33
Sudest MG (Minas Gerais) 71.44 61.18 44.97 35.92
e ES (Espírito Santo) 85.87 73.92 63.64 49.01
RJ (Rio de Janeiro) 55.94 41.28 29.33 19.96
SP (São Paulo) 57.76 42.64 30.34 20.98
Total da região sudeste 65.94 53.48 66.46 39.29
Sul PR (Paraná) 42.95 26.59 19.90 11.02
SC (Sta. Catarina) 41.07 24.68 18.05 9.70
RS (Rio G. do Sul) 36.21 28.25 15.25 12.36
Total da região sul 39.68 26.78 39.60 17.51
Centro MS (Mato Gr. Sul) 27.15 20.93 7.71 6.78
-Oeste MT (Mato Grosso) 26.50 20.77 7.65 7.14
GO (Goiás) 50.72 43.51 26.63 22.91
Total da região centro-oeste 39.84 33.22 39.97 18.03
Total Brasil 58.66 46.63 58.94 32.89

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

12
Pobres são pessoas com renda domiciliar per capita inferior a ½ salário mínimo na
ocasião da medida (abaixo da linha da pobreza) e indigentes são pessoas com renda
domiciliar per capita inferior a ¼ salário mínimo na ocasião da medida (abaixo da
linha da indigência).
13
Os dados são calculados para 5505 municípios brasileiros em 1991 e em 2000.

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‘Pobres’ camponeses mortos

Figura 1: Percentual de pobres e indigentes para as diversas


regiões do Brasil (5.505 municípios incluídos) em dois períodos
(1991 e 2000).

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

Portanto, a situação parece14 ter melhorado, mas ainda as pro-


porções médias, tanto de pobres como de indigentes, são compro-
metedoras. O Espírito Santo foi o estado com maior percentual de
pobres e de indigentes em 1991, e o Mato Grosso obteve o menor
índice nesse ano nas mensurações das duas categorias. Dez anos de-
pois, o Acre foi o estado com maior proporção de pobres; Roraima, de
indigentes; e o Mato Grosso do Sul com a menor proporção de pobres
e de indigentes. De qualquer forma, as quantidades são muito eleva-
das para o país (cerca de 59% de pobres e indigentes em 1991 e cerca
de 47% de pobres em 2000 e 33% de indigentes nesse ano).
Relevante ressaltar que em 1991 os 3 piores índices de pobre-
za e indigência estavam espalhados pelas regiões norte, nordeste e
14
O termo parece encontra-se em itálico, pois os dados sobre pobreza e indigência
obtidos do IPEA, apesar de haverem sido coletados para dois períodos distintos
(1991 e 2000), utilizou-se como referência valores de agosto de 2000 para os 2
períodos. Além disso, o estudo se restringiu a indivíduos que viviam em domicí-
lios particulares permanentes, mesmo sabendo que, em situação de pobreza e indi-
gência, muitas vezes seus domicílios não são permanentes, nem particulares.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

sudeste, enquanto em 2000 ambas as categorias se concentraram


apenas na região norte do país. O sul e centro-oeste apresentam um
nível de pobreza e indigência mais ameno do que o norte, nordeste e
sudeste.
Nas regiões rurais essa quantidade é mais preocupante, e é
isso que essa pesquisa tenta focar.
O maior problema é que os trabalhadores [das zonas rurais] não ga-
nham o suficiente. Parte da razão é a falta ao acesso à terra e pouco
trabalho de tempo integral disponível...Os incentivos agrícolas têm
sido enviesados contra o pobre...O maior efeito que anos de escolarida-
de tem em reduzir a pobreza nas zonas rurais reflete uma grande dife-
rença nos níveis da frequência escolar entre áreas rurais e urbanas
(particularmente no nordeste) (WORLD BANK, 1995, p.17).

A melhoria no nível de educação é um dos meios mais efeti-


vos de eliminar a pobreza (THUROW, 1967, p.46) e dar perspecti-
va de um futuro melhor para a população.
Apesar da figura 1 mostrar o norte como a região mais pobre
proporcionalmente, é a região nordeste que concentra pelo menos
um terço do total de pobres oficialmente reconhecidos como tais no
Brasil e, especificamente, dois terços dos pobres rurais. Além disso,
pouco menos da metade dos brasileiros considerados como “indi-
gentes” de acordo com os levantamentos oficiais realizados, vive em
áreas rurais da região, revelando a existência de um terço de pobres,
no nordeste, para cada 100 moradores da região. “Na área rural do
nordeste, encontra-se 63% da pobreza rural brasileira e 32% dos
pobres do país. Os cerca de 45% dos indigentes do Brasil estão na
área rural e a maioria encontra-se na região nordeste do país
(58,8%), ou seja, de cada 100 nordestinos, 39 são miseráveis”
(WINROCK, 2000).

Além da mensuração de pobreza/indigência, incluiremos nos


próximos itens indicadores variados comumente utilizados sobre

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‘Pobres’ camponeses mortos

desigualdade, e segundo a constituição brasileira, como descrito


em seu cap.II, art. 7°, inciso IV. Portanto, além do indicador de
renda, indicadores de educação, habitação, saúde, segurança pú-
blica e demografia poderão entrar na equação como determinantes
da violência agrária coletiva.

Desigualdade
Enquanto que em países pobres a sobrevivência física é fre-
quentemente ameaçada, nos países desenvolvidos o pesquisado além
da pobreza é a desigualdade, pois o tipo de pobreza é diferente,
com escassez relativa ao invés de absoluta (MILLER et alli, 1967,
p.17). A pobreza é insuficiência de renda e a desigualdade relacio-
na-se à má distribuição, tanto da renda como de outras variáveis
relevantes à qualidade de vida. O Brasil é um país em desenvolvi-
mento, com bons índices macroeconômicos, no entanto, ele “con-
tinua ocupando posição de destaque internacional como uma das
sociedades mais desiguais do planeta” (FERREIRA, 1999, p.3).
Estudos apontam que entre 1/3 e ½ da população brasileira (depen-
dendo do método de mensuração) viveria dentro da linha de po-
breza. Essa proporção é altíssima, pois na média a renda da
população brasileira é superior à recebida por quase ¾ da popula-
ção mundial e, na maioria dos países com renda per capita parecidos
com a brasileira, os níveis de pobreza são muito inferiores (BAR-
ROS, HENRIQUES e MENDONÇA, 2000, p.28). “Cerca de ¼
da desigualdade brasileira total é determinado pelos 3% mais ri-
cos da população” (MEDEIROS, 2005, p.53).
Enquanto que nos anos 80 e 90 a média brasileira do índice
15
GINI de desigualdade de renda per capita ficou em 0,59, a média

15
Mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos. Geralmente
mensura-se como referência a renda domiciliar per capita. Porém, pode-se também

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

latino-americana era de 0,49 e 0,50, e a média africana entre 0,43


e 0,47, para as respectivas décadas. Por causa da desigualdade ex-
trema, há muitíssimos pobres e alguns poucos que detém um
acúmulo exacerbado de riquezas. Portanto, seria importante in-
vestigar o Brasil, desagregando ao máximo, para visualizarmos essa
diferença radical entre os privilegiados e os despossuídos. Não so-
mente a concentração de renda, mas também a de terra nas regiões
agrárias do país indica um possível risco de mudar a ordem das
coisas e reivindicar pacifica e/ou violentamente por melhores con-
dições.
Em geral, os pobres apresentam um nível de escolaridade
inferior ao resto da população. Por exemplo, em relação ao “chefe
de família” o determinante principal de sua vulnerabilidade à po-
breza é seu nível educacional, com níveis de pobreza nacional cain-
do de 75% para os que têm um ano ou menos de escolaridade até
2% para os com mais de 12 anos de estudo (FERREIRA,
LANJOUW e NERI, 2000, p.33). Nas áreas rurais, o nível médio
de educação é significantemente mais baixo do que nas urbanas.
“No Brasil [...] os habitantes das áreas rurais tem cerca de metade
da média de anos de escolaridade da população que vive nas áreas
urbanas” (LÓPEZ e VALDÉS, 2001, p.3). “A evidência empírica
sugere fortemente que a educação continua sendo a variável de
maior poder explicativo para a desigualdade brasileira”
(FERREIRA, 1999, p. 24). Como essa é uma determinante quase
que consensual entre os pesquisadores, a incluiremos na análise da
desigualdade. Outras variáveis são comumente relevantes à
mensuração da desigualdade no Brasil.

ter outras referências, como desigualdade de terra, por exemplo. Seu valor varia de
0, quando não há desigualdade (e no caso da renda, todos os indivíduos tem a
mesma renda), a 1, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém
toda a renda da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula).

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‘Pobres’ camponeses mortos

Mensuração de desigualdade
Uma das formas de mensurar a desigualdade na distribuição
de renda no país seria representá-la por intermédio da Curva de
Lorenz, a qual utiliza informações sobre a renda de diversos seg-
mentos da população. Sua construção se dá por meio da relação
entre frações acumuladas de renda e da população. Na Figura 2
podemos observar o percentual da renda total recebida por cada
fração equivalente a 10% da população, para os anos 1997-9.

Figura 2: Curva de Lorenz para desigualdade de renda no Brasil.

Fonte: IBGE/PNAD 1997-1999, microdados (retirados de MEDEIROS, 2005,


p.46).

Quanto maior a área do arco, pior a distribuição de renda. A


distribuição da renda é extremamente desigual no Brasil. Os 10%
mais ricos detém cerca de 50% da renda total.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Há autores que discordam que a renda ou o consumo sejam


os únicos indicadores do nível de vida, já que a pobreza não é so-
mente uma condição de insuficiência econômica, mas também de
exclusão social e política (MILLER et alli., 1967, p.19) e, portan-
to, entre os indicadores que poderiam ser utilizados para medir a
desigualdade, além da renda, estariam saúde, habitação, educação
(SCHNEIDER e FIALHO, 2000, p.118), degradação ambiental
(DASGUPTA, 1998), mobilidade social, posição política e satisfa-
ção (MILLER et alli. 1967), e índice de desenvolvimento humano
(IDH)16 que abarca muitas das variáveis enumeradas num só indi-
cador. “Já em 1954 as Nações Unidas expressavam a necessidade
de combinar padrões relativos e medidas variadas de saúde, habi-
tação, vestuário, a fim de tornar possíveis as comparações intra e
internacionais de pobreza” (KAGEYAMA e HOFFMANN, 2006,
p.86), o que saiu como o IDH que conhecemos atualmente no
primeiro relatório sobre desenvolvimento humano do órgão
(PNUD) em 1990, e assim, “[...] tanto o bem-estar como a pobre-
za passaram a ser considerados explicitamente como fenômenos
multidimensionais nas políticas públicas” (KAGEYAMA e
HOFFMANN, 2006, p.87). A pergunta acaba sendo de distribui-
ção sobre quem deve ter o que e das diferenças intergrupais e
interregionais.
Aparte do IDH, outros índices foram criados para medir a desi-
gualdade, como o Índice de Pobreza Humana (IPH), utilizado princi-
palmente para países em desenvolvimento, combinando a probabilidade
de sobrevivência até os 40 anos, taxa de analfabetismo em adultos, pro-
porção de crianças abaixo do peso, e acesso a água encanada.

16
O IDH é uma medida comparativa e padronizada de avaliação do bem-estar de
uma população, incluindo riqueza, alfabetização, educação, esperança média de
vida, natalidade, além de outros fatores. O índice foi desenvolvido em 1990 e vem
sendo usado anualmente desde 1993 pelo PNUD (Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento).

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‘Pobres’ camponeses mortos

Como muitas das medidas de desigualdade têm alta correlação


entre si e mensuram fatores semelhantes, utilizaremos nesta etapa da
investigação na inferência descritiva, somente alguns indicadores, como
o de demografia, educação, habitação, e IDH17, e mesmo assim, deci-
diremos posteriormente o que incluir na análise causal.

Tabela 4: Desigualdade no Brasil e regiões para o ano de 2000 –


Indicadores de demografia, educação, habitação, IDH.
Desigualdade no Brasil e regiões para o ano 2000
Indicador Variável Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-
Oeste
Média Média Média Média Média Média
Demografia Esperança de vida ao nascer – 67,7 65,7 63,1 70,3 71,6 68,9
Ano
Mortalidade infantil (por mil 34,1 40,9 53,5 24,4 18,3 26,6
nascidos vivos)
Probabilidade de 89,5 87,6 84,2 92,3 93,5 92
sobrevivência até 40 anos (%)
Educação Alfabetizados - pessoas 15 78,2 66,4 76,8 73,6 88,9 84,9
anos e mais -(%)
Anos de estudo - mais de 11 - 3,3 1,2 2,7 2,9 4,9 5,3
pessoas 25 anos e mais - (%)
Anos de estudo - menos de 4 - 49,3 65,6 52,7 54,9 32,4 42,1
pessoas 25 anos e mais -(%)
Habitação Domicílios - com densidade 17,7 29,1 15,1 20,2 13,5 18,4
acima de 2 pessoas por
dormitório - pessoas - (%)
Domicílios - com energia 86,6 71,9 86,1 84 96 88,6
elétrica - pessoas - (%)
Domicílios - com terreno 69,9 74,3 69 68,8 71,9 68,3
próprio e quitado - pessoas
(%)
IDH Índice de desenvolvimento 0,698 0,617 0,687 0,670 0,773 0,744
Humano - geral
Índice de Desenvolvimento 0.603 0,513 0,588 0,577 0,680 0,659
Humano - renda

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

17
Neste caso, a renda diferencia-se da medida de pobreza do item anterior, já que
agora esse índice origina-se do GINI, considerando a desigualdade de renda e não
apenas a diferença.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

De acordo com os dados, observamos que se vive (em 2000)


8,5 anos a mais na região sul em relação à média da esperança de
vida ao nascer na região nordeste, a mais pobre do país, uma gran-
de diferença. Mesmo a região norte apresenta uma média de vida
reduzida nos padrões atuais (65,7 anos). Apenas as regiões sudeste
e sul passam dos 70 anos de vida, em média. Vê-se que há uma
linha imaginária dividindo o país. De um lado, acima, os que vi-
vem mais e melhor, e do outro, os com perspectivas de vida mais
curta na atualidade.
Nesse mesmo perfil, a variável probabilidade de sobrevivência
até os 40 anos (%) aproxima-se da variável esperança de vida ao nascer
(ano). A única alteração é a aproximação e o alinhamento do cen-
tro-oeste ao lado do sudeste e sul. Porém, como era de se esperar, o
nordeste e o norte ainda permanecem longe dos que têm melhor
desempenho de vida.
A mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) apresenta carac-
terísticas semelhantes das variáveis anteriores. O nordeste mais uma
vez dispara na frente e exibe uma diferença de nada menos que
35,2 bebês mortos por mil nascidos vivos em relação ao sul. Mesmo
para o segundo colocado, o norte, a diferença é grande em relação
ao nordeste (12,4 bebês mortos por mil nascidos vivos). O centro-
oeste se coloca novamente perto das regiões sudeste e sul, apresen-
tando bom desempenho.

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‘Pobres’ camponeses mortos

Figura 3: Indicador demográfico para o ano 2000


para Brasil e regiões.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA)

Podemos resumir o indicador demográfico na figura 3, no


qual vemos claramente o posicionamento de cada região em rela-
ção às variáveis demográficas, mostrando a dificuldade do nordes-
te e norte e a disparidade destes em relação ao centro-oeste, sudeste
e sul, nessa ordem.
A educação, fator apontado por muitos (THUROW, 1967;
FERREIRA, LANJOUW e NERI, 2000; LÓPEZ e VALDÉS,
2001; FERREIRA, 1999) como o que define o nível da desigual-
dade no país, e que pode reduzi-lo consideravelmente.18 Foram
selecionados três índices educacionais. Primeiramente interessa-
nos os alfabetizados com 15 anos ou mais. O aprendizado da leitura e
da escrita é o mínimo que o país deve oferecer a seus cidadãos para
que tenham uma vida digna e possam exercer suas funções míni-
mas na sociedade. Além dessa variável, incluímos a proporção de

18
Tanto é que a educação é incluída em políticas públicas de elevado custo a nível
nacional (ex.: Bolsa-Escola), estadual (ex.: Programa Ler e Escrever, em São Paulo)
e municipal.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

anos de estudo de cada indivíduo de 25 anos ou mais, tanto para os que


estudaram menos de 4 anos (ou seja, não terminaram o ensino funda-
mental I) como para os que estudaram mais de 11 anos (ou seja,
terminaram o ensino médio e iniciaram um curso superior ou
profissionalizante19). É claro que não basta apenas a quantidade de
anos cursado, mas a qualidade desse ensino. No entanto, a avalia-
ção da qualidade de ensino é demasiada complexa e, sendo assim,
preferimos nos ater às três variáveis mencionadas, já que o intuito
é examinar vários indicadores e não apenas o educacional, mesmo
que ele tenha sido apontado por muitos como peça-chave para a
redução da desigualdade e pobreza.
Na Tabela 4, vemos que, dessa vez, o norte é que possui, em
proporção, mais analfabetos do que o nordeste, e essa diferença
passa os 10% (66,4% para o nordeste e 76,8% para o norte). Curi-
osamente, o sudeste vem em segundo entre as duas regiões menci-
onadas (com 73,6%). E, finalizando, centro-oeste com 4% a menos
de pessoas alfabetizadas do que a região sul.
A mesma ordem de colocação dos analfabetos das regiões
continua com a variável menos de 4 anos de estudo – pessoas com 25
anos e mais. O sudeste novamente está a frente do nordeste, mas
vem após o norte, onde o sul e centro-oeste apresentam os melho-
res índices. É claro que os analfabetos, em geral, se enquadram na
categoria com menos de 4 anos de estudo e, por isso, tendem a ser
similares.20
Finalmente, pessoas com 25 anos e mais com mais de 11 anos de
estudo, as quais têm chances reais de conseguir um trabalho remu-
nerado que possibilite a sobrevivência digna. O centro-oeste (5,3)
lidera pela primeira vez na análise, seguido de perto pelo sul (4,9),
e de mais longe pelo sudeste (2,9) e nordeste (2,7) e, por fim, pelo

19
Excetua-se, nesse caso, os repetentes.
20
Excetuam-se pessoas que iniciaram sua alfabetização após os 15 anos de idade.

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‘Pobres’ camponeses mortos

norte (1,2). De qualquer maneira, os números são péssimos para


um país como o Brasil. Há poucas pessoas qualificadas no mercado
de trabalho e as chances de crescimento se depender desse índice,
são incrivelmente baixas.

Figura 4: Indicador de educação para o ano 2000,


para Brasil e regiões.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

Os dados sobre habitação aparecem logo a seguir. Foram le-


vados em consideração a densidade dos domicílios21, a existência de energia
elétrica neles, e se o terreno é próprio e foi quitado22. Na região norte do
país vive quase 1/3 com mais de 2 pessoas por dormitório, seguido

21
A densidade dos domicílios é dada pela razão do total de moradores do domicílio
e o número total de cômodos do mesmo, excetuando-se o banheiro e mais 1 cômo-
do destinado à cozinha.
22
Percentual de pessoas que vivem em domicílios que, juntamente com os terrenos
onde se localizam, são de propriedade, total ou parcial, de um dos moradores e já
estão integralmente pagos. No caso de apartamentos, considera-se a fração do ter-
reno.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

pelo sudeste (onde há um acúmulo de população), centro-oeste,


nordeste e sul. Os dados sobre a existência de energia elétrica fo-
ram extraídos para todos os domicílios, e não somente os da zona
rural. Sabemos que em todas as regiões vastas áreas rurais não pos-
suem cobertura da rede elétrica, com algumas sofrendo privação
muito maior, devido à falta de infraestrutura básica. No entanto,
os dados disponíveis para todos os tipos de região mostram que o
sul é muito abastecido por energia elétrica, seguido pelo centro-
oeste, nordeste, sudeste e norte. Por último, quem possui terreno
próprio e quitado, supostamente não precisa arcar com mais gastos
(aluguel e arrendamento), facilitando sua vida e direcionando a
preocupação para a quitação de dívidas destinadas à alimentação,
além de outros quesitos, porém não habitação. Surpreendentemente,
o norte aparece em primeiro lugar, com mais pessoas tendo terreno
próprio e quitado (74,3%), seguido pelo sul (71,9), nordeste (69%),
sudeste (68,8%) e centro-oeste (68,3%).

Figura 5: Indicador de habitação para o ano 2000,


para Brasil e regiões.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

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‘Pobres’ camponeses mortos

O IDH é um índice que agrega várias mensurações diferen-


tes e padronizadas de bem-estar de uma população. Esse índice
parte do pressuposto que para se aferir o avanço de uma população,
não se deve considerar apenas a dimensão econômica, mas também
a social, cultural e política. O sul, seguido de perto pelo centro-
oeste, apresenta o melhor índice. Depois vêm o nordeste, sudeste e
o norte, em último lugar.
Foi criado também o IDH mais desagregado, por setor. Apre-
sentamos o IDH por renda, o qual julgamos ser mais relevante a
nossos propósitos. Ele exibe exatamente a mesma colocação das
diferentes regiões, quando colocada a renda como orientadora das
outras medidas, mesmo que os valores são menores que o IDH
geral.

Figura 6: Indicador de IDH para o ano 2000, para Brasil e regiões.

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

Apesar de ser mais difícil e complexo o entendimento desse


índice agregado, em contraste a diferentes variáveis temáticas apre-
sentadas anteriormente, decidimos incluí-lo, tanto de maneira ge-

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 99 18/3/2011, 15:43


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

ral como sobre renda, para analisar a relevância desse indicador ao


interesse de nossa temática.
Todos os indicadores de desigualdade exibidos indicam os pés-
simos índices do país na alocação de recursos variados. Em muitos dos
indicadores, as regiões norte e nordeste apresentam os piores índices.

Tabela 5: Classificação da desigualdade


por regiões para o ano de 2000.
Indicador de Variável Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-
Pobreza Oeste

Demografia Esperança de vida ao nascer – Ano 4 5 2 1 3

Mortalidade infantil (por mil 4 5 2 1 3


nascidos vivos)

Probabilidade de sobrevivência 4 5 2 1 3
até 40 anos (%)

Educação Alfabetizados - pessoas 15 anos e 5 3 4 1 2


mais -(%)

Anos de estudo - mais de 11 - 5 4 3 2 1


pessoas 25 anos e mais - (%)

Anos de estudo - menos de 4 - 5 3 4 1 2


pessoas 25 anos e mais -(%)

Habitação Domicílios - com densidade 5 2 4 1 3


acima de 2 pessoas por dormitório
- pessoas - (%)

Domicílios - com energia elétrica 5 3 4 1 2


- pessoas - (%)

Domicílios - com terreno próprio 1 3 4 2 5


e quitado - pessoas (%)

IDH Índice de desenvolvimento 5 3 4 1 2


Humano - geral

Índice de Desenvolvimento 5 3 4 1 2
Humano - renda

Colocação das regiões (quanto maior o índice, pior a 4.4 3.8 3.4 1.8 2.6
classificação)

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 100 18/3/2011, 15:58


‘Pobres’ camponeses mortos

Enquanto a tabela 4 apresenta resultados de cada uma das


variáveis em sua unidade de mensuração original, a tabela 5 unifi-
ca as colocações de cada região brasileira (omitindo esse dado para
o Brasil como um todo), dando relevância à desigualdade regional.
No entanto, uma melhor classificação não indica bom desempe-
nho, apenas melhor desempenho relativo nas diversas categorias
selecionadas entre as regiões do país. Sendo assim, o sul se destaca
no primeiro lugar, já que obteve 9 vezes o melhor desempenho das
11 variáveis apresentadas (e nas 2 remanescentes ficou em segunda
colocação).
A região centro-oeste obteve o segundo lugar e isso, de certa
maneira, surpreende, já que essa posição era presumidamente da
região sudeste por conta de seu desenvolvimento diferenciado em
relação tanto ao resto do país, como especificamente ao centro-
oeste. Porém, o que contabiliza é a desigualdade. O centro-oeste
ficou uma vez em primeiro, 5 vezes na segunda posição, 4 vezes na
terceira e uma vez na última. O sudeste chega em terceiro, com 3
vezes a segunda posição, uma vez a terceira, e 6 vezes a quarta
colocação.
Mesmo que o nordeste tenha obtido a penúltima posição,
sendo 1 vez o segundo lugar, 6 vezes o terceiro lugar, 1 vez o quar-
to e 3 vezes o último lugar, o relatório da pobreza de 2000 do
PNUD confirma que a persistência da pobreza no Brasil tem como
principal causa a má distribuição da renda, agravada pela desi-
gualdade dos gastos sociais. Como o nordeste concentra 62% dos
pobres brasileiros, possuindo apenas 30% da população, são ainda
mais evidentes e dramáticas para essa região as desigualdades apon-
tadas (WINROCK, 2000, p.18).
O norte obteve a última posição como o mais desigual com
indicadores de pior desempenho relativo às outras regiões.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 101 18/3/2011, 15:58


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

No entanto, devemos frisar que todas as variáveis receberam


peso igual, o que pode não ser compatível com a realidade.

Pobreza, desigualdade e violência agrária coletiva


Como parte integral dos estudos dos determinantes que le-
vam à incidência de violência agrária nos municípios brasileiros, a
pobreza e a desigualdade devem ser investigadas para confirmação
ou refutação de tal pressuposto de causalidade, já que a pobreza e a
desigualdade resultam no rompimento de laços de família, no au-
mento da violência doméstica, da delinquência e do crime
(HESSELBERG, 1997, p.239). No entanto, primeiramente conti-
nuaremos com a abordagem da análise descritiva, passando poste-
riormente para a análise causal.
Os dados analisados até o momento representavam a totali-
dade dos municípios brasileiros estudados (N=5505). No entanto,
foram ressaltadas as diferentes regiões do país. A partir de agora,
apesar de continuarmos a utilizar como unidade de estudo os mu-
nicípios, não mais indicaremos a análise por meio das diferentes
regiões, para que haja uma desagregação maior e possamos retirar
maior informação com a riqueza da análise. Portanto, nesse item,
classificaremos os municípios com morte agrária (N=508) dos sem
morte agrária (N=4997), que somam 9,2% de todos os municípi-
os. O intuito, com isso, é encontrar diferenças entre os dois tipos
de municípios para posteriormente investigar a relação causal da
pobreza e desigualdade com o aumento ou redução do risco de,
num dado município, ocorrer ao menos 1 morte agrária, ou seja,
morte resultante de disputa por terra.
Aproveitaremos esse item para formular hipóteses baseadas
nos dados encontrados, a serem posteriormente analisados, confir-
mando ou refutando as hipóteses construídas. Para iniciar, formu-

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 102 18/3/2011, 15:58


‘Pobres’ camponeses mortos

lamos uma hipótese mais ampla, abrangendo a temática desse ca-


pítulo, para então descer ao nível dos dados mais específicos.
Hipótese geral: “A pobreza e a desigualdade no campo
elevam o risco de violência agrária nos municípios brasilei-
ros”.
Apesar de essa formulação parecer coerente, observamos que
em muitos municípios pobres e muito desiguais não ocorre morte
agrária. Gostaríamos de acrescentar, por conseguinte, que tanto a
pobreza como a desigualdade do campo são necessárias, porém,
não suficientes para a ocorrência de morte e violência agrária nos
municípios. Outros indicadores e variáveis devem acompanhar os
indicadores e as variáveis centrais que estamos investigando nessa
pesquisa.
No indicador demográfico vemos a diferença nas 3 variáveis
disponíveis, para o ano de 2000. Apenas 6,5% dos municípios
com morte agrária (33) localizam-se no último quartil da esperan-
ça de vida ao nascer (isto é, municípios onde as pessoas vivem mais).
Mesmo se verificarmos os últimos 2 quartis conjuntamente, en-
contraremos somente 32% dos municípios com mortes agrárias. A
grande maioria dos municípios com morte agrária exibe baixa es-
perança de vida ao nascer. Já nos municípios sem morte agrária, os
números permanecem quase inalterados nos diferentes quartis.
O mesmo ocorre com a mortalidade infantil. Apenas 5%
(27) dos 508 municípios com morte agrária apresentam mortali-
dade infantil baixa. Mais de 70% dos municípios apresentam mor-
talidade infantil de média-alta à alta. Os municípios sem morte
agrária não mudam muito de um quartil a outro.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 103 18/3/2011, 15:58


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 6: Municípios (por quartil) com e sem


morte agrária entre os anos 1985-2005 e o indicador
demográfico (2000) para Brasil.

Indicador demográfico (ano 2000) Municípios

Variáveis Quartil Sem Com Total


morte morte
agrária agrária

Esperança de vida ao nascer 1 1211 168 1379

2 1197 177 1374

3 1246 130 1376

4 1343 33 1376

Total 4997 508 5505

Mortalidade infantil (por mil 1 1351 27 1378


nascidos vivos) 2 1252 123 1375

3 1185 191 1376

4 1209 167 1376

Total 4997 508 5505

Probabilidade de sobrevivência 1 1214 163 1377


até 40 anos 2 1193 190 1383

3 1252 120 1372

4 1338 35 1373

Total 4997 508 5505

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 104 18/3/2011, 15:59


‘Pobres’ camponeses mortos

Por fim, menos de 7% (35) dos municípios com mortes agrá-


rias exibe alta probabilidade de sobrevivência até os 40 anos de
idade, e cerca de 70% desses municípios têm probabilidade baixa
e média-baixa de sobrevivência até os 40 anos de idade. Os dados
mencionados referem-se ao ano de 2000, tanto para o indicador
demográfico, quanto para os outros a seguir. Os municípios sem
morte agrária permanecem inalterados, respeitando a
proporcionalidade por quartil.

Hipótese - a) As variáveis demográficas têm papel relevante na


redução ou aumento do risco de morte agrária nos municípios, de acordo às
suas características.

O indicador de educação mostra a mesma direção do


demográfico. E, como ressaltado anteriormente, muitos autores
concordam que a educação, por meio da escolaridade, seja um dos
indicadores centrais à redução da pobreza e desigualdade no país.
Será que isso também poderia reduzir a violência agrária?
Somente 16% (81) dos municípios com mortes agrárias si-
tuam-se no último quartil de educação, ou seja, municípios que
têm o maior índice de alfabetizados com 15 anos ou mais. A gran-
de maioria desses municípios tem pouca população alfabetizada
maiores de 15 anos de idade.
Quase a mesma proporção –17% – (83) dos municípios com
morte agrária apresentam pessoas com 25 anos ou mais que têm
menos de 4 anos de estudo e estão no primeiro quartil, isto é,
poucos municípios com pessoas mais velhas que têm menos de 4
anos de estudo. A grande maioria desses municípios ‘violentos’ são
formados por muitos indivíduos com menos de 4 anos de escolari-
dade.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 105 18/3/2011, 16:00


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 7: Municípios (por quartil) com e sem


morte agrária entre os anos 1985-2005 e o indicador
de educação (2000) para Brasil.
Indicador educacional (ano 2000) Municípios

Variáveis Quartil Sem Com Total


morte morte
agrária agrária

Pessoas alfabetizadas com 15 anos 1 1217 145 1362


ou mais
2 1208 151 1359

3 1233 127 1360

4 1279 81 1360

Total 4937 504 5441

Pessoas com 25 anos ou mais que 1 1278 83 1361


tem menos de 4 anos de estudo
2 1239 121 1360

3 1224 136 1360

4 1196 164 1360

Total 4937 504 5441

Pessoas com mais de 25 anos que 1 1200 161 1361


tem mais de 11 anos de estudo
2 1228 132 1360

3 1247 113 1360

4 1262 98 1360

Total 4937 504 5441

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

Finalmente, mesmo com o baixo índice de pessoas no país


com mais do que o ensino médio, 19% destes municípios locali-

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 106 18/3/2011, 16:00


‘Pobres’ camponeses mortos

zam-se no último quartil. Ou seja, poucos municípios com mortes


agrárias têm um número considerável de pessoas que tiveram mais
de 11 anos de estudo. Os números de municípios sem morte agrá-
ria permanecem semelhantes durantes todos os quartis para as 3
variáveis que foram escolhidas para formar o indicador de edu-
cação nesse artigo.

Hipótese - b) Variáveis educacionais influem na elevação ou re-


dução do risco de morte agrária nos municípios.

Crianças na sala de aula improvisada, dentro da ocupação da Fazenda Peruano

Apesar do tema da habitação ser um dos indicadores selecio-


nados para a desigualdade, vemos que apenas as duas primeiras
variáveis, domicílios com densidade maior que 2 pessoas por quarto e
domicílios com energia, elétrica parecem corroborar com a análise des-
critiva. Grande parte dos municípios com morte agrária (145) lo-
caliza-se no último quartil, isto é, com alta densidade por quarto.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 107 18/3/2011, 16:00


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Além disso, poucos municípios (91) com morte agrária localizam-


se no último quartil de domicílios com energia elétrica, consistin-
do em 18% desses municípios no último quartil (enquanto a
distribuição normal exigiria que fosse 25%, como ocorre com os
municípios sem morte agrária).

Tabela 8: Municípios (por quartil) com presença de morte


agrária entre os anos 1985-2005 e o indicador de habitação
(2000) para Brasil.
Indicador habitacional (ano 2000) Municípios
Variáveis Quartil Sem Com morte Total
morte agrária
agrária
Domicílios com densidade maior 1 1236 126 1362
de 2 pessoas por dormitório 2 1246 113 1359
3 1240 120 1360
4 1215 145 1360
Total 4937 504 5441
Domicílio com energia elétrica 1 1184 177 1361
2 1231 129 1360
3 1253 107 1360
4 1269 91 1360
Total 4937 504 5441
Domicílio com terreno próprio e 1 1239 122 1361
quitado 2 1269 91 1360
3 1230 130 1360
4 1199 161 1360
Total 4937 504 5441
Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

No entanto, domicílios com mortes agrárias em terreno próprio e


que já estão quitados não apresentam uma direção linear e coerente
para a categoria de municípios com morte agrária. Uma possibili-
dade seria a credibilidade dos dados. Mesmo que o IPEA seja um

108

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 108 18/3/2011, 16:00


‘Pobres’ camponeses mortos

órgão sério, registros de propriedade e quitação de imóveis podem


fazer parte de dados difíceis de coletar, e mais difíceis de confiar.
Os números dos municípios sem morte agrária nas 3 variáveis que
formam o indicador de habitação são constantes e similares (em
torno de 25% cada quartil).

Hipótese - c.1) A densidade domiciliar maior que 2 pessoas por


dormitório eleva o risco de morte agrária;

Hipótese - c.2) Pessoas que vivem em domicílios com energia elé-


trica tem risco reduzido de morte agrária.

Casas construídas de pau a pique para os moradores da ocupação, até sua trans-
formação em assentamento, após alguns anos, quando isso ocorre.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 109 18/3/2011, 16:00


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 9: Municípios (por quartil) com presença de morte


agrária entre os anos 1985-2005 e o índice de desenvolvimento
humano (2000) para Brasil.
Indicador do IDH (ano 2000) Municípios

Variáveis Quartil Sem Com Total


morte morte
agrária agrária

Índice de desenvolvimento 1 1223 157 1380


humano - total
2 1204 146 1350

3 1263 109 1372

4 1247 92 1339

Total 4937 504 5441

Índice de desenvolvimento 1 1223 149 1372


humano - renda
2 1203 157 1360

3 1253 104 1357

4 1258 94 1352

Total 4937 504 5441

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).

Era de se esperar que municípios com índice de desenvolvi-


mento humano baixo estivessem mais propensos a violência agrá-
ria. Os dados descritivos indicam essa direção, já que municípios
que tiveram ao menos 1 morte agrária no período 1985-2005 e
que se situam no primeiro quartil do IDH total, ou seja, com IDH
baixíssimo, estão mais presentes (31%) do que no último quartil,
onde o IDH é o mais alto apresentado (18% dos municípios com
morte agrária situam-se nessa posição).

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 110 18/3/2011, 16:01


‘Pobres’ camponeses mortos

Em relação ao IDH de renda, a direção é quase a mesma da


anterior, com a diferença que o segundo quartil compõe mais mu-
nicípios com morte agrária do que o primeiro, mas no restante do
quadro os dados são semelhantes (30% dos municípios com morte
agrária no primeiro quartil e 19% dos municípios desse tipo no
último quartil). Os dados dos municípios sem morte agrária dis-
tribuem-se de modo mais semelhante por todos os quartis.
Apesar de esse indicador parecer robusto, não será formula-
da hipótese causal com a violência agrária, já que o IDH é construído
de certas variáveis que já foram ou serão mencionadas nesse capí-
tulo. Portanto, não será metodologicamente viável a tentativa de
comprovação desse indicador. No entanto, a resposta a outras hi-
póteses responderia indiretamente ao indicador do IDH.

Tabela 10: Municípios (por quartil) com presença de morte


agrária entre os anos 1985-2005 e a quantidade de pobres e
indigentes (2000) para Brasil.
Indicador de pobreza (ano 2000) Municípios

Variáveis Quartil Sem Com Total


morte morte
agrária agrária

Pessoas pobres 1 1257 104 1361

2 1259 101 1360

3 1215 145 1360

4 1206 154 1360

Total 4937 504 5441

Pessoas indigentes 1 1250 111 1361

2 1268 92 1360

3 1212 148 1360

4 1207 153 1360

Total 4937 504 5441

Fonte: Autoria própria (baseado em dados do IPEA).


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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

O indicador de pobreza é mensurado pela renda nessa inves-


tigação e auxilia na criação do grupo que se situa abaixo da linha
de pobreza e, em nível mais severo, de indigência. Presume-se que
municípios com morte agrária estejam em maior número com gran-
de quantidade de pobres e indigentes, e é isso mesmo o que ocorre
nos dados apresentados. Mesmo que tanto para pobres como para
indigentes, o segundo quartil exibe um pouco menos de municí-
pios com mortes agrárias do que o primeiro, nos quartis a seguir
esse número aumenta. Pode-se argumentar que quando vistos con-
juntamente, os quartis 1 e 2 de pobres incluem 41% de municípi-
os com mortes agrárias enquanto os quartis 3 e 4 (com mais pobres)
incluem 59% de municípios com mortes agrárias. Em relação aos
indigentes, 40% dos municípios com morte agrária localizam-se
nos quartis 1 e 2, e 60% nos quartis 3 e 4, estes onde existem
muito mais indigentes. Portanto, há mais municípios com morte
agrária onde a presença de pobres e indigentes é mais numerosa,
apesar dessa diferença não ser tão grande como esperávamos, ela
existe. Não podemos esquecer que não estamos medindo aqui a
intensidade de mortes agrárias, mas municípios onde ocorreu ao
menos 1 morte agrária.
A teoria nos diz que problemas sociais e econômicos podem
impulsionar rebeliões em zonas rurais. Os dados indicam algo nes-
sa direção. No entanto, a relação causal precisa ser investigada com
os devidos instrumentos, o que será realizado a seguir. Os municí-
pios sem morte agrária estão novamente distribuídos similarmen-
te pelos quartis apresentados na tabela (em torno de 25% cada
quartil).

Hipótese - d) Quanto maior o número de pobres (incluídos os indi-


gentes) em dado município, aumenta o risco de morte agrária.

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‘Pobres’ camponeses mortos

Pobreza e desigualdade levam à violência agrária?


A inferência descritiva indicou coerência nos dados apresen-
tados, que concordam com as teorias e hipóteses propostas no de-
correr desse artigo. Há, portanto, indicações de possível relação
que merece ser investigada mais minuciosamente por meio de
inferência causal.
A variável dependente (Y) é município com ocorrência de
morte agrária e seria o resultado da soma das variáveis indepen-
dentes da literatura (Xn), mais as variáveis que representam a po-
breza (Xp) e a desigualdade (Xd), aqui analisadas.
Y = bO + XN + XP + XD
Notamos que as rebeliões de maior porte e revoluções ocor-
ridas a partir da revolução francesa23 foram realizadas por campo-
neses (como na França, na Rússia, no México e na Bolívia), ou por
meio de mobilização no campo (como na China, no Vietnã, em
Cuba, e em revoluções contra o colonialismo português na África)
(Skocpol 1997, p. 16). Em praticamente todos esses casos, a po-
breza rural teve um papel primordial como determinante da vio-
lência agrária. Apesar de a pobreza ser necessária para a eclosão da
violência, ela não é suficiente. Se assim fosse, em todas as localida-
des pobres haveria erupções constantes de violência.
Outra variável estudada que poderia contribuir à violência
agrária coletiva, em complemento à pobreza rural, seria a desi-
gualdade de terras (ZIMERMAN, 2008a), que realça a disparidade
entre a agricultura familiar e a patronal no Brasil, e o maior risco
de violência agrária por conta dessa disparidade da distribuição da
terra Brasil afora.

23
Com exceção da revolução iraniana, que tinha origem urbana.

113

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Figura 7: Determinantes da violência agrária.

Análise de dados
Na análise econométrica das variáveis agrárias, a maneira
como muitos fatores estão inter-relacionados cria problemas de
endogeneidade, o que exigiria bancos de dados maiores para sair
desse entrave (ADATO et alli, 2007, p.41). Portanto, para o caso
que estamos trabalhando, resolvemos analisar por municípios bra-
sileiros, já que sua quantidade é suficiente para realizar análise
quantitativa dessa proporção (N=5505 municípios). Mesmo para
os dados de interesse de presença de evento, ou seja, municípios
com ao menos 1 morte agrária, temos 508 casos. Assim, esses 9,2%
de casos de municípios com morte agrária não podem ser conside-
rados raros.
A análise estatística utilizada nesta pesquisa é a regressão
logística binária, para análise cross-sectional (1 observação por
município). A variável dependente é MUNICÍPIO COM MOR-
TE AGRÁRIA, que foi coletado pela Comissão Pastoral da Terra,
para os anos 1985-2005 (CPT 1985-2005) e organizado pelo autor,
e não dá ideia da intensidade da violência agrária mensurada pelo
número de mortes, mas apenas pela presença de ao menos 1 morte
por município no período mencionado. Os dados da variável de-

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 114 18/3/2011, 16:01


‘Pobres’ camponeses mortos

pendente foram coletados por um período de 21 anos (1985-2005),


enquanto as variáveis explicativas em um momento apenas (no
ano 2000). Porém, foi a única maneira possível que nos permitiu
trabalhar com os dados. Além disso, todas as variáveis explicativas,
inclusive as contínuas, foram transformadas em ordinais/categóri-
cas (geralmente por quartis) para serem analisadas pelo método
estatístico proposto.
As variáveis independentes analisadas foram:
Do indicador demográfico: População rural24; esperança de vida
ao nascer; mortalidade infantil por mil nascidos vivos, probabilidade de
sobrevivência até os 40 anos de idade;
Do indicador habitacional: domicílios com energia elétrica; do-
micílios com densidade acima de 2 pessoas por dormitório;
Do indicador educacional: alfabetizados acima de 15 anos; anos
de estudo de pessoas de 15 anos ou mais; menos de 4 anos de estudo para
pessoas com 25 anos ou mais;
Do indicador de pobreza: pessoas pobres25, indigentes.
Todas as variáveis mencionadas (com exceção da população rural,
extraída do IBGE) teve como fonte o IPEA.
Além das variáveis apresentadas, serão incluídas na análise 4
variáveis adicionais, utilizadas no primeiro capítulo e que demons-
traram ser relevantes e significativas. Elas foram extraídas do
banco SADE (INCRA/FAO, 2000) e estão, a seguir, também trans-
formadas em quartis:

24
A variável população rural demonstrou ser relevante à análise quando trabalhada
com outros indicadores agrários, permanecendo robusta e significativa em todos
os modelos analisados (ZIMERMAN, 2008b), portanto decidimos incluí-la, mesmo
não tendo mencionado essa variável no decorrer do capítulo.
25
Como nos referimos na nota da tabela 3, pobres são pessoas que estão abaixo da
linha da pobreza, definida por renda per capita inferior a ½ salário mínimo, en-
quanto indigentes tem renda inferior a ¼ salário mínimo per capita.

115

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 115 18/3/2011, 16:01


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Indicador agrário:
a) número de estabelecimentos da agricultura familiar – Repre-
senta o número de todos os estabelecimentos aonde é
exercida a agricultura familiar no Brasil, por municípios.
Essa variável tentou demonstrar que quanto maior o nú-
mero de estabelecimentos da agricultura familiar, menor
o risco de violência agrária, já que os camponeses, em sua
maioria, poderão sobreviver do que plantam ou criam.
b) área da agricultura patronal – Representa a área total/hec-
tare aonde é exercido o tipo de agricultura patronal, ge-
ralmente em vastos territórios e com quantidade grande
de terra improdutiva26. Foi demonstrado que quanto
maior a área que esse tipo de estabelecimento agrícola
ocupa, maior o risco de a violência agrária ocorrer.
c) número de estabelecimentos da agricultura patronal de baixa
renda – Representa unidades da agricultura patronal que
não possui recursos para investir em seu grande pedaço
de terra e, portanto, ao invés de contratar lavradores e
investir na produção, o investimento possível, em geral,
é na contratação de vigias e seguranças, além de cerca,
para evitar ocupação dessas terras. Essa forma de agricul-
tura tem tendências de elevar o risco da violência agrária.
d) crédito da agricultura patronal – Foi demonstrado no outro
trabalho mencionado que a agricultura patronal recebe
¾ de todo o crédito rural absoluto no Brasil, mesmo re-
presentando apenas 12% dos estabelecimentos agrícolas
(ZIMERMAN, 2008a, p.13). Esse crédito, dado a quem
já possui poder e terras, aumenta a desigualdade e tende
a gerar maior risco de violência agrária.
As variáveis do indicador agrário servem como variáveis de
controle.

26
Excetua-se nessa categoria o agronegócio.
116

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 116 18/3/2011, 16:01


Tabela 11. Análise de correlação bivariada Kendall.
Variáveis MMA

Município com Coef.C. 1 Popul.


morte agrária Signif. . rural
(MMA) N 5505
População rural Coef.C. .203** 1 Esp.
(quartis) Signif. .000 . vida ao Tabela 11. Análise de correlação bivariada Kendall.
N 5505 5505 nascer
Esperança de Coef.C. -.116** -.242** 1 Mortal.
vida ao nascer Signif. .000 .000 . infantil
(quartis) N 5505 5505 5505
Mortalidade Coef.C. .125** .277** -.835** 1 Probab.
inf. mil Signif. .000 .000 .000 . Sobrev.

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd


nascidos vivos N 5505 5505 5505 5505 até 40
(quartis)
Probabilidade Coef.C. -.116** -.262** .924** -.867** 1 Alfabeti
sobrevivência Signif. .000 .000 .000 .000 . z15 anos
40 anos N 5505 5505 5505 5505 5505 ou +

117
(quartis)
‘Pobres’ camponeses mortos

Pessoas Coef.C. -.056** -.050** .199** -.250** .218** 1 + 11


alfabetiz 15 Signif. .000 .000 .000 .000 .000 . anos
anos ou + N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 estudo
(quartis)
+ de 11 anos de Coef.C. -.054** -.059** .179** -.221** .196** .618** 1 -4 anos
estudo maiores Signif. .000 .000 .000 .000 .000 .000 . estudo
de 25 (quartis) N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441

117
- de 4 anos de Coef.C. .067** .049** -.208** .260** -.229** -.861** -.679** 1 Densid.
estudo maiores Signif. .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 . maior 2
25 anos N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 pessoas
(quartis)
Domicílios com Coef.C. .017 -.064** .005 .014 .002 -.320** -.258** .320** 1 Domic.
densidade Signif. .178 .000 .683 .204 .888 .000 .000 .000 . energia
acima 2 N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 elétrica
pdorm.quartis)
Domicílios com Coef.C. -.072** -.056** .189** -.222** .197** .603** .648** -.650** -.351** 1 Domic.
energia elétrica Signif. .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 . Terreno
(quartis) N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 próprio
Domicílios com Coef.C. .040** .000 .012 -.018 .017 -.045** -.248** .072** .017 -.186** 1 IDH
terreno próprio Signif. .001 .970 .306 .113 .124 .000 .000 .000 .123 .000 . total
e quitado N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441
(quartis)
IDH total Coef.C. -.058** -.051** .194** -.242** .214** .839** .688** -.837** -.368** .652** -.117** 1 IDH
(quartis) Signif. .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 . renda
N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441

18/3/2011, 16:01
IDH renda Coef.C. -.055** -.055** .192** -.238** .208** .783** .704** -.787** -.346** .660** -.163** .856** 1 Pobre
(quartis) Signif. .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .
N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441
Pobres Coef.C. .050** .052** -.198** .242** -.213** -.778** -.678** .780** .401** -.709** .159** -.843** - 1 Indi-
(quartis) Signif. .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .877** . gent
N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 .000 5441 e
5441
Indigentes Coef.C. .047** .042** -.181** .221** -.193** -.747** -.664** .749** .414** -.722** .185** -.813** - .920** 1
(quartis) Signif. .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .000 .846** .000 .
N 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 5441 .000 5441 5441
5441
Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Cada um dos indicadores mencionados, com exceção do agrá-


rio, apresenta variáveis que se inter-relacionam e, portanto, como
visto na tabela 11, foram encontradas várias multicolinearidades
na análise bivariada de correlações tipo Kendall27. Assim, na tabe-
la de regressão, foi utilizada apenas 1 variável de cada indicador
em cada modelo separado (com exceção da população rural e do
indicador agrário). Retiramos da análise o indicador do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), pois a composição das variá-
veis que formam esse indicador já está sendo utilizada nas variá-
veis que são parte da análise. O indicador de pobreza foi mantido
com pessoas pobres e indigentes, cada um fazendo parte de modelos
diferentes. Variáveis de habitação, educação e IDH não puderam
ser incluídas nos modelos devido à alta correlação que apresenta-
ram quando colocadas lado a lado com as outras variáveis já men-
cionadas.
O modelo 1 apresenta todas as 4 variáveis significativas. O
risco de municípios terem mortes agrárias se resume a: quando
acrescenta-se uma unidade de população rural, eleva-se o risco de
município com morte agrária em 1.9 vezes; quando acrescentamos
1 unidade de morte infantil, eleva-se o risco de morte agrária em
mais de 1.5 vezes; quando acrescentamos a quantidade de pessoas
pobres em uma unidade, eleva-se o risco de violência agrária em
mais de 1.1 vezes; e, finalmente, quando acrescentamos em uma
unidade o número de estabelecimentos rurais da agricultura pa-
tronal de baixa renda, eleva-se o risco de violência agrária em mais
de 1.7 vezes.
No modelo 2 trocamos a mortalidade infantil pela probabi-
lidade de sobrevivência até os 40 anos, e pessoas pobres por indi-

27
A análise não-paramétrica de correlação Kendall é utilizada quando as variáveis
são transformadas de contínuas para ordinais/categóricas, como foi o caso nesse
capítulo.

118

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 118 18/3/2011, 16:01


‘Pobres’ camponeses mortos

gentes, além de incluir a área da agricultura patronal. Quando


aumenta-se a probabilidade de sobrevivência de pessoas até os 40
anos de idade, reduz-se o risco de morte agrária em 0.7 vezes. Pes-
soas indigentes e pobres e população rural permanecem no mesmo
patamar do modelo 1. Quando aumentamos a área da agricultura
patronal, elevamos também o risco de violência agrária em 1.6
vezes.
O modelo 3 seleciona a esperança de vida ao nascer, que re-
duz o risco de morte agrária nos municípios em 0.7 vezes e a quan-
tidade de estabelecimentos da agricultura familiar em 0.8 vezes.
O modelo 4 volta a testar a probabilidade de sobrevivência
até os 40 anos, reduzindo o risco de morte agrária nos municípios
em 0.8 vezes. O acréscimo de uma unidade de pessoas pobres eleva
o risco de morte agrária em 1.1 vezes, ficando no mesmo patamar
que o modelo 1. Uma última variável introduzida nesse último
modelo foi o crédito da agricultura patronal que, quando aumen-
tado, eleva-se o risco de morte agrária nos municípios em 1.2 ve-
zes.
Em todos os modelos as variáveis são significativas na maio-
ria das vezes em p ≤ 0,01 e em duas vezes apenas em p ≤ 0,05.
Além disso, quase todas as observações (5.440 das 5.505) são ana-
lisadas. Praticamente todos os modelos apresentados poderiam ser
escolhidos como satisfatórios.

119

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 119 18/3/2011, 16:01


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tabela 12: Regressão – Municípios brasileiros com


morte agrária (1985-2005)28.
MUNICÍPIO COM MORTE AGRÁRIA 1 2 3 4

POPULAÇÃO RURAL 1.866*** 1.817*** 2.124*** 2.344***


(0.100) (0.098) (0.140) (0.150)

ESPERANÇA DE VIDA AO NASCER 0.682***


(0.035)

MORTALIDADE INFANTIL POR MIL 1.540***


NASCIDOS VIVOS (0.084)

SOBREVIDA ATÉ OS 40 ANOS DE 0.711*** 0.773***


IDADE (0.039) (0.039)

PESSOAS INDIGENTES 1.140*** 1.159***


(0.051) (0.053)

PESSOAS POBRES 1.144*** 1.106**


(0.052) (0.050)

NÚMERO DE ESTABELECIMENTOS DA 0.870** 0.791***


AGRICULTURA FAMILIAR (0.049) (0.043)

ÁREA DA AGRICULTURA PATRONAL 1.590***


(0.093)

NÚMERO DE ESTABELECIMENTOS DA 1.712*** 1.306*** 1.623***


AGRICULTURA PATRONAL DE BAIXA (0.093) (0.083) (0.088)
RENDA

CRÉDITO DA AGRICULTURA 1.171***


PATRONAL (0.055)

n. obs. (município-ano) 5440 5440 5440 5439


Teste Pearson chi2 (246) (791) (793) (809)
(goodness-of-fit/ajuste do modelo) 407.61 951.41 879.07 957.91

Fonte: Autoria própria

28
A tabela apresenta análise de regressão logística. Foi utilizado o programa STATA.
Significância: ** p ≤ 0,05; e *** p ≤ 0,01. São apresentados o OR (odds ratio) na
primeira linha de cada variável e o erro-padrão do coeficiente consta entre parên-
teses na segunda linha de cada variável. N=5505 observações (municípios), ano
2000.

120

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 120 18/3/2011, 16:01


‘Pobres’ camponeses mortos

Na primeira linha de cada variável explicativa encontra-se o


valor do Odds Ratio29. Podemos, em suma, afirmar que tanto as
variáveis representando a pobreza como as representando a desi-
gualdade estão presentes e são significativas nos quatro modelos.

Conclusão da parte II
Propomos, nessa investigação, que a pobreza e a desigualda-
de fazem parte dos determinantes de violência agrária no país, em
conjunto das variáveis agrárias. Não confirmamos apenas as hipó-
teses de variáveis que, por motivo de colinearidade, não puderam
ser colocadas lado a lado. No entanto, podemos afirmar que uma
maior quantidade de pessoas com baixa renda per capita elevaria o
número de municípios com morte agrária. De maneira semelhan-
te, a desigualdade também se incumbiria de elevar o risco de mor-
te agrária nos municípios.
A desigualdade e a pobreza no Brasil é tema muito comen-
tado e estudado por vários institutos e academias no país e no exte-
rior (SOARES, SOARES, MEDEIROS, OSÓRIO, 2006;
SALARDI, 2008). A carga de estar entre os países mais desiguais
do mundo, e que possuem muitos pobres e miseráveis como seus
cidadãos não faz jus à riqueza do Brasil, pois muitos outros países
com menor renda média per capita estão em posição bem superior
em relação à nossa desigualdade e pobreza.
Programas de redução de pobreza a curto e largo prazo po-
dem ajudar a tirar muitas famílias que estão abaixo da linha de
pobreza e, com isso, reduzir a própria desigualdade e violência agrá-

29
O odds ratio mede a direção e a força de cada variável (e não somente a direção,
como o coeficiente o faz). Ele indica o risco de haver municípios com ao menos uma
morte agrária (variável dependente) relativo ao risco de referência 1. Portanto, se
OR = 1, ele não tem efeito no risco de referência (baseline); se OR = 3, o risco de
início de guerra civil é triplicado; e se OR = 0,5, ele é reduzido pela metade.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 121 18/3/2011, 16:01


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

ria também. Programas como o Bolsa-Escola ainda precisam de


melhorias, já que reduz a pobreza em pouco mais de 1 ponto
percentual, e o índice GINI de desigualdade apenas cai meio pon-
to (BOURGUIGNON, FERREIRA e LEITE, 2003, p.252-3). São
passos iniciais e reformas estruturais são necessárias. A questão é
que essa situação de pobreza e desigualdade severa faz com que os
menos privilegiados reivindiquem do país e dos melhor
posicionados, um lugar ao sol. Essa reivindicação pode tomar for-
mas violentas e resultar em mortes, mais especificamente em nos-
so caso, em mortes agrárias, já que programas políticos muitas
vezes não conseguem abranger os camponeses pobres, pois, devido
às proporções do Brasil, esses indivíduos estão espalhados país afo-
ra e seus votos não contam como os dos cidadãos urbanos. A desi-
gualdade no campo é mais severa do que nas cidades, elevando o
nível de conflito entre os afortunados e os desprovidos.
É necessário ter organização e oportunidade, além de pobre-
za e desigualdade, para que a violência agrária eleve seu risco de
confrontação. A organização no campo já faz parte do cotidiano e a
mobilização resulta, dentre outras coisas, em ocupações de terra
Brasil adentro. Grupos como MST e CPT, além de sindicatos agrá-
rios e ONGs de diversos setores conscientizam os trabalhadores
rurais de seus direitos. O lado do poder político e econômico resiste
e o confronto entre as partes parece inevitável até que ocorra morte
agrária: e muito por causa da desigualdade, como vimos nas tabe-
las e figuras apresentadas.
Em suma, confirmamos a hipótese geral de que a pobreza e
a desigualdade no campo elevam o risco de violência agrária nos
municípios brasileiros. As hipóteses específicas, em parte, tam-
bém corroboram às expectativas seguidas durante todo esse capí-
tulo.

122

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 122 18/3/2011, 16:01


‘Pobres’ camponeses mortos

Parte III

Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra


na região do Brasil onde mais se mata1

Entrevistados: 2 coordenadores da CPT (em Marabá e


Xinguara), um coordenador de cooperativa em Marabá (e ex-coor-
denador da CPT na mesma cidade), um missionário do CIMI, 2
presidentes da FETAGRI, um segurança (PM) de ameaçada de
morte, um coordenador regional do MST, um representante sindi-
cal dos ruralistas e fazendeiros, uma juíza da vara agrária, um ge-
rente de banco CEF (de Marabá).
Essas entrevistas foram gravadas e feitas como estudo de cam-
po para a pesquisa do autor. Porém, como elas englobam pessoas que
estão ligadas diretamente às lutas e às mortes no campo
em região de maior risco de morte agrária no país, conseguem escla-
recer o conflito de maneira sucinta e clara ao leitor. Por essas razões,
foi decidido mantê-las no mesmo contexto e repassá-las ao leitor,
sem edição alguma das palavras proferidas por estes interlocutores.
A escolha dos entrevistados se deu pelas seguintes razões:
A Comissão Pastoral da Terra é um órgão ligado à Igreja
Católica, que defende os direitos e a dignidade humana dos que
trabalham na terra. A entidade publica anualmente um relatório
sobre a situação de conflitos e disputas de terra e, ao que tudo

1
Entrevistas realizadas entre 7-22/11/2007, nas regiões sudeste e sul do Pará, por
Artur Zimerman. As fotos exibidas no decorrer do livro foram tiradas pelo autor
nessa mesma viagem de campo.

123

Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 123 18/3/2011, 16:01


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

indica, é um dos únicos documentos que mostram a real situação


dos camponeses no Brasil. Por tal motivo, achamos conveniente
que 3 coordenadores (sendo um ex-coordenador) desse órgão con-
tem sua parte na história do conflito, pois conhecem a situação dos
trabalhadores no campo de maneira profunda e in loco.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) pertence à Igreja
Católica e cuida do bem-estar dos Índios, também com relação a
sua ligação com a terra. Os índios não foram muito mencionados
neste livro, nas duas primeiras partes. No entanto, é um dos gru-
pos que frequentemente é ameaçado em suas próprias terras. Que-
ríamos dar espaço a tal categoria, já que a entidade representa a voz
de muitos dos índios frente ao homem branco.
A Fetagri é a entidade sindical dos trabalhadores na agricul-
tura, espalhadas pelo país. Questões relacionadas à situação do tra-
balhador deveriam fazer parte do livro, pois uma das categorias de
análise é a dos trabalhadores.
Uma situação sui generis, na qual um policial militar faz a
segurança de uma presidente de sindicato de Rondon do Pará, que
teve seu marido assassinado por questões de terra e a própria é
ameaçada de morte, até que recebeu proteção do estado. Assim,
damos oportunidade de um membro da Polícia Militar dar seu
depoimento, mesmo que protegendo uma cidadã que defende os
trabalhadores rurais.
Movimentos sociais são, em geral, muito bem organizados e
mobilizam milhares de trabalhadores sem-terra, dentre outras ca-
tegorias. Não poderia, portanto, faltar um coordenador do Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), prestando seu
depoimento e dando a visão do conflito agrário na região.
O único representante do sindicato dos grandes fazendeiros
e dos ruralistas em geral, que pudemos incluir nesse livro, apre-
senta sua versão da situação de violência no campo. Nossa opção
foi incluir várias partes do conflito na mesma obra.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 124 18/3/2011, 16:01


Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Uma juíza da vara agrária, representando o establishment, faz


parte do rol dos entrevistados necessários para dar a tal diversidade
dos presentes no atual livro.
Por fim, um gerente da Caixa Econômica Federal presta es-
clarecimentos sobre as enormes filas em sua agência, onde há sus-
peita, por parte do autor, de muita ajuda social na região que mais
se morre e mata por conflitos de terra no sul e sudeste do estado do
Pará, dando ênfase à miséria e à pobreza desta parte esquecida pe-
las autoridades no Brasil.

1) Entrevista com José Batista Affonso – Coordenador


da CPT em Marabá (e advogado).
P – Explique o conflito agrário nessa região.
Até o início da década 60 a ocupação da região ocorria às
margens dos rios. O que existia eram pequenos núcleos urbanos às
margens dos rios Tocantins, Araguaia, Tacaiunas e outros de porte
menor até a divisa com Mato Grosso. Talvez, se somassem todos os
habitantes da região naquele período, não chegava a 100 mil habi-
tantes (não sei exatamente). A relação com a terra era de posse. Os
ribeirinhos ocupavam a beira do rio e não havia limite estabelecido
de fundo nem limite de lateral. Não havia problema de conflito
por terras naquele período. A posse passava de pai para filho sem
nenhum problema. O quadro começou a mudar a partir do início
da década de 60, com as mudanças todas ocorridas a nível interna-
cional, na ordem de interesse do capital, com o golpe militar...

P – Serra Pelada ainda existe?


Ela foi desativada há muitos anos, apesar de existirem ainda
milhares de garimpeiros que lutam por seus direitos. O auge do
garimpo foi na década de 80 e hoje não existe mais.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 125 18/3/2011, 16:01


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

O problema da terra começou de que forma? Com o investi-


mento dos militares aqui na região, pautado principalmente sob 3
aspectos: a exploração mineral, a expansão da atividade pecuária
de corte, e a extração de madeira. A exploração mineral foi pesqui-
sada na Serra dos Carajás e os projetos de infraestrutura foram ban-
cados pelos militares. A primeira coisa foi a construção da
hidrelétrica de Tucuruí, a construção das estradas para poder ter
acesso e oferecimento de todas as condições necessárias para a im-
plantação desse mega-projeto (a implantação da estrada de ferro e
a abertura dos portos para escoamento do minério).
Para a exploração da pecuária e, naquele tempo, com o au-
mento do valor da carne no mercado internacional, precisávamos
(como hoje) exportar carne. Nos outros estados onde a pecuária ti-
nha o domínio das terras, elas iam sendo ocupadas pelas monoculturas
como cana, soja, produtos que o mercado internacional tinha inte-
resse. O boi foi empurrado para cá dos estados tipicamente pecuári-
os, como Mato Grosso e Goiás. A monocultura ligada ao agronegócio
foi responsável por essa mudança de empurrar o boi para cá.
Aqui foram criadas fazendas e precisava derrubar as florestas
para criação do gado de corte. A extração de madeira, então, em
conjunto com a criação de gado andaram juntas. Para implantar
fazendas necessitava-se de terras (o que se tinha em abundância
nessa região). Com as aberturas das rodovias federais, o decreto
1164 federalizou as terras numa extensão de 100km para cada lado
das estradas, para se ter o domínio das terras. Saia do controle do
estado e entrava no domínio federal.
O estado do Pará foi cortado ao meio pela Transamazônica,
depois a Belém-Brasília que corta boa parte do estado. E a BR-222
que sai da Belém-Brasília e chega em Marabá e várias outras estra-
das, como a BR-163 que sai de Cuiabá e chega a Santarém. Várias
rodovias federais foram planejadas para que 70% das terras estaduais
no Pará saíssem do domínio estadual e migrando para o federal.

126

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

P – E isso piorou a situação dos sem-terra e pequenos pro-


prietários?
De um lado piorou. Vou falar depois sobre isso. O governo
federal precisava dessas terras para implantar esses grandes empre-
endimentos voltados a destruição das florestas e implantação das
fazendas na região. O governo só poderia fazer isso com mais rapi-
dez se tivesse controle sobre as terras. E para isso foi criado na
época o órgão chamado GETAT (Grupo Executivo das Terras do
Araguaia e Tocantins) que era especializado em titular ou destinar
a quem quisesse as terras de domínio federal. Então o governo
loteou pedaços de 3 mil hectares e colocou as terras à disposição de
grandes grupos econômicos do sul e centro-sul do Brasil. Mais do
que oferecer a terra de graça, o governo criou alguns incentivos
para chamar a atenção de quem tivesse interesse em investir. O
que foi feito? Primeiramente, incentivos fiscais e isenção de im-
postos. Em contrapartida à isenção de impostos, as empresas deve-
riam investir na região.

P – Os conflitos por terras se localizam no perímetro de


200km (100km de cada lado da margem das rodovias federais) e
não se estendem além disso?
Não. Eu chegarei a sua pergunta. Um atrativo é a lei de
incentivos fiscais para investir na Amazônia, principalmente no
sul e sudeste do Pará. E o outro era através da criação da SUDAM,
o caminho pelo qual os fazendeiros pudessem ingressar com seus
projetos para então fazer a edificação das fazendas. Ele financiava
tudo desde a cerca, o arame, o gado, a sede. Com isso, num espaço
muito curto as terras passaram de domínio da união para grupos
privados. Portanto, quem não tinha a mínima vocação de mexer
com fazendas ou quem não sabia o que era uma propriedade pas-
sou a ser grande proprietário de terra aqui na região. Por exemplo,
a Volkswagen, que é uma multinacional e sempre fabricou carros,

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

recebeu 159 mil hectares de terra no sul do Pará para criar boi. O
Banco Bradesco que só mexe com dinheiro recebeu 85 mil hecta-
res. O governo dava terras, incentivos fiscais, financiamento da
SUDAM, rodovias de acesso para chegar até as fazendas, obras de
infraestrutura etc. Além disso, recebia todo o produto que estava
na terra, como a madeira. Podia explorar a madeira sem ao menos
pagar o ICMS. Quase a totalidade da madeira tirada das fazendas
era exportada de forma ilegal, e nem ICMS se pagava. Era uma das
maiores reservas de mogno do planeta que acabou. A região era
cheia de minérios. Tinha bastante ouro e muitas fazendas se trans-
formaram em garimpo.
Bamerindus, Supergasbras, Grupo Pão de açucar, e várias
outras empresas que não tinham ideia de como mexer com terras e
criação de gado se tornaram grandes proprietárias de terra no sul
do Pará.

P – Mas não foi só o sul/sudeste do Pará. O governo federal


deu terras em todas as margens de rodovias (100km para cada
lado) e por que então, esse região se tornou a mais violenta do país
na questão agrária?
Aqui tiveram algumas razões. Não aconteceu em outros es-
tados da Amazônia e outras regiões do estado. Uma das motiva-
ções da violência era a grande concentração de minério na região
dos Carajás. E outra razão era que o governo queria ter uma pre-
sença mais ostensiva em razão da Guerrilha do Araguaia que ocor-
reu aqui (foco em Marabá, São Geraldo, Xavier, e essas regiões). A
velocidade como tudo aconteceu aqui foi diferente de outras re-
giões do Brasil (com exceção do norte do Mato Grosso que chega a
ser um pouco parecido com o Pará).
Começa o problema da luta pela posse da terra aí. Muitos da
região, como os ribeirinhos, tinham posse da terra, mas não a pro-
priedade. As terras eram da União, que por sua vez titulou as ter-

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

ras para grandes grupos. Um belo dia estava lá o posseiro, após 10,
20, 30, 50, 100 anos de ocupação da região, chegava um oficial de
justiça com um bando de pistoleiros e dizia pro pessoal deixar as
terras que são de propriedade de um grupo de São Paulo, Rio de
Janeiro, Goiás. Ou sai na lei ou na marra. Aí que começa o embate,
primeiro entre posseiros contra grileiros. Esse tipo de enfrentamento
causou as primeiras mortes na região.

P – E antes de 1964 não havia conflitos de terra que termi-


navam em violência?
Tinham, mas os conflitos eram de pouca expressão. Com a
expansão da ocupação do Tocantins, de certa forma Goiás, e do
Maranhão, alguns proprietários atravessavam o rio e tentavam
implantar algumas fazendas por aqui. Isso ocorria mais nas regiões
de São Geraldo do Araguaia, Conceição do Araguaia, que está mais
próximo da divisa do Tocantins e do Maranhão.

P – No período da redemocratização (pós-1985) os conflitos


aumentaram.
Sim, eu vou dizer depois porque houve mais mortes aqui na
região nesse período. Então, nesse momento começa a luta de pos-
seiros contra a ação de pistoleiros, defendendo interesses de mega-
projetos de grandes investimentos financiados pelo governo federal
na região. Muitos conflitos no Bico do Papagaio, em Tocantins. Lá
havia absoluta posse mesmo, contra a ação violenta de grandes gru-
pos que tinham títulos ou que haviam fabricado esses títulos.

P – O que fez crescer a violência na região foi a ausência do


Estado?
Muita gente diz que há ausência do Estado aqui. Eu não
acho. O Estado sempre esteve presente, mas ao lado de uma das
partes. A burguesia nunca reclamou da ausência do Estado aqui. O

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

poder judiciário dava a liminar na hora que eles queriam. O oficial


de justiça estava ali na hora que eles queriam. O Estado estava
presente para defender o interesse de um lado, mesmo que de forma
totalmente equivocada quanto a seu papel. Aí começa a disputa
em defesa da posse da terra contra os titulados, aumentando o nú-
mero de mortes e ameaças de morte.
Bom, aí vem a segunda etapa do processo da violência. Nes-
se período, o governo militar, para se safar do problema da reforma
agrária que era necessária em outras regiões do Brasil que tinham
grandes bolsões de pobreza, como no nordeste, com os remanes-
centes das Ligas Camponesas, o governo queria passar a propagan-
da que estaria fazendo a reforma agrária. Com a construção da
Transamazônica, com o Estatuto da Terra, o governo então loteou
os lados esquerdo e direito da Transamazônica em 10 ou 20km
(não me lembro exatamente a margem direita e esquerda) e criou
lotes de 50 hectares. Fez a chamada colonização, trazendo traba-
lhadores do sul do país e do nordeste fazendo o assentamento des-
sas famílias às margens da Transamazônica. Imagina você assentar
famílias nessa região no coração da floresta. Daqui pra Altamira
são 520km de estrada de chão, malária e tudo o mais. O povo foi
largado lá e essa foi a reforma agrária realizada pelos militares, que
foi tido como um sucesso desse regime. Dispensa comentários.
O governo sabia que para poder transformar a tão imensa
floresta virgem em pastagem precisava de mão de obra. Naquele
tempo não se fazia derrubada com trator. Nem motosserra se utili-
zava. Era tudo na base do machado. A minha família chegou aqui
em 1977 do norte de Minas, em pau de arara, motivada pela pro-
paganda do governo.
As terras para alguns pequenos do sul foram dadas pelo go-
verno, em títulos de 20 alqueires (100 hectares). Queriam colocá-
los em locais complicados de acesso e condições. Somente algumas
famílias do sul eram selecionadas, pois o governo dizia que o pes-

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

soal da região não tinha tradição de agricultura familiar. E o gover-


no queria criar um polo de agricultura familiar para desenvolver a
transamazônica e por isso precisava trazer gente do sul. A grande
maioria veio por conta própria e quando chegou no local acabou
não recebendo nada (as terras que haviam já estavam em proprie-
dade de grandes empresas).
Só a região de Altamira pra cá é que pegou mais o pessoal do
Maranhão e Tocantins, pois o resto foram sulistas que vieram, in-
centivados pelo governo. O governo fazia a mega-propaganda que
tínhamos que “integrar a Amazônia para não entregar”. “Muita
terra sem homens para homens sem terra”. Nós viemos mais que
100 famílias de Minas. Algumas voltaram, mas a maioria ficou
pois não tinham condições de voltar. Minha família se quisesse
voltar não tinha como. Tínhamos lá meio alqueire de terra que
vendemos pra pagar o transporte. Chegamos aqui e o governo nos
jogou, sem dar nenhum título. Essa propaganda fez vir pra cá mi-
lhares de famílias. Se você pega, por exemplo, daqui de Marabá,
divisa com MT, São Felix do Araguaia – daqui pra lá dá uns 700km
de Marabá ao sul. Na década de 70 era mata virgem. Hoje você
pode olhar nesse percurso que não vê mais mata virgem nem de
um lado, nem de outro. Só pastagem. Agora tem gente começando
a plantar eucaliptos.

P – Então esse pessoal que veio ficou dono da terra?


A grande leva que chegou ao final da década de 60 e início
da década de 70 aos milhares, tinha 3 possibilidades: (a) procurar
emprego nas serrarias (que empregavam pouquíssimas pessoas);
(b) trabalhar como mão de obra nas fazendas (e muitas vezes o
trabalho escravo era a regra); (c) juntar-se com outras famílias e
entrar na mata.
Porém, essa última opção era complicada, pois tudo tinha
dono loteado pelo governo federal: Bamerindus, Bradesco, Pão de

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

açucar, Severo Gomes, fazendeiro de SP, fazendeiro de BH etc. A


propaganda era trazer as famílias para mão de obra para transfor-
mar as matas virgens em pastagens.
Restava o quê? Ficar na periferia das poucas cidades existen-
tes? Não tinha emprego. As cidades que tinham eram Marabá,
Conceição, São Geraldo, São João, às margens dos rios. Não havia
organização sindical. Os que existiam eram em Conceição do
Araguaia, em Marabá e o outro em Itupiranga. Os militares domi-
naram esses sindicatos, nomeando os interventores (chamados de
pelegos), justamente para os sindicatos não serem instrumento de
organização e luta dos trabalhadores que chegavam. Sem o apoio
dos sindicatos e sem ter nenhum movimento que pudesse organi-
zar os trabalhadores, que acontecia? Os trabalhadores, por iniciati-
va própria, juntavam 100-200-300 homens e entravam na floresta
e faziam as ocupações. Deixavam as famílias na vilazinha, na serra-
ria e entravam só os homens. Enxada nas costas, espingarda por
fora. 100-200 homens entravam na floresta e construíam a roça
nas florestas em mutirão.
Então a ocupação era chamada de clandestina, por iniciativa
própria dos trabalhadores sem ter a coordenação de nenhum movi-
mento. Aí os fazendeiros percebendo que tinha ocupação, que eles
faziam? (As fazendas ainda estavam em vias de implantação). Con-
tratavam pistoleiros para fazer a defesa das fazendas.

P – Nessa época ainda não acionavam a justiça?


Acionavam a justiça e onde era possível levar a polícia ela ia.
E a polícia ia como pistoleiro também. A ação da polícia não se
diferenciava da pistolagem. Prendia, batia, espancava, matava, fa-
zia o que os fazendeiros mandavam. Naquele tempo havia poucas
delegacias de polícia os delegados e os investigadores eram indica-
dos pelos fazendeiros e madeireiros, e não concursados. Os poucos
promotores ou juízes que existiam também estavam a serviço dos

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

interesses do latifúndio. Ia lá pra espancar, pra prender e pra ma-


tar, literalmente. Os dados da CPT indicam que 30% ou mais das
mortes foi diretamente causado pela polícia.

P – Por que então que depois, com o governo democrático,


a violência aumentou?
Porque que aumentou? Então, esse foi o período (décadas de
70 e 80) de muitas ocupações pela iniciativa própria dos trabalha-
dores, pois chegavam milhares de pessoas e, portanto, houve mui-
tos enfrentamentos. Quando essa situação se agravou? Com o final
do governo militar veio a Nova República, em 1985. Desde 81 já
haviam muitas mortes, resultado do confronto entre posseiros
(migrantes que chegavam por iniciativa própria) e (pistoleiros de)
grileiros.

P – Você ainda não falou dos grileiros.


A apropriação das terras públicas se dava por 3 formas: (a) o
estado dava o título, através do GETAT, para um grupo tomar
conta; (b) apropriação ilegal – com o título de 1 mil alqueires que
o fazendeiro recebia legalmente, ele transformava em algumas ve-
zes mais. O título era de 1 mil, mas a área ocupada era de 5 mil
alqueires (esse pedaço restante sem título); (c) falsificação do título
(grilagem). Havia os escritórios próprios de falsificação de docu-
mento público. Tem muitos municípios aqui se juntar todas as
propriedades o total das áreas privadas será maior do que a área do
próprio município. Falsificaram-se tantos documentos que perde-
ram a noção do próprio perímetro do município.
Na década de 70 e 80 a única instituição que dava apoio aos
ocupantes era a igreja. Então a Pastoral da terra foi criada em 1976
em Marabá e Conceição do Araguaia. Os militares iam em contra
da igreja, inclusive prendendo e espancando alguns padres.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 133 18/3/2011, 16:01


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

No final do regime militar, há o primeiro plano nacional de


reforma agrária do governo Sarney. Então ela vai sair. O primeiro
ministro da reforma agrária é paraense de Belém. Houve uma ex-
plosão das ocupações. De um ano a outro, Redenção, Rio Maria,
Xinguara, Pau D’arco, Cumaru do Norte, Santana do Araguaia,
Ourilândia, Tucumã, Eldorado dos Carajás, Curionópolis,
Parauapebas juntas não davam 100 mil habitantes, hoje somando
tudo dá quase 2 milhões de habitantes. Justamente nas cidades
que mais tem violência agrária. Saltou o número de ocupações dras-
ticamente. Portanto, ao invés de reforma agrária que não houve,
veio a repressão. A polícia passou a reprimir de forma mais dura,
junto com a pistolagem a serviço dos latifúndios e contra os movi-
mentos.

P – Então, quer dizer, que a democracia, do ponto de vista


da reforma agrária, foi pior que no regime militar?
Foi pior. Houve um aumento das ocupações e a violência foi
proporcional ao aumento das ocupações. Certamente se houvesse
tido um pico de ocupações no regime militar também haveria um
aumento da violência. Entre 1985 e 1987 são os 3 anos em que se
matou mais trabalhadores dessa região aqui. Não se matou em
outra região do Brasil como se matou aqui nesse período. Temos
muitas chacinas de vários trabalhadores, assassinatos.

P – Por que aconteceu nessa região especificamente e não


em outras regiões?
A CPT faz uma leitura específica. Por exemplo, a tradição
da ocupação da terra nessa região era por iniciativa própria, na base
da resistência, com tiros na floresta, e isso tem influência da
Guerrilha do Araguaia. A herança da repressão à Guerrilha do
Araguaia pode ter ocasionado maior repressão e o confronto causar
mais vítimas.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

P – Por que o MST tem poucas ocupações na região?


O movimento dos sem-terra chegou pelo sul, Conceição de
Araguaia, em 1987, na Fazenda Ingá, com a metodologia do acam-
pamento. Isso gerou um impasse com o movimento sindical exis-
tente lá e de como era feita a ocupação. Acabou que o Movimento
Sem-Terra (MST) não foi tão aceito na região (outros movimentos
nunca chegaram aqui).

P – Você acha que por falta de respaldo de um movimento


(como MST ou outro qualquer) a violência na região é maior do
que se houvesse a presença de um movimento da categoria?
Isso está associado a dois fatores:
(1) Ausência de movimentos de porte nacional com a estru-
tura para melhorar o processo de ocupação, tornando-o
mais público isso e fazendo o enfrentamento mais direto.
(2) Conivência do poder público e situação de impunidade.
O Estado tomou partido na defesa do latifúndio e colo-
cou seus funcionários (no caso os policiais) para atuar como
defensores do latifúndio, prendendo e matando.

P – Mas por que o MST ou outros grupos não vão para a


região?
Na década de 70/80 o MST estava surgindo no sul do país.
E, aos poucos se expandindo para outros estados. Chegaram no
Pará em 1987. A primeira experiência em Conceição do Araguaia
foi frustrada, não deu certo. Aí eles vieram para Marabá. Aqui,
conseguiram se firmar como primeira ocupação em 1990/1 na re-
gião de Parauapebas, localizando perto do assentamento Palmares,
no local onde 8 mil pessoas estão bloqueando o trem da compa-
nhia Vale do Rio Doce. Ir pra lá foi uma escolha política estratégi-
ca. Conceição é uma cidade mais isolada ao sul, não tem imprensa.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Marabá já é uma cidade mais polo, é mais fácil fazer o enfrentamento


do ponto de vista da presença da imprensa e de órgãos públicos,
possibilitando a negociação direta.
De lá pra cá eles vem se ampliando. Iniciaram em Parauapebas,
estenderam para Eldorado, Curionópolis, Marabá, São João do
Araguaia aqui no sudeste. Depois foram para Tucuruí, depois para
Belém. Lá eles têm presença em vários municípios em torno de
Belém. Mais recentemente deram mais uma guinada ao sul do Pará,
em Xinguara, isso no ano passado. Estão crescendo dentro das con-
dições de crescimento.
Com a repressão e a pistolagem entre 1985-7 houve o recor-
de de assassinatos na região, além das outras formas de violência.
Como era só propaganda do governo federal e não havia real-
mente reforma agrária, o ritmo das ocupações foi diminuindo. No
final da década de 80 e início da década de 90 temos um número
bem menor de ocupações na região. Começou nessa época a haver
violência seletiva, isto é, começaram a assassinar a liderança dos
trabalhadores. Vários sindicalistas, como João Canuto, Expedito
Ribeiro, Arnaldo Delcídio, Gringo (presidentes de sindicato) fo-
ram mortos, além dos presidentes do sindicato de Parauapebas e
Rondon do Pará. Padre Josimo, Irmã Adelaide foram assassinados.
As lideranças eram perseguidas e mortas. Achavam que matando
as lideranças acabariam com o processo de ocupação. De fato, deu
uma diminuída.
Aqui na região ocorreu o massacre de Eldorado dos Carajás
em 1996 que acabou impulsionando novas ocupações. Até 1995 as
ocupações continuavam no patamar sem muitas alterações em re-
lação a anos anteriores. Com esse evento que chamou a atenção do
Brasil e do mundo, o governo foi obrigado a tomar algumas medi-
das, inclusive criar o Ministério da Reforma Agrária que até então
não existia. O Raul Jungmann é um ministro de 19 corpos e foi
nomeado após esse massacre. O governo também implantou na

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

região alguns órgãos federais que não existiam no local, como a


superintendência do INCRA, Justiça Federal, Ministério Público
Federal, acredito que o INSS e o IMPLASA também não tinham
presença na região, mas somente em Belém. O massacre, ao invés
de diminuir as ocupações, teve efeito contrário. Diminuiu a re-
pressão após o massacre, colocando a PM, o Poder Judiciário e o
próprio governo do Estado contra a parede, já que eram conheci-
dos pela repressão. Com isso, as ocupações aumentaram. Havia a
presença do governo federal, mais eficaz que o estadual, e as ques-
tões iam diretamente à Brasília, sem passar antes por Belém. A
agilidade faz com que haja um crescimento. Só que com o aumen-
to do número das ocupações a pistolagem continuou.
Antes a PM reprimia e matava descaradamente. Agora ela
continua a matar, mas em seus dias de folga, nas férias. Policiais
vão às fazendas sem fardas para expulsar e matar ocupantes, agin-
do, na prática, como pistoleiros. O número de mortes acompa-
nhou o número de ocupações. Elas crescem até o ano 2000,
reduzindo-se posteriormente. No primeiro ano do governo Lula
há novamente aumento das ocupações e nota-se que a reforma agrá-
ria não é colocada como prioridade.

P – É que havia uma expectativa muito grande quando Lula


assumiu o governo, o que não se concretizou e acabou frustrando
os trabalhadores.
Exato, o mesmo ocorreu em 1985/6, após o término do go-
verno militar. Mas o número de assassinatos aumentou.

P – Estava vindo para cá e passei na Caixa Econômica


Federal. Lá tinham imensas filas. Aí associei a reportagem que li
esse semana no jornal O Estado de São Paulo sobre maior
desmobilização de trabalhadores rurais quando ganham o bol-
sa-família. Você concorda? E por que isso ocorre?

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Toda política que tem um viés forte de assistencialismo aca-


ba dificultando a mobilização da sociedade. O assistencialismo além
de não ajudar a mobilização, ele atrapalha. As famílias que estão
acampadas podem receber o bolsa-família, mas os assentados não
podem recebê-lo. Apesar de o bolsa-família não dar para se man-
ter, pelo menos garante um pouco a alimentação e isso diminui a
capacidade dele de indignação do trabalhador contra o governo
para fazer a pressão.
A pressão desses acampados sobre o INCRA fica menor e o
assistencialismo faz com que isso ocorra. Mas, isso não pode ser a
única causa para explicar a diminuição das ocupações, mas só uma
das causas.
Se um acampado não recebe essa ajuda do governo, ele pode
ficar mais intimidado e, com isso, as lideranças terão que pressio-
nar mais o governo para não perder esse acampado.

P – O que mudou no governo Lula?


Aí é outra coisa, outro fator. Quem está na periferia é a base
que vai pra baixo da lona preta, pois não tem alternativa e vai pro
movimento sem-terra. A periferia que está recebendo o bolsa-fa-
mília não vai ao acampamento. Portanto, o bolsa-família é um fa-
tor inibidor de participação de trabalhadores nos movimentos
sociais.
Seria interessante você conhecer a ocupação Lourival Santana
da Fazenda Peruano, que fica a 10km do local onde ocorreu o mas-
sacre de Eldorado dos Carajás, na curva do S. Os ocupantes são de
famílias cadastradas pelo MST.
O movimento sindical passou a adotar a metodologia do MST
em relação a chamar a imprensa na hora que a polícia vem para
expulsar os sem-terra, para tornar algo público e evitar que a polí-
cia bata nos sem-terra frente às câmeras da imprensa.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

P – O decreto do FHC referente a impossibilidade de desa-


propriação por 2 anos caso haja ocupação de terra funciona?
Com isso diminuiu as ocupações, mas o pessoal não deixou de
ocupar por causa disso. Que eles fazem? Ocupam, enfrentam a polí-
cia – tem área que já foram realizados 5 despejos. A polícia tira e o
pessoal volta, a polícia tira novamente e o pessoal retorna. É a tática
deles. Quando o proprietário vê que retirar o pessoal das terras não
compensa, ele concorda que o INCRA faça a vistoria das terras.
Outra coisa que se faz para evitar que o INCRA demore em
fazer vistoria é pedi-la antes de entrar, ficando do lado de fora da
cerca esperando que ela ocorra. Isso é uma maneira de pressionar o
INCRA para que não haja derramamento de sangue. Após a visto-
ria o pessoal entra nas terras. Para a demarcação de lotes, cada fa-
mília paga cerca de R$100-150 por lote para que o topógrafo venha
e demarque as terras do acampamento que são divididas.
O movimento sindical sempre foi muito fragilizado no sul
do Pará, perdendo muitas de suas lideranças que foram mortas.
Mas as ocupações seguiram, só que sendo ocupações espontâneas.
Portanto, os acampados não tinham como se manter lá dentro e
procuravam ajuda de quem está na cidade. Aí o caboclo chega num
açougue ou mercadinho pedindo ajuda, financia em troca de lote a
ajuda ao acampamento.

P – Como se mantêm economicamente os trabalhadores na


ocupação?
São várias formas. Recebem geralmente cesta básica. Eles
fazem também um sistema de revezamento, saindo um grupo para
trabalhar fora nas fazendas e ficando outros, depois revezando e
mudando os grupos. Passam uns 15-20 dias fora, por exemplo,
ganham dinheiro e levam para ocupação.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 139 18/3/2011, 16:01


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

A ocupação é autossustentável, sem dinheiro de ONG. Quem


fica no acampamento produz a roça coletiva. Isso demora um tem-
po até dar frutos. Nesse ínterim vivem da cesta básica e do dinhei-
ro dos que trabalham fora. Quando alcançam a produção na roça e
chega a sobrar produtos, em alguns acampamentos maiores que
tem boa produção vende-se o excedente, como milho, macaxeira,
arroz, banana.

P – Existe um sistema de ajuda e cooperação inter-acampa-


mento? Se um está passando por dificuldades maiores, outros aju-
dam?
No movimento sindical é mais difícil, mas tem casos isolados,
depende da região. Não é uma prática. Já no MST isso é uma prática.
Em acampamentos do sul do Pará onde muitas vezes não
tem um movimento por trás, acabam ocorrendo situações violen-
tas. Depende da ótica. Se um pistoleiro vai lá, a polícia vai, destrói
barraco, aí não chamam isso de violência. Agora, quando os traba-
lhadores vão na sede da fazenda ou muitas vezes nem na sede, mas
em algum barraco velho que tem lá e o derruba, tira os funcionári-
os e dizem que querem essa terra pra nós... isso já é violência.

P – O que estava escrito na reportagem da Revista Veja é


que alguns grupos (denominados Liga dos Camponeses Pobres)
vão em fazendas ou destroem tudo ou eles pedem um dinheiro ao
fazendeiro para sair de lá. E caso ele não dê, eles não saem, que-
bram as coisas...
Isso é um caso isolado que a Veja procura generalizar. É bom
para esclarecer isso. No meio desse universo todo, também se criam
grupos de pessoas que querem se aproveitar. Naquela região no
extremo sul do Pará podem surgir grupos que se especializam em
sequestro, cárcere privado e pedem resgate. Isso também. Mas, são
casos isolados e não práticas acobertadas.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 140 18/3/2011, 16:01


Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Precisamos ter cuidado ao acompanhar do processo. A per-


seguição do latifúndio, da pistolagem, da polícia sobre as lideran-
ças que tentavam ocupar era tão violenta que eles, pra manter uma
ocupação, tinham que reagir em muitos casos de forma violenta.
Precisavam receber alguma ajuda para manter a ocupação lá. No
sul do Pará não tem castanha, açaí, cupuaçu. É uma mata que não
tem quase produtos extrativistas. Você tem que ter o que comer lá
dentro, senão você morre.

P – A igreja dá algum auxílio às ocupações?


Não, pras ocupações não. Os poucos sindicatos também não,
pois se falasse que estava apoiando era candidato à morte. Então os
trabalhadores faziam o quê? Já vi muitos casos no sul do Pará que
para a imprensa era bandido. Na minha avaliação não é. Às vezes,
para alguns da igreja também era bandido. O universo de com-
preensão é mais limitado.

P – Você é da igreja? Ser da CPT demanda algo em relação à


igreja?
Bem, a igreja é meu patrão. A CPT é vinculada à diocese,
mas é uma entidade autônoma. Eu devo obediência a eles.
Então, imagina uma situação dessas, que todo mundo é ca-
çado, eles vão procurar ajuda de quem? Pedem aos comerciantes
também. Os ocupantes não têm como pagar e recebem, por
exemplo, carne do açougue e prometem dar um lote no final do
processo a ele. E essa forma é a moeda deles pra poder se manter.
Um comerciante que é sensível à causa diz que ajuda sem nin-
guém saber, debaixo do pano ele dá uma cesta básica por semana,
mas quer um lote em troca.
Lá em Xinguara (onde morei entre 1991-6) houve uma cha-
cina onde morreu de uma só vez o dono de uma tapeçaria, o açou-
gueiro, o filho dele, a mãe dele morreu vendo os dois sendo mortos

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

e mataram um comerciante. Pistoleiros descobriram que eles fi-


nanciaram uma ocupação da Fazenda Nazaré. Porque andando na
mata eles encontraram um papel do açougue tal, mercadinho tal,
tapeçaria tal, aí associaram que eles financiavam a ocupação.

P – Mas quando o INCRA desapropria para dividir os lotes,


eles não veem que tem algo errado, onde comerciantes ganham lotes?
Geralmente o INCRA sempre chegou 5, 10, 15 anos depois.
Quando ele chega o comerciante, açougueiro, já passou aquele lote
para outro para tirar o investimento. Ou, em alguns casos, para não
aparecer o nome dele, ele coloca o nome de um laranja. Se ele for um
pequeno comerciante, em muitos casos o INCRA faz vista grossa.
Pra provar, no fim de semana ele vai pra lá pra trabalhar.
Aí os trabalhadores vão numa sede da fazenda e quebram tudo
onde muitos foram assassinados, qual a minha leitura sociológica
que vou fazer desse negócio? Vou chamar os trabalhadores de bandi-
dos. É um enfrentamento de classes onde eles não têm outros recur-
sos a não ser o emprego da violência. Agora, é uma situação que
pode comparar ao grupo que vai lá e sequestra só para receber um
dinheiro? Não, não é. É diferente. Devemos separar o joio do trigo
na história. Cada ocupação tem um perfil. Então você tem que fazer
essa análise criteriosa para não enquadrar tudo no mesmo saco.

P – É, mas você precisa ter um critério. Da mesma maneira que


o outro lado pega em armas e atira no que ocupa, se faz isso, você tem
que considerar um desvio de conduta, não é?
Claro. Agora, numa situação de enfrentamento... A agressão
do lado do fazendeiro não aparece. O fazendeiro tem armas que
podem dar um prejuízo bem maior, tem a polícia, tem o despejo.

P – Tem índio morrendo por causa de questões agrárias?

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Sim. Os que restaram ficaram concentrados em algumas re-


servas. Elas estão hoje, a maioria delas, controladas pelo capital.
Estão na área de influência da Vale do Rio Doce e alguns da
Eletronorte. A situação da FUNAI é muito fraca e atende aos inte-
resses da Vale do Rio Doce. Os índios já caíram numa dependência
capitalista tão forte que a Vale detém o poder. Não são todos, é
claro.

P – Não tem o problema dos garimpeiros com os Índios?


Esse tipo de problema é mais em Rondônia, no Amazonas.
Nessa região aqui não. Já teve mais na década de 80 no sul do Pará.

P – Nos dados que eu tenho, consta que assentados conti-


nuam morrendo. Por que, se já receberam seu pedaço de terra?
Continuam na luta para receber mais terra ou para ajudar seus
camaradas?
Tem o caso que continuam dando apoio aos que ainda não
tem terra. Os fazendeiros muitas vezes compram lotes dos colonos.
Tinha um lote abandonado que o marido tinha morrido e ela ficou
viuva e decidiu ir pra outro canto. Um trabalhador entrou nesse
lote abandonado há uns 3 anos atrás e começou a trabalhar a terra.
O sindicato pediu ao INCRA a transferência desse lote para o que
havia invadido. Nesse caso específico o INCRA havia dado o títu-
lo para a viuva, mas ela não o tinha registrado. Portanto, o INCRA
poderia anular esse título e passar a outra pessoa. O fazendeiro que
tinha interesse de comprar financiou a vinda dessa viuva e ela ven-
deu para ele. Porém, ele resistiu e está recebendo ameaças de mor-
te do fazendeiro por intermédio de pistoleiros.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Reunião bi-semanal de moradores do acampamento/ocupação Lourival Santana,


da Fazenda Peruano (sudeste do Pará) com líderes locais do MST, para tratar de
questões do dia a dia.

P – Esse é um caso de alguém que resiste. Mas, provavel-


mente tem muitos casos que o trabalhador vai embora com medo
de morrer.
Muitos morrem por causa disso. Então, em muitos casos fa-
zendeiros querem comprar lotes de assentados para construir fa-
zendas ou retomar suas terras anteriores. Pagam o preço do mercado.
Outra forma de pressão ou ameaça é quando a liderança do acam-
pamento está apoiando outras famílias a ocuparem as terras próxi-
mas. Tem muitos casos de morte nesse tipo de conflito.
Há também mortes causadas por brigas de vizinhos, o que
ocorre também com certa frequência.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

2) Entrevista com Emmanuel Wambergue (MANO) –


Dirigente da Copserviços em Marabá (e ex-coorde-
nador da CPT na cidade).
P – Conte sua experiência com o conflito de terra, princi-
palmente a partir de 1985.
Eu conheci essa região no período do regime militar com a
abertura da Transamazônica e cheguei aqui no finzinho da Guerri-
lha do Araguaia. Essa era uma região dominada pelo poder militar.
A única agricultura familiar que havia era na beira da
Transamazônica. Do Araguaia até a saída de Itupiranga havia cerca
de 2 mil lotes. Com a Transamazônica veio o pessoal do nordeste.
Essa colonização virou uma panela de pressão. O pessoal começou
a continuar a sua reforma agrária do jeitinho que tinham feito os
militares. Até 1980 (o período mais violento que teve em nossa
região foi de 1980-1995) chegava uma pessoa dizendo que era o
dono da terra e pedia para saírem dela. A saída dependia do nível
de força que a pessoa tinha. A partir de 1980 a coisa era diferente.
Foi realmente para ocupação e invasão. Tinha uma forte presença
da oligarquia castanheira que ocupava por volta de 1 milhão de
hectares. A castanha do Pará chegou a ser a principal atividade
econômica de Marabá até os anos 70. Hoje em dia ainda tem, mas
a produção caiu consideravelmente. Naquela época a produção
chegou a 2 milhões de hectorate (1 hectorate = 100 litros) de cas-
tanha. A outra atividade era de extração de ouro e diamantes no
leito do Tocantins (a Serra Pelada veio depois).
Com as aberturas das estradas (leste-oeste – transamazônica,
e no mesmo ano foi aberta norte-sul que é a antiga PA-70 e vai até
Belém). Entre 1980-1995 os que chegavam para obter terra eram
chamados de posseiros. O termo sem-terra era desconhecido. Hoje
todos são sem-terra. Os posseiros ocupavam uma terra (geralmen-
te só os homens) de maneira comunitária. Frequentemente essas
terras eram da União onde haviam castanhais que é um sistema de

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

aforamento que o Estado do Pará arrendava (1 légua quadrada –


6km x 6km). Como esse aforamento era para 99 anos, na prática
era considerado como sendo título. Mas, como eles geralmente não
pagavam o arrendamento, não tinham nem direito a esse
aforamento. Nas terras da União (terras devolutas) quem perma-
necia era o mais forte. Essas questões eram resolvidas na “boca da
20” (espingarda). Num primeiro momento o único apoio que os
posseiros tinham era da igreja católica por meio da CPT e da
luterana, que eram as igrejas mais avançadas.

P – Esse apoio da igreja católica é algo que vem do Vaticano


ou mais local?
É bem brasileiro. Era um apoio específico da CNBB, dos bis-
pos. A grande maioria apoiava. Tiveram algumas cartas do Vaticano
na época de uma campanha da fraternidade, que se chamava “Terra
de D-us, terra de irmãos” que tinha certo apoio. Mas era mais ao
nível da CNBB. A partir do momento que os militares voltaram
para o quartel, muitos da igreja católica voltaram para a sacristia.
Esse apoio era muito importante, pois era o único. Na época
da ditadura não havia sindicatos, ou eles eram completamente
pelego (apenas para questões médicas, aposentadorias etc.). Em
1985, todos os sindicatos tinham na direção gente que participava
da luta pela terra. Em 1988, 275 mil hectares foram reconhecidos
como sendo área na mão de posseiros. O movimento tinha claro o
seguinte: se eu recebo título eu sou o responsável pela área inte-
gralmente. Mas, os que estão no meio da mata, como esses possei-
ros, vão aguentar sem escola, sem saúde, sem apoio técnico, sem
estrada etc. Aí que nasceu a ideia de assentamento. O governo vai
liberar o título uma vez que a infraestrutura seja implementada.
Não só conquistar a terra, que é questão fundiária, mas como viver
nessa terra. Toda questão atual dos assentamentos é sobre isso. Se o
governo tivesse dado o título, não haveria posteriormente crédito

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

instalação e habitação. O que eles querem é tudo junto ou, ao me-


nos, que o assentamento empurre a infraestrutura. Hoje vemos
cerca de 490 assentamentos no sul e sudeste do Pará, na área da
SR-27. São praticamente 100 mil famílias. Em nenhum local o
assentamento surgiu antes das pessoas se juntar e pressionar as ins-
tituições. Enquanto hoje é mais utilizado o acampamento como
forma de pressão para adquirir terra, antes era “na força da 20”. O
resultado é o mesmo. Ninguém no primeiro passo quer o título.
Isso só após a infraestrutura chegar.
Os assentamentos na região surgiram primeiramente em
1987. Só o governo federal tem dinheiro suficiente para fornecer
infraestrutura. O governo estadual era completamente ausente (a
não ser um pouco agora com a governadora Ana Júlia Carepa, do
PT). Antes, o governo estadual só participava para trazer a polícia
na época de reintegração de posse. Hoje o ITERPA está discutindo
inclusive projeto de assentamento estadual. O governo estadual
tem cerca de 30% das terras para fazer assentamento nessa região.
O estado do Pará pode autorizar o INCRA a criar PA (projeto de
assentamento) ou pode criar ele próprio. A única vez que isso acon-
teceu foi agora no governo de Ana Júlia.
Hoje, os assentamentos têm apoio moral. 95% da direção dos
sindicalistas estão assentados na nossa região. Portanto, os sindica-
listas tentarão ajudar os acampados, pois eles já passaram por essa
situação. Ou até dar um apoio no dia de uma audiência. Porém, fora
os dirigentes, poucos assentados continuam a mobilização.
Sindicalistas que vêm de outras regiões ficam impressiona-
dos com o poder de fogo dos sindicatos, pois aqui eles são fortes.
Em outras localidades os sindicatos são bem mais fracos.

P – O que acontece com os políticos, como vereadores, pre-


feitos e deputados, na relação dos conflitos de terra? Nos dados,
são muito poucos que morreram pela causa. Por quê?

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Bem, acredito que os políticos se envolvem. Eles não são


mortos, pois é difícil matar um político. Eles andam com comiti-
vas. Muitos dos assassinatos ocorrem por meio de emboscada. Cada
pessoa que tem a cabeça a prêmio tem valor diferente para serem
mortas, de acordo à importância da pessoa. Houve um tempo que
o preço era marcado em dólares por causa da inflação.
Um detalhe: A Dorothy (Stang, assassinada em 2005) foi
fundadora da CPT aqui comigo. Conheci bem ela. Eu pessoalmen-
te posso citar na ponta do lápis os nomes de 32 amigos meus que
foram assassinados.

P – E você não se sentiu ameaçado com toda essa violência


em sua volta?
Durante 15 anos não fui a nenhuma festa pública. Não saía
sozinho à noite e, quando ia a certos lugares, sempre com carro
cheio. É claro que se querem te pegar, te pegam. Eu tinha um
apoio muito grande da igreja e uma vantagem de ser gringo. Pode
dar uma implicação diplomática. Vários fazendeiros falaram que
foi uma besteira ter matado a Dorothy. Poderiam ter matado sin-
dicalistas que não teria essa repercussão tão exaltada do governo.
De certa forma, o que seria interessante ver é que geralmente
os assassinados são de lideranças. Imagina-se que matando elas, aca-
ba-se com o movimento. E geralmente o efeito é contrário. Falava-se
em 1 por 2 (morria 1 do nosso lado e dois do outro lado). Isso não foi
publicado em canto nenhum. Pistoleiro que morre nem é falado.

P – Você acha que a explosão demográfica na região fez com


que a violência aumentasse, já que os que chegaram queriam terra
e os que aqui estavam defendiam suas supostas terras?
É e não é. O modelo latifundiário cria esse problema. Ele
tem como princípio a exploração de recursos naturais pelo saque,
pois ele não repõe o que tira. A vida dele depende do tamanho da

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

terra e principalmente da reserva de terra que ele tem. Esse ano vai
pegar esse pedaço, esse outro e esse outro. Se ele tem uma reserva
grande aí pode se reproduzir em sua vida. A partir do momento
que o posseiro entra nessa reserva, ele reduz a vida dele. Por que a
violência? A vida de um depende da morte do outro. Já o
agronegócio é diferente, mais moderno. O circuito é mais social.
Ele vai precisar de empregados.

P – Você acha então que o agronegócio diminui a violência?


Não, ele pode fazer um deserto verde. Não é pela violência,
mas pela compra da terra de uma pequena comunidade isolada,
por exemplo, oferecendo emprego para eles virarem peão. Essa se-
ria uma violência de reconcentração da terra, uma violência branca
e não vermelha, com mortes.
As empresas que aqui estavam como Banco Real,
Volkswagen, Bamerindus, consideravam empresas e reconheciam
sindicalistas, tinham negociação etc. Na hora que chegou no cam-
po viraram latifundiários e era a mesma coisa como outros fazen-
deiros. Entre 1972-1975, não me lembro ao certo, qualquer empresa
brasileira privada poderia utilizar 50% de seus impostos para se
instalar aqui e fazer um empreendimento na região. Esse valor era
considerado como avalista de um empréstimo. Se você for procurar
documentos daquela época da SUDAM, ficará abismado de ver o
que foi liberado de dinheiro naquele tempo. E muito daquele di-
nheiro voltava e era utilizado para outras coisas.
O fluxo migratório era forte. Com a saída do regime militar,
a repressão se reduziu e não teve mais controle. E o tipo de poder
que veio para cá foi o poder do estado. Eu diria que todo o aparato
judiciário apoiava por completo o grande latifúndio. Muitas vezes
os assassinatos ocorreram por meio da polícia. Saiu o estado mili-
tar nacional e entrou o estado que se instalou sempre a favor do
latifúndio. Em 1985, por exemplo, com o primeiro plano de refor-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

ma agrária do Sarney, a resposta foi o surgimento da UDR. Coinci-


diu no ano e, inclusive, acho que foi no mesmo mês.
A sociedade civil começa a se reorganizar. Tem coisas da época
dos militares que sumiram. Por exemplo, quantos guerrilheiros da
Guerrilha do Araguaia foram mortos? 70, 80? E quem os execu-
tou? Não se sabe de nada. A informação foi completamente abafa-
da. Também não tinha uma organização como a CPT que coleta
dados.
O maior período de mortes foi entre 1985-1995, sem dúvi-
da. As mortes nesse período foram gradativas, não ocorrendo em
poucos eventos. Houve muitas ocupações nesse período e por isso,
provavelmente, também muitas mortes. A democratização da ter-
ra foi importante. A cidade cresceu e não se sabia o que fazer.
Com certeza os juízes e o INCRA eram comprados. O últi-
mo grito dos militares foi de ligar o INCRA diretamente ao escri-
tório do presidente, que se chamou GETAT (Grupo Executivo das
Terras do Araguaia e Tocantins) que ficou desde 1981. Os presi-
dentes eram militares reformados.

P – Por que no governo Lula a violência agrária aumentou?


Seria a alta expectativa criada com a posse desse governo?
Eu não fiquei decepcionado, porque se formos rever os com-
promissos de campanha do Lula com a reforma agrária eram quase
nada. Entre o Fernando Henrique e o Lula não tem muita diferen-
ça. A diferença que teve no governo Lula foi mais espaço para po-
der discutir as questões da reforma agrária, com certeza. Os
resultados foram piores, pois tiveram menos PAs no governo Lula
do que no FHC, proporcionalmente.
O orçamento do INCRA diminuiu em relação ao FHC. A
única coisa que aumentou foi o orçamento do PRONAF. Mas isso
não é diretamente relacionado à reforma agrária, e vem depois dela,
com o crédito.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Pensávamos que as desapropriações fossem ocorrer muito


mais rapidamente. E, acredito que esse ano (2007) não foi desapro-
priado nenhum imóvel rural na região do sul e sudeste do Pará.
Não vou dizer que os posseiros são santos e o resto uns dia-
bos. Pode ser que aquela reportagem da Revista Veja tenha razão,
mas essa revista tem sua tendência que sabemos qual é. Que é pos-
sível acontecer, isso é.

P – Qual o processo até um pedaço de terra se tornar assen-


tamento?
Eu conheço mais a Fetagri. Ela tem acampamento, mas a
primeira coisa que se tenta fazer quase que de imediato é uma
derrubada e o plantio. Isso para mostrar que os trabalhadores ru-
rais necessitam da terra e que não dá para depender apenas da cesta
básica, já que ela pode chegar ou não. Outra coisa: depois de certo
tempo, quando os trabalhadores estão mais confiantes de que vão
ganhar a terra, eles já fazem a divisão entre eles de 50 hectares para
cada família. Nessa região a Fetagri geralmente tem a política de
dividir 50 hectares para cada família, mesmo que em certos locais
tenha sido menos que isso. E também, a localização das terras deve
ser perto de cidades e não tão afastado.

P – Essas são as características de um processo da Fetagri.


Saberia me dizer se outros movimentos, como o MST, por exemplo,
têm uma metodologia diferente em relação a isso?
Enquanto a Fetagri tem o número médio de famílias para
formar um acampamento que resulta em cerca de 50 hectares
para cada uma, o MST, por exemplo, tem mais famílias em cada
acampamento e, portanto, o pedaço de terra tende a ser menor
para cada uma delas, ou eles talvez vão ganhar mais terra em
outro canto. Nesse aspecto, eu diria que o MST é mais político
(não vou dizer que não é fundiário também) pra tentar dar uma

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

notoriedade maior. Um acampamento que tem 1.000 pessoas é


algo impressionante.
Esse é o primeiro passo. Tentar a produção e ver o que o recur-
so natural do local permite para cada um ter seu lote. Até agora
nunca vi (a não ser no primeiro ou segundo ano do acampamento)
uma roça comum. Geralmente a primeira roça é comunitária, mas as
seguintes já são por família. A divisão se faz, em geral, pela água e
não pela estrada de acesso. A repartição se faz por cada lado de um
brejo para que cada um tenha água. Isso permite a subsistência.

P – Como que é a divisão de trabalho dentro de uma ocupação?


Aí tem de tudo. Nos primeiros anos é tudo mutirão, pois o
ambiente é propício. Tem parte que cuida da segurança, outra da
comida etc. O MST, nessa parte, é extremamente bem-organizado.
O MST também é bem mais centralizado do que a Fetagri. É mui-
to rigoroso o sistema de segurança e outros no MST. Isso é em
relação a região de Marabá, a qual eu conheço bem.
Outra fase é para virar PA e legalizar o assentamento. A pres-
são é muito grande, vinda do INCRA e principalmente conseguir
a desapropriação da terra e o primeiro passo é conseguir a famosa
vistoria. O FHC criou a lei para esperar 2 anos na realização da
vistoria quando a terra é ocupada e mais 2 anos caso reincida a
ocupação. Têm casos que as pessoas não ocupam antes da vistoria
para não ter que esperar e casos que ocupam mesmo assim, sem se
preocupar com as consequências.

P – Quanto tempo, em média, leva para uma ocupação se


tornar assentamento?
Os mais antigos levaram 10 anos, e os mais novos uns 2 ou 3
anos. É difícil menos tempo que isso. Já aconteceu do INCRA
decretar PA após a vistoria e o processo retroceder, por problemas

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

jurídicos. Por exemplo, já aconteceu que o INCRA decretou PA e


assinou e houve uma contestação que a entidade não pagou, sendo
anulado o assentamento.

P – Qual a origem dos que ocupam, se vêm das zonas rurais


e tinham a profissão de trabalhador rural, ou vêm de cidades sem
formação ou ocupação rural?
Tiveram períodos (principalmente em 1995, e 2000-2) que
era impressionante a quantidade de pessoas que vinham de
Marabá, pois não encontravam emprego. Eles não vinham do
Maranhão e iam direto para uma ocupação. Eram pessoas da re-
gião mesmo. Os jovens tinham trabalhado a terra uma hora ou
outra. Os filhos de agricultor passavam um tempo na roça e iam
para a cidade pensando que seria melhor e aí não dava certo e se
dirigiam para ocupação. Muitos tinham trabalhado na terra. Di-
ferente do que no estado de São Paulo, em Marabá não existe
gente que não tenha trabalhado a terra algum dia. Não me refiro
à classe media para cima. Mas, no nível popular, pelo menos uma
vez na vida fizeram roça.
Sobre a questão de comerciantes locais ajudarem certas ocu-
pações para ganhar lote posteriormente, não acho que isso ocorra
nestes termos. Não creio que os comerciantes peçam lotes em troca
de ajuda. Mas que estejam interessados em ganhar retorno do inves-
timento com a freguesia da ocupação e posteriormente da PA vindo
comprar produtos desse comerciante. Ou mesmo no empréstimo de
dinheiro, que na região é muito forte, levando juros de 10% ao mês,
ou comprando gado, ou fazendo outra atividade paralela. É difícil
um comerciante na região rural que não seja atravessador.
A questão da saúde é terrível aqui e por isso as pessoas mui-
tas vezes precisam de empréstimo. Se depender do serviço público
de saúde, podem morrer nas filas sem atendimento. O prefeito
atual de Marabá é do PTB. Ele era vice, pois o prefeito morreu, e

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

foi posteriormente reeleito. E ele era médico, como vários polí-


ticos da região. Mas a situação da saúde não melhora.
Pequenos proprietários que tem menos de 50 hectares e pos-
suem gado, não conseguirão sobreviver (salvo se estiverem perto
da cidade e venderem hortaliças e galinhas).
Para um agricultor sobreviver na nossa região, ele precisa no
mínimo de 50 a 100 hectares. Se for extrativismo (todas as ativida-
des de coleta de produtos naturais, sejam estes produtos de origem
animal, vegetal ou mineral) precisaria de 300 hectares. Na pecuá-
ria também precisaria de 300 hectares. O pequeno agricultor que
possui 50 hectares e entra na pecuária com gado para corte não vai
sobreviver nunca. O que nós sugerimos para os pequenos agricul-
tores trabalhar são: frutas, lavoura branca (tanto arroz como raiz),
pequenos animais, se é gado apenas com leite. E hoje discutimos
muito o reflorestamento, que a madeira é algo que rende mesmo.
Quem tem árvore, mesmo mogno, com 15 anos já se pode cortar.
Esse é um futuro promissor. Para plantar árvore precisa ter muita
segurança e ter plantado já há algum tempo. Mesmo o açaí leva
cerca de 3, 4, 5 anos. Cortar apenas mangueira e similares para
manifestar a presença do agricultor.
O agricultor familiar é uma composição desse sistema de
produção, produzindo tanto lavoura permanente (como árvores de
frutos) como lavoura temporária (como hortaliças). Dependendo
se ele está perto da cidade ou da estrada ou se está longe: este
último vai se dedicar à produção de leite, por exemplo.

P – Você acha que a ausência de movimentos sociais au-


menta a violência agrária? No sul do Pará, por exemplo, o MST
não estava presente até pouco tempo atrás.
Sem movimento não há ganho político e não vai se conse-
guir PAs. Geralmente o movimento social chega depois da ocupa-
ção espontânea. Só quem organiza mesmo a ocupação, como a da

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Fazenda Peruano que é típico de uma ocupação política e que não


tem nada a ver com terra é o movimento. É claro que vai ganhar
terra, mas é por causa dos 10 anos da curva do S (local do massacre
de Eldorado dos Carajás) é que se ocupou a Fazenda Peruano aque-
le dia e pronto. Com toda a razão porque 2/3 da fazenda não tem
título, não tem nada. Eu acho que um movimento é importante
pro peso político. Mas a ocupação como tal aonde se cria a violên-
cia, com ou sem movimento é a mesma coisa.

P – Tanto faz movimento ou sindicato?


Sim, tanto faz. Mas, a partir do momento que tem apoio,
tem maior visibilidade.

P – Mas os fazendeiros não ficariam mais receosos de utili-


zar violência e matar trabalhadores quando há um movimento
por trás de pessoas que ocupam terras?
Aqui a impunidade é completa. De todos os assassinatos eu
acho que tem apenas 3 pessoas que foram para a cadeia. E para
julgamento foram 5. E ainda porque era a Dorothy, era um padre,
era um presidente de sindicato. Até agora não vi nenhum julga-
mento por ser assassinato. Teve a curva do S, um escândalo que foi
naquele tempo. Eu disse na ocasião que tinha certeza que quem
iria para a cadeia nesse caso eram os mortos. É a impunidade. Ma-
tar alguém no meio da rua aqui não acontece nada. Depende de
quem mata e quem morre.
A necessidade de ter terra e a situação de pouca empregabi-
lidade desde 2000 (apesar de ter aumentado o trabalho em serviços
e informática e no comércio) fez que o movimento fosse espontâ-
neo em busca de terra.
O fluxo interno regional de pessoas é muito forte, não é for-
te o fluxo interestadual, mas interno é. Gente que troca de lote por
outro PA.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

P – E tem gente que recebe a terra e tenta vender?


Isso faz parte do jogo. Eu diria que 10%, com certeza, não
estão nem de perto interessado em ficar com a terra e vendem.

P – Não dá para os movimentos ou sindicatos fazerem uma


seleção melhor das pessoas para não ocorrer esse tipo de atitude?
Também para o movimento na hora do acampamento tem
que ter gente, daí se pega de tudo. Se tenta fazer seleção, mas é
muito complicado. Não se sabe o que cada um está pensando em
relação às terras que irá receber.

P – O título só vem muito tempo depois pelo INCRA, então o


agricultor não pode vender a terra que recebe nos primeiros anos.
Oficialmente não. Porém, extra-oficialmente tem troca, ven-
da de terras em larga escala. Pode-se negociar no INCRA essa ven-
da. Por exemplo, a viuva perdeu o marido, ela não poderá vender
para mudar de vida? Claro que pode. É um troca-troca muito gran-
de. Pode ser questão de saúde, pode ser questão de desentendi-
mento. O cara pode não estar mais interessado trabalhar lá.
Pode ser a questão da realização do trabalho. Depois de 1 ano,
ou 2 suou, suou, nunca teve dinheiro e, se eu vendo e consigo mais
um lote daqui a algum tempo, tudo bem. Tem gente que consegue
um lote agora, vende, e depois consegue outro lote e sucessivamente
assim. Mas, agora com a reforma agrária o nome e o CPF da pessoa
estão registrados. Mas, o filho ou a mulher pode pedir. Tem outras
maneiras de se conseguir isso. Mas, se for registrado no ato da aqui-
sição do lote que o beneficiário é casado ou tem uma companheira, a
terra vai no nome da mulher também. E o crédito também a mesma
coisa. Mas filhos maiores de idade podem.
Eu te faço uma proposta. Gostaria de conversar contigo após
passar um tempo em acampamento e conversar com outras pessoas.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

3) Entrevista com Antônio Gomes – Presidente do sin-


dicato dos trabalhadores rurais (Fetagri) de Marabá.
P – Gostaria de saber quais as reclamações que mais sur-
gem dos trabalhadores.
Sou conhecido como Pipira, e sou presidente do sindicato
por 2 mandatos. Tirei meu primeiro mandato em 2003 e em 2004
os trabalhadores me concederam até 2008.
Os trabalhadores sofrem pela maneira como são tratados por
seus empregadores. Mas estamos fazendo a reforma agrária, e a fare-
mos na lei ou na marra. Quando nos acertamos aqui em baixo e mon-
tamos acampamento, a decisão tem que vir do nacional, e quando vem
não é bem aceito. Isso é um grande entrave para a reforma agrária.

P – Alguém que vende o lote sofre algum tipo de punição


do lado do sindicato?
Quando ocorre isso, tentamos de qualquer forma tirar a pes-
soa por meio do INCRA para não prejudicar a causa. Porém, mui-
tos lotes foram vendidos pelos que se beneficiaram com seu pedaço
de terra. Cada um pode chegar no INCRA e mudar a situação.
O sindicato vive da contribuição dos sócios (2% do valor do
salário mínimo por mês). O trabalhador não é obrigado a ser sócio
e mesmo assim recebe auxílio do sindicato. Dos 16 mil trabalha-
dores rurais da região, apenas 4 mil são sócios. Mas, o sindicato
tem muitos custos, principalmente com pessoal: 7 funcionários,
secretariado e motoristas.
Dos sindicatos da categoria, apenas a Fetagri é legal. Tem
outros órgãos como o MST e a Fetraf.
Os trabalhadores pedem escola para que possam assinar seus
nomes com qualidade.
As reclamações com trabalho escravo são feitas por meio da
CPT com seus advogados.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

O sindicato não incentiva as ocupações. Primeiramente o


sindicato se encontra com o grupo e levanta a situação da terra e se
verificar que tem ao menos 80% dela improdutiva, dá sinal verde
aos trabalhadores, pois ela tem boas chances de ser desapropriada.
Estes ficam na cerca da fazenda esperando o parecer favorável do
INCRA.
Há diferença entre a prática do sindicato e do MST, por
exemplo. Nós somos mais pacíficos e ficamos na beira da cerca. Os
dois órgãos consultam-se mutuamente para não cair na mesma ter-
ra que um dos lados pleiteia. Só agimos em conjunto quando te-
mos algum objetivo em comum, como ocupação do INCRA ou
algo parecido.
Se verificarmos os dados, veremos que a Fetagri assentou
mais famílias, inclusive em relação ao MST.

4) Entrevista com Maria Joel Dias da Costa (Joelma) –


Presidente do sindicato dos trabalhadores rurais
(Fetagri) de Rondon do Pará.
Estou no segundo mandato como presidente do sindicato
dos trabalhadores rurais de Rondon do Pará. Meu esposo, José Dutra
da Costa, o “Dezinho”, era presidente do sindicato também. Em
1993 ele teve o primeiro mandato. Ele foi um sindicalista que
levantou a história da reforma agrária da região. Enfrentou o poder
econômico do município, como latifundiários, madeireiros, em-
presários.
Antes de ele assumir, o sindicato era assistencialista, apenas
com questões ligadas a aposentadoria, consultas etc. Depois que
ele foi presidente, se envolveu na luta pela reforma agrária e luta
pela terra e esteve ameaçado de morte cerca de 6 a 8 anos. Ele foi
buscar informações sobre uma área que supostamente era grilada e
havia uma ocupação numa gleba chamada Gavião no município,

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

uma das primeiras ocupações. As ameaças começaram a se intensi-


ficar. Muitas vezes ele não ia à zona rural por causa de emboscadas
planejadas, e sabia quem era o autor das ameaças – pistoleiros e
fazendeiros da região. Um grupo de trabalhadores acompanhava-
o, para que se protegesse das ameaças e não ficasse sozinho quando
precisava se locomover na região. Mas, não estavam armados como
os pistoleiros.
Ele denunciou várias vezes na secretaria de segurança. Rece-
beu durante uns 8 meses a proteção de 2 policiais em casa e 2 no
sindicato. Mas, depois a proteção terminou. Em 2000 ele foi can-
didato às eleições partidárias como vereador. Sofria então ameaças
e achava que se ganhasse poderia não chegar a ocupar a cadeira. Os
trabalhadores então ficaram receosos em votar pra ele, para que
não morresse. Ele não chegou a ganhar essas eleições, pois faltaram
apenas 3 votos para que fosse eleito vereador.
No dia 21 de Novembro de 2000 ele foi assassinado. Depois
de sua morte, eu assumi a frente de denunciar. Até então eu era
apenas uma sócia do sindicato (fazia parte da secretaria de gênero).
Com certeza eu tenho receio. Quando eu fiz as denúncias
pedindo justiça e que os trabalhos investigativos continuassem, eu
comecei a ser ameaçada.
Hoje temos um trabalho muito amplo na questão do
sindicalismo. Pediram para que eu me colocasse à disposição da
política partidária como candidata à prefeita pelo PT em 2008.
Tem outros nomes além do meu pelo partido, mas meu nome está
à disposição. Eu já topei o desafio. Os candidatos do PT a prefeito
não ganharam ainda na cidade. Um dos nomes bem cotados é o
meu.
A maioria das terras no município é grilada. Em 14 áreas
não tem documentação ou ela é ilegal (falsa), inclusive em áreas do
principal mandante do assassinato do “Dezinho”, de nome José
Décio Barroso Nunes, o “Delsão”. Foi denunciado, chegou a ser

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

preso por 13 dias e aí foi liberado. Entraram com habeas corpus e foi
liberado. Não conseguimos que voltasse à prisão. Um pistoleiro
está preso e foi condenado a 29 anos. Ele só entregou 2 primos, que
foram os intermediários. É crime de encomenda. Mesmo estando
preso, não entregou o mandante, pois tem medo. Ele não tem re-
cursos, mas tem grandes advogados. Quem paga? O mandante.
Ele é intocável, um dos donos de maiores terras, dono de serraria,
tem trabalho escravo já tendo sido autuado. Tem mais de 500 de-
núncias do ministério do trabalho.
É notória a quantidade de terras griladas no município. O
ITERPA e o INCRA estão mais que cientes desse problema aqui.
Quando o INCRA quis fazer esse levantamento, foi preciso vir
uma tropa do exército para acompanhar os funcionários, pois o
poder dos fazendeiros é muito grande. Eles não chegaram a con-
cluir o trabalho por causa das ameaças. Tem muitos pistoleiros
armados andando por aí. Chegamos a fazer um seminário em rela-
ção aos direitos humanos, onde os fazendeiros ficaram numa parte
e os trabalhadores ficaram na outra.
Teve um momento que o sindicato dos madeireiros e dos
fazendeiros teve a ousadia de vir aqui me buscar e coagiram o pre-
feito para que eu afirmasse que no município não haveria mais
ocupação dos trabalhadores.
Aqui empresário, fazendeiro, madeireiro se confunde, pois
praticam várias funções ao mesmo tempo. O agronegócio também
está chegando na região, com a soja etc. Como hoje já acabaram
quase totalmente com a madeira aqui, estão abrindo a produção de
carvão, eucalipto e com certeza a soja. Eles não reflorestam o que é
tirado e as riquezas naturais estão se acabando, já que não há inves-
timento em outras coisas. A Vale está com projeto e fez várias visi-
tas ao município, para procurar terras para arrendar ou comprar e
fazer o trabalho que está interessada.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

P – O sindicato dessa cidade promove ocupações no mesmo


molde que o MST? Como funciona isso?
Os trabalhadores fazem um cadastro e se organizam por meio
do sindicato, além de estudar alguma área que não tem documen-
tos e é improdutiva. Aí o sindicato passa a acompanhar os traba-
lhadores. O sindicato ajuda na análise dessa área de interesse, junto
com a Fetagri e a CPT. As áreas são geralmente do estado, mas tem
alguém sempre que se diz dono e está ocupando. Todas as terras
estão ocupadas.

P – Como funciona a rotina dos trabalhadores no acampa-


mento em relação às atividades que eles realizam?
O próprio acampamento organiza uma escola improvisada,
e muitas vezes tem aqui pessoas que podem dar aulas às crianças e
a secretaria de educação do município nos auxilia nisso, fornecen-
do o material.
Existe um período que eles ficam acampados, fica um grupo
e sai outro pra trabalhar, pra se manter, até que a roça dê frutos no
acampamento. A cesta básica é muito pouco para se manter.
Ficam umas pessoas cuidando da segurança do acampamen-
to, mas não estão com armas de fogo, pois as armas dos trabalhado-
res são a foice, a enxada, o facão. Nós não organizamos grupos
armados para ir ao acampamento, pois é contra nossos princípios.

P – O fazendeiro geralmente age por meio da justiça para


evacuar uma ocupação ou também utiliza pistoleiros e guardas
armados para que suas terras sejam desocupadas?
Já aconteceu de tudo aqui. Já chegou fazendeiro dizendo tudo
que pode fazer, inclusive matar. Uma vez pegaram os trabalhado-
res, com pistoleiros e colocaram todos aqui de frente pro sindicato.
Chegaram a bater em trabalhadores. Acionamos a polícia. Mas nada

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

aconteceu. Fomos então e reocupamos a mesma área, só que em


local diferente.
O fazendeiro tem direito a receber a indenização pelas
benfeitorias na terra pelo INCRA.
Temos agora 18 PAs e 4 áreas (fazendas) ocupadas no muni-
cípio. Em uma das áreas que está ocupada temos 105 famílias,
outra 85, outra 76 e na última 60 famílias. Todas as áreas ocupadas
são griladas e não tem documentação legal. Mas, a justiça é lenta
demais e já poderia ter desapropriado. Tem, inclusive, uma área
que o fazendeiro está negociando com o INCRA e ele quer um
valor bem mais alto do que o INCRA está disposto a pagar.
Nesse município não tem acampamento do MST, apenas do
nosso sindicato e de outro (Fetraf).
O desemprego na cidade é grande e isso é um dos fatores
que podem levar pessoas a buscar um pedaço de terra e participar
de uma ocupação.
Aqui só a CPT dá o apoio jurídico aos trabalhadores rurais.
Além dos católicos, também tem um grupo de evangélicos em
acampamentos. Porém, nem o pastor, nem o padre tomam a frente
na luta pela terra, além da ajuda que temos da CPT. A função,
tanto da igreja católica quanto da evangélica é meramente religio-
sa e não de luta por terra, mesmo que tenham igrejas em acampa-
mento.
Nos acampamentos, damos informação aos trabalhadores em
relação ao crédito e ao conhecimento técnico agrícola. O sindicato
informa sobre a previdência, além de outras questões, como traba-
lho escravo etc.
Temos no município 6 jovens que se formaram no ano pas-
sado na escola família-agrícola, em Marabá, filhos de agricultores.
Tem 3 jovens que estão na universidade e recebem uma bolsa do
governo federal via Promed. O nosso projeto é que estamos cap-

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

tando cidadãos na área social para que se possa retornar ao próprio


município e à própria luta pela terra. Não tínhamos ninguém for-
mado em áreas agrícolas e precisamos trazer um técnico do Rio de
Janeiro, outro de Redenção, outro de Pernambuco. Ao invés de
buscarmos pessoas de outros estados queremos que elas sejam da-
qui mesmo e trabalhem para cá.
Eu sou do estado do Maranhão. Vim para cá em 1984, já
casada e com 2 filhos. Viemos para o Pará que era bom de ganhar
dinheiro. Nos envolvemos na questão da luta pela terra, na qual
meu marido já fazia parte no Maranhão.

P – Quando o INCRA faz a vistoria, quanto tempo, em média


conseguem fazer virar assentamento e depois quanto tempo a mais
para que os cidadãos ganhem o título dessa terra?
Nós temos no município uma área que está ocupada há 3
anos. Nessa área tem tudo para ser criado um assentamento. A
falta de um aparelho que o órgão do regional não tem, atrapalha
todo o processo. Nós fizemos uma audiência há uns 30 dias, e dis-
seram que já pediram esse aparelho. Isso pode ter ocorrido só para
que o outro lado ganhe tempo.
Não tivemos problema com a vistoria, pois ela foi realizada
antes da ocupação. Mas, hoje o INCRA tem outros meios para fazer
a vistoria, mesmo que o fazendeiro não concorde. Nós temos aqui 8
assentamentos que já são legalizados. Tem uma média de 600 famí-
lias assentadas nessas 8 fazendas, apesar de elas ainda não terem rece-
bido seus títulos. Mas, a partir do recebimento de títulos o INCRA
não tem mais responsabilidade para com as famílias. Então achamos
que, enquanto se está nesse processo, podemos contar com o auxílio
do INCRA em muitas questões. Por isso entendemos o porquê es-
peramos tanto tempo. Tem gente que vende suas terras, mas tenta-
mos coibir e conscientizar as pessoas da importância de ter sua terra.
Essas pessoas não podem mais fazer outra ocupação.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

P – Vocês veem a polícia como proteção ou ameaça?


Hoje não nos sentimos seguros na questão do policiamento.
Muitas coisas mudaram. Já participei de conferências e fóruns, tanto
aqui como em Brasília, na Irlanda etc. Isso nos dá certo conheci-
mento em relação aos nossos direitos de ser protegido.
Quando precisamos ir até o delegado, vamos. Mas, ainda
tem essa questão do poder do fazendeiro.

P – O que mudou com o governo Lula em relação à violên-


cia no campo, já que se tem tido muitos casos de violência, mesmo
com o atual governo?
Algumas coisas mudaram para melhor. Eu tive em duas opor-
tunidades com o Lula, que me recebeu. A última foi no ano pas-
sado, onde recebi o prêmio de direitos humanos das mãos do
presidente Lula. É importante que o governo federal esteja com
ouvidos abertos pras nossas questões. Infelizmente os resultados
não são diferentes. Eu pedi ao presidente que fizesse a reforma
agrária para diminuir a violência. Por que não fazem rapidamente
a reforma agrária para evitar o conflito entre as partes? Eu sei que
tem pressão contrária à reforma agrária que é muito grande. Eu
pude presenciar em Brasília, na Câmara, discurso da bancada
ruralista contra a reforma. Sem dúvida o governo também tem
uma pressão forte do outro lado.
Numa ocasião fui a um encontro com a governadora Ana
Júlia Carepa (do Pará), onde estavam eu, e uma outra freira que
tinha também sido ameaçada, e vários “leões” que tinham interes-
se contrário. Então a gente vê tudo isso. Mas, tanto o governo fede-
ral, como o estadual estão atentos para isso. Até no município
algumas coisas estão mudando. Apesar de que, agora, em maio
passado veio uma pessoa para me matar. É um caso muito recente.
Pra minha sorte ele teve a ousadia de vir aqui e falou que foi con-
tratado para me matar pelo comandante do assassinato do

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

“Dezinho”, José Décio Barroso Nunes. Mas, ele disse também que
conhecia minha história e que eu não merecia morrer. Mas ele exi-
giu uma quantia para ir embora e não me matar. Eu disse que não
tinha o dinheiro na hora e que levantaria o dinheiro exigido e aci-
onei a polícia, que o prendeu. Então são muitas coisas, mas já teve
muitas mudanças para melhor.

P – No começo, quando o MST foi criado, eles almejavam


uma revolução e não “apenas” a reforma agrária. Isso mudou hoje
em dia, como vemos. Mas, e o sindicato, o que quer exatamente. É
“só” a reforma agrária, ou algo mais?
Pensamos a reforma agrária como se fosse um todo. A melhoria
de vida para o homem, para a mulher faz parte da reforma agrária.
Queremos que o filho do trabalhador tenha oportunidade, não só
para trabalhar na terra, mas que tenha uma educação de qualidade,
saúde etc. Então pensamos na reforma agrária não só para aquisição
de terra, mas para uma melhoria de vida em geral. Que possa usu-
fruir dos benefícios que tem direito, aí realmente estamos fazendo
uma reforma agrária. Mas, queremos isso pela via democrática.
Hoje com 10 alqueires, a média que pedimos a cada família,
praticando a agricultura familiar, você vive muito bem. Pra se tra-
balhar no primeiro e segundo ano é muito difícil. Se não tiver
algum apoio, vai passar necessidades. Chegam recursos do governo
federal para se fazer um Pronaf, aí tem que avaliar que tipo de
projeto é ideal para os 10 alqueires. Será que produção de leite é
positivo? Vai fazer um criadouro de peixe, além do leite, para
comercializar? Vai criar frango para ovo e corte? São coisas que
uma família deve pensar para saber se vai conseguir se sustentar.

P – Você acha que uma organização como movimento ou


sindicato pode reduzir, aumentar, ou não modifica o nível da vio-
lência agrária?

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

De certa forma, se o trabalhador pertence a um grupo que


organiza a ocupação, intimida um pouco a ação do fazendeiro. De
outro lado, o fazendeiro pode se sentir acuado também. Mas, o
fazendeiro, de qualquer maneira vai saber que não está mexendo
apenas com um trabalhador, mas com toda a organização da qual
ele faz parte.

P – Você tem relações com o MST de cooperação, de troca


de informações, em relação a ocupações e assentamentos. Vocês
trocam ideias? Ou com outros movimentos.
Nós já fizemos algumas ações conjuntas com o MST, a
Fetagri, a CPT. Já fizemos essas mobilizações como ocupação do
prédio do INCRA, bloqueio de estradas etc. em conjunto com o
MST. Fora isso não houve outro tipo de cooperação.

P – Após ganhar a terra e a ocupação virar assentamento, o


trabalhador se acomoda e não se mobiliza mais para “a causa”?
Aqui no município tentamos fazer com que isso não aconte-
ça, conscientizando os trabalhadores que outros também querem
ganhar um pedaço de terra. Tentamos que isso não pare. Que seja
uma luta constante. Apesar de querermos envolver todos, vários já
não estão interessados em participar. No dia 21 de Novembro fa-
remos uma feira e festa em homenagem aos 7 anos do assassinato
de “Dezinho” e convidaremos todos a participarem. Isso é uma
maneira de envolver os trabalhadores dizendo que a luta continua.

P – Na conversa com Batista, da CPT de Marabá, ele me


disse que alguns comerciantes dão apoio à ocupação em troca de
ganharem lote de terra posteriormente. Isso ocorre também aqui?
Aqui não. Ouvi dizer que isso ocorre na região de Marabá,
mas nós não trabalhamos dessa forma. Isso pode comprometer o
nosso trabalho.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

5) Entrevista com o cabo Manuel de Oliveira Sérvalo


– Segurança cedido pela PM para proteção de Ma-
ria Joel Dias da Costa (Joelma) – Pres. do sindicato
dos trabalhadores rurais (Fetagri) de Rondon-
do-Pará (Não houve permissão para gravar a con-
versa).
Eu faço parte de uma força que deveria dar proteção à socie-
dade e antes não era bem assim, pois alguns agiam de forma erra-
da. Na própria corporação eu não sou bem visto, já que esse tipo de
trabalho não é comum entre os PMs. A corporação combatia antes
as pessoas que lutam por terra.
Eu fui designado antes e posteriormente me voluntarizei.

P – Como você vê o conflito fundiário?


Os trabalhadores também têm o direito de pegar terras
devolutas e da união. Os dois lados estão certos. O estado está
ausente na intermediação do conflito sem derramamento de san-
gue.
Eu tenho origem rural, pois vim ainda criança para a cidade.
Tenho também vontade de ter um pedaço de terra.
De um lado eu tenho dificuldade de absorver a ideologia do
sindicato rural e, de outro, sou discriminado pelos fazendeiros da
região. Eles sabem que trabalho na proteção da Joelma, que mui-
tas vezes é ameaçada pelos próprios fazendeiros.
A Joelma, para quem trabalho, foi uma das pioneiras (junta-
mente com frei Henri) a ter segurança pessoal cedida pelo estado.
É um programa de proteção de defesa aos direitos humanos.
Porém, não fiz ainda curso no governo federal pela SENASP.
Acho que precisaria, pois a preparação de um PM é diferente da
preparação que se necessita para ser guarda pessoal de alguém.
Vamos ver se chega minha vez.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

6) Entrevista com Josiel – Gerente do banco Caixa Eco-


nômica Federal, em Marabá.
P – Passando por essa agência vi uma fila muito grande na
porta. Fiquei intrigado se um dos motivos é para o recebimento
do bolsa-família e outros benefícios. Como não vi essa fila em ou-
tros bancos, gostaria de saber o motivo.
A CEF é o único banco que paga PIS, seguro-desemprego,
FGTS, bolsa-família. E essa é a única agência na cidade de Marabá,
que tem 200 mil pessoas, além de atender a mais 13 municípios
que são: Itupiranga, Nova Ipixuna, Jacundá, Bom Jesus, Abel
Figueiredo, Rondon do Pará, Dom Elizeu, São João do Araguaia,
São Domingos, São Geraldo, Piçarra, Palestina (e mais um que não
me lembro). As pessoas de todos esses municípios devem vir até
aqui para regularizar a situação, ou podem utilizar algumas agên-
cias do correio ou loterias para isso também.
O maior valor de bolsa-família que alguém pode receber é
R$112,00, sendo que o mínimo por família é R$53,00, depen-
dendo da renda e do número de pessoas de cada família.
Marabá é o oitavo município mais dinâmico no Brasil, cres-
cendo a 18% ao ano. O Banco do Brasil e o Banco da Amazônia
lidam com crédito rural. Por mês, em média, temos 6 mil pessoas
que recebem o seguro-desemprego. Só a CEF dá o cartão bolsa-
família para os beneficiários.

7) Entrevista com Marcos Antônio Reis – Missionário


do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) da
Diocese de Marabá – ligado à CPT.
Fazemos um acompanhamento da questão indígena na re-
gião sudeste do Pará, e também na região sul do estado (Xinguara,
Conceição, Redenção). Dentro desse espaço geográfico vamos ter

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

polos indígenas tradicionais na região, como por exemplo, os


Caiapós, Paracanãns e Xicrin que são povos nativos aqui. Eles têm
terras demarcadas e homologadas. Há também uma situação nova,
que a partir da década de 90 houve a imigração de outros povos
para a região, como os Guaranis, Guajejara e os Ativi.

P – Por que eles migraram para cá?


Eles migraram por falta de espaço territorial nessas regiões,
a falta de perspectiva de vida por não ter a terra para trabalhar,
conflitos internos de ordem política, e também a busca por um
espaço promissor do ponto de vista econômico. Esses 3 grupos vi-
vem em áreas de assentamento do INCRA, terras diminutas, pe-
quenas, e sem condições de garantir a integridade física e pessoal
dos grupos.
Do outro lado temos grandes projetos econômicos como
mineração e agronegócio (como soja e a chegada agora do eucalipto).
Esse novo modelo econômico os ameaça, além da chegada de mais
pessoas nessas regiões. Os posseiros, madeireiros colocam os índios
em perigo. De um lado os fazendeiros e de outro as dezenas de
famílias chegam mensalmente do Maranhão, Piauí e Ceará para
essa região, dificultando aos índios a manutenção de uma vida a
que eles estavam anteriormente acostumados.
Há terras que são reservas indígenas e que foram reduzidas
por pressão desses invasores. O órgão que deveria dar uma assis-
tência aos pobres indígenas está sucateado (FUNAI) e não tem a
mínima condição de prestar esse auxílio. A FUNAI é conivente e
omissa ao mesmo tempo. Os índios não têm condições de sobrevi-
ver em lotes de reforma agrária.
Tem outra coisa que eu gostaria de falar, especialmente em
relação aos Xicrins e aos Gavião é sobre a assistência que eles rece-
bem da Vale do Rio Doce. Hoje os Xicrins estão divididos: parte
está rica e parte pobre. Como se pode dar recursos sem que isso

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

interfira em hábitos alimentares e costumes desses povos? Eles são


ricos entre aspas. Todos esses povos acabam perdendo muito mais
do que ganham. Abandono dos seus rituais e hábitos tradicionais.
Estão aculturados. Há um consumismo desenfreado prejudicial para
a aldeia. Os Gavião, por exemplo, não estão preocupados com a
construção da estrada de ferro que passará pela terra deles em dire-
ção a Marabá e no que vai afetá-los territorial e ambientalmente,
mas se preocupam com a compensação que vão receber da Vale por
essa construção. Isso acaba reduzindo a importância da terra para
os índios, que é muito mais do que um espaço físico.
Outros grupos são muito pobres e não tem suporte financei-
ro dado pela Vale. Os Guaranis que estão aqui, por exemplo, dão
uma importância grande para a terra que eles ganharam da FUNAI
e do Centro de Trabalho do Indianista (ela foi comprada e doada
para essa comunidade). Então, a relação dessa comunidade com a
terra é muito similar aos Guaranis que tem em São Paulo com a
terra. Eles compreendem que aquele espaço é o espaço onde se re-
alizam plenamente, que chamam de Tekurrá. Eles acham que o
território, embora seja pequeno e distante de onde estavam é a sua
terra prometida.

P – O conflito maior se dá com quem? Com fazendeiro, com


posseiro, com garimpeiro?
Do ponto de vista dos Gavião e dos Xicrins, o conflito con-
duz diretamente à empresa Vale do Rio Doce, pela ferrovia que
passa por terras dos Gavião, e pelas explosões que ocorrem nas ter-
ras dos Xicrins. E agora vão fazer uma linha Tucumã – Ouro Gran-
de. Então você tem esses agentes que são conflituosos com os índios.
Em relação aos Guaranis e Guajajaras os conflitos são com
posseiros mesmo, encontrando-se no mesmo espaço territorial do
projeto de assentamento do INCRA. A FUNAI colocou-os ali den-
tro do assentamento. No entendimento acharam que era melhor

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

levá-los para lá. Eles estão como famílias assentadas e não como
indígenas. São vistos pelos outros como iguais aos olhos dos ou-
tros, e não como indígenas, possuindo suas próprias necessidades.
O Estado faz essas trapalhadas e acaba comprometendo e prejudi-
cando muito a comunidade.
Os Suruí, por exemplo, estão em um pedaço de terra minús-
culo e são muitos. Todos praticam agricultura de subsistência, fora
os Gavião, que possuem lavouras mecanizadas e grandes galpões.
Outro problema que prejudica intensamente os Suruí são as quei-
madas realizadas pelos fazendeiros da região, pois o fogo acaba en-
trando nas suas terras e tem um efeito devastador ali dentro,
queimando os castanhais, e todo o resto.

P – E os índios utilizam a justiça para fazer valer seus direi-


tos?
Não. O que eles começaram a aprender é pressionar as auto-
ridades. Isso depende também da formação que os parceiros alia-
dos deram a eles ao longo dessa caminhada. Eles estão descobrindo
que é importante na defesa dos seus direitos por meio da procura
do Ministério Público Federal e da própria FUNAI, o IBAMA e o
resto dos aliados.
Essa morosidade da FUNAI de não fazer a separação da terra
indígena, que está homologada e registrada deixa os Paracanãs re-
voltados e já, inclusive, determinaram um prazo para que se a
FUNAI e os outros órgãos não retirarem os invasores eles agirão
por conta própria. E assim pode acontecer um episódio de grande
violência como vários que já ocorreram no passado e continuam a
ocorrer. Os Caiapós, por exemplo, no final da década de 80 e início
de 90 exterminaram um grupo de invasores posseiros. Isso por que
estavam ali. Mas, poderiam ser madeireiros, ou outros que estives-
sem ali. Os indígenas não foram presos, apesar de enviar alguns
policiais federais para investigar o caso. Apenas a polícia federal

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

entra em terras indígenas. Essas informações podem ser verificadas


na ADR (administração regional) da FUNAI de Redenção. Lá tem
um arquivo com informações de conflitos entre garimpeiros e pos-
seiros com índios.
Os Paracanãns tiveram sua área original alagada pela
Eletronorte e deram a eles outra área para compensar, no
Paranatinga. Lá é outra realidade. Não sabemos se é melhor ou
pior, pois nem mesmo o CIMI ou a FUNAI consegue ter uma base
lá dentro para acompanhar, com ressalvas de relatórios que pró-
prios índios que moram lá e trabalham para a FUNAI escrevem.
Na região sudeste do Pará tem 2.054 indivíduos em 6 povos
somente. Seriam mais 5 povos que não temos as informações no
sul do Estado. Essa informação dá para encontrar na FUNASA de
Redenção.
A renda deles vem da agricultura familiar de subsistência
tradicional. Algumas famílias criam aves, outras criam bovinos.
Várias dessas comunidades têm uma fonte tanto de renda como de
alimentos. A comercialização do excedente com arroz, abóbora,
milho, essas coisas assim. O comércio entre índios e não-índios é
esporádico e injusto, com preços muito baixos. O que pesa nessa
questão é a falta de recursos humanos na FUNAI e não dá para
acompanhar. A prática do dia-a-dia é outra coisa em relação ao que
se fala por aí. Tem toda uma carga de preconceito, ainda nas vilas e
em Marabá, por exemplo.

8) Entrevista com James de Senna Simpson – Represen-


tante do Sindicato dos Produtores Rurais de Marabá.
P – Como que os ruralistas geralmente vêem esse tipo de
conflito?
A primeira coisa que temos que ver é que não existe mais
hoje a luta pela terra. O que existe é a política e um grupo de

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

pessoas que querem tomar o poder pela força. Que a partir do


momento que você vê movimentos sociais invadindo siderúrgicas,
invadindo a Vale do Rio Doce, a Eletronorte, que isso tem a ver
com terra?
O foco da reforma agrária já se perdeu. Não existe mais luta
no campo por reforma agrária, tanto que a onda de invasões aqui
na região tem diminuído por parte de quem quer terra. O que nós
temos hoje são milícias, bandos armados tomando fazendas, ma-
tando os fazendeiros, fazendo esbulho, queimando tudo: não que-
rem terra. Nós nunca fomos contra a reforma agrária, pelo contrário.
O sindicato rural sempre apoiou e sempre apoia. Uma vez que o
cidadão brasileiro é assentado ele passa a ser um produtor rural. E
a partir desse momento é obrigação do sindicato dar assistência a
essa pessoa, não importa a quantidade de terras que ele tem.
O que vemos é que os assentamentos, principalmente na
nossa região, não foram pra frente: viraram favelas rurais, verda-
deiros bandos de miséria, ninguém produz nada, de 80 a 90%
das pessoas não tem aptidão nenhuma ao campo. São pessoas
arregimentadas em bares, em favelas, à marginalidade dos muni-
cípios. A mata da Amazônia é um local muito difícil de se sobre-
viver, sem assistência, sem tecnologia, sem recursos do governo.
Pegar uma pessoa que não tem experiência nenhuma de ter-
ra e jogar na selva amazônica, no meio de uma mata, o resultado só
pode ser esse que nós temos hoje: uma falta de produtividade
total.

P – O que se fala do outro lado é a questão da grilagem de


terras na região e que um dos principais culpados foi o governo
militar, que incentivou muito a colonização e vieram muitas pes-
soas à região, sobrando muito poucas terras livres para ocupação,
principalmente com a grilagem de vastas áreas.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Você é paulista, certo? Eu sou também. Lá no Pontal de


Paranapanema, onde tem muito conflito de terra e diziam que as
terras eram griladas, recentemente o tribunal de justiça estadual
declarou que todas as terras do Pontal de propriedade particular.
Ou seja, acabou a história de dizer que a terra é grilada. Não se
pode invadir nenhuma propriedade no Pontal de Paranapanema
com justificativa de que a terra é grilada.

P – Então, não existe terra grilada aqui nessa região?


É o mesmo princípio. Ninguém veio aqui e tomou nada.
Viemos pra cá incentivado pelo governo. O governo te chama e te
dá terra. Daqui a 30 ou 40 anos essa terra não é sua? Quer de volta
agora?
P – Mas, os trabalhadores rurais também dizem que vieram
para a colonização dessas terras.
Não. A colonização do sul e sudeste do Pará se deu pelos
produtores rurais e madeireiros que vieram incentivados pelo go-
verno. Essa massa de trabalhadores veio atrás de trabalho, atrás da
Serra Pelada e foi o maior inchaço de gente na região. E vem no afã
de siderúrgica, de Vale do Rio Doce, de arrumar emprego. Da onde
são? Maranhão, Piauí. Se você for hoje no Maranhão, em qualquer
cidade, verá um carro de som oferecendo passagem e dinheiro para
as pessoas virem pro estado do Pará, custeado pelo governo do es-
tado do Maranhão. Isso nós temos provas, o governo do estado do
Pará sabe disso.
Seria interessante se você fosse aqui na Vale do Rio Doce, de
onde chega o trem. Vai ver milhares de pessoas que vem do
Maranhão atrás de emprego. Chegam aqui e não tem emprego,
que vão fazer? O MST arregimenta essas pessoas pra irem atrás de
terra. Isso aqui se tornou uma indústria. Você invade uma terra
hoje e partir do momento que você acampa debaixo de uma lona
preta, recebe assistência e cesta básica do governo federal. Ele in-

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

vade a terra e vende aquela terra, além de receber financiamento


do Banco da Amazônia e parte pra outra. E assim vão vivendo 5,
10, 15 anos. Vão viver o resto da vida assim.
Você disse que argumentam que não tem terra. Hoje, 35%
das terras do estado do Pará estão ocupadas com proprietários ru-
rais e 65% das terras estão intactas. Como é que aqui não tem terra
pra eles. De quem são esses 65% das terras, se é mata virgem? É do
governo federal e do estadual. Que conversa furada é essa que não
tem mais terra pra eles?

P – Por que então o governo não assenta esse pessoal na


terra pública? O governo está gastando milhões com desapropria-
ção de terra, se há tanta terra sem dono?
Não há interesse do governo. Aqui nunca houve nenhuma
desapropriação no estado do Pará. Depois desse governo do PT,
nenhuma. Ninguém recebeu nenhum tostão até hoje. Nenhuma
fazenda foi devidamente desapropriada. Eles fazem a vistoria, o
INCRA põe para a desapropriação, o MST invade, se assentam lá
dentro e os fazendeiros não receberam nada até agora.
A Fazenda Cabaceiros está há 6 anos nessa pendenga. Inva-
dida, não desapropria. Desde que se pague o valor justo tem gente
que vende.

P – Resta saber qual o valor justo.


Valor de mercado. Todo mundo sabe que o governo do PT
não vai pagar nada, nunca pagou até agora. Agora, o fazendeiro
não vai vender suas terras que valem 10 por 2, só porque o governo
federal é que vai pagar. Não existe isso. Pague o valor de mercado.
Eles não fazem a cotação de mercado? Eles vem aqui, vão no INCRA
e estabelecem um valor de mercado. O fazendeiro não pode aceitar
valor abaixo do mercado, pois ele já perdeu tudo que ele tem. E
ainda vai dar de graça? Se o trabalho dessa pessoa que veio há 40 –

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

50 anos atrás e investiu uma vida aqui. Isso não vale nada? Sim-
plesmente você pega, joga esse cara pra fora e assenta um monte de
gente aqui?

P – Se fala de terras improdutivas, para que a desapropria-


ção ocorra.
Em primeiro lugar não estamos numa região agrícola,
estamos numa região pecuária. Totalmente pecuária. Segundo, não
se pode desenvolver uma agricultura na região, pois o próprio go-
verno não deixa. Não sei se você tem conhecimento, mas a gover-
nadora Ana Júlia com o novo ministro da agricultura decretou que
nas terras da Amazônia está proibido o etanol. E o reflorestamento
aqui é proibido também. Como é que você vai desenvolver a agri-
cultura? Você vê a soja lá em Santarém, o inferno, o rolo que é. A
confusão que é de ONG, de Greenpeace querendo impedir o plan-
tio da soja. A agricultura aqui não se consegue fazer. Então como
se pode definir uma terra improdutiva? Mostre uma fazenda que
não se produz nada. Não existe. Outra: as fazendas que estão inva-
didas na região são altamente produtivas. Você pega a Fazenda do
Evandro Mutran, as 4 fazendas que estão invadidas dele são as fa-
zendas mais produtivas da região. Um homem que tem 70 mil
cabeças de gado, transferência de embrião, clone, isso é improduti-
vo? Os sem-terra mataram um toro de 1 milhão de reais pra fazer
um churrasco. Isso aí ninguém fala. O boi, que foi campeão em
Uberaba, custou 1 milhão de reais e comeram ele.
O Banco Bamerindus tinha uma fazenda aqui no Pará, em
Eldorado dos Carajás, que deveria ter na época 30 – 40 mil cabeças
de gado. Havia um plantio de urucum, cupuaçu e castanha. Era o
primeiro projeto de castanha-do-Pará enxertada. Naquela época
que o Banco Bamerindus quebrou invadiram a fazenda e o governo
federal desapropriou. Sabe qual foi a primeira atitude dos invaso-
res? Derrubaram as castanheiras, os cupuaçus, os urucum.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

P – Você está generalizando as invasões de qualquer movi-


mento social ou está se referindo a algum grupo específico?
Todos. Estou falando de invasão de movimento social. Não
tem nenhum assentamento produtivo no sul e sudeste do Pará.
Dentro de um assentamento você tem 300 pessoas assentadas e
tem 5-6 que se destacam. Eles vendem a madeira, fazem carvão
para as carvoarias... é do que eles estão sobrevivendo.
O Bamerindus que produzia, tinha 4.500 empregos diretos,
mil e poucos indireto, geravam muito imposto, vendiam uma média
de 10 a 15 mil cabeças de boi por ano. E o que o Bamerindus
produz hoje (já com assentados)? O maior foco de morte e conflito
lá dentro entre eles.

P – Você mencionou no início dessa conversa que os traba-


lhadores têm milícias. Só que eles dizem que a milícia está do lado
dos fazendeiros.
Você leu a Revista Veja dessa semana? Não somos nós que
estamos falando, é a Veja. O título da reportagem é “Faroeste no
Pará”. Não preciso te dizer mais nada.
Por que a Constituição te assegura o direito de propriedade?
A lei não te dá o direito de defender o que é seu? Na Constituição
está lá, o direito de propriedade, de defender o que é meu.

P – Mas, com armas?


Com o que quiser. Se um ladrão entra na sua casa você tem o
direito de defender ela. Como você vai defender uma pessoa com
um 38 na sua cara? Você vai ajoelhar no pé dele e rezar?

P – Eles dizem que as armas deles são os instrumentos agrí-


colas, como foices, enxadas etc. Isso também mata, mas não são
armas de fogo.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Eles falam, né? Então você vai aqui na DECA, que é a Delega-
cia de Conflitos Agrários e vê o que tem de arma apreendida dentro
dos acampamentos e dentro das invasões deles. [o entrevistador foi
na DECA, porém não conseguiu verificar essa informação, já que o
delegado estava viajando e o substituto não tinha autorização de
abrir o cofre para mostrar os objetos e armas apreendidos].
Isso aí nós não precisamos mais provar. A mídia hoje está
virando. A sociedade está provando que esses movimentos sociais
são extremamente criminosos. São bandidos o que tem lá dentro,
tráfico de drogas, assaltantes, as FARC, tudo infiltradas lá dentro.
Eles mesmos estão se mostrando. Aquilo de Redenção está pra quem
quiser ver. O governo do Estado sabe.

P – E, por que, de acordo com a mesma reportagem da Re-


vista Veja, a polícia não mais pode interferir em conflitos agrários,
ficando limitado a um órgão que está longe da região (a uns 350km
de distância)?
Quando a gente tem uma terra a lei me garante que eu só
posso desmatar hoje 20%. Com 100 alqueires então eu faço 20
alqueires de pasto e 80 alqueires de mato. Se eu derrubar uma
árvore, em 24 horas o IBAMA está na minha cola e se duvidar eu
vou pra cadeia. A partir desse momento de invasão, a primeira
coisa que eles fazem é derrubar a mata todinha para plantar. Aí
você vai no IBAMA e esse órgão é proibido pelo presidente da
república de mexer com eles. Eles são eleitores do PT. Isso tudo é
política. O governo nunca vai mexer com eles. No dia que eles
invadiram a fábrica de doce aqui, às 7h30, de acordo com uma
declaração na Rádio FM Liberal (que é afiliada à Rede Globo), a
governadora Ana Júlia Carepa, quando o trem estava pegando fogo,
disse que agora tinha chegado a vez deles. Agora ela iria resgatar
todos os anos passados... Ela fez a maior baboseira do mundo. Olha
a resposta que eles deram pra ela!

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 178 18/3/2011, 16:02


Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

P – Mas, e sobre os casos que não são resolvidos pela justiça


e sim por pistoleiros?
Isso não existe mais aqui.

P – Mas as pessoas foram assassinadas aqui na região...


E quantos fazendeiros foram assassinados, você sabe? Claro
que não, vocês sabem só do outro lado. Não vende. A mídia não
vende. Ninguém vai pra um jornal pra ver lá que mataram uns fa-
zendeiros no Pará. Ah, mataram um líder do MST...agora sim, que é
notícia. Isso corre o mundo. Aquela palhaçada de Eldorado de Carajás
[referente ao massacre de Eldorado, onde 19 trabalhadores foram
mortos pela polícia]. Eu tava lá nesse dia preso lá no trânsito. Eu vou
ser bem sincero. Se eu fosse um PM naquele dia eu tinha feito a
mesma coisa. Ou eu matava ou eu morria. É só ver a polícia correndo
e um caminhão atrás para prender eles e os caras todos escondidos.

P – Mas não precisava ser com armas, não acha?


Você quer que eu te conte uma coisa? Já existem indícios
fortes aqui no Pará que aquilo tudo foi premeditado. Sabe como se
chama aquilo? Queima de arquivo. Aquilo se chama fato político.
Já tem depoimento que eles mesmos se mataram lá dentro.
No laudo de balística dizia que sem-terra foi morto por bala
de 22. Policial usa 22? Policial fardado está lá pra desobstruir uma
estrada e vai dar um tiro de espingarda 22? O cara tava de carabi-
na, de tipo pistola 9mm.

P – Parece-me estranho que os próprios sem-terra iam se


matar.
Eu sou paulista. Isso aqui é outro mundo. Vocês não têm
ideia do que esse povo aqui faz. Do que essa CPT é capaz. A irmã
Dorothy...

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 179 18/3/2011, 16:02


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

P – A CPT é igreja, né.


E daí? É o pior órgão que existe. Eu sou católico e falo isso.
São os maiores causadores do que está acontecendo aqui nesse país,
são direitos humanos e CPT. Por que está tão alto o nível de
criminalidade? O policial não pode dar um tapa no bandido mais.
Os direitos humanos não deixa. São tudo coitadinho.

P – Antigamente, por exemplo, havia uma grande explora-


ção do trabalho...
Que é trabalho escravo? Defina o que é trabalho escravo. Até
hoje nem o ministério do trabalho não tem essa definição no artigo
dele. Então tudo é trabalho escravo hoje em dia. Se você chegar
aqui e meu funcionário tiver bebendo água quente, por que eu dou
azar de no dia da fiscalização chegar o meu bebedouro está quebra-
do. Ele vai me autuar como trabalho escravo. Você sabia? Eu sou
do sindicato rural. Eu sei o que eu falo por que eu acompanho.
Tem cara de fazenda que foi autuado por trabalho escravo porque a
lâmpada estava queimada. Por isso que eu falo que tem que se
definir o que é trabalho escravo. Não se pode radicalizar como se
está radicalizando. Tem trabalho escravo e trabalho degradante.
Não é a mesma coisa.

P – Mas, o sindicato faz alguma coisa contra quem é autua-


do com trabalho escravo?
Nós não damos apoio nenhum. Se ele chegar aqui autuado
por um trabalho escravo, nós partimos do pressuposto que não
vamos ajudar. Nós não temos como punir. A punição é não dar
apoio nem moral, nem jurídico. Hoje não tem mais esse negócio
de não sabia que não pode trabalhar sem carteira.

P – Já encontramos algo em comum entre os dois lados.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 180 18/3/2011, 16:02


Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Mas nenhum ser humano quer isso pra outro. Só que o cara
que está acampado em um barraco de lona no acampamento, não é
trabalho escravo do MST? Isso é cultura. Eu comprei beliche com
colchão nos alojamentos, mas ninguém nunca dormiu neles, pre-
feriam redes. O cara nascido em Marabá dormiu 50 anos numa
rede, ele não sabe dormir numa cama.
Isso é a cultura da região. Foram chegando aos montes, geran-
do desemprego. Alguém que quer trabalhar precisa se sujeitar a con-
dições que os empregadores oferecem, pois não tem mais emprego.
Não estou culpando eles, mas tô falando do ministério do trabalho.
Os fazendeiros têm medo de contratar funcionários. Sabe
quem está ganhando com isso? As empresas de trator. Todo mun-
do está mecanizando tudo. Uma fazenda que tinha 500, 1.000
homens cortando pasto, hoje um avião passa jogando herbicida e
já está feito. Olha o meio ambiente como fica.

P – O meio ambiente está nesse estado por causa do desma-


tamento, por causa de áreas que derrubam tudo pra plantar soja,
e assim vai.
Você sabe quem é o maior desmatador da Amazônia hoje,
pra plantar? Os sem-terra. Vou te dar um exemplo: no sul e sudes-
te do Pará temos 380 Projetos de Assentamento. Vai dar mais de
300 mil famílias. Cada um desmata 3 hectares por ano. Agora
multiplicando tudo dá 1.000 hectares [na verdade, ele quis dizer 1
milhão de hectares, sendo que a conta daria 900 mil hectares]. Isso
eu to falando de assentado. Não tô falando de área invadida, por-
que quando eles invadem, eles derrubam tudo. Não tem autuação
de fazendeiro por desmatamento. Isso acabou. Ninguém mais
desmata.

P – Eu passei por Rondon do Pará há pouco e vi muitos


caminhões cheios de madeira...

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Você tem que entender uma coisa: desmatamento é uma


coisa, e tirar madeira é outra. O madeireiro entra na mata, pega
aquela área ali, coloca no caminhão e vai embora. A mata tá ali.
Desmatar é jogar tudo no chão. Não acaba a mata, pois não se
aproveita toda a madeira da mata. 50% da madeira não serve pra
nada, porque não tem qualidade. Tem muito repórter que vem,
mete o pau e não sabe nem o que está falando. O cara tem que
saber o que é uma mata, o que é madeira, pra isso exige o manejo
sustentável.

P – Mas ele acaba com determinados tipos de madeira. Se


estiver interessado em mogno, por exemplo,...
Deixa eu falar uma coisa pra você: Pra que esse mogno vai
servir dentro da mata? A árvore é um ser vivo. Um dia ela morre.
Por que não vamos aproveitar pro mundo e deixar ela morrer?

P – Se não for replantado não vai ter mais mogno.


Até a [governadora] Ana Júlia, essa ignorante, caiu a ficha.
Se criou projeto de manejo sustentável. O que é isso? Você entra na
mata, retira a madeira que você quer, a partir de um tamanho. É a
mesma coisa da pescaria. Isso é respeitado, porque tem o IBAMA
em cima. Quando vem tem 15, 20, 30 fiscais juntos. Mas, a
corrupção é muito grande. Os fiscais do IBAMA são mais ricos
que os fazendeiros de Marabá. Mas a situação tem melhorado mui-
to. Nós não temos mais desmatamento. O próprio governo federal
admitiu que o desmatamento caiu esse ano. O Mato Grosso é mui-
to pior em desmatamento que o Pará. Dados do ministério do meio
ambiente, da Marina Silva.

P – Queria saber se você sabe quantos ameaçados de morte


existem hoje na região. Aliás, como você mesmo disse, não sabe-
mos quantos fazendeiros foram mortos pelos conflitos de terra.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 182 18/3/2011, 16:02


Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Seria interessante ter esses dados. Onde podemos encontrar da-


dos sobre isso também?
Vai na Federação de agricultura do estado do Pará, em Belém.

P – Bem, vocês devem ter, mas a CPT faz...


Os movimentos sociais têm que se apegar a alguma coisa.
Eu não vou dizer que não teve. Teve mortos dos dois lados. Mas
isso é coisa de muito tempo atrás. Hoje em dia as coisas não estão
sendo assim. A gente tem que acompanhar a evolução, porque nin-
guém pode viver de passado, de picuinha. Qualquer um que morre
agora é jurado de morte.

P – De acordo com os dados da CPT, no estado do Pará


morreram assassinados em conflitos de campo, entre 1985 e 2005
392 pessoas do lado do trabalhador rural e simpatizantes. O se-
gundo lugar vem empatado com 113 mortes os estados do
Maranhão e Mato Grosso. Por que o Pará ganha disparado no nú-
mero de assassinatos, na sua visão?
É um desgoverno total aqui. A governadora que nós temos
aqui hoje... o maior problema que temos no estado é criminalidade.
Isso aqui mal tem polícia. São Paulo tem criminalidade, mas você
vê polícia pra tudo quanto é lado. Os caras não tão dando conta de
tanto bandido que tem. E aqui que não tem polícia. Você foi pra
Marabá e viu alguma polícia na rua? Não tem.

P – O presidente da assembleia legislativa de Marabá tam-


bém é fazendeiro. Por que ele e os colegas não tomam nenhuma
atitude?
Isso tem que vir do governo federal e estadual. Por que nós
estamos numa luta árdua pra dividir o estado do Pará? Porque a
única saída que nós vamos ter é dividir o estado em 3 parte: Carajás

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 183 18/3/2011, 16:02


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

(que é sul e sudeste), Tapajós (que é a área de Santarém), e Pará


(da área de Belém). Tem uma particularidade que você tem que
entender o seguinte: a capital do estado está na ponta do estado.
Belém está lá em cima e nós estamos aqui embaixo, jogados. Pará
é um estado muito grande. São Paulo que é o estado mais rico
está cheio de problemas, que é um estado pequeno. Você imagi-
na isso aqui. Um bando de gente sem cultura, analfabeto que
tem aqui. A renda per capita lá embaixo. Em Marabá mais de
90% da população é pobre. Só 3% é que tem uma condição. Isso
na cidade. No campo a situação é ainda pior. Grandes proprietá-
rios aqui no Pará está praticamente acabando. O latifúndio que
todo mundo fala. Agora, o que seria do pobre se não fosse o lati-
fúndio?

P – Mas tem gente que está registrado com mais de 13 mi-


lhões de hectares.
Isso é lá pro outro lado de Belém. Isso é cartório, não é fa-
zendeiro. Isso é tudo trambique, título falso. Ele não tem nem
documento. Tem lugares que as terras registradas superam o ta-
manho de municípios, é verdade. Só existe no papel. Se você for
atrás da terra, ela não existe, só tem papel, nem tem sede. Pra fazer
dinheiro. Vai pra banco fazer empréstimo.

P – Como é a relação do sindicato com os pequenos pro-


prietários?
Como eu havia te falado, a partir do momento que o cidadão
é assentado ele passa a ser produtor rural. É ótimo pra nossa insti-
tuição. Nós temos o SENAR, que é o Serviço Nacional de Apren-
dizagem Rural, e é totalmente voltado ao pequeno agricultor. A
sede da região fica em Carajás, que abrange 16 municípios coorde-
nados por nós. Ele dá cursos totalmente gratuitos voltados à apti-
dão e à alfabetização, e a maioria são convênios com prefeituras. Só

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 184 18/3/2011, 16:02


Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

pra você ter uma ideia, o ano passado o SENAR alfabetizou só no


estado do Pará quase 100 mil agricultores, isso tudo grátis.
Quer dizer, o fazendeiro não está nada mais do que defen-
dendo o que é dele. Ele não veio aqui há 40 anos atrás e dedicou
uma vida pra vir alguém e simplesmente tomar. Não.

P – Mas os fazendeiros também diversificam seus investi-


mentos e muitos deixaram de dar relevância para as terras, tendo
a principal fonte de renda em outras atividades que não a rural ou
agropecuária.
Isso não é verdade. O Pará tem o terceiro maior rebanho do
país. Como não tem fazenda produtiva aqui se nós temos 20 mi-
lhões de cabeças de gado? Cadê a terra improdutiva? Nós somos o
maior produtor de abacaxi do Brasil, o maior produtor de dendê,
de cupuaçu, de açaí. E como é que é improdutivo? E eles fazendo
parte dessa cadeia. Quem planta abacaxi? São eles.

P – Outra questão é a impunidade. Dos assassinatos, 99%


não está preso.
Nós não temos nada com isso. E a nossa impunidade tam-
bém? Invadem nossas propriedades, matam nossos funcionários,
matam meu gado, queimam minha sede, queimam curral, quei-
mam trator. Eu fico no prejuízo total. Então, é impunidade. Pros
dois lados.

P – Não é só o governo do PT, antes também era assim?


O governo do Jatene fez muita reintegração de posse. A gente
tem que entender uma coisa: até o episódio de Eldorado dos
Carajás isso aqui era uma coisa – tinha gente matando, tinha pis-
tolagem. Tinha tudo que tem. Mas, de certa forma, a coisa ia an-
dando. O estado prendia um fazendeiro aqui, prendia um sem-terra
ali. A partir daquele episódio, que o governador não teve a hom-

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 185 18/3/2011, 16:02


Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

bridade de assumir que ele mandou desobstruir uma estrada. Mor-


reu, se não tivesse lá ia morrer mais. Acabou a história. Quem
manda ali sou eu [o governador deveria dizer, de acordo com o
entrevistado].
Vocês não sabem, naquele episódio do Rio Tocantins, em
1981 os garimpeiros fecharam a ponte. Morreu mais de 200 ali,
fora o que pulou. A PM de um lado e do outro. Saiu na mídia?
Não. A polícia hoje não tem moral nenhuma. Não pode culpar o
policial militar. Ele tem medo.

P – Dizem que o policial, muitas vezes, participa da pistola-


gem do lado do fazendeiro pela identificação que ele tem com o
fazendeiro.
Mentira. Não digo como grupo de extermínio na cidade,
mas com os sem-terra, não vão nunca. Com a justiça em cima. Não
são loucos de ir. Eles cagam de medo do povo. Quando tem uma
reintegração de posse (eu sei porque eles ficam alojados aqui no
sindicato com a cavalaria) precisa ver a tensão desses soldados e o
medo que eles têm de ter que dar um tiro. É um trauma, eles estão
traumatizados.

P – Mas tem algum policial preso por causa disso?


Não sei, não ando atrás disso. Tem que ver na justiça em
Belém.

P – Vocês, como ruralistas, têm meios para agilizar o lobby


dos ruralistas em Brasília? Como que funciona isso?
Deve ter, mas tudo é política. Quem é governador e presi-
dente do país hoje? O Lula. Então não precisa falar mais nada. A
maioria é do governo. A governadora do estado é do PT, e da ala
radical do PT. Uma ala não se dá com a outra. O MST aqui hoje é

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 186 18/3/2011, 16:02


Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

rachado com o PT. Ele não apoia a governadora. O MST está aliado
com o PSTU. Essas milícias de Redenção está tudo com o PSTU,
que está coordenando aquilo lá. Isso não tem nada a ver com o
MST, nada a ver com Fetagri, nada a ver com Contag, com sem-
terra, nada. Aquilo não é movimento social, aquilo é bandido. Nós
somos muito claros não por a culpa neles daqueles ali de Reden-
ção. Aquilo é caso de polícia. Não tem nada a ver que a governado-
ra diz sobre eles. Eles são bandidos, são quadrilhas. Da matéria da
Veja. Aquela Liga dos Camponeses Pobres não tem nada de cam-
ponês pobre. Tão usando aquele nome pra assalto e roubo. Não dá
pra culpar o MST, a Fetagri por isso.

P – O seu sindicato tem algum organismo maior que está


ligado, como a UDR ou outra similar?
Não tem nada de UDR. Somos o sindicato rural, e estamos
ligados à Federação de Agricultura do Pará, que é subordinado à
CNA (Confederação Nacional da Agricultura).
O sindicato rural não apoia e não incentiva ninguém a prati-
car violência. Só trabalhamos com a justiça, nem que leva a vida
inteira. Sempre caminhamos pelo lado legal. Se algum fazendeiro
quer uma dica nossa, é pela reintegração de posse. Não é tirando a
força, matando gente. A partir do momento que nós não acreditar-
mos mais na justiça, acabou. Pra todos os lados. Nós podemos ir
embora daqui. Aí o país, oh. Aí nós estamos mortos.

P – Mas dizem que aqui é terra sem lei.


Não é essa questão. A fazenda é invadida. Primeira coisa: o
juiz emite uma reintegração de posse. Ali termina o trabalho da
justiça. Quem manda cumprir é o governo do estado. Quem man-
da na polícia é o governador. Se ele não cumpre... A justiça existe.
O problema é que o executivo não cumpre o que o judiciário man-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

da. E principalmente agora com o governo do PT. Até o Suplicy


afirmou que a governadora do estado, que é do mesmo partido dele,
está errada, pois a lei deve ser cumprida e ela deveria dar apoio [refe-
rente à matéria da REVISTA VEJA dessa semana]. E que ele iria
conversar com o Lula e os dois iriam vir ao Pará para conversar com
a Ana Júlia. Ela tá agindo errado. Não interessa se ela não gosta de
fazendeiro. Ela é governadora do estado. Tem que manter a ordem
no estado, seja de que partido for. Isso saiu na TV Senado.

P – Falam que o sul e sudeste do Pará está há muito tempo


deixado às traças e que esse governo estadual está dando um pou-
co mais de atenção.
Pelo contrário. O que ela está fazendo é incentivar o confli-
to. Ela vem com esse discurso e inflama. Ela foi pra Carajás e deu
apoio aos sem-terra condenando o governo do estado. Ela é uma
governadora. Não pode fazer isso. Como vai dizer que os sem-terra
são coitadinhos e que agora vai indenizar todos eles? Você vai ver
que agora vai aparecer morto desse Carajás a rodo pra receber di-
nheiro. Não vai ser mais 19 não. Milhares.

P – As empresas que extraem recursos naturais da região


dão algo em troca?
A Vale do Rio Doce faz muito. Ela não paga mais pros índi-
os, pois quem tinha a obrigação de pagar, é o governo federal, não
a Vale. Mas a Vale faz muita coisa, em Marabá, em Parauapebas,
em Carajás.

P – E os fazendeiros fazem benfeitorias para a população


dos municípios locais?
Já te disse. Mas, além daquilo que a SENAR faz, também há
outros projetos. Por exemplo, perto de Belém, ajudamos os

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

quilombolas da região a fazer artesanato de sementes. Outro foi


um projeto para mulheres comprarem uma máquina que faz bas-
tante coisa e isso ajudaria elas a melhorar a qualidade e quantidade
da produção artesanal. A máquina custava R$6.000. Pagamos. Nós
ficamos satisfeitos, pois elas já estão exportando pra China, pra
Alemanha, pros Estados Unidos. Isso o governo deveria fazer, mas
não faz. Porque o governo é assistencialista. Ele está dando o peixe,
não está dando a vara pra ensinar eles a pescar.
Se você perguntar pra esse pobre coitado se ele quer receber
o bolsa-família ou emprego, o que você acha que ele vai responder?
Ele quer emprego, com certeza. Ele quer ter dignidade de receber
o salário no final do mês. Você vê a geração de vagabundo que nós
estamos criando nesse país? Que geração futura vamos ter, com
pessoas que não trabalham, só esperando dentro de casa o bolsa-
família, bolsa-gás, bolsa-todo o resto? Agora criou a bolsa-rural.
Cesta básica eles recebem todo mês.

P – Disseram pra mim que não recebem todo mês a cesta-


básica, mas umas 4, 5, 6 vezes ao ano...
Mentira. Chegam caminhões um atrás do outro aqui. É di-
reto aqui.

P – Eu li numa matéria essa semana do jornal O Estado de


São Paulo, que o assistencialismo reduz a mobilização dos sem-
terra no campo. Você concorda?
A gente precisa entender uma coisa, que eu disse no começo
da entrevista: hoje tem uma indústria de invasão. A pessoa não
quer a terra, ela quer vender a terra. Pega aqueles 20 alqueires que
o INCRA dá e vendem. Tem gente que pega até 50 a 60 mil reais.
Tira a vaca, vende a vaca, e vai pegando dinheiro [ no crédito]. Aí
vendem a terra e vão embora acampar e invadir outra. É uma in-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

dústria. O INCRA é totalmente desorganizado, não tem cadastro.


Essa reforma agrária vai acabar quando?

P – Tem gente que diz que ela não começou ainda.


Começou desde 1940 a reforma agrária no país, com Getú-
lio Vargas e até agora não acabou. É uma indústria. E não acaba
porque depois de receber a terra, dali a 3 dias ele está na fila espe-
rando de novo mais terra.

P – O que o governo FHC fez em relação a reforma agrária?


O Fernando Henrique pra nós foi muito pior que o Lula. O
Lula só fez tudo que o Fernando Henrique deixou pronto e não
teve coragem de fazer. O Lula apenas colocou em prática as leis que
o governo FHC criou.

P – O Lula criou muita expectativa pro pessoal mais pobre


que pensava que seria melhor pra eles, e acabaram se frustrando
com os resultados.
Você não sabe o que fazendeiro passou aqui. Nem sequestra-
do em São Paulo passou o que fazendeiro passou aqui. Sequestra-
do, humilhado na própria fazenda. Aí você não quer que o cara se
defenda? Se entrar na minha eu passo é fogo. E falo isso na televi-
são. Se eu não defender o que é meu, ninguém vai.

P – Mas você disse antes que usavam os meios legais... a


polícia, o judiciário.
O cara me bate, me amarra, toca fogo na minha casa... Aí
você quer que o cara não se defenda? Eu tô aqui no sindicato e eles
invadem minha fazenda agora. Eu tô aqui e não to lá.

P – E se você estivesse lá?

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Se eles não fizerem nada temos que chegar. Invadiu? Tem o


direito de invadir? Então invade, fica lá no cantinho e vamos pra
justiça. Vamos provar que você não tem documento, que você é
grileiro. Já tem movimento aqui fazendo isso. Você fica pra lá e eu
fico pra cá e a justiça resolve. Assim tem que ser feito. Não um
lado matar um e o outro matar também. Os métodos que estão
usando hoje... a lei é clara: terra invadida não pode ser desapropri-
ada, nem vistoriada. Eles sabem que o INCRA não vai vistoriar
nada, o Lula não está fazendo o que prometeu, tá devagar demais,
então eles te tiram no cansaço. Nós temos fazenda aqui no sul do
Pará que foi feita a reintegração 7 vezes. O fazendeiro vai querer
essa fazenda? Nunca mais. Ele vai entregar. Ele não aguenta mais.
Eles te destrõem psicologicamente, moralmente, financeiramente.
Tudo, sem te dar um tapa. E por outro lado o PT vem acabando
com o agronegócio e comendo pela beirada. O ministério do tra-
balho, IBAMA, ministério do meio ambiente, e aí vai.

P – Mas as exportações aumentaram bastante.


Era pra estar muito mais. O que tem de gente saindo, por-
que não aguentam. O déficit é de quem? É do governo ou é nosso?
Há muitos anos nós dizemos uma coisa: não importa qual é o go-
verno, se PT, PSDB. Deixa a gente trabalhar. Não precisamos de
nada do governo. Nos viramos muito bem. Assim é o industrial, o
comerciante, todo mundo. Agora só imposto, imposto. A carga
tributária, não tem quem aguente. O CPMF vai voltar de novo. E
assim mesmo o brasileiro ainda vai batendo recorde e recorde de
produção, de exportação, de PIB.

P – O sindicato notou a diminuição da mão de obra no setor


agrário para o maquinário?
Muito, mas muito mesmo. Nunca se vendeu tanto trator na
região! O maior culpado disso é o ministério do trabalho. Com

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

isso aumentou muito o desemprego e aumentou a inflação. Todas


as madeireiras estão quebrando. Marabá não tem madeireira. O
PT fechou tudo, não deixa trabalhar.

P – Em Rondon do Pará eu vi muitas.


Mas não tem nem a metade do que tinha. As fazendas hoje
estão totalmente mecanizadas cada vez mais. Nunca se jogou tanto
herbicida de avião como se está jogando.

P – A violência no campo aumentou com a mecanização e o


desemprego?
O ministério do trabalho é o responsável. Quando eles vêm
fazer a diligência, perguntam ao trabalhador se é casado e onde
está a mulher. Perguntam à esposa se ela tem carteira assinada. Ela
diz que quem é empregado é o marido e não ela. Mas, aí dizem que
ela também tem que ter carteira assinada. Perguntam se tem filho
mais de 18 anos. Se ela responde que tem e que ele mora com eles,
mas está fazendo faculdade em Marabá, dizem pra trazer ele por-
que tem que assinar a carteira dele e ele e você vão receber tam-
bém. Desse jeito. Criou uma indústria. Tem gente que vai trabalhar
pra você, fica uma semana, dá uma sondada e vai ao ministério
reclamar que é trabalho escravo. Aí vai pro outro trabalho e vai
vivendo assim. Isso é na hora, em 24 horas resolvem e você vem
algemado. O ministério do trabalho vem com juiz, notebook com
satélite. Eles fazem tudo no local. Via satélite faz a ocorrência, o
julgamento, na hora. A polícia federal chega na hora e te dá 24
horas pra pagar eles.
Nós nos juntamos pra tentar resolver isso e já tem melhora-
do muito. Mas é assim que o proprietário fica com medo. Aqui no
estado do Pará tem muito fazendeiro com medo e que estão mu-
dando de ramo por causa dessas coisas. Quem comprou terra aqui
foi o Lula. Ele tem mais de 50 mil hectares.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

P – É particular do Lula?
Fazem pacto com o [Paulo Vanucchi], o Daniel Dantas. Todo
mundo sabe que o Lulinha vem aqui de jatinho toda semana.

9) Entrevista com Charles Trocate – Coordenador re-


gional do MST em Marabá.

P – Poderia dizer a diferença entre os acampamentos do


MST e da Fetagri.
Como é o nosso raciocínio? Partindo do princípio que estamos
na região amazônica e aqui a disputa de interesses gira em torno da
disputa pela posse da terra. Como esse território vai estar organiza-
do, o que ele vai estar produzindo é o pano de fundo do conflito
aqui. Nessa perspectiva, aqui foi a região que se inaugurou na dé-
cada de 70 a luta dos posseiros. Exatamente porque não havia pers-
pectiva de avançar no âmbito institucional na reforma agrária
começou a se construir aqui comunidades baseado no tempo de
permanência da posse. Essa forma de luta foi organizada pelo
sindicalismo que depois vai dar vazão pra construção das federa-
ções.
Qual a diferença fundamental? A luta posseira tinha um tri-
pé: homem, arma e lote. Esse tripé compunha o que conhecemos
pela luta posseira. E procuravam sempre estabelecer o que chama-
mos do conflito de classes (conflito do sem-terra posseiro com o
fazendeiro). No final dos anos 90 essa forma de luta foi alcançada,
primeiro pela tática da eliminação física das lideranças. Nós temos
um número significativo de mulheres e homens que morreram
assassinados nessa região. Quando falo nós, refiro-me a luta inclu-
sive anterior ao surgimento do MST. Se organizavam na cidade sob
a liderança do sindicato ou não, baseado na força das armas pra
fazer o enfrentamento com os jagunços da fazenda. E uma concep-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

ção de não fazer um espaço único, mas de que cada família ficava
no seu lote defendendo-o.
Primeiro, então, estabeleceram o conflito e, em muitas áreas
expulsaram os fazendeiros e acabaram tomando o território. Essa
forma de luta, então, foi alcançada pela tática de eliminação das
lideranças, como eu disse. Ela foi alcançada pela repressão organi-
zada pelo estado, e também pelos próprios órgãos da região, como
o GETAT e o INCRA que eram organizados por militares, que
viam no camponês (organizado ou não) o inimigo.
Depois de alcançar essa luta, o crédito que os assentados re-
ceberam foi para plantar, desmatar e criar gado. Mais um golpe no
projeto político dessa turma. Surge o MST nessa região em 1990.
Mas, desde 1985 os membros do sindicato que combatiam lá em
Conceição do Araguaia começaram a ir para os encontros nacionais
do MST. Só em 1990 que o MST conquista território. Agora tem
base social, famílias, e tem seus primeiros militantes.
O MST se diferencia por vários motivos. O MST, primeira-
mente, estabelece 2 níveis ao conflito: primeiro conflito de classes,
que é com o latifúndio. O segundo conflito é a nível institucional.
O MST não quer ser posseiro. Nós queremos que o estado faça a
reforma agrária e desaproprie a terra, regularize as pessoas, e que-
remos investimento em saúde, em educação, em moradia, em es-
trada. Nós não queremos ficar à margem da lei.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Entrada do acampamento/ocupação João Canuto (MST), da Fazenda Rio Ver-


melho (sul do Pará).

Esse conflito institucional se dá primeiro no INCRA. Em


1992 ocupamos o INCRA de Marabá por 9 meses, exigindo que a
nossa área fosse desapropriada. Ele se dá aonde? Se dá no banco
(nós queremos crédito para subsidiar a agricultura), se dá com a
secretaria de educação (queremos escolas), e assim sucessivamente.
Nós estabelecemos o primeiro conflito, que é o de classes e depois
estabelecemos o segundo conflito, que é o institucional.

P – O conflito é só com fazendeiro ou é com o Estado tam-


bém? Já que você mencionou luta de classes, a intenção seria for-
mar um novo Estado? Ou isso é algo apenas ideológico, só que na
prática vocês se atêm a outras formas de mudança?
Na verdade, o que nós queremos fazer é que o Estado assu-
ma a reforma agrária. A reforma agrária não nasce da sociologia
marxista, ou comunista/socialista. Ela nasce como uma das etapas

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

civilizatórias que o capitalismo empreendeu sobre o modo de vida


feudal. Os capitalistas fabris da França para derrotar os feudalistas,
os senhores de servos, eles tiveram que fazer uma união com os
camponeses. Ou seja, o bom da revolução francesa nada mais foi do
que criar um milhão de novas propriedades. Ao mesmo tempo que
os camponeses forneciam insumos, eles compravam produtos in-
dustrializados. Então, a reforma agrária é uma necessidade
civilizatória do capitalismo. O problema no Brasil é que a burgue-
sia industrial (ao contrário da francesa, que matou a burguesia agrá-
ria) não teve nenhuma contradição com a burguesia agrária. Pelo
contrário, a burguesia industrial é filha da burguesia agrária. Por
isso que no capitalismo brasileiro não houve essa contradição de
que o capitalismo pudesse cumprir etapas civilizatórias na reforma
da terra, da educação, e uma série de coisas.
Quando falamos que estamos estabelecendo um conflito
institucional, queremos apenas que o Estado brasileiro, que é capi-
talista, cumpra sua obrigação histórica. E está lá na Constituição
do Estado, Carta Magna do país, que a reforma agrária é uma das
políticas que o Estado deve patrocinar.

P – Uma acadêmica norte-americana que escreveu um livro


sobre o MST (Wendy Wolfort) disse que se os acampados do MST
desconfiassem que estavam numa luta revolucionária armada, que-
rendo derrubar o Estado, levariam um susto. Pois, o que, na ver-
dade eles querem é poder ter seu pequeno pedaço de terra e se
sustentar, além de poder comprar um par de sapatos aos filhos e
coisas do gênero, como pequenos capitalistas.
Exatamente. O que nós queremos? O Estado brasileiro tem
n mecanismos constitucionais para fazer a reforma agrária. Mas,
também tem n mecanismos que impedem a realização da reforma
agrária. E, como no Brasil a reforma agrária não foi patrocinada
pelo Estado, ela ganha contornos de luta de classes. Por que? No

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Brasil está claro que a reforma agrária não vai ser obra da burgue-
sia. Ela abdicou dessa tarefa histórica com a premissa dela mesma
(como etapa civilizatória que o próprio capitalismo ensejou sobre a
burguesia agrária). O Estado não assumindo, a burguesia não assu-
mindo, de quem é a tarefa histórica da realização da reforma agrá-
ria? Os camponeses compram essa disputa, o conflito e o impasse.
Que é isso que nós fazemos. Quando ocupamos uma fazenda, o que
queremos dizer? Que aqui existe latifúndio e que não foi feito re-
forma agrária. E nós queremos reforma agrária que consta nas leis
do Estado.
Claro que o interesse de uma família que vai para o acampa-
mento é resumir seu problema econômico imediato. Esse interesse
é movido por ter o lote e organizar sua vida de camponês no lote.
A questão central é que exigimos do Estado o mecanismo
que ele criou para realizar a vontade de quem está mobilizado,
para realizar a vontade da sociedade.

P – De acordo com uma matéria publicada no jornal O Es-


tado de São Paulo, o assistencialismo do bolsa-família reduz a
mobilização dos sem-terra. Isso iria contra o movimento?
Eu vi essa reportagem, e o interessante pra nós é como o
jornal está pensando a nossa relação do MST com o governo Lula.
O jornal coloca o esvaziamento do MST, mas fundamentalmente o
esvaziamento do sentido da reforma agrária no Brasil. O sentido
da matéria vai na questão de que as famílias não querem se ruralizar
novamente.
A nossa observação é que nós estamos num momento muito
complexo da sociedade brasileira marcado pela ideia do não-con-
flito e fundamentado à ideia da conciliação. É possível conciliar os
diversos interesses antagônicos da sociedade numa síntese: dar mais
dinheiro aos pobres. Isso é o pensamento. Antes de responder, nas

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

eleições de 2010 quem quiser ganhar a eleição deve dizer que vai
aumentar o bolsa-família.
Pra nós isso é um problema por quê? Vou dar outra visão da
nossa análise. A palavra de ordem do segundo mandato do Lula é
fantasiosa. Por exemplo “Deixa o homem trabalhar” – eu que es-
tou ganhando R$70 vou tirar um cara que está trabalhando. Isso
incentiva o não-trabalho. Por que eu vou votar em alguém que
está trabalhando (que significa receber vale-gás, bolsa-família etc.)
e você cria uma passividade no indivíduo muito grande. Em outra
perspectiva: a massa ficou sem tarefa concreta importante na socie-
dade, nem o da reforma agrária. Imagina se a palavra de ordem do
Lula fosse diferente: terra, educação, saúde, aí você dá uma tarefa
concreta pra massa.
Estamos numa crise de sentido e não sabemos o que vai acon-
tecer. Estamos vendo um período de deseducação social muito pro-
fundo. Aí entra o tema da cesta básica dizendo que não cabe temas
como reforma agrária e nem movimentos tipo MST que querem a
reforma agrária.

P – Com a eleição do primeiro mandato do Lula houve uma


expectativa grande que parece ter sido seguida de uma decepção.
Qual a relação do MST com o governo federal atual?
No primeiro mandato nós tínhamos a seguinte análise: O
governo é de composição e, portanto, um governo em disputa.
Tinha setores da esquerda e da direita. Por ser um governo de com-
posição, seria um governo de disputas e de crises. E houve muitas.
Não seria então um governo de ruptura e sim de pequenas refor-
mas pontuais. Do nosso lado, entendemos que tinha surgido a quarta
oportunidade histórica de se fazer a reforma agrária no Brasil. Ela
sairia da ideia de uma política de compensação social momentânea
e ganharia sentido de projeto político de longo prazo. Fizemos esse
esforço para um projeto de plano nacional. Nada disso se concreti-

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

zou. A reforma agrária foi derrotada e no lugar, criou sentido o


agronegócio.
A eleição do Lula não é fruto do movimento de massa como
foi em 1989. O Lula não estava descolado do povo naquele tempo.
Em 2002 a eleição do Lula é consenso das elites brasileiras. Por-
que, ao contrário do que se diz que o FHC governou o país muito
bem, ele criou contradições dentro da própria burguesia. O povo
estava cansado do neoliberalismo, ainda que não entendesse que o
FHC representava a desestabilização do estado brasileiro.
O Lula em nenhum momento tentou governar com a socie-
dade. Ele montou a sua governabilidade com os partidos tradicio-
nais da elite brasileira e por isso que sofreu crises. E a reforma
agrária saiu da conjuntura política do país.
Aqui na Amazônia eles não quiseram criar um enfrentamento
com o latifúndio e preferiam assentar em terras públicas, o que pra
nós isso não é interessante.

P – O MST, então, não vê o objetivo final, que é o assenta-


mento, mas o assentamento em terras griladas e no latifúndio,
mas não em terras públicas.
Não interessa ser assentado em terras públicas. Nós quere-
mos eliminar o latifúndio da sociedade brasileira. Essa é a nossa
tarefa, entregar esse país mais sadio para a nova geração. Você deve
conhecer muito bem que nós nascemos como 13 grandes fazendas.
Antes de chegar gente aqui, a sociedade nasceu com 13 grandes
propriedades que depois se converteu na lei de sesmarias, terra da
Coroa e dava para quem quisesse. Num segundo momento quando
isso perde força, faz-se a primeira Lei de Terras no Brasil, a lei 611,
acho, de 1850. Nessa lei constava que só poderia ter terras quem é
branco, tem vínculos católicos profundos, e tem dinheiro para com-
prar. Em 1888 a Lei Áurea, que é última lei das que vão permitir a
libertação dos escravos (lei do ventre livre, do sexagenário, e de-

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

pois a lei de libertação completa). 38 anos depois é a libertação dos


escravos. Você impediu que os negros que saíram de uma situação
difícil de escravidão tivessem terras. E isso perpassa até os dias de
hoje.
Por isso que quando falamos em questão agrária, dizemos
que não temos uma questão agrária, mas sim um problema agrá-
rio. Qual é a base dele? Primeiro, a propriedade baseada em gran-
des fazendas. Segundo, a produção de monoculturas (sempre
produzimos dois ou três produtos que interessam à metrópole). E,
terceiro, baseado na prática do trabalho escravo (e agora mais pro-
fundamente na erosão da biodiversidade). O nosso modelo é um
problema agrário porque não se completou a ideia da diversifica-
ção da produção. 80% da nossa história foi gasta com trabalho
escravo. Você sabe que prejuízo cultural é esse pra um país? Mesmo
quando a sociedade se modernizou ou se industrializou, o salário
mínimo no Brasil é insuficiente. São essas as condicionantes que
nos faz até os dias de hoje. Tem um grave problema agrário monta-
do aí. O impasse é que o Estado desterritorializou as massas com a
industrialização a partir da década de 30 (porque não quis fazer a
reforma agrária) e não conseguiu urbanizar essas massas. Essas ci-
dades são pré-cidades (sem o mínimo de infraestrutura).
O que é mais barato para o Estado hoje em dia? É urbanizar
essa massa ou ruralizá-las novamente. Sai muito mais barato...

P – Precisa ver o que a massa quer também.


Exatamente. Mas, se visualizamos um campo sem os proble-
mas de trabalho escravo e etc. e se não se consegue urbanizar essa
massa, continua com 2 impasses: nem consegue retorná-las ao cam-
po, realizando a reforma agrária, e nem consegue urbanizá-las. E a
massa fica em pré-cidades, em favelas. Essa panela de pressão se
explodir será uma explosão violenta. O Estado não quer comprar
essa briga com o latifúndio e nem consegue urbanizar.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

10) Entrevista com Juíza Cláudia Regina Favacho


Moura – Vara agrária de Marabá.
Essa vara não tem competência criminal, mas apenas cível.
A juíza acredita que o desordenamento fundiário do estado do Pará
é o causador dos conflitos de terra. O estado não vai conseguir
resolver a questão agrária sem antes resolver a questão fundiária,
isto é, resolver a quem pertence a terra, já que a grilagem é co-
mum. Outro fator que facilita a grilagem de terras são as dimen-
sões do estado (o segundo maior do país), já que há casos que o
estado não consegue mais acompanhar.
O município de Novo Repartimento, por exemplo, tem mais
assentamentos da América Latina e não tem educação, saúde, polí-
cia etc.
A impunidade de que se fala muito não é exato. De acordo
com uma pesquisa do Tribunal de Justiça, os processos com moti-
vação agrária muitas vezes não passa da polícia para o Judiciário.
O aparato estatal não consegue se fazer presente em muitas
localidades, por vários motivos, inclusive pelo número de pessoal.
A vara agrária de Marabá atende a 143 municípios (sendo 105
comarcas).
O Tribunal de Justiça de Belém fez um acompanhamento
dos processos de crimes agrários que a CPT registrou e verificou
mensalmente a situação de cada processo.
Na Vara Agrária de Marabá são feitas ações possessórias, rein-
tegração de posse e manutenção de posse. Somente conflitos cole-
tivos chegam à Vara Agrária.
O Tribunal de Justiça fez bloqueio em todas as áreas onde
havia suspeita de irregularidade. Para desbloquear, o suposto pro-
prietário deve demonstrar que o documento é lícito e não falso.
Esse bloqueio impede que o suposto proprietário venda ou transfi-
ra sua terra, nem que ele possa pegar crédito.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

A juíza acredita que enquanto houver terra sem demarcação


haverá conflito de terras.

11) Entrevista com Ana de Souza Pinto (“Aninha”) –


Socióloga e coordenadora da CPT de Xinguara (PA).
Entrevista realizada durante a viagem de Xinguara
a Conceição do Araguaia.
Há uma família do Rio de Janeiro que é conhecida como
muito violenta, inclusive com antecedentes de assassinatos, que
impõe muito medo à população local. Essa família já foi flagrada
com trabalho escravo.

P – Essa família sabe que nada acontece com eles por causa
da impunidade.
Justamente. É a impunidade que os faz sentir seguros de
seus atos.
Essa terra que estamos passando agora tem plantação de teca
e pertence ao deputado federal Geovani Queiroz, inclusive finan-
ciado com dinheiro público. E os pequenos têm tanta dificuldade
de ter acesso aos créditos. São árvores retas, de um valor comercial
muito grande. Leva 20 anos para poder explorar comercialmente
essa madeira. Agora tem uma empresa de capital holandês e inglês
que comprou em Santa Maria das Barreiras 27 mil hectares de
terra para plantar essa árvore. Inclusive o nome da empresa é
Floresteca, de plantio racional da teca.

P – Você falou que os médios proprietários são mais violen-


tos que os grandes, que geralmente são muito poderosos, seja na
política, ou nas suas relações com grupos influentes que teriam a
perder com seus nomes envolvidos nesse tipo de crime. Seriam os

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

médios proprietários aqueles que cometem a maior quantidade


de crimes agrários?
Quem manda assassinar tanto os trabalhadores como seus
parceiros na luta e aliados? Eu disse que os grandes fazem uma
análise política na conveniência de mandar assassinar esse pessoal.
Nem sempre o único meio é a eliminação de pessoas. Eles fazem a
análise da repercussão disso frente à sociedade, tanto a nível nacional
como internacional. A imagem do setor produtivo poderia ser ar-
ranhada pela violência. Ao passo que os médios, a impressão que
temos é que eles não estão tão preocupados com a repercussão, com
a violência e não fazem essa análise política. Eles querem tirar pes-
soas que estão no caminho. São mais ousados, mais truculentos.
Na década de 80, quando a violência era muito alta, dizíamos que
a violência era utilizada como dimensão pedagógica. Não basta só
matar simplesmente. Tem que matar com requinte de crueldade
só pra dar o exemplo pros outros. Se alguém passar no nosso cami-
nho, olha o que pode acontecer. Tem casos muito horríveis na re-
gião do Baixo Araguaia, na região de São Geraldo, na década de
80. Foram muitos e muitos conflitos e, realmente, muitos assassi-
natos.

P – Não se sabe ao certo quantos ativistas e membros têm


cada movimento que luta por terra, como MST, Fetagri, Fetraf,
Liga dos Camponeses Pobres etc., nem quais são seus métodos na
região. Você saberia me informar isso?
A cada momento aparecem novos atores. O MST tem um
único acampamento aqui na região, que é o da Fazenda Rio Ver-
melho, que tem de 2 a 3 anos. O início da atuação do MST foi em
Conceição do Araguaia, onde estamos indo. Só que lá acabou não
dando certo, e acabaram se deslocando para a região sudeste, em
Marabá. E agora há uns 2-3 anos atrás é que vieram para a região
de Sapucaia na Fazenda Rio Vermelho.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Tem 2 atores novos: a Fetraf, que faz um ano e pouco que


existe e atua por aqui, e essa Liga dos Camponeses Pobres, tam-
bém tem 1 ano e pouco. A Fetraf está mais pelo município de
Santa Maria. A Liga dos Camponeses Pobres está mais em Con-
ceição e Santa Maria. Mas, exatamente o número não saberia di-
zer.

P – Não precisa dizer o número, mas a representatividade


entre os diversos movimentos, quais tem mais ou menos seguido-
res e afiliados etc.
Acho que ainda não foram colhidas essas informações e eu
não saberia precisar.

P – E a Fetagri?
A Fetagri tem atuado mais na questão previdenciária. Na
questão da terra tem tido uma atuação, mas limitada, algo mais
localizada em alguns municípios da região.

P – Conversando com o dirigente do MST em Marabá,


Charles Trucate, me informou que a diferença entre o MST e ou-
tros movimentos é que esse atua mais politicamente do que a
Fetagri, e o MST procura ocupar terras griladas ou propriedades
privadas que podem ser griladas e não ficar em terras devolutas
ou públicas. Já a Fetagri vai por esse caminho.
Também. Procuramos mapear em alguns lugares onde po-
tencialmente seria terra pública. Na nossa região, o Estado brasi-
leiro não tem o controle de seu território.

P – Então, tem gente que diz que o Estado está ausente e


outros que dizem que o Estado não está ausente, mas que defende
um dos lados. Que você acha disso?

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Quando o Estado está presente, não há sombra de dúvida de


que lado ele se encontra, independente de qual partido está no
poder do estado ou nacional. É isso que vem acontecendo. O Esta-
do não tem o controle da legalidade das terras, nesse sentido. Tan-
to o órgão estadual ITERPA, quanto o INCRA não sabem quais as
áreas em poder de cada um desses órgãos, ou mesmo quais as áreas
públicas ou frias na documentação. Tem muita indefinição e não
tem havido uma decisão política e operacional no sentido de se
investir e que o estado reconheça aquilo que é público ou particu-
lar.
Há pouco tempo saiu no jornal que parte das terras da famí-
lia Quagliato era de 30 mil hectares e uns dias depois de 3 mil. E
são informações que saíram do INCRA. Esse mesmo órgão é con-
fuso e há indícios que houve uma tentativa de esquentamento de
documentação. Seguramente tem casos de corrupção para favore-
cer os interesses dos grandes. O INCRA é um órgão que não tem
enfrentado o latifúndio pra valer. Ele age sempre a reboque dos
conflitos. A metodologia e a estratégia de atuar onde aparecem os
conflitos e a violência. Hoje no Brasil tem bem mais de 1 milhão
de sem-terra espalhados. A quantidade que tem no Brasil depois
do governo Lula é muito grande.
Os segmentos ligados à luta pela terra pensaram que o go-
verno Lula iria agilizar a divisão de terras, o que acabou não ocor-
rendo. Essa é uma dívida histórica de nosso país. É tão louco, tão
revoltante, a situação de acampamentos. Tem famílias que ficam
1, 2, 5 anos nessa situação e o Estado, ao invés de resolver o proble-
ma da terra e destinar a terra pra essas famílias para que possam
produzir e viver com dignidade além de vender ao mercado e ten-
tar reduzir a fome no país, se limita a doar cesta básica. Pra receber
cesta básica os sem-terra têm que ter caminhão para levar até eles.
E como quem está numa situação dessas teria caminhão? Num
país com tanta terra e com esses recursos naturais, ter gente que
vive dessa forma como os sem-terra é revoltante.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

P – Você acha que a ajuda social do governo pode


desestimular a mobilização no campo?
Pode ser um fator que contribua no sentido que as famílias
passam a ter o mínimo do mínimo. E essa reforma agrária que não
vem. E também o governo Lula foi encarado como “um dos nos-
sos” e assim as pessoas pensam que não precisamos lutar tanto para
conseguir nosso pedaço de terra.
As políticas sociais acabam amenizando os problemas so-
ciais da sobrevivência. De um lado o bolsa-família, e de outro o
refluxo dessa dinâmica de falta de enfrentamento.

P – Enquanto estava na Ocupação da Fazenda Peruano, re-


cebemos a informação que morreram 2 pessoas de uma outra ocu-
pação próxima por razão de briga entre posseiros e acampados.
Sempre ouvimos dizer que a violência no campo é ocasionada por
luta entre sem-terra e despossuídos com os latifundiários e seus
capangas. Esse tipo de violência que citei é algo mais corriqueiro
que se imagina ou um mero acaso?
Não dá nem pra comparar. Isso é puramente residual. Mui-
tas vezes os conflitos acabam tendo como causa a inoperância do
INCRA. Tensão se dá também por relação de vizinhança etc. O
ambiente de tensão às vezes cria essa violência entre os próprios
que lutam pela mesma causa. Há insegurança muito grande de ter
despejo, de ter ataque de pistoleiros. De repente não tem o que
comer, a cesta básica que não chega, e nem sempre se tem condi-
ções pra sair e trabalhar pra fazer algum dinheirinho. Às vezes
problemas de doença... então é assim, o cotidiano é permeado por
inseguranças. Determinadas tensões e conflitos surgem.

P – Verifiquei que os acampamentos do MST são muito or-


ganizados, com regras rígidas e que dão resultados favoráveis às
pretensões desse movimento. O mesmo creio que não ocorre com
outros movimentos similares.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

Sem dúvida, o MST é muito organizado. Isso é um exercício


da conquista da cidadania. As pessoas vão aprendendo a atuar e
decidir. Outro dia vi um documentário da TV educativa paranaense
sobre uma ocupação. Se essas pessoas não estivessem dentro desse
contexto de mobilização, onde estariam? Na periferia, passando
privações, sem condições mínimas e sem poder aprender coletiva-
mente. De fato, o MST tem uma experiência muito interessante.
Os outros movimentos têm o mínimo do mínimo de regras, mas
nem se compara.
O MST acabou demorando pra vir pra essa região. Eles não
querem ocupar lugares no fim do mundo, onde o acesso é difícil.
Que tem estradas, infraestrutura.

P – Qual o modelo do conflito agrário? Desde a ocupação


até a desapropriação e transformação em assentamento. Como é
esse processo?
No governo do FHC houve uma lei que as terras ocupadas
não poderia ser vistoriada por 2 anos. Do ponto de vista legal para
frear a luta pela terra foi fatal isso. A quantidade de desapropria-
ções realizadas tem sido muito limitada. O INCRA, ao invés de
desapropriar terras de latifúndio, tem preferido assentar os sem-
terra em terras públicas. Por isso houve um aumento de terra em
mãos dos grandes. Eles não só ficaram com a mesma quantidade de
terras, mas aumentaram a quantidade. Muitos latifundiários, co-
merciantes, advogados etc. receberam terra de assentamento do
INCRA, que fez vista grossa.
O que o INCRA tem feito é assentar sem-terra em regiões
remotas, cheio de malária, com muitos problemas e totalmente
inviáveis. O pessoal acaba muitas vezes indo, por estar cansado de
tanto lutar.
De 10 anos pra cá há uma heterogeneidade maior nos gru-
pos que lutam por terra. Por isso muitos comerciantes também

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

querem terra e fazem acordos com movimentos para, em troca de


ajuda, receber terra. Isso complica muito. Outro componente des-
sa dinâmica atual são pessoas que não são clientes que inclusive
usam da violência e da força. Nós da CPT temos um extremo cui-
dado para ver e apoiar o que é legítimo e não apoiar o que não é
legítimo. Porque aqui nessa região tem tido casos de ocupação
super complicados.

P – Esse grupo da Liga dos Camponeses Pobres, que saiu


reportagem na Veja é um grupo assim ou não se sabe ao certo?
Essa organização é bastante nova e, pelo que estamos sabendo,
não seria isso. Ela seria formada por lavradores e gente da terra mesmo.

P – Mas que andam armados, com armas de fogo...


Eu não sei direito não, não sei... Tem que ver. O que sabe-
mos aqui na região, é pelo deputado federal do PDT, Geovani
Queiroz, que é testa de ferro desse processo. Ele é referência aí.
Inclusive agora foi pra imprensa dizer que os fazendeiros daqui, de
Tocantins e do Maranhão estavam se articulando para defender suas
terras – aquele discurso eterno que esse pessoal tem. O dado novo
é o processo de articulação que eles estão procurando construir mais
amplamente. No discurso deles todo mundo que luta por terra é
gente desse perfil aí: gente que não é cliente, que usa arma etc., o
que não é verdade, pois são coisas residuais. E mancha toda a luta
da terra. Inclusive, tem um jornal da região de Redenção, que tem
o controle do sindicato rural, chamado A Folha de Carajás, que é
virulento.
Teve um período, há uns 3 anos, fizeram uns ataques e ana-
lisaram que se acabarem com o Frei Henry o saldo pra eles vai ser
negativo, pois vai ter muita repercussão. Aí buscam outra forma
de ir contra a atuação da CPT. Uma forma é desqualificar a atuação
e a pessoa dele. Há 3 anos os fazendeiros foram para a imprensa e

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

fizeram muitos ataques sobre a atuação do Frei Henry. O problema


era mais do trabalho escravo.

P – Inclusive, estava falando com o James Simpson, do Sin-


dicato Rural de Marabá, e ele disse que não há definição do que é
trabalho escravo e que qualquer coisa pode ser encarada como
trabalho escravo.
Imagina, é piada ouvir uma afirmação dessas. O artigo 149
do código penal fala disso. Depois tem outra lei que o mesmo arti-
go foi atualizado. O trabalho escravo inclui a condição degradante
das relações de trabalho. Ainda mais agora, recentemente, que houve
o caso no Pará da Fagrisa. Houve muito barulho na imprensa. Mas,
os parlamentares disseram que temos que mexer no conceito, pois
houve abuso, houve excesso no caso da Fagrisa. Tem elementos que
caracterizam de maneira bem explícita o que é trabalho escravo.
No jornal de Marabá os fazendeiros disseram que trabalho escravo
no Brasil é ficção. Isso faz parte de um discurso para poder
desqualificar a atuação da equipe móvel do governo.

P – Tirando um pouco o foco dos sem-terra, como pode ser


encarada a luta dos pequenos proprietários, que muitas vezes não
possuem terra suficiente para sobreviver? Todos falam dos sem-
terra, mas esquecem os pequenos que também sofrem na luta por
mais terra.
Na região sul e sudeste do Pará existem mais de 400 assen-
tamentos, que proporcionalmente no Brasil, é a região que mais
tem assentamentos. Só em Conceição do Araguaia, para onde
estamos indo agora, são 40 assentamentos. Então, é um número
muito grande. Depois que o pessoal consegue a desapropriação e a
criação de um projeto de assentamento...

P – Quase todos pela Fetagri?

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Aqui ou acolá teve a ajuda da CPT. Quanto à organização


dos trabalhadores, quando eles apoiam é de forma tímida. Muitos
grupos se reuniram espontaneamente. Quando começaram a apa-
recer os problemas, o sindicato era quase que obrigado a se
posicionar. Alguns de forma mais ativa outros de maneira mais
distante. Nessa região, os grupos que surgiram foram espontâneos
que foram se criando no jeito deles. No município de Conceição o
sindicato teve um papel muito importante na questão da terra. O
sindicato ficou sob intervenção da ditadura militar por 12 anos. O
pelego, que era um militar reformado, colocado pelos fazendeiros
e militares como presidente do sindicato dos trabalhadores rurais,
na gestão dele ele ia lá ajudar a polícia a despejar os posseiros.
Em 1985 os trabalhadores conseguiram recuperar o sindica-
to na mão deles. Antes de 1985, em Conceição, havia 4 ocupações.
Uns 2-3 anos depois já eram 16, com o apoio do sindicato, com o
início da Nova República.

P – No regime militar houve menos mortes. Talvez a re-


pressão dificultava a ocupação de terra. Você acha que a explica-
ção do aumento de mortes na democracia, onde a repressão não
era tão forte como no regime militar procede?
Sim, acho que procede. O Sarney vivia na mídia prometen-
do reforma agrária e não deu. Quando a desapropriação é realizada
em terras griladas a União perde muito dinheiro. No estado do
Pará quando Jader Barbalho era ministro extraordinário da refor-
ma agrária, o que teve de fazendeiro que se beneficiou com o
superfaturamento das propriedades. Os preços foram lá pra cima.
No Brasil todo o debate sobre a democratização da terra tem que
ser feito levando em conta outros fatores e não somente a terra,
como infraestrutura, crédito, apoio técnico. É muito dramático o
que vem acontecendo. Na Amazônia, o modelo que os militares
implantaram foi para beneficiar os interesses do grande capital mais

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

e mais. A atividade econômica era o gado. Isso tinha impacto am-


biental e impedia que outros tivessem terra, já que havia a concen-
tração da terra. As políticas públicas foram na lógica da atividade
do gado.

P – Mas os militares chamaram muito a migração pra cá,


tanto dos grandes como dos pequenos.
Então, os pequenos vieram em busca de melhora, isto é, de
terra. Muitos vieram por causa dos garimpos, mas a maioria em
busca de terra. Os pequenos também entraram na lógica do gado.
Ora, o gado numa terra de 20 alqueires ou de 10 é inviável ao
sustento. Nos anos 80 o INCRA atribuía um módulo a 20 alqueires
e hoje em dia um módulo equivale a 10 alqueires. No Pará, com a
quantidade de terras que tem, o INCRA teve o descaramento para
entregar ao lavrador 4, 5 alqueires. Baixou de 20 para 5 alqueires.
O problema são os filhos e a qualidade de vida deles. Portanto,
para um pequeno produtor viver só do gado é totalmente inviável
e insustentável. Tanto para corte quanto para leite. Aqui na região
está a Leite Bom. Pagam por litro de leite R$0,30, o que é insufi-
ciente para viver. A renda não dá pra repor o rebanho, manter o
pasto, melhorar a genética.
No geral, a situação dos assentamentos é preocupante. Tem
muita inadimplência dos bancos. A renda do gado é muito limita-
da. No começo os trabalhadores tinham a roça e depois jogavam
capim. E aí tinha todo um discurso do INCRA nas terras ocupadas
dizendo que quanto mais serviço você tiver na terra, você vai estar
afirmando mais seu direito a ela, pois dará um destino produtivo.
Mais serviço era mais capim. Aí veio o crédito para gado. Não se
discutia uma produção sustentável e diversificada. Mas, a CPT dis-
cutia que reforma agrária não é só o acesso a terra, pois muita gen-
te conseguiu a terra. O problema é garantir por gerações a
permanência.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Até acontece que alguns trabalhadores ganham a terra com


o intuito para vendê-la. As políticas públicas eram voltadas e até
hoje são voltadas para essa matriz do modelo econômico baseado
no gado. Agora está vindo o incentivo para a produção do
agrocombustível, do biodiesel, do girassol etc. Tudo isso está em
teste ainda. É um suicídio ao trabalhador rural sair do gado pra
entrar nisso. Existe uma lógica de estar subordinando as atividades
econômicas dos pequenos ao grande capital.
Tem um volume de dinheiro absurdo que será destinado à
plantação de girassol (sendo que há um mês era a mamona). A
coisa seria mais pros grandes mesmo. O incentivo vai na direção da
monocultura. Para um pequeno investir nisso, ele arcará com os
riscos de que pode não dar certo. E aí vai pro brejo.

P – Você não acha que, ao invés de se plantar cada um em


sua terra, o melhor seria criar um espaço coletivo para que haja
uma diversidade e que todos participem e arquem com o lucro ou
prejuízo juntos?
A experiência aqui no Brasil vai no sentido de cada um ter
seu pedaço de terra. Talvez em alguns momentos no processo de
produção poderiam ter experiência conjunta de terra. A isso, exce-
tua-se os grupos tradicionais como os quilombolas, ribeirinhos
principalmente. O pessoal que vive no serrado há tempos tem uma
herança do passado. Mas, os trabalhadores de uma maneira geral
querem sua terra. Pode-se perguntar porque o MST não se formou
em Conceição. Porque eles transportaram o modelo lá do sul com
essa mentalidade coletiva. Aqui não funcionou. Entraram numa
terra e utilizaram a terra coletivamente. O resto da fazenda ficou
livre. Aqui na região se criou uma cultura da ocupação da terra,
através da experiência dos posseiros. E ocupar significa cada um
ocupando seu lote e trabalhando, plantando para inclusive garan-
tir seu direito de posse. Daí deu um conflito entre o movimento

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

sem-terra e os individuais (como eram chamados pelo MST). Esses


individuais iam recortando os lotes. Duas áreas que o MST ocupou
com essa visão não funcionaram. Eu lembro que eles refletiram
muito. Aqui na região tem uma cultura e cultura não se recria por
decreto de um dia para noite. É um processo. O MST tem que
partir da dinâmica que está posta. A relação com a terra é muito
complexa quando se dá de maneira coletiva. E essa aqui é uma
região de fronteira que tem grande disponibilidade de terra, que é
bem diferente do sul brasileiro, onde está bem determinado.

P – Como foi a criação da CPT?


Ela foi criada em 1975, a partir da realidade da Amazônia.
Todo o processo de ocupação desordenada e predatória que estava
começando a existir aqui na Amazônia. Algumas igrejas particula-
res começaram a atuar, também no nordeste do Mato Grosso em
Dom Pedro Casaldálica, como a Cegrec lá do Acre, e alguns bis-
pos, padres e leigos da Amazônia ilegal na medida que começaram
a surgir conflitos e trabalho escravo também. Viram a necessidade
de criar uma pastoral específica, que na época se denominavam os
pobres da terra.

P – E já existia em outros países algo semelhante?


Eu acho que não. A CPT foi pioneira. Na Guatemala foi
criada uma Pastoral da Terra, como forma de contribuir com nuestros
hermanos.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

Fechamento
A desigualdade, tanto de terra, como de renda, podem fazer
a diferença quando nos referimos à violência ocasionada por meio
de disputas de terra que resulta em morte. Ela aumentaria o risco
de morte agrária. A pobreza também vai na mesma direção.
Argumentava-se a respeito da ligação entre as variáveis, mas
não se testou empiricamente a associação delas com dados para
todo o país, e levando em consideração as variáveis agrárias, como
dever-se-ia fazer, já que os elementos a serem observados e analisa-
dos residem no campo.
As descobertas empíricas são relevantes para que políticas
públicas adequadas, diferentes das que haviam sendo tomadas até
o momento, sejam levadas a cabo e consigam produzir resultados
positivos de redução do risco de morte agrária.
As ‘versões pessoais’ e relatos das entrevistas que foram rea-
lizadas dão uma melhor compreensão à nossa variável a ser explicada,
ou seja, a violência agrária, fazendo-nos considerar as posições de
vários lados involucrados nesse conflito que causa morte.
Esperamos que, tanto por meio dessa investigação como das
entrevistas apresentadas, o leitor possa tirar sua própria conclusão
a respeito de possíveis soluções a serem tomadas por intermédio de
políticas públicas do Estado brasileiro em suas diferentes esferas,
seja federal, estadual ou municipal, para que o risco de mortes
resultantes de conflitos de terra no país seja reduzido ao máximo.
De qualquer maneira, entender os números e as categorias
diversas de camponeses que sofrem e morrem em conflitos agrári-
os e suas possíveis razões, auxilia na resolução do problema. Sem as
dimensões desse problema e os especificamente afetados por con-
flitos agrários, seria difícil criar políticas que pudessem reduzir
esse tipo de violência. O intuito desse livro, além de fazer o leitor

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

compreender tal questão, conduz à criação de políticas públicas


que possam reduzir o risco de morte agrária.
Juntamente com a redução da violência no campo, a avalia-
ção das políticas de desconcentração de terra por meio da substi-
tuição de latifúndios por unidades de agricultura familiar e a de
redução da pobreza e da desigualdade de renda em zonas rurais, é o
alvo do livro e o tema de discussão para a melhoria dos índices
socioeconômicos e redução da violência nos conflitos de terra.
A mídia, nas últimas décadas, retrata o drama de muitos
milhares de famílias de camponeses que ocupam terras, suposta-
mente improdutivas, para poder cultivar seus próprios alimentos e
não perecer. O direito à propriedade, quando ela não é resultado de
grilagem, faz ecoar um problema entre os que muito possuem e os
que nada (ou muito pouco) possuem. Esse livro tenta mostrar dife-
rentes lados entre a desigualdade e a pobreza frente ao direito de
propriedade e frente ao preenchimento do vácuo estatal para que
se possa resolver os problemas pendentes das necessidades básicas
de seus cidadãos e dos direitos de uns que colidem com direitos de
outros. Nosso objetivo principal é reduzir as vítimas desses confli-
tos por terra, em um país de dimensões continentais e rico em
recursos naturais e humanos, que não deveria presenciar tais
imbrólios.

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Artur Zimerman - Terra manchada.pmd 224 18/3/2011, 16:02
ANEXO I – Explicação das categorias da Tabela 3 - Parte I.
Assassinatos agrários entre 1985 – 2005 por município:
Profissão/Categoria

1. Advogado, administrador, agrimensor, ecologista, funcionalismo público


(inclui técnico, guarda florestal), funcionário de ONG, imprensa;
2. Assentado: Indivíduo alocado pelas autoridades a um pedaço de terra (ge-
ralmente após reforma agrária);
3. Garimpeiro: explorador de metais preciosos;
4. Índio (incluso quilombola – negro descendente de escravo que ainda vi-
vem em antigos quilombos);
5. Líder de movimento ou comunitário/cooperativa (inclui coordenador);
6. Outro: Todas as outras ocupações que não se encaixam nas definições en-
contradas nesse índice ou não há informações disponíveis (inclui também
criança, pescador, motorista, tratorista, metalúrgico, comerciante, fotó-
grafo, agregado, doméstica, vaqueiro, policial – só os que se negam a cum-
prir ordens da polícia/justiça e são mortos);
7. Pequeno arrendatário: cultiva um pequeno espaço de terra em troca de
aluguel fixo ou variável, em dinheiro ou produtos (inclui colono e meeiro
– agricultor que cultiva a meias com o proprietário do terreno);
8. Pequeno proprietário: possui pequena propriedade de terra (inclui peque-
no produtor, lavrador, agricultor, ribeirinho, proprietário);
9. Político (das esferas municipal, estadual ou federal);
10. Posseiro: indivíduo que ocupa uma terra devoluta (desocupada; inabitada);
11. Religioso: pessoa que pertence a uma ordem ou instituto religioso (inclui
padre, pastor, freira, e afins);
12. Sindicalista: pessoas ligadas a sindicatos que defendem trabalhadores ru-
rais, seja presidente, dirigente, ou funcionário, STR ou outro, de natureza
semelhante;
13. Trabalhador Rural: Assalariado da zona rural (inclui funcionário de fazenda,
peão – indivíduo que amansa cavalos, burros e bestas –, boia-fria – trabalha-
dor rural sem vínculo a nível de emprego, que come no local de trabalho a
comida fria que leva de casa, canavieiro, palmiteiro, seringueiro);
14. Sem-terra em geral – trabalhador rural que não possui a terra em que vive
e trabalha, inclusive sitiante.

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Artur Zimerman, Terra Manchada de Sangue

ANEXO II - Parte I

Mapa n.1 – População rural, ano 2000, e os municípios mais perigosos


(40) sobre conflitos agrários entre 1985 – 2005. Os números nos círculos verdes
representam as mortes agrárias (6 – 59) em cada um dos 40 municípios mais
perigosos1.

Fonte: PNUD/IPEA/Fundação João Pinheiro (2007) para o ano de 2000.

1
Municípios que tiveram entre 1 – 5 mortes agrárias entre 1985 – 2005 não estão
incluídas nesse mapa.

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Coletânea de entrevistas sobre a luta pela terra na região do Brasil onde mais se mata

LIVRARIA HUMANITAS/DISCURSO HUMANITAS – DISTRIBUIÇÃO


Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária
Cidade Universitária 05508-080 – São Paulo – SP – Brasil
05508-010 – São Paulo – SP – Brasil Telefax: 3091-2920
Tel: (11) 3091-3728 / Telefax: (11) 3091-3796 e-mail: humanitas.disc@usp.br /
e-mail: livrariahumanitas@usp.br editorahumanitas@usp.br
http://www.editorahumanitas.com.br

Ficha técnica

Mancha 10,5 x18,5 cm


Formato 14 x 21 cm
Tipologia Garamond 3 12 e Geometr231 Lt Bt 20
Papel miolo: Off-set 75 g/m2
capa: supremo 250 g/m2
Impressão e acabamento GRÁFICA DA FFLCH
Número de páginas 226
Tiragem 500 exemplares

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