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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

LUANA NASCIMENTO AFONSO DE MELO


TWANNY LUCIA MACÊDO DA SILVA

SobreViventes do Abuso Sexual:


as sequelas desta violência na vida de mulheres
adultas e a Resiliência como estratégia de
intervenção frente a lacuna da Política Social

Recife
2009
1

LUANA NASCIMENTO AFONSO DE MELO


TWANNY LUCIA MACÊDO DA SILVA

SobreViventes do Abuso Sexual:


as sequelas desta violência na vida de mulheres
adultas e a Resiliência como estratégia de
intervenção frente a lacuna da Política Social

Monografia apresentada ao Departamento do


Curso de Serviço Social, da Universidade
Federal de Pernambuco, como exigência
para obtenção de Grau de Assistente Social,
orientada pela Profª. Dra. Fátima Lucena.

Recife
2009
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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que contribuíram para minha formação pessoal e profissional, às


pessoas que viabilizaram meus estudos, às pessoas que passaram pela minha vida
e me deixaram algo de bom, me ensinaram, acreditaram, trouxeram felicidade, as
fases difíceis, e aos meus amigos.
Agradeço a alguma força que ‘parece’ reger tudo.
Agradeço, ainda, a algumas pessoas importantes de minha vida:
À minha Mãe Luzinete, pela força e simplicidade.
À Tia Jane, pela amizade e alma de criança.
A Diego pelo companheirismo, compreensão e abrigo.
Aos Tios Sérgio e Jean Claude pela cumplicidade.
Às Ginas (Camila Vieira, Janice, Luciana, Alice, Magaly e Raquel) pelos sorrisos.
À Twanny pela parceria.
À Fátima Lucena pela orientação e força.
Ao meu irmão Wagner pela filosofia dos “Passos de Gueixa” já que na vida sempre
encontramos dificuldades, obstáculos... Bem como o poeta já dizia “Tinha uma pedra
no meio do caminho”...
Mas às vezes essas “pedras”, chamadas vulgarmente de problemas, não estão no
caminho e sim estão em nós mesmos! As vezes nos tornamos essa “pedra”.
Diante dá dúvida, dá ansiedade ou do medo do que não conhecemos... do novo!
Não conseguimos “sair do lugar”... travamos...
Deixamos, assim, oportunidades passarem, e presos por nos mesmos ficamos
imóveis feito pedras.
Um dia conversávamos, e meio sem querer surgiu uma “espécie de filosofia”, que
utilizamos até hoje! Percebemos que diante de uma dificuldade em que não temos
coragem de seguir em frente, onde ficamos enraizados no nosso medo, damos
pequenos passos dados no momento certo...
Pequenos passos em nosso momento... aquele momento que só cada um pode
dizer qual é...
Aos poucos íamos vencendo o medo que tínhamos criado.... o enfrentamos em
pequenos passos, como uma gueixa.
Com esses “pequenos passos” aprendemos a cada vez ir um pouco mais longe... no
inicio até a “porta da frente”... e aos poucos até a “esquina” .... sempre indo mais
longe nem que seja apenas mais um pequeno passo....começamos a superar
nossos próprios limites a passos de gueixa.
Bom, com o pouco que aprendi nessa vida percebemos que não devemos desistir
nunca dos sonhos... mas sim lutar por eles... acreditar.... nem que seja um pequeno
passo de cada vez....

Luana Nascimento Afonso de Melo


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AGRADECIMENTOS

À VIDA que através da sua complexa rede de vivências, interações e sentimentos,


me possibilitou apreender os mais diversos conhecimentos e a me construir
enquanto indivíduo e profissional em formação.
À minha mãe VÂNIA, que sempre me impulsionou a não desistir, me apoiou nos
momentos mais difíceis e me mostrou que podemos recomeçar e atingir nossos
objetivos. E ao meu pai JOSÉ PEDRO pela dedicação, sacrifício, investimento nos
meus estudos e pela busca incessante do seu aperfeiçoamento enquanto modelo a
ser seguido.
Aos meus irmãos TALITHA, pela orientação e suporte acadêmico; THAISLÂNIA por
ser meu porto seguro, estar atenta a todas as minhas necessidades e me fazer ver
que os desafios podem ser surpreendentes. A minha irmã TICHELLE pela sua
imensa compreensão, zelo e paciente escuta aos meus desabafos e conquistas; a
minha eterna companheira TILÂNDSIA pela cumplicidade, amparo e força. E por fim
ao meu irmão THOMAS pela sua sabedoria, racionalidade, conselhos nos
momentos mais decisivos da minha vida e pelos instigantes debates.
À toda minha família, avôs, tios e primos pela participação nas minhas mais ternas
vivências que foram tão importantes para a formação do meu ser social. Em especial
a minha tia DEIDE por compartilhar das dores e alegrias, pelo mútuo aprendizado,
amizade e amor a mim dispensados. E a DANILO pelo grande companheirismo,
ensinamentos, carinho, paciência e por ter sido tão importante em minha vida.
Aos meus amigos MARÍLIA, MESAQUE, JOEL e todos os outros que doaram um
pouco de si mesmos para participar dos meus problemas, das minhas experiências,
angústias, felicidades e prestaram assistência nas mais várias circunstâncias e
setores da minha vida.
À CAROL (in memorian) que me fez ver o inigualável valor e o verdadeiro sentido da
amizade, que sempre me deu forças para concluir a graduação de serviço social e
por me permitir desfrutar de momentos tão ricos e preciosos ao seu lado.
À LUANA que por meio de uma prazerosa parceria, compromisso, respeito à
diversidade de idéias, limitações e de um longo trabalho de construção e troca de
experiências; possibilitou o início e o fim deste trabalho de forma satisfatória,
orgulhosa e inesquecível.
À minha supervisora de estágio VANDERLÚCIA, que deixou marcas profundas a
partir das vivências do estágio, da sua disponibilidade e conhecimento em quanto
formadora de profissionais, por acreditar na minha capacidade e me fazer atingir e
ultrapassar os meus limites. Tenho certeza que devido a tudo isso a minha visão de
mundo hoje é outra e ela fará parte de uma profissional mais competente e
humanitária.
À nossa orientadora FÁTIMA LUCENA pelo direcionamento, conhecimento e
compartilhamento com a temática deste trabalho, possibilitando a realização do
nosso trabalho de conclusão de curso e o acréscimo a nossa bagagem teórica e
profissional.
À psicóloga ANÁLIA por todo suporte e conhecimento psicológico, contribuindo
decisivamente para a efetivação deste trabalho e para o meu desenvolvimento
pessoal.
A DEUS por que sem ele nada disso tudo seria possível.

Twanny Lúcia Macedo da Silva


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RESUMO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso, de Serviço Social, trata sobre a


violência/abuso sexual que perpassa a infância/adolescência da mulher e traz
sequelas para a vida adulta desta.
Trouxemos reflexões sobre a Política Social para a Mulher e novos conceitos como
Resiliência, que podem contribuir positivamente para o direcionamento das ações de
intervenção pública na vida das mulheres.
Entendemos a violência/abuso sexual como expressão das desigualdades de
gênero e poder, associada a transtornos psicológicos/mentais, cujo principal agente
é o homem, ocorrendo em várias fases da vida feminina.
Apesar de que, no discurso, a Política Social para a mulher ter como eixo a
superação das desigualdades de gênero e da violência, percebemos que as práticas
objetivas são precárias, em face da gravidade e complexidade das questões
referidas.
Esta violência silenciada traz profundas e dolorosas consequências para a vida da
mulher nas esferas privada e pública, principalmente, quando a violência envolve
familiares como agressores abusivos.
Este problema de saúde pública requer atenção, informação e conscientização a
necessidade de enfrentamento e prevenção por parte dos profissionais de saúde e
da sociedade, em geral.
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RÈSUMÉ

Ce texte, qui est le Travail de fin d’Études de Service Social, aborde le cas de la
violence et de l’abus sexuel qui se passent durant l’enfance et l’adolescence et
apportent des séquelles à vie à la femme adulte.
Nous présentons des réflexions qui traitent de la Politique Sociale pour la femme et
des nouveaux concepts comme la Résilience, qui peuvent contribuer positivement en
une bonne direction d’actions d’interventions publique dans la vie de ces femmes.
Nous entendons la violence / abus sexuel comme expression des inégalités de
« genre et pouvoir », associée à traumatismes psychologiques / mentaux apparus à
plusieurs phases de la vie féminine, où le principal agent est l’homme.
Dans le discours, la Politique Sociale pour la femme doit avoir comme axe les
dépassements des inégalités de genre et de la violence subie. Malgré ce discours,
nous constatons que les pratiques objectives sont fort précaires, face à la gravité et
la complexité des cas.
Cette violence, en silence, produit des profondes et des douloureuses conséquences
pour la vie de la femme, aussi bien dans la sphère privée que publique, c’est-à-dire
principalement, quand la violence englobe des membres de la famille comme
agresseurs abusifs.
Ce problème de santé publique demande en général attention, information,
conscience, nécessité de prise de position et préservation, de la part des
professionnels de santé et de la société.
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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
2. Gênero, Desigualdade e Violência contra a Mulher .............................................. 10
2.1 A Mulher e as Relações de Desigualdade e Sexismo................................. 11
2.2 A Violência de Gênero contra a Mulher ...................................................... 15
2.3 A Violência Doméstica Sexual contra a Criança, o Adolescente e a Mulher
Adulta 23
3. O Tabu do Incesto e a Caracterização da Violência Sexual.................................. 30
3.1 O Tabu do Incesto....................................................................................... 31
3.2 Caracterização do Abuso Sexual Intrafamiliar/Doméstico ............................... 36
3.2.1 Desenhos: Forma de Expressar a Violência Sofrida ................................. 50
3.2.2 Caracterização do Agressor ...................................................................... 57
4. As Consequências Biopsicossociais do Abuso Sexual na Vida da Mulher e a Rede
Virtual de Apoio ......................................................................................................... 59
4.1 As Consequências Biopsicossociais da Violência Sexual na Infância e na
Vida Adulta da Mulher ........................................................................................... 60
4.2 A Rede Virtual de Apoio e os Depoimentos de Mulheres Sobreviventes do
Abuso Sexual......................................................................................................... 66
5. Reflexões sobre Resiliência, Política Social para a Mulher Sobrevivente da
Violência do Abuso Sexual e o Serviço Social .......................................................... 79
5.1 Uma Reflexão sobre Resiliência ...................................................................... 80
5.2 A Política Social e a Realidade da Rede de Apoio à Mulher Sobrevivente da
Violência do Abuso Sexual na Cidade do Recife ................................................... 85
5.3 A Contribuição deste Estudo para o Trabalho da (o) Assistente Social ........... 91
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 96
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 97
ANEXOS ................................................................................................................. 103
7

“Na medida em que se investiga, modifica-se a realidade


e quando se intevém, se produz conhecimentos”.
(BARISON, 2008)
8

1. INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso de Serviço Social tem como


objetivo analisar a política social para a mulher sobrevivente da violência sexual,
buscando mapear os serviços que priorizem a atenção à mulher sobrevivente no
Recife e compreender as consequências do abuso sexual na vida adulta das
mulheres e as suas demandas por serviços de atenção através de políticas sociais
contra a violência.

Assim, enfocamos a temática da violência sexual sob o olhar da mulher


vitimizada sexualmente na infância/adolescência e que, na vida adulta, demanda
políticas sociais voltadas ao enfrentamento à violência de gênero.

Para fomentar este estudo, realizamos pesquisa bibliográfico-documental


sobre diversos autores que já haviam estudado o tema da violência, do abuso sexual
e da política social. Realizamos, também duas entrevistas semi-estruturadas com
um médico ginecologista do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros –
CISAM, referência no atendimento à mulher no Recife, e com a Gerente Municipal
de Saúde da Mulher, para entendermos as consequências da violência e como se
dá a implementação da Política Social para a Mulher no Recife.
Recorremos a depoimentos escritos por duas mulheres vítimas de violência
sexual na infância, que se dispuseram a contribuir com nosso estudo, e a outros
depoimentos disponíveis em sites de relacionamento na internet.

No primeiro capítulo, tratamos sobre as relações de desigualdade, violência,


poder e gênero que envolvem a violência contra a mulher.
No segundo capítulo, analisamos a questão do tabu do incesto e a
caracterização da violência sexual a partir da produção desenhos de crianças que
foram vítimas de violência sexual e, finalmente, discutimos sobre o perfil do
agressor.
No terceiro capítulo, abordamos as consequências biopsicossociais, a curto e
longo prazo, da violência sexual na infância/adolescência sobre as crianças,
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adolescentes e mulheres, bem como apresentamos depoimentos de mulheres que


foram vítimas de violência sexual.
No quarto capítulo, discutimos sobre a Política Social para a Mulher à luz do
conceito de Resiliência vislumbrado como estratégia de intervenção e, ainda, as
contribuições que nosso estudo trazer aos profissionais de Serviço Social para uma
nova visão da política e das usuárias.
10

2. Gênero, Desigualdade e Violência contra a


Mulher

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”


(Simone de Beauvoir)
11

2.1 A Mulher e as Relações de Desigualdade e Sexismo

A definição do ser feminino não é algo natural da mulher, intrínseco a esta. É


uma noção construída socialmente, a partir de diferenciações biológicas,
características, atribuições, divisões sexuais de papéis, crenças culturais, e normas
condicionadas por um contexto – econômico, político, ecológico e social.
A palavra mulher deriva de FEMINA (feminina), em latim e significa “a menos
crente”. Homem, também, originária do latim, é uma palavra que significa HUMUS (o
que vem da terra).
A divisão de papéis da concepção de homem e de mulher, segundo Saffioti
(2004), teria começado ainda nos tempos primitivos, a partir da divisão sexual do
trabalho, onde certas características tornariam um mais propício do que o outro a
desempenhar uma determinada atividade.
Assim, coube à mulher as tarefas relacionadas à educação da criança e
afazeres domésticos, e coube ao homem atividades relacionadas à caça, a lutas em
conflitos e outras atividades que não poderiam ser feitas por mulheres, uma vez que
o porte físico destas é, em média, menor que o dos homens e elas precisam
amamentar. (SAFFIOTI, 2004)

Toledo (2001) acrescenta, ainda, que em algumas tribos as mulheres


realizavam a pesca, assim como todo o processo necessário a esta atividade, feito
por meio da criação e confecção de instrumentos; além de se responsabilizarem
pela troca dos peixes com as demais tribos, por outros alimentos. Ao longo da
história das chamadas sociedades de classes ocorreram diferentes caracterizações
do trabalho da mulher como sendo produtor de valores de uso, enquanto que o
trabalho do homem produziria valores de troca. A autora afirma, ainda, que por
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haver maior valorização da produção de valores de troca, sobre a produção de


valores de uso, o trabalho masculino se sobrepunha ao feminino.
Ou seja, a mulher passava a trabalhar para o marido, através dos serviços
domésticos, controlando esta produção e seus objetos de trabalho. Já o homem,
atuava fora do ambiente doméstico, com a troca, aquisição de produtos e
propriedade, tendo controle sobre os meios de produção. (TOLEDO, 2001)
Percebemos que a mulher tem no trabalho doméstico uma forma de
alienação, por trabalhar em algo que, quase sempre, não é visto na sua objetivação.
Tantas vezes é invisível e somente se vê ao deixar de ser feito.
Ela trabalha para a manutenção e reprodução da força de trabalho familiar,
para que a produção fora do lar se objetive, muitas vezes pelo trabalho do homem,
já que o trabalho da mulher fora de casa é quase sempre visto como complementar
ao do homem provedor. Uma vez que este é separado do produto do seu trabalho –
já que na sociedade capitalista o operário nem sempre tem consciência do processo
total de sua produção – a mulher que tem o homem como intermediário do produto
final, e só vê a objetivação do seu trabalho através do produto produzido pelo
homem, torna-se duplamente alienada. (TOLEDO, 2001)

Sendo assim, o homem começa a deter mais relações de força e poder que a
mulher, a partir da idéia que valoriza quem se torna provedor, tendo, ainda, a
“liberdade” de vender sua força de trabalho. O trabalho do homem seria também
mais valorizado por sua objetividade e concretude, enquanto que o trabalho feminino
doméstico estava centrado na subjetividade, ligado à sustentação e reprodução da
força de trabalho do homem. (TOLEDO, 2001)

Hirata e Kergoat, em uma análise ainda mais contemporânea e sintética sobre


a divisão sexual do trabalho, definem:
“A divisão do trabalho entre os homens e as mulheres é em primeiro lugar a
imputação aos homens do trabalho produtivo – e a dispensa do trabalho
doméstico – e a atribuição do trabalho doméstico às mulheres, ao passo que
são cada vez mais numerosas na nossa sociedade salarial a querer entrar e
se manter no mercado de trabalho.” (HIRATA & KERGOAT, 2007, p.595-609)

Entendemos, então, que a origem da opressão da mulher, assim como do


trabalho desta, está no nascimento da divisão sexual do trabalho, da propriedade
privada, na exploração da força de trabalho e, por conseguinte, na divisão de
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classes sociais – originada desse processo de exploração e apropriação privada,


que separou os que detinham os meios de produção e se apropriavam do trabalho
alheio, daqueles que vendiam à força de trabalho a baixo custo, gerando uma
sociedade de desigualdades.
A opressão, segundo Toledo (2001), serve a um interesse determinado e
difere da exploração. A opressão é algo cultural e social, dá origem à situação de
discriminação e atinge as mulheres das mais variadas classes sociais, podendo ter,
ainda, efeitos econômicos de maior ou menor impacto. Já a exploração é um fato
econômico e origina a divisão da sociedade em classes.

Concordamos, então, com Toledo (2001) ao afirmar que “a existência de


setores oprimidos e marginalizados” é proporcional ao crescimento da barbárie
capitalista, sendo resultado de um sistema econômico que se baseia e se nutre na
desigualdade, na divisão, e na exploração, “na pilhagem e submissão de milhões e
milhões de seres humanos, ao concentrar toda riqueza produzida pela sociedade em
poucas mãos, o sistema marginaliza milhões de pessoas”, valendo ressaltar que
52% desta população afetada é feminina (de acordo com dados da ONU em 2009).
Esta opressão, fruto de um processo histórico, é introjetada e cultivada
através das práticas cotidianas, da cultura, dos costumes e, sobretudo, a partir das
necessidades econômicas de sobrevivência, que interferem na construção do ser
feminino e do ser masculino. (TOLEDO, 2001)

Segundo Turner (1999) e Fonseca (1996), as meninas são criadas se


espelhando em condutas que reforçam essa opressão, a partir da idéia de serem
frágeis, “suaves”, capazes de desempenhar papéis mais passivos, emotivos,
intuitivos, observadores, de caráter doméstico e nutricional. Enfim, as mulheres
teriam a função de cuidadoras na sociedade.
Já os meninos são estimulados a utilizar a razão, a ter um comportamento
mais agressivo, competitivo, a ser o provedor da família. Essas definições vão sendo
introspectadas nas brincadeiras, como “menina brinca de boneca” e “menino de
carrinho”; nas frases como “homem não chora” e “isso não é trabalho para uma
menina/mulher”, e na idéia de que a mulher nasceu para ser mãe e o homem para
ser o provedor da casa e aquele responsável por todas as pessoas que moram nela.
(TURNER, 1999; FONSECA, 1996)
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Concordamos que essas práticas vão se refletir nas escolhas da profissão,


sugerindo profissões predominantemente femininas e masculinas. É ainda nos
grupos familiares tidos como de âmbito privado, onde se tem uma maior percepção
das expressões das relações de poder e construção das funções tidas como “do
homem e da mulher”. Esses fatores são agravados frente à sociedade de traços
patriarcais, onde o “pai de família” tinha direito absoluto sobre as filhas, mulher e as
amantes. Vê-se que ainda hoje há uma grande resistência na desconstrução desse
pensamento da posse do homem sobre o sexo feminino. (TURNER, 1999;
FONSECA, 1996)

O capitalismo cultiva essa ideologia de diferenciações, interiorização,


discriminação, pois, quanto mais houver grupos vulnerabilizados, fragmentados,
desorganizados e naturalizados com as condições que lhes são impostas torna-se
mais fácil a manipulação e submissão à exploração.
Na sociedade dividida em classes sociais e em luta, as mulheres perdem o
foco da luta contra o que, realmente, lhes oprime e explora. Assim sendo, combatem
apenas as manifestações das conseqüências, perdendo de vista a necessidade de
lutar coletivamente contra a desigualdade social, intrínseca à sociabilidade
capitalista.
Diante do exposto, percebemos que na nossa sociedade as relações entre os
homens e as mulheres são permeadas por desigualdades, e entre as inúmeras
manifestações de desigualdade temos o sexismo.
O sexismo, segundo a Sempreviva Organização Feminista - SOF, consiste na
subordinação de um sexo em relação ao outro, ou seja, privilegia um gênero em
detrimento de outro, mais comumente relacionado à subordinação da mulher em
relação ao homem, o qual mantém sobre esta uma relação de poder sócio-cultural, e
economicamente construído. Nesta relação de sexismo se instaura a violência
sexista, através da qual a mulher é tratada como objeto e dominada pelo homem por
meio de pressão psicológica, maus tratos físicos, uso da força física e verbal,
ameaças e coerção múltipla.
15

2.2 A Violência de Gênero contra a Mulher

Para compreendermos a violência de gênero contra a mulher é preciso


pensar na violência de uma maneira geral. Não queremos, pois, resumir a violência
a um único parágrafo, diante da gama de possibilidades de entendimento, mas sim
iniciar nossa reflexão sobre a temática da violência contra a mulher.

Segundo Chauí (1985) a violência é

“uma realização determinada das relações de forças tanto em termos de


classes sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a
violência como violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos
considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de
uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de
desigualdade, com fins de dominação, de exploração e opressão. Isto é, a
conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre
superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano
não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela
passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a gala de
outrem são impedidas ou anuladas, há violência”.(CHAUÍ,1985)

Concordamos com Chauí, e acrescentamos o entendimento sintético da


Organização Mundial de Saúde e do Dicionário Houaiss (2001) que tratam a
violência como o ato de violentar, através de força física, moral ou psicológica
alguém, ou ainda, causar constrangimento, obrigar, submeter ou coagir alguém à
vontade de outrem. É, ainda, impor certo grau de sofrimento ou dor que seja
evitável.

Entendemos que a violência de gênero é intrínseca às relações sociais


existentes entre homens e mulheres, a partir das contribuições teóricas que se
seguem.
16

Para compreendermos a categoria gênero, para além da concepção de


masculino e feminino, trazemos que, segundo Saffioti (2004)
“embora se interprete gênero como um conjunto de normas modeladoras dos
seres humanos em homens e em mulheres, normas estas expressas nas
relações destas duas categorias sociais, ressalta-se a necessidade de
ampliar este conceito para as relações homem-homem e mulher-mulher (...)”
(SAFFIOTI, 2004, p. 70)

Somando a concepção da autora, concordamos, também, com Vargas e


Meyen, ao compreendermos que:
“o sistema sexo/gênero é o conjunto de atitudes mediante as quais a
sociedade transforma sexualidade biológica em produtos de atividade
humana e através da qual estas necessidades são satisfeitas. Não é então só
uma relação entre mulheres e homens, mas um elemento constitutivo das
relações sociais em geral que se expressa em símbolos, normas,
organização política e social, e nas subjetividades pessoais e sociais”.
(VARGAS e MEYEN apud TOLEDO, 2001, p. 29)

Somente a partir dos anos 1960 e 1970, através de mobilizações feministas


em suas lutas os estudos sobre a mulher se ampliaram e, posteriormente, sobre o
gênero. A partir daí, a temática começou a ocupar cada vez mais, os espaços
acadêmicos e teve início o estudo da violência de gênero. (TOLEDO, 2001)

Para Saffioti (2004), a violência de gênero consiste na violência contra a


mulher que abrange ainda crianças e adolescentes de ambos os sexos, que são
vitimados pelos homens na atividade de patriarca. Ainda que as vítimas não se
rebelassem contra as normas impostas pelo impositor ou pela sociedade, normas
estas que “justificassem” o ato violento, estas, por sua vez, seriam alvos do processo
de dominação e exploração que compõe o significado do “ser homem” e da sua
auto-afirmação enquanto tal, através da coerção.

Várias são as formas de se expressar a violência de gênero e nem sempre


esta tem a sua personificação caracterizada num único homem, ma, muitas vezes,
podem se dar por meio de instituições sociais e de outras mulheres. Instituições
como a família e escola legalizam a violência quando legitimam ideias e
comportamentos carregados de preconceito, discriminação, negação de direitos e
atos violentos, ou ainda quando se mostram indiferentes à realidade que “naturaliza”
a violência de gênero.
17

A violência de gênero pode ser melhor vislumbrada por meio de exemplos


práticos da sua existência, sendo válido trazer não só situações contemporâneas,
mas de épocas passadas para mostrar que a sua prática está arraigada na
construção histórica de processos sexistas, como no trecho que segue

“no Brasil, sob o pretexto do adultério, o assassinato de mulheres era


legítimo antes da República. Koerner mostra que a relação sexual da mulher,
fora do casamento, constituía adultério – o que pelo Livro V das Ordenações
Filipinas permitia que o marido matasse a ambos. O código criminal de 1830
atenuava o homicídio praticado pelo marido quando houvesse adultério.
Observa-se que, se o marido mantivesse relação constante com outra
mulher, esta situação constituía concubinato e não adultério. Posteriormente,
o Código Civil (1916) alterou estas disposições considerando adultério de
ambos os cônjuges razão para desquite. Entretanto, alterar a lei não
modificou o costume de matar a esposa ou companheira.” (KOERNER apud
BLAY, 2003. p.1)

A exemplo da histórica visão machista e sexista presente na legislação


brasileira sobre a mulher, temos a violência de gênero no âmbito conjugal que só
recentemente vem sendo modificada. O seguinte texto de Noronha (2002), citado
por Teixeira (2004), que mesmo tendo sido construído tão recentemente, traz ideias
carregadas de machismo, autoritarismo e violência através do argumento do dever
da mulher de servir ao homem, cabendo a este, por sua vez, o direito e a obrigação
de “educá-la”, quando as ideias e ações desta não condizem satisfatoriamente com
os desejos do homem.

Para o referido autor, a finalidade do casamento seria a legitimação da


relação sexual, não podendo a mulher se opor a este fato sem uma justificativa
plausível aos olhos do marido, portanto, não seria aceitável o estupro entre
cônjuges, visto que
“as relações sexuais são pertinentes à vida conjugal, constituindo direito e
dever recíproco dos que casaram.O marido tem direito à posse sexual da
mulher, ao qual ela não se pode opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo
teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode furtar ao congresso
sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie.
A violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de
estupro, desde que a razão da esposa para não ceder à união sexual seja
mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder pelo excesso
cometido. [...] mulher que se opõe às relações sexuais com o marido atacado
de moléstia venérea, se for obrigada por meio de violências ou ameaças, será
vítima de estupro. Sua resistência legítima torna a cópula ilícita”. (NORONHA,
2002, p. 70 apud TEIXEIRA et al, 2004, p. 197)
18

Obviamente não concordamos com as ideias expostas pelo autor, já que


contrariam o direito que a mulher tem sobre seu próprio corpo, enquanto expressão
de sua liberdade e dignidade de ser humano.

Para Saffioti (2004), existem nesse contexto de opressão duas dimensões: a


da dominação e a da exploração, em que a primeira seria um processo de domínio
político, enquanto a segunda seria de cunho econômico. Com base no que
anteriormente já discutimos sobre o trabalho produtivo e reprodutivo.

A separação (obviamente de cunho ideo-político) pensada sobre a produção e


reprodução social ficou evidente no período de inserção da mulher no mercado de
trabalho fabril ao longo da Revolução Industrial (1770-1830) e ainda hoje, para servir
e atender às necessidades do capital. A partir da utilização de máquinas nos meio
de produção, a justificativa de que a mulher seria incapaz para o trabalho devido a
falta de força muscular sofreu um abalo. A mulher estaria agora “em pé de igualdade
com o homem”, podendo desempenhar as mesmas atividades, multiplicando o
número de assalariados, além do seu baixo custo e da maior lucratividade para o
capital. Uma vez que o trabalho da mulher seria considerado menos qualificado, a
mulher seria um ser inferior e desprovido de força física. (TOLEDO, 2001)

A inserção da maquinaria significou o suprimento de uma maior demanda por


artigos produzidos e, com isso, aumentou a necessidade de maior quantidade de
força de trabalho. A partir daquele período histórico, o trabalho da mulher (o mais
apropriado por oferecer um grande exército industrial de reserva a baixo custo) seria
amplamente explorado.

A convocação da mulher ao trabalho, segundo Toledo (2001), se deu como


parte de um processo que substitui trabalhadores qualificados por não qualificados,
adultos por crianças, e homens por mulheres. A autora ainda complementa que a
incorporação da mulher ao trabalho de cunho “social” foi condicionada pela
desqualificação do trabalhador, com o surgimento da máquina e destruição da
manufatura.
Isso pode ser percebido quando o valor salarial que antes era pago a um
único homem que sustentava uma família, posteriormente, passa esse valor a ser
19

distribuído entre outros integrantes, através do trabalho dos filhos e da mulher para
que seja possível continuar provendo as necessidades desta mesma família.

Pode ser demonstrado, também, no fato das mulheres, ao assumir uma dupla
jornada, como o trabalho doméstico e o assalariado, não conseguirem desempenhar
todos os serviços domésticos que antes realizavam, juntamente com os serviços de
consumo familiar (costurar, remendar, etc.) optando, assim, pela compra de
mercadorias industrializadas que não necessitariam de dispendioso tempo para
utilizá-las.

As atividades, como amamentar e cuidar dos filhos, que eram inevitáveis,


foram transferidas a outras trabalhadoras que tinham seus serviços alugados, já que
muitas trabalhadoras não dispunham de tempo livre e condições físicas para estes
cuidados maternais, por serem sobrecarregadas pelo trabalho em precárias
condições. Muitas mulheres tinham carga horária de 10 a 12 horas, em atividades
realizadas com água até os joelhos, como nas indústrias têxteis, que utilizavam
máquinas a vapor. Inclusive este distanciamento da mulher trabalhadora com os
cuidados domésticos e com os filhos vai contribuir para, posteriormente,
desmistificar o “instinto maternal”.
Elizabeth Badinter, filósofa francesa, em seu livro “Um Amor conquistado: O
Mito do Amor Materno” (1980) nos falou mais profundamente sobre tal “instinto
materno” enquanto mito coletivo e forma de dominação da mulher.

Percebemos diante destes exemplos clássicos, que a violência de gênero se


manifesta de diversas formas, sem que, até hoje, as mulheres se dêem conta, ou
que sejam diretamente atacadas pelo patriarca. (SAFFIOTI, 2001)

Concordamos que
"A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de
justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade
de se enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona como uma
imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se
funda: é a divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades
atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus
instrumentos; (...)" (BOURDIEU, 1998, pág. 15 apud SAFFIOTI, 2001. p.4)

Neste sentido, compartilhamos das ideias dos autores que afirmam que a
própria dominação e exploração da sociedade de traços patriarcais, consistem em
20

uma violência, que se dá por meio da adesão dos dominados, uma vez que esta
relação de opressão não é refletida por nenhuma parte, mas sim geralmente imposta
pelo sistema de produção e, assimilada como natural pela maioria. O que não
significa dizer que não se pode oferecer resistência ao sistema de dominação e
exploração de gênero e de classe. E isto as lutas sociais feministas e de mulheres
demonstram muito bem, ao longo da história das lutas do trabalho X capital.

Acrescentamos, ainda, os pontos relevantes e exemplos trazidos por Verardo


(1993), ressaltando como em vários casos de abuso sexual perpetrados contra as
mulheres, ou em outras formas de violência a que são submetidas, foi observado
grande grau de dificuldade destas se desprenderem de seus agressores, de
denunciá-los às instâncias da justiça, de dar continuidade ao inquérito aberto, e de
tornar pública a violência sofrida.
Segundo a mesma autora, esse quadro de dificuldades é composto pelo
sentimento de culpa, o julgamento de valores por parte da sociedade, e até por parte
da mulher alvo da violência, os sonhos e as expectativas de vida, as condutas
comportamentais preestabelecidas e os sentimentos dúbios em relação ao agressor
(que oscilam entre o amor e o ódio) bem como o sentimento de medo e de cobrança
de qual postura assumir ao se deparar com a violência, são problemas bastante
complexos para a mulher alvo da violência.
Como indicadores destes aspectos, Tereza Verardo (1993) vai basear-se na
história de vida dessas mulheres e no modelo educacional comuns a elas. Segundo
a mesma, a menina em sua formação é educada para ter como perspectiva o
casamento, sonhar com o “príncipe encantado de contos de fada”, e um lar feliz e
alegre, onde o homem a protegerá e a seus filhos.
Quando a mulher se depara com a quebra dos seus sonhos e desejos,
projetos investidos na relação e com a dura realidade da violência, se sente
despreparada para lidar com as frustrações e com a contradição do que lhe foi
passado, assumindo, em muitos casos, o papel de justificar as ações do seu
agressor. (VERARDO, 1993)
Esse modelo educacional a que a autora se refere, não é ensinado à mulher
apenas enquanto menina, mas a acompanha em sua adolescência. Segundo
Verardo (1993), com a primeira menstruação, a mulher passa a ter culturalmente o
reconhecimento de uma sexualidade até então negada, vivendo, ainda, a
21

contradição da menstruação como sinal de amadurecimento e como algo a ser


escondido, e suas marcas camufladas.
Verardo (1993) afirma que é durante essa fase que a mulher é desapropriada
do direito sobre o seu corpo quando lembra que a menstruação é também
denominada como “regra”, mostrando um corpo regrado e sujeito a regras físicas e
psicológicas que podem acarretar em penalidades caso sejam transgredidas. A
exemplo do fato da primeira relação sexual só poder ser praticada após o
casamento guiada pela autoridade conferida ao marido de romper a virgindade
feminina na noite de núpcias.
Havendo mais uma vez uma relação de poder e desigualdade entre o homem
e a mulher, já que não é a mulher quem decide quando, como e com quem terá
relações sexuais, mas o homem, seu esposo e “dono” do seu corpo.

Essa construção e esses fatores estão presentes na mulher que está em


situação de violência, ou que dela fora vítima. As contradições apreendidas diante
da violência e dos costumes machistas influenciam nas ações que estas mulheres
vitimadas assumem, como podemos perceber no trecho de Verardo (1993):
“O estupro quebra a ordem, machuca o corpo, fere os sentimentos, destrói os
sonhos, desmancha os planos, subverte a ordem. As marcas no corpo devem
ser exibidas – quando o estupro é denunciado e, escondidas para que a
sociedade não estigmatize. O corpo machucado deve ser segregado – para
não ser objeto de curiosidade e execração pública.
Mas as marcas psicológicas... essas não devem ser mostradas jamais. Ser
abafadas, sufocadas e exatamente por isso permanecerão abertas por muito
tempo.
Mais do que o corpo, o estupro machuca a alma. O silêncio que a sociedade
impõe a ele representa um segundo estupro”. (VERARDO,1993, p.2)

Entendemos ser fundamental romper com esse ciclo de violência, realizando


não apenas uma reforma na maneira como se estruturam a sociedade, a família, a
formação “doutrinária” dos indivíduos com condutas, preceitos, julgamentos e rótulos
que tolhem a especificidade de cada indivíduo. Faz-se necessário entender os
sentimentos e situações vivenciados e os padrões de comportamento e de
pensamentos quando se dita o que é “Ser mulher” e o que é “Ser homem”.
Para se romper com essas violências é preciso “lavar a alma” das introjeções
nocivas, que muitas vezes se tornam parte de nós e nos silenciam, impedindo que
assumamos posturas diferentes.
22

Concordamos com a mesma autora quando afirma ser preciso buscar


liberdade e fazer ouvir as histórias de violências que as mulheres vem sofrendo,
suas dores e o descaso com que são tratadas. É preciso dar visibilidade à
necessidade de se combater a violência de gênero e ao alto número de violências
sofridas pelo sexo feminino na sua fase adulta, ou mesmo de crianças, quando são
mais facilmente silenciadas. A violência de gênero já não é mais um fato a ser
constatado, mas sim um grito que vem ecoando por reconhecimento.
23

2.3 A Violência Doméstica Sexual contra a Criança, o


Adolescente e a Mulher Adulta

A violência doméstica está fortemente entranhada na violência de gênero, que


também se expressa no âmbito familiar por ser um espaço de disputa, de
correlações de força e poder.
Segundo Azevedo e Guerra (2000), a relação social pode ser, sobretudo, uma
relação de poder que se exerce sob a forma de dominação versus subordinação. E
Araújo (2002) complementa, afirmando que é nessa relação social que “o homem
adulto branco e rico tem predominância sobre as mulheres, crianças, pobres e
negros”. É no seio da sociedade patriarcal, no exercício da sua função, que os
homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas,
recebendo autorização ou tolerância da sociedade para punir o que se lhes
apresenta como desvio.

A instituição familiar – onde ocorre grande parte da disputa de poder, e que


está, obviamente, inserida na sociedade – sofre os impactos de como esta se
estrutura, refletindo, produzindo e reproduzindo certos comportamentos assim como
ações violentas no cotidiano social e familiar. É na família onde se dá o primeiro
contato da criança com a sociedade. Vai ser através dessa referência familiar,
conflituosa ou não, que a criança aprenderá a confiar, a se espelhar, a ter limites, se
socializar e tudo o que seja necessário para o seu desenvolvimento biopsicossocial1.

1
O conceito “biopsicossocial” empregado aqui diz respeito a um entendimento integral/total do ser
humano, sendo este composto de parte biológica/fisiológica, parte psicológica/mental/subconsciente
e parte social onde se situam os condicionantes culturais. Estas partes componentes do ser estão
intimamente articuladas, são indissociáveis e formam o ser social em sua totalidade.
24

Para Barros (2006), a violência doméstica consiste na relação de poder


desigual do adulto “completamente desenvolvido” física e emocionalmente, em
detrimento da criança e/ou adolescente, que os reduz às condições de “maus tratos,
de sujeição ao poder coercitivo, causando sérios danos mentais e físicos”. Uma das
formas de violência doméstica é a violência/abuso sexual.
O abuso/violência sexual consiste em uma violência que envolve poder,
coação e/ou sedução, e engloba duas desigualdades básicas: de gênero e geração.
Ou seja, ‘o poder do grande e forte sobre o pequeno e fraco; a confiança que o
pequeno tem no grande e protetor; e o uso delinquente da sexualidade, violando o
direito que se tem sobre o próprio corpo’. (ARAÚJO, 2002)
A violência sexual doméstica é, frequentemente, praticada sem uso de força
física, não deixa marcas visíveis, fato que dificulta sua constatação, principalmente
quando se trata de crianças pequenas. (ARAÚJO, 2002) Nesta transgressão
intrafamiliar, o poder/dever de proteção do adulto em relação à criança/adolescente
coisifica a infância e a adolescência, e as mulheres e filhas, que nesta situação são
silenciadas em benefício da “estrutura familiar”.

Seguindo a linha de pensamento de Silva (2006) e Saffioti (2004), os


indivíduos que foram vítimas de abuso/violência sexual quando crianças, ou
presenciaram violência entre os pais, tendem a repetir o modelo familiar/parental
violento. Eles afirmam, ainda, que vivências infantis de maus tratos, negligência,
rejeição ou mesmo histórias de indivíduos que não puderam contar com a presença
do pai por morte precoce, ou distanciamento emocional dos filhos, também parecem
determinar maior possibilidade de gerar perpetradores (as) de violência doméstica.

Segundo Saffioti (2004, p.15), a pessoa que passou por situação de


“abusos físicos, psicológicos, morais e/ou sexuais é vista por cientistas como
indivíduo com mais probabilidade de maltratar, sadomizar outros, enfim, de
reproduzir contra outros as violências sofridas, do mesmo modo como se
mostra mais vulnerável às investidas sexuais ou violência física ou psíquica
de outrem”.

Concordamos com esta perspectiva de reprodução da violência, pois


entendemos as crianças como “espelhos” dos pais, familiares e comunidade onde
vivem e aprendem os valores sociais e culturais. Uma vez que estas crianças
passaram por situação de violência, tendem a naturalizar, muitas vezes, esta forma
25

de agir, tanto se sujeitando à violência, quanto praticando-a quando se tornam


adultos (as).

Lisak (1991), citado por Karen Giffin (1994), reafirma essa concepção, ao
tratar dos fatores que estão associados às motivações que propiciariam a agressão
sexual, o processo de identidade de gênero.
De acordo com Giffin (1994), a identidade de gênero seria a construção do
sujeito a partir do pensamento dualista em que as ideias sobre masculino e feminino
estão compreendidas nos conceitos de cultura/natureza; razão/emoção;
sujeito/objeto; mente/corpo; ativo/passivo, onde esses pares contrapostos seriam
percebidos como opostos e excludentes.
Giffin (1994) complementa que os conceitos de natureza/corpo/emoção/ativo
e passivo definiriam a mulher, e os demais definiriam o homem. As características
da mulher são vistas como inferiores e desviantes da razão e da moralidade, uma
vez que o auto-controle e a dominação do corpo e da vida emocional são
valorizadas e realizadas pelo sujeito pensante.
Portanto, percebendo as características femininas como uma interferência
para este objetivo, tem-se a segregação da “psiqué” humana em duas partes:
“feminino” e “masculino”, onde elas não coexistem mutuamente. Devem ser
reprimidas para que só permaneçam as características que condizem com o sexo
definido: masculino/feminino.

Sendo assim,
“os meninos devem se separar da mãe e das qualidades femininas para
estabelecer sua identidade masculina e para não tê-la ameaçada, negando
com isso as qualidades consideradas femininas e por isso menos valorizadas
e o seu lado emocional”. (GIFFIN, 1994.p 152)

Às meninas, no entanto, é fomentada a aproximação com as características


femininas, que se dá através da aproximação e do auto-reconhecimento com a
figura da mãe, como um outro desvalorizado, conforme Benjamin (1990)
“A descoberta do “eu” e do “outro” são partes interdependentes de um único
movimento onde a constituição do sujeito depende da diferenciação de, e do
reconhecimento de, outro sujeito. Para alcançar uma identidade própria os
impulsos opostos de diferenciação/reconhecimento precisam ocorrer em
combinação. Onde o menino é forçado a negar suas semelhanças com a
mãe, ‘diferenciação falsa’ na qual o outro, em vez de reconhecido como um
outro sujeito é objetivado, cognitivamente. A menina, por outro lado, se
identifica com o outro (a mãe, desvalorizada). Esta situação [argumenta
26

Benjamin] será refletida em outras relações onde ‘a posição do homem é de


fazer da mulher um objeto, tanto na sua violência contra ela como no seu
auto-controle racional. A posição da mulher é de se sentir um objeto passivo
e aceitar sua falta de auto-controle’. Assim, a origem psicológica da
dominação erótica pode ser encontrada na diferenciação unilateral, isto é, na
separação destes impulsos e sua assignação a homens (diferenciação) e
mulheres (reconhecimento) respectivamente.” (BENJAMIN, 1990 apud
GIFFIN, 1994. p. 153)

A violência na esfera privada, no lar (e também na rua) se expressa de forma


crescente no Brasil e no mundo hoje. A realidade do Recife também demosntra a
crueza dos dados do sofrimento, adoecimento e morte de mulheres.
Segundo o I Boletim de Notificação de Violência no Recife, área geográfica de
nossa pesquisa, entre agosto de 2006 e março de 2008 foram registradas 1183
denúncias de violência doméstica, como mostra o gráfico a seguir:

Fonte: VIVA/DVS - Secretaria de Saúde do Recife, 2008.

Percebemos claramente neste gráfico a realidade da violência doméstica na


cidade do Recife. Temos clareza, ainda, que os números são ainda maiores, devido
à pouca confiabilidade dos dados oficiais exsitentes. O abandono/negligência
consiste na maioria das denúncias, seguido da violência física, da psicológica, e da
violência sexual.
Ora, devemos esclarecer que sendo o físico e o mental articulados e
indissociáveis (já que o ser humano é uma totalidade), criticamos a dualidade das
categorias presentes nos dados estatísticos. Obviamente, a violência sexual também
afeta o corpo/alma de suas vítimas.
27

Números de denúncias que nos parecem ínfimos, frente à realidade


apresentada por muitos estudiosos, e percebida na prática pelos profissionais que
atendem crianças. Um dado que nos leva a pensar sobre as famílias que não
denunciam a violência doméstica e, diante desta atitude, se tornam co-partícipes
desta violência.

Reflitamos agora, com base na tabela que se segue, sobre a vitimização, a


violação das crianças e adolescentes. Percebemos que a maior parte afetada são
crianças com menos de 10 anos de idade.

Fonte: VIVA/DVS-Secretaria de Saúde do Recife, 2008

Um fato que não pode ser deixado de lado é a influência do parentesco do


perpetrador da violência no agravamento dos problemas biopsicossociais que
podem ser gerados, principalmente, no que diz respeito ao abuso sexual, cujos
maiores números acontecem no ambiente familiar, por pessoas próximas,
conhecidas e de confiança da criança/adolescente.

Segundo Saffioti (2004), 63% da violência contra as mulheres ocorre no


espaço doméstico, e a figura do pai é a mais evidente em todas as pesquisas
realizadas, representando 42,31% das denúncias, de acordo com o Observatório da
Infância (2006). Diante deste estudo sobre o abuso sexual, especialmente o intra-
familiar, percebemos que este tem conseqüências irreparáveis para a vida da vítima,
conforme já explicamos anteriormente.
28

Fonte: VIVA/DVS-Secretaria de Saúde do Recife, 2008

Podemos perceber a verdade da afirmação de Saffioti (2004) quando


analisamos o gráfico anterior que mostra que a violência sexual, no âmbito
familiar/doméstico, ocorre na maioria das vezes através da figura do pai/padrasto,
somando 67 casos notificados pela Secretaria de Saúde do Recife. Ressaltamos,
mais uma vez, a quantidade de subnotificações e a baixa confiabilidade dos dados
estatísticos, da denúncia, em prol da “preservação da família”, o real parentesco do
perpetrador pode ser silenciado.
De acordo com Barros (2006), em seu estudo sobre violência doméstica, à luz
da psicologia, as crianças vítimas da violência doméstica junto à família, silenciam
estes fatos, o que de certa forma incentiva o ciclo da violência e da impunidade. Os
perpetradores que “deveriam ser guardiões e não algozes”, têm interesse em manter
o silêncio a fim de preservar a própria imagem e a familiar.

Estes representantes da figura paterna, na maioria das vezes, se aproveitam


de sua situação hierarquicamente superior - além de ter a criança o “dever” de
prestar obediência – para utilizar o corpo da criança/adolescente em prol do próprio
prazer, deixando marcas irreparáveis para o resto da vida da vítima, como afirma
Barros (2006. p. 31) com base em Guerra (1998)
“a violência sexual ou abuso sexual é quando o abuso de poder através
do qual uma criança ou adolescente é usado para satisfação sexual de
um adulto ou adolescentes mais velhos que a criança, sendo a mesma
induzida ou forçada a atos ou práticas de cunho sexual, com ou sem
29

violência física. Pode variar de atos em que não ocorre o contato sexual
(voyeurismo, exibicionismo), em que o contato sexual, se dá sem
penetração (intercurso anal ou genital). Inclui também, a participação de
crianças em atividades de prostituição e pornografia. Atinge crianças de
ambos os sexos e de todas as faixas etárias, provocando, além de graves
repercussões psíquicas, a ocorrência de doenças sexualmente
transmissíveis e muitas vezes gravidez”.

A violência intrafamiliar ou doméstica tem sua manutenção assegurada na


impunidade devido à ineficiência da política pública e ineficácia das práticas de
intervenção e prevenção. Contribui para a perpetuação desta violência a
cumplicidade silenciosa dos envolvidos. Ou seja, a vítima, além de silenciada por
meio de ameaças do agressor, sofre com o silêncio/omissão dos demais parentes
que não a protegem, e tampouco denunciam o agressor, associado, muitas vezes,
ao silêncio dos profissionais que se utilizam do discurso da ética e do sigilo
profissional, se refugiando em defesa própria. Assim sendo, minimizam/negam os
efeitos da violência, que caracterizaremos mais profundamente no capítulo seguinte.
30

3. O Tabu do Incesto e a Caracterização da


Violência Sexual
31

3.1 O Tabu do Incesto

Ao falarmos sobre violência sexual, abordamos não somente a mulher adulta


que é vítima deste tipo de violência, mas também nos preocupamos com o estudo
da raiz desta violência, que está muitas vezes na infância e/ou adolescência.

Há certo estranhamento na sociedade como um todo ao falar sobre sexo,


violência sexual, abuso sexual da criança e do adolescente e, principalmente, em
incesto. Segundo Claúdio Cohen (2000), etimologicamente incesto deriva do latim
“incestus”, que significa impuro, puro manchado, não casto. Percebemos que esta
etimologia está carregada por dura carga de valores morais, que não representa
uma concepção universal. Grosso modo, o incesto é tido como relação
sexual/conjunção carnal entre pessoas da mesma família, que iremos entender mais
à frente.

Susan Forward (1989), Assistente Social nos Estados Unidos, especializada


em psicoterapia e em treinamento de profissionais para tratar o incesto, realizou um
profundo estudo sobre o tema em “A traição da Inocência: o incesto e sua
devastação”, afirma que “a convicção de que ‘não se pode acreditar’ que pais, mães,
tios e avós fazem coisas terríveis com crianças inocentes” faz parte de nossa crença
social coletiva. (FORWARD, 1989)
Ao tocar neste tão delicado assunto, não queremos aqui desconstruir a
imagem de família, mas sim chamar atenção para a necessidade de estudo e
intervenção em uma realidade existente, a da violência/abuso sexual contra crianças
e adolescentes, um dos mais importantes campos de atuação do serviço Social,
32

especialmente a partir das políticas de Seguridade Social (Saúde, Previdência e


Assistência Social) pós-Constituição de 1988.
Segundo Forward (1989), o incesto possui duas definições, uma legal e uma
psicológica. A definição legal, resume-se a definir o incesto como a relação sexual
entre pessoas com grau de parentesco próximo. Já a definição psicológica – que
iremos utilizar neste trabalho para compreender a amplitude do abuso sexual, por
ser mais abrangente – consiste em “qualquer contato abertamente sexual entre
pessoas que tenham um grau de parentesco ou que acreditem tê-lo”, acrescentamos
a esta concepção o contato, estimulação sexual por pessoas conhecidas e de
confiança da criança/adolescente, e da família, como vizinhos ou amigos desta.

Percebemos que esta proximidade é um fator agravante da violência e


confusão na cabeça da criança/adolescente, quer o abuso tenha envolvido contato
físico rude/grosseiro, ou “terno/afetuoso”, na concepção da criança, é o silêncio, o
segredo que envolve a prática incestuosa. (FORWARD, 1989)

Na sociedade, o abuso sexual incestuoso é mais enfocado no meio


acadêmico, quando é abordado o “Tabu do Incesto”, e não o ato e efeitos deste,
exceto na área da saúde.
Segundo Freud (2006, p.37)
“As restrições do tabu são distintas das proibições religiosas ou morais. Não
se baseiam em nenhuma ordem divina, mas pode-se dizer que se impõem
por sua própria conta. Diferem das proibições morais por não se
enquadrarem em nenhum sistema que declare de maneira bem geram que
certas abstinências devem ser observadas e apresente motivos para essa
necessidade. As proibições dos tabus não têm fundamento e são de origem
desconhecida”

Tabu significa, portanto, algo que a sociedade repudia/rejeita, porém,


segundo Malinowski (1926), citado por Forward (1989, p. 11) “um tabu social não
deriva a sua força do instinto; na verdade, precisa sempre trabalhar contra a ação de
algum impulso inato”.
Há inúmeras teorias que explicam as origens do tabu do incesto, como a
concepção psicanalítica freudiana que afirma que o desejo incestuoso está presente
em todas as pessoas, mas é negado. Esta teoria afirma ainda que, na primeira
infância, a sexualidade está distribuída por todo o corpo do bebê, e este não define
diferença entre sexualidade e sensualidade, assim, toda sensação seria inovadora e
33

despertaria muitas emoções. Outra forma de prazer nesta fase seria a


amamentação, que para a mãe quanto para a criança que, para Forward é a
“salvaguarda” natural que assegura nossa alimentação. (FORWARD, 1989)
A mesma concepção, anteriormente exposta, explica que as crianças
desejam atenção exclusiva do pai, no caso da filha, e da mãe, no caso do filho.
Dessa forma, estas teriam desejo de possuir o/a pai/mãe para que estes lhes
oferecessem atenção, ou seja, sentissem prazer na presença e no afeto. Este
desejo da criança criaria um sentimento de culpa, denominado de “conflitos
edipianos”, relacionados a estes sentimentos profundos e inconscientes, aos quais
parte da sociedade consegue resistir, o que se deve ao tabu do incesto. Este seria
“a forma mais antiga em que encontramos a consciência” (FREUD, 2006)

Segundo Pinto (2009) é natural que as pessoas sintam atração afetiva e


sexual por outras
“com quem convivem e mantêm laços emocionais tão próximos, porém em
nossa sociedade, muitas proibições sociais são erigidas em prol do bem
comum, sendo essenciais para a coexistência harmoniosa de seus membros,
sendo a interdição do incesto, um de seus valores fundantes”. (PINTO, 2009.
p. 1-3)
E com esta proibição seria iniciada uma nova forma de organização social,
que, segundo a autora, anteriormente citada, “marca o homem como ser da cultura e
da civilização”.

Forward (1989), baseada em diversos estudos sobre o tabu do incesto, afirma


que a humanidade teria começado com o impulso incestuoso e teria desenvolvido o
tabu do incesto, ensinando aos membros e descendentes a substituir os impulsos
incestuosos por sentimentos mais adequados, ou seja, transferir estes sentimentos
para pessoas fora da família, no decorrer do amadurecimento.
As diversas teorias sobre o tabu do incesto evidenciam que esta noção não é
universal nem uniforme, e que nem todas as civilizações possuem, ou possuíram, a
mesma repugnância sobre o incesto, ou seja, não é um evento constante, segundo
Summer (1940), citado por Forward (1986).
Freud (2006), em “Totem e Tabu”, afirma que, na Nova Caledônia, se um
irmão e uma irmã se encontrassem em um mesmo caminho, a irmã se esconderia
dentro do mato, o irmão passaria sem olhar para a mesma, assim como em Fiji, fato
34

que se estendia a irmãs tribais (não consanguíneas), e em New Mecklenburg, tal


atitude englobava primos que se encontrasse em certo caminho.
Já os Kalangs, de Java, acreditavam que o incesto entre mãe e filho traziam-
lhes prosperidade. Os povos Malawi acreditavam que as relações sexuais entre
irmãos os deixavam à prova de balas. Os Cucis se casavam independente de
parentescos, exceto casamento entre mãe e filho.
Na África Oriental, entre o povo Taita, ocorria dos homens se casarem com as
mães ou irmãs para que não precisassem comprar as esposas. E, ainda, os Incas e
alguns Egípcios (os Ptolomeus, como Cleópatra, cujo esposo era seu tio e irmão ao
mesmo tempo), cultivavam o incesto “para preservar a pureza do sangue” na família
real. (FORWARD, 1989 p. 24)

Concluímos, assim como Freud (2006), que o tabu do incesto não tem uma
única explicação, mas sim que as civilizações, povos, etc. possuem características
próprias no que diz respeito ao relacionamento sexual entre pessoas de uma mesma
família. Nossa sociedade incorporou o tabu do incesto e, comumente, não o explica,
apenas o cumpre através da lei.

Concordamos, então, com a hipótese mais admissível de Coult e Parsons,


que, segundo Forward (1989, p. 23), explica que o tabu do incesto tem,
inconscientemente, a função de “evitar a confusão dos papéis no interior da família”.
Seria, de certa maneira, uma proibição que prepara a criança/adolescente para
construir laços afetivos com pessoas de fora da família, fato que geraria
independência e viabilizaria a socialização e a maturidade afetivo/sexual. Já que o
rompimento emocional com os pais é psicologicamente doloroso, o tabu do incesto,
ao impedir o desenvolvimento de laços sexuais, tornaria este rompimento menos
doloroso.

Cohen (2000) define o incesto como um abuso sexual intrafamiliar, que ocorre
com ou sem violência explícita, através de estimulação sexual por parte de algum
integrante do grupo que possui um laço de parentesco que impede o vínculo
matrimonial. Além deste incesto consangüíneo, o autor acrescenta duas outras
formas: os para-incestos e os incestos polimorfos.
35

“Os para-incestos são aqueles verificados entre pessoas que poderiam


ser consideradas parentes, como, por exemplo, entre o amante da mãe
com a filha desta, ou entre filhos que moram juntos mas que têm pais
diferentes”. (COHEN, 2000, p.217)

Já os incestos polimorfos são designados como “um tipo de relações sexuais


em que alguém se aproveita do cargo ou função que exerce para se impor
sexualmente a um subalterno”. Este tipo de incesto é assim chamado devido às
várias formas de poder existentes nesse tipo de relação e “do exercício deste poder
sobre outra pessoa, como por exemplo, a professora com o aluno, o patrão com a
empregada, o médico com a sua paciente, o líder do grupo com um de seus
seguidores”.

Fígaro-Garcia (2004) afirma que uma característica marcante nas famílias


chamadas ‘incestuosas’ é haver certa confusão entre as funções/papeis/obrigações
familiares devido à “perda de assimetria nas relações intrafamiliares e no
consequente esvaecimento da organização hierárquica do grupo familiar”. Derivam
desta confusão transtornos que podem comprometer a noção de realidade, a noção
de tempo e a noção de envolvimento das pessoas da família nesta relação
incestuosa.

Concordamos, então, com a perspectiva de que essa modificação na


hierarquia familiar, associada à precocidade da experiência sexual, sendo esta
imposta por uma figura de poder para criança/adolescente, é causadora de trauma.
O impedimento, portanto, não é a união entre pessoas da mesma família,
apesar de concordarmos que este fato, mesmo entre pessoas adultas, pode gerar
conflitos. Mas sim, no relacionamento entre pessoa(s) adulta(s) e
criança(s)/adolescente(s) de maneira sexualizada, por entendermos que uma
criança/adolescente pode ser induzido/coagido/estimulado a participar, ou ‘querer’
participar de jogos/práticas sexuais que beneficiem o prazer do adulto, em
detrimento dos aspectos físico/psicológicos daquela criança/adolescente.
36

3.2 Caracterização do Abuso Sexual Intrafamiliar/Doméstico

O Observatório da Infância (2006), anteriormente conhecido como ABRAPIA2,


entende o abuso sexual infanto-juvenil como “abuso de poder no qual a criança ou
adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto, sendo induzida ou
forçada a práticas sexuais com ou sem violência física”.
Além da concordância com a definição anterior temos, ainda, o “I Boletim de
Notificação da Violência Interpessoal nos Serviços de Saúde do Recife”, que
complementa, expressando a Violência Sexual como um todo, onde se inclui a
violência contra a criança e o adolescente:
“Violência Sexual é toda forma de coerção sexual com ou sem violência
física. Caracteriza-se pelo uso de crianças ou adolescentes para gratificação
sexual de adultos ou adolescentes mais velhos, baseado em uma relação de
desigualdade de poder. Apresenta-se de várias formas, como: carícias,
telefonemas obscenos, exibicionismo, voyeurismo, toques impudicos, relação
sexual com ou sem penetração e exploração sexual comercial (PREFEITURA
DO RECIFE, 2008)

O abuso/violência sexual, para Anna Freud (1981), citada por Furniss (1993),
perturba o processo natural de desenvolvimento psicossocial da criança, interferindo
nos processos normais de maturação. Para a autora,
“no abuso sexual da criança esta não pode evitar ficar sexualmente
estimulada e essa experiência rompe desastrosamente a seqüência normal
da sua organização sexual. Ela é forçada a um desenvolvimento fálico ou
genital prematuro, enquanto suas necessidades desenvolvimentais legítimas
e as correspondentes expressões mentais são ignoradas e deixadas de lado”.
(FREUD, 1981. p. 33-34 apud FURNISS, 1993. p.14-15)

A mesma acrescenta
“no que respeita às chances de danificar o desenvolvimento infantil, o incesto
e outras formas de abuso sexual praticados por uma figura de autoridade
estão em posição mais elevada que o abandono, negligência, o mau trato
físico ou outras formas de abuso” (FREUD, 1981, p.34 apud AZEVEDO,
2000, p.202)

2
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência - ABRAPIA
37

As formas de abuso sexual contra a criança/adolescente são diversas, se


apresentam como carícias, manipulação dos órgãos genitais, masturbação,
voyeurismo, exibicionismo, estupro, penetração anal, vaginal, oral, prostituição
infantil e pornografia. Estas constituem maneiras de violar a integridade
biopsicossocial da criança.

Podemos, ainda, acrescentar às concepções de abuso sexual infanto-juvenil,


que este “deve ser visto tanto como uma questão dos direitos da criança quanto
como um problema de saúde3 e de saúde mental”, como afirma Furniss (1993, p.11),
em seu “Manual Multidisciplinar: o abuso sexual da criança”.
O referido autor não afirma com isto que toda criança/adolescente vitimado
sexualmente irá desenvolver alguma biopsicopatologia. Tampouco temos esta
concepção, mas sabe-se que todas as vítimas deve ficar traumatizadas diante desta
experiência violenta.
Entendemos as caracterizações citadas como mais abrangentes, já que
englobam pessoas agressoras conhecidas, de confiança e/ou que possuem certo
poder sobre a criança/adolescente vitimado sexualmente, não se restringindo
apenas a ligação destes ao âmbito familiar consanguíneo. Esta concepção
contempla os casos de violência/abuso intrafamiliar/doméstico que correspondem ao
maior quantitativo de denúncias e, potencialmente, os que deixam mais sequelas,
devido ao vínculo entre vítima e agressor.

Estas definições de violência estão contempladas no Estatuto da Criança e do


Adolescente – ECA, que traz no 1º artigo que a criança e o adolescente têm direito
ao respeito, que consiste na
“inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da
autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos
pessoais”.(BRASIL, 1990)

Aqui se faz necessário a apresentação do marco legal de proteção à


infância/adolescência no Brasil de hoje, conforme o que explicaremos a seguir.

3
Segundo a OMS, a saúde é um "estado de completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo somente
da ausência de uma doença ou enfermidade". No entanto, criticamos a noção de “estado de completo bem-estar
físico, mental e social”, em razão da subjetividade presente na expressão. Daí, preferimos falar em saúde
enquanto qualidade de vida e não apenas ausência de doença. Qualidade de Vida que pode ser medida por
indicadores como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
38

Segundo o Observatório da Infância (2006), 58,35% das denúncias feitas


entre janeiro e dezembro de 2002 se referiam a abuso sexual doméstico, ou seja,
esta violência era perpetrada dentro de casa e por familiares, consanguíneos ou
conhecidos de confiança da criança ou adolescente que, de certo modo,
entendemos como abuso sexual incestuoso.

Fonte: Observatório da Infância, 2006.

O Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes –


CECRIA (1998) apresenta os marcos legais que protegem as crianças e
adolescentes da violência sexual, primeiramente a Constituição da República
Federativa do Brasil (1988), no Art. 27 § 4º :
“a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e
do adolescente".
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e o Código Penal - CP, no
que diz respeito à violência sexual, caracteriza assim:
SENSORIAL - ECA artigos 252-257 CP 233, 234

“Exibir performance sexualizada de forma a constranger/ofender c/a


(pornografia; exibicionismo/linguagem/imagem sexualizada)
ECA 252: Deixar o responsável por diversão ou espetáculo de afixar em lugar
visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição, informação
destacada sobre a natureza da diversão ou espetáculo e a faixa etária
especificada no certificado de classificação.
ECA 253: Anunciar-se peças teatrais, filmes ou quaisquer representações ou
espetáculos, sem indicar os limites de idade a que não se recomendem.
ECA 254: Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário
diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação.
ECA 255: Exibir filme, trailer, peça, amostra ou congênere classificado pelo
órgão competente como inadequado às crianças ou adolescentes admitidos
ao espetáculo
ECA 256: Vender ou locar a criança ou adolescente fita de programação em
vídeo; em desacordo com a classificação atribuída pelo órgão competente.
ECA 257 (ref. art. 78 e 79):
39

Comercializar revistas e publicações contendo material impróprio ou


inadequado a crianças e adolescentes sem embalagem lacrada, advertência
de seu conteúdo. Revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil
contendo ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas
alcóolicas, tabaco, armas e munições ou desvalorizando os valores éticos e
sociais da pessoa e da família.
CP 233: Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao
público.
CP 234: Fazer, importar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de
comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura,
estampa ou qualquer objeto obsceno.”

POR ESTIMULAÇÃO - CP 214, decreto lei n.º 3688: art. 61, 65

“Carícias inapropriadas em partes consideradas íntimas ou de forma


insinuante (assédio - atentado violento ao pudor)
• Assédio (proposta Suplicy): Assediar alguém com propostas, gestos ou atos
libidinosos prevalecendo a autoridade ou antecedência sobre a vítima
(relações familiares, hierárquicas no âmbito profissional e em caso de
internação ou prisão).
• CP 214: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da
conjunção carnal - art. 224: presume-se a violência, se a vítima não é maior
de 14 (catorze) anos.
• CP Decreto lei n.º 3688: art. 61: Importunar alguém, em lugar público ou
acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor.
• CP Decreto lei n.º 3688: art. 65: Molestar alguém ou perturbar-lhe a
tranqüilidade, por acinte ou por motivo reprovável.”

POR REALIZAÇÃO - CP artigos 213-226

“Relações sexuais com contatos físico-genitais


• estupro: CP 213: Constranger mulher a conjunção carnal, mediante
violência ou grave ameaça - art. 224: presume-se a violência se a vítima não
é maior de 14 (catorze) anos;
• atentado violento ao pudor: CP 214: Constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato
libidinoso diverso da conjunção carnal - art. 224: presume-se a violência, se a
vítima não é maior de 14 (catorze) anos.
• fraude: CP 215: Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude;
• rapto: CP 219: Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou
fraude, para fim libidinoso;
• sedução: CP 217: Seduzir mulher virgem, menor de 18 anos e maior de 14 e
ter com ela conjunção carnal, aproveitando de sua inexperiência ou
justificável confiança;
• corrupção: CP 218: Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de
14 anos e menor de 18 anos, com ela praticando ato de libidinagem ou
induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo;
• CP 224: Presume-se a violência, se a vítima não é maior de 14 (catorze)
anos.
40

A legislação sobre violência sexual, agora intitulada de “crimes contra a


dignidade sexual”, modificada em 2009, passa a tratar de maneira diferente, mais
abrangente e contribui para condenação de criminosos, como podemos constatar
“Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso (...)
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém,
mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de
vontade da vítima (...)
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor
de 14 (catorze) anos (...)
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou
induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de
satisfazer lascívia própria ou de outrem” (Lei nº 12,015/2009)

Percebemos, também, que com Lei n° 12.015/2009 o crime de estupro passa


a unificar o estupro propriamente dito e o atentado violento ao pudor. Vemos, então,
que há avanço e retrocesso já que por um lado os crimes de atentado ao pudor
serão mais rigidamente julgados, porém aquelas pessoas condenadas por ambos os
crimes terão a pena, possivelmente, reduzida diante da classificação como um só
crime.
Mesmo uma legislação protetora da criança e do adolescente, com alicerce
na Constituição Federal, não é suficiente para combater o crime de abuso sexual
que, associado ao baixo índice de denúncias, dificulta a intervenção na realidade
brasileira.

Segundo Furniss (1993), os dados seguros sobre abuso sexual são muito
escassos, mas, com base em diversos autores, ele afirma que há sete fatores que
se relacionam com o abuso e as sequelas deste:
“1) A idade do início do abuso.
2) A duração do abuso.
3) O grau da violência ou ameaça de violência.
4) A diferença de idade entre a pessoa que cometeu o abuso e a criança era
relacionada.
5) Quão estreitamente a pessoa que cometeu o abuso e a criança eram
relacionadas.
6) A ausência de figuras parentais protetoras.
7) O grau de segredo”. (FURNISS, 1993 et al, p. 15)

Segundo uma pesquisa realizada pelo Observatório da Infância (2006), em


2002, o Nordeste é a segunda região do país que mais denuncia o abuso e a
exploração sexual de crianças e adolescentes, como podemos observar a seguir:
41

Fonte: Observatório da Infância, 2006.

Com referência ao número de denúncias por cidades do Brasil, o Recife


localiza-se em 10º lugar, com 24 denúncias, entre janeiro de 2000 e janeiro de 2003,
segundo a mesma fonte citada.

Fonte: Observatório da Infância, 2006.

Das vítimas dos abusadores sexuais, segundo o Observatório em pesquisa


realizada no Brasil entre janeiro de 2000 e janeiro de 2003, 76,29%, são
crianças/adolescentes do sexo feminino, como podemos perceber no gráfico abaixo.
Em média, as vítimas tinham entre 8 e 11 anos de idade, eram de 8 anos e tinham
entre 12 e 18 anos, o que representa crianças violadas na primeira infância, em sua
maioria.
42

Fonte: Observatório da Infância, 2006.

No Recife, como mostramos anteriormente, segundo os dados da Secretaria


Municipal de Saúde, a maior parte das pessoas violadas sexualmente era do sexo
feminino, com 462 casos notificados entre agosto de 2006 e março de 2008, um
estudo recente. Estas meninas, cuja integridade e direitos foram violados, tinham em
sua maioria, entre 0 e 9 anos de idade (56,3%), entre 10 e 13 anos, 19,5% e, entre
14 e 17 anos, 10,6%.

Quanto aos perpetradores da violência sexual, o Observatório da Infância


(2006) informou que 90,05% dessa violência foi realizada por homens, fato que
reforça nossa concepção do poder do homem em detrimento das mulheres em sua
fase adulta ou infanto-juvenil, o que não exclui a perpetração desta violência, por
mulheres, em 4,52% dos casos.

Fonte: Observatório da Infância, 2006.


43

Os perpetradores do abuso sexual tinham em média entre 31 e 45 anos de


idade, eram maiores de 45 anos, e tinham entre 18 e 30 anos, o que representa uma
violência realizada por homens (poucas vezes por mulheres) adultos (as).

Fonte: Observatório da Infância, 2006.

No Recife, segundo a Secretaria de Saúde, a violência física, psicológica, o


abandono e a negligência são perpetrados contra as crianças e adolescentes
geralmente pelas mães, enquanto a violência sexual é, em maioria, perpetrada pelo
pai da vítima, seguido de amigo/conhecido e padrasto.

Fonte: Secretaria de Saúde do Recife, 2008.


44

Percebemos, então, que a violência sexual, assim como a física e psicológica,


e o abandono/negligência são perpetradas, na maioria das vezes por pessoas
próximas, do convívio da criança/adolescente. Ou seja, pessoas nas quais essas
crianças têm confiança e, no caso da violência sexual, utilizam essa confiança para
induzir a vítima a colaborar com o abuso, e/ou silenciar sobre os atos
caracterizando, assim, uma violência intrafamiliar, o que não significa ser
consanguínea, nem ocorrer no domicílio da criança, embora seja também
caracterizada como doméstica, em nosso entendimento.

Fonte: Observatório da Infância, 2006.

Como já expusemos, a violência sexual ocorre, com ou sem o contato físico.


Segundo Barros (2006), estas modalidades variam em grau de intensidade e danos,
a saber:
Com o contato físico:
• O abuso sexual gravíssimo, assim caracterizado pela autora como pode
ocorrer “relação genital (com ou sem violência), sexo anal (com ou sem
violência), sexo oral (com ou sem violência)”
• O abuso sexual grave, onde ocorre “contato manual com os órgãos sexuais
descobertos, com ou sem penetração de dedos (forçada ou não), contato com os
seios desnudos (forçado ou não), simulação de relação sexual inter-femural.
• O abuso sexual “menos grave”, este “podendo ocorrer com beijos eróticos
(forçados ou não), toque sexualizado nas nádegas, coxas, pernas ou genitais e
seios cobertos”. (BARROS, 2006, p. 34)
45

Sem contato físico:


• O abuso sexual verbalizado, onde “a forma verbalizada, que se dá através de
sedução sutil, descrição de práticas sexuais, uso contínuo de linguagem sexual,
uso de termos sexuais codificados que só a vítima discerne o significado
(palavras de duplo sentido)”
• O abuso sexual visual, o qual coloca “a vítima em contato com materiais de
cunho pornográfico (objetos eróticos, revistas ou filmes), deixar a vítima
presenciar relações sexuais, exibição sensual dos órgãos genitais, espionar ou
olhar de forma ostensiva partes do corpo da vítima, causando-lhe
constrangimento”. (BARROS, 2006, p. 34)

Barros (2006) acrescenta, ainda, outras formas/conceitos sob os quais a


violência sexual pode se apresentar:
• “Voyeurismo, definido como a necessidade que o abusador tem de ficar apenas
olhando a criança ou adolescente” sem roupa, enquanto troca de roupa, durante
o banho.
• “Exibicionismo, definido como a necessidade irresistível que alguns indivíduos
sentem de expor suas partes sexuais a outrem”. A pessoa exibicionista sente a
necessidade de ao menos um espectador para se satisfazer sexualmente. Essa
prática ocorre do adulto ou adolescente abrir suas vestes para exibir sua
genitália, ou os seios, no caso das mulheres agressoras, a fim de que o/a
espectador/a se choque, e estas reações causadas estimulam o/a exibicionista.
• Estupro, definido como crime perpetrado contra a mulher, que a constrange, e o
agressor mantém forçadamente relações sexuais com esta.
• Atentado violento ao pudor, que “ocorre quando alguém é constrangido a
praticar atos libidinosos, sem penetração, utilizando violência ou grave ameaça”.
• Pornografia, que “ocorre através da arte pornográfica (fotografias), isto é,
fotografias que são mostradas às crianças, adolescentes e/ou praticadas com
elas. (BARROS, 2006, p. 31)

Segundo Vaz (1997), citado por Barros (2006), existem dois métodos de
violência sexual: o sadismo e a indução à vontade por parte da vítima. Para aquele
autor, o sadismo seria a forma de prazer através da crueldade, da violência, da dor,
46

de insultos e humilhações, ou através de ameaças contra a pessoa vítima, ou às


pessoas familiares queridas da vítima. A indução da vontade consiste no agrado à
vítima, através de presentes, privilégios, fato que gera uma culpa ainda maior
posteriormente, quando a vítima toma consciência do que aconteceu.

Para estes mesmos autores, as principais características do abuso sexual


intrafamiliar é a presença de abuso de poder, do mais forte em detrimento do mais
fraco que, no caso, é a criança/adolescente; a existência de “confiança e
responsabilidade”, que une a criança ao perpetrador da violência, e é traída; a
violência psicológica associada, ou não, à violência física, e o silêncio imposto à
vítima. (BARROS, 2006, p. 36)

Destas características pudemos perceber e inferir, ao longo do estudo, através


dos dados quanto ao parentesco entre a vitima e o violador, (que representa o grau
de proximidade, responsabilidade, afeto e confiança entre os envolvidos na violência
sexual) fatos que dificultam o entendimento e a aceitação, tanto por parte da vítima
quanto da família (quando esta toma conhecimento) como um ato de violência.

Mas também é possível inferir que, diante de uma sociedade machista, em que a
mulher muitas vezes fica subjugada às vontades do homem, ou mesmo assume o
papel ‘socialmente designado’ por este, o silêncio seja uma presença típica do
abuso sexual incestuoso, já que grande parte das “mães de família” não
revela/denuncia o abuso, por inúmeras justificativas. E temos, ainda, o silêncio como
característica da própria vítima, que enquanto criança/adolescente não tem sua fala
levada em consideração, a pretexto de que é invenção/fantasia/criação da mente
imaginativa infantil.

Barros (2006) concorda com Vaz (1997) ao elencar seis fases específicas do
desenvolvimento do abuso sexual, que trouxemos para evidenciar mais uma forma
de compreender as fases da violência sexual. A autora ressalta que estas fases
podem ocorrer ao mesmo tempo, mas também de forma separada, a saber:
• Fase do envolvimento e desenvolvimento da intimidade, em que o perpetrador
“inicia o assédio à criança através da estratégia de sedução-prêmio,
possivelmente apresentando atividades como se fossem jogos ou algo
“especial e divertido”. A essência da primeira fase é a oferta de um
47

relacionamento de intimidade, de privilégios especiais e recompensas. Essa


fase pode ter a duração de minutos, arrastar-se por meses, por anos até a
consumação física do abuso sexual, sendo que, embora raramente, esse
nunca acontece". (BARROS, 2006, p. 37)

• Fase da interação sexual e toque físico (sem contato físico),


“nesta fase a interação sexual é iniciada através do contato visual e verbal,
podendo existir a presença de toque. São toques leves e que, na maioria das
vezes, a criança sente dificuldade em diferenciar se os mesmos são bons ou
abusadores. Por exemplo: abraços que duram mais do que o comum, carícias
no cabelo, etc. Entretanto, esses toques são progressivos e avançam
gradualmente para outras formas de contato sexualizado”. (BARROS, 2006,
p. 37)

• Fase do abuso sexual, em que


“estão presentes as formas de contato sexuais físicos, que poderão variar de
acordo com o nível, podendo assumir a forma gravíssima (quando a relação
genital, oral ou anal, seja forçada ou não), grave (quando há contato com a
genitália descoberta, incluindo toques manuais, contatos com o seio
descoberto ou a simulação de uma relação sexual, seja forçada ou não) e
menos grave (existem nessa modalidade, toques com conotação sexual nas
nádegas, coxas, pernas. Pode haver ainda toques nos genitais ou nos seios
cobertos, sejam forçados ou não)”. (BARROS, 2006, p. 37)

Chamamos a atenção, também, para como pode se dar este abuso. Segundo a
pediatra, hebiatra e terapeuta Elizabeth Cordeiro Fernandes (Drª Betinha), do
Ambulatório de Pediatria do Comportamento, do Hospital das Clínicas – UFPE, uma
sensação de cócegas é prazerosa, portanto, na percepção de uma criança senti-la é
algo obviamente bom, principalmente quando este “carinho” é realizado por um ente
querido. Assim se assemelha a sensação do abuso sexual. (FERNANDES,
Comunicação Pessoal)
O toque no corpo ou na região genital da criança pode ser prazeroso para esta,
mesmo sem que tenha ciência do que é uma relação sexual e, ao sentir prazer
(sensações boas, gostosas), não identifica o ato como ruim, errado. Fato que causa
confusão/estranhamento para a criança quando, aos poucos, percebe que há algo
de errado naqueles atos que vive/viveu.

• Fase do sigilo ou manutenção do abuso, quando


“após a prática do abuso sexual, o agressor utiliza toda sua capacidade de
persuasão e intimidação a fim de obter o silêncio da criança, possibilitando,
na maioria dos casos, a repetição do comportamento incestuoso”. (BARROS,
2006, p. 38)

Acrescentamos que esta forma de intimidação pode se dar de maneira mais


agressiva, através de ameaças diretas à criança/adolescente, ou direcionadas a
48

outras pessoas queridas da criança/adolescente. Podem ser ameaças quanto a


separação da criança e um ente querido, como a mãe. Mas estas ameaças
podem ser através de gestos, que são tão bem identificados pelas crianças
quanto as ameaças verbais explícitas, “um sinal de silêncio”, segundo Drª
Betinha, pode ser bem significativo.

• Fase da revelação, que pode acontecer de duas formas:


“A revelação acidental acontece através de: flagrante da prática incestuosa
por uma terceira pessoa, observação na mudança de comportamento da
criança, presença de danos físicos sofridos pela criança, como por exemplo,
sangramento anal/vaginal, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez,
etc. Na revelação proposital, um dos participantes envolvidos (geralmente a
criança) decide contar a alguém o “segredo”. (BARROS, 2006, p. 38)

• Fase da supressão que caracteriza que


“na maioria das vezes, os familiares reagem com a tentativa de esconder a
prática incestuosa. A criança geralmente é pressionada a mentir sobre os
fatos e retirar a acusação. O agressor, quase sempre, é acobertado e
protegido pelo muro de silêncio erguido pelos parentes. Tal prática se
fortalece devido aos tratamentos dispensados em nosso sistema penitenciário
aos abusadores sexuais, que são desumanos e estão longe de recuperá-los.
Com isto, os agressores, muitas vezes, ficam anos a fio privados de sua
liberdade, sem, entretanto, um acompanhamento terapêutico que os
reabilitem e são devolvidos para o convívio social pior do que quando foram
apenados”. (BARROS, 2006, p. 38)

Antes de apresentarmos os desenhos de crianças vítimas de abuso e


caracterizarmos o agressor, enfocaremos para o impacto social que o abuso sexual
incestuoso traz, principalmente, para a vítima. Esta possui quatro alternativas,
segundo Forward (1989):
• Adaptar-se ao abuso;
• Fugir, através de drogas ou problemas psicológicos;
• Denunciar e assumir a responsabilidade pela prisão de um familiar e,
possivelmente, problemas financeiros que a família venha a ter;
• Fugir da própria casa.

Diante destas alternativas, chamamos atenção para o sentimento de culpa que


acomete grande parte das vítimas, seja pelo prazer sentido no abuso, ou pelo
destino da família diante da revelação.
49

Forward (1989) ressalta que a fuga, através das drogas, problemas psicológicos,
ou mesmo de casa não consiste em imaturidade, mas sim em ato, “reação lógica a
uma situação desesperada”.
Concluímos, então, que o abuso sexual intrafamiliar/doméstico – que
entendemos como a violência sexual que ocorre na infância/adolescência no âmbito
familiar, mas também é perpetrado por pessoa conhecida, de confiança da criança –
deixa marcas profundas na vítima, já que esta, diante da inocência infantil,
compreende o ato abusivo como forma de carinho. A intensidade deste trauma,
segundo Saffioti (1995), citada por Barros (2006), depende da idade, forma da
violência/abuso, ameaças ou indução à vontade, duração do abuso e grau de
intimidade/parentesco/confiança que mantivera com o agressor.
50

3.2.1 Desenhos: Forma de Expressar a Violência Sofrida

Apresentamos alguns desenhos retirados de sites da internet que evidenciam


a forma como as vítimas podem se expressar para denunciar o impacto do abuso
sexual na infância/adolescência, a confusão e o estranhamento que passariam por
suas mentes.

Desenho que representa o “Choro” e destaca os genitais como forma de apontar


o incômodo. Feito por uma criança de 9 anos, vítima do padrasto, segundo a
Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro -
UFRuralRJ

Desenho que representa a “Denúncia”. Chama a atenção também para os


genitais. Foi feito por uma criança de 7 anos, violentada pelo pai, segundo a
Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro –
UFRuralRJ.
51

Desenho intitulado como “Área Proibida”, é o auto-retrato de uma criança de 6


anos que, segundo a Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro – UFRuralRJ, “rabiscou a área genital para expressar a violência
cometida pelo pai”.

“Quem mora na casa torta sem janelinha torta...


Um gato que usa sapato e tem retrato no quarto uma florzinha pequenininha de
sainha curtinha”.
Trecho do poema “Quem Mora?”, de Maria Mazzetti, escrito por uma criança de 9
anos, segundo a Universidade de São Paulo/USP. Pode evidenciar o sentimento da
criança com relação ao abuso e a idéia sobre o próprio lar.
52

Atrás das “grades”

“Bem feito”

O desenho a
esquerda, retirado da Revista Veja, e mostra claramente o sentimento de uma
criança em relação ao abuso sofrido, com o agressor “atrás das grades”.

Estes desenhos foram retirados de um vídeo, de uma série apresentada pelo


Jornal Hoje, da Rede Globo. Mostram o sentimento do menino triste, e retratam algo
como a sensação de morte vivenciada por uma criança.
53

Estes desenhos estão disponíveis no site “Stolen Childhood”, uma Organização


que produz filmes sobre “Infâncias Roubadas”. Percebemos nos desenhos a
presença do órgão genital dos adultos homens que representam o pai das crianças
que fizeram os desenhos. Pelo que percebemos diante dos estudos e relatos sobre
os desenhos, não é comum as crianças evidenciarem órgãos genitais.

Segundo a Clínica da Violência/RJ, “o


desenho feito por uma criança de 5 anos expressa, segundo a psicanalista Graça
Pizá, olhar de sedução que a domina e a aprisiona”.
54

Segundo a mesma Clínica, “a mão é frequentemente


desenhada pelas crianças para simbolizar a violência sofrida.

Para os profissionais da Clínica da Violência/RJ, “os


traços infantis retratam um pai perverso e traiçoeiro”.

Segundo a
mesma Clínica, a violência muitas vezes é invisível, aparece em desenhos de
montanhas, praias desertas, que representam solidão, medo de reagir, submissão
física e moral.
55

Afirma, ainda, que


“o abuso acontece também em lugares públicos como o cinema ou o metrô. É
uma situação visível (a criança no colo de um adulto) que torna invisível uma
outra (pai que bolina a própria filha). Uma dessas crianças contou seu drama
a partir de uma brincadeira: escondia um objeto, mas deixava uma parte à
mostra. O mesmo acontecia com ela. Seu pai violentava "escondido" na
frente de todo mundo.” (CLÍNICA DA VIOLÊNCIA/RJ)

"Sonhei que o carro estava lá


em cima, caiu lá embaixo e eu
morri. Mas só um pouquinho. A
minha cabeça morreu, mas o
meu corpo estava em pé, não
estava morrido."

Percebemos, aqui, “a barreira erguida em torno da violência que torna invisível a


identidade da criança. A menina se representa num corpo de mulher, de salto - sem
rosto”. (CLÍNICA DA VIOLÊNCIA/RJ)

Segundo profissionais da clínica


“é comum as crianças se desenharem mutiladas, em auto-retratos
relacionados a uma imagem corporal alterada, de quem passou por um
trauma tão grande que se despedaçou. Em alguns casos elas não se dão
conta da mutilação. É preciso perguntar se não está faltando nada no
desenho”.

Chamamos a atenção para este desenho que evidencia a confusão na mente da


criança, um conflito com sua sexualidade, de quem não sabe se é menina ou
mulher. (CLÍNICA DA VIOLÊNCIA/RJ)
56

“Ele é um monstro, um vampiro”


“Língua de fogo”

“Língua que me lambe”

Segundo a mesma Clínica


“demora a perceber que uma parte do que sente é nojo e não consegue
inicialmente expressar esse sentimento em palavras. Mas o exprime através
de monstros que têm "língua de fogo", "língua que me lambe". Um simples
programa de fim de semana com o pai vira história de terror no relato de uma
dessas pequenas vítimas. " Uma vez um caranguejo mordeu o meu dedo.
Doeu muito. No domingo papai me levou à praia, depois ao shopping. Tirou a
minha roupa e me senti um caranguejo. Ele é um monstro, um vampiro."
(CLÍNICA DA VIOLÊNCIA/RJ)

Assim como os outros desenhos, estes evidenciam o sentimento da criança


sobre a violência sofrida. Muitas representam a aversão, o encontro entre a
sexualidade infantil e adulta, outras a solidão ou a sensação de morte. A criança
sempre sente a invasão do corpo, ou um estranhamento em relação ao abuso, por
mais que este seja sutil.
Se não forem tratados corretamente as sequelas imediatas do abuso, estas vão
repercutir na vida adulta, e trazer graves conseqüências, como veremos mais
adiante.
Em seguida, o perfil em comum da pessoa que viola crianças e adolescentes.
57

3.2.2 Caracterização do Agressor

Segundo Forward (1989), “o agressor também sofre”, já que quando comete o


incesto para preencher uma necessidade interior, este perpetrador acidental não
encontra em sua consciência “nenhuma vitória para atenuar sua culpa”.
Diante da grande incidência de abuso sexual intrafamiliar/doméstico/incestuoso,
a autora concentra sua caracterização do agressor no pai incestuoso, mas evidencia
que esta se aplica à maior parte dos agressores. Devido ao alto índice de abusos
deste tipo, utilizaremos a perspectiva da autora.
E acrescentamos, ainda, que apesar do maior número de abuso sexual ser
perpetrado por homens, há, também, mulheres/mães que abusam tanto de meninos,
quanto de meninas, e as consequências desta violência independe do sexo do
agressor, está sim vinculada ao parentesco.

O pai incestuoso mantém uma dupla personalidade: a de um cidadão trabalhador


e de um outro lado, a de alguém que não limita seus impulsos. A de uma pessoa
que “em algum momento, perdeu a capacidade de controlar seus impulsos”, o que
caracteriza o problema: “(...) é o fato de colocar esses desejos em ação que
diferencia o pai incestuoso dos demais”. (FORWARD,1989) Acrescentamos que
apesar da grande incidência de abuso sexual ser perpetrada por homens, não exclui
mulheres, mães que também violentam filhos e filhas.
Obviamente não estamos justificando o ato abusivo, mas sim explicando que não
se sabe ao certo o limite deste autocontrole, e o motivo pelo qual alguns
homens/pais conseguem mantê-lo e outros não. Muitos destes agressores não
conseguem entender como chegaram a tal ponto.

Há certas características que agrupam estes agressores:


• A grande inteligência;
• Na infância, estes agressores sofreram algum tipo de mau-trato físico e/ou
emocional;
• Algumas vezes são muito religiosos e “são motivados” pela continência dos
desejos sexuais fora do casamento);
58

• Carência/necessidade emocional/afetiva que não têm capacidade de


compreender, e são evidenciadas através das motivações sexuais;
• Procura por poder, diante da incapacidade de poder em outros aspectos da vida
(família, emprego, vida social);
• Usuários de algum tipo de droga;
• Inadmissão do abuso que perpetrou.

É importante ressaltar que estas características foram elencadas por Forward


(1989), com base em outros estudos sobre o incesto. Estas não restringem outras
tantas possibilidades que as pessoas têm para realizar a prática abusiva.
Outro fato a ser considerado é a necessidade de compreensão sobre
possibilidade de tratamento decerto tipo de agressor, uma vez que existem as
pessoas que são capazes de controlar os desejos incestuosos, reabilitando-se
através de tratamentos, enquanto que existem as que não têm esta capacidade, que
apresentam impulsos violentos e/ou sádicos e, para o bem da família e da
sociedade, precisam permanecer presas. Vale ressaltar que este fato não isenta
suas responsabilidades pela violência cometida.
Diante do exposto, entendemos este tipo de violência também como uma
expressão das desigualdades de gênero e poder existentes em nossa sociedade, o
que repercute em termos biopsicossociais na vida da mulher vítima do abuso sexual
na infância/adolescência, em particular. Assim sendo, no próximo capítulo
trataremos dessa questão, enfatizando também a contribuição da chamada rede
virtual de apoio.
59

4. As Consequências Biopsicossociais do
Abuso Sexual na Vida da Mulher e a Rede
Virtual de Apoio
60

4.1 As Consequências Biopsicossociais da Violência Sexual na


Infância e na Vida Adulta da Mulher

Diante da experiência do abuso sexual, a vítima está sujeita a uma série de


reações biopsicossociais desencadeadas como forma de o corpo e a mente
(inconsciente) denunciarem que algo de estranho, de errado aconteceu.
Segundo Cavaggioni, citada por Machado (2008), estas lesões podem ser
internas ou externas, e podem trazer sérias repercussões sobre a capacidade da
criança/adolescente se relacionar afetivamente no decorrer de seu desenvolvimento.
Segundo estas autoras, podem ocorrer:
• “Alterações na área afetiva: depressão infantil, angústia, sentimento de
culpa, rigidez e inflexibilidade diante das situações cotidianas, insegurança,
medos e fobias, choro compulsivo sem motivo aparente.
• Alterações na área interpessoal: dificuldade em confiar no outro,
dificuldade em fazer amizades, dificuldade em estabelecer relações,
principalmente com pessoas mais velhas, apego excessivo à figura
“acusadora”.
• Alterações na área da sexualidade: não querer mostrar seu corpo, recusar
tomar banho com colegas, recusa anormal a exames médicos e
ginecológicos, vergonha em trocar de roupa na frente de outras pessoas”.
(MACHADO, 2008. p. 41)

Como pudemos perceber, parte das sequelas é de difícil identificação, já que


estes mesmos comportamentos como insegurança, sentimento de culpa, são
extremamente subjetivos, e nem sempre temos sensibilidade suficiente para prestar
atenção em tais sentimentos e comportamentos.
E os profissionais de saúde, nas rápidas consultas, muitas vezes não
conseguem identificar, ou não indagam ao familiar que acompanha a
criança/adolescente sobre este tipo de sintoma. Por sua vez, os familiares também
não declaram tais sintomas, algumas vezes por ignorância frente à necessidade de
relatá-los.
61

Consequências como “a dificuldade de fazer amizade” podem ser atribuídas à


personalidade da criança, outras destas sequelas do abuso podem ser confundidas
com consequências de outros eventos na vida da criança, que os pais/familiares
podem não identificar, ou mesmo acreditar que sejam irrelevantes.

Guerra e Azevedo, citadas por Machado (2008), informam sobre as sequelas


da violência sexual que se apresentam como dano físico, ou seja, quando há
manipulação direta dos órgãos genitais da criança/adolescente, com ou sem
agressão:
• “Lesões físicas gerais, que vão desde hematomas até a morte.
• Lesões genitais, que ocorrem na vulva, com mais frequência quando os
órgãos genitais forem imaturos e quanto mais violenta for tentativa de
penetração, acompanhadas de sangramento genital, e na vagina, com
hemorragia ou infecção, podendo gerar cicatriz que dificultará a atividade
sexual futura.
• Lesões anais, é normal que ocorra sangramento intenso, com
conseqüentes infecções, num grau crescente de traumatização pode ocorrer
rotura do esfíncter anal, ocasionando a perda involuntária de fezes.
• Doenças sexualmente transmissíveis, são aquelas transmissíveis pelo
sexo, ou atos que cercam o coito, entre elas a sífilis, a gonorréia, a herpes
genital e a AIDS”. (MACHADO, 2008. p. 41)

Entendemos, então, que o abuso sexual quando ocorre contato físico sexual
pode gerar sequelas que são mais fáceis de identificar por parte dos familiares e
profissionais de saúde, e como se tratam de danos físicos, preocupam mais quem
está próximo à criança. Culturalmente, os problemas psicológicos, afetivos,
comportamentais não são levados em consideração tanto quanto os físicos. É
importante ressaltar, conforme já explicado, que as consequências atingem a
totalidade do ser; isto é, o corpo e a mente, de forma indissociável.

É necessário ressaltar que cada pessoa reage de forma diferente aos eventos
da vida. Por termos concepções diferentes, entendemos e nos manifestamos de
formas singulares. Assim também é a forma como cada vítima reage ao abuso
sofrido. Segundo Kátia Queiroz , apresentamos diferentes manifestações:

• As perturbações do sono são constantes e traduzem a angústia de baixar a


guarda e ser agredido sem defesa.
• Dificuldade de lidar com seu próprio corpo, considerando-o pouco atraente.
• Comportamento auto-destrutivo, levando a criança a parar de brincar,
desinteressar-se dos estudos, fechar-se em si mesma, tornar-se lenta ou
inquieta. O adolescente pode manifestar sinais de violência, mostrando-se
muito irritado e pouco tolerante quando o elogiam.
62

• Baixa auto-estima, uma vez que se evidenciam sentimentos de menos valia


por se perceber diferenciada e escolhida para a prática de abusos sexuais.
• Comportamentos auto-destrutivos podendo até, dependendo da
organização psicológica e da estruturação da personalidade, tentar e cometer
suicídio.
• Sexualidade vista como punitiva, com culpabilidade, sem prazer, podendo
interferir de forma traumática no jogo da sedução, erotização, oferecendo
possível dificuldade de relacionamentos sexuais na idade adulta.
• Em alguns casos é comum que ocorram depressão, angústia e sentimento
de inferioridade. (QUEIROZ, 2009. p.7)

Barros (2006. p.43) acrescenta outras consequências que facilitam a


identificação do abuso sexual:
• “Mudança repentina no comportamento da criança/adolescente
• Roupas rasgadas ou manchadas de sangue
• Erupções na pele
• Vômitos e dores de cabeça sem explicação médica
• Dificuldades para caminhar
• Dor, edema, lesão, infecção urinária, secreções e/ou sangramento nas
regiões genitais ou anais
• Doenças sexualmente transmissíveis
• Auto-flagelação
• Comportamento agressivo, raivoso e/ou alterações de humor
• Comportamento sexual inadequado à idade, como vergonha excessiva de
trocar de roupa na frente das pessoas
• Desagrado ao ser deixado/a sozinho/a em algum lugar ou com alguém
• Regressão ao comportamento infantil, como fazer necessidades fisiológicas
na roupa, chupar dedo, choro excessivo
• Apresentar ideias suicidas, ou tentativas
• Alegar ter sido violada/o por parentes
• Depressão
• Psicose
• Fugas de casa e/ou medo de retornar à casa
• Faltas freqüentes à escola
• Distúrbios do sono
• Medo de escuro
• Suores
• Gritos e/ou agitação noturna
• Distúrbio no aprendizado
• Masturbação visível e contínua
• Brincadeiras sexuais com ou sem agressividade e/ou conhecimento sexual
inapropriado à idade
• Arredia em demasia com adultos, em especial com pessoas próximas
• Segredos e brincadeiras isoladas com adulto”

Esta lista de conseqüências comportamentais das crianças e adolescentes


vitimados pela violência sexual, especialmente, pela intrafamiliar, ilustra bem a
gama de possibilidades de reações que as vítimas podem ter. Ilustra, também, a
subjetividade das conseqüências, de modo que os familiares, comunidades e
63

profissionais devem estar atentos e, numa criança que apresenta vários destes
sinais em conjunto a suspeita de abuso deve ser investigada seriamente.

Langberg (2002), citado por Barros (2006), divide as marcas do abuso sexual
em planos, como se segue:

• “No plano físico – (...) consumo exagerado de drogas, álcool, comida, sexo e esbanjamento
de dinheiro para compensar ou diminuir o medo e a ansiedade. (...) tentativa de suicídio (...)
auto-mutilação (...) tais como: queimar-se, cortar-se, flagelar-se, morder-se, arranhar-se,
raiva, baixa auto-estima, etc.
Esse comportamento destrutivo traz consigo humilhação (...) sentimento profundo de auto-
rejeição. A dor tem o poder de aliviar o medo e angústia da vítima, que se considera um ser
repugnante e merecedor de punição. (...) vício por sexo manifesto através da necessidade de
múltiplos parceiros, aversão à prática do ato sexual, sadomasoquismo, prática compulsiva da
masturbação, prostituição, mudanças e conflitos relacionados à orientação sexual,
homossexualismo ou desejo sexual por crianças, quando se tornam adultos. (...) O sexo é
praticado de forma compulsiva na tentativa de acalmar o turbilhão de emoções e frustrações
que teimam em vir à tona, ameaçando explodir como um vulcão.
• No plano emocional – (...) possuem sentimentos de vergonha e profunda rejeição por si
mesmos. (...) possuem medo de investir em relacionamentos, (...) sensação de isolamento,
transtorno da identidade (...) buscando desenvolver relacionamentos onde desempenhem
papéis controladores, já outros adotam a postura submissa e dependente. (LANGBERG,
2002 apud BARROS, 2006, p.44-46)”.

Entendemos a partir de Oliveira e Silva (2002), que as crianças vítimas da


violência “podem apresentar baixa auto-estima, hostilidade, agressividade,
empobrecimento das habilidades sociais e depressão”, mas também “distúrbios
relacionados à sexualidade”, na infância ou idade adulta. Também podem sofrer
outros efeitos como “atrasos de linguagem, déficit cognitivo, agressividade, rejeição
por parte de outros grupos, abuso de álcool e drogas”.
As vítimas têm “frequentes pensamentos e recordações recorrentes sobre o
abuso, medo, ansiedade” e certa tendência a não acreditar na própria capacidade de
lidar com situações, podendo se tornar pessoas passivas e incapazes de se
protegerem, “permitindo que os outros façam consigo o que quiserem, explorando-
as muitas vezes”.

Ainda de acordo com Silva e Oliveira (2002, p.17), os sintomas a curto prazo
são:

“comportamento sexualizado, ansiedade, medos, pesadelos, depressão,


isolamento social, queixas somáticas, fugas de casa, Transtorno de Estresse
Pós-Traumático, comportamentos autodestrutivos, problemas escolares,
pensamentos suicidas e comportamentos regressivos como enurese, choros
e birra”.
64

As autoras afirmam que a longo prazo

“existe uma tendência ao desaparecimento destes sintomas de 12 a 18


meses após o abuso sexual. Um número considerável de casos, contudo,
apresenta agravamento dos sintomas, que podem convergir para depressão,
revitimização, perturbações no sono, ansiedade, problemas com
relacionamento sexual, uso abusivo de substâncias, ideação suicida,
promiscuidade e prostituição.” (SILVA e OLIVEIRA, 2002, p.17)

Segundo o ginecologista e obstetra Rivaldo Mendes de Albuquerque – que


trabalha no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros/CISAM, referência no
atendimento à mulher vítima de violência, no Recife, entrevistado por nós no dia 23
de Setembro, de 2009 – “falar sobre violência é difícil até mesmo entre os
profissionais de saúde, e muito mais difícil com uma mulher que fora vítima de
violência sexual na infância, na adolescência ou na vida adulta”.
Ele afirma que a mulher não encontra abertura para falar sobre violência
sofrida, nas consultas médicas em geral. Estas são baseadas nas queixas, que
podem estar camufladas e advir de violência. Há uma recomendação da Federação
Brasileira da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia para que seja perguntada,
sutilmente, à mulher “se alguma vez na vida a mulher já foi vítima de violência
sexual”.
As mulheres desconhecem os locais onde podem buscar apoio em
Pernambuco, e as que foram vitimizadas na infância/adolescência, têm menos
apoio. As mulheres que foram vitimizadas precisariam de apoio psicoterápico
contínuo, por ser a violência um trauma, tendo a usuária possibilidade de decidir
quando está pronta para parar com a terapia.
Segundo o médico, é expresso pelas usuárias do serviço de saúde, que
passaram por situação de violência sexual, um sentimento represado, muitas vezes
durante anos.
Ao ser indagado sobre as consequências na vida adulta de uma mulher que
fora vítima de violência sexual, em algum momento de sua vida, Dr. Rivaldo nos
relatou as principais, do ponto de vista médico ginecológico: disfunção sexual, como
dificuldade de chegar ao orgasmo; pudor para se auto-examinar; dificuldade de se
relacionar; dor durante o ato sexual e/ou dor pélvica sem causa orgânica e
irregularidade menstrual. Ou seja, tudo o que envolve o órgão genital faz lembrar a
violência sofrida
65

Ao perguntarmos se tinha informação sobre algum serviço de saúde voltado


ao atendimento desse tipo de vitima na infância/adolescência, ele afirmou
desconhecer qualquer local especializado neste acompanhamento que deveria ser
contínuo.
Percebemos que crianças/adolescentes que passaram pela situação do
abuso sexual terão uma visão de mundo diferente das demais que tiveram uma
infância com amor e proteção. A sensação de traição é marcante nas vítimas, e gera
mulheres com dificuldades de confiar nos outros e em si mesmas.
É uma experiência, pelo que percebemos, impossível de ser esquecida
plenamente e, segundo Langberg (2002), citado por Barros (2006), a maneira de
enfrentar tal realidade é informar e conscientizar a sociedade da existência deste
tipo de violência e, principalmente, ensinar as crianças sobre seu próprio corpo e
sobre como se auto-proteger em caso de ameaças de abusos. Acrescentamos que
há uma visível necessidade de profissionais e espaços que apóiem
biopsicossocialmente as mulheres que foram vitimizadas sexualmente, sem limite de
tempo imposto.
Para melhor compreensão sobre o sentimento da mulher que vítima de
violência sexual, no tópico adiante, mostraremos variados depoimentos de mulheres
que utilizam a rede de apoio virtual como forma de lidar com suas dores e enfrentar
as consequências da violência sofrida.
66

4.2 A Rede Virtual de Apoio e os Depoimentos de Mulheres


Sobreviventes do Abuso Sexual

Trouxemos depoimentos de algumas mulheres que publicaram na internet,


em sites de relacionamento, suas histórias de vida e de violência sexual sofrida.
Achamos importante cada parte dos depoimentos, apesar de muitos serem longos,
para evidenciar os sentimentos destas mulheres.
A internet se torna cada vez mais acessível à população, embora o número
de pessoas que não possuam acesso à mesma ainda seja muito grande. Neste
espaço virtual, as pessoas se agrupam em “comunidades” com temas/objetivos
comuns.
Em famoso site de relacionamento – “Orkut” – encontramos diversas
comunidades voltadas à temática da violência/abuso sexual. Estas comunidades em
seus textos de apresentação divulgam a intolerância sobre a violência sexual
infanto-juvenil, e também chamam pessoas que foram vítimas para debater,
conversar e se ajudarem mutuamente.
Mulheres que foram vítimas e estão relativamente bem com suas histórias de
vida ajudam outras que estão com dificuldades emocionais. Ou mesmo mulheres
que estão com dificuldades ajudam outras, pelo simples fato de relatar suas histórias
e demonstrar que entendem suas vivências e sentimentos.

Márcia Longo é uma destas mulheres que superou sua dolorosa vivência e
hoje se dedica a ajudar outras mulheres. Quando entrevistada pela Revista Marie
Claire tinha 42 anos. Relatou suas vivências na entrevista sobre “Infância Roubada”,
escreveu um livro contando detalhadamente seu sofrimento, e uma cartilha para
ajudar profissionais a identificar e lidar com o abuso sexual.
67

Ela coordenou um grupo de auto-ajuda on line, Grupo Florescer, que agrupa


mulheres com codinomes de flores e se encontram aos sábados à noite, via internet,
para debater textos, expressar sentimentos e vivências e, assim, alternativamente se
apóiam. O grupo continua ativo, mas hoje é coordenado por outra pessoa, possui
uma comunidade em conhecido site de relacionamentos, “Orkut”, onde as
participantes trocam textos para as reuniões semanais.

Márcia Longo:
“Quando eu tinha 3 anos, minha mãe teve depressão profunda. Meu pai, que
era eletricista, tomou as rédeas da casa e passou a cuidar de mim e do meu
irmão de 1 ano. Soube muitos anos depois que, nessa época, minha mãe o
flagrou fazendo sexo oral e mexendo nos meus genitais, enquanto me dava
banho. Ela ameaçou se separar. Mas, sem apoio da família e sem forças,
resolveu deixar as coisas como estavam, pois precisava dele para nos
sustentar.
Com 4 anos, meu pai tirou minha virgindade. Lembro de que algo estranho
aconteceu, de que fiquei machucada, mas, como eu era muito pequena, as
memórias se apagaram. O assédio continuou até os meus 10 anos. Ele só
parou quando escapei de mais um de seus ataques e ameacei contar para
minha mãe. Mas não foi o fim da tortura. Por mais de um ano, meu irmão
mais velho me bolinou. Só depois de adulta, soube que minha mãe estava
consciente de tudo. Relembrar é doloroso, mas é o único caminho para curar
o trauma.
Não posso mudar o passado, mas transformei o presente. Me casei duas
vezes, tenho dois filhos lindos e perdoei minha mãe por sua omissão. Tenho
um site [www.eumelembro2003.hpg.com.br] e luto para que essa barbaridade
não se perpetue e para que as leis relativas ao abuso sexual protejam, de
fato, quem precisa delas”. (MARIE CLAIRE, edição 178, Jan/06)

Percebemos que o abuso sexual vivido por ela agrediu-a física e


psicologicamente, foi realizado por pessoas de sua inteira confiança, e omitido por
sua mãe.
Márcia luta por reconhecimento, e para enfrentar as consequências do abuso
sofrido. Mesmo tendo passado por experiências extremamente adversas, consegue
lidar com seu passado e superar positivamente suas duras vivências.

Uma das participantes do Grupo Florescer de auto-ajuda, anteriormente


coordenado por Márcia Longo, nos disponibilizou uma entrevista feita pelo Jornal
Diário de São Paulo, em maio de 2009, “Inimigo íntimo: infância interrompida”.
Na entrevista, “Flor de Lótus”, professora, de 32 anos, revela que gestos de
carinho hoje podem desencadear dor e medo. Ela foi vítima de abuso sexual pelo
pai, dos 12 aos 29 anos e encontrou na Internet o apoio para lidar com a realidade
68

que vivia, encontrou, também, coragem para revelar a família e quebrar o ciclo do
abuso, denunciou e está processando o pai, um inspetor de alunos de 62 anos.

Flor de Lótus:

“O que me dói é me criticarem porque não falei antes. Sempre tive medo que
não acreditassem em mim. Vivi todo esse tempo recolhida no meu mundo”,
desabafa a professora, que durante os anos de silêncio desenvolveu
compulsão alimentar”.
“A família perfeita não existia. Meu irmão disse que viu uma vez, mas não
falou nada. E minha mãe trabalhava demais”.
“Meu pai nunca me viu como uma filha. Sempre como uma mulher”,
“Por pura sorte não engravidei. Não estava na minha vida ser mãe de um filho
dele”
“O abuso é passado, mas ainda está 100% no meu presente”
“Não tenho como apagar essas marcas, mas posso conseguir conviver com
elas sem dor”
“Quero beijar, namorar, sair de mãozinha dada, bem adolescente mesmo. E
quero casar e ter filhos. Mas tenho que descobrir que sexo é bom. Para mim
ainda é uma coisa ruim”
“Minha vida começou de novo. Agora sim estou em busca da minha
felicidade” (DIÀRIO DE SÂO PAULO, 2009)

Depois de denunciar, Flor de Lótus tentou suicídio três vezes. Somente tem
sono tranqüilo durante o dia, como “conseqüência das madrugadas em claro
rezando baixo para que não acontecesse de novo. Ela não gosta de abraços e só se
senta de pernas cruzadas”, para se proteger. Faz tratamento com antidepressivos,
análise e terapia de energização.

Trouxemos alguns depoimentos, histórias de vida contadas por mulheres que


residem em diversos locais do país e foram vítimas da violência sexual na infância
e/ou adolescência e sofreram duras consequências. Estes depoimentos foram
retirados de sites de relacionamento e blogs sobre violência.
Identificamos estas mulheres com nomes de pedras preciosas, para manter
suas identidades preservadas, e por acreditarmos que cada indivíduo tem algo de
precioso a acrescentar e contribuir para o desenvolvimento do mundo e das
pessoas. Cada ser humano a partir das suas singularidades, histórias de vidas e
compartilhamento de suas vivencias possibilitam uma riqueza de aprendizados tanto
científico quanto aqueles que vão para além da esfera acadêmica. A percepção das
particularidades do outro num contexto que nos torna cada vez mais iguais, nos faz
refletir sobre os espaços desses limites e nos desperta a absorver o que tem de
mais rico nessas experiências e pessoas.
69

Ágata:
“Eu mesma venho me tratando de depressão e precisei de bastante terapia
para recuperar a minha capacidade e liberdade para o prazer sexual. Ainda
luto com a timidez sempre que preciso falar sobre o meu trabalho, embora me
saiba bastante competente. Estou em terapia há mais de dez anos. Tanto que
tornei-me uma terapeuta.
Ultimamente, contudo, percebo que meu progresso tem esbarrado no muro
do silêncio. Nenhum dos profissionais com quem me tratei estava preparado
para me ajudar a ir mais a fundo. Nenhum havia estudado nada sobre o
assunto. Não havia na minha cidade nenhum grupo de apoio para quem foi
vítima, embora eu more em Recife, uma grande capital. Nenhum apoio
governamental específico.
Tudo isso foi me chocando muito, sobretudo ao ver depoimentos no orkut de
mulheres que eram abusadas por seus pais, desde a infância até a idade
adulta, e continuavam sendo, sem terem força para buscar emprego ou ajuda
de qualquer forma. Na verdade, o tom dos depoimentos é quase sempre: o
que faço para conseguir não me matar?! Coisas tão chocantes que poderia
4
pensar que fosse fake se não tivesse eu mesma passado pelos abismos do
desespero ao ser abusada por alguém da família.
Por tudo isso e para continuar me curando e apoiando a cura das demais
estou me despindo da vergonha e abrindo aqui a minha caixa de pandora.”
(BLOG INOCÊNCIA)

Percebemos que os sites de relacionamento constituem uma forma alternativa


que as mulheres sobreviventes encontraram para compartilhar suas vivências,
entender o que sentem e se sentirem acolhidas, e não isoladas, ao perceberem que
há outras mulheres que passaram pela difícil experiência da violência sexual.

Notamos que muitas destas mulheres se fortaleceram após períodos de crise.


Estas mulheres, além de se recuperar apesar da dor, ajudam outras que passaram
ou passam pelas mesmas situações. Através de depoimentos, levam palavras que
fortalecem umas as outras e, assim, geram uma rede de apoio.

Topázio:

“É possível
É possível ficar bem, é possível viver nossas vidas sem ficar nos culpando o
tempo todo, sem ficar achando que somos as piores pessoas da face da
terra.
Quando comecei achava tão difícil conseguir manter o controle sobre minha
vida. As vezes me sentia fraca como me fizeram acreditar durante muito
tempo, mas aos poucos fui superando, aos poucos fui me fortalecendo. Dizia,
quero de volta tudo que tiraram de mim. Acredito que o fato de ter tomado a
decisão de ficar bem me impulsionou. Eu queria superar, eu queria dar a volta
por cima, eu queria ser feliz em minha vida. Por mim, por meus filhos! Essa
foi a melhor decisão que tomei. Hoje sei que é possível ficar bem, sim. Não
importa o que houve, a gente consegue superar. Não estou dizendo que é
fácil e nem que acontece de uma hora pra outra. É preciso ter determinação,
é preciso querer, querer muito...

4
Forma de apresentação anônima, ou por pseudônimo em sites de relacionamento.
70

Hoje tenho meus planos, minhas metas que ainda quero alcançar, mas tenho
certeza de que sou capaz e que conseguirei...”

Percebemos que há sempre fatores que contribuem para o fortalecimento


destas mulheres, seja a fé religiosa, pessoas que verdadeiramente as apóiam, ou
mesmo esta rede virtual.

Jade:

"Até os 30 anos de idade, eu não conseguia me lembrar direito da violência


que sofri na infância. Só sabia que sentia raiva se um homem me olhasse
com interesse na rua. Uma reportagem sobre abuso que li me fez rememorar
alguns fatos. Eu tinha apenas 3 anos quando meu pai começou a pôr o dedo
na minha vagina enquanto me dava banho e me induzia a fazer sexo oral
nele. Um dia, minha mãe o flagrou e passou a me culpar. Com ódio, ela parou
de cuidar de mim. Aos 4 anos, me agarrei ao meu pai como minha única fonte
de afeto. Quando ele passava a mão em mim, eu confundia com carinho e
até gostava, porque não entendia direito. Os abusos continuaram até os 10
anos. Nessa época, meu irmão, de 17 anos, passou a fazer as mesmas
coisas comigo. Um dia, meu pai me estuprou violentamente, e meus gritos
não adiantaram para fazer com que parasse. Eu não acreditava que ele, que
disse que me amava tanto, me havia feito sentir tamanha dor. Fiquei três dias
com dores horríveis na barriga e tendo pesadelos. Comecei a ficar fascinada
pela idéia de morrer. Fui até a linha do trem. Entretanto, não tive coragem de
me jogar. Na adolescência, me isolei; tinha vergonha do que me aconteceu.
Vivia em depressão, até que decidi procurar um grupo de apoio..."

Diante de nossos estudos percebemos que muitas vítimas de violência sexual


“apagam da memória” suas lembranças do abuso, como forma de se defender da
dor que as lembranças causam.

Amazonita:

“Minhas lembranças começam por volta dos 11 anos. O abuso sempre


aconteceu de forma sutil, não havia violência física. Meu pai começou com
carinhos, que eu nem entendia como "errados" ou "abusivos", porque ele
nunca tinha sido carinhoso antes. Durou toda minha adolescência, e as
sequelas psíquicas duram até hoje. Mas hoje sou uma outra mulher. Fiz
terapia com 5 profissionais diferentes por 16 anos, ainda faço. Há 15 anos
encontrei apoio e conhecimento no Evangelho de Jesus, através da Doutrina
Espírita , e nela continuo sustentando meus passos. Conheci pessoas
maravilhosas no último ano, através do Grupo Florescer, e no compartilhar de
nossas experiências e conquistas, tem acontecido minha maior recuperação.
Mas a leitura do livro Eu Me Lembro é que marcou definitivamente minha
transformação. A partir dele retomei minha vida, de forma mais digna, como
deve ser. Te conhecer e me comunicar com você, Márcia, tem sido minha luz
nesses últimos meses. E não tenho mais dúvidas: É POSSÍVEL SE
RECUPERAR E VIVER BEM, TRANSFORMANDO TODA A DOR QUE NOS
CAUSARAM! Voltei a trabalhar, a estudar, a sair de casa. Ainda é difícil, às
vezes, mas já abraço as pessoas, consigo olhar nos olhos e aceitar carinho.
Tenho duas filhas, que iluminam minha vontade de continuar, e um marido
71

companheiro e amigo, que está sempre com a mão estendida. Tenho amigas,
que compartilham da mesma dor, e que me fizeram sentir que não estou mais
sozinha. É possível sobreviver ao que vivenciamos, e vivermos, com
dignidade e respeito por nós mesmas”.

Ao contrário do caso de “Jade”, o abuso perpetrado contra “Amazonita”,


segundo a mesma, era de forma sutil, não agressiva fisicamente, porém da mesma
maneira deixou marcas profundas diante da confusão entre os “papéis” dos
membros da família e da sexualidade despertada precocemente.
Turqueza:

“Minha História...por favor me ajudem


Era apenas uma menina de 5 p/ 6 anos e eu e meus pais sempre íamos a um
sítio do meu tio!Certa vez eu estava sozinha e meu primo começou a me
agarrar e fazer uns carinhos estranhos!Fiquei assustada,e quando ia sair ele
falou se eu falasse pro meus pais eu iria pagar!Então comecei a ficar sempre
próxima de meus pais!Certa vez fui pro riacho tomar banho com minhas
primas e, de repente ele chegou ,ñ lembro por q motivos minha primas
tiveram que sair e ele me agarrou e começou a passar a mão nas minhas
partes íntimas e eu comecei a chorar e ameacei gritar e nisso ele parou,me
senti muito estranha tive nojo do meu próprio corpo!Passado algum tempo,
acabei esquecendo,mas algo errado ficou em mim,comecei a ficar com medo
de tudo e todos. Fiquei retraída e não sabia o porque, e com vontade de me
vingar de alguém que eu não sabia quem! Quando cheguei a mais ou menos
7 p/ 8 anos,comecei a lembrar disso e comecei a ter uns certos distúrbios e
passei a ter sonhos eróticos e de abuso! E uma raiva crescendo dentro de
mim como se eu precisasse descontar em alguém e comecei a ter olhos mas
para as crianças, como se fosse desejo! Odiava os homens e descobri que
comecei a gostar de meninas. A palavra casamento me dava e dá arrepios,
passava a ter medo!(...)
Enfim, desde que fui abusada não fui mais criança, perdi minha infância,fiz
besteira e hoje tenho medo de me relacionar com pessoas...E sempre a
depressão toma conta de mim, choro sem motivo, não sei mais o que fazer.
Por favor, sei que tem casos piores, mas isso me consolar! já grata a todos”

É comum e natural que diante da quebra de confiança por parte de um ente


querido, as mulheres que foram vítimas de violência sexual tenham dificuldades de
se relacionar com outras pessoas.

Quartzo:

“Será que foi tudo culpa minha?


Pensei muito em contar minha história.pois na verdade tenho vergonha de
mim mesmo e do que aconteceu.
Me lembro quando eu tinha uns três ou quatro anos, no máximo. Lembro-me
do meu pai chegando bêbado, horrivelmente bêbado. Era todos os dias.
Chegava bêbado, chegava gritando e batendo em minha mãe eu e meus
irmãos nos escondíamos de medo. Eu dormia no mesmo quarto que eles,que
minha mãe e meu pai. Eu só com quatro anos via minha mãe chorando
dizendo que não queria fazer sexo e ele a obrigava, mesmo ela chorando. Eu
muito pequena não entendia muito o que estava acontecendo.(...)
Meu irmão do meio começou a abusar de mim era todos os dias. Ele me
trancava e fazia o que queria e me ameaçava. (...)
72

Completei 9 anos cansada de passar fome e necessidades, comecei a


trabalhar eu e meu irmão um ano mais velho, que eu e mais dois amigos da
mesma idade saímos às madrugadas para feira e cemitérios para cuidar de
carros, podia estar frio,chovendo ,sol que nós ali estávamos, ganhávamos
uma micharia . Ficava feliz pois no final da feira catávamos verduras e frutas
do lixo e levávamos para casa. Eu não via nem a cor do dinheiro. Ai começou
a minha desgraça, minha maior desgraça, eu e minha amiga que era da
mesma idade conhecemos homens, quer dizer velhos, ele nos fez uma
proposta, ele disse que ali nós não ganhava nada. Se nós saíssemos com ele
nós iríamos ganhar muito mais dinheiro. No principio disse que não. Eu e
minha amiga conversamos muito . Ela também era e é muito pobre e eu
pensei que meu próprio irmão me tem sem nada, e com o dinheiro não ia
mais passar fome eu ia ajudar minha mãe. Meu irmão e o irmão dela
continuaram indo na feira e eu ela dizia que ia fazer faxina em casa das
mulheres. Que nada nós nos encontrávamos com eles. A primeira vez que
me deitei com aquele veio foi horrível, eu não tinha nem 10 anos, não tinha
nem corpo, era uma criança quando vi deitar sobre o meu corpo
simplesmente olhei para o lado e chorei, o foi o choro mais doído. Ai que
nojo eu sentia de mim nossa. De um foi para mais um e para mais um, assim
em diante fui chegando cada dia mais tarde em casa, minha mãe só
perguntava onde eu estava. Eu dizia que estava trabalhando, dava o dinheiro
pra ela,e ela não dizia nada. Hoje eu penso, meu Deus, como ela não dizia
nada. Eu era apenas uma menina, chegava com dinheiro e ela simplesmente
não dizia nada, não ia atrás para ver o que eu estava fazendo,não me
colocava contra a parede e dizia o que estava acontecendo. Porque ela não
fez isso? Tinha me poupado tanto sofrimento, vocês nem imagina. (...)
Aos 12 fiquei grávida e fiz um aborto e tentei me matar. Todos diziam que eu
estava louca. Aos 12 também saí da casa da minha mãe, saí daquele inferno,
não aguentava mais tudo aquilo. Comecei a me vender por qualquer coisa,sai
da escola e aí que bebia,bebia pra chorar, pois nem lágrima mais tinha.(...)
Pedia comida na casa dos outros e era humilhação atrás de humilhação e os
tios da minha própria família. Fiquei de um lugar para o outro sem rumo a
seguir. Quando tinha 15 anos fui morar com uma família evangélica. Aí
pensei agora minha vida vai melhorar. Comecei ir na igreja e tudo larguei
daquilo tudo. É mas não foi assim, ele começou a me assediar, me agarrava,
dizia coisas pra mim até o dia que ele tentou a força comigo e eu fui embora
dela mais uma vez. Desiludida, passei maus bocados. Nossa que bocados!
Aos 17, encontrei meu marido e casei com ele, não por amor, mas por não
querer mais aquela vida de humilhações. Hoje faz 6 anos que estou com ele.
Tenho 23 anos, uma filha de três e a mulher mais infeliz do mundo. Só estou
feliz quando bebo e nem é felicidade, não sei o que é.
Eu sei que estou doente, eu sei que preciso de ajuda, mas não tenho força,
não sou feliz. Eu estou viva ainda só por causa da minha filha.
Eu não durmo à noite, fico noites e noites sem dormir. Brigo tanto com minha
filha e com meu enteado. Eu não queria gritar com eles , mas me irrito fácil.
As vezes, eu bebo pra não brigar com eles. Vocês podem achar que eu estou
ficando louca, às vezes, até eu penso isso, mas não dá para eu ser feliz pois
não dá para eu apagar o meu passado, não dá. Obrigada por vocês me
escutarem”

Vemos claramente a dor e o desespero nas palavras desta mulher que relata
sua história. Seu depoimento nos traz as mais duras consequências que a violência
sexual pode trazer: a falta de auto-estima. Porém, mesmo com a dura vivência,
“Quartzo” se prende ao alicerce que a mantém: a vida de sua filha.
73

Percebemos em muitos depoimentos que lemos, em alguns que não estão


apresentados neste estudo, que muitas mulheres têm essa vontade/necessidade de
ajudar outras mulheres/crianças/adolescentes vítimas de violência, como forma de
diminuir suas dores ao contribuir para que outras pessoas sejam apoiadas.

Ametista:

“Minha história não é muito diferente destas, com + ou – 5 até os 21 anos,


passei por episódios de agressão, violência física e sexual, fui molestada pela
minha mãe que, me lembro bem, tinha o costume de manipular minha
genitália e eu muito pequena não entendia, mas até hoje me lembro bem
como eram as tais carícias, e também fui molestada por vizinhos mais velhos,
na época pré -adolescentes, apenas um conseguiu ter penetração forçada no
meu ânus, mas consegui escapar, e todos os outros fizeram sexo oral e
passavam seus genitais na minha vagina, todos juntos, me lembro deles
dizendo que “estavam brincando de fazer besteiras” e quanto à proteção,
defesa e ajuda dos meus pais minha história é como a de vocês, só que o
pior é que além de existir o silêncio de ambas as partes, constantemente eu
passei a ser agredida fisicamente, fui julgada como doente mental. Isso
mesmo,meus pais passaram a me tratar como a louca que precisa de surras
constantes e ser isolada do convívio com o restante da família, fui agredida
de várias formas por muito tempo, sofri muitas humilhações, apanhei de
pedaços de pau e varas de bambu, cinto, tive meus cabelos arrancados e já
tive minha cabeça raspada por máquina zero, a pedido da minha mãe. Só me
lembro que nem ao jardim de infância eu ia ainda; já fui arrastada no meio da
rua na frente de outros coleguinhas e considerada como a biscatinha doente
mental da família. Até uns 4 anos atrás, ainda me lembro dos meus parentes
me tratando com exclusão por muito tempo. Enquanto meu irmão ía à escola
de carro e sapatos novos, eu ía à pé, com chuva ou não, (nós estudávamos
na mesma sala) com sapatos e roupas doados por vizinhas que tinham dó da
minha situação, fui colocada pra fora de casa aos 11 anos, e graças a Deus,
uma vizinha me acolheu para que eu não dormisse na rua, a irmã desta
senhora teve a coragem de denunciar o que ela viu minha mãe fazer por
anos. Ninguém prendeu minha mãe ou pai, mas algo deve ter acontecido,
pois o delegado intimou minha mãe e me pediu que mostrasse os sinais da
agressão (só me lembro disso), o tempo passou e eu aprendi as coisas da
vida na rua, mas nunca usei drogas, embora tivesse presenciado muitos
episódios destes com as pessoas que passei a conviver. (...)”

Como pudemos perceber, a maior parte dos perpetradores da violência


sexual são homens, no entanto, mulheres/mães também violam/abusam
sexualmente das filhas/filhos. Esta violência perpetrada por uma mulher em
detrimento de outra não foge à regra de trazer profundas consequências para a vida
biopsicossocial da criança/adolescente.

Segundo Helena Damasceno, educadora social que escreveu o livro “Pele de


Cristal”, ao qual tivemos acesso a partes publicadas em depoimentos pela mesma
autora, em comunidades do “Orkut”, site de relacionamentos.
74

“O abuso sexual deixa muitas marcas e elas passam muito tempo entrando
em seus poros, alma e vida. Não pense que em alguns meses tudo vai
acabar, que basta fazer psicoterapia, duas vezes por mês, e depois de três
ou quatro meses tudo vai passar. Saiba que não há milagres! Não há uma
fórmula mágica de um bolo da felicidade! É necessário dedicação, força de
vontade, paciência e fé em si mesma! É necessário tempo, muito trabalho e
dedicação pessoais, um compromisso interno e por você”.

A autora escreveu o livro com base na própria experiência de abuso sexual


que viveu. No livro, Helena conta as consequências, os sentimentos, mas também
oferece aos leitores palavras de incentivo para superação das experiências
traumáticas.
“Sexo pra mim era um assombro, uma terrível página que queria rasgar da
minha vida, mas que não podia fazer isso assim tão simples, pois sempre
haveria uma segunda pessoa envolvida. Então, como viver escondendo que
não sentia prazer e que tinha medo do contato sexual, como explicar que
sentia nojo do toque da mão estranha na minha pele, menina ainda, como
dizer que eu tinha medo de enlouquecer com os pesadelos e as lembranças
que me apareciam fatalmente, como dizer que tinha medo de ser usada de
novo, como explicar que eu tinha medo de tudo? Não dizia nada, chorava, me
punia e me trancava silenciosamente naquele quarto de dor lacrado pela
desesperança e fingia, mentia porque precisava daquele afeto temporário pra
não surtar, pra não perder totalmente o resto de fé que tinha na vida e nas
pessoas e porque não dizer, em mim mesma”.

“Quando acreditamos que somos sujas e culpadas, estamos reproduzindo os


padrões da revitimização. Não fique pensando sobre os motivos e porquês
dessa violência. Trate de cuidar de você, do seu espaço de conquistas
pessoais, da ação de quebrar esse ciclo de dor, medo e culpa. Mude o foco
do seu olhar, amplie-o. Mudar faz parte da vida. Mudamos o tempo inteiro,
mesmo sem perceber. Não receie, você não é mais aquela criança assustada
e ferida. Você está viva, aproveite a oportunidade de viver a experiência
humana. Não viemos pra cá para sofrer ou pagar dívidas.
Viemos apreender harmonia, equilíbrio, amor, respeito e solidariedade.”

Concluímos que muitas mulheres que foram vítimas da violência sexual


entram em profunda depressão e perdem a força para lutar contra as consequências
causadas pelo abuso. Porém, outras mulheres, apesar das duras sequelas
encontram mecanismos de sobrevivência. Estas mulheres, a quem chamamos de
sobreviventes, se agarram à fé, a pessoas, a ideias, a ideais para lutar contra seus
próprios problemas.

Para melhor abordarmos a problemática em questão, tivemos contato com


duas mulheres, irmãs, que foram vítimas de abuso sexual na infância,
simultaneamente, que encontramos em um site de relacionamentos. Estas nos
enviaram os depoimentos que apresentaremos a seguir.
75

Cristal:
“Passei muito tempo com as lembranças do que havia ocorrido
completamente bloqueadas na memória. Durante parte da minha infância, fui
uma menina muito ativa e tinha um poder de liderança enorme entre os
outros colegas. Com o tempo, tudo foi mudando, e aquela menina de olhar
vivo e cheia de alegria foi se tornando uma criança desconfiada,
extremamente agressiva e depressiva. E, assim, foi durante o resto da minha
infância e toda a adolescência. Acabei criando um mundo muito particular,
onde só tinha acesso quem eu permitisse. Isso foi causando um isolamento
cada vez maior, e eu não podia compreender como eu não conseguia ser
“normal” como as outras meninas da minha idade. Já havia em mim a
desconfiança de que algo havia ocorrido. Sempre tive uma curiosidade além
do normal e, por conta disso, lia muito. Acabei tendo contato com textos que
abordavam a violência sexual, além de assistir a vários filmes sobre o mesmo
assunto. A desconfiança aumentava. Passei a imaginar todos os homens ao
meu redor como culpados da minha situação, até mesmo o meu próprio pai.
As lembranças do fato ocorrido na infância retornaram no início da minha
juventude, após os vinte anos de idade. Ao mesmo tempo em que me senti
péssima, senti também um alívio enorme por saber que o que havia de errado
não era comigo, mas sim algo que acontecera no passado. Nunca tive
vergonha de falar sobre esse assunto, pois nunca me senti culpada pelo que
aconteceu, mas a sensação de impotência é terrível.

Havia tido apenas um namorado aos vinte anos, e simplesmente não


suportava quando ele me tocava ou me beijava. Tinha nojo e sentia como se
estivesse fazendo algo muito errado. Não achei justo com ele e acabei por
me afastar. Isso me fazia sofrer e a cada dia me isolar mais. Ele teve uma
importância enorme nesse processo, pois acredito que por conta desse
contato físico fui capaz de desbloquear as lembranças do que havia ocorrido
na infância.
Contei aos meus pais, pois o abusador freqüentava a casa como amigo da
minha mãe quando eu era criança. Houve um misto de incredulidade e revolta
no começo, mas depois a situação foi esquecida, como se nada nunca
tivesse acontecido.
Foi um período muito difícil. Eu me sentia muito sozinha e cada vez mais
revoltada por não ter os meus pais ao meu lado.
Vivia completamente isolada. Passei a apresentar sintomas crônicos de
depressão e fobia social, chegando a perder várias disciplinas na faculdade
por conta disso. Após a minha formatura, eu me tranquei no quarto e passei a
viver em meu próprio mundo. Trancada vinte e quatro horas por dia, sem
querer ver ninguém, sem querer sair, sem ver sentido em nada, assim passei
diversos anos da minha juventude. Até que soube que tinha direito a
tratamento psicológico pelo meu plano de saúde (consulta particular eu nunca
pude pagar e não tinha ajuda dos meus pais), e resolvi agir por mim mesma.
Marquei uma consulta e fui. Não sei como arrumei coragem para fazer isso,
acredito que a vontade de sair daquela situação e finalmente poder viver a
minha vida era tão grande que poderia vencer um dragão se preciso fosse.
Na minha primeira consulta, falei sobre o assunto e chorei durante uma hora
seguida. Doía ter passado por aquilo, mas o que doía mais era a falta de
apoio da família.

Continuei indo à terapia, até que arrumei um emprego. Era tudo o que eu
sempre quis na minha vida. Poder trabalhar e realizar os sonhos que ainda
estavam vivos em mim. Claro que as coisas não acontecem milagrosamente.
Ainda hoje sofro e sinto as conseqüências dos acontecimentos da infância em
minha vida. Continuo fazendo terapia e tomo medicamento antidepressivo.
Sinto-me melhor, mais lúcida e feliz, mas a minha auto-estima foi
completamente destruída. Tive apenas um namorado em minha vida, quando
tinha vinte anos. Hoje tenho trinta e não consigo, por mais que tente, me
relacionar com homem algum. Não confio nos homens. Cheguei a duvidar da
76

minha preferência sexual devido ao nojo que sinto, mas constatei que o
problema não é a preferência sexual e sim o contato sexual. Chego a
fantasiar situações, sinto até vontade às vezes, mas simplesmente não
consigo ter intimidade com homem algum. Não acredito em casamento e não
pretendo ter filhos. O retrato da minha vida íntima pode ser um quebra-
cabeça, como se diversas situações colaborassem para a minha apatia de
hoje em dia. Continuo trabalhando isso em terapia porque me incomoda
demais. Aos trinta anos, ainda estou em busca de uma sexualidade e uma
vida normal”.

Como já comentamos anteriormente, o abuso sexual que se dá no âmbito


familiar/doméstico não se restringe a pessoas com vínculos consanguíneos, mas
também pessoas que têm a confiança dos familiares e das crianças/adolescentes, e
se aproveitam desta confiança para obter prazer através da violação destas crianças
e/ou adolescentes.
Cristal afirma que não dispunha de recursos para custear uma terapia, e nos
informou que também não encontrou este tipo de serviço na rede pública de saúde.
Somente ao dispor de um plano de saúde e que conseguiu iniciar um processo
terapêutico, realidade esta que não é a da esmagadora maior parte das mulheres.
Portanto, além de se tratar de uma desigualdade de gênero e poder, se trata
de desigualdade de classe.

Citrino:
Aos 20 e poucos anos de idade a mente foi buscar no passado lembranças
que me permitiram compreender todas as esquisitices do meu
comportamento na minha vida até então. Foi um período muito difícil em que
eu me negava a acreditar em tudo que “como mágica” me fazia lembrar de
algo tão brutal, da interrupção de uma infância. Dia após dia surgia um fato
novo, uma nova recordação e uma nova resposta para todas as perguntas
que eu vivia me fazendo desde a minha adolescência, e posso dizer que
apesar da dor, dou graças a Deus por haver lembrado, talvez não de tudo,
mas de coisas fundamentais que me ajudaram no processo de auto-aceitação
que ainda está em construção e me permito até arriscar que nunca será
encerrado, pois o trauma e a dor que carrego são para a vida toda.

As lembranças me remeteram aos 8 anos de idade, mais ou menos, quando


eu vivia em um lar com uma mãe completamente desequilibrada
psicologicamente e um pai ausente devido ao seu trabalho.
Nesta época mamãe resolveu voltar a estudar e dentre seus muitos colegas,
um passou a freqüentar a casa diariamente e era notória sua liberdade
naquele ambiente que deveria ser protegido.
Lembro-me dos toques, carícias, abraços e beijos e lembro-me que foram
muitas as vezes, inclusive em ambientes diferentes da casa, o que me leva a
ratificar a total liberdade que aquele homem tinha mesmo com a presença de
mamãe. Não sei o tipo de relacionamento que os dois alimentaram durante
este período, mas tenho plena convicção de que papai não sabia de nada.
Um momento ficou muito marcado em minha mente: eu brincava com uma
boneca Emília (aquela do sítio do Pica-pau Amarelo) e ele chegou, pegou a
minha boneca e escreveu seu nome na testa dela dizendo – “Estou fazendo
77

isso para você nunca esquecer de mim”. Não sabia ele (ou sabia) que eu
realmente não o esqueceria nunca mais, mas não porque o nome dela estava
gravado naquele símbolo de infância, mas porque ele violentou não só um
corpo, ele violentou uma vida, que a partir daquele momento não mais seria a
mesma.

Não lembro quanto tempo durou. Acredito que o contato com este indivíduo
se deu até meus 12 anos, mais ou menos. Mas ainda hoje lembro e me
angustio com os sentimentos que tive que carregar por tanto tempo.
As lembranças ficaram bloqueadas na minha memória, mas o meu
comportamento mudou drasticamente; as notas da escola baixaram muito e
eu chorava porque sentia algo como uma culpa e/ou vergonha de alguma
coisa. Lógico que na minha cabecinha de criança eu não conseguia enxergar
as coisas com tal clareza.
Na adolescência vieram as paqueras e eu era sempre a garota estranha que
se acha um lixo e acredita que não serve para nenhum garoto. Sofria muito
com isso, pois me escondia da vida o tempo todo, tentava entender o porquê,
mas nunca conseguia obter as respostas e isso quase me enlouqueceu.

Passou-se muito tempo e a raiva, a angústia e o medo guiavam a minha vida.


Eu não tinha amigos porque não me achava digna da amizade de ninguém.
Sempre achava que as pessoas que se aproximavam de mim tinham
segundas intenções ou sentiam pena de mim, e eu não gostava disso. Tornei-
me uma adolescente agressiva e cheia de ódio. Odiava o mundo, as pessoas
(principalmente as felizes), odiava filmes românticos e sorrisos.
Um primeiro beijo rolou em uma festinha na casa de uma prima e me fez não
querer beijar ninguém nunca mais na minha vida. – Fiquei sozinha com um
garoto e durante a conversa ele me beijou. Eu prontamente o afastei e
comecei a chorar como se o coitado tivesse feito algo terrível. A minha prima
mais velha ouviu e ficou me perguntando o que ele havia feito comigo, mas
até hoje sinto a vergonha de ter que calar mais uma vez porque não tinha a
resposta.
Ingressei na Faculdade e lá meu comportamento em nada mudou, exceto
pelo fato de eu me apaixonar e rolar o meu primeiro namoro sério. No início
tudo era novidade, mas o medo ainda existia e eu resolvi enfrentá-lo. Com o
tempo, as lembranças começaram a surgir, provavelmente em decorrência
das sensações físicas do beijo, do abraço, do carinho... Entrei em pânico!
Percebi que gostava da presença daquele rapaz, mas sentia nojo quando ele
me acariciava e ao me despedir, a sensação de culpa era tenaz, como se eu
tivesse feito alguma coisa muito errada. Não agüentei e terminei o namoro.
Sofri muito com isso e resolvi não deixar nunca mais ninguém entrar em
minha vida, pois na minha cabeça quem fazia as pessoas sofrerem era eu.

Consegui buscar ajuda através de psicólogos do meu plano de saúde. Fiz


várias sessões que ajudaram bastante e com o tempo a minha cabeça foi
mudando e comecei a enfrentar as lembranças de uma forma mais madura e
com menos medo e menos raiva.
O retorno à igreja foi essencial em minha vida. A presença de Deus e da
religião me salvaram de um suicídio, visto que este era o meu pensamento
dia após dia.
O relacionamento com minha mãe continua não sendo dos melhores, mas
hoje consigo abraçá-la e acreditar que ela pode mudar, que não somos
inimigas e que hoje já não me interessa saber o porquê de tanto ódio de sua
parte.
Ainda não consigo me relacionar com homens, exceto através de amizade.
Estou sozinha desde meu único e último namorado e continua sendo muito
difícil para mim acreditar que algum homem me fará feliz, embora já não me
sinta mais um lixo na maior parte do tempo.
78

Acreditamos que, se há mulheres como estas que apresentamos através dos


depoimentos, como Cristal e Citrino, que conseguem lidar com suas duras histórias
de vida, com as dolorosas consequências da violência, há que se pensar sobre o
que difere umas mulheres das outras, bem como estimular todas para que se tornem
fortes e possam lutar contra suas realidades e serem fortalecidas e, quem sabe,
possam ser multiplicadoras do enfrentamento às sequelas da violência na vida
adulta das mulheres, daí a necessidade de se estudar a Resiliência.
79

5. Reflexões sobre Resiliência, Política Social


para a Mulher Sobrevivente da Violência do
Abuso Sexual e o Serviço Social
80

5.1 Uma Reflexão sobre Resiliência

Devido às vastas transformações, as mudanças profundas às quais a mulher


inserida na sociedade contemporânea está exposta no campo do trabalho, no
cotidiano, nas relações afetivas e sociais, em experiências vividas, se torna
relevante levar em conta o conceito de resiliência como estratégia de intervenção.
Quanto à etimologia da palavra resiliência, esta provém de fonte latina,
significando “saltar para trás”, “voltar, ser impelido a recuar, encolher-se, romper; e,
na fonte inglesa refere-se “a idéia de elasticidade e capacidade de recuperação”
(PINHEIRO, 2004)
Trouxemos algumas definições do conceito para o compreendermos:
“A resiliência é a capacidade dos seres humanos para sobrepor-se à
adversidade, e, além disso, construir algo sobre ela”. (MELILLO e OJEDA,
2005, p.17)

“Capacidade humana universal de enfrentar as adversidades da vida, superá-


las ou até ser transformado por elas. A resiliência é parte do processo
evolutivo e deve ser promovida desde a infância”. (GROTBERG, 1995, em
KOTLIARENCO, 1997 apud MELILLO e OJEDA, 2005, p.61)

“A resiliência caracteriza-se como um conjunto de processos sociais e


intrapsíquicos que possibilita ter uma vida sadia, mesmo vivendo em um meio
insano. Esses processos teriam lugar ao longo do tempo, numa combinação
entre os atributos da criança e seu ambiente familiar, social e cultural. Desse
modo, a resiliência não pode ser pensada como um atributo com o qual as
crianças nascem ou que adquirem durante o desenvolvimento, mas como um
processo interativo entre elas e seu meio” (RUTTER, 1992 em
KOTLIARENCO 1997 apud MELILLO e OJEDA, 2005, p, 61)

Concordamos com os referidos autores sobre seus conceitos de resiliência e


compreendemos, portanto, que a resiliência seria a capacidade de desenvolver
estratégias individuais ou coletivas – para lidar com vivências, ambientes negativos,
ou estressantes – formuladas por meio da convivência e do contato com a família e,
81

posteriormente, com a sociedade como um todo. Ressaltamos o papel essencial e


significativo que os pais ou cuidadores desempenham na construção do
desenvolvimento da criança, no seu processo intrapsíquico e na sua relação com o
meio social, como pilares da resiliência.
É importante ressaltar o significado da resiliência no campo das ciências
humanas e sociais, relacionado ao desenvolvimento e empoderamento5 de
características humanas como estratégia de superação de experiências negativas,
como: momentos de estresse, grandes perdas materiais e/ou emocionais. Daí este
conceito, também, poder ser enfatizado como forma de apoio a vítimas de abuso, na
direção do controle sobre suas vidas, com a superação do posicionamento de
vítimas/“passivas” para se tornarem autoras ativas de suas histórias.
Segundo Pinheiro (2004), em termos físicos, resiliência diz respeito à capacidade
que certos corpos têm de reassumir o seu estado de origem depois de terem
passado por uma deformação na sua estrutura. Quanto ao sentido figurado, este se
refere a características humanas como a capacidade de se refazer com mais
facilidade do que outros ou adaptar-se a vivências negativas e/ou a mudanças.

Tavares (2001), citado por Pinheiro (2004), traz mais um sentido ao conceito de
resiliência, que seria o aspecto médico. Segundo o autor, o sentido médico estaria
atribuído à capacidade de o individuo relutar contra uma doença, infecção,
intervenção, por conta própria ou por meio de medicamentos.

Tomamos como base, também, Gorgal e Goyret, que desenvolveram, em 2003,


um manual metodológico para o programa social “CLAVES”, de cunho religioso com
ações voltadas para o enfrentamento do abuso sexual infanto-juvenil, no Uruguai e,
recentemente, no Brasil. Apesar de ser uma organização de cunho religioso, o
trecho do manual do programa que trata da resiliência, em momento algum direciona
o conteúdo para qualquer credo, mas sim discute o conceito com muita propriedade,
a partir de diversos autores que estudam o tema. Por essa razão fizemos uso de
seus conteúdos no âmbito de nossa investigação.

5
“Empoderamento é o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam
controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência da sua
habilidade e competência para produzir e criar e gerir” (COSTA, 2008)
82

Como já vimos, as consequências e sequelas deixadas profundamente pelo


abuso sexual provocam marcas que são sentidas e percebidas por um longo período
na vida da mulher, muitas vezes, pela vida inteira. Esse fato é ainda mais agravado
em crianças/adolescentes, quando estas têm seu desenvolvimento natural,
biopsicossocial, bruscamente abortados. Porém, algumas pessoas refazem suas
vidas, e outras não.

Pelo que percebemos, a ‘descoberta da resiliência’ se deu pela inquietação


frente ao porquê da diferença entre pessoas que lidam bem com adversidades, e
outras não. Em 1989, Emmy E. Werner publicou um artigo sobre seu estudo, “Los
niños de Isla jardín”, marco na primeira geração de estudos sobre a temática da
resiliência. Tratava-se de uma pesquisa iniciada em 1955, com 698 crianças da Ilha
Kauai (Havaí), que durou 30 anos.
Werner (1989) analisou as crianças durante todo seu desenvolvimento, da
gestação à idade adulta, e buscou apreender quais características diferenciavam
umas das outras. Ou seja, quais características biopsicossociais fizeram com que
algumas crianças se tornassem adultos saudáveis, que possuíam capacidade de
superar adversidades, enquanto que outras se mostrassem despreparadas,
apresentando problemas de comportamento e aprendizado.
Com base neste estudo inicial, outros autores elencaram a
base/pilares/características que a sustentam em um individuo ou grupo. Estes são
atributos característicos de crianças e adolescentes considerados como resilientes:
“a) Introspecção: a arte de se perguntar e se dar uma resposta honesta.
b) Independência: saber fixar limites entre si mesmo e o meio com problemas;
capacidade de manter distância emocional e física sem cair no isolamento.
c) Capacidade de se relacionar: habilidade para estabelecer laços e
intimidade com outras pessoas, para equilibrar a própria necessidade de
afeto com a atitude de se relacionar com os outros.
d) Iniciativa: gosto de se exigir e se por à prova em tarefas progressivamente
mais exigentes.
e) Humor: encontrar o cômico na própria tragédia.
f) Criatividade: capacidade de criar ordem, beleza, e finalidade a partir do
caos e da desordem.
g) Moralidade: conseqüência para estender o desejo pessoal de bem estar a
toda humanidade e capacidade de se comprometer com valores; esse
elemento já é importante desde a infância, mas sobretudo a partir dos 10
anos.
h) Auto-estima consistente (incluindo nós mesmos): base dos demais pilares
e fruto do cuidado afetivo conseqüente da criança ou adolescente por parte
de um adulto importante.” (MELILLO e OJEDA, 2005, p. 62)
83

Concordamos que o abuso sexual viola estes pilares ao causar


estranhamento, confusão de papéis familiares, dentre outras consequências,
anteriormente elencadas.
Pinheiro (2004, p. 71) afirma que existem fatores de risco que comprometem
o desenvolvimento da resiliência na vida de uma pessoa ou grupo, como:
“O descontrole emocional, a culpa, a falta de responsabilidade e de diálogo,
drogas, ausência dos pais, violência doméstica e na comunidade, transição
da infância para a adolescência e a ausência de redes de apoio. (...) divórcio
dos pais, perda de entes queridos, abuso sexual/físico contra a criança,
pobreza, holocausto, desastres e catástrofes naturais, guerras e outras
formas de trauma”.

Uma vez percebido por alguns estudiosos que o desenvolvimento da


resiliência estaria, além do próprio indivíduo, mas ligado ao meio externo, como a
família e o meio ambiente, se tem questionado a possibilidade de se fomentar a
resiliência para além de características individuais. Mas também, incentivá-la em
instituições/organizações por meio de serviços.

Esta visão pode ser mais bem percebida no posicionamento de Tavares


(2001) citado por Pinheiro (2004, p.69)
“A resiliência não deve ser apenas um atributo individual, mas pode estar
presente nas instituições/organizações, gerando uma sociedade mais
resiliente. Para ele, uma organização resiliente é uma organização inteligente,
reflexiva, onde todas as pessoas são inteligentes, livres, responsáveis,
competentes, e funcionam numa relação de confiança, empatia,
solidariedade”.

Tanto estes ambientes, como características individuais intrínsecas ao sujeito,


ou construídas, contribuiriam como meios facilitadores para que a pessoa pudesse
desenvolver em si mesmo, e se empoderar pela resiliência.
Entendemos que o desenvolvimento da resiliência, no aspecto individual,
estaria caracterizado na forma de auto regulação e auto-estima, que perpassa pelos
fatores da mobilização e ativação das capacidades individuais de ser, estar, ter,
poder e querer.
Reiteramos esta afirmativa na fala de Tavares (2001):
“ajudar as pessoas à descobrir as suas capacidades, aceitá-las e confirmá-
las positiva e incondicionalmente, é, em boa medida, a maneira de as tornar
mais confiantes e resilientes para enfrentar a vida do dia-a-dia, por mais
adversa e difícil que se apresente”. (TAVARES, 2001 apud PINHEIRO (2004,
p.69)
84

Ressaltamos que o termo “ajudar” deve ser compreendido como ação de


direito à saúde integral, e esta aceitação positiva é entendida por nós como maneira
de perceber a realidade vivida, forma de conscientização que dá poder
à pessoa para lidar, interferir e transformar sua realidade.

Queremos, portanto, com a apresentação deste estudo evidenciar que há


certa capacidade humana que pode ser estimulada, e que mulheres que foram
vitimas de violência sexual, ou seja, que passaram por agressiva adversidade
podem ser estimuladas a reagir, a ter sua saúde integralmente apoiada.
Há a necessidade de empoderamento destas mulheres, a fim de que
abandonem a percepção de eternas vitimas, e aloquem a violência no “plano do
passado”, reneguem o espaço indiferente/invisível que a sociedade dita.
Ressaltamos, ainda, que estas sobreviventes podem ter suas vidas reconstituídas,
através do estímulo da capacidade que elas têm de enfrentar as sequelas do abuso,
mas também se faz necessária a inclusão desta perspectiva de resiliência nas
políticas sociais articuladas à perspectiva de integralidade e direitos.
85

5.2 A Política Social e a Realidade da Rede de Apoio à Mulher


Sobrevivente da Violência do Abuso Sexual na Cidade do
Recife

Diante das possíveis consequências da violência sexual, anteriormente


apresentadas, percebemos a necessidade de repensar a política social para a
mulher, devido ao fato desta expressar claramente sua assistência às mulheres “em
situação” de violência.
Este fato exclui o atendimento à mulher que fora vítima no passado e,
associado ao sucateamento do acesso à saúde pública, soma-se mais um grande
problema que a mulher vitimizada na infância/adolescência enfrenta.
Na realidade Brasileira e recifense contemporânea, em particular,
observamos a contradição entre o que está garantido na lei e o que se observa no
cotidiano da vida da população.
O Sistema Único de Saúde – SUS afirma que
“ Art. 2º - A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o
Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º - O dever do Estado de garantir a saúde consiste na reformulação e
execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de
doenças e de outros agravos no estabelecimento de condições que
assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação.
Art. 3º - A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre
outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o
trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e
serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a
organização social e econômica do País.
Parágrafo Único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do
disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade
condições de bem-estar físico, mental e social”. (BRASIL, 1990)
86

No entanto, o Recife conta com uma população de 1.561.663 habitantes,


sendo 724.712 pessoas do sexo masculino e, a maioria, 836.915 pessoas do sexo
feminino, segundo estimativa do IBGE para 2009. Apesar de constar na Lei 8.080,
do SUS o dever do Estado prover o acesso à saúde, o Recife conta apenas com 0,1
psiquiatras por mil habitantes, 0,2 psicólogos/as e 0,2 assistentes sociais por mil
pessoas na cidade, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde –
CNES (2007).
Estes números representam o baixíssimo acesso das mulheres
sobreviventes aos profissionais que encaminham/apóiam/tratam as consequências
da violência sexual. Elas estão, portanto, muito pouco assistidas pela política de
saúde e da mulher. Evidentemente, no plano do discurso, as promessas são amplas,
conform exemplos a seguir.

O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres de 2008 é orientado pela


igualdade, respeito à diversidade, equidade, autonomia das mulheres, laicidade
estatal, universalidade da política, justiça social, transparência das ações públicas, e
participação e controle social.
O plano reconhece, ainda, a violência de gênero como “violência estrutural e
histórica que expressa a opressão das mulheres e precisa ser tratada como questão
de segurança, justiça e saúde pública”, e como uma das principais formas de
violação dos direitos humanos, “atingindo-as em seus direitos à vida, à saúde, e à
integridade física”.
Segundo o Plano, com base em uma pesquisa da UNESCO, entre 25% e
30% das meninas são abusadas sexualmente antes de completarem 18 anos.
Porém, o enfoque é dado apenas “às mulheres em situação de violência”. (BRASIL,
2008) Ou seja, o termo utilizado no Plano anteriormente sublinhado, exclui a
problemática da mulher que fora vitimizada sexualmente durante a infância e/ou
adolescência.

É fato que este Plano expressa a conquista da mulher na sociedade frente à


ideologia machista, e por isso mesmo não julgamos, aqui, a importância deste para
as mulheres que estão em situação de violência, muitas vezes, diariamente.
Criticamos, no entanto, a visão focalizada, que mostra uma lacuna, ao excluir as
87

mulheres vitimizadas no passado, que buscam apoio mas não fazem parte do perfil
institucional dos centros de referência à mulher.

Percebamos o enfoque que prioriza a “mulher em situação de violência” em


alguns tópicos do Plano Nacional de Políticas para a Mulher:
“ OBJETIVOS ESPECÍFICOS
I. Proporcionar às mulheres em situação de violência um atendimento
humanizado, integral e qualificado nos serviços especializados e na rede de
atendimento;
II. Desconstruir estereótipos e representações de gênero, além de mitos e
preconceitos em relação à violência contra a mulher;
III. Promover uma mudança cultural a partir da disseminação de atitudes
igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito às diversidades e de
valorização da paz;
IV. Garantir e proteger os direitos das mulheres em situação de violência
considerando as questões étnico-raciais, geracionais, de orientação sexual,
de deficiência e de inserção social, econômica e regional;
(...)
PRIORIDADES
4.1. Ampliar e aperfeiçoar a Rede de Atendimento às mulheres em situação
de violência;
(...)
4.3. Promover ações de prevenção a todas as formas de violência contra as
mulheres nos espaços público e privado;
4.4. Promover a atenção à saúde das mulheres em situação de violência com
atendimento qualificado ou específico;
(...) (BRASIL, 2008 Pág. 99).

Segundo Benita Spinelli, gerente municipal de atenção à saúde da mulher, no


Recife, desde 2001, entrevistada no dia 13 de outubro de 2009, a coordenação de
saúde trabalha a política social para a mulher no município a partir de três eixos de
intervenção: o enfrentamento da violência sexual e doméstica, os direitos sexuais e
reprodutivos, e a atenção à mulher no pré-natal, parto, puerpério e aborto, possui um
viés feminista e está pautada na democracia.
O Ministério da Saúde dá as diretrizes que orientam a política municipal,
devido à amplitude do órgão. Traz uma perspectiva inovadora desde 1998, com a
entrada e participação de feministas. É composto também pela gestão, usuários e
seguimentos sociais, que se articulam mutuamente para elaboração das políticas,
segundo Spinelli.
Segundo a gerente, há certa dificuldade em intervir e abordar o tema da
violência devido à complexidade e, por estar tão próxima a todos nós, está, ainda,
permeada de valores morais e culturais, tanto dos profissionais que trabalham na
88

área, quanto pelas próprias usuárias dos programas voltados à mulher. Ou seja, há
diversidade e divergência de pensamentos sobre esta temática.

Segundo Spinelli,
“Estas mulheres vitimas de violência estão dentro de risco de saúde
pela série de consequências, sequelas que essa violência traz pra essas
mulheres. Então repercute na parte física, mental, na área reprodutiva e, com
isso, a saúde tem que se voltar, se preparar para identificar essa mulher
dentro do serviço, porque é para lá que ela vai.
Não é à toa que foi dentro da área da saúde que começaram os
primeiros serviços, os primeiros programas de atenção às mulheres vítimas
de violência, porque é lá onde elas recaem. Elas recaem por causa de um
aborto, por uma vida sexual não resolvida, por problemas psicológicos, é lá
que elas vão.
Dentro da saúde nem sempre se tem os profissionais preparados para fazer
esse atendimento.”

No Protocolo de Assistência Integral à Mulher Vítima de Violência Doméstica


e Sexista (2008), da Prefeitura do Recife, as ações estão também direcionadas para
a mulher adulta que tenha passado recentemente por situação de violência.
Mas, segundo Benita Spinnelli, apesar de se enfocar a mulher em “situação
de violência”, os centros de atendimento à mulher devem atender a qualquer caso
de violência doméstica e/ou sexista. Apesar de não estar expressamente explícita a
situação da mulher sobrevivente, esta se enquadra em uma forma de violência
contra a mulher que deve ser devidamente assistida.
A gerente ressalta que pode acontecer de os serviços de atendimento estar
cheios e, diante desta situação, darem prioridade aos casos de violência aguda, mas
esta não seria a prática principal dos serviços de atenção à mulher.

Assim sendo, como pode ocorrer de os profissionais que trabalham


diretamente com as usuárias (diferente do caso de Spinelli) não terem sensibilidade
ou preparo para lidar e intervir com a realidade da violência silenciada. E para esta
problemática de despreparo e baixo número de profissionais, Spinelli afirma a
necessidade de realizar cursos de capacitação, seminários e atualização para
otimizar o acesso e os serviços, para que os profissionais possam estar preparados
para identificar as mulheres que sofrem violência, para, então, lhes oferecer
alternativas.
89

O Recife conta, hoje, com um Centro de Referência para a Mulher, Centro


Clarice Lispector – localizado à Rua Bernardo Guimarães, 470, Boa Vista – que
presta apoio jurídico e psicossocial às mulheres; uma Casa Abrigo, e quatro
policlínicas que estão qualificadas para identificação e atendimento da violência
contra a mulher. E com uma rede de apenas três psicólogos (devido à evasão
destes) especialmente capacitados para o enfrentamento da violência, segundo a
gerente. Isto demonstra com clareza a fragilidade dos serviços de atenção às
mulheres.
Quando as mulheres vão em busca de apoio psicológico, segundo Benita
Spinelli, estas não vão diretamente por causa da violência, mas sim devido às
consequências desta e, somente após um tempo de atendimento, os profissionais
da psicologia podem diagnosticar e intervir na problemática.

Ao indagarmos a Gerente Municipal de Saúde da mulher sobre a existência


de um local de atendimento à mulher que fora vitimizada na infância/adolescência, a
mesma nos afirmou que o local de atendimento é o mesmo para todas as mulheres,
portanto, todas deveriam ser atendidas, e ter acesso a apoio psicológico para
reorganizar suas vidas. Benita Spinelli responde que
“todos os programas sociais são abertos para todas as mulheres, não
são exclusivos para mulheres que vivem a violência, apenas priorizamos
quando tem uma na crise, mas todos os programas sociais são para as
mulheres numa forma geral, até porque o grande objetivo nosso com os
programas específicos para as mulheres, é do empoderamento feminino, é de
esclarecer as mulheres, dar poder as mulheres, pra romper com as
desigualdades de gênero”.

Apesar de Benita Spinelli nos ter informado sobre como funciona a política
social no Recife, percebemos que a realidade é contraditória, que uma mulher que
tenha a violência silenciada não é compreendida, não tem acesso à saúde pública
de qualidade e continuada que trate das consequências desta violência que fora
silenciada.

Percebemos que o Protocolo da Cidade, o Código Penal Brasileiro, e a


Política Nacional para a Mulher, assim como a maior parte dos profissionais de
saúde, parecem estar mais voltados para a violência sexual física explícita e
despreparados para enfrentar a violência silenciada.
90

A partir do exposto, consideramos muito importante a atuação do Assistente


Social no enfrentamento à violência de gênero – passada e presente. Por isso
mesmo, enfocaremos a contribuição de nosso trabalho de conclusão de curso em
face das políticas sociais articuladas que se vinculam à violência do abuso sexual
contra crianças e adolescentes.
91

5.3 A Contribuição deste Estudo para o Trabalho da (o) Assistente


Social

Como se pode constatar através da realidade social o sucateamento das


políticas sociais no Brasil tem sido realizado através de processos históricos que
vêm difundindo mundialmente a ideologia neoliberal como único meio de animar o
crescimento econômico.
Após um longo período de crise capitalista, na década de setenta, em
contrapartida à crise, o capitalismo “avança em sua vocação de internacionalizar a
produção e os mercados, requerendo políticas de “ajustes estruturais” por parte dos
estados nacionais”.
Essas políticas de ajuste visam apenas o grande capital, o seu livre curso, a
destituição de regulamentações, a lucratividade dos grandes conglomerados e todos
os meios que potencializem o crescimento e a expansão do capital.

O projeto neoliberal surge como uma estratégia do fortalecimento do capital,


sendo, segundo Iamamoto, a expressão da “reestruturação política e ideológica
conservadora do capital, em resposta à perda de rentabilidade e “governabilidade”.
Através da criação de condições históricas para o seu fortalecimento, o capital
difunde a sua lógica de mercantilização universal, submetendo aos seus desmandos
e objetivos de acumulação o ”conjunto de relações sociais: a economia, a política, a
cultura”. (IAMAMOTO, 2006)

O neoliberalismo desloca a função do Estado de provedor do bem-estar social


para a área privada, promovendo a idéia de Estado mínimo. Tem-se, assim, a
desresponsabilização da intervenção estatal no atendimento às necessidades
sociais, quando esta função é transferida ao mercado e à filantropia, como
alternativa ao asseguramento de direitos sociais. (IAMAMOTO, 2006)
92

A partir desta transferência de poderes e funções, os direitos sociais perdem


seu caráter de conquista, de movimentos sociais organizados, e se transfiguram em
dever moral da iniciativa privada ou individual, ficando o asseguramento dos direitos
sociais e das Políticas Sociais à mercê de ações “solidárias e benemerentes” e do
“arbítrio do indivíduo isolado”, perdendo o Estado o seu papel de viabilizador e
responsável. (IAMAMOTO, 2006)

Segundo Yazbek (2001) citada por Iamamoto (2006), devido ao pensamento


liberal não reconhecer os direitos sociais, fomentando a “refilantropia social” por
meio do slogan do “dever moral”, este vai operar a despolitização da “questão social”
ao fragmentá-la como ”questão pública, questão política e questão nacional”.
Devido à ideologia neoliberal e aos embates contra os direitos sociais,
transitando os direitos da esfera de ações públicas para o privado, vai haver o
desmembramento de uma série de conseqüências, conforme Iamamoto (2006):
“a ruptura da universalidade dos direitos e da possibilidade de sua
reclamação judicial, a dissolução de continuidade da prestação dos serviços
submetidos à decisão privada, tendentes a aprofundar o traço histórico
assistencialista e a regressão dos direitos sociais”. (IAMAMOTO, 2006)

Tendo, ainda,
“no campo das políticas públicas na área social (...) o reforço de traços de
improvisação e inoperância, o funcionamento ambíguo e sua impotência na
universalização do acesso aos serviços dela derivados. Permanecem”
políticas casuísticas e fragmentadas, sem regras estáveis e operando em
redes públicas obsoletas e deterioradas”. (YAZBEK, 2001, p. 37 apud
IAMAMOTO, 2006, p.163-164)

Diante dos ditames neoliberais, o Serviço Social visa mediar as relações


sociais inseridas neste contexto, interferindo nas expressões da questão social.
Questão social esta que significa os rebatimentos da desigualdade social em nossa
realidade.
Dentro dessa configuração sócio-histórica, o Assistente Social – em conjunto
com entidades representativas da população e o Estado – busca planejar, executar,
e avaliar ações que visem o enfrentamento e a modificação da realidade posta.
É, portanto, através da questão social e das suas expressões que o
profissional de Serviço Social terá o objeto de seu trabalho, recorrendo à formulação
de políticas sociais como um de seus principais meios de intervenção.
93

Consideramos que a violência do abuso sexual contra crianças e


adolescentes fere o direito conquistado na legislação social e fruto de lutas da
sociedade, que tiveram a marca da atuação profissional do Serviço Social.

Sendo, portanto, o abuso sexual uma destas tantas expressões da questão


social, permeada por relações desiguais de poder e gênero, se faz mais pertinente o
estudo sobre esta temática e de tudo aquilo que estiver nas entranhas desta questão
para o/a Assistente Social, uma vez que o Serviço Social “é parte e é expressão da
realidade social, da relação das classes sociais com o Estado”. (BARISON, 2008)
Entendemos, portanto, como questão social, com base em Iamamoto (2000)
“o conjunto das diversas expressões das desigualdades sociais, produzidas pela
concentração de bens e riquezas”.
E como manifestações desta questão social “a forte desigualdade,
desemprego, fome, doenças, penúria, desamparo frente a conjunturas econômicas
adversas etc.” (PAULO NETTO, 2001) Desamparo e sofrimento que atinge,
silenciosamente, a maioria das vítimas da violência do abuso sexual na
infância/adolescência.

A relevância deste trabalho está em permitir que através deste estudo


tenhamos a possibilidade de pensar nesta expressão da questão social e, enquanto
profissionais do Serviço Social, reconhecer que temos o dever de propor e viabilizar
discussões sobre o abuso sexual, criar estratégias de combate e formas de
assegurar que as mulheres que foram vitimizadas sexualmente na
infância/adolescência tenham seus direitos assegurados, uma vez que, infelizmente,
estes direitos estão contemplados pelo Estado e sociedade, durante a
infância/adolescência, muito mais como um devir. Conforme o ECA:
“Art. 3° A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentas à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata
esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Art. 4° É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária”. (BRASIL, 1990)
94

Segundo Barison (2008), para que o profissional de serviço Social tenha


condições de realizar uma das dimensões do seu trabalho, a intervenção, é
necessário que tenha
“habilidades para analisar o conjunto das relações sociais nas quais pretende
intervir (...) precisa construir mediações para desvelar a realidade que o
cerca, na perspectiva de produzir conhecimento acerca do seu objeto de
intervenção”.

A autora afirma, ainda, que cabe a/o Assistente Social a capacidade de


decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas, e efetivar direitos. Isto
é, objetivar o que está presente na legislação a partir de ações de caráter
multidisciplinar e permanente, com visão de totalidade.
Conforme explicitamos ao longo deste trabalho de conclusão de curso, como
proposta de trabalho, realizamos uma pesquisa através de uma outra dimensão do
Serviço Social, o método investigativo, para que, por meio de fundamentação
teórico-metodológica, este estudo pudesse aglutinar conhecimento e servir como
veículo para o profissional de Serviço Social ter melhor e maior compreensão da
realidade trabalhada, e com isso realizar sua prática de maneira mais consciente e
eficaz.
Outra comprovação da relevância deste estudo consiste no acordo do mesmo
com o Projeto Ético-Político e com os Princípios Fundamentais do Código de Ética
Profissional, quando discorremos sobre dominação-exploração de classe e gênero,
a saber
“Opção por um projeto profissional vinculado aos processos de construção de
uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e
gênero”.(CFESS, 1993)

Isto significa a defesa de uma sociabilidade não-violenta e que propicie ao


Assistente Social por em prática suas competências:
I – elaborar, implementar, executar e avaliar políticas sociais junto a órgãos
da administração pública, direta ou indireta, empresas, entidades e
organizações populares;(...)
III - encaminhar providências, e prestar orientação social a indivíduos, grupos
e à população; (...)
V - orientar indivíduos e grupos de diferentes segmentos sociais no sentido
de identificar recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na
defesa de seus direitos;(...)
VII - planejar, executar e avaliar pesquisas que possam contribuir para a
análise da realidade social e para subsidiar ações profissionais; (CFESS,
1993)
95

Há, portanto, de se conceber a realidade de forma crítica, sob uma


perspectiva de totalidade, visando uma nova ordem que supere a vigente, a fim de
que possamos chegar à igualdade, respeitar as identidades de todas as mulheres e
superar a opressão de gênero. (REIS, 1998)
Finalizando, ressaltamos a necessidade fundamental de modificação da
Política para a Mulher, através da inclusão da atenção à mulher que fora vitimizada
sexualmente na infância/adolescência.
Temos consciência de que esta mudança, certamente, resultará de lutas
contínuas. Daí, a necessidade imediata de divulgar e discutir a temática abordada
neste estudo, projetar ações e intervir na realidade destas mulheres sobreviventes
da violência sexual e, concomitantemente, lutar por mudanças mais amplas na
política social.
96

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que a Política Social para a Mulher assim como os serviços de


saúde como um todo precisam ser revistos, de modo a incluir a problemática do
enfrentamento às consequências da violência sexual perpetrada contra as mulheres
durante a infância e/ou adolescência. Isto porque hoje, na Cidade do Recife, não há
assistência à saúde física, social e principalmente, psicológica para estas mulheres,
em especial na saúde pública.
O único Centro de Referência para a Mulher da Cidade não atende,
prioritariamente, às mulheres cuja violência sexual na infância fora silenciada. A
prioridade está voltada apenas para as mulheres em situação de violência (atual).
Apesar de entendermos que a violência aguda deve ser enfrentada, chamamos
atenção para uma atenção integral da saúde de todas as mulheres que são
vitimizadas.
Percebemos que as consequências da violência/abuso sexual infanto-juvenil,
principalmente, intrafamiliar são profundas e devastadoras e, diante destas tantas
consequências, se faz necessário que não somente o profissional de Serviço Social
lute para a inclusão deste enfrentamento na política nacional para a mulher, mas
também que todos os profissionais estejam comprometidos com esta problemática.
Apontamos, ainda, para a necessidade de divulgação e conscientização da
população sobre esta realidade, bem como de oferecer subsídios para que esta
população e a sociedade organizada possam enfrentar a raiz deste problema.
Percebemos que existem espaços não ocupados pelo Estado que oferecem
apoio não qualificado a estas mulheres, como grupos virtuais, grupos religiosos que
atuam no enfrentamento das consequências da violência silenciada. Acreditamos
que estes espaços podem ser de empoderados e qualificados por profissionais e
órgãos competentes, o conceito da resiliência pode contribuir sobremaneira para o
enfrentamento da violência/abuso sexual nestes espaços alternativos e públicos.
Podem ser criados grupos de apoio e auto-ajuda para estas sobreviventes, a
fim de que possamos enfrentar e realizar ações interventivas na realidade destas
mulheres, sem afastarmos a necessidade de uma real mudança nas bases das
desigualdades de gênero e poder, e na integralidade do acesso à saúde e à política
social.
97

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