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Recife
2009
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Recife
2009
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AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
RESUMO
RÈSUMÉ
Ce texte, qui est le Travail de fin d’Études de Service Social, aborde le cas de la
violence et de l’abus sexuel qui se passent durant l’enfance et l’adolescence et
apportent des séquelles à vie à la femme adulte.
Nous présentons des réflexions qui traitent de la Politique Sociale pour la femme et
des nouveaux concepts comme la Résilience, qui peuvent contribuer positivement en
une bonne direction d’actions d’interventions publique dans la vie de ces femmes.
Nous entendons la violence / abus sexuel comme expression des inégalités de
« genre et pouvoir », associée à traumatismes psychologiques / mentaux apparus à
plusieurs phases de la vie féminine, où le principal agent est l’homme.
Dans le discours, la Politique Sociale pour la femme doit avoir comme axe les
dépassements des inégalités de genre et de la violence subie. Malgré ce discours,
nous constatons que les pratiques objectives sont fort précaires, face à la gravité et
la complexité des cas.
Cette violence, en silence, produit des profondes et des douloureuses conséquences
pour la vie de la femme, aussi bien dans la sphère privée que publique, c’est-à-dire
principalement, quand la violence englobe des membres de la famille comme
agresseurs abusifs.
Ce problème de santé publique demande en général attention, information,
conscience, nécessité de prise de position et préservation, de la part des
professionnels de santé et de la société.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
2. Gênero, Desigualdade e Violência contra a Mulher .............................................. 10
2.1 A Mulher e as Relações de Desigualdade e Sexismo................................. 11
2.2 A Violência de Gênero contra a Mulher ...................................................... 15
2.3 A Violência Doméstica Sexual contra a Criança, o Adolescente e a Mulher
Adulta 23
3. O Tabu do Incesto e a Caracterização da Violência Sexual.................................. 30
3.1 O Tabu do Incesto....................................................................................... 31
3.2 Caracterização do Abuso Sexual Intrafamiliar/Doméstico ............................... 36
3.2.1 Desenhos: Forma de Expressar a Violência Sofrida ................................. 50
3.2.2 Caracterização do Agressor ...................................................................... 57
4. As Consequências Biopsicossociais do Abuso Sexual na Vida da Mulher e a Rede
Virtual de Apoio ......................................................................................................... 59
4.1 As Consequências Biopsicossociais da Violência Sexual na Infância e na
Vida Adulta da Mulher ........................................................................................... 60
4.2 A Rede Virtual de Apoio e os Depoimentos de Mulheres Sobreviventes do
Abuso Sexual......................................................................................................... 66
5. Reflexões sobre Resiliência, Política Social para a Mulher Sobrevivente da
Violência do Abuso Sexual e o Serviço Social .......................................................... 79
5.1 Uma Reflexão sobre Resiliência ...................................................................... 80
5.2 A Política Social e a Realidade da Rede de Apoio à Mulher Sobrevivente da
Violência do Abuso Sexual na Cidade do Recife ................................................... 85
5.3 A Contribuição deste Estudo para o Trabalho da (o) Assistente Social ........... 91
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 96
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 97
ANEXOS ................................................................................................................. 103
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1. INTRODUÇÃO
Sendo assim, o homem começa a deter mais relações de força e poder que a
mulher, a partir da idéia que valoriza quem se torna provedor, tendo, ainda, a
“liberdade” de vender sua força de trabalho. O trabalho do homem seria também
mais valorizado por sua objetividade e concretude, enquanto que o trabalho feminino
doméstico estava centrado na subjetividade, ligado à sustentação e reprodução da
força de trabalho do homem. (TOLEDO, 2001)
distribuído entre outros integrantes, através do trabalho dos filhos e da mulher para
que seja possível continuar provendo as necessidades desta mesma família.
Pode ser demonstrado, também, no fato das mulheres, ao assumir uma dupla
jornada, como o trabalho doméstico e o assalariado, não conseguirem desempenhar
todos os serviços domésticos que antes realizavam, juntamente com os serviços de
consumo familiar (costurar, remendar, etc.) optando, assim, pela compra de
mercadorias industrializadas que não necessitariam de dispendioso tempo para
utilizá-las.
Concordamos que
"A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de
justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade
de se enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona como uma
imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se
funda: é a divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades
atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus
instrumentos; (...)" (BOURDIEU, 1998, pág. 15 apud SAFFIOTI, 2001. p.4)
Neste sentido, compartilhamos das ideias dos autores que afirmam que a
própria dominação e exploração da sociedade de traços patriarcais, consistem em
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uma violência, que se dá por meio da adesão dos dominados, uma vez que esta
relação de opressão não é refletida por nenhuma parte, mas sim geralmente imposta
pelo sistema de produção e, assimilada como natural pela maioria. O que não
significa dizer que não se pode oferecer resistência ao sistema de dominação e
exploração de gênero e de classe. E isto as lutas sociais feministas e de mulheres
demonstram muito bem, ao longo da história das lutas do trabalho X capital.
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O conceito “biopsicossocial” empregado aqui diz respeito a um entendimento integral/total do ser
humano, sendo este composto de parte biológica/fisiológica, parte psicológica/mental/subconsciente
e parte social onde se situam os condicionantes culturais. Estas partes componentes do ser estão
intimamente articuladas, são indissociáveis e formam o ser social em sua totalidade.
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Lisak (1991), citado por Karen Giffin (1994), reafirma essa concepção, ao
tratar dos fatores que estão associados às motivações que propiciariam a agressão
sexual, o processo de identidade de gênero.
De acordo com Giffin (1994), a identidade de gênero seria a construção do
sujeito a partir do pensamento dualista em que as ideias sobre masculino e feminino
estão compreendidas nos conceitos de cultura/natureza; razão/emoção;
sujeito/objeto; mente/corpo; ativo/passivo, onde esses pares contrapostos seriam
percebidos como opostos e excludentes.
Giffin (1994) complementa que os conceitos de natureza/corpo/emoção/ativo
e passivo definiriam a mulher, e os demais definiriam o homem. As características
da mulher são vistas como inferiores e desviantes da razão e da moralidade, uma
vez que o auto-controle e a dominação do corpo e da vida emocional são
valorizadas e realizadas pelo sujeito pensante.
Portanto, percebendo as características femininas como uma interferência
para este objetivo, tem-se a segregação da “psiqué” humana em duas partes:
“feminino” e “masculino”, onde elas não coexistem mutuamente. Devem ser
reprimidas para que só permaneçam as características que condizem com o sexo
definido: masculino/feminino.
Sendo assim,
“os meninos devem se separar da mãe e das qualidades femininas para
estabelecer sua identidade masculina e para não tê-la ameaçada, negando
com isso as qualidades consideradas femininas e por isso menos valorizadas
e o seu lado emocional”. (GIFFIN, 1994.p 152)
violência física. Pode variar de atos em que não ocorre o contato sexual
(voyeurismo, exibicionismo), em que o contato sexual, se dá sem
penetração (intercurso anal ou genital). Inclui também, a participação de
crianças em atividades de prostituição e pornografia. Atinge crianças de
ambos os sexos e de todas as faixas etárias, provocando, além de graves
repercussões psíquicas, a ocorrência de doenças sexualmente
transmissíveis e muitas vezes gravidez”.
Concluímos, assim como Freud (2006), que o tabu do incesto não tem uma
única explicação, mas sim que as civilizações, povos, etc. possuem características
próprias no que diz respeito ao relacionamento sexual entre pessoas de uma mesma
família. Nossa sociedade incorporou o tabu do incesto e, comumente, não o explica,
apenas o cumpre através da lei.
Cohen (2000) define o incesto como um abuso sexual intrafamiliar, que ocorre
com ou sem violência explícita, através de estimulação sexual por parte de algum
integrante do grupo que possui um laço de parentesco que impede o vínculo
matrimonial. Além deste incesto consangüíneo, o autor acrescenta duas outras
formas: os para-incestos e os incestos polimorfos.
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O abuso/violência sexual, para Anna Freud (1981), citada por Furniss (1993),
perturba o processo natural de desenvolvimento psicossocial da criança, interferindo
nos processos normais de maturação. Para a autora,
“no abuso sexual da criança esta não pode evitar ficar sexualmente
estimulada e essa experiência rompe desastrosamente a seqüência normal
da sua organização sexual. Ela é forçada a um desenvolvimento fálico ou
genital prematuro, enquanto suas necessidades desenvolvimentais legítimas
e as correspondentes expressões mentais são ignoradas e deixadas de lado”.
(FREUD, 1981. p. 33-34 apud FURNISS, 1993. p.14-15)
A mesma acrescenta
“no que respeita às chances de danificar o desenvolvimento infantil, o incesto
e outras formas de abuso sexual praticados por uma figura de autoridade
estão em posição mais elevada que o abandono, negligência, o mau trato
físico ou outras formas de abuso” (FREUD, 1981, p.34 apud AZEVEDO,
2000, p.202)
2
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência - ABRAPIA
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3
Segundo a OMS, a saúde é um "estado de completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo somente
da ausência de uma doença ou enfermidade". No entanto, criticamos a noção de “estado de completo bem-estar
físico, mental e social”, em razão da subjetividade presente na expressão. Daí, preferimos falar em saúde
enquanto qualidade de vida e não apenas ausência de doença. Qualidade de Vida que pode ser medida por
indicadores como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
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Segundo Furniss (1993), os dados seguros sobre abuso sexual são muito
escassos, mas, com base em diversos autores, ele afirma que há sete fatores que
se relacionam com o abuso e as sequelas deste:
“1) A idade do início do abuso.
2) A duração do abuso.
3) O grau da violência ou ameaça de violência.
4) A diferença de idade entre a pessoa que cometeu o abuso e a criança era
relacionada.
5) Quão estreitamente a pessoa que cometeu o abuso e a criança eram
relacionadas.
6) A ausência de figuras parentais protetoras.
7) O grau de segredo”. (FURNISS, 1993 et al, p. 15)
Segundo Vaz (1997), citado por Barros (2006), existem dois métodos de
violência sexual: o sadismo e a indução à vontade por parte da vítima. Para aquele
autor, o sadismo seria a forma de prazer através da crueldade, da violência, da dor,
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Mas também é possível inferir que, diante de uma sociedade machista, em que a
mulher muitas vezes fica subjugada às vontades do homem, ou mesmo assume o
papel ‘socialmente designado’ por este, o silêncio seja uma presença típica do
abuso sexual incestuoso, já que grande parte das “mães de família” não
revela/denuncia o abuso, por inúmeras justificativas. E temos, ainda, o silêncio como
característica da própria vítima, que enquanto criança/adolescente não tem sua fala
levada em consideração, a pretexto de que é invenção/fantasia/criação da mente
imaginativa infantil.
Barros (2006) concorda com Vaz (1997) ao elencar seis fases específicas do
desenvolvimento do abuso sexual, que trouxemos para evidenciar mais uma forma
de compreender as fases da violência sexual. A autora ressalta que estas fases
podem ocorrer ao mesmo tempo, mas também de forma separada, a saber:
• Fase do envolvimento e desenvolvimento da intimidade, em que o perpetrador
“inicia o assédio à criança através da estratégia de sedução-prêmio,
possivelmente apresentando atividades como se fossem jogos ou algo
“especial e divertido”. A essência da primeira fase é a oferta de um
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Chamamos a atenção, também, para como pode se dar este abuso. Segundo a
pediatra, hebiatra e terapeuta Elizabeth Cordeiro Fernandes (Drª Betinha), do
Ambulatório de Pediatria do Comportamento, do Hospital das Clínicas – UFPE, uma
sensação de cócegas é prazerosa, portanto, na percepção de uma criança senti-la é
algo obviamente bom, principalmente quando este “carinho” é realizado por um ente
querido. Assim se assemelha a sensação do abuso sexual. (FERNANDES,
Comunicação Pessoal)
O toque no corpo ou na região genital da criança pode ser prazeroso para esta,
mesmo sem que tenha ciência do que é uma relação sexual e, ao sentir prazer
(sensações boas, gostosas), não identifica o ato como ruim, errado. Fato que causa
confusão/estranhamento para a criança quando, aos poucos, percebe que há algo
de errado naqueles atos que vive/viveu.
Forward (1989) ressalta que a fuga, através das drogas, problemas psicológicos,
ou mesmo de casa não consiste em imaturidade, mas sim em ato, “reação lógica a
uma situação desesperada”.
Concluímos, então, que o abuso sexual intrafamiliar/doméstico – que
entendemos como a violência sexual que ocorre na infância/adolescência no âmbito
familiar, mas também é perpetrado por pessoa conhecida, de confiança da criança –
deixa marcas profundas na vítima, já que esta, diante da inocência infantil,
compreende o ato abusivo como forma de carinho. A intensidade deste trauma,
segundo Saffioti (1995), citada por Barros (2006), depende da idade, forma da
violência/abuso, ameaças ou indução à vontade, duração do abuso e grau de
intimidade/parentesco/confiança que mantivera com o agressor.
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“Bem feito”
O desenho a
esquerda, retirado da Revista Veja, e mostra claramente o sentimento de uma
criança em relação ao abuso sofrido, com o agressor “atrás das grades”.
Segundo a
mesma Clínica, a violência muitas vezes é invisível, aparece em desenhos de
montanhas, praias desertas, que representam solidão, medo de reagir, submissão
física e moral.
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4. As Consequências Biopsicossociais do
Abuso Sexual na Vida da Mulher e a Rede
Virtual de Apoio
60
Entendemos, então, que o abuso sexual quando ocorre contato físico sexual
pode gerar sequelas que são mais fáceis de identificar por parte dos familiares e
profissionais de saúde, e como se tratam de danos físicos, preocupam mais quem
está próximo à criança. Culturalmente, os problemas psicológicos, afetivos,
comportamentais não são levados em consideração tanto quanto os físicos. É
importante ressaltar, conforme já explicado, que as consequências atingem a
totalidade do ser; isto é, o corpo e a mente, de forma indissociável.
É necessário ressaltar que cada pessoa reage de forma diferente aos eventos
da vida. Por termos concepções diferentes, entendemos e nos manifestamos de
formas singulares. Assim também é a forma como cada vítima reage ao abuso
sofrido. Segundo Kátia Queiroz , apresentamos diferentes manifestações:
profissionais devem estar atentos e, numa criança que apresenta vários destes
sinais em conjunto a suspeita de abuso deve ser investigada seriamente.
Langberg (2002), citado por Barros (2006), divide as marcas do abuso sexual
em planos, como se segue:
• “No plano físico – (...) consumo exagerado de drogas, álcool, comida, sexo e esbanjamento
de dinheiro para compensar ou diminuir o medo e a ansiedade. (...) tentativa de suicídio (...)
auto-mutilação (...) tais como: queimar-se, cortar-se, flagelar-se, morder-se, arranhar-se,
raiva, baixa auto-estima, etc.
Esse comportamento destrutivo traz consigo humilhação (...) sentimento profundo de auto-
rejeição. A dor tem o poder de aliviar o medo e angústia da vítima, que se considera um ser
repugnante e merecedor de punição. (...) vício por sexo manifesto através da necessidade de
múltiplos parceiros, aversão à prática do ato sexual, sadomasoquismo, prática compulsiva da
masturbação, prostituição, mudanças e conflitos relacionados à orientação sexual,
homossexualismo ou desejo sexual por crianças, quando se tornam adultos. (...) O sexo é
praticado de forma compulsiva na tentativa de acalmar o turbilhão de emoções e frustrações
que teimam em vir à tona, ameaçando explodir como um vulcão.
• No plano emocional – (...) possuem sentimentos de vergonha e profunda rejeição por si
mesmos. (...) possuem medo de investir em relacionamentos, (...) sensação de isolamento,
transtorno da identidade (...) buscando desenvolver relacionamentos onde desempenhem
papéis controladores, já outros adotam a postura submissa e dependente. (LANGBERG,
2002 apud BARROS, 2006, p.44-46)”.
Ainda de acordo com Silva e Oliveira (2002, p.17), os sintomas a curto prazo
são:
Márcia Longo é uma destas mulheres que superou sua dolorosa vivência e
hoje se dedica a ajudar outras mulheres. Quando entrevistada pela Revista Marie
Claire tinha 42 anos. Relatou suas vivências na entrevista sobre “Infância Roubada”,
escreveu um livro contando detalhadamente seu sofrimento, e uma cartilha para
ajudar profissionais a identificar e lidar com o abuso sexual.
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Márcia Longo:
“Quando eu tinha 3 anos, minha mãe teve depressão profunda. Meu pai, que
era eletricista, tomou as rédeas da casa e passou a cuidar de mim e do meu
irmão de 1 ano. Soube muitos anos depois que, nessa época, minha mãe o
flagrou fazendo sexo oral e mexendo nos meus genitais, enquanto me dava
banho. Ela ameaçou se separar. Mas, sem apoio da família e sem forças,
resolveu deixar as coisas como estavam, pois precisava dele para nos
sustentar.
Com 4 anos, meu pai tirou minha virgindade. Lembro de que algo estranho
aconteceu, de que fiquei machucada, mas, como eu era muito pequena, as
memórias se apagaram. O assédio continuou até os meus 10 anos. Ele só
parou quando escapei de mais um de seus ataques e ameacei contar para
minha mãe. Mas não foi o fim da tortura. Por mais de um ano, meu irmão
mais velho me bolinou. Só depois de adulta, soube que minha mãe estava
consciente de tudo. Relembrar é doloroso, mas é o único caminho para curar
o trauma.
Não posso mudar o passado, mas transformei o presente. Me casei duas
vezes, tenho dois filhos lindos e perdoei minha mãe por sua omissão. Tenho
um site [www.eumelembro2003.hpg.com.br] e luto para que essa barbaridade
não se perpetue e para que as leis relativas ao abuso sexual protejam, de
fato, quem precisa delas”. (MARIE CLAIRE, edição 178, Jan/06)
que vivia, encontrou, também, coragem para revelar a família e quebrar o ciclo do
abuso, denunciou e está processando o pai, um inspetor de alunos de 62 anos.
Flor de Lótus:
“O que me dói é me criticarem porque não falei antes. Sempre tive medo que
não acreditassem em mim. Vivi todo esse tempo recolhida no meu mundo”,
desabafa a professora, que durante os anos de silêncio desenvolveu
compulsão alimentar”.
“A família perfeita não existia. Meu irmão disse que viu uma vez, mas não
falou nada. E minha mãe trabalhava demais”.
“Meu pai nunca me viu como uma filha. Sempre como uma mulher”,
“Por pura sorte não engravidei. Não estava na minha vida ser mãe de um filho
dele”
“O abuso é passado, mas ainda está 100% no meu presente”
“Não tenho como apagar essas marcas, mas posso conseguir conviver com
elas sem dor”
“Quero beijar, namorar, sair de mãozinha dada, bem adolescente mesmo. E
quero casar e ter filhos. Mas tenho que descobrir que sexo é bom. Para mim
ainda é uma coisa ruim”
“Minha vida começou de novo. Agora sim estou em busca da minha
felicidade” (DIÀRIO DE SÂO PAULO, 2009)
Depois de denunciar, Flor de Lótus tentou suicídio três vezes. Somente tem
sono tranqüilo durante o dia, como “conseqüência das madrugadas em claro
rezando baixo para que não acontecesse de novo. Ela não gosta de abraços e só se
senta de pernas cruzadas”, para se proteger. Faz tratamento com antidepressivos,
análise e terapia de energização.
Ágata:
“Eu mesma venho me tratando de depressão e precisei de bastante terapia
para recuperar a minha capacidade e liberdade para o prazer sexual. Ainda
luto com a timidez sempre que preciso falar sobre o meu trabalho, embora me
saiba bastante competente. Estou em terapia há mais de dez anos. Tanto que
tornei-me uma terapeuta.
Ultimamente, contudo, percebo que meu progresso tem esbarrado no muro
do silêncio. Nenhum dos profissionais com quem me tratei estava preparado
para me ajudar a ir mais a fundo. Nenhum havia estudado nada sobre o
assunto. Não havia na minha cidade nenhum grupo de apoio para quem foi
vítima, embora eu more em Recife, uma grande capital. Nenhum apoio
governamental específico.
Tudo isso foi me chocando muito, sobretudo ao ver depoimentos no orkut de
mulheres que eram abusadas por seus pais, desde a infância até a idade
adulta, e continuavam sendo, sem terem força para buscar emprego ou ajuda
de qualquer forma. Na verdade, o tom dos depoimentos é quase sempre: o
que faço para conseguir não me matar?! Coisas tão chocantes que poderia
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pensar que fosse fake se não tivesse eu mesma passado pelos abismos do
desespero ao ser abusada por alguém da família.
Por tudo isso e para continuar me curando e apoiando a cura das demais
estou me despindo da vergonha e abrindo aqui a minha caixa de pandora.”
(BLOG INOCÊNCIA)
Topázio:
“É possível
É possível ficar bem, é possível viver nossas vidas sem ficar nos culpando o
tempo todo, sem ficar achando que somos as piores pessoas da face da
terra.
Quando comecei achava tão difícil conseguir manter o controle sobre minha
vida. As vezes me sentia fraca como me fizeram acreditar durante muito
tempo, mas aos poucos fui superando, aos poucos fui me fortalecendo. Dizia,
quero de volta tudo que tiraram de mim. Acredito que o fato de ter tomado a
decisão de ficar bem me impulsionou. Eu queria superar, eu queria dar a volta
por cima, eu queria ser feliz em minha vida. Por mim, por meus filhos! Essa
foi a melhor decisão que tomei. Hoje sei que é possível ficar bem, sim. Não
importa o que houve, a gente consegue superar. Não estou dizendo que é
fácil e nem que acontece de uma hora pra outra. É preciso ter determinação,
é preciso querer, querer muito...
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Forma de apresentação anônima, ou por pseudônimo em sites de relacionamento.
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Hoje tenho meus planos, minhas metas que ainda quero alcançar, mas tenho
certeza de que sou capaz e que conseguirei...”
Jade:
Amazonita:
companheiro e amigo, que está sempre com a mão estendida. Tenho amigas,
que compartilham da mesma dor, e que me fizeram sentir que não estou mais
sozinha. É possível sobreviver ao que vivenciamos, e vivermos, com
dignidade e respeito por nós mesmas”.
Quartzo:
Vemos claramente a dor e o desespero nas palavras desta mulher que relata
sua história. Seu depoimento nos traz as mais duras consequências que a violência
sexual pode trazer: a falta de auto-estima. Porém, mesmo com a dura vivência,
“Quartzo” se prende ao alicerce que a mantém: a vida de sua filha.
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Ametista:
“O abuso sexual deixa muitas marcas e elas passam muito tempo entrando
em seus poros, alma e vida. Não pense que em alguns meses tudo vai
acabar, que basta fazer psicoterapia, duas vezes por mês, e depois de três
ou quatro meses tudo vai passar. Saiba que não há milagres! Não há uma
fórmula mágica de um bolo da felicidade! É necessário dedicação, força de
vontade, paciência e fé em si mesma! É necessário tempo, muito trabalho e
dedicação pessoais, um compromisso interno e por você”.
Cristal:
“Passei muito tempo com as lembranças do que havia ocorrido
completamente bloqueadas na memória. Durante parte da minha infância, fui
uma menina muito ativa e tinha um poder de liderança enorme entre os
outros colegas. Com o tempo, tudo foi mudando, e aquela menina de olhar
vivo e cheia de alegria foi se tornando uma criança desconfiada,
extremamente agressiva e depressiva. E, assim, foi durante o resto da minha
infância e toda a adolescência. Acabei criando um mundo muito particular,
onde só tinha acesso quem eu permitisse. Isso foi causando um isolamento
cada vez maior, e eu não podia compreender como eu não conseguia ser
“normal” como as outras meninas da minha idade. Já havia em mim a
desconfiança de que algo havia ocorrido. Sempre tive uma curiosidade além
do normal e, por conta disso, lia muito. Acabei tendo contato com textos que
abordavam a violência sexual, além de assistir a vários filmes sobre o mesmo
assunto. A desconfiança aumentava. Passei a imaginar todos os homens ao
meu redor como culpados da minha situação, até mesmo o meu próprio pai.
As lembranças do fato ocorrido na infância retornaram no início da minha
juventude, após os vinte anos de idade. Ao mesmo tempo em que me senti
péssima, senti também um alívio enorme por saber que o que havia de errado
não era comigo, mas sim algo que acontecera no passado. Nunca tive
vergonha de falar sobre esse assunto, pois nunca me senti culpada pelo que
aconteceu, mas a sensação de impotência é terrível.
Continuei indo à terapia, até que arrumei um emprego. Era tudo o que eu
sempre quis na minha vida. Poder trabalhar e realizar os sonhos que ainda
estavam vivos em mim. Claro que as coisas não acontecem milagrosamente.
Ainda hoje sofro e sinto as conseqüências dos acontecimentos da infância em
minha vida. Continuo fazendo terapia e tomo medicamento antidepressivo.
Sinto-me melhor, mais lúcida e feliz, mas a minha auto-estima foi
completamente destruída. Tive apenas um namorado em minha vida, quando
tinha vinte anos. Hoje tenho trinta e não consigo, por mais que tente, me
relacionar com homem algum. Não confio nos homens. Cheguei a duvidar da
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minha preferência sexual devido ao nojo que sinto, mas constatei que o
problema não é a preferência sexual e sim o contato sexual. Chego a
fantasiar situações, sinto até vontade às vezes, mas simplesmente não
consigo ter intimidade com homem algum. Não acredito em casamento e não
pretendo ter filhos. O retrato da minha vida íntima pode ser um quebra-
cabeça, como se diversas situações colaborassem para a minha apatia de
hoje em dia. Continuo trabalhando isso em terapia porque me incomoda
demais. Aos trinta anos, ainda estou em busca de uma sexualidade e uma
vida normal”.
Citrino:
Aos 20 e poucos anos de idade a mente foi buscar no passado lembranças
que me permitiram compreender todas as esquisitices do meu
comportamento na minha vida até então. Foi um período muito difícil em que
eu me negava a acreditar em tudo que “como mágica” me fazia lembrar de
algo tão brutal, da interrupção de uma infância. Dia após dia surgia um fato
novo, uma nova recordação e uma nova resposta para todas as perguntas
que eu vivia me fazendo desde a minha adolescência, e posso dizer que
apesar da dor, dou graças a Deus por haver lembrado, talvez não de tudo,
mas de coisas fundamentais que me ajudaram no processo de auto-aceitação
que ainda está em construção e me permito até arriscar que nunca será
encerrado, pois o trauma e a dor que carrego são para a vida toda.
isso para você nunca esquecer de mim”. Não sabia ele (ou sabia) que eu
realmente não o esqueceria nunca mais, mas não porque o nome dela estava
gravado naquele símbolo de infância, mas porque ele violentou não só um
corpo, ele violentou uma vida, que a partir daquele momento não mais seria a
mesma.
Não lembro quanto tempo durou. Acredito que o contato com este indivíduo
se deu até meus 12 anos, mais ou menos. Mas ainda hoje lembro e me
angustio com os sentimentos que tive que carregar por tanto tempo.
As lembranças ficaram bloqueadas na minha memória, mas o meu
comportamento mudou drasticamente; as notas da escola baixaram muito e
eu chorava porque sentia algo como uma culpa e/ou vergonha de alguma
coisa. Lógico que na minha cabecinha de criança eu não conseguia enxergar
as coisas com tal clareza.
Na adolescência vieram as paqueras e eu era sempre a garota estranha que
se acha um lixo e acredita que não serve para nenhum garoto. Sofria muito
com isso, pois me escondia da vida o tempo todo, tentava entender o porquê,
mas nunca conseguia obter as respostas e isso quase me enlouqueceu.
Tavares (2001), citado por Pinheiro (2004), traz mais um sentido ao conceito de
resiliência, que seria o aspecto médico. Segundo o autor, o sentido médico estaria
atribuído à capacidade de o individuo relutar contra uma doença, infecção,
intervenção, por conta própria ou por meio de medicamentos.
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“Empoderamento é o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam
controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência da sua
habilidade e competência para produzir e criar e gerir” (COSTA, 2008)
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mulheres vitimizadas no passado, que buscam apoio mas não fazem parte do perfil
institucional dos centros de referência à mulher.
área, quanto pelas próprias usuárias dos programas voltados à mulher. Ou seja, há
diversidade e divergência de pensamentos sobre esta temática.
Segundo Spinelli,
“Estas mulheres vitimas de violência estão dentro de risco de saúde
pela série de consequências, sequelas que essa violência traz pra essas
mulheres. Então repercute na parte física, mental, na área reprodutiva e, com
isso, a saúde tem que se voltar, se preparar para identificar essa mulher
dentro do serviço, porque é para lá que ela vai.
Não é à toa que foi dentro da área da saúde que começaram os
primeiros serviços, os primeiros programas de atenção às mulheres vítimas
de violência, porque é lá onde elas recaem. Elas recaem por causa de um
aborto, por uma vida sexual não resolvida, por problemas psicológicos, é lá
que elas vão.
Dentro da saúde nem sempre se tem os profissionais preparados para fazer
esse atendimento.”
Apesar de Benita Spinelli nos ter informado sobre como funciona a política
social no Recife, percebemos que a realidade é contraditória, que uma mulher que
tenha a violência silenciada não é compreendida, não tem acesso à saúde pública
de qualidade e continuada que trate das consequências desta violência que fora
silenciada.
Tendo, ainda,
“no campo das políticas públicas na área social (...) o reforço de traços de
improvisação e inoperância, o funcionamento ambíguo e sua impotência na
universalização do acesso aos serviços dela derivados. Permanecem”
políticas casuísticas e fragmentadas, sem regras estáveis e operando em
redes públicas obsoletas e deterioradas”. (YAZBEK, 2001, p. 37 apud
IAMAMOTO, 2006, p.163-164)
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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ANEXOS
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