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ARTE, CORPO E JUÍZO ESTÉTICO

Conference Paper · February 2019

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Rita de Cássia Lana


Universidade Federal de São Carlos
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ARTE, CORPO E JUÍZO ESTÉTICO

Profª. Rita de Cássia Lana

Na fronteira da psicanálise e da filosofia, diante dos

“belos corpos” na sociedade contemporânea, e n c o n t r a- s e a

manifestação de algo que não se exprime pela positividade, pela

afirmação, mas antes encontra sua forma pelo negativo de uma

insatisfação por vezes inconsciente: é o vestígio do gesto, a marca

como inscrição cifrada (e artística), o tattoo, o body-piercing e

outras expressões atuais de um conflito enunciado por diversas

disciplinas.

T r a ta - s e de um largo espectro de formas e práticas

culturais, as quais esboçam tentativas de respostas que ultrapassam

a redução psicológica, ou qualquer outra simplificação advinda das

ciências humanas, pois o território do embate indivíduo versus

c u l t u r a é ho j e o c o r p o c o m o l o c u s d e s u p e r p o s i ç ã o e n t r e a e s s ê n c i a e

a aparência.

Contra a adesão aos modelos de beleza vigentes, os quais

glorificam a juventude e recusam as marcas do envelhecimento como

um crime sem perdão e se espraiam pelos shoppings e academia s,

novos templos de uma civilização que se assemelhando a Midas

fetichiza/mercantiliza tudo que toca, há o fenômeno do corpo como

suporte de uma mensagem artística que necessita ser decifrada.

Não é um fenômeno que se situe no interior de algum

c o n h e c i m e n to específico, mas identifica -se antes com os

“monumentos à barbárie” citados por Walter Benjamin – intersecção


1
de campos de forças subjetivas, limítrofes da etnologia, da política,

da filosofia da arte – enfim, é o avesso de uma pseudo - arte feliz na

servid ão ao mercado.

E nem é por acaso que os temas das tatuagens

(conteúdos) e as partes do corpo escolhidas para o piercing (formas

visíveis/invisíveis) remetem ao exótico, ao bizarro e, no limite, ao

U n h e i m l i c h e: o exótico representa uma dimensão enigmática da

relação Eu /Outro; em grande medida, é um vestígio da sedução da

arte p r é-d e s e n c a n t a m e n t o do mundo. Tal se dá graças a certas

características intrínsecas ao exótico: o fascínio de uma alteridade

r a d i c a l q u e a p a r e c e , v i a d e r e g r a , t r a n s f i g u r a d a p e l o s i mb o l i s m o d e

um estado paradisíaco ou demonizada em razão do profundo

questionamento que seu mero existir provoca no Mesmo.

Todas as vezes que o rótulo "exótico" foi aposto pela

sociedade ocidental a algo, isto significou o estabelecimento de uma

i m p o s s i b i l id a d e d e diálogo simétrico entre ambos, o que é válido

inclusive para aqueles que buscavam a compreensão das diferenças.

O uso da linguagem ao falar do exótico ficou impregnado

pela recusa (consciente ou não) de conceder ao Outro um estatuto de

interlocutor , a negação de um reconhecimento entre sujeitos. Por

conta desse estado de coisas, qualquer referência ao exótico sempre

se reveste de um afastamento inicial que persiste ainda que haja uma

intenção consciente de aproximação: esta é sabotada pelo

distancia mento que se revela através da linguagem, dos termos

empregados para falar do Outro.

2
O desejo de identificação, que demonstra a ausência do

respeito com o diferente, é traído a cada instante no discurso

ocidental sobre o exótico. Basta ler os cronistas da época das

g r a n d e s n a v e g a ç õ e s 1, n ã o i m p o r t a s e o a u t o r e r a r e l i g i o s o o u l a i c o , o

que surge é uma ânsia comparativa que afirma e projeta uma vontade

mimetizadora sobre o que é alheio, com a finalidade de sacramentar

a superioridade do Eu sobre o Outro.

A s s i m, o v i é s a d o t a d o p o d e s e r c a r r e g a d o d e a d m i r a ç ã o

positiva ou de franca execração, pois em nenhuma destas

alternativas foi alterado o status concedido ao exótico: continua

s e n d o E s f i n g e , i m p o n d o o " d e c i f r a- m e o u t e d e v o r o " s e m c e s s a r - e o

decifrar, no c a s o, s e m p r e t e m s i g n i f i c a d o r e d u z i r a d i f e r e n ç a a o

Mesmo, o que na prática representa um pseudo decifrar.

E com isto fecha-se um círculo perverso, pois o

estranhamento ao que é inteiramente Outro permanece reificado; o

c i n e m a d e h o j e 2, c o m s e u s A l i e n s , P r e d a do r e s , E . T s . , J o r n a d a s n a s

Estrelas, etc., sempre foi um dos meios privilegiados em que este

pensar do Mesmo sobre o Outro se expressou, submetendo-o sem

c o n c e d e r- l h e o e s t a t u t o d e s u j e i t o .

O afloramento constante deste conteúdo psicológico

apropriado p e lo s meios de comunicação em geral (recorde -se o

pânico gerado pela narração de Orson Welles por meio radiofônico)

e também pelas expressões artísticas sinaliza uma espécie de curto-

1
O falar sobre o Outro/exótico não iniciou sua tradição na chamada idade moderna, pois tratamento similar era dado
pelos gregos àqueles que eram chamados de bárbaros; todavia, o pensamento moderno inaugurou um modelo de
análise desta questão que produziu as bases para justificar ideologicamente os usos e abusos sobre tudo aquilo
que pudesse ser encaixado no estigma da alteridade.
2
Mas também desde seu surgimento, como pode ser constatado pelos filmes de Mèlies, de Griffith, de Murnau e
depois também em Hitchcock, além de tantos outros.
3
circuito da racionalidade instrumental em relação à alteridade:

enquanto a in d ú s t r i a c u l t u r a l t r a t a d e a p a z i g u a r o q u e e x i s t e d e

inquietante no exótico – s u b l i m a n d o- o em catarses estéreis, as

manifestações artísticas tratam de aprofundar a dimensão de choque

e de denúncia de uma ordem discursiva que transforma o Outro em

m a t é r i a ma n i p u l á v e l e r e d u t í v e l a o i d ê n t i c o .

Um exemplo desta tentativa da arte contemporânea

questionar o s t a t u s q u o pode ser visto em algumas das intervenções

realizadas por Javachef Christo, que elevando ao absoluto o fetiche

da mercadoria em suas concepções artísticas, segue a direção

indicada por Benjamin no final do estudo clássico “A obra de arte na

era de sua reprodutibilidade técnica”: a busca da politização da arte,

como postura de questionamento da ordem capitalista, da lógica do

mercado. Contudo, a for ça da expressão não se esgota nessa

dimensão, pois a crítica se amplia no sentido da efemeridade, da

fragmentação, do artificial como paradigma desejável em nossos

dias.

Até aqui, não haveria propriamente nada de inédito quanto

a uma das tarefas que alguns artistas tem assumido desde o advento

da modernidade, ou seja, a crítica social; o que parece novo é a

mudança e/ou superposição de dois campos de embate desta tarefa, a

(con)fusão do público – esfera intersubjetiva – e do privado –

âmbito do indivíduo, agora acuado no território do corpo e do

imaginário sobre o mesmo.

Daí o refúgio de tudo que é reprimido, intolerável, nas

manifestações corporais – o caráter s á d i c o- m a s o q u i s t a e também


4
narcisista de uma cultura infantilizada, que se fixou em formas

lib i d i n a i s i n c a p a z e s d e g e r a r a u t o n o m i a d o s u j e i t o ; o s c o n t e ú d o s d e

protesto apropriados por formas estéticas que anseiam pelo belo e o

sublime, mas só o podem exprimir pelo seu avesso, pelo grotesco,

pelo gesto doloroso e desagradável.

Não é por acaso que os jovens formam a maioria dos que

aderem a tais expressões – os corpos dóceis, de que falava Foucault,

agora se servem dos instrumentos repressivos clássicos para alardear

sua condição interior massacrada pela cultura do Idêntico; ao mesmo

tempo, constituem uma nova modalidade de “fauna urbana”,

buscando um reconhecimento entre si mesmos pelas práticas

mimetizadas de tribos aborígines e colocadas à disposição pelas

tecnologias da informação.

Ter um piercing representa, pois, um s i t u a r- s e

culturalmente q ue implica em identificação com várias das

categorias já mencionadas, inclusive com a adesão sem maiores

reflexões ao que é da moda. A conversão dos indivíduos em massa

humana, segundo pressupostos psicológicos a serviço da propaganda,

tem produzido a n e c e ss i d a d e de consumir “emblemas de

identificação” que devem ser tanto mais entranhados nos sujeitos –

isto é, em seus próprios corpos – quanto maior for a angústia gerada

pela fragmentação subjetiva.

Mas é bom atentar para o verbo: “consumir”, não “ser”;

t od o c o n s u m o a c a b a , s e e s g o t a , d e i x a n d o a n e c e s s i d a d e i n s a t i s f e i t a e

a cada vez mais desejosa de radicalização – um mecanismo viciante

que é bem conhecido daqueles que estudam o fenômeno do consumo


5
d e s u b s t â n c i a s t ó x i c a s . I s t o s i g n i f i c a q u e d e c o r r e d e t a l s it u a ç ã o u m

amortecimento da percepção, que não se contenta mais com os

limites estéticos anteriormente existentes e busca recursos para

satisfazer- se na esfera do que foi reprimido pela civilização; em

outras palavras, vai ao reino do irracional para apropriar- se de

mecanismos que permitam ancorar um “Eu” que se assemelha a um

barco solto frente à tempestade.

No entanto, este é um caminho perigoso; como foi notado

bem por Benjamin: “nunca houve monumento da cultura que não

f o s s e t a m b é m u m m o n u m e n t o d a b a r bá r i e ” 3. A í e s t á o r i s c o a o q u a l o

sujeito está exposto no mundo contemporâneo, abrigar em si Dr.

Jekill e Mr. Hide, mas sem poder distinguir entre um e outro. Viver

entre a ausência de critérios estéticos - morais coerentes ou a

abdicação da capacidade de escolha pelo render -se à sedução da

propaganda parece ser o dilema contemporâneo.

O desafio lançado ao artista de hoje é este; pois se a

beleza, como queria Kant, seria símbolo de moralidade, como

e n c o n t r a r u m p a d r ã o q u e t r a n s c e n d a e r e g a t e a d i m e n s ã o e s t ét i c a d a

lógica do consumo hodiernamente? Haverá ainda caminhos que

permitam empreender tal tentativa? Talvez seja preciso recordar a

advertência feita ainda no alvorecer da Modernidade: “Aquele que

deixa o mundo, ou a parte do mundo a que pertence, escolher o seu

plano de vida em seu lugar, não necessita de nenhuma faculdade a

mais que a imitação simiesca”. (MILL, 1991:100).

3
BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de história.
6

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