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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS


INSTITUTO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO

SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:

Uma interpretação em Antropologia do Consumo

CARLOS AUGUSTO SEPTÍMIO DE CARVALHO

Mestrado em Administração

Orientador: Prof. Everardo P. Guimarães Rocha

Rio de Janeiro

Maio de 1997
ii

SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:


Uma interpretação em Antropologia do Consumo

Carlos Augusto Septímio de Carvalho

Dissertação submetida ao Corpo Docente do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em


Administração - COPPEAD da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do grau de mestre em Ciências (M.Sc.).

Aprovada por:

____________________________________ Presidente da Banca


Prof. Everardo P. Guimarães Rocha, PhD.

____________________________________
Profa. Anna Maria Campos, DPA.

____________________________________
Profa. Ângela Maria da Rocha, PhD.

Rio de Janeiro

Maio de 1997
iii

Carvalho, Carlos Augusto Septímio de.


Simbologia de objetos decorativos - Uma interpre-
tação em Antropologia do Consumo / Carlos Augusto
Septímio de Carvalho. Rio de Janeiro: COPPEAD,
1997.
ix, 124p. il.
Dissertação - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, COPPEAD.
1. Marketing. 2. Antropologia.
3. Tese (Mestr. - COPPEAD/UFRJ). I . Título
iv

Gostaria de agradecer o inestimável engajamento e atenção do meu orientador Everardo.


E à minha esposa, Dayra, pelo apoio e paciência.
v

RESUMO DA TESE APRESENTADA À COPPEAD/UFRJ COMO PARTE DOS


REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM
CIÊNCIAS (M.Sc.).

SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:


Uma interpretação em Antropologia do Consumo

CARLOS AUGUSTO SEPTÍMIO DE CARVALHO

Maio de 1997

Orientador: Prof. Everardo P. Guimarães Rocha

Programa: Administração

Esta dissertação tem por objetivo explorar e discutir o que a Antropologia oferece para o
desenvolvimento do estudo do Comportamento do Consumidor. As possibilidades da
Antropologia podem ser exploradas tanto nos seus aspectos teóricos, de interpretação de
fenômenos, quanto metodológicos, de geração de novos conhecimentos.

Em termos teóricos, este trabalho primeiramente aborda as bases epistemológicas desta


Antropologia, através da investigação do paradigma interpretativista em contraponto ao
paradigma positivista, e explicita a Antropologia como um empreendimento científico
autônomo. Numa segunda etapa, são apresentadas algumas importantes contribuições
teóricas da Antropologia para o estudo do consumo enquanto um fenômeno social. Esta
abordagem interpretativista privilegia a simbologia contida nos discursos dos atores sociais
e busca entender as suas motivações a partir da interpretação de temas que emergem destes
discursos.

Em termos metodológicos, depois da revisão de algumas etnografias em Comportamento


do Consumidor, uma pesquisa demonstra a contribuição da Antropologia interpretativista
ao conhecimento do consumo de decoração de casais classe média, jovens, sem filhos,
onde são analisados temas simbólicos emergentes dos seus discursos.
vi

ABSTRACT OF THESIS PRESENTED TO COPPEAD/UFRJ AS PARTIAL


FULFILLMENT FOR THE DEGREE OF MASTER OF SCIENCES (M.Sc.).

SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:


Uma interpretação em Antropologia do Consumo

CARLOS AUGUSTO SEPTÍMIO DE CARVALHO

May 1997

Chairman: Prof. Everardo P. Guimarães Rocha

Department: Administração

This dissertation has as objective the discussion and inquire into Anthropology’s
potentialities to the development of the consumer behavior study. These potentialities
arouse both from its theory, in its ability of interpreting social and cultural phenomena,
and from its methodology, when it allows for new knowledge generation.

This work also explores the epistemological bases of the interpretive paradigm, put against
the positivist paradigm, and presents some important contributions from Anthropology to
the study of consumption as a social phenomenum. The interpretive approach privileges
the symbology contained in the social actors’ discourse, and seeks to understand their
motivations based on the interpretation of themes emerging from these discourses.

Regarding methodology, a research presents the interpretive anthropology contributions to


the knowledge of consumption of decorative objects of newly-married young couples
without kids, research in which symbolic themes that emerged from their discourses are
analyzed.
vii

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadros

Quadro 1: Resumo das abordagens positivistas e interpretativistas.................................... 10

Quadro 2: Resumo das diferenças entre as pesquisas qualitativa e quantitativa................. 17

Quadro 3: Comparação entre o pensamento selvagem e o pensamento burguês ................ 55

Quadro 4: Categorias sociais e alimentação........................................................................ 73

Quadro 5: Classes sociais e alimentação ............................................................................. 73

Quadro 6: Atributos culturais e ‘loci’ de refeição ............................................................... 74

Gráficos

Gráfico 1: O modelo lógico-empirista do método científico.............................................. 25

Gráfico 2: O modelo falsificacionista do método científico .............................................. 26


viii

SUMÁRIO

1 Introdução 1

2 As Bases Epistemológicas do Interpretativismo 5

2.1 Definição de paradigma 6

2.2 Suposições filosóficas dos dois paradigmas 9


2.2.1 Suposições ontológicas - a natureza da realidade 11
2.2.2 Suposições axiológicas - objetivo cognitivo 12
2.2.3 Suposições epistemológicas 13

2.3 O empreendimento científico 21


2.3.1 O método científico positivista 23
2.3.2 O método científico relativista 27

2.4 Conclusão 29

3 Antropologia e Consumo 30

3.1 Teoria e prática antropológica 30


3.1.1 O conceito interpretativista de cultura 32
3.1.2 A descrição etnográfica 34
3.1.3 O exótico e o familiar 38

3.2 Como a Antropologia vê o consumo 40


3.2.1 Os objetos na realidade da vida quotidiana 41
3.2.2 Categorias culturais e ritual 44
3.2.3 Os objetos e os papéis sociais 46
3.2.4 Processo de significação 51
3.2.5 Estratégias de posicionamento social 56
3.2.6 Complementaridade entre bens 60

3.3 Conclusão 66

4 Pesquisas etnográficas em Comportamento do Consumidor 68

4.1 A mitologia dos alimentos 70

4.2 Etnografia de uma loja de presentes 75

4.3 Etnografia de uma feira-livre 79

4.4 Cirurgia plástica 82

4.5 O dia de Ação de Graças 86


ix

4.6 Pára-quedismo 90

4.7 Conclusão 94

5 Uma pesquisa etnográfica: casais e objetos decorativos 95

5.1 Metodologia 96

5.2 O grupo estudado 97

5.3 Temas 99

5.4 Conclusões 113

6 Epílogo e sugestões de pesquisas futuras 114

7 Bibliografia 117

8 Anexo 123
1

1 Introdução

Um dos processos mais importantes que existem de substancialização das categorias


culturais é por intermédio da cultura material representada pelos objetos e artefatos
existentes na sociedade. Os objetos contribuem para a construção de um mundo inteligível,
e portanto constituído culturalmente, por serem um registro sensível e por conferirem aos
significados culturais uma concretude que de outra forma talvez fosse inatingível.

Assim, entender o simbolismo dos objetos é entender as categorias culturais que norteiam
a sociedade, e pelo raciocínio inverso, é possível entender as categorias culturais pela
compreensão dos objetos como seus significantes.

Este trabalho tem o objetivo de revelar o potencial da contribuição da Antropologia


(especificamente da escola chamada “interpretativista”) ao estudo do Comportamento do
Consumidor, através da utilização de seu arsenal teórico de análise simbólica. Esta
contribuição é aqui materializada por uma pesquisa que objetivou aprofundar o
entendimento do consumo de objetos de decoração por parte de um dado segmento de
consumidores. Esta pesquisa foi composta de entrevistas não-estruturadas, onde foi
possível interpretar o discurso dos pesquisados e assim revelar o simbolismo dos objetos
de casa em suas vidas.

No Capítulo 2, é feita uma revisão bibliográfica do debate existente na disciplina de


Marketing sobre o paradigma interpretativista em contraponto ao paradigma lógico-
positivista ainda dominante.

Paradigmas podem ser definidos como um conjunto de suposições metodológicas,


metafísicas, e ideológicas com os quais os cientistas se orientam para estudar os
fenômenos naturais e sociais (Anderson, 1986).

O paradigma lógico-positivista entende que o estudo dos fenômenos sociais devem replicar
o mais fielmente possível os métodos das ciências naturais, pois entende que os fenômenos
sócio-culturais não diferem fundamentalmente dos fenômenos físicos ou químicos. Assim,
este paradigma busca retirar a subjetividade implícita na coleta de dados destes fenômenos
2

sociais e emprestar um rigor “científico” às ciências sociais através da formulação de


hipóteses a priori que serão comprovadas ou não nas pesquisas.

O paradigma interpretativista, ao invés, considera que o estudo do ser humano deve não
fugir da subjetividade explícita na apreensão da realidade social, e pelo contrário, utilizá-la
como método válido de compreensão dos processos e fenômenos sociais. Este paradigma
entende que o ser humano é basicamente um construtor de símbolos, e a partir desta
constatação, o estudo dos fenômenos sócio-culturais deve levar em conta a "interpretação"
das "teias de significados" que compõe a cultura que define o empreendimento humano.

O Capítulo 3 é dividido em duas partes: a primeira discute as premissas fundamentais do


interpretativismo e a segunda mostra a sua contribuição ao estudo da cultura material em
sociedades modernas e portanto, ao estudo do Comportamento do Consumidor, sempre
numa perspectiva eminentemente simbólica.

Na primeira parte se mostra que esta escola de pensamento, dentro da Antropologia,


procura focalizar nos seus estudos os códigos culturais e os sistemas simbólicos da
sociedade. O interpretativismo entende que estes sistemas simbólicos ajudam a organizar
para o indivíduo-membro a natureza e os acontecimentos humanos, de tal forma que a
cultura acaba por se tornar uma espécie de mapa do comportamento dos indivíduos em
sociedade e até mesmo em relação à natureza.

Para estudar estes códigos culturais e sistemas simbólicos é preciso lançar mão da
"descrição etnográfica", que se utiliza da "descrição densa" (Geertz, 1989), que é a
interpretação precisa das intenções dos atores sociais a partir da análise de seus discursos,
escolhendo as estruturas de significação e determinando sua base social e sua importância.

Na segunda parte do Capítulo 3 é analisada como a Antropologia interpretativista tem


contribuído para o entendimento dos fenômenos simbólicos associados à cultural material
e portanto ao consumo, pois o entendimento deste último só faz sentido se primeiro é
entendida a função dos objetos no contexto da interação humana. Para isto é necessário
compreender como as pessoas usam os objetos como transmissores de "mensagens", ou
seja, como os objetos servem de carreadores de sentido (e assim servindo de símbolos),
para outras pessoas no seu relacionamento. Esta análise é feita em diversos níveis.
3

No primeiro nível, se analisa a importância dos objetos na interação face-a-face, dentro da


realidade da vida quotidiana. Eles funcionam como incorporadores de emoções e outros
aspectos da subjetividade humana, de forma a organizar a interação interpessoal, e assim
viabilizar a transmissão de estados subjetivos de um sujeito a outro. Esta organização
facilita muito a própria interação, pois esta, sendo intersubjetiva, apresenta muitas
variações e o intercâmbio de significados subjetivos é extremamente complexo.

Num segundo nível de análise, é discutida a utilização dos objetos como acessórios de
rituais. Rituais podem ser definidos como "convenções que estabelecem definições
públicas visíveis" (Douglas & Isherwood, 1980, p. 65). O indivíduo usa o ritual para
organizar sua compreensão dos eventos, através da representação simbólica de
determinadas categorias culturais, que podem ser definidas como a representação das
segmentações básicas pelas quais uma cultura distingue o mundo circundante, criando um
sistema de distinções que organizam a interpretação do mundo fenomenal (McCracken,
1988). Assim, os rituais ajudarão a compartimentalizar e a categorizar o espaço-tempo
circundante, de forma a torná-lo inteligível e "administrável".

A seguir, partindo de outro quadro conceitual, é analisada a participação dos objetos na


composição dos papéis sociais. Estes são impostos diretamente aos atores sociais pela
sociedade por meio de expectativas socialmente definidas. A obrigatoriedade da utilização
destes objetos advém da sua imposição por estas expectativas. Assim, a definição da
situação socialmente esperada por todos os agentes envolvidos impõe comportamentos e
objetos adequados. Assim, um dado lugar social não são coisas materiais que são possuídas
e exibidas, são um padrão de conduta adequada, e que envolve a utilização de objetos
complementares e estimuladores da ação (Goffman, 1985).

Num quarto nível de análise, é explicitada como, numa sociedade moderna, os objetos
servem como diferenciadores dos seus membros pela organização destes objetos num
sistema-código coerente. Esta organização ocorre pela diferenciação sistematizada das
qualidades objetivas dos bens (Sahlins, 1979) que leva a uma diferenciação de seus
possuidores. Esta sistematização é semelhante ao totemismo existente nas sociedades
“primitivas”, pelo qual estas sociedades traçam paralelos entre os fenômenos da natureza e
os grupos sociais, e assim singularizam estes últimos em contraponto aos outros grupos. O
4

“operador totêmico” que permite esta diferenciação existe na forma de criação publicitária
(Rocha, 1990).

Depois, coerente com os níveis de análise anteriores, mas numa perspectiva mais ampla, é
possível identificar o consumo como uma estratégia de diferenciar um dado grupo através
de consumo de bens a ele específicos. No caso da estratégia de diferenciação mais óbvia e
conhecida, as classes superiores usam o consumo de bens caros como instrumento de
exclusão dos que nelas tentam penetrar. No outro lado da mesma moeda é possível
reconhecer uma estratégia de imitação, que ocorre no momento em que um grupo social
almeja os atributos de outro grupo. No entanto, esta estratégia de imitação não se processa
pela apropriação incondicional de todos os símbolos de um grupo, mas por um processo de
assimilação que preserva alguns dos símbolos ou estilos do grupo apropriador.

Finalmente, ao término da segunda parte deste capítulo, é analisada a complementaridade e


consistência existente entre todos os bens adquiridos e utilizados pelo consumidor.
McCracken (1988) chamou de "efeito Diderot" a esta "força" coercitiva que mantém esta
união. A idéia aqui é tentar estabelecer em bases teóricas as motivações relacionadas a
uma certa consistência no padrão de consumo, o que leva a uma identificação de harmonia
entre os bens, motivada por considerações simbólicas. Este conceito é muito semelhante ao
conceito de “estilo de vida”, apesar de almejar uma consistência teórica muito maior do
que este último.

No Capítulo 4, dentro de uma revisão bibliográfica, são feitos comentários acerca das mais
representativas pesquisas etnográficas realizadas no domínio do Comportamento do
Consumidor. Foram escolhidas para análise estudos que têm em comum o fato de valorizar
o discurso dos atores sociais. Além disso, coerente com o paradigma interpretativista,
todos buscam interpretações dos temas que emergem durante a pesquisa. Comum também
a todos os trabalhos é o forte embasamento teórico da Antropologia na interpretação dos
discursos.

No Capítulo 5 é feita uma pesquisa qualitativa de base interpretativa, buscando temas


acerca do simbolismo inerente aos objetos de decoração em um grupo de consumidores
composto de casais classe-média sem filhos. A intenção deste capítulo é oferecer um
5

roteiro básico de uma pesquisa etnográfica. Finalmente, no capítulo 6 são oferecidas


algumas sugestões para pesquisas futuras no campo da Antropologia do Consumo.
2 As Bases Epistemológicas do Interpretativismo

Para se discutir a contribuição do método antropológico interpretativista ao estudo do


Comportamento do Consumidor, é necessário entender primeiramente as suas bases
epistemológicas, e isto por duas razões. Primeiro, e mais importante, porque todo método
científico está inextrincavelmente ligado a uma dada crença na natureza da realidade e no
tipo de conhecimento obtenível; e segundo, os paradigmas do método antropológico vão de
encontro aos paradigmas ainda dominantes no Marketing, e convém tornar claros os seus
pontos de divergência.

Assim, o objetivo deste capítulo será abordar como o paradigma interpretativista é


contraposto ao paradigma positivista na disciplina do Marketing e como estes dois
paradigmas impactam cada um a seu modo o empreendimento científico, desde os diversos
métodos de apreender a realidade até seus modelos explicativos.

Retomando o acima comentado, que o paradigma positivista ainda influencia grandemente


a geração de conhecimento no Marketing, expõe Hirschman (1986; p. 237):

"Mesmo que o pensamento de Marketing tenha subsequentemente evoluído


pelo institucionalismo, funcionalismo e comportamentalismo como sucessivas
bases ideológicas, ele manteve-se leal aos métodos positivistas e à metafísica
originários das ciências físicas. Empiricismo, realismo e quantificacionismo
continuaram sendo as normas que guiam o Marketing enquanto ciência, mesmo
que a conceitualização dos fenômenos mercadológicos evoluiu até reconhecer
a importância do contexto situacional, da subjetividade da percepção e da
natureza construída da realidade humana."

Apesar da enorme evolução do Marketing enquanto corpo de conhecimento nas últimas


décadas, a proposição de novas teorias tem sido limitada, pois ele tem se ressentido da
extrema ênfase dada à criação e teste de hipóteses visando a constituição de leis
generalizantes explicativas dos fenômenos de Marketing.
6

No entanto, de dez anos para cá alguns acadêmicos têm começado a apontar as deficiências
do paradigma lógico-empirista, ainda dominante na pesquisa de Marketing (conforme
Anexo), de acordo com as últimas contribuições da história e da sociologia da ciência. Em
alguns artigos (Anderson, 1983; Deshpande, 1983; Peter & Olson, 1983) é proposto o
estabelecimento de outro paradigma no estudo dos fenômenos de interesse do Marketing.
Baseando-se nos trabalhos de Kuhn, Feyerabend e outros, eles sugerem que o modo como
o conhecimento é gerado e difundido é fundamentalmente um empreendimento subjetivo e
social, e relativo a cada visão de mundo compartilhado por dada comunidade científica.
Dentro deste quadro, alguns autores (Hirschman, 1986; Holbrook & O'Shaughnessy, 1988;
Hudson & Ozanne, 1988) propõem uma nova perspectiva à pesquisa de comportamento do
consumidor. Eles sugerem que o pesquisador deve buscar não fugir desta subjetividade
explícita na apreensão da realidade social, e pelo contrário, utilizá-la como método válido
de compreensão dos processos e fenômenos sociais. Assim, a subjetividade deve ser
reforçada, e a "interpretação" das "teias de significados" deve ser valorizada.

2.1 Definição de paradigma

Para entender as diferenças de abordagem entre o paradigma ainda dominante e o


interpretativismo proposto é importante estabelecer o que é um paradigma ou filosofia
científica. Segundo Hirschman (op. cit., p. 238),

"Filosofias científicas (...) são baseadas em um conjunto de suposições


primárias (axiomas) que são aceitas baseadas na fé; ou seja, elas são baseadas
em crenças acerca da natureza da realidade, cuja verdade ou falsidade não
estão sujeitas a qualquer teste empírico".

Estas crenças vão atuar como "estratégias" para entender os fenômenos sociais e são
asserções acerca de valores e não acerca de fatos. As teorias, proposições e hipóteses de
uma ciência estão embasados em macroestruturas chamadas de "paradigmas" ou "áreas de
pesquisa". Elas podem ser assim definidas (Anderson, 1986, p. 159):

"Estas macroestruturas são (...) uma série de compromissos empíricos,


metafísicos, ontológicos, metodológicos, axiológicos e ideológicos feitos por
7

indivíduos que escolhem estudar fenômenos sociais e naturais de uma


perspectiva particular".

A introdução do conceito de "paradigma" no discurso da filosofia da ciência deve-se a


Kuhn (1989). Segundo ele, um paradigma científico se compõe de uma série de:

(1) Generalizações simbólicas;

(2) Partes metafísicas;

(3) Valores;

(4) Modelos exemplares.

Estes componentes do paradigma permitem a uma dada comunidade científica identificar


quais problemas são de sua alçada, como tentar resolvê-los, e com que critérios julgar as
explicações geradas no seio do meio científico.

Ainda segundo Kuhn, as "generalizações simbólicas" seriam as expressões formais ou


facilmente formalizáveis unanimemente utilizadas pelos membros da comunidade
científica. Elas funcionam em parte como leis e em parte como definições dos símbolos os
quais elas empregam. Assim, elas seriam a base conceitual e definidora dos aspectos da
realidade que são o objeto de estudo da ciência.

As "partes metafísicas de um paradigma" seriam definidas como os compromissos


coletivos da comunidade científica com crenças em determinados modelos. Estes seriam
definidos pela sua utilidade: eles forneceriam à comunidade as analogias ou metáforas
preferidas ou permissíveis. Segundo Kuhn (1989, p.229),

"...[os modelos] auxiliam a determinar o que será aceito como uma explicação
ou como uma solução de quebra-cabeça, e inversamente, ajudam a estabelecer
a lista dos quebra-cabeças não-solucionados e a avaliar a importância de cada
um deles".

Os valores são critérios, às vezes com grande variabilidade entre indivíduos, que são
utilizados mais comumente para a avaliação da pertinência e da relevância das teorias.
8

Basicamente, estes valores seriam: capacidade de formular e resolver quebra-cabeças;


simplicidade; coerência interna; e compatibilidade com outras teorias correntes.

Por fim, os "modelos exemplares", que são o mais importante componente de um


paradigma. Um "modelo exemplar" seria um exemplo de resolução bem sucedida de
problemas científicos anteriores, utilizados pelo grupo para a resolução de um novo
problema, através da sua "modelagem" de acordo com as soluções anteriores. Eles
serviriam como um "enquadramento" da realidade observada de forma a permitir o
entendimento do problema como tal e a sua possível resolução. Este "enquadramento" é
fruto do aprendizado da prática científica, e se baseia na percepção de uma "relação de
semelhança" entre situações objetivas, mais do que na assimilação de leis e regras
científicas.

Em resumo, um paradigma inclui uma série de teorias que dependem em parte das crenças
metafísicas compartilhadas pela comunidade científica. Em termos mais práticos, estas
suposições filosóficas acerca da natureza da realidade e do conhecimento irão influenciar:
(1) o significado dos termos da linguagem utilizada na área de pesquisa; (2) os cânones do
controle e design experimental; (3) padrões de avaliação da adequação de uma teoria; (4) a
relevância da informação para o conjunto de teorias; (5) questões e problemas que estas
teorias vão tentar resolver (Hunt, 1991, p. 325). Exemplos de paradigmas nas ciências
naturais seriam a mecânica newtoniana, a teoria evolutiva de Darwin e a teoria quântica.
Nas ciências humanas poderiam ser considerados paradigmas a psicoanálise freudiana e a
teoria econômica marxista.

Ademais, a produção do conhecimento científico deve ser visto como um processo


sociológico (Anderson, 1983). Assim,

"Crenças científicas são função de fatores culturais, políticos, sociais e


ideológicos tanto quanto quaisquer outras crenças dos membros de uma
sociedade". (Anderson, 1983, p. 24)

A "realidade" é um empreendimento social construído que influencia as ações e atitudes


dos membros de dada sociedade, e ela é relativa à visão de mundo de cada cultura ou
9

sociedade (Berger & Luckmann, 1991). Isto não é diferente para os membros de dada
comunidade científica. Segundo Anderson (1988, p. 156),

"A ciência é um empreendimento cultural e histórico, e seu conhecimento


gerado podem ser afetados tanto por fatores sociológicos quanto por
considerações puramente "cognitivas" ou empíricas. (...) Fatores sociais e
cognitivos estão inextricavelmente ligados em toda ciência simplesmente por
que ela é uma atividade humana e cultural".

A relação entre conhecimento e sua base social é dialética e vai depender de vários fatores,
tais como interesses sociais em jogo, grau de requinte teórico do conhecimento em questão
e importância social deste conhecimento (Berger & Luckmann, 1991, p. 161).

2.2 Suposições filosóficas dos dois paradigmas

Nesta seção se tentará estabelecer como as suposições filosóficas de dada área de pesquisa
acerca da natureza da realidade e do conhecimento influenciam a constituição de seus
métodos (Hudson & Ozanne, 1988). A grosso modo, sob o nome de "positivismo" são
incluídas todas as correntes que consideram que a realidade pode vir a ser percebida de
forma objetiva e sem viéses cognitivos. Podem ser incluídos sob este termo o empirismo
lógico, o neo-empirismo e o positivismo lógico. O paradigma interpretativista inclui
pesquisas denominadas "etnográficas", "hermenêuticas", "interativas" e
"fenomenológicas". Segundo Hudson e Ozanne, estes tipos de pesquisa são
interpretativistas no sentido de que buscam um entendimento dos eventos sociais e
culturais baseados nas perspectivas e experiências das pessoas sendo estudadas. Além
disso, se baseiam também no fato de que o entendimento da realidade social tem de ser
feita sempre através da "interpretação" das relações simbólicas construídas pelos
participantes.

A diferença fundamental entre o interpretativismo e o positivismo é o fato de o último


considerar método e conhecimento científico o mesmo tanto para as ciências naturais
quanto para as ciências do homem. Assim, o positivista toma a realidade psicológica e
social do homem como apreensível da mesma forma que a realidade física, química ou
biológica. Já o interpretativista encara o estudo do homem como necessariamente
10

diferenciado, pelos desafios específicos oferecidos por um objeto de estudo capaz de criar
símbolos (Hudson & Ozanne, 1988). Holbrook e O'Shaughnessy (1988, p. 400) abordam
com clareza a necessidade da interpretação no estudo do comportamento do consumidor:

"O reconhecimento de que as pessoas em geral e os consumidores humanos em


particular diferem de átomos e moléculas na sua infindável busca por sentido
impõe a necessidade da interpretação na nossa tentativa de explicar os
significados inseridos no comportamento do consumidor".

Dentro da linha de raciocínio apresentada, o estudo do homem em sociedade deve levar em


conta esta especificidade. Se o homem se utiliza de símbolos que o ajudam a interpretar e
agir sobre o mundo, nada mais oportuno que tentar estudar como são estes símbolos e
como eles influenciam e modificam o comportamento humano. Mas para isto é necessário
um esforço interpretativo, já que as teias de significados criadas pelas várias culturas nem
sempre são dadas explícita ou conscientemente. Um esforço de "garimpagem" de sentidos
e significados terá de ser empreendido, e este esforço é a interpretação.

Quadro 1

RESUMO DAS ABORDAGENS POSITIVISTAS E INTERPRETATIVISTAS

Suposições Positivista Interpretativista


Ontológicas: Objetiva e tangível, Construída socialmente,
Natureza da realidade única, fragmentável, múltipla, holística,
divisível contextual
Axiológicas: Explanação via "Entendimento" baseado na
Objetivo cognitivo subordinação a leis gerais; Verstehen
predição
Epistemológicas: Causas reais existem Formação múltipla e
Visão de causalidade simultânea

Adaptado de Hudson e Ozanne (1988, p. 509)


11

2.2.1 Suposições ontológicas - a natureza da realidade

O paradigma positivista pretende que a realidade pode ser objetivamente apreendida


através do comportamento externo dos agentes sociais, e que ela é única e muitas vezes
independente das percepções subjetivas destes agentes. Na verdade, poucos positivistas
ainda advogam a irrelevância dos estados subjetivos do indivíduo, no entanto quase todos
consideram que estes estados só são relevantes quando suas consequências são
empiricamente observáveis, ou seja, quando estes estados subjetivos se vêem
transformados em ações objetivas. Como sustentam Hudson e Ozanne (1988, p. 509),
"[Para os positivistas] o mundo social, como o mundo físico, também existe
independentemente das percepções individuais como um estrutura real, concreta e
imutável".

Além disso, o termo utilizado pelos positivistas para designar as ciências humanas e
sociais, "ciências do comportamento", ajuda a entender a importância dada ao estudo do
homem grandemente baseada nas suas ações e seus comportamentos.

Já para o interpretativismo, a realidade social não pode ser apreendida sem se entender
como estão constituídos os estados subjetivos dos agentes sociais. A realidade é construída
socialmente, e para entender como os fenômenos sociais ocorrem é fundamental entender
qual é a percepção da realidade pelos participantes, já que é esta Weltanschauung que irá
balizar suas ações e atitudes. No entanto, não existe apenas uma visão de mundo, sendo a
realidade socialmente construída, "na medida em que todo conhecimento humano
desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em situações sociais" (Berger & Luckmann,
1991, p. 14). Assim a cada visão de mundo corresponde uma realidade, existindo assim
múltiplas realidades.

Ademais, estas realidades socialmente construídas estão sempre se modificando, e um


conjunto expressivo de fatores está sempre influenciando os fenômenos estudados. Assim,
a realidade em vista deve ser estudada dentro de um contexto global, e não é possível
fragmentá-la para facilitar o seu entendimento, pois

"O contexto onde um comportamento ou evento surge influencia o significado


do fenômeno; então, a realidade deve ser vista holisticamente e partes desta
12

realidade não podem ser separadas de seu ambiente natural e estudado em


isolamento" (Ozanne & Hudson, 1989, p. 2).

Portanto, o interpretativismo considera que todos os fatores agindo em dado fato social são
relevantes, e assim uma análise excludente pecaria sempre por reducionismo.

2.2.2 Suposições axiológicas - objetivo cognitivo

O objetivo cognitivo explícito do credo positivista é a explanação dos fenômenos sociais, a


qual levaria à predição. "Explanação" em termos positivistas pode ser definida como a
demonstração de associações sistemáticas de variáveis existentes num dado fenômeno
(Hudson & Ozanne, 1988, p. 510). Hunt (1991, p. 79), por exemplo, a partir de argumentos
estritamente lógicos, afirma que toda explanação é potencialmente uma predição e vice-
versa. Ele vai além e declara que toda teoria social que não é capaz de realizar predições
não contribui relevantemente ao entendimento científico.

Para o "positivismo", a explanação e a predição somente são possíveis através de leis


generalizantes que tentam representar a realidade (considerada única) da maneira mais
válida possível. Estas leis "universais" somente são possíveis pela construção de
generalizações - hipóteses ou proposições - que são refinadas e reestruturadas através de
sistemática corroboração e confirmação empírica em leis mais "gerais". As leis devem ser
nomológicas: não-casuísticas, não-acidentais, não-específicas (Hunt, 1991).

Finalmente, dado que a realidade é única e que se pode identificar causas e efeitos de
maneira inequívoca, a predição é claramente possível, pois as leis são deterministas - ou
estatísticas - e universais.

No entanto, diferentemente das ciências da natureza, existe uma incerteza muito grande em
relação ao grau de previsibilidade das teorias em ciências sociais. Os filósofos da ciência
lógico-empiristas consideram a dedução como o raciocínio lógico mais rigoroso a ser
utilizado na previsão teórica de fenômenos, pois na dedução a conclusão deriva
necessariamente das premissas. Contudo, nem as ciências exatas são capazes de serem tão
rigorosas, pois elas se baseiam também na explicação indutiva e na explicação
probabilística.
13

Por outro lado, o interpretativista entende que a constituição de leis gerais e


descontextualizadas, baseadas em relações de causas e efeitos explicitamente
determinadas, é tarefa impossível, por causa da extrema complexidade e das rápidas
mudanças que caracterizam os processos sociais. O objetivo de toda ciência social deve ser
a de "entender" e ou "antecipar" o comportamento, e não predizê-lo (Hudson & Ozanne,
1988, p. 510). Este "entendimento" é possível através da interpretação dos significados
apreendidos pelos sujeitos a partir de um dado processo social. Ademais, alguns
interpretativistas consideram que o objetivo último de toda produção de conhecimento é
aperfeiçoar o discurso sobre a realidade social, mais do que buscar uma lenta acumulação
de conhecimentos objetivos sobre dada realidade.

A produção teórica de um interpretativista é localizada em um contexto espacial e temporal


bem definido, em que o estudo de processos sociais complexos são aprofundados o
máximo possível. Por isto, o potencial de generalização das pesquisas interpretativistas é
limitado - mas não impossível. Distinto do positivista, o interpretativista não escolhe um
contexto de estudo para reforçar o grau de explanação e generalidade de uma teoria. Ele o
escolhe pela relevância do estudo dentro do contexto de sua disciplina, como por exemplo,
quebra-cabeças teóricos não resolvidos, ou até mesmo por interesse pessoal.

2.2.3 Suposições epistemológicas

Visão de causalidade

Talvez o conceito de causalidade seja o que permita melhor visualizar as radicais


diferenças entre os paradigmas. A causalidade é a base primeira de todo o esforço
científico positivista, e sua discussão permite esclarecer o quão distantes estão as crenças
de ambos paradigmas sobre a natureza da realidade. A descrição das diferenças entre os
dois enfoques por Hirschman (1986, p. 240) (onde o "interpretativista" é chamado
"humanista"), é reveladora:

"O pesquisador positivista provavelmente tem do fenômeno um esquema a


priori composto de elementos discretos (i.e., variáveis) que estão encaixados
numa rede causal. Este esquema mental leva o cientista positivista a designar
certos elementos como causa e outros como efeitos e a se concentrar em
identificar as conexões precisas entre eles. (...) Em contraste, o investigador
14

humanista constrói uma conceptualização mental a priori muito diferente. O


fenômeno é provavelmente encarado como uma extensa e indistinta massa cuja
textura, fontes de coesão e conteúdo o pesquisador quer aprender. (...) O que o
pesquisador humanista deseja é compreender e interpretar esta 'massa', abarcar
seus significados em sua inteireza".

A visão de causalidade defendida pelo positivismo é melhor definida apresentando alguns


critérios de validação de explanações científicas, pois as explanações, para serem válidas,
devem obrigatoriamente ser causais, segundo quatro critérios (Hunt, 1991, p. 87):

"sequencialidade temporal: o fator A que explica causalmente B deve ocorrer


antes no tempo;

variação associativa: se A causa B, então mudanças no nível ou na presença de


A devem ser sistematicamente associados com mudanças no nível ou presença
de B;

associações não-espúrias: Se A causa B, então nenhum fator Z introduzido na


explanação pode fazer com que desapareça a associação sistemática entre A e
B;

suporte teórico: novas teorias devem ser compatíveis com teorias já existentes
sobre assuntos semelhantes ou correlatos".

Os três primeiros critérios implicam uma particular visão sobre a natureza das relações
entre os diversos fatores implicados em qualquer contexto social. Supõe-se que as relações
entre fatores sejam sempre causais e diacrônicas, ou seja, por definição a causa sempre
precede temporalmente o efeito; implica-se que toda relação de causa e efeito tenha um
componente quantitativo, ou seja, que se possa medir matematicamente o "grau de
causalidade" de uma relação; e finalmente, que possa se separar com clareza as diversas
relações e processos existentes num fenômeno social. Notadamente esta última implicação
é extremamente polêmica nas ciências sociais. Ela tem como consequência a utilização de
15

pesquisas experimentais que sistematicamente excluem ou controlam fatores que possam


influenciar na medição da correlação entre os fatores (variáveis dependentes e
independentes) considerados relevantes a priori.

Já para um interpretativista qualquer contexto de estudo é tão complexo e dinâmico que


dificilmente as relações podem ser identificadas como de causa e efeito. Os fatores
interagem entre si e se modificam simultaneamente, e não é possível precisar o que é causa
e o que é efeito, muito menos acusar uma possível sequencialidade temporal. Por isto as
"experiências" que controlam e monitoram rigidamente as variáveis são reducionistas e
não conseguem dar conta de todos os fatores relevantes interagindo num dado processo
social. Também a quantificação é pouco valorizada pelo interpretativista, pois ele sempre
busca entender uma "teia" de relações e símbolos dados socialmente, e não quantificar a
influência de um fator sobre o outro.

Metodologia

O que será chamado de metodologia aqui diz respeito aos procedimentos operacionais e
práticos para a consecução de uma pesquisa científica. Estes métodos se ocupam da
observação e medida, formação de conceitos e hipóteses, e realização de experimentos.
Num continuum de operacionalidade eles seriam o "meio caminho" entre as técnicas e os
métodos científicos gerais. As técnicas são procedimentos de mensuração de dados
empíricos tais como questionários e os métodos científicos gerais são procedimentos que, a
partir de princípios lógicos ou metafísicos, se dedicam a efetuar generalizações a partir da
coleta de dados, da criação de conceitos, do teste de hipóteses, e posteriormente da
elaboração de explanações científicas.

Antes de qualquer discussão sobre metodologia é conveniente esclarecer a diferença entre


"interpretativo", "qualitativo" e "etnográfico". "Interpretativo" sempre se refere ao
paradigma sob o qual várias correntes de pesquisa se abrigam. "Qualitativo" se refere ao
conjunto de abordagens metodológicas praticadas dentro - e fora - do paradigma
interpretativista, dentre as quais podem ser citados estudos de caso, estudos de entrevistas
intensivas, análise de discurso e etnografia. "Etnográfico" se refere a uma abordagem
metodológica básica nascida na Antropologia por causa da necessidade de se entender
16

valores e modos de pensar de culturas diversas da nossa, e que tem atualmente encontrado
aplicações em nossa própria sociedade.

A análise da metodologia preferencial de cada paradigma será feita partindo de duas


dimensões, dada a complexidade do assunto e suas quase intermináveis variações e
correlações. A primeira dimensão diz respeito à utilização de dados quantitativos e de
dados qualitativos e a segunda dimensão é relativa aos "métodos específicos" (Gil, 1987)
mais utilizados em pesquisa social.

Pesquisa qualitativa e quantitativa

Dados quantitativos podem ser definidos como dados em forma de números, sejam eles
escalas numéricas ou estatísticas. Os dados qualitativos seriam aqueles dados apresentados
na forma de descrições e narrações.

Cada paradigma tem um método privilegiado em suas pesquisas. No caso do eixo


quantitativo-qualitativo, o método por excelência utilizado pelo interpretativista é a
pesquisa qualitativa. Já o positivista se utiliza mais do método quantitativo. É importante
deixar claro que o uso do método não é exclusivo, e tanto o positivista quanto o
interpretativista se utilizam da pesquisa qualitativa (Gil, 1987; Selltiz et alii, 1975; Miles
& Huberman, 1984; Kerlinger, 1973). A diferença é que o positivista se utiliza largamente
do método hipotético-dedutivo para a verificação de hipóteses dentro da pesquisa
qualitativa, ou mais comumente, utiliza esta como pesquisa exploratória limitada de futuras
pesquisas quantitativas de larga escala. O Quadro abaixo resume as principais distinções
entre as duas pesquisas.
17

Quadro 2

RESUMO DAS DIFERENÇAS ENTRE AS PESQUISAS QUALITATIVA E QUANTITATIVA

Pesquisa Qualitativa Pesquisa Quantitativa

Interessada em entender o comportamento Busca os fatos ou causas dos fenômenos


humano a partir do quadro de referência do sociais sem propor interpretação subjetiva.
ator.

Abordagem fenomenológica. Abordagem lógico-positivista.

Pesquisador busca a subjetividade e a Pesquisador busca a objetividade e a


perspectiva interna; próximo aos dados. perspectiva externa; distanciado dos dados.

Fundamentada (grounded); orientada para Não fundamentada (ungrounded);


descoberta; exploratória; expansionista; orientada para a verificação; confirmatória;
descritiva; indutiva. reducionista; inferencial; hipotético-
dedutiva.

Medidas observacionais naturalistas, não Medidas obstrusivas, controladas.


controladas.

Fenômenos enquanto processos. Fenômenos enquanto resultados.

Validade é crítica; dados "reais", "ricos" e Confiabilidade é crítica; dados replicáveis.


"profundos".

Holística, tenta a síntese. Particularista, tenta a análise.

Adaptado de Deshpande (1983).

A pesquisa qualitativa se baseia fundamentalmente numa Verstehen das motivações e


valores dos indivíduos engajados nos fenômenos sociais, e procura entender as motivações
subjetivas dos agentes sociais, sem se deter necessariamente em comportamentos
diretamente analisáveis.
18

Os dados obteníveis em pesquisas qualitativas têm algumas características diferenciais que


as tornam especialmente mais ricas que os dados obteníveis por meio de pesquisas
quantitativas (Miles & Huberman, 1984). Dados qualitativos são fonte de descrições ricas
e bem embasadas, que fornecem explicações contextualizadas, assim relevando o sistema
também em seus aspectos espaciais e temporais. A sua utilização também permite achados
não-esperados (serendipitous findings) e novas integrações teóricas; e auxilia aos
pesquisadores a ir além de pré-concepções iniciais. Segundo os mesmos autores, as
palavras, base de todo dado qualitativo, principalmente quando construído na forma de
histórias ou incidentes, possuem um "sabor" vívido e concreto que é bem mais convincente
para o leitor - acadêmico ou profissional - que páginas e páginas de números impessoais.

As pesquisas quantitativas são utilizadas fundamentalmente pelos positivistas. Isto ocorre


pois sua definição de método científico considera como de extrema importância a
possibilidade de verificação e replicação das pesquisas, e estes dois critérios encontram sua
maior sofisticação formal na pesquisa quantitativa.

A pesquisa quantitativa procura encontrar relações numéricas de causa e efeito - através de


variáveis dependentes e independentes - entre os fenômenos baseando-se em equações e
estatísticas, muitas vezes se restringindo a fatores externamente analisáveis, em busca de
objetividade na observação dos fenômenos.

Ademais, sendo fundadas na confirmação e na verificação, e portanto limitadas na geração


de novas teorias (Glaser & Strauss, 1977), se preocupam basicamente com testes de
hipóteses anteriormente construídas e com metodologias que possam ser replicáveis.
Assim, este tipo de pesquisa em geral se baseia no método hipotético-dedutivo e é
fundamentalmente reducionista, enquadrando os fatos sociais em esquemas que eliminam
alguns fenômenos da análise em prol de um maior rigor estatístico ou metodológico. Por
isso, é comum neste tipo de pesquisa a constituição de sistemas ideais, em que a análise da
complexa realidade social é simplificada para que se possa construir modelos lógicos
restritos que só dão conta de alguns aspectos do fenômeno em estudo.

Métodos específicos

Métodos específicos são os meios técnicos que fornecem a orientação necessária à


realização da pesquisa social, sobretudo à obtenção, processamento e validação dos dados
19

pertinentes à problemática estudada (Gil, 1987). No entanto, para evitar confusão com
"técnica", método específico aqui é definido como um conjunto de procedimentos
suficientemente gerais para permitir o desenvolvimento de uma investigação científica.
Podem ser identificados cinco métodos específicos utilizados comumente na pesquisa em
ciências do homem (op. cit., p. 34): o experimental, o estatístico, o comparativo, o
observacional e o clínico. O último não interessa aqui por ser utilizado quase que somente
pela Psicologia.

O método experimental é definido pela identificação das variáveis independente e


dependente e exclusão do ambiente de pesquisa ou controle de todos os outros fatores
considerados irrelevantes (Hunt, 1991). É o método específico por excelência dos
empiristas lógicos, pela clara importância da causalidade no seu design, e considerado
insuficiente pelos interpretativistas por impedir a apropriada contextualização dos
fenômenos sociais.

O método estatístico é eminentemente quantitativo, e fundamenta-se na aplicação da teoria


de probabilidades na construção de leis probabilísticas que serão posteriormente testadas.
Com a utilização de testes estatísticos é possível determinar, em termos numéricos, a
probabilidade de acerto de determinada proposição, bem como a margem de erro de um
valor obtido. Também é muito utilizado pelos empiristas lógicos.

O método comparativo procura cotejar diferentes fenômenos ou fatos sociais com a


intenção de ressaltar suas diferenças e similaridades. Permite o estudo comparativo de
grupamentos sociais separados no espaço e tempo. Assim, é possível comparar diferentes
culturas ou diferentes padrões de comportamento familiar na mesma cultura. Não se
preocupa fundamentalmente com a acurácia da coleta de dados, e sim na construção de
"categorias conceituais" (Glaser & Strauss, 1977) que permitam uma generalização dos
conceitos obtidos em um contexto para outros. É um método baseado fortemente na
indução, e pouco aceito pelos positivistas, por não se basear em critérios lógico-dedutivos
de verificação.

O método observacional pode ser caracterizado pelo fato de se "dirigir, fundamentalmente,


para a descrição e compreensão do comportamento [social], tal como ocorre naturalmente"
(Selltiz et alii, 1975, p. 265). Ele busca prioritariamente examinar com minúcia o
20

comportamento dos atores sociais em que o principal instrumento de coleta de dados é o


próprio pesquisador interagindo com os atores. Podem ser identificados dois tipos de
observação, a sistemática e a assistemática. A fundamental diferença entre ambos é a
planificação antes da pesquisa de que aspectos da realidade social a ser estudada serão
observados.

Os métodos baseados na observação sistemática buscam a descrição criteriosa e induzida


de dado fenômeno, atentando para determinados aspectos já definidos antes do início da
pesquisa. Assim, é feito de antemão um plano que irá direcionar a realização e o registro
apenas das observações pertinentes aos interesses do pesquisador. Pelo seu caráter
estruturado e pela pré-definição de aspectos relevantes, são muito utilizados pelos
pesquisadores qualitativos lógico-empiristas (Miles & Huberman, 1984). A pré-
determinação de alguns objetos de estudo dentro de um "ambiente" de pesquisa o torna
apropriado tanto para situações de pesquisa de campo quanto em experimentos
laboratoriais. Apesar de o pesquisador não poder prever o curso dos acontecimentos ou ter
pouco ou nenhum controle do que pode ocorrer, ele pode estabelecer antecipadamente que
tipos de comportamento devem ser observados para responder à indagação da pesquisa.
Daí deriva que o registro dos comportamentos também é feito de forma mais ou menos
estruturada, por exemplo, através de cartões e formulários. O conteúdo do que pode ser
observado se encontra limitado, de modo a se manter dentro do escopo estabelecido
anteriormente. Sendo assim, hipóteses podem ser testadas e relações causais reveladas,
pois o método da observação sistemática permite realçar alguns fatores em detrimentos de
outros.

O método de observação assistemática encompassa uma série de métodos originários da


prática etnográfica em Antropologia. Ele se define a grosso modo por duas características:
a não-definição a priori de aspectos comportamentais a serem estudados; e a interação
intensa do pesquisador com os atores sociais.

A primeira característica implica na observação de todos os aspectos comportamentais


possíveis, que em geral deriva para uma "focalização" em aspectos mais específicos, de
acordo com a própria dinâmica de observação empreendida pelo pesquisador. Obviamente
existem critérios para a observação assistemática, já que nem todos os aspectos podem ser
apreendidos. Os registros em geral são feitos sob a forma de diários e notas de campo, em
21

que todos os acontecimentos são descritos extensamente e buscando a maior fidelidade


possível aos fatos vistos e ouvidos.

A observação assistemática às vezes pode tomar a forma de "observação participante", em


que o pesquisador se torna um membro engajado na comunidade ou no grupo em estudo,
ao contrário da "observação não-participante", em que o pesquisador se limita a observar e
conversar com os informantes.

2.3 O empreendimento científico

A intenção desta seção é mostrar como cada paradigma percebe o empreendimento


científico. Isto tem ligação direta com a maneira como o conhecimento é criado, validado e
transmitido dentro de uma comunidade científica.

Em geral o positivista se baseia numa concepção de ciência absolutista ou realista, e o


interpretativista se baseia numa concepção relativista (Anderson, 1986). Obviamente
existem muitas correntes dentro de cada credo, e que muitas vezes estão em contradição
entre si. A intenção aqui é, a partir do que cada paradigma considera método científico,
estabelecer os critérios de validade do conhecimento de cada um, dentro das linhas gerais
de crenças mais comuns de cada paradigma.

O positivista em geral valoriza o método científico das ciências naturais como o único
método científico que cria e valida o conhecimento científico. A validade do conhecimento
está fundado numa justificação metodológica que passa pelo rigor lógico de suas
proposições acerca da realidade empírica. Ademais, cientistas com uma orientação
positivista geralmente possuem um ponto de vista realista. Com isto quer-se dizer que eles
partilham da crença de que existe um mundo exterior passível de aproximação através de
observações empíricas(Peter & Olson, 1983). Portanto,

"Teorias são tratadas como afirmações gerais acerca do mundo real. O objetivo
[da ciência] é desenvolver teorias crescentemente mais próximas de serem
afirmações verdadeiras acerca da realidade" (Peter & Olson, 1983, p. 120).

A busca de conhecimento dentro do paradigma positivista se baseia no fato de que é


possível construir-se leis gerais, que seriam constituídas por um lento acúmulo de
22

evidências empíricas gradualmente aperfeiçoadoras destas leis, até que um dia se chegaria
a uma teoria explicativa única e definitiva (Anderson, 1986, p. 157). Para o positivista, o
conceito de verdade é fundamental na avaliação da relevância do conhecimento gerado.
Uma teoria ou proposição é pouco ou muito verdadeira se ela se aproxima pouco ou muito
da realidade, dentro dos padrões de validade considerados científicos.

Ao contrário do positivismo, o interpretativismo entende que o conhecimento científico é


relativo, por entender que a realidade, inclusive a científica, é socialmente construída
(Berger & Luckmann, 1991). Sendo a ciência um empreendimento social como qualquer
outro em que membros de uma comunidade interagem, as crenças acerca de dada realidade
é também social e cognitivamente influenciada.

Pesquisadores com uma orientação relativista concebem a possibilidade de diversas


percepções da realidade, cada uma das quais relativas a um contexto ou a um quadro de
referência específicos. De acordo com esta visão, os cientistas "constroem" as realidades
pelo desenvolvimento de uma concordância social no seio da comunidade científica acerca
dos significados de suas teorias e de suas observações empíricas (Peter & Olson, 1983, p.
120). Para o relativismo a discussão sobre a existência de uma realidade única é
irrelevante. Como sustenta Anderson (1986, p. 157):

"O relativista crítico não tem nenhum disputa com a noção metafísica de que
possa haver uma única realidade social e natural, mas ele ou ela resiste à
afirmação de que a ciência é capaz de revelar ou até de convergir para esta
realidade".

O importante é fato de que não existe um único método científico privilegiado para
apreensão desta realidade.

A perspectiva relativista da ciência crê que as percepções diretas dos pesquisadores não
são objetivas e sim influenciadas por uma multitude de fatores, que incluem experiências
anteriores e treinamento. Desta forma, pesquisadores de diferentes comunidades
científicas, que "vivem, em certo sentido, em mundos diferentes" (Kuhn, 1989, p. 239),
diante dos mesmos dados, podem a vir a designar diferentes sentidos para o mesmo
fenômeno, e formular diferentes teorias para explicá-lo. Consequentemente, o relativismo
23

entende que todos os significados, inclusive as definições técnicas, são subjetivamente


determinados e devem ser sempre entendidos no contexto de criação da teoria.

Portanto, na análise das pretensões de conhecimento científico, é necessário...

"... saber o modo de produção da teoria, os critérios pelos quais ela é julgada,
os compromissos ideológicos e valorativos que informam sua construção e as
crenças metafísicas que subscrevem seu programa de pesquisa" (Anderson,
1986, p. 156).

Desta maneira, existe um tipo de "incomensurabilidade fraca" entre paradigmas, ou seja,


teorias interpretativas não devem ser julgadas a partir de critérios de validação positivistas
ou vice-versa, pois já que suas crenças metafísicas são opostas, forçosamente suas
proposições serão consideradas inválidas (Anderson, 1986).

O critério de avaliação da importância científica de uma teoria deve passar pela sua
utilidade para a comunidade científica e para sociedade. Dentro da comunidade, a utilidade
da teoria pode ser avaliada pela capacidade de gerar novos conceitos que oferecem
explicações mais precisas ou mais interessantes; ou fornecer uma base para geração de
novas idéias e novas teorias. Em termos sociais, a utilidade de uma teoria deve ser medida
pela sua capacidade de gerar bem-estar para a coletividade (Peter & Olson, 1983).

2.3.1 O método científico positivista

Segundo o paradigma positivista, a teoria pode ser definida (Kerlinger, 1973, p. 9) como:

"... um conjunto de constructos (conceitos), definições e proposições


interrelacionadas que apresentam uma visão sistemática de fenômenos através
da especificação de relações entre variáveis, com a intenção de explicar e
predizer os fenômenos".

Torna-se claro a partir desta definição o quanto as compreensões metafísicas acerca da


natureza dos fenômenos influencia a própria definição de "teoria". A "especificação de
relações entre as variáveis" seria a constituição de leis e pressupõe a visão de causalidade
explicitada na seção anterior. Leis baseadas em hipóteses, definidas como uma afirmações
24

conjeturais sobre duas ou mais variáveis, e fruto de uma investigação científica definida
como "...uma investigação sistemática, controlada, empírica e crítica de proposições
hipotéticas sobre as relações presumidas entre fenômenos naturais" (op. cit., p. 11).

O método científico tal como é entendido por este paradigma é perpassado por conceitos
que reforçam a sua filosofia metafísica e excluem outras definições possíveis (e
provavelmente tão válidas quanto) do empreendimento científico. E também se torna clara
a disposição de se colocar as ciências sociais dentro de um quadro teórico unificador das
ciências, tendo as ciências naturais como modelo a ser seguido.

Modelos explicativos positivistas

Os modelos explicativos positivistas têm em comum o fato de se estruturarem em


premissas (ou condições) que, relacionadas com uma ou mais leis, derivam logicamente
em uma explicação. Estas leis podem ser universais e determinísticas ou probabilísticas.

As leis de forma estritamente universal tomam a forma de condicionais universalmente


generalizados e são o protótipo dos outros tipo de leis (Hunt, 1991, p.139). Seriam leis do
tipo "se, então":

"- Toda a vez que A ocorre, então B ocorre;

- Todo A é B;

- Para todo x, se x é um exemplo de A, então x é um exemplo de B".

Estas leis são consideradas somente protótipos, pois explicações baseadas nestas leis
pressupõe um determinismo que hoje em dia não é mais admitido nem nas ciências
naturais. Para suprir esta deficiência, foram desenvolvidos outros tipos (modelos) de
explicação baseados em leis. Eles seriam o dedutivo-estatístico, o indutivo-estatístico e o
hipotético-dedutivo (Hunt, 1991). Os dois primeiros modelos se baseiam respectivamente
na indução e na dedução para a constituição de leis probabilísticas indeterminadas. O
modelo hipotético-dedutivo é o mais relevante para o entendimento dos modelos
explicativos positivistas. Ele é baseado na constituição de um conjunto de postulados ou
hipóteses a partir de observação dos fenômenos de interesse; destes postulados são
deduzidos logicamente consequências observáveis que são submetidas a teste empírico
25

para sua verificação; daí as hipóteses são refutadas ou corroboradas. Este método tem duas
derivações, a lógico-empirista e a falsificacionista (Anderson, 1983).

A derivação lógico-empirista, diferentemente das correntes antecessoras, considera que a


realidade nunca poderá ser apreendida em toda a sua intereza, apesar de se inscrever na
corrente que considera as leis universais a explicação última dos fenômenos sociais. Isto
porque todas as leis "ditas" universais são em última instância induções, e não conseguem
jamais representar a realidade total. Assim, o empirista lógico toma o objetivo da ciência
como o de tentar produzir explicações cada vez mais aperfeiçoadas, cada vez mais
próximas da realidade, através de um processo de "confirmação gradualmente crescente"
(Anderson, 1983). Admitida esta impossibilidade de conhecer a realidade total, o
positivismo constituiu vários métodos probabilísticos (e quantificados) que reduziram o
determinismo inerente à fórmula lógica de leis explicativas universais, mas que não
resolvem satisfatoriamente o problema da indução.

Além desta constatação, foi apresentado um método de justificação teórica que busca
resolver o problema da "evolução" das teorias rumo a uma explicação cada vez mais
aperfeiçoada, que é a derivação falsificacionista. O "falsificacionismo" (Popper, 1993)
prega que uma teoria é sempre formulada para resolver determinados problemas científicos
e as consequências lógicas (dedutivamente inferidas) desta teoria devem ser submetidas a
testes empíricos pela comunidade científica ("teste intersubjetivo"). Se os testes refutarem
as consequências lógicas, então a teoria também é refutada. Se a teoria não for refutada, ela
é "corroborada", até surgir alguma observação para a qual a teoria não oferece explicação,
quando então novo problema é apresentado. A qualidade deste método é o de admitir o
caráter provisório das teorias e a importância da subjetividade da comunidade científica na
formação dessas teorias. No entanto, as observações e testes empíricos ainda são
considerados fundamentais para o "progresso da ciência" (Anderson, 1983).

Gráfico 1
26

O MODELO LÓGICO-EMPIRISTA DO MÉTODO CIENTÍFICO


experiências
perceptuais

feedback negativo
imagens da
estrutura do
mundo real

modelo ou
teoria
apriorístico

hipóteses

não confirmado
testes empíricos

confirmado

tentativamente
aceita
modelo ou teoria
apriorístico

Fonte: Anderson (1983)

Gráfico 2

O MODELO FALSIFICACIONISTA DO MÉTODO CIENTÍFICO


experiências
teorias existentes
perceptuais

sim
consistente aceita teoria
?
existente

não

gera outra teoria

hipóteses

falsificado

testes empíricos rejeita nova


teoria

não falsificado

tentativamente aceita nova teoria

Fonte: Anderson (1983)


27

Contexto de descoberta e contexto de justificação

O contexto da descoberta é aquele contexto em que são formuladas as hipóteses e


proposições científicas. Para sua formulação podem concorrer vários acontecimentos
casuais como sonhos ou insights, ou mais sistemáticos, como um processo indutivo ou
dedutivo. Para os "positivistas", este é o campo privilegiado para os métodos heurísticos de
surgimento de hipóteses, e onde a pesquisa qualitativa tem sua participação franqueada ao
legítimo empreendimento científico, tal como o entendem os positivistas.

Hunt (1991, p. 21), por exemplo, concede que uma Verstehen do sistema de valores dos
atores sociais é possível e até apropriada no contexto da descoberta, mas só se torna
ciência quando as generalizações passam por testes empíricos e são articuladas em leis
gerais. Esta segunda etapa, de teste e organização em leis, ocorre no contexto de
justificação, o qual define propriamente o método científico. Em outras palavras, a
formulação de uma hipótese pertence ao contexto da descoberta e nada impede que para
isto seja utilizada uma Verstehen das motivações e valores dos atores sociais, assim como
são válidos o sonho e a intuição; no entanto, esta hipótese somente ganha status científico
quando a dedução de suas implicações passa por algum teste empírico.

Deshpande (1983) também defende uma "triangulação" entre a pesquisa qualitativa e a


quantitativa. A primeira se destacaria pela capacidade de gerar novas hipóteses que seriam
testadas através dos procedimentos de confirmação e verificação mais sofisticados da
pesquisa quantitativa. A pesquisa qualitativa se destacaria pela maior validade de suas
proposições, enquanto a pesquisa quantitativa se destacaria pela maior confiabilidade de
seus dados. A pesquisa qualitativa teria por exemplo bastante utilidade nas descrições
exploratórias, no processo de coleta de dados e em levantamentos primários de amostras.

2.3.2 O método científico relativista

O conceito de teoria neste paradigma é distinto do que utilizado no paradigma positivista.


Ao invés de relacionar um conjunto de afirmações e leis empiricamente generalizadas, as
teorias devem procurar explicar os fenômenos, mesmo que não tenham relação aparente
com os fatos diretamente observáveis.
28

As teorias são generalizações de observações, mas diferem das generalizações empíricas


pois estas apenas rotulam as regularidades observadas, enquanto as generalizações teóricas
explicam porque estas regularidades ocorrem. A distinção entre teoria e lei é esta:
constroem-se ou delineiam-se teorias, mas descobrem-se leis da natureza (Kaplan &
Manners, 1975).

As leis estão muito relacionadas com as observações, e sustentam-se a depender de "testes


intersubjetivos" as confirmarem ou não. Já as teorias envolvem sempre termos abstratos e
que são referidos a fatos não-observáveis. Nas ciências sociais as teorias incluem termos
como coesão social, anomia, classe, símbolos etc. Estes termos denotam processos,
arranjos, padrões, estados emocionais ou "estados do sistema", sendo que nenhum destes
termos está necessariamente sujeito à observação simples e direta.

Ademais, o processo de formação de qualquer teoria em ciências sociais tem aspectos


diferenciadores que o distingue do processo em ciências naturais, fruto da especificidade
do objeto de estudo e do caráter social do empreendimento científico. Assim, Kaplan e
Manners (1975) distinguem quatro características que diferenciam o projeto científico das
ciências do homem:

Historicidade - Todos os fenômenos naturais têm uma dimensão temporal, mas os


processos físicos por exemplo são recorrentes num espaço de tempo enorme. Já as teorias
sociais dão conta de fenômenos e relações que se modificam rapidamente no decorrer do
tempo.

Sistemas Abertos - cientistas sociais não podem ter controle sobre todas as variáveis
relevantes para dado fenômeno cultural, ao contrário das condições óptimas de controle de
variáveis num laboratório físico, por exemplo.

Problemas Sociais - Os cientistas sociais são pressionados pela sociedade ou por si


mesmos a estudar fenômenos de importância para a sociedade. Estes fenômenos podem ser
complexos e plenos de variáveis, havendo por trás uma cobrança por parte da sociedade
em termos de apresentação de soluções.

Ideologia - As teorias não são avaliadas apenas em termos de lógica e rigor científico, mas
também em termos ideológicos. Assim, não raro teorias são atacadas ou defendidas não
29

pelo seu valor explicativo, mas em termos de implicações morais ou políticas. Portanto,
fatores extra-científicos possuem importante papel na aceitação ou rejeição de teorias.

O modelo explicativo de padrão

O modelo no qual se inserem os esforços explicativos do interpretativismo é o "modelo de


padrão". Diferentemente dos modelos positivistas, este modelo somente é empregado pelas
ciências do homem. Este tipo de modelo possui componentes que procuram configurar o
fenômeno como uma rede de relações entre determinados fatores. Cada teoria descritiva de
determinado fenômeno provavelmente enfatizará um ou outro fator como mais estratégico
ou crucial, mas todas construirão uma configuração ou modelo de fatores interligados
(Kaplan & Manners, 1975).

De acordo com o modelo padrão, algo é explicado quando está tão relacionado com um
conjunto de outros elementos, que juntos compõem um sistema unificado. A compreensão
de algo ocorre quando ele é identificado como parte específica de um todo organizado.
Assim, o desconhecido é identificado a algo conhecido não por propriedades locais, mas
em termos de sua posição em uma rede de relações (Kaplan, 1975).

Interpretativismo e contexto de justificação e de descoberta

O interpretativista não identifica, como o positivista, um contexto de criação de


proposições e outro de validação ou justificação, ambos estanques e diferenciados. O
processo de justificação e de descoberta é único, pois a formulação de uma teoria é vista
como um processo contínuo e deve estar estritamente ligado aos fatos nos quais se baseia.
Este é o conceito de "teoria fundamentada" (grounded theory) (Glaser & Strauss, 1977), no
qual o contexto de descoberta se confunde com o de justificação, pois a teoria é vista como
um processo incessante de aperfeiçoamento de proposições baseadas em fatos sempre
novos.

2.4 Conclusão

Apesar da penetração que o interpretativismo já obteve nas ciências sociais, notadamente


na Antropologia, o Marketing, que tanto se utilizou destas ciências para a formulação de
suas teorias, não tem sido capaz de incorporar esta evolução. Este capítulo tenta justamente
analisar os princípios deste novo paradigma de busca e validação de conhecimento. Haja
30

vista a dominância do paradigma positivista, é natural que esta análise tenha sido
comparativa, pois o surgimento de um novo paradigma sempre se dá em contraposição ao
já estabelecido.

O paradigma interpretativista se distancia do modelo de método científico oferecido pelas


ciências naturais ao estudo dos fenômenos sociais, à medida que entende que seu objeto de
estudo, o ser humano, é sujeito capaz de produzir símbolos, e que estes mesmos símbolos
norteiam seu comportamento e sua cosmovisão. Assim, a utilização de métodos científicos
das ciências da natureza - estruturados em relações causais e em testes de hipóteses,
esbarram na falta de contextualização dos fatos sociais e não dão suficiente valor à
interpretação do fato social a partir dos próprios atores.

Partindo desta base epistemológica, no próximo capítulo é mostrado o que a teoria e


prática antropológica têm de específico, e num segundo momento, quais são as
contribuições teóricas que a Antropologia oferece para o conhecimento do consumo e da
cultura material nas sociedades modernas.
3 Antropologia e Consumo

3.1 Teoria e prática antropológica

Depois de definidas no capítulo anterior as bases epistemológicas nas quais se estabelece o


interpretativismo, este capítulo procura explicitar os seus fundamentos enquanto método
antropológico, e também mostrar a sua contribuição ao estudo da cultura material em
sociedades modernas.

O método antropológico aqui discutido se baseia numa das várias interpretações possíveis
do fenômeno cultural. A Antropologia se caracteriza pela sua base pluralista e que sempre
está num processo de autoquestionamento e autocrítica (DaMatta, 1987). Assim, em seu
seio podem conviver várias definições de cultura, muitas vezes baseadas em contribuições
de outras ciências como a economia, a psicanálise, a psicologia, a linguística, etc. No
entanto, para definir a especificidade do interpretativismo, é fundamental explicitar o que
ele entende como "cultura".
31

O interpretativismo procura focalizar nos seus estudos os códigos culturais e sistemas


simbólicos de dada sociedade, a partir dos quais todas as outras manifestações objetivas
(comportamentos, valores, etc.) derivam. O que singulariza qualquer cultura é uma visão
de mundo característica, baseada em categorias de pensamento que ajudam a organizar
para o indivíduo-membro os acontecimentos humanos e naturais comuns a toda
humanidade, tais como procriação, nascimento, morte, fenômenos da natureza, etc., de
forma a que o mundo se mostre dotado de algum sentido e tenha um mínimo de coerência
e harmonia em suas manifestações.

A gênese da cultura provém de uma necessidade biológica, pois a instabilidade orgânica


inerente ao ser humano o obriga a ordenar e estabilizar sua conduta e sua atividade sobre a
natureza (Geertz, 1989).

Completando este raciocínio, Berger e Luckmann (1991, p. 75) argumentam que:

"O organismo humano não possui os meios biológicos necessários para dar
estabilidade à conduta humana. A existência humana, se retornasse a seus
recursos orgânicos exclusivamente, seria a existência numa espécie de caos".

O homem é um animal incompleto e inacabado, que precisa da cultura para se completar.


A idéia subjacente aqui é que a cultura serve não apenas para garantir a continuidade do
grupo social, mas a própria sobrevivência do homem.

Ademais, a cultura é uma criação do espírito humano que procura sistematizar e


determinar os diversos eventos relacionados com o ser humano de forma a organizar sua
experiência. Esta organização só existe no momento em que o homem atribui sentido aos
fatos da natureza e às experiências e fenômenos humanos.

O homem é um animal produtor de sentido. Dotar de sentido a realidade circundante faz


com que seja possível entendê-la num todo coerente, no qual todos os fatos biológicos ou
sociais da vida quotidiana se tornam inteligíveis dentro de um contexto de significados
mais complexo e mais abrangente, o chamado "universo simbólico" (Berger & Luckmann,
1991). Isto permite viabilizar a existência do homem e, por extensão, do grupo social ao
qual pertence, no momento em que as normas de conduta e comportamento são sempre
baseadas em valores constituídos dentro do universo simbólico de cada grupo.
32

Portanto, a cultura acaba por se tornar uma espécie de mapa do comportamento dos
indivíduos em sociedade e até mesmo em relação à natureza.

"A Cultura, distintivo das sociedades humanas, é como um mapa que orienta o
comportamento dos indivíduos em sua vida social. Puramente convencional,
esse mapa não se confunde com o território: é uma representação abstrata dele,
submetida a uma lógica que permite decifrá-lo" (Rodrigues, 1983, p. 11).

Assim, a sociedade pode ser entendida como uma construção do pensamento, uma entidade
provida de sentido e significação. E sendo a vida coletiva feita de representações, ou seja,
das figurações mentais de seus componentes, para o seu conhecimento é necessária uma
teoria social do conhecimento (op. cit., p. 11).

3.1.1 O conceito interpretativista de cultura

Provavelmente, uma das maneiras mais diretas de se expor com precisão o ideário de uma
corrente antropológica é através de sua definição de cultura, pois esta definição encerra em
si explicitamente os conceitos e a perspectiva pela qual o fenômeno cultural será abordado.
Talvez a concepção de cultura que melhor representa o interpretativismo é a de Clifford
Geertz (1989). O conceito de cultura defendido por ele é essencialmente semiótico. Geertz
acredita que o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, e
a cultura são essas teias. Segundo ele (op. cit., p. 24), a cultura opera como:

" (...) sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, (...) a cultura não é um


poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos
sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto,
algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível - isto é,
descritos com densidade".

Indo além, pode-se dizer que a vida social pode ser entendida como um sistema cujos
componentes só existem para significar; e as relações entre eles também são produtoras de
significação (Rodrigues, 1983); estes sistemas de significações vão ser orientadores de
todo comportamento social. Afirmar-se-ia que é possível olhar para "as relações do homem
33

com a natureza como se fossem fenômenos comunicacionais e significacionais"


(Rodrigues, 1989, p. 116).

Mais radicalmente, Edmund Leach (1978, p. 16) acredita que ...

"Todas as várias dimensões não verbais da cultura, como estilos de vestuário,


cenários de um vilarejo, arquitetura, móveis, comida, cozinha, música, gestos
físicos, postura, etc., estão organizadas em conjuntos padronizados a fim de
incorporarem a informação codificada de uma maneira análoga aos sons,
palavras e frases de uma língua natural. (...) Falar sobre as regras gramaticais
que governam ao uso de roupas é tão significativo quanto falar sobre as regras
gramaticais que governam os discursos".

Ou seja, ele acredita que é possível apreender as diversas realidades da cultura a partir da
linguística, interpretando as manifestações objetivas de uma sociedade sempre a partir da
perspectiva de que são um código a ser decifrado, e que possuem a sua própria gramática e
sintaxe.

Concluindo, esta antropologia procura interpretar os símbolos que permitem a um


determinado grupo ou sociedade tornar o mundo inteligível e criar parâmetros de ação
sobre este mundo.

Assim, fica claro que, para melhor entender a riqueza da proposta interpretativista e a sua
busca de significados, é importante também definir o que é "símbolo" e quais são as suas
implicações para o estudo do social. Para Geertz (1989, p.105), o símbolo é...

"...qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como


vínculo a uma concepção - a concepção é o significado do símbolo. (...) [Os
símbolos] são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência
fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes,
julgamentos, saudades ou crenças".

Estes elementos carreadores de significado (os significantes) são formas perceptíveis aos
sentidos de noções ou abstrações, são incorporações concretas de idéias, atitudes,
34

julgamentos, etc. e por isto se tornam uma preciosa fonte de informação sobre os
elementos não-concretos da realidade social de dada cultura. Uma ciência que se ocupe do
simbólico estudará fenômenos tão observáveis quanto qualquer outro fenômeno. Com isto
se escapa de tentar estudar obscuros processos psicológicos internos à mente humana,
iluminando-os. “Os atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas
simbólicas, são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos quanto o
casamento e tão observáveis como a agricultura”(op. cit., p. 106).

Desta forma, partindo da idéia que toda produção humana é dotada de significação, é
possível ultrapassar a idéia de "produção material", contraposta a idéia de "produção
espiritual". Dentro desta linha de raciocínio, argumenta Rodrigues (1989, p. 117) que ...

"...matéria-prima, pessoas, transações, produtos etc. poderiam ser vistos como


signos, isto é, como comportando relações entre significantes e significados,
uns e outros sem existência autônoma, pois é exatamente da aproximação deles
que um signo se constitui. Apresentando uma dupla superfície, a do sensível
(significante) e a do inteligível (significado), no signo a oposição entre o
material e o não-material se dissolve, uma vez que não são possíveis imagens
mentais (idéias, conceitos, significados) sem representações materiais
(significantes), nem seriam concebíveis significantes aos quais fosse
impossível atribuir significados".

E todas as "coisas" existentes numa sociedade são significantes, pois nunca são coisas em
si, elas sempre são algo para alguém. São núcleos nos quais se condensam relações
simbólicas. Nelas sempre estarão contidos saberes técnicos, padrões estéticos e morais,
investimentos emocionais, etc. (op. cit., p. 117). Localizar e estudar o símbolo, que é
perceptível, permite penetrar no universo dos significados que compõe o sistema simbólico
de dada cultura.

3.1.2 A descrição etnográfica

Segundo Geertz (1989, p. 31), as características que definem a descrição etnográfica são:
(1) ela é interpretativa; (2) o que ela interpreta é o fluxo do discurso social; (3) ela é
microscópica; (4) a interpretação envolvida consiste em fixar o discurso em formas
35

pesquisáveis. E acrescentando mais uma, (5) ela busca a apreensão da totalidade das
relações e comportamentos em estudo.

Entender a etnografia é entender o que representa a análise antropológica como forma de


conhecimento. Hoje em dia, não são mais as técnicas de coletas de dados que definem o
que é a prática de antropologia. O que a define é o tipo de esforço intelectual,
interpretativo, que ela representa: a elaboração de uma "descrição densa", contraposta à
"descrição superficial".

A "descrição superficial" seria a descrição "objetiva" dos fatos, sem atentar para os valores
sociais e os códigos de significação implícitos na ação social. A "descrição densa" seria a
interpretação precisa das intenções dos atores sociais. "O objeto da etnografia estaria entre
a "descrição superficial" e a "descrição densa": uma hierarquia estratificada de estruturas
significantes em termos das quais...[as categorias e/ou os fenômenos culturais]... são
produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam" (op.cit.;
p.17).

A sua análise se revela não a de uma ciência experimental em busca de leis, mas a de uma
ciência interpretativa em busca de significado. Fazer uma análise antropológica é escolher
entre as estruturas de significação e determinar sua base social e sua importância. O
etnógrafo tem de trazer sentido a uma "multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas", irregulares, implícitas e contraditórias, primeiro apreendendo-as e depois
apresentando-as. Como bem define Geertz (1989, p. 20):

"Fazer etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio


de elipses e incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos,
escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos
transitórios de comportamento modelado".

Desta maneira se aclara a segunda característica da descrição etnográfica: somente através


da interpretação do discurso dos atores sociais envolvidos é possível perceber toda a
riqueza da teia de significados, pois é o discurso o campo privilegiado da explicitação dos
símbolos. Por sua imensa variedade e complexidade, "a linguagem é capaz de se tornar o
36

repositório de grandes acumulações de significados e experiências" e de permitir sua


transmissão (Berger & Luckmann, 1991, p. 57).

A terceira característica da etnografia é que ela é microscópica: o campo de estudo, apesar


de levar em conta uma infinidade de fatos sociais tais como rituais, regras de
comportamento, mitos, lendas, etc., é bem delimitado espacial e temporalmente. A
etnografia privilegia pequenos agrupamentos como tribos, no caso da antropologia de
sociedades primitivas, ou subgrupos sociais, no caso da antropologia de sociedades
industrializadas.

A Antropologia busca um aprofundamento do entendimento da simbologia destes fatos


sociais, mas numa perspectiva do pequeno, do particular, dentro do que Laplantine (1988)
chama de "abordagem microssociológica". Contrapondo esta perspectiva à das ditas
ciências sociais tradicionais, ele sustenta que isto representa o deslocamento radical do
foco de estudos para o infinitamente pequeno, do que é considerado muitas vezes
secundário nos comportamentos sociais. Como argumenta Malinowski (1990), existem
fenômenos sociais que mostram claramente ao observador externo como os valores e
instituições sociais são quotidianamente percebidos e, mais importante, vivenciados pelos
membros da sociedade em estudo, tornando-se uma importante fonte de entendimento da
vivência individual das categorias de pensamento mais amplas que definem uma cultura.

"(..) há uma série de fenômenos de grande importância que não podem ser
registrados através de perguntas, ou em documentos quantitativos, mas devem
ser observados em sua plena realidade. Denominemo-los os imponderáveis da
vida real. Entre eles se incluem coisas como a rotina de um dia de trabalho, os
detalhes do cuidado com o corpo, da maneira de comer e preparar as refeições;
o tom das conversas e da vida social ao redor das casas da aldeia; a existência
de grandes amizades e hostilidades e de simpatias e antipatias passageiras entre
as pessoas; a maneira sutil, mas inquestionável, em que as vaidades e ambições
pessoais se refletem no comportamento do indivíduo e nas reações emocionais
dos que os rodeiam" Malinowski (1990, p. 55).

No entanto, a busca da interpretação somente será levada a cabo com sucesso se a


interpretação abarcar o todo das estruturas de significação, pois como já definida
37

anteriormente, a cultura é um sistema entrelaçado de signos interpretavéis, e um


significado só adquire sentido quando em relação com outro.

Como afirma Laplantine (1988, p. 156):

"(...) toda abordagem que consistir em isolar experimentalmente objetos não


cabe no modo de conhecimento próprio da Antropologia, pois o que esta
pretende estudar é o próprio contexto no qual se situam esses objetos, é a rede
densa das interações que estas constituem com a totalidade social em
movimento".

Por fim, a etnografia só faz sentido se ela fixa a sua interpretação numa forma pesquisável,
pois a antropologia é uma ciência, e como tal é inerente que seu saber possa ser fixado e
transmitido, de forma que suas conclusões e inferências possam ser divulgadas e
assimiladas pelo seu corpo teórico.

Por tudo acima exposto, pode-se dizer que a prática antropológica pode ser definida pelo
esforço de interpretação de redes de significações implícitas ou explícitas que são
apresentadas ao etnógrafo no seu trabalho de campo, e não apenas na escrita de seu diário
e na sua atividade de coleta de material. O seu objeto de estudo é claramente delimitado, e
a sua abordagem, a de imersão no universo simbólico dos atores envolvidos. A sua
ambição é fazer com que o trabalho de campo permita o surgimento de novos conceitos
úteis e de novos questionamentos.

Canclini (1996, p. 92) oferece uma definição do trabalho do antropólogo que ajuda a
concluir todo o exposto acima:

"O antropólogo se parece menos com o detetive do que com o psicanalista. (...)
O antropólogo (...) interroga o que os atos significam para os sujeitos que os
vivem, porque sabe que o significado (já não a verdade) dos fatos não está
contido neles, mas sim no processo pelo qual os sujeitos os constituem e os
sofrem, os transformam e experimentam a resistência do real".
38

3.1.3 O exótico e o familiar

Para que a etnografia seja realmente um esforço intelectual de interpretação e "descrição


densa", é necessário que o pesquisador tenha uma formação teórica que permita a esta
interpretação ser fundamentada nos conceitos e teorias da ciência antropológica. No
entanto, o próprio processo de inserção no contexto a ser pesquisado faz o etnógrafo
repensar a própria ciência. Daí a riqueza conceitual que caracteriza a Antropologia, sempre
questionando seus conceitos e teorias básicos. O estudo dos universos simbólicos de
diversas sociedades, em que o discurso e a visão de mundo dos mais diversos grupos são
revelados, sempre introduz novos questionamentos e novos problemas teóricos e
conceituais à ciência antropológica, podendo provocar novas revelações teóricas e
revoluções nos esquemas interpretativos. Assim, o processo de geração de conhecimento
da Antropologia se caracteriza por um estado de dúvida teórica sistemática (DaMatta,
1987).

Outra característica diferencial da Antropologia em relação a outras ciências do homem


como a Sociologia, a História, a Psicologia, a Economia e a Ciência Política, é o fato de a
Antropologia tomar como ponto de partida de suas investigações a posição e o ponto de
vista do outro, do informante, do membro da sociedade ou comunidade inserido no
contexto a ser estudado. Não que as contribuições conceituais de outras disciplinas não
sejam utilizadas; o são e muito. O que a Antropologia faz é manter as portas abertas para
que todos os instrumentos conceituais sejam utilizados para permitir a reflexão e o
entendimento do fato social total, sempre baseando-se fundamentalmente na relação do
pesquisador com o informante como fonte de dados primária. Como argumenta DaMatta
(op. cit., p. 150):

"(...) a Antropologia toma como ponto de partida a posição e o ponto de vista


do outro, estudando-o por todos os meios disponíveis. Se existem dados
históricos, eles são usados; se existem fatos econômicos, isso também entra na
reflexão; se há material político, eles não ficam de fora. Nada deve ser excluído
do processo de entendimento de uma forma de vida social diferente. Mas tudo
isto, convém sempre acentuar, dentro da perspectiva segundo a qual a
intermediação do conhecimento produzido é realizada pelo próprio nativo em
relação direta com o investigador".
39

Aqui vale a pena uma digressão sobre o significado do "fato social total" tal como
explorado por Lévi-Strauss, para apontar as diversas dimensões do fenômeno sócio-
cultural que são o objeto de estudo da Antropologia e ajudam a definir o porquê da
importância da idéia de totalidade para a seu escopo de atuação. Segundo a análise de
Lévi-Strauss (1988, p. 23):

"A noção de fato social total está em relação direta com a dupla preocupação
(...) de ligar o social e o individual por um lado, o físico (ou fisiológico) e o
psíquico por outro. Mas compreenderemos melhor a razão de ser desta questão,
que é ela mesma dupla: por um lado, é só no termo de uma série de reduções
que estaremos de posse do fato social, o qual compreende: 10 - diferentes
modalidades do social (jurídico, econômico, estético, religioso, etc.); 20 -
diferentes momentos de uma história individual (nascimento, infância,
educação, adolescência, casamento, etc.); 30 - diferentes formas de expressão,
desde fenômenos fisiológicos como reflexos, secreções, abrandamentos e
acelerações, até categorias inconscientes e representações conscientes,
individuais ou coletivas. Tudo isto é, num certo sentido, perfeitamente social,
já que é apenas sob a forma de fato social que esses elementos de natureza tão
diversa podem adquirir uma significação global e vir a ser uma totalidade. Mas
o inverso também é verdadeiro: porque a única garantia que possamos ter de
que um fato total corresponde à realidade, em vez de ser a acumulação
arbitrária de pormenores mais ou menos verídico, é a de que ele seja
apreendível (sic) numa experiência concreta".

Esta intensa relação "pesquisador-nativo", e a inserção profunda do pesquisador dentro do


grupo provoca um processo social muito parecido a um rito de passagem (DaMatta, 1987;
Van Gennep, 1978), quando opera uma socialização controlada. A prática etnográfica
impõe ao pesquisador o despir de preconceitos e restrições e o faz se engajar no universo
simbólico do grupo. Assim, a Antropologia é uma ciência que, mais do que qualquer outra,
permite realizar uma ponte entre dois universos de significação sem muitos instrumentos
de mediação. Assim DaMatta (1987, p. 144) coloca a questão do pesquisador envolvido na
cultura do outro:
40

"[A prática etnográfica leva] o estudioso a tomar contato direto com seus
pesquisados, obrigando-o a entrar num processo profundamente relativizador
de todo o conjunto de crenças e valores que lhe é familiar".

Esta ponte de comunicação estabelecida entre dois universos faz com que a prática
antropológica se defina por um processo descrito por DaMatta (1987) como o de
"transformar o exótico em familiar" e o de " transformar o familiar em exótico". Estas
transformações somente podem ocorrer se a ponte de comunicação, o etnógrafo, se
"movimenta com tranquilidade" nos dois universos simbólicos. A primeira transformação,
do exótico em familiar, é característica da prática antropológica em sociedades primitivas,
e procura ir ao encontro de outras culturas sem idéias pré-concebidas e na busca de
entendê-las dentro do seu próprio sistema, de sua própria lógica, sem simplesmente
considerar como irracional o que a princípio não é inteligível. A segunda transformação,
do familiar em exótico, é o que ocorre quando o antropólogo, versado nos universos de
significação de sociedades primitivas, começa a utilizar os conceitos originalmente
construídos para o entendimento destas na compreensão da sua própria sociedade. Assim,
ele vai introduzir na interpretação do seu próprio universo simbólico, que carrega em si
quase como que por definição a certeza de ser a única verdade, a semente da incerteza: o
nosso mundo quotidiano, dado como a realidade absoluta, se torna objeto de
estranhamento, os fatos sociais já não se apresentam com a mesma obviedade de antes, e o
antropólogo se torna um observador distanciado, à margem, marginal.

No entanto, as transformações nunca são completas e o familiar nunca se torna


inteiramente exótico nem o exótico se torna inteiramente familiar. Nesta dialética
proximidade-distanciamento é que vai residir a riqueza e a força da interpretação
antropológica, capaz de explicar determinados fatos sociais na nossa sociedade que, por
serem dados por tão óbvios, muitas vezes nem são objeto de reflexão.

3.2 Como a Antropologia vê o consumo

A Antropologia, dentro da sua vocação pluralista e da sua perspectiva cultural, não tem
uma visão única sobre o fenômeno do consumo. Além disso, no estudo do consumo em
sociedades avançadas também há a convergência de interesses e ferramentais da
Antropologia e da Sociologia, coerente com a crescente pluridisciplinaridade que
41

caracteriza os estudos das ciências humanas em sociedades modernas. Por tudo isto, o
entendimento do consumo passa sem dúvida por várias modelos conceituais, que às vezes
são até contraditórios, mas certamente esta exploração do fenômeno sob enquadramentos
teóricos distintos tornam a sua compreensão mais enriquecedora.

A prática etnográfica padrão assume, no estudo de sociedades primitivas, que todos os


bens materiais carregam significados sociais, e concentra boa parte da análise cultural
nestes bens qua comunicadores. Como observam Douglas e Isherwood (1978, p. 60),
comentando uma descrição do impacto dos bens nas relações sociais:

"Esta abordagem dos bens, enfatizando seu duplo papel de prover a


subsistência e de traçar as linhas das relações sociais é objeto de concordância,
[é] praticamente axiomática entre os antropólogos, como o caminho para o
entendimento apropriado de porque as pessoas precisam de bens".

No entanto, pouco tem sido feito para trazer este instrumental de análise antropológica e
etnográfica para o estudo do consumo em sociedades industriais ocidentais. Em grande
parte isto ocorre porque tradicionalmente o estudo do comportamento do consumidor ainda
é contaminado fortemente pela idéia utilitarista de que se consome para subsistir
(influenciada pela economia) ou para exibição competitiva de status social (influenciada
por certa sociologia).

O próprio significado corrente da palavra "consumo" já indica que o senso comum


interpreta que a utilização de bens materiais é feita pelo seu esgotamento e seu gasto,
implicitamente sinalizando uma determinada visão utilitarista do consumo e restringindo
inconscientemente a sua interpretação, limitando o entendimento do consumo como um
fenômeno simbólico que não necessariamente implica um esgotamento dos objetos.

3.2.1 Os objetos na realidade da vida quotidiana

Entender o consumo somente faz sentido se primeiro entendermos qual a função dos
objetos dentro do contexto da interação humana. Obviamente, esta análise pode ser feita
em diversos níveis.
42

Um primeiro passo para este esforço é buscar compreender como as pessoas usam os
objetos como transmissores de "mensagens" para outras pessoas no seu relacionamento
quotidiano.

Uma apresentação básica desta interação está em Berger e Luckmann (1991), onde é
discutida a interação pessoal face-a-face e a problemática da comunicação da subjetividade
de um sujeito social a outros dentro da vida quotidiana, esta entendida como o campo
primário de interação social. Mesmo não abordando diretamente a utilização de objetos
dentro desta problemática, seguir sua análise tendo-os em mente faz com que se revele a
pertinência desta discussão ao presente estudo. Assim ficará claro como dentro deste
quadro se insere o papel dos objetos materiais como viabilizadores da comunicação
interpessoal enquanto objetivação da expressividade humana.

Para a compreensão correta da problemática da interação pessoal face-a-face é importante


definir primeiro o que é vida quotidiana. A vida quotidiana é uma realidade interpretada
pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um
mundo coerente. A vida quotidiana é o campo da realidade que está mais próxima de nós, e
onde realizamos nossas tarefas e resolvemos nossos problemas de ordem prática. Ela
também se define pelas relações contínuas, frequentes e intensas, diferenciando-se dos
demais campos da realidade pela sua maior concretude em virtude de sua proximidade,
pois os outros campos já se caracterizam pelas relações fracas e indiretas com indivíduos e
coisas consideradas anônimas e remotas.

Na vida quotidiana está-se sempre em interação direta com os outros, e ela apresenta-se
como um mundo intersubjetivo, sendo esta característica o que diferencia a vida quotidiana
das outras realidades das quais se tem consciência. Não se pode existir na vida quotidiana
sem interação e comunicação com os outros. E a forma de comunicação mais intensa da
vida quotidiana é a interação face-a-face, onde a subjetividade do outro se torna mais
plenamente real e maciça. Além disso, pode-se considerar que esta é o caso protótipo da
interação social, todas as outras, de uma forma ou outra, dela derivando.

Para os indivíduos, a realidade da vida diária aparece já objetivada, ou seja, constituída por
uma ordem de objetos designados como tal antes da "entrada em cena" dos indivíduos, e
que provavelmente continuará existindo após seu desaparecimento.
43

Por outro lado, a expressividade humana é capaz de objetivações, ou seja, manifesta-se em


produtos da atividade humana (op. cit., p. 53). Uma objetivação em determinadas
situações pode ser inteiramente instrumental, sem carregar nenhum sentido além, como
uma ferramenta, por exemplo, ou pode em outras situações servir como carreadora de
sentido, como quando esta ferramenta é colocada na frente de uma casa para indicar a
profissão do morador. Ou ainda, pode surgir em elementos da natureza que são dotados de
significação pelo homem. Como definem Berger e Luckmann (op. cit., p. 53):

"Estas objetivações servem de índices mais ou menos duradouros dos


processos subjetivos de seus produtores, permitindo que se estendam além da
situação face a face em que podem ser diretamente apreendidas.(...) Estes
índices estão continuamente ao alcance da vista na situação face a face, e esta é
precisamente a razão pela qual me oferecem a situação ótima para ter acesso à
subjetividade do outro".

Portanto, as objetivações que interessam aqui são as que servem de referências perenes dos
processos subjetivos de seus produtores - produtores aqui entendidos não apenas como os
participantes da interação face-a-face mas também, e principalmente, como as categorias
culturais associadas aos processos subjetivos particulares àquela cultura.

Além da produção de índices, temos a produção de sinais, que se diferenciam dos


primeiros por sua intencionalidade explícita de servir de significantes - carreadores
sensíveis dos significados subjetivos.

A realidade da vida quotidiana não é apenas cheia de objetivações, ela somente é possível
por causa delas. Assim está-se sempre envolvidos por objetos e comportamentos que
"proclamam" as intenções dos outros. Sem esta troca de significados por meio de
comportamentos, ou mais especificamente, por meio de objetos, a vida quotidiana seria
impossível, pois não se poderia compreender, mesmo que parcialmente, a subjetividade do
outro, e todo relacionamento social seria conflituoso e improdutivo.

Pelo exposto acima, fica claro a importância dos objetos para a interação pessoal. Eles
também, dentre outros tipos de carreadores, vão "encarnar" as intenções, emoções e outros
aspectos da subjetividade humana, de forma a organizar a interação interpessoal,
44

permitindo que um sujeito consiga transmitir ao outro seus estados subjetivos. Esta
organização é importante para facilitar a própria interação, já que esta, pelo seu caráter de
intersubjetividade, apresenta muitas variações e o intercâmbio de significados subjetivos é
extremamente variado e sutil.

3.2.2 Categorias culturais e ritual

Complementar à idéia de que os objetos servem para facilitar a comunicação interpessoal é


a idéia de que os objetos servem como adjuvantes do ritual. Numa primeira abordagem, e a
grosso modo, "rituais são convenções que estabelecem definições públicas visíveis"
(Douglas & Isherwood, 1980, p. 65), e têm como característica marcante serem
estruturados a partir de comportamentos e objetos saturados de simbolismo. Uma outra
definição, mais completa e se valendo da metáfora de Goffman (1985) para o
comportamento social enquanto dramaturgia, é a apresentada por Rook (1985, p. 252):

"O termo ritual se refere ao tipo de atividade expressiva e simbólica construída


a partir de comportamentos múltiplos que ocorrem em uma sequência fixa e
episódica, e que tende a ser repetida ao longo do tempo. O comportamento
ritual é dramaticamente fixado e representado (dramatically scripted and
acted out) (...)".

Além disso, os rituais se desenrolam numa sequência de eventos na qual tanto a sequência
quanto cada evento já estão estabelecidos de antemão.

Cada membro da sociedade se serve do ritual para organizar sua compreensão dos eventos,
através da representação simbólica de determinadas categorias culturais. Pode-se defini-las
seguindo McCracken (1988, p. 73):

"As categorias culturais são as coordenadas fundamentais do significado


(meaning). (...) Categorias culturais de tempo, espaço, natureza e pessoa criam
o vasto corpo de categorias. Juntas elas criam um sistema de distinções que
organizam o mundo fenomenal. (...) A cultura faz de si própria um conjunto de
termos privilegiado dentro do qual virtualmente nada aparece divergente ou
ininteligível para o indivíduo e fora do qual não há nenhuma ordem, nenhum
sistema, nenhuma hipótese segura, nenhuma compreensão imediata. Em suma,
45

a cultura "constitui" o mundo investindo-o com seus próprios significados


particulares. (...) [As categorias culturais] determinam como este mundo será
segmentado em parcelas discretas, inteligíveis, e como estas parcelas serão
organizadas em um sistema coerente maior".

Ademais, a própria racionalidade impõe ao ser humano a busca do entendimento da


realidade. E os rituais ajudarão a compartimentalizar e a categorizar o espaço-tempo
circundante, de forma a torná-lo inteligível e "administrável". Douglas e Isherwood (1978,
p. 66) ilustram este potencial das "coisas" de definir o tempo com o poder que uma simples
refeição tem de servir como um marcador do tempo, discriminando os períodos de festas
natalinas do resto do ano pelo tipo de alimento oferecido.

Apesar da sua importância para a estruturação de um mundo compreensível, as categorias


sociais são invisíveis, não têm existência material. No entanto, elas são constantemente
substancializadas pela prática humana.

Um dos processos mais importantes que existem de substancialização das categorias


culturais é por intermédio dos objetos materiais de uma cultura. Os objetos contribuem
para a construção de um mundo constituído culturalmente por serem um registro sensível e
essencial à cultura (existiria o homem sem seus objetos?), e por conferirem aos
significados culturais uma concretude que de outra forma estaria intangível (McCracken,
1988).

Por outro lado, muitas vezes conceitos abstratos são "materializados" em objetos, ou seja,
os objetos são embebidos de significados abstratos, de forma a serem manipulados junto
com outros, e assim conseguirem ser entendidos de tal maneira que talvez não fosse
possível pela manipulação de conceitos puramente abstratos (Leach, 1978).

Dentro desta perspectiva, os bens materiais servem como acessórios indispensáveis ao


ritual. Assim, os objetos servem nos rituais como instrumentos para a representação
simbólica, a qual tem três funções na organização da vida quotidiana: mecanismo de
enfoque, método mnemônico e controle para a experiência (Douglas, 1976, p. 81).

Um ritual funciona como mecanismo de enfoque quando fornece um quadro que permite
delimitar as experiências que estão ocorrendo ou ocorrerão, e assim contextualizar os
46

acontecimentos de forma a excluir significados e ocorrências que não são importantes. Um


exemplo trivial é o ritual de higiene e vestimenta de todas as manhãs que antecede a ida ao
trabalho, e que já sinaliza a passagem do ambiente íntimo e informal para o ambiente
exterior e formal.

No caso da utilização do ritual enquanto método mnemônico, um símbolo exterior pode


ajudar a coordenar corpo e mente, através de objetos que funcionem como lembranças de
atividades relacionadas ao ritual e ou às categorias culturais associadas a ele. Isto ocorre,
por exemplo, quando se amarra um barbante no dedo para se lembrar de alguma tarefa.

O ritual serve para reforçar e dirigir a experiência, revigorando a percepção e agindo como
um diagrama daquilo que é conhecido, quando ele funciona como controle para a
experiência. No entanto, ele serve não apenas para repetir o já conhecido, mas para
formular a experiência, possibilitando o conhecimento de algo que de outra maneira não
seria conhecido. Assim, há coisas que não podemos experimentar sem ritual. Por exemplo,
o sentimento temporal de passagem dos anos não existiria sem as festividades de final de
ano e sem todos os objetos que caracterizam estas cerimônias.

3.2.3 Os objetos e os papéis sociais

Outro nível de análise da importância dos objetos é o estudo de sua utilização na


complementação dos papéis sociais. Apesar de aqui haver a utilização de conceitos
diferenciados dos da seção anterior, pode-se considerar que este nível de análise é
complementar ao anterior. Agora o interesse se desloca das demandas de comunicação
entre subjetividades para as obrigações e expectativas que a sociedade impõe aos seus
membros, e qual é a atribuição dos objetos dentro deste contexto.

Toda interação pessoal é baseada e estruturada a partir de normas e valores sociais. Para
que estas interações transcorram sem maiores problemas e dentro do que a sociedade
considera normal ou aceitável é necessário que as pessoas inter-agentes encarnem
determinados papéis sociais considerados a priori como adequados. Estes papéis são
impostos diretamente aos atores sociais pelos outros atores através de expectativas sobre
sua conduta. Portanto, o desempenho de papéis sociais pressupõe uma interação entre duas
ou mais pessoas baseada em expectativas socialmente definidas.
47

Em termos conceitualmente mais rigorosos (Berry, 1974, p. 77), papel social é o conjunto
de expectativas impingidas a um indivíduo que ocupa uma dada posição social. As
expectativas são "duplicatas" das normas sociais. Portanto, pode-se dizer que os papéis
são definidos pelas normas sociais: somos obrigados a fazer nos nossos papéis
ocupacionais, familiares, etc., o que a sociedade espera de nós. Existem dois tipos de
expectativas envolvidas no desempenho de papéis: as obrigações, ou seja, as expectativas
que a sociedade impõe ao ator; e os direitos, ou as expectativas do ator em relação à
sociedade e às pessoas com as quais ele interage no desempenho de seus papéis.

Em qualquer situação real de interação os indivíduos buscam compreender como a


situação está estruturada, como vai agir a outra pessoa, qual o contexto em que ocorrerá e
que ações e atitudes tomar. Ou seja, os indivíduos tentam definir como a situação se
desenvolverá.

A definição da situação feita pelo indivíduo constitui a base para a sua maneira de agir
numa dada situação. É o membro individual da sociedade quem formula suas próprias
interpretações dos acontecimentos e das ações dos outros, e é ele também quem define a
situação. Obviamente, ele será influenciado por normas sociais na definição dos elementos
da situação e da sua avaliação. Porém, em última análise, a definição dependerá da
interpretação e compreensão individuais (op. cit., p. 56).

No entanto, é quase impossível um conhecimento total sobre este momento social. Assim,
as pessoas, diante da necessidade de definir a situação pelo menos satisfatoriamente,
buscam por qualquer sinal informativo - deixas, provas, insinuações, gestos expressivos,
símbolos de status - da situação vivida.

Isto é especialmente verdadeiro em sociedades modernas como a nossa que dificultam a


identificação imediata do outro indivíduo por não haver sinais claros de diferenciação
social, resultado de uma ideologia de igualitarismo. No entanto, "marcações" materiais têm
continuado a servir para identificar pessoas de diferentes extratos sociais, mesmo que a
primeira vista nada as revele. Exemplo claro é a utilização de jeans "de grife". Apesar de o
jeans ter sido nos EUA até a década de 60 considerado roupa de trabalhador, sua
utilização pela juventude classe média introduziu-o nas classes mais altas, uniformizando
seu uso através de toda a pirâmide social. No entanto, a inevitável diferenciação
48

desenvolveu-se pelo uso de jeans mais caros de grifes famosas (cuja diferença em relação
aos jeans de outras marcas é unicamente a etiqueta) pelos mais abastados, de forma a
diferenciá-los mesmo quando vestindo um "uniforme" comum a todas as classes.

Quando as pessoas manipulam as impressões que os outros têm de si, de forma a


possibilitar a compreensão da imagem que o ator quer transmitir, ocorre o controle das
impressões. Impressão é considerada uma fonte de informações a respeito de fatos não-
aparentes, de forma a permitir aos participantes orientar suas respostas ao informante
(Goffman, 1985, p. 228). É através do controle das impressões (impression management)
que as pessoas podem transmitir as imagens corretamente, de forma a permitir que a
interação ocorra convenientemente, dentro do "script" estabelecido para aquela interação.
É possível manipular a impressão que o observador usa como substituto da realidade, pois
quando o sinal da presença de alguma coisa não é esta própria coisa, então o sinal pode ser
empregado no seu lugar. O controle de impressões também deve tornar claras as
qualificações do indivíduo para a atividade que ele está realizando, de forma a transmitir
segurança ao outro participante.

Desempenho (performance) é definido como todo comportamento de um determinado


participante, na situação de interação, que sirva para influenciar, de alguma maneira,
qualquer dos outros participantes (op. cit., p. 23). Os desempenhos podem ser "sinceros",
quando o ator está convicto de que a impressão que transmite é a própria verdade, e
"cínicos", quando o ator simplesmente não acredita no seu papel.

Fachada é definida (op. cit., p. 29) como "o equipamento expressivo de tipo padronizado
intencional ou inconscientemente utilizado pelo indivíduo durante a sua representação". A
fachada pode ser dividida em cenário e fachada pessoal.

Cenário compreende a mobília, a decoração, a disposição física e outros elementos do pano


de fundo que vão constituir o cenário e os suportes do palco, enfim, o próprio ambiente
físico. O ambiente físico também servirá como fonte de impressões para a platéia. Ou seja,
ele também age como fonte de símbolos que facilitarão a avaliação da situação e de como
se deve desenvolver o "script" associado à situação.

Algumas das "pistas" que o consumidor pode perceber, por exemplo num dado ambiente
de prestação de serviços, estão relacionadas com a qualidade dos materiais usados, peças
49

de arte, objetos pessoais, tipos de mobiliário, iluminação, etc.. A configuração do ambiente


pode servir também para comunicar uma imagem específica, de forma a compatibilizar um
determinado serviço com o tipo de cliente atendido, como decorações de hotéis, por
exemplo. Hotéis podem ser ostensivamente luxuosos, luxuosamente discretos, podem ser
simples, luminosos ou escuros, podem ser de cores sóbrias ou alegres, a depender de o
público desejado ser de classe alta ou média, jovens ou adultos, turistas ou profissionais.

Por outro lado, o ambiente, ajudando a construir a expectativa, pode dizer muito sobre o
tipo de comportamento apropriado na situação que virá. Por exemplo, a partir da qualidade
dos objetos e materiais decorativos utilizados, um cliente de restaurante pode avaliar se o
ambiente exige formalidade, se induz ao relaxamento, se estimula a conversação, etc..

Já a fachada pessoal compreende aqueles itens do equipamento expressivo identificados


mais intimamente com o próprio ator: vestuário, sexo, idade, atitude, aparência, padrões de
linguagem, etc. A fachada pessoal ainda pode ser dividida em aparência e maneira. A
primeira diz respeito àqueles estímulos que servem para revelar o status social ou
ocupacional do ator. Assim, a aparência também serve para diferençar os diversos
participantes de uma interação: no caso de um hospital, o uniforme ajuda a definir quem é
médico, quem é enfermeira e quem é funcionário de limpeza.

Maneiras seriam os estímulos que servem para informar o papel que o ator espera
desempenhar na situação que se aproxima. No exemplo de uma interação de serviços, uma
atitude gentil, prestativa e cordata em geral são as maneiras mais adequadas. Porém,
podem existir situações em que é parte da função do empregado tomar uma atitude
agressiva, de comando da situação, como no caso de um gerente de hotel chamado para
resolver uma emergência.

Aspectos extremamente importantes na fachada são o seu caráter abstrato e sua


generalidade (op. cit., p. 32). Por mais específica que seja uma interação, a fachada, com
algumas exceções, se estruturará a partir de fatos e aparências utilizados também em outras
situações. Assim, balconistas de farmácia usam aventais brancos, o que simbolicamente as
associa aos médicos que prescrevem os remédios, assim transmitindo aos clientes a mesma
impressão de austeridade profissional e de cuidado com sua saúde que os médicos têm.
Para as pessoas em geral esta generalidade é importante na medida em que facilita a
50

mobilização de sua experiência anterior e seus estereótipos socialmente construídos, e que


são em número limitado. Portanto, as exigências abstratas de certas práticas, visando
facilitar o enquadramento em estereótipos por parte dos indivíduos, leva a uma natural
idealização das práticas, e as aproximam dos valores socialmente prestigiados. Com isto,
se facilita a compreensão destas práticas e sua socialização, ou seja, elas são moldadas e
modificadas para se ajustarem à compreensão e às expectativas da sociedade.

Existe uma série de objetos materiais dos quais uma pessoa deve quase que
obrigatoriamente lançar mão para poder satisfatoriamente interagir face-a-face com outras
pessoas. A obrigatoriedade da utilização destes objetos advém da sua imposição por meio
das expectativas da sociedade em geral, ou do grupo em específico, sobre os atores que vão
interagir. Assim, a definição da situação socialmente esperada por todos os agentes
envolvidos impõe comportamentos e objetos adequados.

Num nível mais amplo de configuração de papéis e posições sociais, a colocação do


indivíduo em determinada posição não consiste somente em que ele possua os atributos
necessários (idade, sexo, classe social, profissão), mas também em que ele mantenha os
padrões de conduta e aparência que o grupo ou a sociedade como um todo associam à
posição.

Portanto, uma condição, uma posição ou um lugar social não são coisas materiais que são
possuídas e exibidas; são um padrão de conduta adequada, apropriada e coerente, mas que
envolvem objetos complementares e estimuladores da ação (Goffman, 1985, p. 74).

O desempenho de papéis impõe necessidade de se compor um cenário para que sua


interpretação se passe num ambiente compatível com as expectativas e haja
comportamento e vestimentas também adequados. Isto demonstra como os elementos
materiais são importante para definir uma pessoa nos termos desejados por ela ou impostos
pelo papel. Serão necessários diversos elementos para que se possa construir uma
ambiência (que incluiria comportamento, atitude, mas também vestimenta, objetos
pessoais e decoração do local) capaz de comunicar aos outros exatamente o pretendido ou
requerido. Como propõe Solomon (1983, p. 324):
51

"A probabilidade de um desempenho de papel bem sucedido é aumentada no


grau que a constelação de símbolos materiais circundando o ator do papel é
análoga ao simbolismo associado àquele papel".

3.2.4 Processo de significação

Além de serem carreadores de significados socialmente estabelecidos, pela


substancialização de categorias culturais, e serem úteis nas interações face a face, existe
outro aspecto do sistema de objetos que releva a sua importância enquanto signos, onde os
objetos somente fazem sentido quando em relação aos outros objetos, dentro de seu
sistema específico. Em outras palavras, eles somente possuem sentido quando se
diferenciam em relação aos outros, e nunca num sentido intrinsecamente autônomo.

Como argumenta Sahlins (1979, p. 198):

"Pelo arranjo sistemático das diferenças significativas atribuídas ao concreto, a


ordem cultural se realiza também como uma ordem de bens. Os bens ficam
como códigos-objetos para a significação e avaliação de pessoas e ocasiões,
funções e situações. Operando numa lógica específica de correspondência entre
contrastes materiais e sociais, a produção é portanto a reprodução da cultura
num sistema de objetos".

Dentro deste quadro teórico, Sahlins faz uma análise estrutural dos códigos associados ao
vestuário na sociedade americana, identificando oposições binárias nas características do
vestuário moderno, tais como: corte do tecido; textura, qualidade, densidade e cor do
material; e combinação de acessórios; e associando as relações binárias a determinadas
situações e classes sociais.

Ademais, Sahlins reconhece um tipo de "totemismo burguês" (isto é, de uma sociedade


industrializada e moderna), quando argumenta que a diferenciação sistematizada das
qualidades objetivas dos bens é capaz de servir como instrumento de um esquema de
pensamento tão vasto e dinâmico quanto o totemismo construído pelo pensamento
selvagem.
52

O totemismo tal como definido originalmente por Lévi-Strauss é um processo


classificatório característico das sociedades primitivas, em que o “pensamento selvagem”
(típico de sociedades tribais) articula diferenças na série cultural com diferenças na série
natural. Assim, a determinados grupos (definidos por oposição a outros grupos dentro de
cada sociedade) são assinalados espécies animais/vegetais ou fenômenos da natureza,
criando então séries classificatórias dentro da sociedade em paralelismo às séries da
natureza. Além disso, as sociedades “totêmicas” entendem que exista uma continuidade
entre natureza e cultura, ao contrário da sociedade ocidental, que as distancia. Conforme
Rocha (1990, p. 104),

"O totemismo é um sistema de classificação que opera em diversas sociedades


procurando manter uma complementaridade entre natureza e cultura. (...)
Assim, nos sistemas tribais, a continuidade é obtida por meio de uma lógica
que diferencia os seres humanos por identificá-los com elementos da natureza.
A diferença está em que a nossa sociedade desde os gregos segregou a natureza
na sua forma de conceber o cosmos. Nos sistemas totêmicos, ao contrário,
existia uma junção, uma aliança, entre natureza e cultura. Quando um grupo
social, um 'clã', era identificado a um animal ou planta, mantinha com ele
estreitas relações que ofereciam em contrapartida a possibilidade de se
distinguir de outro grupo ou 'clã'.

Por esta lógica, aparecia uma dupla possibilidade. Recuperar a continuidade


natureza e sociedade, e na mão dupla, a descontinuidade entre grupos sociais".

Em outras palavras, o totemismo é um dos aspectos da tentativa do "pensamento


selvagem" em entender o universo e dele fazer sentido através de classificações paralelas
do domínio da natureza e da cultura, e, ao mesmo tempo que os reconhece distintos, os
harmoniza numa interpretação de mundo complementar.

Lévi-Strauss circunscreveu claramente seu conceito de totemismo, quando o define como


uma articulação de séries culturais com séries naturais, e estabelece que nas sociedades
modernas ele está delimitado a locais e práticas marginais. Realmente, enquanto sistema de
(re)conhecimento e classificação do mundo, a articulação de natureza e cultura se faz
pouco presente nas sociedades modernas.
53

No entanto, pode-se encontrar uma espécie de totemismo nas sociedades modernas no


momento em que se amplia o conceito de séries naturais para o conceito de séries não-
humanas.

O próprio Lévi-Strauss (1973; apud Rocha, 1990) afirma que a natureza é demarcada
como a dimensão anti-humana por excelência. Como argumenta Rocha (op. cit., p. 105):

"(...) a concepção de 'natureza' é relativa. A 'natureza' é, antes de tudo, uma


definição que pode ser variável de sociedade para sociedade. No limite, toda
cultura poderia ter sua própria concepção de "natureza". Ela é menos uma
essência absoluta e mais uma forma de distinção entre o humano e o não-
humano. Não é universal, mas particular. A 'natureza' é definida socialmente
como tal".

Assim, no momento em que se identifica um domínio do não-humano no seio da sociedade


industrial moderna, se pode identificar um operador totêmico moderno trabalhando os dois
domínios, o do humano e o do não-humano.

Pode-se identificar o domínio do não-humano nas sociedades industrializadas modernas


como o domínio da produção de bens (op. cit.). Nele, o mundo se realiza por meio de
materiais e máquinas, e o produto do trabalho humano é indistinto, impessoal e serializado.
O modo de produção industrial, com seu conjunto de máquinas e de trabalhadores
especializados em apenas poucas etapas do processo, gera alienação, quando estabelece a
separação entre o trabalhador e o resultado do seu trabalho. Portanto,

"Torna-se cada vez mais impossível determinar qual o papel que desempenha o
trabalhador individual na produção do produto final. O produto final é algo
onde, tanto do ponto de vista lógico quanto do ponto de vista do sensível, o
trabalhador individual é o grande ausente" (op. cit., p. 63).

A máquina, concebida para funcionar com a força de trabalho de qualquer trabalhador,


indistintamente, retira a humanidade dos produtos finalmente feitos, e cada trabalhador
individual, diferentemente do modo de produção não-industrial, já não se reconhece no
produto feito com seu esforço.
54

O processo de “significar” o não-humano de forma a humanizá-lo ocorre através do


chamado “operador totêmico”. Nas sociedades tradicionais ele se revela no “pensamento
selvagem”, ou pensamento mítico. Nas sociedades modernas, o operador totêmico se
revela na publicidade. A “colagem” de significados nos dois domínios - pensamento mítico
e criação publicitária - é muito parecida, no momento em que ambos podem ser definidos
pelo processo de bricolage.

A metáfora da bricolage foi originalmente utilizada para explicar a articulação do


pensamento primitivo ou "mítico" (Lévi-Strauss, 1989). Especificamente, o processo de
pensar o não-humano de forma a torná-lo humano é um processo de bricolage. O bricoleur
é o que executa um trabalho usando meios e expedientes sem um plano preconcebido, o
que se difere dos processos adotados pela técnica. Sua atividade se caracteriza pelo fato de
operar com materiais fragmentários já elaborados, ao contrário do engenheiro, que para
trabalhar necessita de matéria-prima não-elaborada. O bricoleur possui um universo
instrumental fechado e recria pela utilização de materiais já transformados.

O conjuntos de meios de um bricoleur não é definível por um projeto individual e


claramente definido, pois o conjunto de materiais a disposição é sempre geral, é uma
coleção de materiais diferentes e fragmentados, e seu processo de criação se caracteriza
pelo movimento incidental.

Da mesma forma, a criação publicitária pode ser entendida também como um processo de
bricolage (Rocha, 1990). Para criar uma peça publicitária, o profissional usa um vasto
arsenal de saberes originários de outras ciências e artes tais como Sociologia, Psicologia,
Economia, Cinema e Teatro. A sua especialidade é justamente a diversidade, é juntar os
fragmentos de saberes de campos distintos de forma a montar a mensagem publicitária. O
seu instrumental já é dado de fora por saberes já constituídos pela sociedade, e ele é o
bricoleur por excelência, "pois o seu saber se constrói pela apropriação de pequenos
pedaços de outros saberes dentro do princípio de que tudo é aproveitável" (op. cit., p. 54).

A característica dos dois pensamentos (bricoleur e publicitário) é a de não ter projeto


próprio. É ser composto de restos, resíduos e sobras que se somam e se aglomeram
esperando oportunidade de uso.
55

Pode-se comparar esquematicamente o "pensamento selvagem" e o “pensamento burguês"


e seus respectivos operadores totêmicos através do Quadro abaixo.

Quadro 3

COMPARAÇÃO ENTRE O PENSAMENTO SELVAGEM E O PENSAMENTO BURGUÊS


Pensamento Selvagem
Natureza (não humano) Totemismo Cultura (humano)

Urso Clã A
Águia Clã B
Tartaruga Clã C
Etc. Etc.
Etc. Etc.

"Pensamento Burguês"
Produção (não humano) Publicidade Consumo (humano)
(natureza) (cultura)

Vodca O mundo dos anúncios


Smirnoff
Vinho O mundo dos anúncios
Liebfraumilch
Uísque O mundo dos anúncios
Bell's
Etc. Etc.

Etc. Etc.

Fonte: Rocha (1990, p. 106)

Resumindo, o operador totêmico moderno - instrumento de um "pensamento burguês"


(Sahlins, 1979, p. 196) - funciona sim nas sociedades industriais, porém substitui as
espécies e fenômenos naturais por espécies e variedades de objetos manufaturados, ou seja,
ele já não articula séries naturais e séries humanas, mas séries humanas e séries não-
humanas (objetos). Portanto, o totemismo burguês, através do seu operador totêmico que é
a publicidade, é capaz de usar os objetos como classificadores de indivíduos e classes
sociais.
56

3.2.5 Estratégias de posicionamento social

Foi visto como os objetos podem ser entendidos como signos enquanto diferenças
significantes, e também abordou-se como a sociedade moderna se vale da publicidade
enquanto operador totêmico para "marcar" os objetos com significados e portanto
classificar os objetos e seus usuários.

Agora o foco de análise se desloca ligeiramente dos objetos para os mecanismos pelos
quais os indivíduos usam os objetos para manutenção e afirmação de seus valores, por
meio de estratégias de diferenciação e de imitação.

Normalmente se considera que a diferenciação entre indivíduos opera através de uma


necessidade de distinção individual. Esta idéia nasce do princípio que as pessoas têm a
necessidade de "serem elas mesmas", de se considerarem indivíduos específicos e
autônomos. Paradoxalmente, se considera que, ao mesmo tempo, o indivíduo tem a
necessidade de pertencer e conformar-se a um grupo. Assim, ele se diferencia dos demais e
se conforma aos demais dentro de um mesmo processo social de consumo. Na verdade, já
existe anterior ao indivíduo a "ideologia do individualismo", que "gera" indivíduos
diferentes uns dos outros, e ao mesmo tempo de acordo com modelos gerais estabelecidos
socialmente e inteligíveis por todos os membros da sociedade, inclusive os que não
pertencem ao grupo. Assim, ninguém se conforma a um grupo e ponto, dentro de, e
limitado a, signos interiores a este grupo. Para se conformar a uma comunidade específica
é necessário que os códigos usados sejam, mesmo que parcialmente, inteligíveis fora dele,
o que enfraquece a idéia da "necessidade de conformação" pura e simples. Na verdade, a
conformação opera através da diferenciação dos códigos e signos utilizados dentro do
grupo em relação a códigos e signos utilizados em outros grupos. A afirmação de um se faz
pela negação do outro.

Por outro lado, a "personalização" de um indivíduo, ou seja, a sua diferenciação em relação


aos outros indivíduos, se dá baseada em modelos (estereótipos) já estabelecidos na
sociedade, e que são exteriores e no mais das vezes anteriores ao indivíduo, e por tanto,
não pertencem à esfera da sua própria individualidade. Assim, "o narcisismo do indivíduo
na sociedade de consumo não é fruição da singularidade, é refração de traços coletivos."
(Baudrillard, 1991, p. 96).
57

Assim, temos que o paradoxo do processo "conformação-diferenciação" se resolve, mas


partindo da condição de se deslocar a análise do indivíduo e do grupo enquanto entidades
autônomas e entender a utilização de signos e códigos enquanto instrumentos de
classificação dentro dum quadro de adequação a modelos comuns compartilhados por
todos.

Estratégias de diferenciação

O consumo pode ser visto como uma estratégia de se diferenciar um dado grupo através de
consumo de bens específicos a este grupo. No caso da estratégia de diferenciação mais
óbvia e conhecida, as classes superiores usam o consumo de bens caros como instrumento
de exclusão dos que nelas tentam penetrar (arrivistas).

A estratégia de diferenciação é tradicionalmente entendida como uma necessidade dos


membros de sociedades estratificadas de marcarem por meios de referenciais suas posições
de classes. Na sociedade moderna, esta política se realizaria pelo processo de trickling-
down - primeiramente definida por George Simmel (1904; apud McCracken, 1988), que se
caracteriza por duas fases. Na primeira, as classes médias e baixas emulam o
comportamento de consumo das classes altas, equiparando-se a elas em termos materiais
(estratégia de imitação). Na segunda fase, as classes altas se vêem forçadas a inovar em seu
comportamento de consumo para poder tornar claras as diferenças de classe (estratégia de
diferenciação). E assim sucessivamente. Nele, as pessoas competem por status adquirindo
itens prestigiosos, e o prestígio de um objeto é função da própria posição social das
pessoas as quais se considera que o utilizam. Nestes termos, o "bom gosto" associado aos
objetos é função positiva das pessoas de classe social superior que os utilizam e função
negativa das pessoas de classe social inferior.

Esta interpretação das estratégias de diferenciação-imitação estabelece que

"O campo do consumo é (...) um campo social estruturado em que os bens e


as próprias necessidades, bem como os diversos indícios de cultura, transitam
de um grupo modelo e de uma elite diretora para as outras categorias sociais,
em conformidade ao seu ritmo de 'promoção' relativa" (Baudrillard, 1991, p.
61).
58

Este processo de diferenciação e imitação é o que condiciona toda inovação de objetos, e


seria uma lei de renovação dos materiais distintivos. Assim, a toda massificação de bens de
consumo corresponderia uma reação das classes superiores em busca da criação de mais
materiais distintivos. Aqui se poderia razoavelmente perguntar: já que as classes superiores
possuem o domínio dos meios de comunicação de massa, porque elas não impedem o
trickling-down? Ora, não impedem porque é justamente a massificação das constantes
inovações que sustenta a indústria e a economia modernas. Em outras palavras, é a
insatisfação crônica das massas, em função da constante mudança dos símbolos distintivos,
que viabiliza a constante produção em larga escala.

No entanto, este modelo, apesar do forte poder explanatório que possui - notadamente para
entender o fenômeno da moda, tem apresentado falhas na compreensão de alguns
fenômenos de diferenciação e imitação. Primeiramente, a competição por status não é tão
difundida como pressupõe o modelo, pois a necessidade de demonstração de status é mais
importante em grupos cujas interações interpessoais são fugidias, pouco duráveis e
inconstantes. Ao contrário, indivíduos colocados em redes de interrelações mais estáveis
necessitariam de menos visibilidade de status. Além disso, as sociedades modernas têm
apresentado cada vez mais um elevado grau de mobilidade e pequeno grau de
estratificação, onde as classes médias são cada vez maiores, e portanto os símbolos de
diferenciação hierárquicos têm menos importância. Complementarmente, a difusão dos
meios de comunicação de massa e a massificação extensiva dos bens de consumo têm
permitido o acesso simultâneo das camadas altas e médias da população aos bens de
consumo, retirando das camadas altas a autonomia para a sua estratégia de diferenciação
constante.

Por tudo isto, uma interpretação realmente ampla das estratégias de utilização dos bens
deve levar em conta que os esforços de distinção e imitação são hoje em dia função muito
mais de grupos que de classes, apesar de as estratégias de diferenciação e imitação
interclasses ainda indiscutivelmente terem importância.

Estratégia de imitação

As imitações acontecem quando um grupo almeja os atributos de outro grupo. A estratégia


de imitação não se processa pela apropriação incondicional de todos os símbolos de um
59

grupo, mas sim através de um processo de assimilação que preserva alguns dos símbolos
ou estilos do grupo apropriador. Dentro desta linha de raciocínio, McCracken (1988, p. 98)
analisa a mudança no vestuário feminino de trabalho devida ao acesso de parcelas cada vez
maiores da mão de obra feminina a atividades ocupacionais de escritório antes reservadas
apenas a homens. Ele argumenta que as mulheres modificaram seu vestuário de maneira a
incorporar "atributos" reconhecidamente masculinos que seriam desejáveis a uma
profissional possuir num ambiente de trabalho competitivo.

As roupas de trabalho reconhecidamente masculinas seriam de tecidos mais pesados,


monocromáticas e de linhas angulares. Este tipo de vestimenta veicula o que seria o
estereótipo do profissional masculino: grave, respeitável, disciplinado e sóbrio. Já as
roupas tradicionalmente designadas às mulheres no ambiente do trabalho - tecidos leves,
policromáticas e de linhas curvas - representariam por excelência o estereótipo do
comportamento feminino: indisciplinada, delicada, expressiva e caprichosa. Portanto, o
vestuário conseguiria explicitar as categorias culturais que distinguem o homem da mulher
no ambiente de trabalho.

Ademais, estes atributos masculinos são justamente o que é considerado desejavél para um
bom desempenho profissional. Cores sóbrias, tecidos pesados e corte pouco elaborado
serviriam como indicadores de respeitabilidade, seriedade e confiabilidade, características
importantes a serem destacadas no trabalho.

A mulher neste contexto não é motivada por algum sentido vago de imitação de todos os
símbolos masculinos; nem imita na simples procura por status e prestígio. Sua motivação é
mais específica e estratégica: diferenciar-se do vestuário estereotipado assinalado a elas e
incorporar no seu arsenal expressivo atributos desejáveis, e assim serem aceitas como
parceiras competentes no mundo do trabalho.

A compreensão da utilização seletiva de objetos de outros grupos de referência é muito


importante para entender a dinâmica de apropriação de hábitos de consumo entre grupos na
sociedade. Os grupos, enquanto entidades sociais reconhecíveis como tal, não se apropriam
ou se diferenciam dos hábitos de consumo de outros grupos apenas em termos de
estabelecimento e afirmação de status e prestígio social. Estas estratégias de consumo são
utilizadas também , e principalmente, para a afirmação e manutenção de valores caros ao
60

grupo. E suas estratégias serão conduzidas de forma a somente incorporar hábitos de


consumo que realcem estes valores, sem necessariamente implicar numa absorção
indiscriminada de todos os hábitos de consumo.

3.2.6 Complementaridade entre bens

Existe uma complementaridade e consistência muito grande entre todos os bens adquiridos
e utilizados por um consumidor. McCracken (1988) chamou a "força" coercitiva que os
ajuda a manterem-se unidos de "efeito Diderot", e os bens sujeitos a esta força de
"unidades Diderot" (op. cit., p. 118). A idéia aqui é tentar estabelecer em bases teóricas as
motivações relacionadas a uma certa "consistência" no padrão de consumo, o que leva a
uma identificação de "harmonia" entre os bens, motivada por considerações simbólicas.

A consistência cultural dos bens de consumo se origina de três aspectos da relação


significado-bem material: (1) a natureza do significado contido nas coisas; (2) o processo
pelo qual os significados “entram” nas coisas; (3) a maneira pela qual as coisas servem
como comunicadores.

Como visto anteriormente, o significado de um bem material se origina de duas relações:


seu lugar dentro do sistema de bens do qual faz parte; e as conexões entre este sistema de
bens e o sistema de categorias que a cultura estrutura para fazer o mundo ter sentido.
Todas as categorias de produtos (carros, por exemplo) estarão organizadas em
correspondência às mesmas categorias culturais. Como dentro de uma dada categoria de
produto cada bem vai corresponder a uma categoria cultural, logicamente em todas as
categorias de produtos haverá diferentes produtos que se relacionam às mesmas categorias
culturais. Assim, será possível constituir um conjunto de diferentes bens que se referirão à
mesma categoria cultural.

O processo pelo qual os objetos são imbuídos de significados também ajuda a criar
consistência de conjunto. Os publicitários e os designers de moda e de produtos procuram
transmitir o significado de dado produto através de sua proximidade com outros produtos
que são anunciados juntos, de forma a construir o significado da propaganda e ligar este
significado ao bem em questão. Outro processo de estabelecimento de consistência de
conjuntos de bens ocorre em grupos inovativos da sociedade (em geral grupos marginais)
61

que “rearrumam” a organização dos bens de forma a recriar novos padrões de consistência
do conjunto dos produtos.

O terceiro aspecto da consistência dos produtos se origina da própria natureza da cultura


material como elemento de comunicação. Por não serem elementos de comunicação tão
sofisticados como a língua, os bens materiais, para comunicar, precisam que suas
mensagens sejam redundantes. Assim, os bens não comunicam bem quando estão sozinhos
ou em grupos heterogêneos. Quando em grupo de outros bens que comunicam a mesma
coisa, há suficiente redundância para o observador perceber a mensagem.

A discussão sobre a consistência de um padrão de consumo remete a um conceito bastante


conhecido em Comportamento do Consumidor, o de "estilo de vida". Portanto, antes da
apresentação do conceito de "efeito Diderot", uma digressão acerca do estudo em estilo de
vida pode ajudar a inserir no contexto teórico do Marketing a discussão sobre o “efeito
Diderot”.

Ademais, como será argumentado posteriormente, o conceito de estilo de vida, apesar de


sua riqueza conceitual, não teve os desenvolvimentos esperados em função da
incapacidade de se estabelecer uma teoria que desse conta de todos os fenômenos
empiricamente observados.

Estilo de vida

Estilo de vida é um conceito que procura explorar e distinguir os vários segmentos


diferenciados de consumidores numa dada sociedade em termos específicos de atividades e
interesses individuais destes consumidores. O conceito mais utilizado e aceito na literatura
de Marketing é ainda o do seu introdutor, William Lazer. Ele assim o define (Lazer, 1963;
apud Douglas & le Maire, 1976, p. 62):

"O estilo de vida é um conceito ligado à noção de sistema. Ele se refere aos
diferentes modos de vida (no seu senso mais amplo) da sociedade inteira ou de
seus segmentos. O estilo de vida é concernente aos elementos distintivos ou às
particularidades que podem descrever o modo de ser de um grupo cultural ou
econômico e permite distingui-lo de outros grupos. Ele compreende as
estruturas que se desenvolvem e emergem da dinâmica da vida em sociedade.
62

O estilo de vida é por consequência o resultado de forças tais como a cultura,


os valores, o simbolismo de certos objetos, os valores morais e éticos. Em certo
sentido, o agregado das compras dos consumidores e o modo como estas
compras são efetuadas refletem o estilo de vida de uma sociedade".

Pela abrangência e riqueza de detalhes de sua definição vê-se que o conceito se presta a
amplas aplicações no domínio do conhecimento do consumidor, inclusive com nítidas
implicações antropológicas. No entanto, as pesquisas empíricas de estilo de vida têm
historicamente se fixado na mensuração das atividades dos consumidores, em termos de:
como eles gastam seu tempo; seus interesses, o que eles valorizam nas suas imediações;
suas opiniões, em termos de sua visão de si mesmos e do mundo à sua volta; e por fim,
algumas características básicas como estágio no ciclo de vida, renda, educação e moradia
(Plummer, 1974). O que transparece claramente desta definição é o fato de que a pesquisa
em estilo de vida se limitou a cruzar variáveis psicográficas e demográficas, no intuito de
segmentar os consumidores em termos de atividades individuais, perdendo de vista as
perspectivas sócio-culturais do conceito inicialmente proposto, perspectivas estas que
acabaram por tornar-se implícitas, e portanto, de importância secundária.

A importância do conceito de estilo de vida para o Marketing foi e tem sido enorme.
Segundo Wells e Trigert (1971), a pesquisa baseada neste conceito aliou as dimensões
demográficas e psicográficas no comportamento do consumidor, permitindo assim uma
maior proximidade com a sua realidade quotidiana, e com isso possibilitando a emergência
de retratos reconhecíveis dos consumidores. Para Plummer (1974), padrões de estilo de
vida provêem uma visão mais ampla e tridimensional dos consumidores, o que possibilita
um estudo mais relevante em termos de posicionamento, comunicação, mídia e promoção.
Em termos estratégicos, seu estudo tem particularmente facilitado tanto a identificação de
novas oportunidades de mercado e o desenvolvimento de estratégias para novos conceitos
quanto a elaboração de estratégias publicitárias.

Realmente o que os estudos empíricos nesta área têm alcançado é uma visão mais
quotidiana e factível dos consumidores, no momento em que tentam captar, além de seu
comportamento, suas aspirações, interesses e opiniões, conseguindo obter um quadro mais
"humanizado", distante dos agregados econômicos impessoalizantes e dos psicologismos
63

inefectivos em termos mercadológicos. Além disto, tem oferecido possibilidade de novos


insights e novos conhecimentos das motivações de compra dos consumidores.

Em termos puramente cognitivos, pode-se assumir que a grande relevância destas


pesquisas empíricas tem sido a de oferecer uma compreensão maior das relações entre
variáveis psicológicas, demográficas e de comportamento de compra propriamente dito, ou
em termos menos mercadológicos, entre fatores psicológicos, sociais e comportamentais.
Esta compreensão tem sido mais enriquecedora quando os estudos são feitos abarcando
pequenos universos restritos de produtos, e características específicas dos consumidores
enfocados. O que caracteriza estes estudos é a sua extrema especificidade, dificilmente
sendo possível uma generalização para fora do âmbito do produto ou classes de produtos
consumidos ou em via de sê-lo.

Segundo Douglas e le Maire (1976), as pesquisas em estilo de vida têm se dividido em três
perspectivas básicas: "centros de interesses"; "Atitudes, Atividades, Interesses e Opiniões";
e "conjunto de bens".

A primeira abordagem considera o estilo de vida em termos de centros de interesses dos


indivíduos, aqui definidos como suas distrações e atividades de lazer. Os estudos visam
relacionar as atividades de lazer das pessoas a seus comportamentos de compra. Um
exemplo seria relacionar atividades de leitura ou de audiência a rádio e TV a
comportamento de compra.

A segunda abordagem tem sido bastante privilegiada nos últimos anos e que tem se
beneficiado de mais pesquisas empíricas. Os estudos concentrados nesta área são mais
amplos, pretendem abarcar uma série de aspectos sociais e psicológicos do comportamento
do consumidor, não somente em termos do seu comportamento de compra. Estes estudos
enfatizam aspectos tais como o trabalho e as atividades de lazer, relacionamento
interpessoal dentro e fora da família, percepção por parte dos indivíduos do ambiente
social, econômico e político. É claro que nem todas estas variáveis são consideradas em
cada estudo, mas potencialmente isto seria possível.

Finalmente, a terceira abordagem implica que o estilo de vida dos consumidores pode ser
analisado em termos do total de produtos que o indivíduo consome. Esta perspectiva parte
do princípio de que os bens de consumo possuem caráter eminentemente simbólico. Este
64

simbolismo alcança sentido na interação social, em que os objetos servirão como


carreadores de significados socialmente estruturados, de forma a permitir ao possuidor dos
objetos se situar socialmente em três níveis distintos: na hierarquia social, no exercício de
seus papéis sociais e na participação em grupos sociais específicos. Coerentemente esta
linha é a que mais tem se valido da contribuição dos conceitos das ciências sociais.

Duas linhas de pesquisa tem se destacado dentro desta perspectiva particular. As mais
comuns são as que estão preocupadas em revelar os benefícios em termos sociais e
individuais que os consumidores buscam em cada categoria de produto. Uma outra linha
de estudo, que possui poucos estudos empíricos, se concentra em identificar estilos de vida
a partir dos conjuntos de produtos adquiridos ou utilizados pelos consumidores. É
justamente nesta linha de pesquisa que este trabalho vai desenvolver sua linha de
raciocínio.

Seria oportuno avaliar aqui os problemas de validade encontrados nos estudos que têm
sido empreendidos na área. Wells (1975) discute as dificuldades de validação e
confiabilidade dos resultados e admite que as conclusões dos estudos de estilo de vida se
ressentem de maior precisão numa série de aspectos. A maior parte da discussão versa
sobre problemas de validade dentro dos critérios pertinentes à metafísica positivista, mas
afinal ele conclui que a grande contribuição destes estudos para o Marketing é a abertura
de novas relações no entendimento do consumidor, mais do que uma sua capacidade
descritiva (quantificação) ou explicativa.

Alguns artigos versando sobre as dimensões gerais da pesquisa em estilo de vida constatam
a ausência de quaisquer bases conceituais advindas das ciências comportamentais, além da
sempre presente dificuldade de se forjar uma definição apropriada (Wells, 1975; Douglas
& le Marie, 1976; Zins, 1976). Sempre é oportuno destacar os problemas que surgem
quando estudos empíricos que visam a realidade social são feitos com pouco embasamento
teórico.

Uma base conceitual minimamente satisfatória propiciaria a formulação de teorias (mesmo


que tentativas) que contribuiriam enormemente para a uniformização nas definições de
estilo de vida, refletindo positivamente em diversos aspectos da pesquisa e divulgação de
resultados. Apesar da falta de uma estrutura conceitual na qual se possa basear uma teoria,
65

utiliza-se comumente de conceitos esparsos e dissociados, vindos tanto da sociologia


quanto da psicologia. Estes conceitos são usados principalmente na configuração dos itens
dos questionários. É no mínimo curioso que muitas vezes as bases teóricas de onde se
originaram estes conceitos são francamente discordantes e até contraditórias.

Apesar da sua ampla utilização, o conceito de "estilo de vida" acabou por se tornar um
"saco de gato" onde diversas teorias sociológicas e psicológicas se misturam. Portanto, se
torna evidente que ainda não existe uma teoria explicativa que unifique as suas diversas
dimensões, ademais pelo fato de que seus estudos em estilo de vida são quase que
unicamente empíricos. Seguindo McCracken, é feita uma tentativa de se estabelecer, pelo
menos parcialmente, esta base teórica com a análise do "efeito Diderot".

Efeito Diderot

Seguindo McCracken, o "efeito Diderot" pode ser definido como "a força que encoraja o
indivíduo a manter uma consistência cultural na totalidade de seus bens de consumo". (op.
cit., p. 123)

Este efeito age de três maneiras. Na sua manifestação mais direta, ele evita a entrada num
conjunto existente de bens de um bem que seja culturalmente inconsistente com este
conjunto. No seu segundo modo de atuar, mais radical, ele força a adequação de todo o
conjunto já existente ao novo bem entrante. E por fim, no seu terceiro modo, o efeito
Diderot pode ser deliberadamente manipulado pelo indivíduo visando propósitos
simbólicos.

A primeira maneira protege o indivíduo da intrusão de objetos com noções


desestabilizantes. Os objetos atuam de forma a estruturar e afirmar a compreensão do
mundo circunstancial e também de materializar as categorias culturais que organizam e
fazem coerente este mundo. Assim, qualquer objeto que não mantenha a mesma
consistência cultural do conjunto pode servir de agente desestabilizador destas categorias.
Portanto, esta manifestação do efeito Diderot tem claramente uma função conservadora de
nossos valores e da nossa própria definição de self.

A segunda manifestação ocorre quando a compra de um bem inconsistente com o conjunto


de bens já possuídos por um indivíduo provoca a reformulação total deste conjunto,
66

visando adequá-lo ao novo bem. McCracken chama de "compra de afastamento"


(departure purchase) (op. cit., p. 126), a compra do bem o qual motiva toda esta
reestruturação do conjunto de bens de um indivíduo. Esta compra ocorre quando há
modificações na vida do indivíduo que impactam de alguma forma a sua definição de self
ou de seus papéis sociais, tais como divórcio, mudança de emprego, progressão no ciclo de
vida, etc.. Outro tipo de bem que pode motivar esta reestruturação do conjunto é o
presente, especialmente quando ele é dado com a motivação (consciente ou inconsciente)
por parte do doador de exercer algum tipo de influência modificadora sobre o receptor,
assim introduzindo novos significados no conjunto de objetos deste último.

No seu terceiro modo, há a violação consciente do efeito Diderot, através do consumo de


bens que possuem significados potencialmente desestabilizadores. Isto faz parte de um
processo de experimentação pessoal no qual novos conceitos de self e de mundo são
contemplados, testados, adotados e, por que não, descartados. Para estes indivíduos, a
“compra de afastamento” é justamente uma compra de experimentação, a oportunidade
pela qual é possível momentaneamente sair de suas coordenadas culturais familiares e
vivenciar novas categorias. Outros indivíduos fazem “compras de afastamento” na
expectativa de que elas estabelecerão uma transformação total do seu conjunto de bens, e
por extensão, de suas vidas, por meio da alteração das propriedades simbólicas de ambos.
Estes indivíduos são os verdadeiros bricoleurs do mundo do consumo, constantemente
pegando elementos de significados disponíveis e alocando-os a novas configurações.

3.3 Conclusão

Este capítulo revela a riqueza dos subsídios que o interpretativismo, dentro da


Antropologia, oferece ao estudo do consumo. Na primeira parte se mostra como esta escola
de pensamento procura focalizar nos seus estudos os códigos culturais e os sistemas
simbólicos da sociedade, e como isto define suas teorias explicativas e seus métodos de
apreensão da realidade cultural. Na segunda parte, é mostrada a contribuição da
Antropologia interpretativista ao entendimento da cultura material e do consumo em
sociedades modernas, sempre numa perspectiva eminentemente simbólica. Aqui é visto
como as pessoas usam os objetos como transmissores de "mensagens", e assim servindo de
símbolos. Esta análise é feita em diversos níveis, desde a função dos objetos em interações
face-a-face até a alocação de sentido a estes objetos pela sociedade.
67

Após estabelecer as bases teóricas de uma possível "Antropologia do consumo", convém


destacar alguns trabalhos na área de Comportamento do Consumidor que se baseiam no
arsenal teórico e metodológico da Antropologia interpretativista. Isto é feito no próximo
capítulo, onde algumas pesquisas relevantes são comentadas. Elas são pertinentes por
demonstrar e avaliar o potencial da Antropologia para o maior entendimento do consumo,
pois são trabalhos que se valem da pesquisa etnográfica e da "descrição densa" para
apreender e interpretar diversas realidades de consumo.
68

4 Pesquisas etnográficas em Comportamento do Consumidor

Após o estabelecimento, no capítulo anterior, da Antropologia interpretativista como base


conceitual e metodológica para o entendimento do consumo, neste capítulo será feita uma
revisão de alguns artigos representativos da pesquisa etnográfica em Comportamento do
Consumidor, de forma a demonstrar como a Antropologia vem impactando os estudos
empíricos sobre o consumo nas sociedades modernas.

Todos estes estudos têm em comum o fato de ser baseados em pesquisas etnográficas e
portanto valorizar o discurso dos atores sociais envolvidos nos objetos de estudo. Além
disso, coerente com o paradigma interpretativista, todos buscam interpretações dos temas
que emergem durante a pesquisa. Comum também a todos os trabalhos é o forte
embasamento teórico da Antropologia (mas não somente) na interpretação dos discursos.
Devido à relativa novidade desta abordagem de pesquisa etnográfica dos fenômenos do
comportamento do consumidor, foi considerada relevante a descrição da metodologia de
cada pesquisa, mesmo por que dentro da prática antropológica não existe nenhum modelo
acabado de pesquisa, havendo algumas variações na pesquisa de campo.

Apesar de serem relativamente pouco numerosos, por questão de espaço nem todos os
trabalhos de etnografias em comportamento do consumidor pesquisados são analisados
neste capítulo. Preferiu-se explorar mais a fundo alguns artigos cujas metodologias de
pesquisa e interpretações dos discursos dos atores sociais fossem mais representativos e
oferecessem um panorama claro da situação da pesquisa etnográfica, além de, é claro,
serem relevantes nos seus achados para o estudo do comportamento do consumidor.

Além disso, omitiram-se as descrições etnográficas e as transcrições dos discursos dos


participantes, pelo fato de estas tornarem desnecessariamente longos os comentários sobre
cada artigo e sob pena de tornar sua leitura incompreensível, porque o resumo de uma
descrição etnográfica sempre corre o risco de tornar quebradiça a sua compreensão.

Alguns outros trabalhos merecem ser citados e rapidamente comentados, apesar de, por
razões descritas abaixo, não ter sido aprofundada sua análise aqui.
69

Belk, Wallendorf e Sherry (1989) pesquisaram os aspectos sagrados em alguns rituais de


consumo, analisando os processos de sacralização que os consumidores realizam para
retirar determinados bens da esfera do profano e dotá-los da transcendência típica dos
objetos sagrados. Foram aplicados largamente no estudo do consumo constructos de
análise das religiões, efetuados por uma equipe multi-disciplinar e utilizando-se de
diversos métodos de pesquisa, incluindo entrevistas e observações participantes. A
conclusão é que, apesar da secularidade que caracteriza a sociedade ocidental moderna,
existe ainda muito da experiência religiosa na relação dos indivíduos com seus bens. Esta
conclusão revela que a existência do transcendental na vida quotidiana da sociedade
moderna não faz seus membros tão diferentes assim dos membros de sociedades religiosas
mais tradicionais. No entanto, as situações de consumo estudadas são tão amplas e a
abrangência das conclusões é tão vasta que perde força explicativa.

Hill e Stamey (1990) fizeram outra pesquisa dentro da abordagem etnográfica, procurando
estabelecer os padrões de consumo (e a partir daí as estratégias de sobrevivência) de um
grupo de sem-teto numa grande cidade americana. Apesar do interesse antropológico de se
conhecer um subgrupo marginalizado, e a originalidade de se centrar a pesquisa nos
comportamentos de consumo, as conclusões são dificilmente generalizáveis, limitando o
escopo do trabalho ao universo estudado.

Belk (1992) realizou uma pesquisa que vale mais pela originalidade do material e pelo
esforço interpretativo. A partir de diários, autobiografias e histórias escritos por migrantes
mórmons (adventistas do sétimo dia) na sua marcha para o Oeste americano ocorrida no
século XIX, o autor busca interpretar os significados para os migrantes dos bens que eles
carregaram em sua epopéia. Apesar de não ser poder ser considerada uma etnografia, e
muito menos ser uma observação participante, a interpretação da teia de significados existe
e foi possível identificar diversos significados associados à manutenção das identidades
pessoal, familiar e comunitária. No entanto, como frisa o próprio autor, o alcance das suas
conclusões está limitado ao estudo de migrações, sejam coletivas ou pessoais.

Belk, Sherry e Wallendorf (1988) realizaram uma alentada descrição etnográfica de um


ambiente de varejo, uma feira periódica de artesãos e pequenos varejistas (swap meet). O
objetivo primeiro da pesquisa foi testar a viabilidade do método etnográfico no estudo do
comportamento do consumidor. Talvez por isto foi escolhido um tipo de ambiente de
70

varejo absolutamente alternativo, e, poder-se-ia dizer, quase irrelevante do ponto de vista


mercadológico. Assim, apesar da profundidade do estudo e da seriedade na aplicação da
metodologia, o estudo não apresenta nenhuma conclusão relevante, mesmo porque
aparentemente isto não era o interesse principal dos pesquisadores. Nos trabalhos mais
detidamente analisados abaixo serão comentadas tanto a metodologia de cada pesquisa
quanto conclusões mais relevantes.

4.1 A mitologia dos alimentos

A pesquisa realizada por Levy (1981) teve por objetivo desvelar de forma sistemática
como as pessoas interagem com os bens de consumo através da análise e interpretação das
histórias quotidianas e familiares associadas à utilização destes bens.

Para entender como as pessoas consomem, se parte do princípio de que os produtos são
usados simbolicamente e a descrição de sua utilização é uma maneira de simbolizar a vida
e a natureza da família. Portanto é preciso uma teoria de interpretação para o entendimento
do material coletado.

A forma escolhida de interpretar este fenômeno de consumo foi através da coleta e análise
de histórias familiares associadas às refeições e tipos de alimentos consumidos. Estas
histórias podem ser tomadas como criações mitológicas, e sua interpretação se baseia na
análise estrutural dos mitos elaborada por Lévi-Strauss.

Os mitos, tais como definidos por Lévi-Strauss (1963; apud Levy, 1981), têm os seguintes
aspectos: os mitos fornecem um modelo lógico capaz de superar contradições ou
paradoxos na experiência natural ou social; a análise estrutural dos mitos permite revelar
processos cognitivos universais no homem; estas operações mentais criam padrões a partir
da percepção de relações de oposição binária.

Lévi-Strauss estabelece três tipos de mitos: de origem e surgimento, de migração e fábulas


nas quais os grandes contrastes lógicos ou cosmológicos são simplificados para a escala
das relações sociais. Levy estabelece um quarto nível: pequenos mitos familiares que são
generalizações acerca da própria família e seus membros, transmitidos como histórias que
selecionam fatos a partir de experiências passadas.
71

Para a obtenção destes pequenos mitos familiares, foi constituída uma amostra de seis
donas de casa casadas de classe média com filhos pequenos. Elas foram entrevistadas
acerca dos membros de suas famílias, suas características individuais e suas atitudes e
hábitos em relação à comida, através do estímulo a narração de histórias familiares,
principalmente fatos cotidianos que ajudam a tipificar os membros da família.

Temas e interpretações

A interpretação destes discursos familiares partiu da observação de como os informantes


projetam nas histórias familiares as percepções de si próprios, das suas famílias, sua
linguagem, pressupostos, tom emocional e escolha de incidentes. A partir destes aspectos
das entrevistas, as seguintes questões são analisadas:

(1) propósitos dos relatos dos pequenos mitos;

(2) valores retratados;

(3) "teorias" usadas para explicar o comportamento dos membros da família;

(4) relações estruturais das categorias utilizadas.

A questão mais longamente analisada é a última, sendo que a discussão das três primeiras
questões servem mais como uma introdução à quarta.

Propósitos dos relatos dos pequenos mitos

As histórias agem como afirmações retrospectivas de conflitos e de vínculos familiares.


Além disso, a descrição do estilo de vida da família transmite aos novos membros os
valores, idéias e características que definem as tradições familiares.

Valores e preferências retratados

Na própria seleção das histórias contadas, os informantes projetam os valores que


defendem. Já que contar estas histórias é uma maneira de manter as tradições, a
manutenção da unidade da família é um dos valores a ser preservados. A união familiar é
acentuada com narrações acerca de férias em conjunto, saídas para comer, projetos
72

domésticos. As preferências alimentares ajudam a estabelecer a individualidade de cada


membro da família e a definir a própria família.

"Teorias" explicativas do comportamento de membros da família

Em geral os comportamento de alimentação não são racionalizados quando seguem o que é


considerado a dieta média. No entanto, teorias explicativas surgem quando existem
comportamentos desviantes. Os elementos que aparecem na constituição das teorias podem
ser separados assim:

(1) O processo de aquisição e inculcação de gostos alimentares é conflitivo. Apesar de a


dona de casa ser motivada a servir comidas saudáveis ou normais, o ato de servir e
comer são demonstrações de emoções, e nem sempre os membros da família comem
harmoniosamente, e frequentemente eles resistem ou recusam as refeições.

(2) Existe uma hierarquia de alimentos aceitáveis. Todo extremo é problemático, tais
como comidas muito gordurosas ou muito temperadas. Ademais, a adequação das
comidas está relacionada a efeitos desagradáveis.

(3) Preferências são explicadas de diversas maneiras, desde uma herança genética até
uma socialização por contexto étnico, passando por hábitos originados de novas
experiências e crenças.

Relações estruturais das categorias utilizadas

A preparação da comida, o servir, as maneiras à mesa e o consumo são usados


simbolicamente. Os membros da família se comunicam através de seus hábitos culinários e
alimentares, utilizando-se da estrutura da sociedade na qual vivem. Foi possível identificar
categorizações a partir de três eixos: sexo e idade, status social e localização da refeição.

No primeiro eixo, as categorias sexuais e de faixas etárias podem ser bem definidas por
meio das comidas e métodos de preparação considerados adequados a cada uma. É
possível a distinção entre bebês e adolescentes, meninos e meninas através das comidas
normalmente consideradas apropriadas. Bebês precisam de leite e comidas pastosas, leves
e indiferenciadas, que transmitem idéias de conforto e fácil digestão. Dentro da mesma
linha, estes tipos de alimento servem para os idosos e os doentes. À medida que ficam mais
73

velhas, às crianças já são permitidas comidas mais diferenciadas e misturadas. Na idade


adulta, saladas são adequadas às mulheres e bifes aos homens. O quadro abaixo ajuda a
entender as categorias sexuais e de idade relacionadas a comida.

Quadro 4

CATEGORIAS SOCIAIS E ALIMENTAÇÃO


Pessoas Qualidades Alimentos

Bebês Desprotegidos Vegetais amassados

Adolescentes Aventura / Simplicidade Hambúrgueres / Refrigerante de cola

Mulheres Maturidade Chá, saladas

Homens Controle Álcool, bifes

Idosos Fragilidade Leite quente

Adaptado de Levy (1981)

No segundo eixo, foi possível identificar uma tendência a relacionar posições sociais mais
elevadas com profissionalismo no preparo, enquanto preferências de pessoas de status mais
baixo estão mais ligadas a leveza, gordura e suavidade/doçura (sweetness). Subindo a
escala social, as preparações convencionais dão lugar à elaboração crescente, com a maior
utilização de ervas, temperos e ingredientes pouco comuns. O quadro abaixo indica estas
relações.

Quadro 5

CLASSES SOCIAIS E ALIMENTAÇÃO


Pessoas Qualidades Atributos Alimentos

Classe baixa Utilitário Suave Cenouras e purê de batatas

Classe média Convencional Salgado Carne frita, cozidos, batata frita

Classe alta Sofisticado Amargo, herbáceo brócolis, batata ao forno, carne grelhada

Adaptado de Levy (1981)


74

No terceiro eixo, o local da refeição é um elemento estrutural revelador das categorias de


convenção, festividade, unidade familiar e separação. O lar é considerado o local
costumeiro para as refeições, num ambiente maternal, confortável e familiar. Ter uma
refeição ao ar livre (no quintal, praia ou parque) já implica em liberdade das convenções,
retorno à natureza e simplicidade no preparo e nas maneiras à mesa. Comer em outro lar
implica em maior formalidade, em vestir-se bem e numa expectativa de maior elaboração
dos pratos. Comer fora em restaurantes pode ter vários significados, a depender do tipo de
restaurante, o qual é associado à idade, sexo ou status social. Por exemplo, a saída para
comer fora de toda a família tende a expressar uma atitude festiva e de relaxamento da
autoridade paterna. Quando as crianças vão a lanchonetes este sentido de liberdade dos
pais se realça. Por outro lado, cafés e restaurantes mais sofisticados indicam uma atmosfera
adulta, inclusive sendo considerados lugares apropriados para refeições de trabalho. No
extremo, a haute cuisine implica na utilização elitista do lazer, quando as pessoas se
permitem um maior refinamento do paladar e pratos que normalmente não comem em
casa, como mostram as relações sumariadas no quadro abaixo.

Quadro 6

ATRIBUTOS CULTURAIS E "LOCI" DE REFEIÇÃO


Atributos Lugares

Primitivismo Piquenique

Separação Lanchonete

Convenção Lar

Festividade Quintal, casa de amigos

União Almoço de negócios, casa de amigos

Sofisticação Restaurante de luxo

Adaptado de Levy (1981)

Resultados

A interpretação dos pequenos mitos familiares revelados nos discursos das respondentes
revela que os atos de cozinhar e comer são carregados de simbologia. A análise estrutural
75

revela que estes atos servem para expressar categorias culturais tais como infância,
juventude e velhice, sexo e status social. Algumas distinções simbólicas são feitas dos
tipos de comida e dos lugares onde são consumidas, e idéias são transmitidas. Alguns dos
pares de oposição identificados são unidade/dispersão familiar, simplicidade/sofisticação,
rotina/festividade, conformidade/desvio, sagrado/profano etc.. Ademais, a mitologia
relacionada à comida ajuda a organizar as categorias culturais de sexo, idade e posição
social em termos de dimensões psicológicas e atributos da comida tais como gosto, textura,
aparência e métodos de preparação.

Por tanto, esta pesquisa se mostra relevante principalmente pela sua aplicação eficiente de
um instrumento teórico caro à Antropologia, a análise estrutural dos mitos, no estudo do
consumo. No entanto, as suas conclusões, evidenciando a constituição de categorias
culturais por intermédio de bens de consumo, fornecem um rico campo de análise para o
Marketing na apropriada adequação dos bens (e serviços) ao seu segmento-alvo.

4.2 Etnografia de uma loja de presentes

McGrath (1989) estudou o processo de seleção de presentes através de observação


participante, entrevistas em profundidade e fotografias. De posse desse material coletado,
foi possível realizar uma "descrição densa" do local e interpretar o relacionamento entre
vendedores e compradores e o processo de compra de presentes, realçando o processo de
socialização entre eles.

Os objetivos declarados do estudo são:

(1) Descrever em detalhes uma loja de presentes, notadamente aqueles aspectos que podem
transformar a loja em um local apropriado para a preparação da doação de um presente.

(2) Entender a percepção e o controle por parte do lojista do processo de escolha do


presente.

(3) Documentar as mudanças e o desenvolvimento numa loja de presentes num período


extenso de tempo.

(4) Compreender o processo de compra de presentes dentro da perspectiva restrita de uma


loja de presentes.
76

Estabelecem-se três estágios do processo de doação de presentes, baseado em Sherry


(1983): gestação, que inclui seleção, embalagem e todos os comportamentos que
antecedem a entrega do presente; prestação, que é a entrega propriamente dita do presente;
e reformulação, durante o qual o presente pode ser consumido, mostrado, guardado ou
rejeitado.

O trabalho de McGrath procura explorar o primeiro estágio, o de gestação, especialmente a


seleção do presente, que ocorre em dois momentos, na compra da mercadoria pelo varejista
e pela compra do objeto pelo consumidor-doador.

O trabalho de campo busca uma abordagem de pesquisa naturalística (Lincoln & Guba,
1985) e se baseia no estudo das práticas quotidianas de forma a se entendê-las dentro de
seu próprio contexto. A pesquisa foi feita dentro do paradigma interpretativista, que
estabelece que o pesquisador deve se tomar também como instrumento de pesquisa,
enquanto tenta entender e explicar o mundo dentro da perspectiva dos atores realmente
envolvidos no processo social. Ademais, ela se utiliza dos métodos antropológicos da
observação participante e de entrevistas em profundidade.

Para a pesquisa foi escolhido o período de Natal por ser esta uma época estabelecida
culturalmente como de troca de presentes. A loja escolhida se categorizava como de
presentes, e foram excluídas lojas dominadas por artigos de vestuário ou de cozinha. A
similaridade notada entre as diversas lojas de presentes visitadas para a escolha foi a
predominância de mercadorias decorativas, colecionáveis e não-funcionais. A
pesquisadora, para efetivar a observação participante, foi admitida como assistente de
vendedora sem remuneração. Doze a dezesseis horas por semana foram gastas na loja,
durante as três semanas que precederam três Natais. Adicionalmente, a pesquisadora
retornou ao local após o Natal para entrevistar os funcionários e o dono da loja acerca da
temporada que passou. O material coletado foi composto de notas de campo, anotações
diárias interpretativas e fotografias. À medida que evoluia o estudo, os relatórios de
pesquisa eram discutidos com os informantes e seus comentários incorporados a relatórios
subsequentes.

A pesquisadora tinha o papel de assistente de vendas, embalando mercadorias ajudando


clientes e vigiando a entrada para evitar furtos. Quando a loja estava com poucos clientes a
77

pesquisadora se dedicava a observá-los e a entrevistá-los acerca de seus hábitos de compra


de presentes.

A pesquisa insere a loja e seu contexto na sociedade mais ampla, com a descrição da
cidade e suas características sócio-culturais fundamentais. Ademais, há a descrição da
decoração da loja, da sua história, do tipo de mercadoria vendida, dos empregados, dos
consumidores e finalmente dos ritmos temporais associados às compras natalinas.

Durante a primeira temporada deste estudo as observações foram utilizadas como parte de
um estudo comparativo entre duas lojas de presentes (Sherry & McGrath, 1989). Devido
ao fato de os temas emergentes e a metodologia serem parecidos, aqui não será analisado
este outro estudo.

Temas e interpretações

Contexto espacial da compra - o ambiente

A disposição das mercadorias é frequentemente mudada, para dar sempre a aparência de


novidade e ser visualmente estimulante. Música suave é tocada, e a loja transmite uma
sensação de calma. A loja também é intencionalmente decorada para ser também
“ofertada” como presente. Tudo isto parte de uma estratégia intuitiva da dona da loja para
criar o ambiente adequado para a compra de presentes e isto é conscientemente notado (e
aprovado) pelos consumidores, pelos comentários explícitos acerca da atmosfera calma e
apropriada da loja.

Compra de presente como atividade feminina

Existe uma evidente predominância das mulheres tanto no papel de vendedoras como no
de consumidoras de presentes. Os homens são distinguidos pela sua impaciência e
desconforto com o ritual de compra de presentes. Ademais, as mulheres mantêm mais
relacionamentos de troca de presentes que os homens, os percebem como relações mais
íntimas, e apreciam mais o ambíguo processo de compra de presentes.
78

Emoção na seleção de presentes

A experiência de compra de presentes evidencia tanto o amor relacional (relational love)


entre doador e receptor quanto a resposta emocional do doador em relação ao objeto-
presente. Obviamente o que dá início ao processo de compra é o relacionamento entre
doador e receptor, mas a compra de um objeto em específico depende do doador "se
apaixonar" por ele.

Processo de seleção de presentes: imprecisão e inefabilidade

No processo de compra de um presente nenhuma compradora aparece com listas e não


existe nem mesmo uma pré-conceitualização vaga do que seja um presente. "Fazer
compras" e procurar são considerados intercambiáveis no processo de exame de objetos até
encontrar o que é "perfeito" ou adequado ao receptor. Num comparação com a "busca ao
tesouro", o doador vasculha mostruários, explora arrumações de mercadorias e passeia pela
loja. O consumidor aprecia o prazer de comprar junto com as fantasias relacionadas com os
objetos, além é claro da preocupação com a disponibilidade e variedade dos itens. O
objetivo final da busca é como a solução de um quebra-cabeças, onde o ideal deve se
equilibrar entre a adequação ao doador, ao receptor, preço e ainda a um outro objeto
desconhecido que pode ser dado em retorno.

Comportamentos no “palco” e nos “bastidores”

Usando-se a metáfora dramatúrgica de Goffman (1985), se observa claramente a separação


de aparência, discurso e comportamento na área de vendas e atrás do balcão. A área de
vendas é ordenada, polida, limpa e orientada para o consumidor. O espaço atrás do balcão
é desordenado, caótico, orientado para custo, e onde os funcionários podem comer e fumar.
No "palco", os funcionários ajudam na compra com comentários aprovadores que "nos
bastidores" se tornam muitas vezes reprovações. Isto não é considerado esquizofrênico ou
hipócrita pelos atores, mas encarado com naturalidade e parte do negócio.

Resultados

A grande contribuição deste estudo é demostrar a riqueza metodológica de uma etnografia


no varejo, de forma a revelar em primeira mão o processo de compra, partindo de uma
perspectiva de integração do pesquisador com os atores sociais envolvidos. Isto permite
79

compreender de forma muito mais presente e profunda as diversas interações que ocorrem
num contexto de varejo, e também permite a emergência e análise de temas de discurso
que revelam as expectativas e motivações de cada um dos participantes da situação de
compra de presentes. Os resultados desta pesquisa sem dúvida têm implicações
importantes na concepção do ambiente de serviços (servicescape) (Bitner, 1992) e na
percepção dos comportamentos dos clientes e as atitudes dos profissionais de varejo.

4.3 Etnografia de uma feira-livre

A intenção desse artigo (McGrath, Sherry & Hesley, 1989) é revelar as interações
vendedor-comprador e os padrões de comportamento de fazendeiros cum feirantes numa
feira-livre (farmer's market) periódica numa cidade de porte médio nos Estados Unidos.
Para isto foi feita uma etnografia visando a "descrição densa" dessa feira. No contexto
americano, as feiras-livres têm se revelado cada vez mais importante canal de distribuição
no mercado alimentício. Ademais, elas (tanto lá como cá) têm se revelado espaço relevante
de contatos interpessoais no varejo, reação a uma crescente "dessocialização" no ambiente
de varejo. O estudo de um dos poucos ambientes de varejo em que as relações
interpessoais ainda estão presentes pode fornecer importantes insights sobre este
relacionamento e a valorização que os consumidores dão a isto.

Observando os estilos de negociação dos fazendeiros-feirantes, explorando suas interações


com os consumidores urbanos e gravando as reações destes consumidores a este tipo de
marketing, o trabalho tenta retratar a feira-livre como um fórum comunitário holístico
(holistic communitary forum).

A estrutura dessas feiras-livres se desenvolve numa dupla dialética:


formalidade/informalidade e economia/festividade. O apelo de feiras livres pode ser
entendido em grande parte como uma reação às evoluções ocorridas no varejo na década
de 1980, tais como o maior poder dos varejistas em relação aos produtores, a importância
do preço e da conveniência e o surgimento do marketing de relacionamento. A feira-livre é
um ambiente de serviços em que os consumidores retornam figurada e literalmente às suas
raízes.

A metodologia empregada foi uma etnografia dentro do paradigma interpretativo e usando


processos múltiplos de coleta de dados. A equipe foi composta de pesquisadores de ambos
80

os sexos, já que os vendedores eram predominantemente homens e os consumidores


predominantemente mulheres, e ter pesquisadores de ambos os sexos evitaria vieses na
interação com os informantes. Dois dos pesquisadores se concentraram na documentação
das atividades da feira-livre durante dezenove sábados. O terceiro pesquisador fez visitas
periódicas ao local onde contribuiu para a coleta de dados. Ele também orientou os
pesquisadores principais nos intervalos entre cada coleta, auditou a pesquisa no seu
decorrer (Lincoln & Guba, 1985) e participou nas discussões conjuntas para a
interpretação dos dados.

Os pesquisadores filmaram e tomaram notas das observações e entrevistas, que


posteriormente foram transformadas em notas de campo, transcrições e diários.
Adicionalmente, vários destas notas foram debatidas com informantes como conferência
(member checking) da viabilidade das interpretações dos pesquisadores.

Os pesquisadores utilizaram também o método de observação participante, tanto fazendo


compras quanto trabalhando nas barracas da feira. Com consumidores e vendedores foram
feitas entrevistas tanto dirigidas quanto não dirigidas. Fotografias foram utilizadas para
auxiliar as discussões com os participantes e também como forma de enriquecer as notas
de campo dos pesquisadores. Todos os eventos ocorridos em cada feira livre foram
sistematicamente fotografados e também foram feitas gravações em vídeo.

Temas e interpretações

A feira descrita neste trabalho aparece como uma comunidade periódica com sua própria
ecologia, limites, periferias, desenvolvimentos, membros, relações sociais e
relacionamento com outras comunidades.

Os participantes obtêm prazer com os aspectos relacionais desta instituição de varejo. As


relações pessoais estabelecidas entre vendedores e consumidores ajudam a desenvolver
uma clientela fiel e leal que gera vendas e mantém a instituição. Não é o preço e sim as
relações e a qualidade percebida dos produtos o que guia as interações e as escolhas de
compra.
81

Ativismo

A origem desta feira se deve a um ativismo cívico, de raízes feministas, e foi concebido
como um mecanismo de revitalização urbana. Este tipo de mercado oferece um tipo de
economia holística e se define pelo caos controlado, ciclos naturais, e distribuição direta do
produtor ao consumidor. A importância dos relacionamentos pessoais neste mercado ajuda
a criar um sentido de comunidade. Ele também ajuda a estabelecer um sentimento cívico e
de responsabilidade individual, pois - mesmo que apenas periodicamente - os clientes se
tranformam em compradores conscientes e cidadãos.

Os consumidores consideram a feira como um símbolo positivo da comunidade. Por meio


deste mercado, conceitos como pureza, saúde e natureza conseguem posição central num
ambiente urbano percebido pelos consumidores como distante da natureza.

Autenticidade

Este mercado constitui uma tentativa coletiva de se recapturar ou se recriar uma


experiência autêntica e não-mediatizada de um período mais simples e mais saudável
física, moral e mentalmente. Faz parte também de um movimento de revitalização pela
qual a comunidade luta para criar um estilo de vida mais satisfatório. Os produtos são
vendidos pelas pessoas que os plantam e colhem, sem intermediários. Alimentos de
qualidade são vendidos e receitas nutritivas são trocadas, temporariamente substituindo
alimentos processados. Pessoas dedicam seu tempo para conversar e passear. Por algumas
horas, anônimos moradores da cidade se misturam para recriar o clima de uma pequena
vila.

O mercado é construído desde a realidade projetada de seus participantes. Noções


românticas de vida agrária e saúde influenciam os relacionamentos entre consumidores e
vendedores. Os fazendeiros-vendedores entendem que eles também devem tornar o ato de
fazer compras de seus clientes o mais prazeroso possível e dentro dos estereótipos de seus
clientes.

Artificialidade

Existe um componente muito presente de idealismo na maneira como os consumidores


vêem o mercado. Eles aparentemente só percebem os aspectos positivos da vida agrária
82

que o mercado lhes oferece, relevando os aspectos negativos. O contexto do mercado


permite aos consumidores estar fisicamente presente e ativamente participar de uma versão
idealizada de um estilo de vida desejado.

Ambientação

O mercado facilita rituais coletivos e encontros sociais informais que diminuem a


alienação que a cultura de consumo ajudou a construir nos ambientes de compra. O
ambiente de serviços (servicescape) (Bitner, 1992) que o mercado oferece é um
contraponto às situações de compra cada vez mais desumanizadas e impessoais. Ademais,
a feira permite o desfrutar de estímulos sensoriais (tato, olfato, paladar e visão) tão fortes
que na maioria das vezes os consumidores acabam por consumir muito mais do que se
permitiriam normalmente, por exemplo, num supermercado. Além disso, eles se dispõe
mais à experimentação do que o normal. Estas experiências sensoriais nascem do provar os
alimentos e da imensa variedade e fartura que está disponível em cada barraca.

Resultados

Semelhante ao estudo anterior, este é uma etnografia de um contexto de varejo, onde


também foi possível descrever em sua totalidade o ambiente em que ocorre a compra e
como os relacionamentos pessoais se estruturam. Os temas emergentes revelam o interesse
dos consumidores por interações de serviços mais humanizadas, onde os
interrelacionamentos pessoais ocupam papel importante e onde é possível encontros
sociais informais. Alem disso, mostra como as pessoas têm conjugado um crescente
interesse pela saúde com o consumo de produtos alimentícios de melhor qualidade, estando
o preço em segundo plano. A importância deste estudo para o varejo é importante por
sinalizar uma reação dos consumidores à despersonalização das relações no ato de compra,
e além disso, mostrar algumas alternativas para tornar o ambiente de varejo mais
adequados aos novos anseios dos consumidores.

4.4 Cirurgia plástica

O estudo (Schouten, 1991) procura aprofundar o conhecimento acerca do papel do


comportamento de consumo simbólico na manutenção ou reconstrução do auto-conceito
(self-concept). Segundo o autor, o estudo de formas extremas de consumo às vezes permite
83

a descoberta de temas que podem não aparecer em estudos de consumo mais mundanos. O
objeto de estudo desta pesquisa é o consumo de cirurgia plástica estética, e parte do
interesse advém do fato de este tipo de operação ser potencialmente perigosa, dolorosa e
cara, e mesmo assim crescentemente popular.

O "auto-conceito", como é aplicado neste trabalho, é o entendimento cognitivo e afetivo de


quem e o que somos. Esta noção encompassa todos os símbolos que servem para a auto-
criação e auto-conhecimento do indivíduo. Entre eles poderiam incluir-se papéis sociais,
atributos pessoais, relacionamentos, fantasias e bens materiais (Belk, 1988; apud Schouten,
1991). A partir desta noção do que é "auto-conceito", o estudo estabelece a priori quatro
temas, posteriormente confirmados na pesquisa.

(1) Uma auto-imagem negativa a respeito de uma parte específica do corpo pode motivar
o consumo de uma cirurgia plástica. O corpo é uma das mais importantes expressões
da personalidade (self), tanto em termos psíquicos quanto culturais.
Correspondentemente, um importante componente do auto-conceito é a imagem do
corpo. Curiosamente, as pessoas depois de uma cirurgia plástica tendem a perceber
mudanças para melhor em partes do corpo não afetadas pela operação.

(2) As pessoas usam a cirurgia plástica como instrumento de melhoria de suas


performances em papéis sociais. Isto é devido ao fato de as pessoas usarem os papéis
sociais como mecanismos de auto-avaliação e como meio de transmitir informações
relevantes para outros através de controle de impressões (impression management)
que as outras pessoas têm de si.

(3) Cirurgias cosméticas podem funcionar como um ato de auto-reforço simbólico


durante ou depois de mudanças de papéis. Quanto mais insegura uma pessoa se sente
em determinado papel, mais provável que ela use símbolos estereotipados de
competência no desempenho daquele papel.

(4) A cirurgia cosmética pode servir para se afastar ou para se aproximar possíveis selfs.
Este tema a priori se baseia na noção de auto conceito enquanto "um constructo
cognitivo formados de sistemas de símbolos chamados 'auto-esquemas' (self-
schemas)" (Schouten, 1991, p. 413). Os possíveis selfs são considerados self-schemas
84

hipotéticos, positivos ou negativos que atuam como objetos de aspiração, fantasia ou


medo e que motivam comportamentos de aproximação ou afastamento.

O estudo teve dois objetivos principais: examinar os temas acima levantados no contexto
do consumo das cirurgias plásticas; e, identificar e analisar temas que emergissem da
pesquisa, com o objetivo de largar o conhecimento atual do self-concept na pesquisa em
comportamento do consumidor.

Pelo fato de o conceito de self-concept ser complexo e altamente influenciável por


contextos sociais e situacionais, o método de pesquisa deveria abordar
fenomenologicamente os pensamentos, sentimentos e comportamentos dos informantes,
além de capturar o contexto social e situacional desses fenômenos. Para a consecução dos
objetivos, a pesquisa foi feita com entrevistas etnográficas dentro de um processo de
método comparativo constante (constant comparative method) (Glaser & Strauss, 1977).

Foram usados dois tipos de informantes: informantes-chave e informantes suplementares.


Os informantes suplementares adicionaram informações sobre os informantes-chave acerca
de seu ambiente, suas vidas e sentimentos, o que de outra forma não seria explicitado.
Enfim, estes informantes suplementares ajudaram a corroborar, questionar ou clarificar as
informações obtidas dos informantes-chave.

As entrevistas foram do tipo desestruturado, partindo de perguntas acerca dos sentimentos


antes, durante (quando era o caso) e depois da operação.

Muitos temas foram analisados durante o período de coleta das informações e ajudaram a
direcionar a pesquisa. Os dados, à medida que iam sendo coletados, eram submetidos à
comparação com os anteriormente obtidos, buscando-se pontos de similitude e diferença.
As interpretações feitas pelo pesquisador foram submetidas a profissionais de diversos
campos, que as questionaram, propuseram alternativas, expuseram os vieses pessoais do
pesquisador e recomendaram outras pesquisas para sustentar as interpretações. As
interpretações também foram submetidas aos informantes para conferência da sua
fidedignidade.
85

Temas e interpretações

Transição de papéis

Os dados coletados sugerem que a alteração do próprio corpo é um poderoso ato simbólico
que pode ajudar a pessoa a reintegrar um self-concept que se tornou ambíguo no processo
de transição de papéis; especialmente quando a imagem do próprio corpo não se coaduna
com o novo papel. Por outro lado, a modificação cirúrgica de parte do corpo pode servir
como catalisador para mudanças futuras, no momento que funcionam como instrumento de
auto-aperfeiçoamento e auto-valorização que dão força a estes processos de mudança.

Fantasias românticas e personalidade sexual

Auto-imagens negativas do próprio corpo apareceram como motivações para a cirurgia. No


contexto de selfs sexuais, partes do corpo considerados impróprias levam a auto-
percepções de inadequação sexual ou insegurança em assuntos amorosos. Além disso, num
contexto de fantasias românticas, a cirurgia ajuda a aproximar a auto-imagem corporal das
fantasias românticas das pacientes.

Percepção de controle sobre a própria vida

Dois subtemas emergiram: a cirurgia como um meio percebido de exercer controle sobre o
próprio destino e sobre o próprio corpo; e como instrumento para afirmar este controle,
especialmente quando ele está ausente. Ambos estão relacionados com a satisfação
intrínseca percebida por alguns informantes de poder controlar tudo em suas vidas,
inclusive a aparência e a resposta emocional dos outros a esta aparência.

Ritos de passagem pessoais

Além desses temas emergentes, ficou claro no decorrer da pesquisa que os estágios pré e
pós-operatórios são muitos parecidos aos ritos de passagem (Van Gennep; 1978). Segundo
ele, os ritos de passagem geralmente se compõem de três fases: separação, quando a pessoa
se desengaja de seu papel social ou status; transição, no qual a pessoa se adapta e muda
para se adequar ao novo papel; e incorporação, quando a pessoa integra em seu self o novo
papel ou status. Ademais, segundo Van Gennep, existe uma experiência coletiva de
"liminalidade", que são uma série de rituais que dão ao indivíduo suporte psicológico nos
86

processos de transformação de papéis. No entanto, nas sociedades modernas seculares é


mais fácil as pessoas vivenciarem o estado liminóide, um tipo isolado de liminalidade.

A operação plástica pode ser interpretada como um rito de passagem pessoal auto-imposto,
que permite à pessoa separar-se de um atributo físico associado a um papel social e
incorporar um outro atributo associado a um novo papel. Além disso, a decisão de fazer a
operação é muitas vezes feita durante um estado liminóide, em que há frequentemente uma
reflexão profunda sobre a validade dos papéis sociais vividos pelos informantes. Para
estes, a operação permitiu restabelecer um senso de coerência perdido nos estados
liminóides, apressando a passagem para estados mais estáveis pós-liminóides. Além disso,
a cirurgia evidencia símbolos físicos desta transição bem sucedida. Assim, as pessoas
passam por ritos de passagens pessoais para modificarem seus papéis, se valendo de
atividades e símbolos disponíveis pela sociedade de consumo, tais como a cirurgia plástica.

Resultados

Este trabalho apresenta algumas interpretações - a partir de uma tentativa de síntese de


perspectivas antropológicas e psicológicas, das motivações íntimas para o consumo de
operações plásticas. Foi possível identificar nas motivações a necessidade de se adequar o
self-concept (do qual a auto-imagem do próprio corpo é um componente) a novos status ou
a novos papéis sociais, tanto escolhidos quanto impostos. Ademais, foi visto que o
processo de decisão e consumo da operação possuem os elementos de um rito de passagem
pessoal. A grande contribuição do trabalho é a de poder revelar a importância de
determinados atos de consumo, no caso, de serviços, na modelagem da própria concepção
de si mesmo do indivíduo. Apesar de esta pesquisa ter se detido numa experiência quase
limite, de transformação do próprio corpo, as análises aqui contidas sem dúvida podem ser
deslocadas para o consumo de bens de serviços que claramente possam ser identificados
como impactando o self-concept dos consumidores.

4.5 O dia de Ação de Graças

O objetivo do artigo (Wallendorf & Arnould, 1991) é estudar os padrões de consumo


associados ao Dia de Ação de Graças (Thanksgiving Day), tal como é celebrado nos
E.U.A..
87

O Dia de Ação de Graças é um ritual coletivo que celebra a abundância através do


banquete. Os rituais de consumo deste dia podem ser entendidos como um discurso entre
os consumidores acerca de categorias culturais. Este discurso cultural negocia significados
complexos que são difíceis, senão impossíveis de os participantes reconhecerem e
articularem verbalmente, daí sua importância. É celebrado nesta ocasião não apenas um
momento de liberalidade, mas toda uma cultura de duradoura prosperidade.

Dez diferentes conjuntos de dados foram usados nesta pesquisa. Três foram primários e os
outros sete forneceram materiais suplementares, comparativos e históricos.

O primeiro conjunto de materiais primários foi coletado em entrevistas em profundidade


(in-depth interviews); o segundo conjunto foi composto de diários e notas de campo em
observações participantes feitos por um grupo de alunos de um curso de marketing nas
celebrações do Dia de Ação de Graças de suas famílias e amigos num dado ano; e o
terceiro conjunto foi composto de observações participantes dos dois pesquisadores
principais num período de três anos.

O primeiro conjunto de materiais complementares foi composto de três diferentes


pesquisas exploratórias estruturadas (entrevistas pessoais), visando produzir idéias que
servissem para a montagem do conjunto de dados primários. A primeira foi realizada dois
meses antes do Dia de Ação de Graças e concentrou-se na composição dos participantes da
festa e dos alimentos servidos; a segunda concentrou-se no Dia de Ações de Graças ideal
dos respondentes e a terceira pesquisa (com outros respondentes) concentrou-se no Dia de
Ações de Graças típico.

O quarto conjunto de materiais complementares consistiu de observações não-


participantes, feitas pelo grupo de estudantes, em jantares quotidianos em residências que
não as suas; a intenção foi obter dados para observar as diferenças entre refeições
quotidianas e refeições no Dia de Ações de Graças.

O quinto conjunto de materiais foi composto de álbuns de família mostrando celebrações


em anos anteriores, de forma a permitir comentários acerca da estabilidade desta
comemoração ao longo dos anos e de gerações em algumas famílias. O sexto conjunto
também permitiu uma perspectiva histórica: foi composto de pinturas, desenhos, escritos
ficcionais e históricos tendo como tema o dia em questão.
88

O sétimo conjunto consistiu de observações não-participantes de celebrações em


restaurantes e em centros comunitários como asilos para pobres, de forma a poder se
comparar os dados obtidos pelos conjuntos de dados primários, obtidos exclusivamente em
residências e centrados na família.

Temas e interpretações

Abundância

Os participantes dão muita importância à fartura, existindo sempre a preocupação de que


as pessoas se saturem de comida. Os pratos não são sofisticados, e a variedade de pratos é
maior do que em refeições quotidianas. A idéia de "enchimento" está presente até nos
alimentos servidos: o peru é "recheado", as batatas também. A casa fica cheia de gente, e a
mesa central da festa está cheia de pratos onde as pessoas se servem. A idéia de
abundância também está presente nos pratos dos comensais, pois em geral eles estão
lotados, e muitas vezes além do que a pessoa pode comer. No entanto, os pratos não são
nem muito elaborados nem muito temperados, revelando a simplicidade da abundância a
ser realçada. Além disso, há muito pouco consumo de álcool. Outro detalhe que mostra a
simplicidade da celebração é o tipo de roupa ordinária e sem adornos usada na cerimônia.

Esta celebração, apesar de ser considerada original e originariamente americana, tem


diversos antecedentes em celebrações aos deuses da agricultura na Antiguidade. Ademais,
tem um sentido agrário muito explícito, estando associada aos agricultores pioneiros da
colonização norte-americana.

Inclusão na família

Por ser um evento que celebra também a união familiar, aparecem alguns temas associados
à harmonia e ao pertenecimento à família: discussão do ciclo de vida dos participantes;
conselhos aos mais jovens; reforço do senso de união através de histórias familiares e
álbuns fotográficos.

Universalismo e particularismo

A ideologia associada a este dia afirma a universalidade da cerimônia, enquanto a prática


reflete e mantém as diferenças sociais, notadamente as de classe, sexo e idade. A
89

universalidade do dia é enfatizada na percepção dos participantes de que é uma celebração


de todos os membros da sociedade, e que todos a celebram da mesma forma e comendo os
mesmos alimentos. No entanto, na celebração propriamente dita se revelam as
particularidades: as classes mais altas são mais formais, as mais baixas são mais informais
na vestimenta, no comportamento e no serviço de mesa; existem claramente divisões de
trabalho por idade e sexo na preparação e condução da celebração; e por fim, existem
variações de cardápio associado a cada grupo étnico (a despeito do onipresente peru).

Limpeza, trabalho duro e frugalidade

A importância da limpeza aparece nas preparações anteriores às festividades, em que todas


as louças e cristaleiras a serem usadas na celebração são limpas e polidas.

O trabalho duro está presente no ritual de arrumação da casa, limpeza das louças ou
preparação da refeição. Poucas pessoas entrevistadas disseram preferir ter menos trabalho
comendo em restaurantes ou encomendando buffets. Algumas até explicitamente
observaram que encomendar buffets foge ao espírito da ocasião.

Apesar de a abundância ser um tema fundamental da festa, diferentemente de outros rituais


de abundância, é presente a preocupação com o desperdício. Assim, as sobras da refeição
são armazenadas para posterior consumo em refeições cotidianas.

Produtos industrializados vis-à-vis comidas caseiras e tradicionais

Como visto anteriormente, esta festividade tem raízes agrárias, e o "faça-você-mesmo" é


explicitamente valorizado. No entanto, é abrangente e pervasiva a utilização de produtos
industrializados e comprados em supermercado, ou seja, impessoais. Isto obviamente
coloca um problema para os participantes, pois a festividade e os elementos utilizados nela
têm significados diferentes.

A resolução desta contradição é feita pela retirada de significado de mercadoria e pela


"sacralização" dos produtos, ou seja, pela sua "ritualização".

Esta ritualização é feita de diversas formas. A primeira é servir comidas associadas ao dia,
e não sejam cotidianamente consumidas, tais como o peru assado e o molho de cranberry,
criando assim um contexto de "anomalia temporal" associada ao dia. Outra maneira é
90

preparar os alimentos industrializados elaboradamente e usando ingredientes especiais, de


forma a transformar as mercadorias em produtos feitos em casa (home-made). Por fim, os
alimentos industrializados são singularizados quando são servidos em baixelas herdadas
dos antepassados, reforçando o sentimento de tradição.

Resultados

Este estudo etnográfico das celebrações de Dia de Ações de Graças permite aumentar a
compreensão do comportamento de consumo americano de diversas maneiras.

A primeira ilustra como o consumo ritual ajuda a construir a cultura, e não apenas refleti-
la. Os participantes se apossam dos significados associados ao evento retrabalhando-os e,
através do consumo neste dia, constroem um modelo de vida social.

A segunda mostra a distância entre ideologia e a prática do consumidor, notadamente no


fato de o ideal de universalismo conviver com a reafirmação de particularismos de sexo,
classe e idade.

A terceira contribui para o entendimento dos significados que os consumidores associam à


abundância e satisfação materiais, ambas ligadas à necessidade básica de alimentação.

Finalmente, e mais importante, este estudo torna possível entender como os consumidores
reelaboram produtos industrializados pela sua singularização e sacralização, de forma a
tornar seus significados compatíveis com os significados da celebração.

4.6 Pára-quedismo

A intenção do artigo (Celsi, Rose & Leigh, 1993) é desvendar as motivações que levam as
pessoas à prática de desportos de alto risco. Este tema foi escolhido devido ao crescente
aumento na prática deste tipo de atividade, a despeito do altos riscos de ferimento e morte
a eles associados, e à crescente exposição deste tipo de atividade na mídia e o consequente
impacto na propaganda e na indústria da moda.

Os interesses são as motivações, comportamentos e experiências dos indivíduos que


voluntariamente escolhem atividades de lazer de alto risco.
91

Os objetivos específicos da pesquisa são dois: explorar o contexto e a fenomenologia da


experiência de um esporte de alto risco; examinar a dinâmica das motivações, riscos e
benefícios obtidos na atividade.

Foi escolhido o pára-quedismo por causa do altíssimo risco inerente, sub-estrutura sócio-
cultural claramente definida e ser facilmente acessível.

Um modelo dramático é utilizado como explicação das motivações para o esporte de alto
risco. Segundo os autores, a estrutura dramática faz parte da cosmovisão da sociedade
ocidental, enquadrando as percepções e induzindo comportamentos. Basicamente, o drama,
derivado do teatro grego, compõe-se de três estágios sucessivos: agon, onde forças
oponentes se enfrentam e ocorre o acúmulo de tensões derivado dos conflitos, estes
últimos internalizados nos atores e platéia; denouement, ou "desenlace", a resolução do
conflito; e catarse, a liberação emocional das tensões, resultado do denouement (Cheney,
1952; apud Celsi, Rose & Leigh, 1993).

Na etnografia feita um dos pesquisadores engajou-se em observação-participante como


membro de um centro de pára-quedismo durante um ano. Durante este período, os outros
pesquisadores engajaram-se em observações não-participantes em diversos fins de semana.
Ainda durante esta etapa de pesquisa etnográfica, foram conduzidas entrevistas informais,
e feitas fotografias e gravações em vídeo. Posteriormente à observação participante, foram
feitas entrevistas em profundidade e adicionalmente, interpretações dos pesquisadores
foram comentadas com informantes como conferência (member checking).

Temas e interpretações

Motivações para a prática

Foi possível perceber seis fatores que influenciam a prática do pára-quedismo. Três seriam
pertencentes ao macro-ambiente: os mass media, a especialização social e a tecnologia; e
três de caráter pessoal e interpessoal: hedonismo, motivações normativas, e competência
pessoal.

Os mass media podem influenciar a motivação para o consumo deste tipo de esporte de
duas maneiras. A primeira é introjetando a visão dramática, através de desenhos animados,
novelas, filmes, etc., onde o desenrolar das histórias seguem a estrutura do drama. A
92

segunda é oferecendo exemplos e situações concretas de experiências em esportes de alto


risco.

Em contraste com o estrutura de resolução de tensões e conflitos oferecido por uma visão
dramática, a especialização de tarefas na sociedade moderna dilui a percepção das relações
de causa-efeito das atividades profissionais e aumenta a alienação em relação ao fruto do
trabalho de cada um. A visão dramática leva os indivíduos a buscar o denouement, o alívio
das tensões, mais do que aceitar de maneira fatalista as tensões das circunstâncias
alienantes. Assim, na sociedade ocidental, os indivíduos frequentemente reconhecem seu
trabalho como instrumento para atingir a auto-realização em outro atividade. Além disso, o
trabalho se enquadra no modelo dramático, sendo o locus de geração de tensões que vão
ser aliviadas nas atividades de lazer.

A tecnologia tem contribuído para a disponibilidade dos esportes de alto risco a grandes
parcelas da população, através do barateamento do equipamento e da maior segurança na
sua prática.

A motivação hedonista aparece porque o ato de pular de pára-quedas é percebido pelos


participantes com um ato de total absorção, dando, além das sensações de vibração e
excitação, um senso de envolvimento que transcende a experiência quotidiana. Este
envolvimento total do corpo e da mente no ato de pular ocorre frequentemente quando
existe um contexto que "empurra" o indivíduo para os seus limites mentais e corporais,
sem ultrapassá-los. Assim, o ato de pular de pára-quedas pode ser considerado um ato de
hedonismo por produzir sensações de prazer associados a sentimentos de transcendência.

As motivações normativas identificadas são de três tipos: senso de comunidade


transcendente; comunhão pela linguagem; e possibilidade de construção de uma nova
identidade. Todas ajudam a definir o senso de comunidade e de identidade especial
comuns à subcultura do pára-quedismo.

Nesta subcultura se identifica um senso de comunidade que transcende as típicas normas e


convenções sociais. Existe um sentimento de camaradagem entre os membros, fruto da
experiência compartilhada das sensações de perigo. Ademais, existe a percepção entre os
membros de que os papéis e status sociais quotidianos não funcionam dentro deste grupo.
93

Adicionalmente a este sentimento, é evidente o uso da linguagem técnica e do jargão como


instrumento de identificação e de união do grupo. A linguagem ajuda a comunicar e a criar
a visão de mundo do grupo e a manter o grupo unido.

Finalmente, a participação em uma subcultura de pára-quedistas ajuda a construir uma


nova identidade. Primeiro, por arriscar a vida nas suas horas de lazer, o participante se
sente diferente do membro comum da sociedade. Mais importante ainda é o fato de que
nesta comunidade as pessoas podem estabelecer objetivos bem definidos, galgando
degraus de crescente domínio do esporte, e são reconhecidas neste meio quase que
exclusivamente em termos disso. Ademais, os ritos de passagens associados à entrada na
comunidade e no posterior desenvolvimento da suas habilidades são concretos e evidentes.
Tudo isto se contrapõe à vida "lá fora", em que as a construção da identidade, notadamente
na escolha e desempenho de papéis sociais, são frequentemente circunstanciais.

Existe presente entre os participantes a motivação de desenvolver as habilidades técnicas


para obter tanto satisfação pessoal quanto maior status dentro do grupo. Um maior
domínio da técnica implica em maior reconhecimento perante si próprio e perante os
outros do desenvolvimento de suas habilidades - o que em geral depende somente da
pessoa.

Percepção do risco

Os participantes percebem e dominam o risco através de três processos: controle do risco,


ilusão de controle e atribuição de causalidade ao erro humano. No primeiro processo, os
participantes buscam situações em que suas habilidades podem ser desafiadas, mas num
contexto dentro do qual são afastados os riscos não-controláveis. Assim, cada salto é
cuidadosamente planejado, todos os equipamentos são checados e testados e todos os
passos são ensaiados. No segundo processo, os participantes sempre buscam saltar sempre
dentro de contextos percebidos como controláveis, tanto em termos de variáveis externas
quanto internas ao indivíduo. Assim, todos supõem ser capazes de administrar as situações
de risco que podem aparecer no salto, permitindo uma margem de segurança entre seu
próprio limite e as condições do salto. Por fim, o risco é dominado e percebido pela
frequente reiteração de que o salto é mais seguro do que muitas atividades quotidianas,
94

caso todas as medidas de segurança sejam tomadas. Ademais, os casos de acidente são
interpretados sempre como tendo causa erro humano, e não falha do equipamento.

Resultados

As atividades de alto risco oferecem ao participante um contexto no qual podem ser


obtidas sensações de excitação perante o perigo e de satisfação pela utilização de suas
habilidades no limite da sua capacidade física e mental, dentro de uma percepção de risco
criteriosamente administrada. A partir destas considerações, o estudo revela a constituição
de um subgrupo por atividade esportiva, e como esta, crescentemente popular, impacta a
vida de seus praticantes. Ademais, existe a possibilidade de generalizar estas considerações
para esportes menos arriscados, mas que oferecem gratificações parecidas. O impacto
destas análises generalizadas pode ser grande. Os valores sociais associados a prática de
esportes são bastante prestigiados em nossa sociedade e, por consequência, é significativo
o mercado de bens e serviços ligados a estas atividades esportivas. Além disso, também
são expressivos os temas associados a prática dos esportes de alto risco na criação de
significados da propaganda.

4.7 Conclusão

Neste capítulo 4, foi feita uma revisão de pesquisas etnográficas e "descrições densas"
colhidas na literatura de Comportamento do Consumidor. Os trabalhos aqui comentados
procuram sempre valorizar o discurso dos atores sociais e privilegiam a interpretação
desses discursos, buscando sempre o simbólico nos comportamentos de compra e uso de
objetos.

As amplas possibilidades de aplicação do método antropológico podem ser avaliadas pela


variedade de situações de consumo aqui descritas. A pesquisa etnográfica tal como
analisada aqui foi empregada para:

• Entender como os alimentos servem de categorizadores sócio-culturais, reafirmando o


sexo, idade e classe social dos consumidores (Levy, 1981);

• Explorar ambientes de varejo e a interação vendedor-cliente (McGrath, 1989;


McGrath, Sherry & Hesley, 1989);
95

• Estudar os impactos psicológicos do consumo de cirurgias plásticas (Schouten, 1991);

• Comprender os simbolismos que existem, implícitos e explícitos, num banquete-ritual


moderno (Wallendorf & Arnould, 1991);

• E por fim, desvendar as motivações que levam à formação de um subgrupo voltado à


prática de esportes de alto risco (Celsi, Rose & Leigh, 1993).

Esses trabalhos focalizam práticas quotidianas de forma a entendê-las dentro de seu


próprio contexto. Além disso, pelo caráter de pesquisas abertas, todos os temas
interpretados "emergem" durante o desenvolvimento da pesquisa, e nunca são
estabelecidos a priori. Isto permite a revelação das motivações dos atores e dos
simbolismos dos objetos sem maiores intermediações, com uma profundidade que
provavelmente não seria possível com pesquisas estruturadas a partir de perguntas feitas de
antemão.

Dando continuidade às possíveis aplicações do método antropológico para o estudo do


Comportamento do Consumidor, no próximo capítulo é descrita uma pesquisa realizada
pelo autor visando descobrir as interações simbólicas existentes entre indivíduos e a
decoração de suas casas.
5 Uma pesquisa etnográfica: casais e objetos decorativos

Neste capítulo é complementada a discussão apresentada nos capítulos anteriores, através


da apresentação de uma pesquisa de cunho antropológico sobre a simbologia de objetos
decorativos, realizada junto a um grupo de consumidores urbanos de classe média. Após
ter sido apresentadas as bases epistemológicas do interpretativismo e as possibilidades
teóricas do entendimento do Consumo pela Antropologia, esta pesquisa foi feita com a
intenção fundamental de evidenciar a potencialidade de uma prática antropológica para o
entendimento de uma faceta específica do comportamento de consumo.

Portanto, a proposta primeira deste capítulo é a de explorar os métodos antropológicos de


"coleta de dados" e seus procedimentos de análise dentro de uma realidade relacionada ao
Comportamento do Consumidor. Por isto, esta pesquisa tem caráter exploratório e
preliminar.
96

O tema "decoração" hoje em dia suscita grande interesse pela crescente expansão deste
mercado. Esta expansão é evidenciada pela abertura de shopping centers especializados
exclusivamente na comercialização de objetos para casa, e pelas frequentes feiras de
decoração e de utilidades domésticas que têm atraído milhares de pessoas a centros de
convenções. Este mercado têm crescido bastante em função de uma tendência mundial de
valorização do privado em detrimento do público, principalmente nas mega-cidades, em
parte relacionada com o aumento da violência urbana nos grandes centros urbanos. As
pessoas têm dedicado a maior parte do seu tempo de lazer a ficar em casa, vendo televisão,
TV a cabo ou vídeo, recebendo amigos, etc., e um dos reflexos disso é que se tem gasto
proporcionalmente mais da renda disponível para a adequação do espaço da casa a esta
nova realidade.

5.1 Metodologia

A metodologia empregada neste estudo foi a pesquisa qualitativa com interpretação de


discursos dos informantes. Como já abordado em profundidade no Capítulo 2, a pesquisa
qualitativa procura entender as motivações subjetivas dos agentes sociais e busca fornecer
explicações contextualizadas das motivações e dos valores destes agentes e assim "reunir
um entendimento 'autêntico' da experiência das pessoas" (Silverman, 1993, p. 10).
Ademais, ela possui uma abordagem fenomenológica, cujas medidas observacionais são
naturalistas e não-controladas (Deshpande, 1983).

O instrumento de coleta de dados foi composto de entrevistas não-estruturadas (abertas),


em que, a partir de perguntas de referência, permitiu-se o livre fluxo do discurso dos
informantes, deixando-os à vontade na condução de suas respostas. Neste tipo de entrevista
em profundidade, os entrevistados são encorajados a oferecer as suas próprias definições
da realidade e das suas atividades e motivações particulares, e assim expressar a
significação dos temas em questão a partir do seu próprio ponto de vista. As entrevistas
abertas (open-ended) são mais adequadas para o entendimento da Verstehen dos atores
pois: (1) Ela permite aos entrevistados usar suas maneiras únicas de definir o mundo; (2)
Ela assume que nenhuma sequência fixa de perguntas é adequada para todos entrevistados,
pois o próprio fluxo do discurso é passível de interpretação, pois indica suas prioridades;
(3) Ela permite aos entrevistados revelar questões importantes não contidas em esquemas
de perguntas pré-definidos (Denzin, 1970; apud Silverman, 1993, p. 95).
97

As entrevistas foram feitas nas residências dos entrevistados, em que ambos membros de
cada casal participaram simultaneamente, o que permitiu interagir com os atores no próprio
contexto em estudo e facilitar a identificação dos objetos e da sua disposição dentro dos
diversos ambientes das casas. As entrevistas se inseriram num contexto mais amplo de
observação participante, na medida em que elas foram feitas em encontros informais nos
quais o entrevistador examinou minuciosamente os ambientes. Além disso, no decorrer
destes encontros foi possível um processo simultâneo de observação e conversação que
posteriormente facilitou a formulação das perguntas e respostas. Cada encontro durou
aproximadamente de cinco a seis horas, perfazendo um total de cerca de 30 horas de
observações e entrevistas.

O objetivo desta pesquisa é o de entender o relacionamento das pessoas com os objetos de


casa, de forma a, no transcorrer do discurso dos informantes, desvendar a teia de
significados que estes objetos são capazes de construir. Assim sendo, é possível observar
práticas simbólicas dentro do seu próprio contexto e apreender concepções quotidianas da
realidade. Para tanto, as entrevistas foram submetidas a uma "análise de conteúdos", de
forma a revelar "temas emergentes" nos discursos dos informantes, e assim evidenciar o
impacto simbólico dos objetos em suas vidas.

5.2 O grupo estudado

Todos os casais entrevistados possuem grau de escolaridade, tipos de lazer e padrões de


consumo muito semelhantes, o que configura limites de uma unidade. Foram entrevistados
quatro casais de classe média, com idade variando entre 25 e 38 anos, com idade média de
32 anos, todos sem filhos. Todos casados há dois anos ou menos, sendo que três são
recém-casados (menos de seis meses), e moradores do Rio de Janeiro. Todos trabalham e
têm curso superior, sendo que 4 com pós-graduação.

A escolha de casais relativamente recém-casados foi muito importante do ponto de vista


metodológico. Casais há pouco tempo casados ainda estão profundamente imersos no
processo de decorarem suas residências, e portanto a discussão sobre decoração é mais
enriquecedora se feita em meio a este processo. Contudo, é importante frisar que existem
vários outros momentos no ciclo de vida de um casal em que surge esta reflexão sobre a
decoração de suas casas. Exemplos destes momentos seriam a mudança de domicílio, o
98

nascimento de filhos, a partida destes mesmos filhos e a separação. Estes são estágios de
transição entre diferentes fases da vida que se caracterizam por papéis sociais distintos, e
eles exigem uma redefinição destes mesmos papéis que acaba por ter um reflexo na própria
maneira como a casa é (re)decorada.

A escolha feita nesta pesquisa, do que pode ser considerado o primeiro estágio de transição
de um casamento, se revela muito rica do ponto de vista simbólico. Isto porque, dentre
outras coisas, a negociação do espaço que é agora comum contém componentes que vão
ajudar a estabelecer a própria definição do matrimônio. Por outro lado, neste momento as
individualidades estão, por assim dizer, mais "destacadas", e o casamento não possui
elementos, tais como filhos, que atuem como referência básica na definição da decoração.
Em outras palavras, casais recém-casados possuem mais liberdade de criação deste espaço
compartilhado, e podem se permitir que ele reflita as suas próprias individualidades e a sua
definição da relação de maneira mais explícita.

Segue abaixo uma breve descrição de cada casal, em que os nomes são fictícios, conforme
a tradição da análise etnográfica. Todos têm em comum o fato de serem de classe média
média, com renda mensal oscilando entre 30 a 40 salários mínimos.

Renato e Sandra estão casados há sete meses, e moram num apartamento próprio de dois
quartos. Ele tem 27 anos e ela 25, sendo que ele é economista, e ela é micro-empresária.
Ambos viviam nas casas dos pais antes do casamento. São pessoas que se definem como
"viciados" em cinema e têm uma atividade social intensa.

Orlando e Helena têm dez meses de casados. Moram num apartamento de dois quartos
alugado, que eles consideram uma transição para o imóvel próprio. Ele tem 30 anos, é
engenheiro e ela tem 35, e é funcionária pública. Também moravam anteriormente nas
casas dos pais. São muito caseiros e raramente saem, sendo seu hobby principal ver vídeo.

Roberto e Camila estão casados há quatro meses. Moram num apartamento dos pais dele,
que não consideram propriamente como deles. Ele é economista e ela é analista de
sistemas, ambos com 30 anos. Residiam antes com os pais. Se definem como pessoas de
hábitos simples, gostam de sair à noite e estar com a família e amigos.
99

Verônica e Celso são casados há dois anos. Moram num apartamento de 3 quartos que é
próprio. Ela é economista, 35 anos e ele, ator, 38 anos. Ambos já foram casados. São
bastante cientes da sua privacidade, e procuram sempre preservá-la. Viajam sempre ao
exterior e frequentam cinemas, teatros e eventos culturais.

5.3 Temas

Para melhor organizar a interpretação dos significados dos objetos decorativos, optou-se
por dividir a interpretação por "temas". Estes temas são categorias de pensamento ou
conceitos que ajudam a explicitar ou definir determinados padrões simbólicos por detrás
dos discursos dos entrevistados. Eles servem então para ajudar a estabelecer "chaves
interpretativas" dos discursos dos informantes. Num segundo momento, estes temas podem
abrigar sub-temas, em que os conceitos-chave são desdobrados, a depender da
complexidade do conceito trabalhado ou dos discursos analisados.

Apesar de as análises serem baseadas em diferentes categorias de pensamento, a realidade


dos informantes é mais complexa e abrangente do que esta divisão. A escolha destas
categorias de pensamento tem a qualidade de esquematizar a interpretação e assim torná-la
inteligível, mas pode acontecer de, no momento em que um tema é subordinado a uma
dada categoria, se perder a sua ligação com outras categorias. As categorias estão
interconectadas, e muitas vezes os conceitos se misturam, se afastam e se aproximam. Por
exemplo, foi possível identificar que a idéia de hedonismo, de conforto e deleite íntimo na
privacidade da casa, se mistura às vezes com a necessidade de individualismo, de
afirmação e identificação da personalidade do morador pela decoração. O depoimento de
um informante ajuda a esclarecer o ponto:

"É o que falta para transformar o quarto confortável para mim. Falta isso, falta
personalizar, botar um quadro (...) Transformar o ambiente naquilo que
caracteriza mais a gente".

Neste discurso fica claro que é possível ter um determinado tema convivendo em duas
categorias, sem risco de incoerência interna do discurso. O informante associa conforto,
que quase sempre é uma questão de simples bem-estar físico, à personalização do espaço,
100

que possui implicações expressivas mais complexas, associadas à reafirmação de sua


individualidade.

Portanto, apesar de os temas emergentes terem sido agrupados sob categorias que
acreditamos ajudem a organizá-los e a melhor pensá-los e interpretá-los, estas categorias
não são estanques e indivisíveis, podendo haver interpenetrações de significados.

Individualismo

Uma categoria de pensamento identificada na análise dos discursos é o individualismo, um


dos elementos característicos da ideologia das sociedades ocidentais modernas (Rocha,
1995). Esta categoria de pensamento se define pelo fato de estar baseada na doutrina de
que cada "indivíduo", se considerado em termos de suas características físicas e psíquicas
particulares, é uma entidade autônoma, singular, e irredutível a grupo ou a sociedade. Este
indivíduo é dotado de qualidades que o tornam completamente diferente de qualquer outro,
e ao mesmo tempo, distinto e oposto à totalidade social. Assim, para a sociedade moderna,
o "eu individual" é único, peculiar e irrepetível. Suas emoções, escolhas e sentimentos são
fruto de uma autonomia radical, e esta tem de ser constantemente reafirmada, de forma a
não permitir que o "mundo lá fora" a macule com intromissões descaracterizadoras. O
"espaço interno" do indivíduo é sobremaneira valorizado, e sua integridade deve ser
reconhecida e respeitada.

A casa com a cara do dono

No domínio específico da casa, é evidente a necessidade apontada pelos diversos


informantes de que a casa tem de refletir as preferências estéticas e os gostos pessoais de
seus ocupantes. O espaço é considerado próprio quando está incorporado de objetos frutos
de escolha pessoal. Este mecanismo de personalização é parecido ao de, no local de
trabalho, colocar o porta-retrato com a foto da família na mesa do escritório. A mesa de
trabalho se torna um espaço pessoal no momento em que um objeto (no caso,
emocionalmente carregado), e até fora do contexto profissional (ou talvez por isso), é
inserido no ambiente.

Dentro da mesma lógica, o domínio da casa, por ser talvez o único verdadeiramente
privado e exclusivo, deve traduzir a identidade dos ocupantes através de objetos que
101

tenham sido por eles selecionados e estejam de acordo com suas preferências. Afirmações
do tipo "deixar a casa do nosso jeito", ou "a casa tem de ter a nossa cara" são frequentes
nos discursos dos informantes e revelam esta percepção de que a casa tem de espelhar os
donos, através da concretização de seus gostos e preferências na forma de objetos. Em
geral a seleção vai ocorrendo dentro de um longo período de escolha, até mesmo com a
ajuda de algum especialista, mas sempre com o aval do morador.

"Eu não admito esse negócio de arquiteto bom. A minha arquiteta tem muita
competência, mas na verdade o gosto tem que ser meu. Para mim é um
absurdo, tem gente que mora, mas para mim é inconcebível eu morar num
negócio que eu não dou um último palpite".

"Você sempre compra aquilo que gosta e quase sempre aquilo tem a sua cara.
A não ser que você peça para uma pessoa vir e decore teu apartamento, aí, eu
acho que você está mostrando para os outros 'olha só como é que eu sou
moderna, olha o que é que eu tenho', mas não é você. Aqui não. Eu acho que é
a nossa cara, porque a gente escolheu, a gente que viu".

Além disso, é evidente uma preocupação em esclarecer que a decoração da casa não segue
modelos e que ela é específica e irredutível a rótulos ou modismos.

"Eu acho que lá em casa não é clean nem moderno, não tem esta pretensão. (...)
Ela tem a pretensão de ser a nossa cara!"

No entanto, mesmo que se procure fugir de rótulos mais amplos, que ameacem a perda do
que é "característico", é possível identificar a utilização de algum tipo de referencial que
ajuda a definir esta individualidade mesma da decoração. Por exemplo, no depoimento
abaixo a informante recusa a cor preta no seu apartamento, baseada na categorização de
que esta cor "é suntuosa e sofisticada" e assim incompatível com o seu estilo de vida,
considerado "simples".

“(...) Preto é uma coisa muito sofisticada, geralmente é uma coisa muito
suntuosa, e eu acho que o apartamento é pequeno, eu sou nova e ele também
102

(...) Nós somos pessoas muito simples e achava que não combinava realmente
com o nosso estilo de casa. (...) Por isso é que a gente preferiu optar por esses
materiais que têm um estilo jovem”.

No momento em que se efetiva esta personalização da casa, é evidente que os significados


materializados nos objeto são inteligíveis tanto para os moradores quanto para os
visitantes. Apesar de que a decoração da casa é concebida fundamentalmente para quem a
habita, a leitura de seu significado é aberta a todos. E isto não escapa aos informantes.
Vários depoimentos ajudam a reforçar este ponto:

"Ah, eu acho que sempre revela. Eu acho que isto acontece quando as pessoas
vêm à minha casa. É uma forma de conhecimento".

"É uma roupa, né. Eu quero me vestir de um jeito que parecesse comigo e não
parecesse com o que se tem de parecer, sempre procurei uma coisa que falasse
em meu nome. (...) Então eu acho que você se revela por aí, óbvio que por mil
transformações. (...) Mas, revela, é uma roupa mesmo".

No segundo depoimento, é interessante notar que o potencial expressivo da decoração de


uma casa é tão poderoso que é comparado a uma roupa, que geralmente em nossa
sociedade está carregada de significados de expressão da personalidade e às vezes até do
estado de espírito do usuário (para uma análise estrutural da significação de roupas, ver
Sahlins, 1979, p. 199).

Apesar deste reconhecimento da comunicabilidade dos objetos de casa, a "construção da


individualidade" pela decoração não serve em princípio de representação para alguém de
fora. Em outras palavras, a despeito de o ambiente doméstico ser constituído visando uma
diferenciação e uma individualização em oposição ao outro, isto não é feito afirmando esta
singularidade para o "público externo". O próprio lar é considerado uma questão tão
privada que existe uma preocupação somente secundária de como esta "figuração" da
própria individualidade impacta um visitante, por exemplo. A representação para o outro
sem dúvida não é o mais importante para este grupo. Esta expectativa está bem
evidenciada no seguinte depoimento de uma informante.
103

"Eu acho que não intencionalmente se quer mostrar, 'olha, eu sou isso que está
aqui'. Mas acaba ficando, porque você sempre coloca o seu gosto, as coisas que
você gosta, você sempre acaba passando aquilo que você é pelo que você tem
em casa, pelo que você escolhe".

"Tudo é pessoal. Eu acho que quem faz sou eu. Uma pessoa chega e pode olhar
uma coisa ou outra, mas a minha leitura é bem discreta, é mais para mim".

Uma das maneiras de se personalizar a residência é pela diferenciação. Isto é observável na


busca de se compor um ambiente de casa que seja único e distinto, de forma a diferenciá-
lo, pela originalidade, de qualquer outro ambiente, público ou privado. Então, algum ou
vários elementos da decoração (ou seja, os objetos, a sua disposição, as cores do ambiente)
devem, sozinhos ou em conjunto, ser de tal forma "diferentes" que se possa caracterizar o
ambiente total da casa como singular e distinguível, e pelas suas características
diferenciadoras, também diferenciar os seus ocupantes. Isto permite a afirmação da
personalidade da casa, por oposição do "seu espaço" aos outros tipos de espaços "lá fora".

Na montagem da decoração de casa é muito frequente a leitura de revistas de decoração,


onde se encontram fotos de vários ambientes já prontos, que oferecem idéias para decorar a
própria casa. No entanto, nenhum dos informantes declarou ter copiados estes ambientes
na íntegra. O que ocorre é um processo de "colagem": "recortar" objetos diversos que
aparecem em diversas fotos de decoração e "colar" estes recortes de uma maneira única e
"original", assim montando um novo ambiente.

"Gosto das coisas diferentes. A decoração tem que ser diferente. A casa tem
que ter uma decoração que você não viu. Para mim tem que ser. Aquele
negócio de um armário, um sofazinho, a poltroninha e tal, não sei, vai parecer
que não é a minha casa. Todo mundo tem um sofá. Já o estrado que eu vou
mandar fazer, já é uma coisa mais diferente".

Além disso, existe uma personalização de objetos indiferenciados e produzidos em escala


industrial, sem qualquer marca de particularidade ou identidade, pela sua composição com
outros objetos, de forma a individualizar o ambiente. Este processo procura, a partir de
104

móveis e objetos fabricados em massa, serializados e indistintos, compô-los de maneira


que o conjunto resultante seja tal que se possa percebê-lo como único, singular e peculiar
àquela residência. E isto muitas vezes opera através do acréscimo do detalhe, ou seja, um
objeto decorativo não considerado um dos principais, como sofá, mesa ou cama.

"Eu acho que é o detalhe que revela a personalidade... É, eu acho que sim.
Porque um sofá, você vai a uma loja que você compra e cem pessoas compram,
também, o mesmo sofá. Cada pessoa compõe a sua casa com outras coisas
também, em tons diferentes. O detalhe é o que enriquece o ambiente. Por
exemplo, eu vou a uma loja e compro uma televisão, mas se eu colocar uma
outra coisa em cima dessa televisão, ela já não vai ser igual àquela outra. O
detalhe é muito importante".

O que está claro aqui é a contraposição do domínio da produção, em que os produtos são
fabricados em série e sem a marca do humano, e o domínio do consumo, onde o indivíduo
é tudo, e a diferenciação, fundamental (ver Rocha, 1990, p. 66). Esta pode ser reconhecida
como uma das estratégias de "individualização" e “humanização” de produtos sem
identidade através de sua arrumação particular, de forma que, apesar dos elementos serem
indiferenciados, o conjunto seja único e singular.

O processo de "humanização" dos objetos pode atingir uma forma radical. Nos diversos
depoimentos citados abaixo são utilizadas metáforas de relações amorosas para definir o
relacionamento dos informantes com determinados objetos de casa. Estes exemplos
mostram bem a carga de emoção associada a alguns objetos considerados até triviais. Estas
emoções fazem com que eles sejam muitas vezes alvo de sentimentos que normalmente
somente seriam dedicados a pessoas, e são percebidos como "seres" merecedores de
atenção e cuidados.

"Sou apaixonada pela minha geladeira, eu namoro a minha geladeira, juro por
Deus! (...) Ela é um charme, ela é linda".

"Aí começamos a namorar, a curtir as coisas".

“Eu já namorava a cama antes de casarmos”.


105

“Eu já tinha visto a mesa que eu estava paquerando”.

“A planta, eu levei muito tempo paquerando ela”.

"Ela realmente se apaixonou pelo conjunto".

Histórias

No entanto, a "individualização" da própria casa não existe apenas para identificá-la como
sua. Os objetos que compõem a casa, à medida que são incorporados, têm o efeito de
servirem como "disparadores" de lembranças e de histórias passadas, histórias estas que
ajudam a compôr a própria trajetória pessoal dos envolvidos e a do próprio casamento.
Portanto, servem também para fortalecer a própria existência do casamento e para afirmar
a individualidade do seus membros. As narrativas baseadas nestes objetos servem para
lembrar experiências significativas e momentos importantes do casal, e fixar valores
comuns.

Narrativas são parte integrante fundamental de qualquer cultura, pelo seu potencial de
transmissão e fixação de valores, conceitos e categorias culturais. Incorporando este
potencial ao caso específico de histórias pessoais, narrativas são um mecanismo eficiente
de estabelecer emoções e sentimentos, e as recordações de acontecimentos ocorridos com
outras pessoas são mais vívidas quando "armazenadas" como histórias. Além disso, nossa
cultura valoriza muito o senso histórico. Países têm história, idéias têm história, pessoas
têm história. Toda nossa interpretação dos fatos cotidianos e da própria experiência pessoal
está baseada num sentido de encadeamento sequencial de fatos, e além disso, explicamos
todos os acontecimentos sociais e pessoais em termos de sucessão de causas e efeitos
definidos temporalmente, acreditando que o que fomos no passado define o que somos no
presente. Enfim, as histórias permitem a organização das nossas próprias percepções da
realidade, e em especial da nossa própria realidade

Então, nada mais natural que objetos sejam utilizados como recurso mnemônico para
ajudar a lembrar acontecimentos reputados como importantes. Eles podem ajudar a definir
a individualidade e a especificidade da pessoa, pois funcionam como referências
simbólicas do passado atuando no presente. Assim, fixam momentos importantes da
própria vida e ajudam a estabelecer e transmitir conceito sobre si mesmas.
106

A primeira função mnemônica dos objetos decorativos adquiridos com esta intenção é a de
servir para lembrar momentos positivos da vida. Em geral, e dependendo da trajetória de
vida de cada um, os objetos dizem respeito a experiências vividas pelo casal, mais do que
por algum deles separadamente. Isto ajuda a reforçar a experiência comum da vida a dois,
em parte por ser a decoração da casa um projeto de ambos, e em parte pelo fato de o
casamento representar um novo status social e pessoal, representando uma ruptura
fundamental com o passado.

Os objetos que ajudam a lembrar - disparadores de "lembranças" - obviamente só são


adquiridos ou permanecem visíveis quando dizem respeito a passagens com boas
recordações. Na história pessoal, tal qual na História com H maiúsculo (Rocha, 1984), os
diversos fatos ocorridos no passado e suas interpretações são "arrumados" de maneira a
permitir que a versão final dos fatos mostre somente os "melhores momentos". Assim,
sempre se terá a história ou as histórias que na opinião da pessoa ou do casal melhor
demonstra o que a pessoa ou o casamento é hoje.

“Eu gosto de me lembrar das coisas que eu fiz. Das coisas gostosas. São
Lourenço me dá aquele ar de nostalgia, saudade. Sempre quando eu fui lá,
sempre foi bom, nunca tive problemas. Então, eu tenho que trazer um
pouquinho de São Lourenço para cá". (...) E isto em todos os lugares. A gente
trouxe um monte de coisas dos Estados Unidos. Se foi bom, tem que trazer
lembranças".

Outro entrevistado possui uma coleção de 300 itens de diversos objetos dedicada quase
exclusivamente a servir de referencial mnemônico para sua trajetória de vida.

"Eu tenho uma vitrine enorme que eu fiz para guardar uma coleção de
miniaturas, sem tema específico, ela tem carrinhos, bonequinhos de
personagens do século XX, de artista de cinema, de personagem de historinhas
em quadrinhos, deve ter uns 300. (...) Eu gosto de ficar olhando para um monte
de figurinhas tridimensionais que você comprou em vários lugares diferentes,
aquela bobagem, comprar o bonequinho, lembrar do lugar, lembrar da
história".
107

Em outro nível de análise das narrativas do casal, as histórias associadas ao próprio


processo de decoração da casa também funcionam como um reafirmador, um reforço da
trajetória de vida dos moradores. Assim, a história da casa, contada através da aquisição de
seus objetos, se interpenetra com a própria história do casamento, e é uma espécie de
"reiteração" do próprio casamento. No depoimento abaixo o processo de se decorar a casa
é considerado uma necessidade para se fazer a história da casa, e portanto, ter histórias
vividas por ambos para serem contadas, algo como um tipo de mito fundador da casa, em
que se afirma o início de uma nova existência a dois a partir do início da experiência
compartilhada de se escolher e comprar os móveis e outros objetos.

"(O processo de decorar é importante) para ter história, (...) para ter uma
lógica para história. Você se coloca dentro da história e diz que você atuou,
você viu todos os pontos, os objetos você encontrou aqui e porquê, naquela
hora quando compramos e foi juntando tudo, até que tudo no conjunto deu
alguma coisa legal (...) apesar de estar espalhado, comprado cada coisa num
lugar, de repente em cidades diferentes, no final foi a gente que comprou e
tudo tem uma história".

O processo de decorar a casa, tal como compreendido por este depoimento, é um processo
fechado que termina quando todos os móveis estão comprados.

No entanto, a decoração de uma casa pode ser entendida como um processo contínuo e
interminável, evoluindo de acordo com a própria dinâmica da vida a dois. Assim,
argumenta um casal informante:

Ele: "Como este projeto é de longo prazo, eu acho legal você brincar com este
longo prazo, (...) Talvez não fosse tão bom se você pegasse todo o dinheiro e
jogasse e tudo para ficar pronto dois meses, e pronto! Eu acho mais gostoso
você ir achando. E a casa é ir vivendo junto mesmo, o projeto em si. É por isso
que eu acho que é demorado mesmo".

Ela: "Nunca vai chegar um ponto e a casa vai estar pronta. Claro que não, por
que a casa acompanha sua vida, a não ser que você pare de viver".
108

Assim, pode-se entender que o processo de decorar não apenas serve como balizador e
referencial para a geração de histórias, mas acaba por se tornar parte da dinâmica do
casamento, na forma de experiências a dois que são continuamente renovadas na busca da
melhoria do espaço da vida em comum.

Domínio masculino e feminino

O espaço da casa tem sido historicamente na nossa sociedade o domínio da mulher, em


contraponto ao espaço da rua, domínio do homem. Atividades domésticas, tais como
cozinhar, lavar, e limpar e por que não, decorar a casa, têm sido consideradas atividades
femininas por excelência. No entanto, causas como a presença maciça da mulher no
mercado de trabalho, a ascensão do feminismo e a confusão dos papéis sexuais tradicionais
tiveram como consequência a redefinição das relações amorosas. Isto colocou ao homem,
sob risco de ficar desatualizado (não-competitivo talvez?), a necessidade de maior
participação nas atividades domésticas. Conforme as entrevistas da pesquisa, os homens se
envolvem nas atividades de casa, e estão dispostos a cooperar lavando pratos, cozinhando
e até mesmo limpando a casa.

No entanto, o maior engajamento masculino está na atividade de decorar. Talvez por não
envolver esforço físico nem habilidades especiais, e possuir um certo glamour, pois afinal
de contas decoração envolve gosto e senso estético. Todos os homens entrevistados
participam ativamente nas compras relacionadas à casa: vão às lojas com as esposas,
conferem preços, verificam a qualidade dos objetos, escolhem cores, etc. Surge ainda a
preocupação com o arranjo do espaço arquitetônico da casa:

"É engraçado, eu passei a ser um consumidor de coisas que eu não consumia,


revistas de decoração, por exemplo, comecei a consumir isto agora, por que
tem a ver com este projeto de casa".

No entanto, talvez pelo fato de as mulheres serem mais educadas em questões de


decoração de interiores, são elas ainda as que geram idéias, que pensam na composição do
ambiente e que criam o conceito global da decoração da casa, cabendo ao homem deixar
claras suas preferências e oferecer sugestões para a tomada de decisão da mulher. Assim,
109

mesmo com uma maior participação masculina, compras de objeto de decoração ainda são
fortemente baseadas nos critérios e preferências da esposa.

O espaço masculino

Foi possível perceber a necessidade de se formar um espaço específico para o homem, a


partir do aproveitamento de um quarto que não o de casal. Talvez por reconhecer ainda a
predominância do gosto feminino na definição de quase todos objetos de decoração, é
manifesto o interesse (mesmo quando por alguma razão não foi possível a realização) por
criar um ambiente masculino, sem interferência feminina na sua composição. E este
ambiente é o "escritório". Mesmo tendo como justificativa pragmática explícita a de ter
onde colocar os livros e o computador, a motivação implícita é por demais evidente:
possuir um espaço próprio, de domínio masculino. A simbologia dos espaços para este
grupo é interessante: o espaço dos livros e do saber é eminentemente masculino, enquanto
o resto da casa continua sendo o espaço feminino, da dona de casa. Assim, apesar das
mudanças no enfoque dos papéis sexuais, dentro da própria casa se repete a mesma divisão
que vinha definindo estes papéis até agora: espaço masculino é escritório, o espaço do
saber e do trabalho; enquanto que o espaço feminino é o resto, o espaço das atividades
domésticas de lavar e cozinhar. Estes depoimentos esclarecem o reconhecimento da
predominância da mulher nas decisões de decoração e a necessidade de um espaço
unicamente masculino.

Ele: "O escritório foi idéia minha. Na planta original estava fechado, era um
quarto de empregada. (...) Como ela já estava planejando a casa toda, o
escritório era meu".

Ela: “Eu te dei o escritório de presente”.

Em outro depoimento do mesmo entrevistado, fica evidente quanto a justificativa


"pragmática" não se sustenta diante da necessidade simbólica de mais espaço masculino.
Ele implicitamente admite que não tem muita "utilidade", pois a descrição das atividades
que pretende exercer lá deixa claro que é mais um questão de necessidade individual de um
espaço pessoal.
110

"De repente trabalhar mais tarde com alguma coisa. Botar um fax, a Internet, e
usar. Talvez, não sei, de repente, botar uma poltroninha para ficar lendo
alguma coisa”.

A constituição de um espaço íntimo de utilização quase que exclusivamente masculina


mostra que o maior envolvimento do homem na decoração tem como contrapartida o
despertar de um interesse em criar um espaço pessoal dele, diante da preponderância da
mulher na definição do ambiente do resto da casa.

Cozinha a dois

Todos os entrevistados descrevem sua própria cozinha como prática e funcional e é um dos
lugares da casa menos discutidos em todas as entrevistas. Apesar do reconhecimento geral
de que o homem participa de alguma das atividades culinárias da casa, é visível que a
ajuda dele na cozinha é apenas uma maneira de diminuir o peso de uma atividade
aborrecida, e fundamentalmente feminina. Apesar do aparente maior envolvimento do
homem na cozinha, isto não é de nenhuma maneira considerado uma atividade prazerosa e
geradora de prazer e satisfação. O envolvimento do homem na compra e no arranjo de
objetos de cozinha é mínimo, sendo que aqui se identifica o menor grau de envolvimento
masculino de todos os ambientes da casa.

Ele: “Eu gosto de fazer algo rápido, e prático também. Não gosto de prato
elaborado. (...) Gosto de fazer coisas diferentes, contanto que não demorem
muito”.

Ela: “Mulher moderna não fica mais dentro da cozinha, fica na cama, no
quarto, na sala, decorando a casa. Mulher moderna não entra na cozinha,
homem moderno não entra na cozinha”.

Apesar do tom irônico, o último depoimento revela o desconforto de algumas mulheres


com a atribuição da cozinha como uma das tarefas de sua responsabilidade, como seu
domínio, e reforça o argumento de que os homens não participam como deveriam na
divisão das atividades domésticas.
111

“Nossa cozinha é prática. (...) Apesar de ela ser toda branca e o piso dar um
pouquinho de trabalho, ela é prática. Por que o que acontece na cozinha? É só
varrer, passa um paninho, pronto, ela está limpa. Você só tem que ter
disposição de varrer e passar o paninho”.

Comentário que reforça a idéia dos sentimentos contraditórios associados a cozinha e de


que a sua utilização é um fardo, pois se perde muito mais tempo falando sobre sua limpeza
do que as atividades que nela são desenvolvidas.

Em todas as entrevistas é recorrente a constatação de que a cozinha é o ambiente no qual


menos se perdeu tempo em decisões de compra e disposição de objetos. Isto claramente
revela que, para casais em que ambos trabalham, as atividades de cozinha estão relegadas a
segundo plano, são consideradas atividades aborrecidas e onde a participação masculina se
restringe ao mínimo e a feminina é inevitável.

Hedonismo

Como já foi comentado, existe uma tendência atualmente bem marcada de se dedicar a
maior parte do tempo disponível de lazer para se ficar em casa. Esta é a idéia de se "curtir"
a própria casa, evitando assim a agressividade percebida no mundo "público", faz com que
as pessoas despendam bastante tempo e dinheiro aparelhando a própria casa, de forma a
fazer com que o "cantinho" se torne um lugar tranquilo, confortável e "aconchegante",
contrapondo-se a um mundo "lá fora" tumultuado, confuso e hostil. Este é o espaço para
um certo tipo de hedonismo, uma busca de prazer e de conforto físico e mental, dentro do
universo restrito da intimidade da casa.

O espaço íntimo que a própria casa proporciona é o espaço da privacidade, do


recolhimento e do distanciamento do outro, mas é um espaço que deve ser bem aparelhado,
que ofereça as todas as comodidades vistas como necessárias para se passar relaxadamente
as horas. Idéias de comodidade e de bem-estar, indissoluvelmente ligadas às idéias de
intimidade, de privacidade e de distanciamento do mundo.

A casa se torna o lugar que se pode ser você mesmo, sem interferências, o espaço
privilegiado para si mesmo, um refúgio para onde se volta escapando das tensões e
112

exigências de uma vida urbana moderna estressante. Mas um refúgio pelo qual que tem de
se lutar para manter preservado e distanciado da realidade.

"Eu acho bem legal fazer a sua casa, gostar da sua casa, gostar de voltar para
sua casa, lutar sempre para não deixar que interfiram tanto nisso, ter um
horário para você, para seu lugar, é a 'toca'. (...) É o lugar para você ficar
mesmo meio isolado".

Outro tema correlato que vai aparecer é o da auto-suficiência, a não-dependência do


exterior. Não basta apenas ser um espaço pessoal íntimo, tem de haver uma separação de
tal forma que se perceba que aquele ambiente, limitado e que se fecha em si, seja
hermeticamente isolado e sem contato com o mundo externo, onde se possa ficar à vontade
sem restrições.

"Tem ser aquele ambiente em que você se sinta à vontade e não precise do
mundo. Ou seja, você entrou ali e se fechou, mas está também na sua
intimidade, está com tudo que você precisa ali, está satisfeito, e fica bem ali".

Poder se dar conforto é um prêmio oferecido a si próprio. Uma certa estabilidade


financeira já permitem os pequenos (ou às vezes grandes) luxos da auto-satisfação de uma
maior comodidade material.

"O passar dos anos te permite ter um espaço mais teu. Você com 18 anos, com
sorte, tem um quarto, quando você tem um pouco mais, você racha com três
amigos, depois de uma idade, você vai começando, digamos assim, a colocar
conforto para tuas manias. Então, se você gosta de ver vídeo, você já vai ficar
com uma televisão mais legal e um sofá mais legal, ou se você escreve, um
computador".

O bem-estar físico representado pela comodidade norteia implicitamente todas as decisões


de decoração da casa. Tirante a cozinha, espaço de presença passageira e de atividades
aborrecidas, não existe espaço da casa que não tenha o conforto entre os seus critérios na
113

seleção de móveis. O conforto é tão dominante que chega a ser considerado o elemento
que reúne e dá harmonia aos diversos cômodos da casa:

“Apesar de serem cômodos diferentes, eles são parecidos, de uma certa


maneira, porque o conforto é o primordial. Então, se tem conforto em todos os
cômodos, ele está coerente e está ligando, mesmo que a decoração seja
diferente”.

Concluindo, o hedonismo é um das categorias fundamentais para entender a lógica


simbólica que norteia compra e consumo dos objetos decorativos nas casas dos
entrevistados. A definição do que é hedonista passa pelas idéias de intimidade e
comodidade, e os ambientes do espaço privado do lar são constituídos de forma a oferecer
ambos, através de um conforto fechado em si e para si mesmo. O prazer do bem-estar
privado é contraposto ao mundo exterior, e o espaço íntimo é entendido como um refúgio
das situações estressantes do espaço extra-casa.

5.4 Conclusões

A intenção desta investigação, de escopo limitado, era oferecer um roteiro básico de como
funciona uma pesquisa qualitativa de fundo interpretativo, nos seus aspectos de
levantamento, registro e análise de informações, visando ao maior conhecimento de um
determinado aspecto do consumo. No caso, foram estudados os aspectos simbólicos
associados ao consumo de objetos decorativos de alguns casais de classe média sem filhos.

A partir de um conjunto de entrevistas não-estruturadas foi possível identificar uma série


de temas que revelam o "relacionamento" das pessoas com os seus objetos domésticos.
Além disso, foi possível identificar que tipo de significados estes objetos são capazes de
carrear e como fixam e transmitem conceitos relacionados com a visão de mundo e com as
expectativas das pessoas a respeito de si próprias e dos outros.
114

6 Epílogo e sugestões de pesquisas futuras

O Marketing sempre se notabilizou por incluir no seu corpo de conhecimento


contribuições de diversas disciplinas como a Psicologia, a Sociologia, a Matemática, etc. e
no entanto tem sido tímido na incorporação de contribuições da Antropologia. Como
abordado no Capítulo 1, isto provavelmente é devido ao fato de a Antropologia, tal como
aqui entendida, se basear em um paradigma que ainda forceja por se estabelecer diante do
paradigma lógico-empirista ainda largamente dominante na disciplina do Marketing.

Esta dissertação se propôs justamente a ajudar a aplainar este caminho, articulando quatro
etapas consecutivas das possibilidades da Antropologia no estudo do consumo: contribuir
na investigação de suas bases epistemológicas; apresentar a teoria e prática que
caracterizam a Antropologia como um empreendimento científico específico;
redimensionar algumas teorias antropológicas de forma a realçar uma leitura reveladora
sobre o que é consumo; e por fim, propor uma pesquisa que demonstre a potencialidade da
antropologia interpretativista no estudo de uma, digamos assim, "situação real de
consumo".

A Antropologia do Consumo é um corpo de conhecimento que ainda está se articulando. A


proposta deste trabalho é eminentemente exploratória e visa revelar alguns dos múltiplos
saberes gerados pela Antropologia sobre o consumo em sociedades modernas, porém não
tem a pretensão de esgotar o assunto. Tanto quanto a própria Antropologia, a discussão é
multifacetada e complexa.

O caráter exploratório desta dissertação e do estudo do consumo de objetos decorativos


nela inserida propicia a abertura novos campos de pesquisa na Antropologia do Consumo.
115

Como sugestões para o desenvolvimento de novas investigações, e visando a ampliação de


conhecimentos alternativos no estudo do Comportamento do Consumidor, são propostos
dois eixos de pesquisas futuras. O primeiro deles seria em relação à aplicação da análise
etnográfica em Marketing. Algumas das sugestões seriam:

• Realização de estudos pontuais em grupos restritos de consumidores acerca de formas


específicas de consumo de bens e/ou serviços;

• Análise interpretativa de discursos de vendedores de loja e de suas estratégias


interpessoais de venda. Uma etnografia da relação vendedor-cliente permite o
entendimento de uma interação face-a-face fundamental para o Marketing e no entanto,
provavelmente de difícil apreensão em pesquisas que não as etnográficas;

• Realização de etnografias de ambientes de varejo, tanto em espaços restritos, como


lojas ou mais amplos, como shopping centers, tornando assim possível a compreensão
de um contexto total de uma atividade de compra.

O outro eixo proposto para novas pesquisas seria em relação ao aprofundamento do


conhecimento do consumo de objetos decorativos. O estudo aqui realizado poderia ser
complementado por pesquisas etnográficas dentro dos seguintes contextos:

• Consumo de objetos decorativos em outras classes ou faixas de renda, por exemplo,


classe alta, classe média baixa ou classe baixa;

• Consumo destes objetos em outros estágios do ciclo de vida de casais, tais como nova
residência, primeiro filho, ou quando os filhos já estão criados;

• Consumo em outras cidades de médio ou pequeno porte ou em zonas rurais;

• Análise de discursos de formadores de opinião no âmbito da indústria de decoração,


tais como arquitetos, decoradores de interiores, produtores de mídia, e também análise
de discurso da mídia de decoração.

A Antropologia ainda tem muitas potencialidades inexploradas pelo Marketing, tanto na


sua teoria quanto na sua prática. A pesquisa etnográfica é um método valiosíssimo no
aprofundamento do conhecimento da comunicação de significados associados a objetos
116

nas práticas quotidianas dos consumidores, e muitos estudos podem ser realizados tanto em
ambientes de compra, quanto em situações de consumo propriamente dito de objetos.
117

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8 Anexo

ALGUNS PROGRAMAS DE PESQUISA POSITIVISTAS EM COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR

Programas Cognitivo Behaviorista Econômico Funcionalista

1- fundações Psicologia Behaviorismo Microeconomia/ Funcionalismo-


intelectuais Cognitiva, americano/Watson, Jevons, Walras, Estruturalismo/
Psicologia Social Thorndyke Marshall, Mincer Durkheim, Weber,
/ Thurstone, Likert, Parsons, Merton
Guttman, Allport,
Dulany
2- objetivo "Explanação" idem idem idem
cognitivo via síntese de
comportamentos em
leis universais;
predição e controle.
3- modo hipotético-dedutivo indutivo hipotético-dedutivo hipotético-dedutivo
predominante
de inferência

4- interpretação realista realista instrumentalista realista


da ontologia

5- exemplos de intenção operadores, utilidade, função de estrutura social,


ontologia comportamental, estímulos, reforço, produção, utilidade estratos sociais,
atitudes, crenças, extinção marginal, renda mobilidade social,
motivação. integral status
6- métodos de produção em produção em correlação de correlação de
pesquisa experimentos de experimentos de estudos ex post facto estudos ex post facto
primários efeitos preditos; efeitos preditos
correlação de
estudos ex post
facto.
Adaptado de Anderson (1986)

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