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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA

MARIA APARECIDA DE ASSIS TELES SANTOS

O EU LÍRICO EM CHICO BUARQUE: DA SUBMISSÃO À


TRANSGRESSÃO E A INCIDÊNCIA DE MÚLTIPLOS ASPECTOS
DO FEMININO

Goiânia
2012
TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E
DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG

Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG) a
disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG),
sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei nº 9610/98, o documento conforme
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ção da produção científica brasileira, a partir desta data.

1. Identificação do material bibliográfico: [ ] Dissertação [ ] Tese

2. Identificação da Tese ou Dissertação


Autor (a): Maria Aparecida de Assis Teles Santos
E-mail:
Seu e-mail pode ser disponibilizado na página? [ x ]Sim [ ] Não
Vínculo empregatício do autor SEDUC-GO
Agência de fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Sigla: CNPq
Científico e Tecnológico
País: Brasil UF:GO CNPJ:
Título: O eu lírico em Chico Buarque: da submissão à transgressão e incidências de
múltiplos aspectos do feminismo

Palavras-chave: Literatura – música – gênero - discursos


Título em outra língua: The speaker in Chico Buarque: to submission to the trans-
gression and the incidences of multiple aspects of feminine

Palavras-chave em outra língua: Literature – music – gender – female -speeches

Área de concentração: Estudos literários


Data defesa: (dd/mm/aaaa) 14/09/2012
Programa de Pós-Graduação: Letras e Linguística
Orientador (a): Dr. Jorge Alves Santana
E-mail: deassistsantos@gmail.com
Co-orientador
(a):*
E-mail:
*Necessita do CPF quando não constar no SisPG

3. Informações de acesso ao documento:

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permitindo apenas impressão fraca) usando o padrão do Acrobat.

________________________________________ Data: ____ / ____ / _____


Assinatura do (a) autor (a)

1
Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo suscita
justificativa junto à coordenação do curso. Os dados do documento não serão disponibilizados durante o período de
embargo.
MARIA APARECIDA DE ASSIS TELES SANTOS

O EU LÍRICO EM CHICO BUARQUE: DA SUBMISSÃO À TRANSGRESSÃO E


INCIDÊNCIA DE MÚLTIPLOS ASPECTOS DO FEMININO

Dissertação de Mestrado em Estudos


Literários apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Letras e Linguística, da
Faculdade de Letras, da Universidade
Federal de Goiás, como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em
estudos Literários.
Área de Concentração: Estudos Literários
Orientador: Dr. Jorge Alves Santana

Goiânia
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
GPT/BC/UFG

Santos, Maria Aparecida de Assis Teles.


S237e O eu lírico em Chico Buarque [manuscrito] : da
submissão à transgressão e a incidência de múltiplos
aspectos do feminino / Maria Aparecida de Assis Teles
Santos. - 2012
167 f.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Alves Santana.


Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás,
Faculdade de Letras, 2012.
Bibliografia.

1. Literatura brasileira. 2. Buarque, Chico, 1944 –


Música. 3. Feminino – Gênero – Discurso. I. Título.

CDU: 821.134.3(81):78
MARIA APARECIDA DE ASSIS TELES SANTOS

O EU LÍRICO EM CHICO BUARQUE, DA SUBMISSÃO À TRANSGRESSÃO E A


INCIDÊNCIA DE MÚLTIPLOS ASPECTOS DO FEMININO

Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras e


Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, para a
obtenção do grau de Mestra em Letras e Linguística, aprovada em _______ de
_______de _______, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes
professores:

_________________________________________________________
Prof. Dr. Jorge Alves Santana (Presidente ─ Letras/UFG)

_________________________________________________________
Profª. Drª. Sueli Maria de Oliveira Regino (Letras/UFG)

_________________________________________________________

Prof. Dr. Goiamérico Felício Carneiro dos Santos (Facomb/UFG)

_________________________________________________________
Profª. Drª. Leila Borges Dias Santos (Suplente ─ Letras/UFG)
AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas que fizeram parte da concepção dessa pesquisa, limitada,
porém, pelo espaço ou por formalidades acadêmicas, não me foi possível listá-las aqui, no
entanto, gostaria que soubessem da minha eterna gratidão.
Ao CNPq pelo apoio e incentivo, sem os quais, talvez não conseguisse desenvolver
este trabalho.
Ao corpo administrativo e aos docentes do Programa de Pós-Graduação em Letras e
Linguística da UFG, especialmente aos “anjos da guarda” Consuelo e Bruno, por sua
disponibilidade e atenção com que me trataram sempre. Dentre os docentes, obrigada Dr.
Sebastião Elias Milani, foi durante suas aulas, no curso de Semiótica que começou o
desenho desse trabalho.
À professora, Drª Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo, coordenadora do
Programa, que mesmo sem ter convivido comigo, deu-me um voto de confiança,
demonstrando que é possível dentro da Academia, coexistir atribuições, responsabilidades
e afetividade. Jamais esquecerei seu gesto de extrema humanidade.
Ao meu orientador, Dr. Jorge Alves Santana, que mais que meu mentor, exemplo
de intelectualidade aliada à sensibilidade, o meu profundo respeito e reverências, “Salve
Jorge”!
À minha família, mão que me guia e ombro que me ampara, obrigada!
A Deus, que tem me mostrado, ante todos os obstáculos e agruras pelos quais venho
passando, sua infinita misericórdia e uma força que não sabia existir em mim.
Ao compositor, cantor, dramaturgo e poeta Chico Buarque de Holanda, por sua
significativa contribuição à arte brasileira. Com a leitura de suas letras-poema, pude
desconstruir alguns estereótipos, percebendo que a reinvenção é tarefa do humano,
independente de ser masculino, ou feminino, antes disso, “gente”! Portanto, reinventar é
necessário e, reinventar, urgente: meu lugar na família, na sociedade, na cultura, no
mundo. Ouvi e li: “Vai, alegria/Que a vida, Maria/Não passa de um dia.../ Corre, Maria
Que a vida não espera/É uma primavera/Não podes perder...”, então entendi que “ficar a
toa na vida, vendo a banda passar” não me faria uma “moça diferente”, acreditando naquilo
que “O pescador me confirmou/Que um passarinho lhe cantou/Que vem aí bom tempo e
ainda,“que eu hei de ouvir cantar/ uma sabiá...”, então, “tô me guardando/pra quando o
carnaval chegar”. Chico, sendo assim, “Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi,
Deus lhe pague”!
Por fim, a todas as mulheres que resistem aos abusos da sociedade patriarcal,
vítimas ou militantes, da interminável luta por “liberar a vida lá onde ela é prisioneira”
(Deleuze & Guatarri, 1997, p.23).
Perdida
Na avenida
Canta seu enredo
Fora do carnaval
Perdeu a saia
Perdeu o emprego
Desfila natural

Esquinas
Mil buzinas
Imagina orquestras
Samba no chafariz
Viva a folia
A dor não presta
Felicidade, sim

O sol ensolará a estrada dela


A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas

Bambeia
Cambaleia
É dura na queda
Custa a cair em si
Largou a família
Bebeu veneno
E vai morrer de rir

Vagueia
Devaneia
Já apanhou à beça
Mas para quem sabe olhar
A flor também é
Ferida aberta
E não se vê chorar

O sol ensolará e estrada dela


A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas

(Dura na Queda, Chico Buarque de Holanda)


RESUMO

Essa pesquisa, configurada como dissertação de Mestrado em Letras e Linguística, na área


de estudos Literários, intitulada “O eu lírico em Chico Buarque: da submissão à
transgressão e a incidência de múltiplos aspectos do feminino”, aborda as representações
do feminino em canções de Chico Buarque. Buscou-se por meio de análise de vinte e cinco
canções do cancioneiro buarqueano, construir a trajetória delineada pela figura feminina,
instituída pelo discurso masculino, mesmo quando essa voz é modulada como feminina.
Para a realização de tal intento, fez-se necessária uma incursão em várias áreas do
conhecimento, tais como: a Teoria da Literatura, Sociologia, Filosofia, Análise de
Discurso, Psicologia e Psicanálise, Antropologia e dos Estudos multiculturalistas,
destacando aí, os estudos de gênero incluindo neles, a teoria Queer. Antes de traçar o
percurso discursivo, a fim de se compreender a problemática do feminino na lírica
buarqueana, preocupou-se em apontar o status literário em composições do compositor
mencionado, apresentando diálogos entre poesia e música. De grande relevância também,
foi compreender como Chico Buarque de Holanda se insere no contexto da pós-
modernidade.

PALAVRAS-CHAVE: literatura, música, gênero, feminino, discursos.


ABSTRACT

This search, it‟s configured as a dissertation in Letters and Linguistics, in the field of
literary studies, entitled "The speaker in Chico Buarque: the submission to the
transgression and the incidences of multiple aspects of the feminine” discusses the female
representations in songs by Chico Buarque. Sought through analysis of twenty-five songs
on the buarqueano Songbook, build the trajectory outlined by the female figure, established
by men's speech, even when this voice modulated as feminine. For the realization of such
intent, it was made necessary a foray into several fields of knowledge, such as: the theory
of literature, sociology, philosophy, discourse analysis, psychology and psychoanalysis,
anthropology and multiculturalists studies, highlighting the gender issues there including
them, the Queer theory. Before you draw the discursive route in order to understand the
problem of feminine buarqueana lyric, it was concerned to point out the literary status in
the composer's compositions mentioned, showing dialogues between poetry and music. Of
great importance was also to understand how Chico Buarque de Holanda fits into the
context of Postmodernist.

KEYWORDS: literature, music, gender, female, speeches.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 09

1 UM DIÁLOGO ENTRE POESIA E MÚSICA: A CANÇÃO DE CHICO BUARQUE E


A CONSTRUÇÃO DE UNIVERSOS SUBJETIVOS ...................................................... 18

1.1 A história da música no Brasil. ................................................................................... 19

1.2 Chico Buarque quem é você? ...................................................................................... 31

1.3 O Ecletismo buarqueano: um diálogo entre a Tradição e a Modernidade .................. 34

1.4 A duplicidade buarqueana: seresteiro/trovador e poeta/cantor....................................38

1.5 A ambivalência do caráter grotesco na lírica buarqueana ...........................................48

2 PÓS-MODERNIDADE: A VOZ DOS DESVALIDOS NO CANCIONEIRO


BUARQUEANO ............................................................................................................... 59

2.1 Chico Buarque: o lirismo mágico e a autorreferenciação poética ............................... 74

2.2 O espaço da tradição e da contradição.........................................................................76

2.3 As vivências e o drama de um cantor atormentado ..................................................... 87

3 AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM CANÇÕES BUARQUEANAS .......101

3.1 Feminismos: o processo de (des) construção de diferentes identidades ..................... 102

3.1.1 O Feminismo no Brasil ............................................................................................ 106

3.1.2 O Movimento Feminista contemporâneo ................................................................ 110

3.2 Chico Buarque: um „vedor‟ da mulher .......................................................................113

3. 3 Da submissão à transgressão: com quantas Carolinas se faz uma Geni? .................. 117

3.3.1 A mulher idealizada: soletro teu nome no escuro.................................................... 118

3.3.2 A mulher submissa: mirem-se no exemplo daquelas mulheres, mas não muito. ....123

3.3.3 A mulher libertária: essa moça tá diferente ............................................................. 130

3.3.4 A mulher liberada: parece que criou asa, é ave de arribação ..................................140

3.3.5 A mulher libertina: o meu corpo de criança não se cansa de querer ....................... 149

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 162

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 166


9

INTRODUÇÃO

Tudo que os homens escreveram sobre as mulheres


deve ser suspeito, pois são, a um tempo juiz e parte
(Poulain de la Barre)

Esta pesquisa consiste em uma tentativa de análise do eu-lírico feminino


presente em algumas canções de Chico Buarque de Holanda, buscando compreender suas
representações no cancioneiro desse artista, haja vista ser quase maioria consensual ouvir
que Chico é o compositor brasileiro, que mais ―entende a alma feminina‖. Essa opinião,
quase unânime, não deixa de ser sintomática, pois marca a concordância de homens e
mulheres, com os procedimentos de compreensão da mulher por meio de algumas
representações, que perpassam a literatura do ocidente ao oriente.
Muito se tem escrito sobre a obra de Chico Buarque, seja na música, no teatro
ou na literatura. O interesse dessa pesquisa recai sobre o cancioneiro desse artista,
especialmente nas letras de música, cujo eu lírico se apresenta como feminino, e não só,
mas também naquelas que apresentam um discurso masculino, podendo até sugerir
misoginia.
Para que fosse possível entender a construção da subjetividade desse eu-lírico
feminino, fez-se necessário delinear um percurso sócio-histórico-cultural, no qual se
discutisse a constituição de vários arquétipos que moldam tal construção e também, as
relações de gênero suscitadas pela análise de canções, que serviram de objeto desse estudo.
A fim de respaldar essa trajetória, buscou-se o apoio teórico em Mikhail
Bakhtin; Anthony Giddens e Judith Butler dentre outros que se fizeram imprescindíveis
para a fundamentação dessa pesquisa.
Esse trabalho passou por várias etapas, pode-se assim dizer, de ―germinação‖,
em que, às vezes, parecia fácil sua execução, noutras, um complexo desafio, quase que
uma utopia. Durante o período, em que cursava a disciplina de ―Semiótica‖, com o
professor Dr. Sebastião Milani, cumprindo créditos para o Mestrado, surgiu à oportunidade
de analisar, sob a luz de Greimás, a canção de Chico Buarque e Francis Hime, Trocando
em miúdos. Depois de tantas leituras, percebeu-se, que apesar de já haver ouvido aquela
canção por inúmeras vezes, fora a primeira em que essa pesquisadora havia se deparado
com a profundidade daquela letra-poema. E assim, como em um insigth, compreendeu-se
10

que aquela voz masculina, portadora de um discurso machista, parecia destituir sua
interlocutora (uma mulher, acredita-se) de qualquer acesso aos bens culturais, parecendo
que para a mesma apenas interessava o lado material dos bens divididos naquela situação,
conforme podem ilustrar os versos a seguir:

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim


Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim?
O resto é seu
(...)
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
(...)
Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu (...)

(Holanda, Chico Buarque. Trocando em miúdos in: Chico Buarque, 1978,


Polygram/ Philips).

Pode-se inferir que ―o disco do Pixinguinha‖, ―o Neruda‖ como representações


de bens culturais e de valores artísticos pertenciam ao eu-lírico masculino, e o ―resto‖, ou
seja, o que sobrou do que se gastou ou usou caberia a ela. A aliança como símbolo da
união que já não há, parece já na possuir tal importância, assumindo outro valor, o do bem
material, podendo ser empenhada ou derretida. O mesmo acontece com ―a medida do
Bonfim‖, artefato que, conforme a crença popular destina-se à realização de desejos,
portanto, sem nenhuma utilidade para o eu-lírico masculino naquela situação.
Além disso, aquela mulher também não seria capaz de sobreviver por seus
méritos, necessitando sempre das benesses masculinas, como por exemplo, ―aceite uma
ajuda do seu futuro amor/ pro aluguel‖ (Trocando em miúdos, 1978).
Diante disso, pensou-se em discutir as representações do feminino em algumas
canções da obra musical de Chico Buarque de Holanda levantando este problema: se Chico
Buarque é considerado o porta-voz da mulher, essa mulher fala ou é falada?
Para tal questionamento, estabeleceu-se a seguinte hipótese: esses discursos são
construídos a partir de contextos sócio-históricos, em que a mulher, ora se cala, ora se
rebela, portanto, determinados pela conjuntura de normas que regem a sociedade. ―Essa
palavra presa na garganta‖ (Holanda, C. Buarque, Cálice in: Chico Buarque, Polygram/
11

Philips, 1978), em muitas vezes é autorizada, em outras, interditada. Ao longo dessa


pesquisa, em algumas canções de Chico Buarque, nas ocasiões em que um eu-lírico
feminino se manifesta, foi necessário à pesquisadora confrontar situações de permissão e
de interdição da voz feminina, buscando responder à pergunta inicial.
A partir daí, delineou-se como objetivo demonstrar como essa voz dita
feminina reproduz os discursos socialmente construídos a seu respeito, como outorga um
sujeito-outro, biologicamente distinto do seu a falar por si.
Dos muitos trabalhos que compõem a fortuna crítica de Chico Buarque citam-
se os estudos de Regina Zappa, autora de Chico Buarque: perfis do Rio e Paratodos; de
Maria Helena Sansão Fontes, Sem fantasia: masculino feminino em Chico Buarque; de
Felipe Taborda, A imagem do som em Chico Buarque: 80 artistas contemporâneos; Almir
Chediak, Songbook ─ Chico Buarque; de Lígia Vieira César, Poesia e política nas canções
de Bob Dylan e Chico Buarque; de Humberto Werneck, Chico Buarque, letra e música; de
Gilberto de Carvalho, Análise poético-musical; de Anazildo Vasconcelos da Silva, A
poética e a nova poética de Chico Buarque; de Luciana Eleonora de Freitas Calado, Chico
Buarque: um moderno trovador; de Sílvia Urich e Roberto Echepare, Chico Buarque; de
Adélia Bezerra de Meneses, Figuras do feminino na canção de Chico Buarque, Desenho
mágico: poesia e política em Chico Buarque e também, o número especial de Literatura
comparada sobre Chico Buarque, promovido pela Editora Abril; de Wagner Homem,
História de canções: Chico Buarque; Rinaldo Fernandes, Chico Buarque do Brasil. Além
disso, vários trabalhos acadêmicos, artigos, monografias, dissertações e teses foram
desenvolvidos tendo como mote a obra lírico-musical de Chico Buarque de Holanda.
Conhece-se que todo trabalho organizado supõe a escolha de um método
científico que lhe possibilite delinear um raciocínio no processo da pesquisa. A
investigação científica depende de um ―conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos‖
(Gil, 1999, p.26) para que seus objetivos sejam atingidos. Método científico é o conjunto
de processos ou operações mentais que se devem empregar na investigação. É a linha de
raciocínio adotada no processo de pesquisa. Os métodos que fornecem as bases lógicas à
investigação são: dedutivo, indutivo, hipotético-dedutivo, dialético e fenomenológico
(GIL, 1999; LAKATOS; MARCONI, 1993).
Para a configuração dessa pesquisa, não se optou por um método específico, já que,
considerou-se Chico Buarque de Holanda como uma figura que transita entre a tradição e a
pós-modernidade. Ele se relaciona com a tradição literária brasileira, mantendo um diálogo
12

frutífero com a literatura, seja com a utilização de recursos estilísticos comumente


pertencentes ao discurso poético para construir suas canções, como também na sua criação
teatral ou como romancista. Nesse diálogo em que o artista mantém com a literatura pode-
se notar o extremo cuidado, o apuro técnico, o trabalho poético minucioso que o
compositor desenvolve para elaborar suas composições. A inserção de Chico Buarque na
pós-modernidade é aqui defendida por acreditar-se aqui que sua obra poética, ao
redimensionar a problemática humano-existencial, exprime mais que uma consciência de
transição, uma vez que o discurso das minorias e das questões que envolvem o sujeito e
suas identidades, presentes em seu cancioneiro, está nitidamente associado aos tempos pós-
modernos.
Sabe-se que as minorias marginalizadas, os excluídos socialmente, são
temáticas presentes na obra de Chico Buarque desde o começo de sua carreira musical. Em
um dado momento, o cancionista voltou seu olhar inclusivo para o outro – a mulher, o
pivete, o operário, o mendigo, o malandro, por exemplo, estes posicionados do lado menos
privilegiado dos opostos binários – e hoje em sua poética há uma reelaboração desse olhar,
abrindo-se a novas possibilidades para inclusão do outro, como diferente. Em Ode aos
ratos isso pode ser exemplificado:

Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética
Proliferação
Lúbrico, libidinoso
Transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão
(...)
Saqueador
Da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão (,,,)

(Ode aos ratos, Chico Buarque de Holanda in: Carioca, 2006,


Biscoito Fino) ·.

Chico Buarque privilegia em suas canções o espaço urbano. É para este locus
que o poeta volta seu olhar captando o que é latente em termos de mudanças sociais e
culturais, passando, assim, a atingir o conjunto de sua obra. É nesse espaço também que se
13

pode notar a sensibilidade do poeta ao traduzir uma visível percepção do ser no mundo, do
outro inserido num tempo/espaço determinado. Para Octávio Paz (2006, p. 102), ―descobrir
a imagem do mundo no que emerge como fragmento ou dispersão, perceber no uno o
outro, será devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia:
procura dos outros, descoberta da outridade‖. Em Ode aos ratos, o ―Rato de rua/ aborígine
do lodo [...] saqueador da metrópole‖ é, para o eu-lírico, ―um semelhante‖, ―filho de Deus,
[seu] irmão‖.
As letras das canções nos permitem refletir não somente quanto aos sujeitos e
suas identidades, mas também quanto ao outro como possibilidade de diferença,
considerando ainda, como trata Woodward (2000), que identidade e diferença estão em
estreita conexão com as relações de poder: o poder para definir quem é incluído e quem é
excluído.
Por isso, a pesquisadora resolveu-se utilizar ora, o método hipotético
dedutivo , ora, o dialético2. Justifica-se essa escolha, por acreditar que na era caótica em
1

que o homem está mergulhado, o indeterminismo e as incertezas parecem por em xeque o


prestígio dos métodos científicos. Mesmo reconhecendo a importância da ciência, se
percebe que, atualmente, ela não se constitui como fruto de um roteiro de criação
totalmente previsível. Portanto, compreendeu-se que, no contexto contemporâneo repleto
de conturbações e desafios, não é possível que uma única forma de raciocínio consiga
avalizar o intricado mundo das investigações científicas. Daí, a opção dessa pesquisadora
em empregar métodos, e não um método especificamente, para que sejam ampliadas as
possibilidades de análise e obtenção de respostas para o problema proposto nessa pesquisa.
Essa dissertação optou pela pesquisa aplicada, utilizando-se de fontes
bibliográficas, tanto no suporte impresso, quanto virtual, tanto em teses, dissertações,
artigos e livros. Escolheu-se a abordagem de cunho qualitativo, do tipo bibliográfico.
Segundo PÁDUA (2004), ―A pesquisa bibliográfica é fundamentada nos conhecimentos de

1
Proposto por Popper consiste na adoção da seguinte linha de raciocínio: ―quando os conhecimentos
disponíveis sobre determinado assunto são insuficientes para a explicação de um fenômeno, surge o
problema. Para tentar explicar a dificuldades expressas no problema, são formuladas conjecturas ou
hipóteses. Das hipóteses formuladas, deduzem-se consequências que deverão ser testadas ou falseadas.
Falsear significa tornar falsas as consequências deduzidas das hipóteses. Enquanto no método dedutivo se
procura a todo custo confirmar a hipótese, no método hipotético-dedutivo, ao contrário, procuram-se
evidências empíricas para derrubá-la‖ (GIL, 1999, p.30).
2
Fundamenta-se na dialética proposta por Hegel, na qual as contradições se transcendem dando origem a
novas contradições que passam a requerer solução. É um método de interpretação dinâmica e totalizante da
realidade. Considera que os fatos não podem ser considerados fora de um contexto social, político,
econômico, etc. Empregado em pesquisa qualitativa (GIL, 1999; LAKATOS; MARCONI, 1993).
14

biblioteconomia, documentação e bibliografia; sua finalidade é colocar o pesquisador em


contato com o que já se produziu a respeito do seu tema de pesquisa.‖. A
metodologia da pesquisa bibliográfica considera a leitura como seu material primordial,
por isso utilizou-se fichamentos, resenhas e resumos das obras lidas para obtenção do
apoio teórico necessário para o desenvolvimento desse trabalho.
As fontes foram conseguidas por meio de consultas a acervo particular,
bibliotecas virtuais, sites de pesquisas, revistas e periódicos das áreas, discografia,
documentos, dentre outros.
Esse estudo segue a seguinte organização: no Capítulo 1, intitulado: Um
diálogo ente poesia e música: a canção de Chico Buarque e a construção de universos
subjetivos, no qual procurou investigar o status poético da letra de música, especialmente,
se Chico Buarque pode ser visto como um poeta da contemporaneidade. Para tanto se fez
necessário construir um percurso que possibilitasse compreender a poesia retomando suas
origens e também, uma breve história da música no Brasil a fim de se reconhecer a relação
com a canção de música popular, pela aproximação desta das camadas menos privilegiadas
economicamente da população. Tal aproximação se deve tanto ao alcance dos meios de
comunicação modernos, e no caso específico de Chico Buarque, na sua preocupação, nas
suas construções musicais, em comungar a música com a poesia, o que configura como
grande contribuição para o cenário artístico-cultural brasileiro.
No mesmo capítulo, pergunta-se Chico Buarque, quem é você? a fim de
elucidar as faces desse artista, que se denomina seresteiro/poeta/ /cantor. A esse propósito,
Afrânio Coutinho faz a seguinte declaração acerca daquele artista: ―A meu ver o maior
poeta da nova geração é Chico Buarque de Holanda. É preciso não esquecer que sua
música veicula ou se associa a uma das mais altas e requintadas formas de poesia lírica.‖
(COUTINHO. Correio da Manhã, 05/01/1972). Ainda no interior desse mesmo capítulo,
tentou-se compreender como ocorre O ecletismo buarqueano: um diálogo entre a tradição,
a modernidade e a pós-modernidade, atentando-se para a presença de elementos da poética
tradicional como vestígios da lírica trovadoresca em canções buarqueanas, convivendo
lado a lado com marcas da poética moderna, como o fato de Chico Buarque extrair a
poesia de onde menos se espera: do cotidiano humilde de pessoas comuns, trabalhadoras
ou desvalidas.Elencaram-se algumas ―novidades‖ incorporadas por Chico no seu fazer
poético, dentre as quais a presença do grotesco, da ambiguidade (pistas e despistamentos),
da valorização das manifestações populares como o carnaval (máscara e mascaramento) e
15

da antropofagia, assim como bem apregoava o Modernismo de 1922. Ao retirar a poesia


deste meio não elevado, Chico Buarque se afasta da matéria da poesia tradicional na qual o
poético significa o nobre e o raro. Para esse artista, a poesia está no chão, no mais humilde
cotidiano em suas letras-poema. Outra marca da modernidade encontrada em letras-poema
de Chico Buarque, é o elemento prosaico (produção poética moderna), retratando as
experiências do homem que está na grande cidade, inserido no seu espaço, em seu
cotidiano, em suas ruas, em suas multidões de anônimos, sofrendo as degradações a que o
mundo moderno lhe sujeita, como pode ser visto nos versos de Pedro Pedreiro, em que o
compositor faz uma crítica à esperança, deixando o indivíduo no mundo real onde não há
expectativas de melhora:

[...] Mas pra que sonhar


Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando [...]

(Buarque, C. Pedro pedreiro In Chico Buarque de Hollanda, RGE, 1965).

Chico também voltará a falar na desesperança em Bom Conselho (1975),


canção que inverte o ditado popular “Quem espera sempre alcança” para ―Quem espera
nunca alcança‖.
Ainda em Pedro Pedreiro, Chico Buarque expõe de forma emblemática o destino
de uma pessoa humilde de uma grande cidade, mostrando a condição de incerteza da vida
moderna. Percebe-se que o elemento social presente na canção não é tomado como um
simples engajamento político, mas, ao contrário, a referência ao social revela algo de
essencial, algo que fundamenta sua qualidade poética. A esse respeito Adorno (1980, p.
193) assevera:

[Essa referência] não deve levar embora da obra de arte, mas levar ao mais fundo
dela. (...), pois o conteúdo de um poema não é a mera expressão de emoções e
experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando,
exatamente em virtude da especificação do seu tomar forma estético, adquirem
participação no universal.

Outros elementos da poesia são encontrados nas canções analisadas, tais como:
a polifonia e a intertextualidade.
16

No capítulo 2, intitulado‖ Pós-modernidade: a inserção dos desvalidos no


cancioneiro buarqueano‖, discutiu-se os conceitos de Pós-moderno, identidades, cultura,
centro, periferia e fronteira, referentes à condição do contexto sociocultural
contemporâneo, a fim de se construir uma possibilidade de reconhecer o compositor Chico
Buarque de Holanda como ―o dono da voz‖ dos desvalidos, caracterizado por uma poesia
fragmentada, descontínua, em que bem ilustra as concepções do sujeito não fixo, a que se
refere Hall, formado a partir de ―entre lugares‖, conforme Bhabha, bem como, das
denominações de centro e margem, termos referidos por Hutcheon. “Chico Buarque: o
lirismo mágico e a autorreferenciação poética‖ é outra seção, ainda dentro do capítulo já
referenciado. Neste momento, abordou-se o recurso usado pelo poeta que consiste em fazer
do ato da criação a matéria do poema. Também se buscou compreender o conceito de
lirismo mágico, ou mítico mágico, elemento da poesia contida nas canções dos primeiros
discos de Chico Buarque, e também, entender as vivências e o drama de um cantor
atormentado.
O capítulo 3, ―As representações do feminino em canções buarqueanas‖,
último parte desse estudo, preocupou-se em analisar o corpus formado a partir de vinte e
cinco canções de Chico Buarque, divididas em cinco grupos semânticos, para a abordagem
dos seguintes arquétipos: a mulher idealizada; a mulher submissa; a mulher libertária; a
mulher liberada e a mulher libertina. São elas: Ela e sua janela; Carolina; Januária,
Cecília e Abandono; Com açúcar, com afeto; Mulheres de Atenas; A mais bonita, Atrás da
porta e Meu namorado; Olhos nos olhos; Essa moça tá diferente; Cala a boca Bárbara,
Morena de Angola e Angélica; História de uma gata; Murro em ponta de faca; A Rosa ; A
violeira, e O meu amor; Qualquer amor; tango de Nancy; Bárbara, Mar e lua e Geni e o
Zepellim.
Tentou-se compreender como as relações entre os gêneros e as ideologias que
as embasam, expressas nos discursos – no caso, nas letras das composições musicais – são
assim reveladas. Para dar maior consistência a discussão dos gêneros, conta-se com o
aporte da teoria Queer, a fim de compreender os conflitos identitários causados pelo
binarismo masculino/feminino.
Não há, por parte dessa pesquisadora, a pretensão de esgotar as discussões,
muito menos o tema concernente ao caráter lírico de letras de canções de Chico Buarque,
menos ainda, reduzir a obra musical desse artista a um viés apenas, o das letras compostas
na voz feminina. Reconhece-se que esse estudo é ―um a mais‖ no vasto repertório de
17

trabalhos existentes sobre tais temas, embora com suas variações. Tampouco se espera que
as ponderações, ora feitas, possam trazer acomodação aos sujeitos, seja feminino, seja
masculino. O que se propõe com essa pesquisa é uma reflexão que oportunize a mulher o
pensar de forma crítica em relação às questões de gênero, de como ela foi e ainda está
sendo vista na sociedade, em conjunto com as suas noções de subjetividade. Daí partiu-se
do princípio de que ―toda leitura de ficção é uma forma pessoal e subjetiva de reescritura
do texto literário‖ (COMPAGNON, 2001, p. 52), o que vai transformar cada reescritura em
uma leitura ou interpretação deste mesmo texto. Assim, reescreveu-os de forma a
privilegiar o papel da mulher e suas relações com os contrapontos masculinos nos poemas-
canções que se analisou.

Acesso
18

1 UM DIÁLOGO ENTRE POESIA E MÚSICA: A CANÇÃO DE CHICO


BUARQUE E A CONSTRUÇÃO DE UNIVERSOS SUBJETIVOS

A relação entre música e poesia vem desde a Idade Antiga, como atesta a
cultura grega. Poesia e música, entre os gregos eram quase que inseparáveis e, segundo a
tradição, ambas nasceram juntas, sendo a poesia para ser cantada.
Conforme Rodrigues (1990, p. 28), ―a grande poesia medieval quase que foi
exclusivamente concebida para o canto. Na Idade Média, trovador e menestrel eram tidos
como sinônimos de poeta, provando que a poesia foi, por muito tempo designada para ser
cantada e ouvida‖. Somente na Idade Moderna, com o advento da imprensa e,
consequentemente com o domínio da escrita, a distinção entre música e poesia se tornou
mais aparente.
A partir do século XVI, a lírica foi abdicando do canto para se dedicar, cada
vez mais, à leitura silenciosa. No entanto, tal ruptura nunca aconteceu completamente,
aliás, é essa relação à característica mais forte da poesia lírica, por se preocupar com a
qualidade sonora das palavras, organizadas em sucessões rítmicas melodiosas e sugestivas.
Décio Pignatari (1997, p.9) afirmou que ―a poesia parece estar mais do lado da música e
das artes plásticas e visuais do que da literatura‖. No mesmo texto (p.9), o poeta ainda diz
que a poesia seria ―um corpo estranho nas artes da palavra‖. Tal afirmação respalda a
estreita relação entre a música e a poesia, na medida em que se percebe uma maior
afinidade entre elas do que no meio literário propriamente dito. Assim, pode-se notar que
as canções vêm sendo objeto de estudo nos meios acadêmicos pelo fato de algumas delas
apresentarem características encontradas em textos vistos como literários. Atualmente, já
há um consenso entre vários escritores e críticos de que letras de música podem conter
valor poético, podendo ser abordadas conforme os princípios da análise literária.
Contudo, mesmo com o poema se apartando da música, ainda conservaria
traços daquela antiga união. Se a separação de poetas e músicos dividiu a história de um
gênero e outro, a poesia não abandonou de vez a música, tanto quanto a música não
abandonou de vez a poesia. Isso pode ser demonstrado pela vigência de algumas formas
poéticas, como o Madrigal, o Rondó, a Balada e a Cantiga, aludindo diretamente às formas
musicais.
19

No Ocidente, a música erudita representada por nomes como os de Bach,


Beethoven, Mahler e Mozart, dentre outros, dispensara a palavra, entretanto a ópera
preservou traços da antiga união entre a música e a poesia, visto que os libretos
correspondem a textos poéticos nos quais o compositor escreve músicas. A opereta, uma
variante da ópera que obteve significativo sucesso no século XIX, veio reforçar ainda mais
a comunhão da palavra com a música. Contemporâneo a isso é o surgimento na Alemanha
de um tipo de composição denominado ―lied‖, que consiste numa pequena peça poético-
musical, cuja execução é feita a partir da voz e do piano. A esse respeito, afirma
MEDAGLIA (1986, p.83)

Schubert, por exemplo, compositor cuja obra mais importante são os Lieder
para canto e piano, usou textos de Goethe e Schiller ao invés de subliteratura. A
mesma coisa ocorre com Bach, que em suas cantatas de câmara recorreu a
textos bíblicos, com Hugo Wolf (textos de Michelangelo, Moerike) e com Ravel
(textos de Ronsard e Villon). As condições de contato humano oferecidas pelas
manifestações musicais de câmara exigem do compositor não só um tratamento
musical mais apurado e detalhístico, mas também um maior cuidado na escolha
dos textos, pois o seu conteúdo, dada essa estreita relação intérprete-público, se
evidencia muito mais.

A música popular é, indubitavelmente, uma das mais altas formas de


expressão cultural no Brasil. Devido a condições históricas e sociais, a literatura não pode
alcançar de maneira expressiva toda a população brasileira, fato este que permitiu à música
popular, mesmo com suas limitações, tomar para si algumas incumbências que pertenciam
à literatura. Porém, tal empreitada não foi das mais fáceis, já que a música teria a árdua
tarefa de conter  ainda que driblando a censura  principalmente o preconceito
intelectual elitista, uma ampla e intricada realidade cultural de nosso país.

1.1 A história da música no Brasil

Durante os dois primeiros séculos de colonização, os tipos de música ouvidos no Brasil eram
os cantos das danças rituais dos indígenas (acompanhadas por instrumentos de sopro como
flautas, trombetas, maracás, apitos e bate-pés); os batuques africanos (a base de instrumentos
de percussão como tambores, atabaques, marimbas e ganzás) e as cantigas dos colonizadores
europeus – representadas por gêneros musicais do tempo de formação dos primeiros burgos
medievais dos séculos XII e XIV, conhecidos como romances, xácaras, lundus e serrarias.
20

Segundo o historiador José Ramos Tinhorão (1997), o samba e a marcha surgiram e fixaram-se
no Brasil num período de sessenta anos, que vai de 1870 a 1930.
Até então, o que a elite brasileira ouvia era a música operística; as polcas,
shottishes e quadrilhas, eram gêneros apreciados pelas camadas médias e ―populares‖ e o
batuque, de origem africana, era exclusivo dos negros que formavam o grosso da camada mais
baixa. (TINHORÃO, 1997, p.17). A música brasileira começou a se formar devido justamente
à interferência desses elementos musicais. O carnaval, ainda muito parecido com o entrudo,
não levava em conta a música, mas a brincadeira de molhar os passantes com seringas d‘água,
não possuindo nenhum tipo de organização musical.
Uma fonte também muito importante para a música popular, constatada por Mário
de Andrade, é a feitiçaria, que unia em suas cerimônias o canto e a dança. Nos cultos de direta
origem africana (Candomblé, Macumba, Xangô), consegue-se notar sua influência na música
popular em formação no Brasil.
No entanto, os negros só concorreram de modo decisivo para o desenvolvimento
da música brasileira a partir do momento em que se tornaram mão de obra livre. O papel
produtivo legalizado socialmente dera ao negro um status que ele até então não possuía,
mesmo tendo contribuído significativamente enquanto escravo para a economia do país.
O aparecimento da primeira marcha carnavalesca deu-se em fins do século XIX,
com a composição ―Ó Abre Alas‖ da Maestrina Chiquinha Gonzaga, inspirada, de acordo com
Tinhorão (s/d, p. 119), ―na cadência que os negros imprimiam à passeata enquanto desfilavam
cantando suas músicas, (...) ao som de instrumentos de percussão‖; enquanto que, entre a
população branca, grupos de portugueses ainda saíam às ruas malhando bumbos no Zé-
Pereira. Naquela época, a palavra samba era usada, uma espécie de dança de umbigada, de
origem africana, com ritmo marcado por palmas, chocalhos e outros instrumentos de percussão
e às vezes acompanhados por violão e cavaquinho.
A criação do samba, como gênero musical, aconteceu de forma peculiar e está
ligada ao contexto social do início do século XX. A sociedade do Rio de Janeiro, o maior
centro cultural do país, era constituída de duas classes sociais bem distintas: de um lado
estavam os aristocratas e a classe média em franca expansão social e cultural, em decorrência
do período de industrialização pelo qual passava o país; de outro, vivendo na parte mais antiga
da cidade, amontoados em cortiços, estavam os portuários, aventureiros, escravos recém-
libertos, enfim ―uma baixa classe média‖ (TINHORÃO, s/d, p.120).
Ao invés dos saraus, nos quais se ouvia a modinha e a polca, o que se escutava
na periferia da cidade era ―um tipo de música particularmente tocada por baianos que viviam
21

no Rio de Janeiro, e que se constituía de um estribilho cantado, ao ritmo de palmas e violas ao


qual se juntava um improviso cantado pelo participante de maior talento‖. (CESAR, 1993,
p.62) Essas reuniões, como as que patrocinava a baiana Tia Ciata, doceira e mãe de santo,
denominavam-se ―partideiros‖, isto é, de gente que se dedicava ao ―partido alto‖ (a expressão
provém da alta dignidade desse samba, cultivada por minorias negras). Foi na casa de Tia
Ciata, na presença dos moradores desta parte da cidade aos quais se juntavam foliões, mestiços
e músicos como Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Heitor dos Prazeres, que nasceu a
primeira música gravada como ―samba‖ – informação que constava no selo do disco – ―Pelo
Telefone‖, em 1917, tendo Ernesto dos Santos, o Donga, registrado a canção como de sua
autoria, o que foi contestado por muitos. O samba teria sido produto de uma roda de partido-
alto com as participações de Mauro de Almeida (jornalista), de Sinhô, entre outros.
A casa de Tia Ciata, portanto, pode representar metonimicamente a estrutura social
do Brasil daquele tempo em que o crescimento e aceitação da cultura popular dependiam de
uma articulação entre o popular e o erudito (neste caso, representado pela elite) para sua
sobrevivência e crescimento enquanto manifestação legítima de uma parcela do povo –
posteriormente transformada em expressão de todo um país.
Nas décadas de 1920 e 1930, os compositores brasileiros já dispunham além do
teatro e do carnaval, de alguns meios oferecidos pela indústria moderna, como o rádio, os
discos, o cinema para a divulgação de sua arte.

Na década de 30, especialmente, a música popular, ou melhor, o samba, já não é


uma atividade característica de ex-escravos ou de negros e mestiços em
ascensão social. Começam a surgir os primeiros compositores brancos de
importância como, Noel Rosa, que chegou a ser acadêmico de Medicina, e Ari
Barroso, estudante de Direito, formado em 1930 na mesma turma de Mário
Reis, sendo que este, no dizer de José Ramos Tinhorão, era ―moço de sociedade,
acadêmico de Direito e jogador de tênis‖. (...) surge também Orestes Barbosa,
que como moleque de rua foi amigo de João da Baiana, mas que tinha uma
formação literária mais pretensiosa, pois, adolescente, publica Penumbra
Sagrada, livro de versos que mereceu elogios de Agripino Grieco. Orestes,
aquele do ―e tu pisavas os astros distraída‖ – verso que Manuel Bandeira achava
dos mais belos de nossa língua, além de jornalista tinha pretensões a uma
carreira literária, chegando a candidatar-se à Academia Brasileira de Letras.
(SANT‘ANNA: 1978, p.187)

Em meados da década de 50, em decorrência da evolução natural do samba-canção,


começou a aparecer nos redutos da classe média carioca uma nova batida rítmica, descontínua,
que já vinha sendo usada nos Estados Unidos desde os anos 40; a batida do samba, outrora
uma tentativa de reprodução do ritmo dos bumbos e tambores, passa a privilegiar as batidas do
22

tamborim, sob a inegável influência do Be-bop (concepção jazzística posterior ao Swing). Em


1954, Tom Jobim e Billy Blanco, num trabalho audacioso, já haviam preconizado o caminho
da Bossa Nova com a ―Sinfonia do Rio de Janeiro‖, mas é só a partir de 1958 que, em termos
musicais, a Bossa Nova rompe com a herança do samba ―tradicional‖, trazendo uma renovação
à música popular brasileira.
É recorrente a ênfase no papel da música popular ao colaborar com a proposta
Modernista de atualização da cultura brasileira, especialmente da sua linguagem,
abandonando a linguagem erudita, tida como a apropriada para o discurso artístico. A
música popular brasileira conseguiu grande parte de seu êxito e de penetração junto ao
povo, graças aos meios modernos de comunicação.
Uma aproximação entre a música e a literatura pode ser reconhecida na obra
musical de Ari Barroso e a poesia ufanista de Cassiano Ricardo, principalmente em Martim
Cererê. No entanto, é na década de 1950 que o encontro entre o texto poético e a música
acontecerá propiciado pela figura de Vinícius de Moraes, artista que se transfere da poesia
para a música. Vinícius era diplomata de carreira, mas teve formação, originalmente
literária, estudou na Inglaterra e escreveu a Quinta Elegia com versos de vanguarda, em
que imitava os telhados das casas do bairro londrino de Chelsea, misturando versos em
inglês e português. Esse poeta escreveu Operário em Construção, utilizando a métrica e
dicções populares. A obra desse artista tanto pode pertencer aos estudos literários quanto
aos da música popular, o que pode ser comprovado quando Vinícius, em seu disco Canção
do amor demais, assinou suas canções como ―Música‖ de Antônio Carlos Jobim e ―Poesia‖
de Vinícius de Moraes. Dessa maneira, Vinícius parece confirmar que aquelas letras de
canções eram, de fato, poemas, o que parecia inconcebível para parte da sociedade elitista
da época (1968), um diplomata e poeta envolver-se com música popular.
Na poética de Vinícius de Moraes encontram-se elementos como o tom
despojado carioca  abolindo a oratória utilizada pela música popular anterior, retomando
assim o traço coloquial e prosaico para a música popular  a economia popular; os versos
reduzidos, as ocorrências sonoras, todos empregados pela Bossa Nova. Vinícius sempre
foi visto como o poeta da paixão, pois deixava em seus versos forte carga de erotismo e
sensualidade, retomando assim um lirismo clássico por meio desses temas. A trajetória
lírica desse poeta se fez a partir do diálogo travado entre a tradição clássica e o
Romantismo, em que poetas renomados cantaram o amor, a paixão e a mulher, entre
outros. Carmona (2005, p. 11) afirma, a respeito da presença lírica retomada nos versos de
23

Vinícius de Moraes: ―talvez seja esta a marca presente na lírica de Vinícius: o


reconhecimento de seu lugar no tempo na medida em que tem consciência de um caminho
poético já percorrido e que deve ser revisitado e, à sua maneira, reestruturado, agregando
um novo trecho‖.
Letristas como Ronaldo Bôscoli, Johny Alf, Tom Jobim e Carlinhos Lira
sofreram forte influência de Vinícius, pois suas canções serviram de incentivo para novos
compositores, que abraçaram a carreira artística com muito mais dignidade. Diante disso, a
música popular brasileira eleva seu prestígio.

Não há dúvida de que a simples presença de um poeta largamente respeitado


contribui para que a música popular passasse a ser mais levada em conta no
cenário artístico tanto por parte dos produtores quanto por parte dos
consumidores. Vinícius é uma figura de transição muito importante, uma ponte
histórica, que consegue adaptar a música ao verso, traz nova sofisticação à arte
da canção, estimula a reação do público à poesia tocada e cantada, e fornece
modelos gerais de dicção e expressividade a serem imitados por outros letristas.
Ele consegue criar uma junção entre as esferas da música e da literatura dos
anos 60. Vinícius constrói um palco de comunicação músico-poético no Brasil
contemporâneo em cima do qual muitas outras figuras iriam, mais tarde, criar.
(PERRONE, 1988, p.28)

Ruy Castro, em seu livro Chega de Saudade, relata que João Gilberto declarava
que a poesia de Carlos Drummond de Andrade era sua favorita e que recitava trechos
inteiros das Cartas a um jovem poeta, do alemão Rainer Maria Rilke, cuja obra Manuel
Bandeira indicava como leitura obrigatória aos jovens poetas. Estes lhe indagavam a
respeito de como serem bons poetas e, consequentemente, escreverem poemas de
qualidade. Conforme Castro, ―Literatura era uma preocupação remota dos músicos,
inclusive cantores, e era inédito ouvir um deles citando escritores com tanto desembaraço‖
(CASTRO, 1990, p.138).
Afonso Romano de Sant‘Anna afirma que somente com a criação da Revista de
Música Popular Brasileira e a passagem de Vinícius de Moraes para a linha musical e com
o surgimento da Bossa Nova é que se observaria um vínculo mais sistemático entre música
popular e poesia no Brasil, no século XX:

O importante nessa revista é a aproximação entre a literatura e a música popular


através do veio jornalístico dos cronistas Rubem Braga, Paulo Mendes Campos,
Sérgio Porto e outros escritores como Millor Fernandes, Manuel Bandeira,
Onestaldo Penaforte, Vinícius de Moras e até textos antigos de Mário de
Andrade. Esses autores se reúnem com Ary Barroso, Nestor de Holanda,
Fernando Lobo, Haroldo Barbosa e outros como o jovem Hermínio Bello de
Carvalho, (...) (SANT‘ANNA, 1978, p.213)
24

No entanto, a posição da Bossa Nova não é hostil em relação a uma tradição viva,
porque foi inovadora em sua época. ―Assim, Noel Rosa, Assis Valente, Ari Barroso, Dorival
Caymmi, José Maria de Abreu e muitos outros são valorizados e, às vezes, retomados,
principalmente por João Gilberto.‖ (BRITO, 1974, p.22)
As inovações propostas pela Bossa Nova não abrangeriam apenas o campo da
interpretação, acompanhamento, linguagem instrumental, harmonização e ritmo; elas forjaram
a formação de um novo estilo composicional que incorporou todos os recursos musicais
conquistados, baseando-se numa temática literária do seu tempo. Suas composições eram
preponderantemente executadas por pequenos conjuntos e/ou mais comumente pelo do
intérprete e seu violão. Dessa configuração reduzida desenvolveu-se então uma técnica
composicional orientada para articulações mais sutis e de detalhe, assim como um vocabulário
apropriado e cotidiano ao seu ouvinte. De acordo com Rocha Brito,

os textos cantados não são valorizados apenas pelo que conteriam como
expressão de ideias, pensamentos, ou por obedecer o verso a uma forma
determinada. Incorpora-se a esses aspectos o valor musical portado pela palavra.
Os atributos psicológicos que surgem ao se cantar a sílaba, o vocábulo, são
considerados em sua totalidade. A palavra ganha assim um valor pelo que
representa como individualidade sonora. Quanto aos textos como veículos de
ideias, já se pronunciaram muitos dos integrantes da Bossa Nova contra as letras
de concepção ―tanguista‖: ao invés de versos de tipo ―radionovelesco‖, procura-
se reduzir as situações a seus dados essenciais através de uma expressão contida
e despojada. (BRITO, 1974, p.38).

No período de 1956 a 1960, durante o governo do presidente Juscelino


Kubitschek, manifestou-se um enorme desejo de modernização do país,
concomitantemente, suscitou-se também a mesma vontade de se modernizar a canção
brasileira. A televisão ocupará o espaço antes pertencente ao rádio, dando início ao plano
do monopólio de comunicação da sociedade brasileira. Naquele momento em que
fecundavam mudanças, expansões e experimentações, fazia-se oportuno buscarem-se
novas alternativas musicais para a expansão, ou até mesmo para a substituição dos gêneros
musicais vigentes no cenário artístico do país. Dentre os quais, destacavam-se a valsinha, o
samba-exaltação, o bolero e o samba-canção. Surge então a Bossa Nova
O termo Bossa Nova foi usado pela primeira vez no momento do lançamento
do disco de João Gilberto, intitulado ―Chega de saudade‖, inaugurando um novo jeito de
cantar, tocar compor e de se apresentar de jovens músicos oriundos da classe média alta.
Essa proposta inovadora para o meio musical buscava contestar o que entendiam por ―mau
25

gosto‖, referindo-se às músicas consagradas da Era do Rádio, que primavam pela


grandiloquência e pelo exagero vocal. Os ―bossanovistas‖ procuravam, no aspecto
melódico, harmonizar o samba e o jazz, refutando o uso dos acordes tradicionais e simples,
dando lugar aos acordes alterados em quantidade, chamados de dissonantes, além da
criação de novos dedilhados ou posições instrumentais, o que possibilitou o
enriquecimento e a incursão da melodia por tonalidades outras, distantes da original.
Também a estrutura rítmica desenvolveu-se de maneira diferenciada, deixando de ser
simétrica, recebendo estrutura própria e independente do canto. Segundo o maestro Júlio
MEDAGLIA (1978, p.78), o aparecimento dessas canções sugeria uma ―música voltada
para o detalhe, e para a elaboração mais refinada com base numa temática extraída do
próprio cotidiano: do humor, das aspirações espirituais e dos problemas da faixa social
onde ela tem origem‖. Assim, aparece uma música muito mais voltada à audição que ao
espetáculo, o que possibilitou que se percebesse melhor o compositor. Este podia naquele
momento cantar suas próprias canções, pois a proposta musical trazida pela Bossa Nova
privilegiava mais o autor que o intérprete, abrindo mão da potência vocal, tão cara à Era do
Rádio.
O início da Bossa Nova buscou na linguagem diária ―recursos para exprimir
poesia‖ (Aguiar, 1993, p. 29), estes já amplamente utilizados por Noel Rosa, Lamartine
Babo, Assis Valente e outros nomes da canção brasileira, o que havia sido percebido como
uma tendência na expressão poética de nossos modernistas. A Bossa Nova além da
proposta inovadora de sofisticação e de elaboração da música brasileira, também a
apresentou aos palcos internacionais, destacando-se Garota de Ipanema, que teve uma
versão gravada na voz prestigiada de Frank Sinatra. Apesar disso, a Bossa Nova resistiu
pouco mais de quatro anos e, vale ressaltar que nem todas as composições desse período
apresentavam qualidade melódica o cuidado na elaboração das letras. Exemplos disso são
O barquinho, de Ronaldo Bôscoli e Maria ninguém, de Carlinhos Lyra. Tais canções
usavam em suas composições temas aparentemente banais, fazendo uso de um sugestivo
jogo de palavras, configurando aquilo que denomina Affonso Romano de Sant‘Anna,
como período de ―águas mornas‖ da música popular brasileira (SANT‘ANNA, 1980).
Entretanto Maria Ninguém já traz em seus versos aquela que seria ma das temáticas mais
utilizadas por Chico Buarque no seu cancioneiro: o feminino e suas subjetividades.
Apresenta-se parte dessa música:
26

Pode ser que haja uma melhor


pode ser
pode ser que haja uma pior muito bem
mas igual a Maria que eu tenho
no mundo inteirinho igualzinha não tem
Maria ninguém
É Maria e é Maria meu bem
Se eu não sou João de nada
Maria que é minha é Maria ninguém

(Lyra, C. Maria ninguém in: Millennium, Universal Música, 2000).

Na década de 1960, a música constitui-se como um poderoso veículo de poesia.


A música popular brasileira promove um diálogo com o que há de mais peculiar na
tradição da arte moderna, utilizando-se em suas composições de recursos como a paródia, a
colagem textual e musical, a metalinguagem, dentre outros. A qualidade poética da MPB
se torna tão evidente que vários estudiosos da poesia brasileira chegam a dizer que se
quisessem estudar a poesia desta geração, não se poderiam deixar de lado os ―textos‖ de
compositores da MPB, como os de: Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil,
Capinam, Torquato Neto, dentre outros. Sendo assim, a MPB foi uma manifestação
artística que exerceu influência decisiva no meio cultural do país, tanto na linguagem
quanto no comportamento de amplos setores da juventude urbana.
No Brasil, especialmente a partir dessa década, graças aos aparatos
tecnológicos modernos, tais como o rádio, a televisão e o disco, a música, unida à poesia,
conseguiu alcançar, com mais vigor, as camadas mais heterogêneas da população. Isso foi
possível, considerando sua capacidade de circulação e poder atrativo ser bem maiores que
o da palavra escrita, simplesmente. E também, pelo número de leitores ainda ser
insuficiente, no Brasil. A televisão consolida-se por seu forte poder de comunicação,
criando programas como os musicais gravados no teatro da TV Record, que chegariam,
também, para reaquecer o espaço deixado pela Bossa Nova. Nesses programas, lançaram-
se os nomes daqueles que seriam os principais herdeiros da geração Bossa Nova: Chico
Buarque de Holanda e Caetano Veloso, que se viram encarregados de revitalizar a MPB. E,
em decorrência da valorização do compositor de música popular já citada anteriormente,
bem como da maior proximidade dele com o público, além da qualidade lírica de suas
composições, Caetano e Chico passaram a ser vistos como porta-vozes de um tempo e dos
dilemas e vivências de toda uma geração.
Ainda sobre a relação entre música e literatura e seu consequente surgimento
nos acontecimentos sociais, há que se considerar as afirmações de Sylvia Cyntrão (1999),
27

sobre o discurso poético e seu vínculo com a música. Segundo essa estudiosa, foi a partir
do Renascimento que a literatura se configurou como matéria autônoma, capaz de ser
apreendida pela crítica. Entretanto, a literatura chegou ao seu auge, como objeto de estudo
teórico, no século XX com os estruturalistas. No entanto, com a contribuição dos estudos
semiológicos houve consenso de que, na dinâmica do texto literário, uma obra não pode ser
apartada de seu contexto histórico e também não pode ser vista fora de uma perspectiva
diacrônica, portanto, é imprescindível correlacionar texto/homem/história. Sendo assim, o
texto passa a ser encarado em função de diferentes elementos que constituem um sistema
de conexões múltiplas ou mesmo numa perspectiva simbólica. Nesse aspecto, pode-se
entender o texto como um objeto de significação que apresenta uma organização interna
peculiar, ―objeto de comunicação, cujo sentido depende do contexto sócio-histórico em
que é localizado‖ (CYNTRÃO, 1999, p. 79).
Dessa forma, segundo o ponto de vista dos estudos semióticos, as canções
populares se tornaram objeto de discussão e de estudo no meio acadêmico, principalmente
a partir da década de 1970, período de grandes dificuldades para os brasileiros, que
lutavam por direitos, dentre os quais o de liberdade de expressão e de participação social.
É nesse cenário, então, que Chico Buarque se destaca, sendo reconhecido, por
seu talento, tanto pelo público quanto pela crítica. Notadamente, na década de 1970, dá-se
a consolidação do sucesso das composições buarqueanas, seja pelas chamadas ―músicas
femininas‖, seja pelas ―músicas de protesto‖. Chico Buarque alcança ainda muito jovem, o
auge do reconhecimento. Suas letras deixam de ser apenas cantadas e ouvidas para
servirem também como motivo para análises acadêmicas.
É nesse período, também, que Chico passa a ser considerado por muitos como
poeta consoante com os estudos da corrente crítica já mostrada nesse trabalho. Mesmo nos
dias atuais, é vasta a publicação de muitos artigos em que Chico Buarque é reconhecido
como poeta, entretanto, ele sempre escapa de tal atribuição, afirmando ser a poesia um
atributo de Bandeira e de Drummond. Ainda que Chico Buarque não se designe como
poeta, curiosamente, ele foi um dos primeiros compositores a apresentar nas capas de seus
discos as letras impressas, critério importante para o acompanhamento da melodia.
Segundo SILVA (1974, p.4), há que se observar na letra poética a continuidade
e o desenvolvimento do projeto poético brasileiro, afirmando até, que em matéria de
criatividade, essas letras representam o que há de melhor na poesia brasileira da década de
1970.
28

Afrânio Coutinho (1972) corrobora o pensamento de Silva, ao escrever no


―Correio da Manhã‖ que, Chico Buarque de Holanda seria o maior poeta da nova geração.
E mais ainda, que é necessário não se esquecer de que a música de Chico conduz ―uma das
mais altas e requintadas formas da poesia lírica‖. As palavras do crítico se baseiam no fato
de as músicas de Chico conter tanto uma musicalidade diferenciada quanto um
aperfeiçoamento ao serem comparadas com as letras da Bossa Nova, que já eram
consideradas uma evolução em relação à música popular da década de 1930.
O maestro Júlio Medaglia, em entrevista ao Jornal O Estado de São Paulo para O
Balanço da Bossa Nova, em 1966, afirma que Chico é ―um dos raros artistas que faz uso
consciente dos recursos do texto, que não apenas significam, mas também soam‖. Isso
pode ser comprovado com a exploração sonora utilizada por Chico em suas letras, a fim de
construir significados. Em Pedro Pedreiro, é possível compreender como isso ocorre:

Pedro, pedreiro, penseiro


parece,carece
para o bem de quem tem bem
de quem não tem vintém.

Além do uso das aliterações /p/d/r/ e das assonâncias /o/, o compositor também
se utiliza do sufixo – eiro da profissão e cria o adjetivo penseiro; troca os fonemas /p/k/ em
parece/carece e ainda, repete o ditongo nasal /em/, a fim de acentuar o ritmo às palavras
bem, quem, tem, vintém. A obra musical de Chico não merece destaque dentro da produção
do período, apenas por utilizar-se de tais elementos formais, mas, sobretudo, por veicular
uma dramaticidade narrativa agregada à poética, principalmente por retratar experiências
da vida do homem comum. A dramaticidade narrativa agregada à poética é referida quanto
à alteração na natureza dos gêneros literários. O que indica uma natureza ligada à evolução
do homem e da sociedade. É o caso, por exemplo, da criação do drama romântico, quando
o escritor Victor Hugo, no Prefácio da peça Cromwell, em 1827, recusa-se os modelos da
dramaturgia dos períodos históricos anteriores (neoclássico e barroco) e propõe uma
reformulação da tragédia clássica, defendendo o surgimento do drama, uma peça teatral
autônoma com características da tragédia e da comédia, em atendimento à nova sociedade,
ao homem renovado do Romantismo e à necessidade de uma forma de expressão
diferenciada. Esse é o caso da estética pós-moderna, que a partir dos anos 1950, defende a
maior autonomia das formas literárias, podendo haver, inclusive, em uma mesma obra a
existência de dois ou mais gêneros. Assim, a narrativa (gênero dramático) além de outros
29

gêneros textuais não literários como o jornal, a publicidade, verbetes de dicionário e até
mesmo textos de outras linguagens, como o cinema, a fotografia, o desenho e outros.
Chico Buarque como um conhecedor de várias linguagens leva para sua arte as
reformulações dos acontecimentos do cotidiano, e na utilização da palavra como matéria
de seu fazer artístico.
A esse respeito (CAMPOS, 1978) analisa a linguagem e a sonoridade presentes
em canções buarqueanas, referentes à construção de significados e à presença de ―uma
poética plena de impactos emotivos‖, afirmando serem estas ―características responsáveis
por transformar Chico num dos mais interessantes fenômenos de nossa época‖.
São muitas as vozes que consideram letras de música como poesia e que
incluem o compositor e dramaturgo como um dos seus principais expoente, entretanto
Bruno Tolentino, poeta, ensaísta, crítico e professor de literatura, não compartilha da
mesma opinião. Em uma entrevista concedida à revista Veja, em 1996, Tolentino declarou
ser ―preciso perguntar dia e noite: por que Chico, Caetano e Benjor no lugar de Bandeira,
Adélia Prado e Ferreira Gullar?‖. Ele diz ainda que o Brasil deixou de reconhecer sua
produção poética, trocando cultura por entretenimento. O crítico combate duramente à
ideia de se pensar poesia e letra de música como uma coisa só:

Quem já ouviu falar de Alberto Cunha Melo, que vive escondido no Recife, e é
nosso maior poeta desde João Cabral? São dele estas palavras: ―Viver,
simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem‖. Mas José Miguel Wisnik ora
é crítico, ora é letrista e compositor, portanto, é catedrático. Os violeiros
empoleiraram-se nas cátedras e Fernando Pessoa virou afluente da MPB
(TOLENTINO, Revista Veja, 1996).

Apesar da dureza de suas palavras, Bruno Tolentino afirma não ter nada contra
a música popular brasileira, declarando ainda gostar muito das canções de Chico Buarque,
o que ele não aceita é o fato de a crítica considerar letras de música como poesia.
A partir das exposições apresentadas por Tolentino e baseando-nos na
afirmação de Silva, anteriormente citada, de que ―em termos de criatividade, as letras
poéticas representam a melhor poesia brasileira, na década de 70‖, concorda-se que todos
os argumentos contenham uma expressiva problematização sobre a produção poética
brasileira, no tocante ao lirismo, elemento praticamente ausente da literatura poética
nacional produzida a partir daquele período, o que levou a música popular a ocupar, ainda
que transitoriamente, o papel que cabia à produção poética.
30

Nesse estudo, tende-se a concordar com o fato de que letras de música, sejam
compostas por Chico Buarque, sejam compostas por outrem, não substituem a poesia.
Mesmo apresentando conteúdo emocional e lírico não se deve desprezar o fato de as letras
de música estarem envolvidas com o entretenimento. Além do que, uma canção é
composta por elementos melódicos, linguísticos e entonativos, não devendo haver a
dissociação entre letra e melodia, bem como, não se deve conceber a letra isoladamente
como apenas texto ou poema.
A esse respeito, Luiz Tatit (1996) assevera que ―o cancionista compõe a
melodia com o texto, mas recompõe o texto com a entoação‖, fazendo com que, desse
modo, cada melodia ―contemple seu texto‖. Possivelmente esteja aí a chave para
compreender porque as canções de Chico Buarque tenham conseguido destaque e
notoriedade no panorama musical brasileiro, já que nelas música e letra se afinam em uma
estrutura sígnica, conformando assim uma produção de caráter social, político e emocional.
Para que se consiga tal intento, necessita-se procurar em cada acorde, em cada nota
musical toda a intensidade, entendida como a duração e o timbre próprios de dito acorde.
Em decorrência desse processo, cada letra de música traz em si os próprios matizes que
coadunam à composição musical proposta nas canções, além de introduzir a palavra no
contexto da frase musical, o que possibilita o entendimento das canções buarqueanas no
que se reporta à letra, à música e à interpretação.
Conforme o que já vem sendo dito, em vários momentos da história, música e
poesia foram tomadas como expressões artísticas que sempre utilizaram técnicas similares
para sua realização formal, tendo como elemento estrutural mais comum o ritmo. Mas, esse
será justamente o traço que vai gerar a oposição entre música e poesia, pois cada uma delas
adquiriu seu ritmo próprio. A música necessitará mais intensamente do ritmo melódico-
instrumental para se construir esteticamente, sobrepondo-se à palavra propriamente dita.
Nem toda música precisa de um belo texto para agradar seu ouvinte. O canto pode utilizar-
se do puro dinamismo fisico-psíquico para se realizar enquanto obra artística, mas a poesia,
além da necessidade rítmica, necessita, pelo menos na maioria das vezes, da ativação do
pensamento por meio de palavras, para sua realização estética.
É nessa disparidade que música e poesia têm vivido que suscita algumas
indagações: até quando se pode considerar uma canção bela, mesmo com sua letra
verbalmente mal construída? Uma canção musicalmente e verbalmente bem construída
seria melhor do que a só musicalmente bem construída?
31

É possível que a canção verbal e musicalmente bem construída seja mais


valorizada enquanto obra de arte, entretanto, a canção apenas bem construída
musicalmente também tem seu valor artístico, cumprindo sua função mais elementar, a de
emocionar seu ouvinte. Mário de Andrade afirma a esse respeito: ―não é o texto belo e
profundo que provoca no compositor as mais belas e profundas melodias. Conta-se por
centenas de melodias lindíssimas sobre textos boçais‖ (ANDRADE, 1991, p.33- 4).
Sabe-se que não são poucos os compositores de MPB considerados como bons,
porém, maus poetas, que apesar da má qualidade de seus textos, os tem sustentado pelo
poder da melodia, sem a qual não funcionariam como poesia. Nesse contexto, há
compositores que privilegiam mais o ritmo e outros, as palavras. Muitas vezes, a
popularidade de determinadas canções se dá por sua própria natureza do que pela
qualidade da letra. Nesses casos, as palavras podem ser consideradas apenas uma parte do
conjunto sonoro.
A letra de música é criada para ser ouvida e não para ser lida, salvo algumas
exceções, pois há compositores que transformam os simples encartes de seus discos em
folhetos poéticos, com diagramações cuidadosas e experiências formais realmente feitas
para serem vistas e lidas. Já o poeta que publica em livros leva em consideração o fato de
que o poema vai ser lido, valorizando a musicalidade que é própria da arte poética. Caso
essas diferenças fossem categóricas, certamente, não se poderia apreciar a poesia da Grécia
Antiga, visto que poemas, como se conhece, se construíram para serem cantados.
Diante do exposto, pode-se perceber que para um grande número de
compositores, respeitáveis artistas da MPB, sempre houve uma preocupação com suas
construções musicais, com a comunhão da música com a poesia, como é o caso de algumas
canções de Chico Buarque, em que recai o olhar analítico dessa pesquisadora.
Depois da exposição feita acerca das relações entre música e poesia, ainda
nesse capítulo, pretende-se uma reflexão sobre, particularmente, a contribuição prestada
por Chico Buarque de Holanda na comunhão dessas duas artes.
Na próxima seção desse trabalho, tentar-se-á encontrar indícios que confirmem
o status de poema a algumas canções de Chico Buarque.

1.2 Chico Buarque, quem é você?

Chico Buarque sempre repete em seus vários depoimentos, que na maior


parte de suas composições, letra e música são feitas conjuntamente, ele jamais cria uma ou
32

outra forma para que depois sejam agregadas. Nesse processo, ambas as formas nascem
juntas. Mesmo no caso de parcerias, a letra é criada posteriormente, nunca como um
poema independente, esperando pela melodia. Sendo assim, Chico Buarque não tem a
preocupação de fazer letras exclusivamente destinadas à leitura, mas para serem ouvidas e
cantadas. O artista diz não ter a pretensão de ser considerado um poeta, mas sim, um
compositor de música popular.

Eu não concordo com essa colocação [de ser chamado de poeta], pelo fato
mesmo que o meu ofício é outro, é o do artista que faz música e letra, coisas
muito ligadas uma à outra. Eu discordo dessa coisa dos caras, às vezes, quererem
elogiar dizendo: ―Para mim você não é um compositor é um poeta‖, como
qualquer outra, e eu desafio os poetas maiores a fazerem letras de música, porque
é uma parada diferente. Não escrevo poesia, não gosto de ler minhas letras
publicadas em forma de poesia. É outra coisa para mim, como também não gosto
das músicas sem as letras. São feitas juntas, nasceram juntas, têm que caminhar
juntas (HOLANDA. Senhor Vogue. Março/1979).

Entretanto, não é difícil mencionar incoerências entre o autor e o eu poético, no


que se refere ao intuito de seu fazer artístico, o que pode ser confirmado em alguns
momentos de suas criações, a título de exemplo destaca-se em ―Choro bandido‖, os
seguintes versos:

Mesmo que você fuja de mim


Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão (...)

E também em ―Noite dos mascarados‖, o trecho que serve de epígrafe para esta
seção, em que o eu poético se apresenta: ―Eu sou seresteiro/Poeta, cantor‖.
Ainda que para alguns críticos, Chico seja considerado um ―poeta menor‖, por
não ter escrito poemas em livro  assim como ocorreu com Vinícius de Moraes, um poeta
que utilizou desse suporte e depois se evadiu para a MPB  pode-se perceber naqueles
depoimentos, que Chico Buarque está consciente do estreito relacionamento entre letra e
música.
Pode-se constatar que o entrelaçamento entre música e poesia configura-se
como uma união bastante significativa, compreendendo que desde 1968, a MPB não pode
ser vista apenas como elemento sonoro, mas também como uma obra que abarca a escrita
poética e a cultura em geral. Tal afirmação encontra respaldo mediante o interesse
demonstrado por críticos e acadêmicos das mais variadas áreas do conhecimento – desde a
33

literária, passando pela sociologia, antropologia, história, dentre outras – ao estudar a letra
da música popular, originando daí uma gama de diversos trabalhos de grande relevância.
Conforme atesta Afonso Romano de Sant‘Anna, ―não apenas o conceito de música
popular, mas o de literatura e, consequentemente, o de interpretação do texto‖.
(SANT‘ANNA, 1978, p.180)
A relevância do papel exercido pela MPB no cenário artístico e cultural do
país pode ser comprovada pelas palavras de Augusto de Campos ―se quiserem
compreender esse período extremamente complexo de nossa vida artística os compêndios
literários terão que se entender com o mundo discográfico. No novo capítulo da poesia
brasileira que se abriu a partir de 1967, tudo ou quase tudo existe para acabar em disco‖.
(Apud PERRONE, 1988, p.19)
As letras das canções da MPB são preenchidas pela poesia, chegando a alguns
momentos a se sustentarem a despeito do contexto musical. Ainda é de Campos a
argumentação de que, nos anos finais da década de 1960, a poesia brasileira começa a
cantar: ―a poesia da música popular foi melhor do que a poesia escrita‖. (Apud PERRONE,
1988, p.20), sendo este um dos principais motivos para a apreciação literária dos
compositores.
O cuidado com o feitio artístico das letras da música popular brasileira era de
tal forma manifestada, que muitos críticos literários acreditavam que os poetas desta
geração escolheram o suporte musical (o disco, o rádio, a televisão) devido ao grande
poder de comunicação dos meios audiovisuais em relação aos meios gráficos. Entende-se
que os novos meios de comunicação vieram prover o que a cultura tradicional, como modo
de expressão da cultura ilustrada e complexa, ignorava: o público leitor escasso no Brasil.
Talvez esteja aí um dos grandes papéis desempenhados pela MPB, ampliando suas
atribuições: provocar no leitor/ouvinte a criticidade, bem como lhe possibilitar a fruição, o
prazer estético, à educação pela palavra, papéis que caberiam às instituições formais de
ensino e á literatura, de modo geral. Nesse aspecto, há que se concordar com Augusto de
Campos quando diz: ―toda uma geração de bons poetas escolhe a música popular e não o
livro como canal de comunicação‖. (Apud PERRONE, 1988, p. 21).
Do vasto cabedal de compositores da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Tom Jobim dentre outros, Chico Buarque de Holanda, sem dúvida, tem sido o mais
aplaudido, tanto pela crítica musical quanto pela crítica literária. A propósito, utilizando
novamente das palavras de Afrânio Coutinho quando se refere a esse artista: ―A meu ver o
34

maior poeta da nova geração é Chico Buarque de Holanda. É preciso não esquecer que sua
música veicula ou se associa a uma das mais altas e requintadas formas de poesia lírica.‖
(Apud PERRONE, 1988, p.39).

1.2 O ecletismo buarqueano: um diálogo entre a tradição e a modernidade

Chico Buarque é estereotipado como um músico essencialmente político.


Mesmo que o compositor negue isso por várias vezes, as suas canções são geralmente vistas
apenas pelo viés político, o que configura uma leitura que reduz outras possíveis facetas de sua
obra. O que se pretendeu mostrar nessa dissertação é que Chico Buarque inegavelmente
transita pelo universo da crítica política, mas nem por isso deixou de lado a experiência formal
e que foi panfletário, como muitos fizeram, mesmo os ―poetas de livro‖ considerados maiores,
na década de 60/70 – como bem nos mostram os poemas do Violão de Rua.3
Chico recebeu como herança o samba, que por seu caráter rítmico, sua
sensualidade em que o corpo perde em inibição e ganha em movimentos provocativos, já é por
si só motivo de contestação. Essa contestação atinge a moral burguesa e religiosa do país, que
organiza sua sociedade calcada mais em uma falsa moral do que da moral mesma, entendida
como valor ético.
O samba e o carnaval, resultantes da mistura dos negros da favela com a classe
média intelectual configuram-se como elementos contestadores e libertadores por natureza. A
música de Chico Buarque alia-se a essa tradição e juntas, conscientizam e libertam, oferecendo
à gente brasileira, já tão combalida pelo sofrimento, alguma possibilidade de alegria, ainda que
isso ocorra por algum instante, marcados pela efemeridade e utopia. Essa é a técnica utilizada
por Chico no seu fazer artístico, criar letras previamente calculadas, as quais permitem várias
leituras é de alto valor, pois, entende-se, que a riqueza de um artista tem sua grandeza na
mesma proporção que as possibilidades de leitura que sua obra admite.
Toda a criatividade e ecletismo de Chico Buarque podem ser comprovados ao
se observar o grande número de gêneros musicais que constituem seu vasto cancioneiro.
Nota-se a presença de samba-rock em Jorge Maravilha; o baião e o rock, em Baioque; o
3
De acordo com o sociólogo Marcelo Ridenti (2000, p.10), ―o Romantismo Revolucionário influenciou todo
o movimento político Cultural dos anos 60 e 70, no entanto para ele o projeto cepecista (Centros Populares
de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE)) que mais se aproximou desse sonho romântico foi
lançado em 1962: os cadernos de poesia intitulados Violão de Rua: poemas para a liberdade, sob a supervisão
do poeta Moacyr Felix. Esse romantismo pode ser visto através de seus poemas evocando o povo-nação
como o único capaz de redimir e regenerar a humanidade corrompida pelo capitalismo. Os poetas exprimiam
a sua solidariedade com a má condição de vida tanto do homem do campo quanto do das favelas, enfocando,
sobretudo, a condição de vida dos retirantes nordestinos‖.
35

fado, em Fado tropical; o samba, em Tem mais samba; a marcha, em A banda; o chorinho,
em Um chorinho; a quadrilha, em A quadrilha; o tango, em Tango do covil, a embolada,
em Embolada; o mambo em Mambordel; o blues, em Bancarrota blues, a valsa, em
Valsinha, dentre outros exemplos.
Depois dessa exposição, tentou-se analisar aspectos poético-musicais de
algumas canções de Chico Buarque a partir de seu diálogo com a tradição literária, através
da proximidade de sua obra com as cantigas trovadorescas.
Conforme CORREIA (1978), o ato de cantar o poema, costume comum na
Antiguidade Clássica, dividiu-se a partir da Idade Média, em música de uma parte e poema
de outra. Em se tratando das cantigas trovadorescas medievais. A respeito dessa
ambiguidade, cita-se Paul Zumthor (1993, p.62), porque ―o texto poético antigo‘ foi
transmitido, alguns com ―notação musical‖ e ―a maioria sem ela‖, o que permite avaliar
que, nos dias atuais, mesmo sem ter-se ouvido a interpretação sonora da canção, pode-se
considerá-la  deslocada de seu contexto musical  como poema.
A respeito do amor na poesia cortesã, Octavio Paz observa o desejo dos poetas
de serem ―entendidos pelas damas‖ ao escreverem seus poemas, acompanhados por
música, entretanto, admite não ter sido com música que eles chegaram até nós (PAZ, 1994,
p. 71). Ledo Ivo4 também assevera ser a poesia medieval acompanhada de dança e música,
o que permite colocar Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil na categoria de poetas,
entendendo que, ambos fazem ―poesia com música‖. Outra forma de se poderem ler os
vestígios da poesia trovadoresca portuguesa em canções buarqueanas é poder vislumbrar
no interior de um novo texto literário, quer pela forma, pela tonalidade ou pela intensidade,
ecos de outros textos produzidos anteriormente. Essa visão de intertextualidade encontra
apoio no Dialogismo de Bakthin, e consegue maior visibilidade graças aos estudos do Tel
Quel, na França, na década de 1960. Tais estudos foram publicados em Théorie
d’ensemble, que reuniu textos de Julia Kristeva, Roland Barthes, entre outros estudiosos do
assunto.
Julia Kristeva é responsável pela cunhagem do termo ―intertextualidade‖,
atestando a inscrição de todo texto literário em um conjunto de textos, terminando por
configurar ―uma estrutura-réplica‖ (função ou negação) de outro, ou de outros textos.
Kristeva (1974, p. 98), ainda afirma que o autor, pelo ‗modo de escrever‘ revela o leitor
4
IVO, Ledo. A poesia na língua portuguesa. In: Seminário sobre a Língua Portuguesa; desafios e Soluções.
Transcrição: Tânia Lúcia Oliveira Barreto. São Paulo: centro de Integração Empresa-Escola, 31 de maio de
1999. Disponível em http://www. Academia.org.br/poesia.htm. Acesso em 4 de fev. de 2011.
36

‗do corpus literário anterior ou sincrônico‘: de um lado, ele passa a viver ‗na história‘ e de
outro, ‗a sociedade se escreve no texto‘. Essa forma mais ampla de conceber o ato de ler
possibilita uma nova direção á leitura. Julia Kristeva utilizou, para suas pesquisas, o
pensamento bakthiniano acerca de dialogismo instituído na ocorrência de cada novo texto
‗‘refutar‘, ‗confirmar‘ ou ‗complementar‘ sua vinculação com outros (BAKTHIN, 1992, p.
316) para o estudioso, tudo o que se diz ou se escreve já foi dito ou escrito anteriormente, e
essa afinidade entre os textos propicia a criação de uma rede de referências, o que
possibilitará uma leitura capaz de aproximar obras, mesmo que produzidas em tempos e
espaços distintos, pois, se ―os enunciados não são indiferentes uns dos outros, nem
autossuficientes, são mutuamente conscientes e refletem um ao outro‖ (Id., p. 314). O
teórico ainda afirma a circunstância de o enunciado acusar pistas, ―ecos e reverberações de
outros enunciados, com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação
verbal‖ (Id., p. 317).
Para Roland Barthes (1998, p. 68-69), o texto configura-se como ―um espaço
de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais
nenhuma é original‖, confirmando ser o texto ―um tecido de citações, saídas dos mil focos
da cultura‖. Ainda, conforme Barthes (1998), ―o texto único vale por todos da literatura,
não porque os representa (os abstrai ou os iguala), mas porque a própria literatura é sempre
um único texto‖. Mais ainda, afiança a possibilidade de cada texto instituir

uma perspectiva (de fragmentos, de vozes vindas de outros textos, de outros


códigos), cujo ponto de fuga é sempre transladado, misteriosamente aberto: cada
texto (único) é a própria teoria (e não simples exemplo) dessa fuga, dessa
diferença que, sem se conformar, volta indefinidamente (BARTHES, R. S/Z.
1992, p. 45-46)

Corroborando o pensamento de Roland Barthes, Zumthor, mesmo não fazendo


parte do grupo Tel Quel, assegura a possibilidade de ―cada poema novo‖ antecipar aqueles
que o precederam, de forma a reorganizar o conjunto, conferindo-lhes ―uma outra
coerência‖ (ZUMTHOR: 1993, p. 265).
Dentre os estudiosos brasileiros que amparam essa viabilidade de leitura aqui
proposta, cita-se a ensaísta Leyla Perrone-Moisés (1990, p. 94), que defende o ato de
escrever como um procedimento capaz de fundar conexão ou diálogo entre textos da
―literatura anterior‖, da literatura ―contemporânea‖ e ―entre diferentes literaturas
nacionais‖. Sendo assim, cada texto feito pode estabelecer relações análogas, seja por
37

―retomadas‖, seja por ―empréstimos e trocas‖, em ordens distintas, com produções textuais
mais remotas.
Segundo a leitura feita pela pesquisadora deste trabalho, torna-se possível uma
aproximação do pensamento de Zumthor e algumas canções de Chico Buarque, ao detectar
a presença de características poéticas do cancioneiro medieval português. Com o amparo
teórico já demonstrado, afirma-se que no cancioneiro buarqueano é possível notar, em
várias letras-poema, uma identificação com a poesia medieval: as cantigas de amigo,
gênero lírico fundamental do cancioneiro peninsular da Idade Média, na qual o trovador,
utiliza-se da voz feminina e normalmente se queixa ao amigo. A amiga ou amada é quem
se manifesta. Esse tipo de composição lírica é marcado, muito frequentemente, pela presença
de um refrão e se inspira na vida rural e popular.
Conforme MOISÉS (1970, p. 24), a cantiga de amigo é

―escrita igualmente pelo trovador que compõe cantigas de amor, e mesmo as de


escárnio e maldizer, este tipo de cantiga focaliza o outro lado da relação amorosa
entre ele e uma dama: o fulcro do poema é agora representado pelo sofrimento
amoroso da mulher, via de regra pertencente às camadas populares‖.

Nas composições de Chico Buarque é recorrente este tipo de produção poética,


como por exemplo, em: Com açúcar e com afeto, Sem fantasia, Pedaço de mim, dentre outras.
―Olhos nos olhos‖, canção narrada por um eu-lírico feminino, na qual se apresenta uma
situação de separação de um casal, em que a dualidade amor/ódio é atestada logo nos
primeiros versos: ―Quando você me deixou, meu bem / Me disse pra ser feliz e passar
bem‖, introduzem a separação. O homem abandona a mulher desejando que ela ―seja
feliz‖, isto é, para que se arranjasse na vida, (parece ser o sinônimo de siga sem mim,
deixe-me em paz), e ‗passar bem‘, uma das expressões mais comumente proferidas ao se
ignorar alguém.
Nos versos: ―Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci / Mas depois, como era
de costume, obedeci”, tem-se a representação da dor surgida logo após a perda. No
entanto, é interessante observar que o eu-lírico, como era de costume, obedece. Ela, que
aparentemente sempre foi submissa ao homem, continua obedecendo, mas agora
‗obedecer‘ não mais está associado à tradicional submissão, e sim a um tipo de atitude
revanchista, como ele lhe havia dito para ser feliz sem ele, ela o obedece, porém, dando a
volta por cima, pela sua obediência. Esse comportamento, a atitude transgressora da
mulher constitui um dos tópicos a ser discutido no capítulo 3 desse estudo.
38

Quanto às construções da poesia medieval, as canções de Chico Buarque, que


se valem do eu-lírico feminino são citadas frequentemente em manuais didáticos que
abordam o trovadorismo e as cantigas de amigo, sendo notadamente consideradas como
poemas trovadorescos.
Chico Buarque é considerado um compositor popular, porém é notável a
presença de refinadas metáforas e de elaboradas construções poéticas em suas canções
ditas trovadorescas, o que confirma seu ecletismo ao transitar pelo universo da cultura
erudita. ―Aliás, esta é uma característica de sua poética, o estabelecimento de uma relação
reversível, por isso mesmo enriquecedora, entre o popular e o erudito‖. (MASSI, 1991, p.194).
Chico Buarque é hoje um compositor não apenas ouvido, mas também lido.
Para sustentar essa afirmação, tomem-se como exemplo, o fato de ter sido ele o primeiro
compositor a trazer impressas, nas capas de seus discos, as letras de suas músicas e
também, de ter seu nome incluído na coleção Literatura Comentada5. Além, é claro, de
seu frutífero diálogo com a tradição literária.

1.4 A duplicidade buarqueana: seresteiro/trovador e poeta/cantor

Acreditando que sejam várias as máscaras utilizadas por Chico Buarque


compositor/poeta na composição de sua obra, entende-se que é necessário fazer uma
apresentação do homem Francisco Buarque de Holanda, de suas vivências e experiências
como pessoa, para compreender o caráter multifacetado de sua subjetividade artística.
Para tanto, fez-se necessário conhecer um pouco mais sobre a trajetória
cronológica do referenciado artista, pois se julgou relevante para esse momento na
pesquisa, conhecer a pessoa para ler a ―persona lírica‖ de Chico Buarque. Expõe-se aqui o
conceito de Jung para persona:
É a máscara usada pelo indivíduo em resposta às convenções e tradições sociais
e às suas próprias necessidades arquetípicas internas. É o papel que a sociedade
lhe atribui, que espera que você represente na vida. O propósito da máscara é
produzir uma impressão definitiva nos outros e, muitas vezes, embora não
obrigatoriamente, dissimula a verdadeira natureza do indivíduo, em oposição à
personalidade privada, que existe por trás da fachada social. Se o ego se
identificar com a 'persona', como freqüentemente o faz, o indivíduo terá mais
consciência do papel que está representando do que de seus sentimentos
genuínos. Será sugado pelo personagem, tornando-se um alienado de si mesmo

5
―Chico Buarque de Holanda, Literatura Comentada". Pequena biografia de Chico Buarque, com seleção de
textos e letras de composições do compositor organizados por Adélia Bezerra de Meneses Bolle., Abril
Cultural, 1990.
39

e toda a sua personalidade toma um aspecto superficial e bidimensional. (a


persona assemelha-se, em certos casos, ao superego, de Freud) (JUNG, C. G.
espelhos do self, 1991, p. 22).

A explícita ligação de Chico Buarque com diversas referências culturais a


história política brasileira, identificadas como posturas socialmente transformadoras, faz
com que a análise de sua obra, conforme Cyntrão (2004, p. 111) remeta eventualmente à
sua ―persona‖.

Chico Buarque de Holanda é compositor e intérprete de música popular e


escritor. Destaca-se como uma das principais referências musicais desde anos 60 até
nossos dias. Francisco Buarque de Holanda, nascido em seis de junho de mil novecentos e
quarenta e quatro é filho do historiador Sergio Buarque de Holanda e de Maria Amélia
Cesário Alvim, uma pianista amadora.

Em 1946, a família muda-se para São Paulo, onde seu pai é nomeado diretor do
Museu do Ipiranga. Em 1953, Chico e a família forma morar na Itália, onde Sérgio
Buarque deu aulas na Universidade de Roma. De volta a São Paulo, Chico já mostrando
interesse pela música, compõe "Umas Operetas" que cantava com as irmãs. A música fazia
parte do seu dia a dia, Ouvia músicas de Noel Rosas e Ataulfo Alves. Recebeu grande
influência musical de João Gilberto, Vinicius de Moraes  de quem veio tornar-se parceiro
mais tarde  Baden Powell e de outras personalidades da cultura brasileira, com as quais
conviveu desde sua infância como Oscar Castro Neves, Fernando Sabino e João Cabral de
Melo Neto, entre outros.
Em 1963, Chico Buarque ingressou no curso de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo, onde participou de movimentos estudantis. Nesse mesmo ano
participou do musical Balanço do Orfeu com a música Tem mais Samba, que segundo ele,
foi o ponto de partida para sua carreira. Participou também do show Primeira Audição, no
Colégio Rio Branco, com a Marcha Para um Dia de Sol.

Chico Buarque apresentou-se, em 1964, no programa Fino da Bossa,


comandado pela cantora Elis Regina. Ele logo conquistou o reconhecimento do público.
No ano seguinte lança seu primeiro disco compacto com as músicas Pedro Pedreiro e
Sonho de Carnaval. Fez também as músicas para o poema Morte e Vida Severina, de João
Cabral de Melo Neto, que ao ser apresentado no IV Festival de Teatro Universitário de
Nancy, na França, foi premiado pela crítica e pelo público.
40

Em 1966, sua música A Banda, cantada por Nara Leão, venceu o Festival de
Música Popular Brasileira. Nesse mesmo ano saiu o seu primeiro LP "Chico Buarque de
Hollanda". As primeiras canções, como "Pedro pedreiro‖, impregnadas de preocupações
sociais, foram seguidas de composições líricas como Olê, olá, Carolina e A Banda. Ainda
nesse ano Chico casa-se com a atriz Marieta Severo, com quem teve três filhas, Silvia,
Helena e Luíza.

Chico Buarque mudou-se para o Rio de Janeiro em 1967, e lançou seu segundo
LP "Chico Buarque de Hollanda V.2". Nesse mesmo ano escreveu a peça "Roda Viva".
Fez parceria com Tom Jobim e venceram com a música "Sabiá", o Festival Internacional
da Canção em 1968. Nesse mesmo ano o governo da repressão, decreta o AI-5.6

Em 1969, Chico participou da Passeata dos cem mil, contra a repressão do


regime militar. Nesse mesmo ano Chico Buarque autoexilou na Itália, só retornando em
1970. Na Itália assina um contrato com a gravadora Philips, para produção de mais um
disco. Sua música Apesar de Você vendeu cerca de 100 mil cópias, mas foi censurada e
recolhida das lojas. Nesse mesmo ano, de volta ao Brasil, fez música para cinema e gravou
um de seus discos mais bem-sucedidos, Construção. O artista teve muitas de suas
composições e algumas peças de teatro censuradas pela ditadura militar, tendo de usar,
inclusive, o pseudônimo de Julinho de Adelaide para assinar algumas de suas músicas,
como Acorda, Amor.

Depois do show no Teatro Castro Alves em 1972, com Caetano Veloso e o do


Canecão, com Maria Betânia, em 1975, Chico passou um longo período sem se apresentar,
mas continuou produzindo.

Escreveu a peça Gota d'água, em parceria com Paulo pontes, o que valeu à
dupla o prêmio Molière. Escreve a música Vai trabalhar vagabundo, para o filme do
mesmo nome e a música O que será, escrita para o filme Dona flor e seus dois maridos.

6
O AI-5 (Ato Institucional número 5) foi o quinto decreto emitido pelo governo militar brasileiro (1964-
1985). É considerado o mais duro golpe na democracia e deu poderes quase absolutos ao regime militar.
Redigido pelo ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva, o AI-5 entrou em vigor em 13 de dezembro
de 1968, durante o governo do então presidente Artur da Costa e Silva.
41

Sua obra também marcou o teatro brasileiro dos anos 1960 e 1970. Escreveu
Gota D'Água, em parceria com Paulo Pontes, e Ópera do Malandro7; como escritor,
lançou o romance, Fazenda Modelo.
Em 2005, Chico lançou a série Chico Buarque Especial, caixas com três
DVDs, organizados por temas, onde fala de sua trajetória.
No dia 05 de novembro de 2011, Chico Buarque iniciou sua nova turnê
nacional, no Palácio das Arte em Belo Horizonte. Ainda em 2011, depois de quatro anos
afastado das gravadoras é lançado o disco ―Chico‖, no qual se nota um artista
amadurecido, voltado mais em suas canções para as desordens dos sentimentos do homem
atual e duas identidades fragmentadas.
Como romancista, Chico Buarque apresenta um já considerável acervo:
Fazenda Modelo - uma novela pecuária; Chapeuzinho Amarelo - livro de poema para
crianças; A Bordo do Rui Barbosa - escrito nos anos 1960 e publicado somente em 1981;
Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite Derramado (2009).
A variedade de temas da obra de Chico Buarque, além de mostrar seu
ecletismo, revela as suas vivências, suas experiências ao longo da vida. O autor vai do
samba à música de inspiração latino-americana, passando por certa influência da música
italiana e francesa, presente nas obras operísticas.
Chico Buarque é um homem nascido na classe média intelectual paulista, filho
de Sérgio Buarque de Holanda, um respeitado historiador brasileiro e de uma pianista
amadora, Maria Amélia Cesário Alvim. Esse fato influenciou sua formação intelectual, já
que desde cedo, teve contato a literatura canônica universal. Chico tem o domínio do
registro linguístico culto e de recursos próprios da literatura, fazendo uso desses elementos,
que agregados aos registros populares, constroem suas canções. Segundo Perrone:

O conteúdo literário das canções de Chico origina-se de seu domínio da rima e


do ritmo, de sua cuidadosa manipulação de efeitos sonoros, de sua coerente
forma de estruturar o texto poético e seleção lexical, do uso de metáforas e
símbolos, da sutileza no uso de figuras de linguagem e nas idéias e da percepção
profunda de fenômenos psicológicos e sociais. (PERRRONE, 1988, p.39)

7
A Ópera do Malandro é inspirada nos clássicos Ópera dos Mendigos, de John Gay, e A Ópera dos Três
Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. Em 1986 o texto de Chico
Buarque é adaptado para o cinema por Ruy Guerra. http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%93pera_do_Malandro.
Acesso em 17 de jul. de 2012.
42

Perrone, na citação acima, se refere à produção musical de Chico com ao


―conteúdo literário‖ e ―texto poético‖. Opinião que também é partilhada por outros
estudiosos, conforme tem sido demonstrado ao longo dessa pesquisa. Como essa também é
a opinião da pesquisadora, que não coaduna com os depoimentos dados por Chico
Buarque, nos quais afirma não ser poeta, optou pelo arquétipo de persona. O termo pode se
referir à identidade sexual, um estágio de desenvolvimento (tal como a adolescência),
um status social, um trabalho ou profissão. Por isso, a pertinência desta abordagem para o
corpo do trabalho que se propõe analisar letras/poema de Chico Buarque de Holanda. Se
essa pesquisa defende o status de poeta ao artista em questão, tentar-se-á, no interior de sua
canção Choro bandido, desvelar ou revelar essa face, que Chico insiste em negar.
O termo conforme sua origem latina significa máscara usada por atores na
época clássica, daí, persona referir-se à máscara ou face que uma pessoa usa para
confrontar o mundo, quando migrada para o campo da Psicanálise de linha junguiana.
Dessa forma, é possível compreender persona (s) como as muitas faces que o ser humano
usará durante sua vida, as quais poderão apresentar-se de diversas formas e podem ser
combinadas em qualquer momento específico.
Agora, passa-se à análise da canção elegida para desvelar, ou revelar a face do
poeta Chico Buarque:

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu


Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim
Você nasceu pra mim
Você nasceu pra mim
Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
43

Os seus lábios ofegantes


Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim
Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons

(Buarque, C. Choro bandido In: Paratodos, RCA, 1993).

Essa canção, composta em parceria com Edu Lobo no ano de 1993, na qual os
compositores utilizam a base melódica e rítmica do choro, ritmo genuinamente brasileiro e
a respeito da letra- poema, talvez uma das mais sofisticadas do repertório buarqueano em
termos de simbologias, referências e intertextualidade.
A primeira estrofe da canção traz uma reflexão acerca do fazer do artista, num
exercício metalinguístico: Mesmo que os cantores sejam falsos como eu / Serão bonitas,
não importa, são bonitas as canções. Apesar de ser um choro em sua base rítmico-
melódica, a canção não parece ser um choro para quem a ouve ─ não se pode afirmar, já
que não é a intenção dessa pesquisa elaborar um estudo sobre teoria musical, conhecimento
de que não dispõe ─ e sim, um choro ―falso‖, tal qual os ―cantores falsos‖ da letra.
Não obstante esse recurso ―falso‖, de um ―cantor falso‖ – os seresteiros
possuíam, em sua maioria, vozes potentes, belas por esse motivo, conforme o gosto da
época, no caso do Brasil, na chamada Era de ouro do Rádio, ao contrário dos cantores de
Bossa Nova ou da Tropicália, os da geração de Chico Buarque. A despeito disso, as
canções serão bonitas, não importa, são bonitas e, portanto, suficientes para encantarem
aqueles que a escutam. A mesma ideia se faz notar nos versos mesmo miseráveis os poetas/
os seus versos serão bons.
A reflexão sobre o processo de criação da música continua agora numa
abordagem mitológica: figuras da mitologia grega passeiam pela letra de Chico Buarque,
que as costura, misturando os mitos às personagens. A alusão à cultura grega, civilização
que deixou valiosa herança literária à humanidade, é feita não só no que diz respeito à arte
poética, mas também no que concerne às narrativas e criações mitológicas. O trecho
seguinte refere-se ao mito de Hermes:

Mesmo porque as notas eram surdas


Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
44

Que animou todos os sons

Dentre as famosas aventuras de Hermes, a mais conhecida é aquela em que ele


rouba parte do rebanho de Apolo. Após o roubo, o filho de Zeus sacrifica dois bois como
oferenda aos deuses do Olimpo e esconde o restante do gado em uma caverna. Logo que
descobre o roubo, Apolo, após infrutífera procura, oferece uma recompensa para quem
descobrisse o ladrão. Sabendo de tal promessa de recompensa, um grupo de sátiros que
passava pela Arcádia descobre o rebanho roubado no momento em que ouve o mugido dos
bois e uma música agradável que saía de uma caverna. Quem tocava a música escutada
pelos sátiros era o próprio Hermes, que fabricou um instrumento musical usando o casco
de uma tartaruga e tripas de um dos bois sacrificados. Hermes é levado até Apolo, que
acaba perdoando a ofensa de seu irmão após se comover com o canto de Hermes.
Outra relação possível no tocante ao fragmento selecionado é associá-lo ao
ditado popular fez das tripas o coração, o qual, não por acaso, rima perfeitamente com o
verso deus sonso e ladrão, arriscando a dizer ainda que no verso fez das tripas a primeira
lira, pode-se pensar no eu-lírico apontando a presença do lirismo na própria canção. Esse
lirismo, por sua vez,

animou todos os sons


e, aí, nasceram as baladas
e os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim.

O eu-lírico se confessa um ―bandido‖, um enganador: parece cantar um choro;


gostaria de ter composto e cantado um choro, mas, na verdade, a música acaba soando
como uma balada é um choro falso, um ―arroubo‖ ou atrevimento do ―miserável poeta‖
que se diz ser. Todo esse trabalho foi feito a fim de que o real objetivo se revelasse:
confessar o amor à mulher amada: Você nasceu pra mim... / Você nasceu pra mim.
O tema da mulher idealizada continua na canção, na qual ela se mostra, a
princípio, resistente ao apelo do eu-lírico, e vai, então, utilizar uma série de artimanhas
tipicamente femininas para tentar afastá-lo: Mesmo que você feche os ouvidos (para não
ouvir o eu-lírico) / E as janelas do vestido (interrompendo os sinais da sedução) / Minha
musa, vai cair em tentação. A referência à mitologia, em especial à grega, torna-se
explícita pela alusão às musas, personagens da mitologia, bem como ao idioma grego:
Mesmo porque estou falando grego / Com sua imaginação. Além dessas referências, a
presença mitológica se faz mais efetiva nos versos seguintes:
45

Mesmo que você fuja de mim


Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão.

Os símbolos aí são claros: o labirinto é lugar onde o Minotauro foi aprisionado


pelo rei Minos, que escondeu essa criatura, resultado de um feitiço lançado por Afrodite à
esposa do citado rei Minos, em função deste ter tentado enganar Posseidon num ritual de
sacrifício, ao trocar o touro sagrado por outro qualquer; alçapões são portas de acesso ao
reino de Hades, que raptou Perséfone, levando-a para ser sua rainha e consorte no reino
dos mortos; os ―cegos‖ que podem ver na escuridão aludem aos cegos da mitologia e
literatura clássicas, tais como nos versos de Homero, com o cego Demódoco, ou na história
de Édipo, com o adivinho Tirésias. Pela mitologia grega, Tirésias viveu sete anos
transformado em mulher e, ao confirmar que o prazer sexual feminino era muito superior
ao do homem, deu o argumento de que Zeus necessitava para suas traições a Hera. A
esposa do rei do Olimpo, não satisfeita, tira a visão de Tirésias. Em virtude da atitude
rancorosa de Hera, Zeus compensou seu involuntário aliado com o dom da profecia,
caracterizando-se, assim, o enxergar na ―escuridão‖ do futuro. O futuro, aliás, se
concretizará para o eu lírico na certeza da rendição de sua amada musa ao seu amor: Minha
musa vai cair em tentação. O fim da resistência dar-se-á no momento em que E eis que
menos sábios/do que antes/Os seus lábios ofegantes/Hão de se entregar assim; e a musa,
então, finalmente se rende: ―Me leve até o fim... / Me leve até o fim‖.
Quando a música parecia terminar, de forma simples – o romance havia se
concretizado – eis que reaparece a reflexão sobre a própria canção, revelando ser essa
história apenas mais uma das muitas que são cantadas: Mesmo que os romances sejam
falsos, como o nosso / São bonitos,não importa, são bonitas as canções.
Não se pode deixar de mencionar, no entanto, a forma com que Chico Buarque
compôs as rimas, aproveitando o ritmo criado por Edu Lobo, também cheio de labirintos e
alçapões, propositalmente sincopado e não linear. A rima criada pela combinação sonora
também merece destaque: o ritmo adquirido pela justaposição das palavras, bem como pela
irregularidade da combinação sonora – às vezes as rimas se constroem em versos muito
distantes um do outro, além daquelas rimas que surgem pela aproximação sonora no
conjunto da letra. Esse recurso linguístico é coerente com a proposta melódica, também
intricada e de difícil assimilação à primeira audição.
46

Ainda nessa canção encontramos inúmeras referências ao lirismo, conforme a


tradição poética trazida desde sua origem até a Idade Média, com as cantigas líricas. Há
também citação do desdobramento desse lirismo, com o surgimento de outras modalidades
poéticas desenvolvidas a partir de então, tais como a balada e daí nasceram as baladas, o
soneto, o rondó, entre outras. O sujeito lírico aqui invoca a imagem dos primeiros cantores,
reportando-se aos aedos e rapsodos da Antiguidade, além dos trovadores e menestréis
medievais, que entoavam suas canções de amor ou de amigo.
Nesta canção é possível também lembrar a presença do lirismo durante o
período romântico, no qual os poetas buscavam inspiração nas ―musas‖, atribuindo a elas,
muitas vezes, a responsabilidade por suas venturas ou desventuras amorosas e,
consequentemente, por suas criações literárias, nas quais o ―estado de espírito‖ dos poetas
se vincularia à presença ou à ausência de inspiração. O lirismo, nesse contexto, se
mostraria ligado à total subjetividade e, talvez por isso também ―os romances sejam
falsos‖.
Na vertente lírica aqui adotada, o sujeito lírico, então, se faz presente pela
linguagem selecionada para compor a canção, bem como pelos recursos linguísticos e
sonoros que se encaixam a célula melódica da música. Alguns exemplos podem ser
extraídos das repetições que iniciam os versos da composição; a primeira repetição a ser
explorada foi a expressão ―mesmo que‖: mesmo que os cantores, mesmo miseráveis,
mesmo porque, mesmo que você, mesmo sendo errados; que amplia a ideia de concessão,
do que tanto pode ser verdadeiro ou não.
Outras repetições contribuem para a elaboração da expressão lírica do sujeito,
tais como: os verbos ser e importar no presente do indicativo são / importa, o conectivo e,
os pronomes me e você, além da combinação sonora e rítmica feita pelas palavras: bons
/sons, assim / mim / fim, ouvidos / vestido, antes / ofegantes / amantes, tentação
/imaginação / escuridão, dentre outras.
Desse modo, percebe-se o lirismo nessa canção por meio da construção
imagética, sugerida pela sucessão de elementos linguísticos que contribuem para o ritmo e
a sonoridade da composição. A esse respeito, pode-se recorrer a Pound (1970) por
concordar em que são essenciais à construção lírica, as correlações emocionais obtidas
através do som e do ritmo.
Não se pretendeu com essa digressão, fazer um levantamento fiel da vida de
Chico Buarque de Holanda, nem um mapeamento completo de todas suas experiências
47

como artista, pois se corria o risco de pecar por omissão ou desencontro de informações. O
que se tentou foi evidenciar, a partir de algumas fontes, fatos que poderiam servir como
respaldo para que se conhecesse um pouco mais da pessoa, a fim de compreender como
essas vivências conforma o fazer poético desse artista, compreender então, uma das muitas
formas com que esse artista multifacetado se apresenta. Por isso a opção pelo uso do
conceito de persona.
Outra faceta do artista se mostra na questão do olhar sobre os sujeitos
marginalizados na sociedade, mesmo que não se discuta agora sobre essa outra persona de
Chico Buarque convém a abordagem.
Vale ressaltar que Chico já foi alvo de várias criticas pelo fato de originar-se da
elite intelectual e burguesa e mesmo assim, falar em suas composições das pessoas
marginalizadas, advindas das classes menos favorecidas e dos seus problemas. Críticas
feitas, seguramente, por uma corrente radical de esquerda, que achava que só um operário
poderia falar de um operário, ou só um camponês poderia falar do camponês, pensamento
este, no qual apenas alguém que realmente vivesse determinada situação descrita no
artefato artístico, estaria apto a expressar com propriedade suas experiências. Tal
pensamento destoa das palavras de Friedrich (1978), ao discorrer sobre a poesia moderna:

Quando a poesia moderna se refere a conteúdos — das coisas e dos homens —


não as trata descritivamente, nem com o calor de um ver e sentir íntimos. Ela
nos conduz ao âmbito do não familiar, torna-os estranhos, deforma-os. A poesia
não quer mais ser medida em base ao que comumente se chama realidade,
mesmo se — como ponto de partida para a sua liberdade — absorveu-a com
alguns resíduos. A realidade desprendeu-se da ordem espacial, temporal,
objetiva e anímica e subtraiu as distinções — repudiadas como prejudiciais —,
que são necessárias a uma orientação normal do universo: as distinções entre o
belo e o feio, entre a proximidade e a distância, entre a luz e a sombra, entre a
dor e a alegria, entre a terra e o céu. Das três maneiras possíveis de
comportamento da composição da lírica — sentir, observar, transformar — é
esta última que domina na poesia moderna e, em verdade, tanto no que diz
respeito ao mundo como à língua. (FRIEDRICH, Estrutura da Lírica Moderna.
1978. p.3).

A respeito da incorporação de elementos transformadores do texto poético,


suscitada pela citação acima, Chico Buarque usa de ―algumas novidades‖ em suas
composições, uma dessas inovações, de que fala Friedrich é a presença do grotesco. Disso
trataremos na seção seguinte desse estudo.
48

1.5 A ambivalência do caráter grotesco na lírica buarqueana

Antes de tudo, é preciso compreender as concepções acerca do grotesco, pois


este termo tem sido entendido como: pessoa ou situação que, por ridícula, suscita riso ou
escárnio. Entretanto, essa palavra possui um alcance bem mais amplo, recebendo diferentes
significados ao longo de sua trajetória. Pode-se afirmar que, atualmente, denominar algo
ou alguém de grotesco, jamais consistiria em um elogio. Mas, a fim de se ampliar a visão
sobre o conceito de grotesco, faz-se necessário entender suas características em seu
contexto original.

―O termo ―grotesco‖ surge na época do apogeu da Literatura do Renascimento e


tem na sua origem uma acepção restrita. Em fins do séc. XV, escavações feitas
em Roma nos subterrâneos das Termas de Tito trazem a luz um tipo de pintura
ornamental até então desconhecida. Foi chamada de grottesca, derivado do
substantivo italiano grotta (gruta). O motivo ornamental eram formas vegetais,
animais e humanas que se confundiam e transformavam entre si, numa liberdade
e beleza artística‖ (BAKHTIN, 1987, p.28).

No grotesco, o elemento material e corporal é um princípio positivo, percebido


como universal e popular, havendo a valorização do baixo corporal (referências ao ventre,
aos órgãos sexuais e a excrementos), e o rebaixamento (transferência de tudo o que é
elevado ou espiritual para o material). Caracteriza-se também pela abundância e pela face
alegre e festiva de suas imagens. A inversão hierárquica, herança das Saturnálias, um tipo
de festa comum na Antiguidade que tem como principal característica à ―Prática da
inversão, na qual é necessário brincar de mundo ao contrário, invertendo as hierarquias e as
convenções sociais‖ (MINOIS, 2003, p.30), se faz presente no grotesco, permitindo que
um plebeu seja coroado ou um rei destronado e vice e versa. Dessa forma, o riso grotesco é
regenerador, elimina o velho para dar lugar ao novo, possuindo assim tanto um valor
negativo como um positivo, confirmando a ambivalência de seu caráter.
A visão carnavalesca do mundo é outro elemento de vital importância para se
compreender o grotesco. Os festejos do carnaval como existiam na Idade Média, e que
persistiram até os dias de hoje, especialmente no Brasil, ofereciam deliberadamente, de
forma não oficial, exterior à Igreja e ao Estado, uma visão libertária do mundo, do homem
e das relações humanas. Essa visão parece ter criado ao lado do mundo oficial, um mundo
paralelo e uma segunda vida, construindo assim, uma dualidade do mundo que era possível
através da suspensão das normas sociais, assim como é descrito por Mikhail Bakhtin:
49

Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de


liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição
provisória de todas as reações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a
autêntica festa do tempo das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda
perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um
futuro ainda incompleto. (BAKHTIN, 1987, pp. 8-9)

Na análise de Mikhail Bakhtin é possível identificar diferentes fases do


grotesco, na qual ele delineia a trajetória do conceito de grotesco, a fim de melhor avaliar a
obra de François Rabelais, (autor renascentista que em sua opinião teria sido o maior
expoente do grotesco). A primeira fase, que o estudioso denomina de realismo grotesco,
abarca um tipo específico de imagens da cultura cômica popular em todas as suas
manifestações, compreendendo a Idade Média e o Renascimento e, em ambas, o grotesco
atinge o auge de seu significado e pluralidade. Na primeira, o estilo predomina na vida das
pessoas, principalmente na vida "não oficial", nas feiras, a praça pública, as festas
populares e o carnaval. Na segunda, o estilo não está mais tão presente no cotidiano, porém
persistindo na literatura, sempre amparado nas influências da cultura popular. Essa fase
surge ligada ao Romantismo, no século XVIII, quando o grotesco reaparece representando,
por assim dizer, como uma reação contra os cânones de sua época, porém ressurge com um
novo sentido, trazendo uma visão de mundo mais subjetiva e individual, perdendo a
influência direta das formas carnavalescas de espetáculos populares. O riso toma forma de
ironia ou sarcasmo, deixa de ser jocoso e alegre, o aspecto regenerador reduz-se e o
universo se torna alheio ao homem, ou seja, o mundo se torna exterior, diferentemente da
primeira fase onde o mundo corporifica o homem.
No século XX, o grotesco renasce através do Modernismo, em que as
características fundamentais da imagem grotesca passam por um tom terrível e espantoso,
ignorando as reminiscências dos temas e símbolos carnavalescos. Conforme essa
concepção, o grotesco passa a ser entendido como forma de manifestação do ―id‖, que para
além do significado freudiano, é interpretado como uma força manipuladora estranha ao
homem, força que rege o mundo, força que não nos pertence. Essa concepção coaduna com
a ideia original de grotesco que não aceita a verdade ou o poder absoluto e que apresenta a
função de liberar o homem de qualquer necessidade de algo que não lhe pertence.
Wolfgang Kayser (2003, p. 75), aborda o estilo através da concepção
modernista: ―A deformação nos elementos, a mistura dos domínios, a simultaneidade do
belo, do bizarro, do horroroso e do nauseabundo, sua fusão num todo turbulento, o
estranhamento no fantástico-onírico (...) tudo aqui entrava no conceito do grotesco‖.
50

O grotesco modernista, última concepção do estilo que se estenderia até os dias


atuais, se afasta ainda mais do grotesco em sua essência. O temor contido nessa visão de
mundo é alheio à concepção de grotesco que existia até então, ela vai de encontro com a
ideia original de grotesco que não aceita a verdade ou o poder absoluto e que apresenta a
função de liberar o homem de qualquer necessidade de algo que não lhe pertence.
Ao se analisar a trajetória do conceito de grotesco desde a sua origem na
antiguidade até as suas últimas manifestações fica claro que com o passar do tempo,
principalmente após o Renascimento, o grotesco ao se individualizar se afasta cada vez
mais da cultura popular, perdendo sua ambivalência e seu caráter cômico. Para Bakhtin o
grotesco modernista atinge o ápice de sua negatividade por restringir seu aspecto
regenerador
Ao analisar as características apontadas por Bakhtin, nota-se a influência do
grotesco da Idade Média e do Renascimento na cultura brasileira, o que seria possível
apenas pela comparação de textos, mas valendo-se do mesmo teórico, encontra-se uma
afirmação chave para o esclarecimento de tal aproximação:

O problema do grotesco e de sua essência estética só pode ser corretamente


colocado e resolvido dentro do âmbito da cultura popular da Idade Média e da
literatura do Renascimento, e nesse sentido Rabelais é particularmente
esclarecedor. Para compreender a profundidade, as múltiplas significações e a
força dos diversos temas grotescos, é preciso fazê-lo do ponto de vista da
unidade da cultura popular e da visão carnavalesca do mundo; fora desses
elementos, os temas grotescos tornam-se unilaterais, débeis e anódinos.
(BAKHTIN, op. Cit., p.45)

Nesse fragmento, pode-se observar que o autor acredita que o grotesco só pode
ser compreendido em sua essência pela cultura popular e pela visão carnavalesca do
mundo.
Robert Stam (1989) defende a tese de que, embora, Bakhtin não tenha se
referido à cultura da América latina muitos de seus intelectuais encontraram na sua noção
de carnavalização a chave para compreender a especificidade da produção cultural latino-
americana.
Na condição de povos multiculturais, os artistas e intelectuais latino-americanos
assumem uma ironia peculiar, na qual palavras e imagens, geralmente, não são tomadas
literalmente, por isso a importância da paródia e da carnavalização como recursos
―ambivalentes‖ no interior de uma situação cultural assimétrica. Stam (1989) aprecia o
modernismo brasileiro, que tinha como modelo uma sociedade indígena matriarcal, sem
51

idealização de novas sociedades indígenas, como governo ou hierarquia social, porém


vivendo em harmonia com a terra.
A antropofagia defendida pelos modernistas era para Oswald de Andrade ―a
filosofia do primitivo tecnizado‖, um ritual de resistência da cultura oral através do
―canibalismo‖ e da ―carnavalização‖. O canibalismo modernista bradaria pela deglutição
das técnicas científicas e das informações artísticas procedentes das desenvolvidas
metrópoles europeias, no intuito de reorganizá-las com autonomia. As metáforas do
―canibalismo‖ e da ―carnavalização‖ teriam alguns aspectos em comum: ambas propunham
a dissolução de limites entre o físico e o espiritual, bem como, rejeitavam o ideal de
―beleza canônica‖ (referida tanto por Oswald como por Bakhtin) em favor da beleza
natural (primitiva, bruta, bárbara, ilógica), e também, evocavam a ―mastigação cordial‖ e a
reciclagem crítica da cultura oficial e estrangeira. Mastigação cordial é uma expressão
utilizada por Alfredo Bosi, ao referir-se ao posicionamento de alguns modernistas, como
Plínio salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, que diferentemente dos grupos
Antropofagia e o Pau-Brasil, que se referiram ao modernismo francês e ao passado
colonial com intenção sarcástica e se exercitavam em paródias, aqueles numa direção mais
conciliadora, não questionavam o regime patriarcal, pretendiam fazer uma ―mastigação
cordial‖ das teorias europeias, voltando-se para o aproveitamento artístico e a investigação
intelectual do folclore, dos mitos e lendas do povo brasileiro, recorrendo mais à idealização
romântica do que ao deboche dessacralizador.
Stam ainda apresenta as particularidades dos modernismos da Europa e o do
Brasil. A vanguarda modernista europeia, conforme é sabido, deslumbrava-se com a arte e
a cultura da África e das Américas, porém em países como o Brasil, tais referências
apresentavam-se por demais sensíveis e adequadas. O que era distante e metafórico para os
modernistas europeus – o mágico, o carnaval, a antropofagia – era mais íntimo e quase
restrito para os latino-americanos. De acordo com Oswald de Andrade, o primitivismo que
parecia exótico na França, era para nós, no Brasil, primitivismo real. Consequentemente, a
intimidade dos brasileiros com o ―desvario‖ do carnaval, com os estados de transe das
religiões africanas e com a poesia folclórica promoveram a assimilação de expressões
artísticas, os quais tinham representado uma ruptura mais dramática com valores e tradição
europeus.
Como o ideal modernista não representava apenas uma abstração e sim, uma
proposta de resgate da própria cultura, logo suas características se encontravam vivas na
52

cultura popular e em suas manifestações. Sendo assim, pode-se afirmar que Chico Buarque
de Holanda configura-se como uma das expressões mais significativas dentro do cenário
cultural do Brasil, incorporando significativamente algumas ideias do modernismo do
Brasil, ao tentar apreender em sua obra o universo da cultura popular. Stam assim se refere
ao trabalho do artista ao considerar a visão carnavalesca de mundo dentro da cultura
brasileira:

Assim como o trabalho de Rabelais foi profundamente imbuído da


conscientização dos festivais populares da época, também o artista brasileiro é
inevitavelmente conscientizado da cultura universal do carnaval como um
sempre presente repertório de gestos, símbolos, e metáforas, uma fonte de
conhecimento que é de uma só vez popular e erudito, um leque de estratégias
artísticas que potencialmente podem ser mobilizadas para cristalizar a
irreverência popular. A música popular brasileira, por exemplo, muitas vezes
representa imagens e motivos do carnaval para alegorizar, se não a revolução, o
fim da ditadura militar. O samba de Chico Buarque de Holanda ―Apesar de
você‖, composto no auge da ditadura militar, evoca uma popular celebração
carnavalesca para um ―você‖ não determinado que foi subentendido para
representar Médici, ditador do Brasil. E o samba de Buarque de 1984 ―Vai
Passar‖ alude – através de sua lírica, sua instrumentação, e seu ritmo – ao
desfile anual das escolas de samba de tal forma a chamar para o fim do regime
militar. (STAM,1999, p.131-132).

Chico Buarque como representante de uma geração que sofreu forte repressão
(especialmente durante o Governo Médici), sua obra poético-musical não poderia deixar de
mostrar toda a angústia, gerada pela impossibilidade de expressar opinião e de obter
informações, a que a censura obrigava as pessoas. Ainda que não houvesse em muitas
músicas suas o protesto e a contestação esperados, e mesmo que, por força das conjunturas,
as pessoas fossem impedidas de se expressarem livremente, Chico Buarque tornou-se o
arauto daqueles que não podiam falar – apesar de suas músicas ―não serem políticas‖,
como ele sempre declara. Em Apesar de Você, um exemplo do seu extenso cancioneiro,
canção que ele diz não ter feito com o caráter de protesto a ela atribuído, mas que
ambiguamente, pode tanto ter o sentido político, quanto amoroso. É bem verdade que se há
de deduzir dessa sua afirmação a sua técnica de ―pistas e despistamento‖ (técnica que
consiste em veicular uma série de informações contraditórias – ou contrainformações – em
entrevistas, deixando os leitores e entrevistadores sem saber qual seria a informação
verdadeira). Preocupado com a censura, durante muito tempo, Chico afirma ter usado mais
a sua criatividade enganando-a do que propriamente construindo suas canções.
53

Como exemplo disso, Chico Buarque cria o samba duplex e também, o


personagem Julinho da Adelaide, compositor carioca, malandro, autor de três canções:
Acorda amor (que descreve uma situação semelhante com a prisão de Chico Buarque, em
1968), Jorge Maravilha e Milagre Brasileiro. Todas as três de 1974. Sobre o samba
duplex, Orlandi (2007, p. 100) explica: ―O samba-duplex toma a cargo os desdobramentos
e as bifurcações de sentidos (...). Simulando, pois, o senso comum, o consenso, o
estereótipo, ele se instala para dizer, no entanto, o que é proibido. Nem mais, nem menos‖.
As duas primeiras tiveram suas composições assinadas por Julinho da Adelaide e
Leonel Paiva. Julinho da Adelaide foi criado por Chico Buarque não só como um
pseudônimo, mas como um heterônimo. Assim como Fernando Pessoa que criou seus
personagens-poetas, lhes conferindo vida própria, Chico cria Julinho, dando-lhe uma vida,
uma mãe e um irmão (Leonel), enfim, uma história.
Em setembro de 1974, Chico assume o personagem Julinho, durante uma
entrevista, célebre e longa, concedida a Mário Prata e Melchíades Cunha Jr. para o jornal
Última Hora. Nessa ocasião, Julinho conta toda a sua biografia: era filho de uma moradora
da favela, a Adelaide de Oliveira, que entre os maridos que teve, casara-se com um alemão
de sobrenome Kuntz – motivo pelo qual se orgulhava de ter um meio-irmão loiro, o
Leonel. Esse irmão o explorava, mas mesmo assim, Julinho o considerava seu protetor.
Naquele evento, Julinho além de falar de sua vida e de suas canções, que segundo ele
estavam sendo gravadas por compositores importantes como Chico Buarque, expõe a
―teoria do samba duplex‖, como aquele que pode mudar de sentido se for necessário. O
pequeno fragmento da entrevista citado abaixo Julinho tenta explicar como seria
construído o samba duplex:

(J.A) Eu acho bobagem a pessoa falar que a censura prejudica, quando eu acho
que o negócio é fazer samba, tem que fazer muito samba mesmo, entende? Eu
faço muito samba, quer dizer, faço vários por dia mesmo (...) e faço samba
duplex também. (...) E quase todos são duplex. (...) São sambas que você pode
mudar, entende?
(J.A) Cada vez que surge um problema, para isso que eu fiz o samba duplex,
que eu pretendo, inclusive, patentear, porque é uma ideia minha que se puder
patentear ...
(U.H) Esse samba duplex, que eu acho que é uma obra aberta, que é o samba
que o ouvinte completa em casa. Você tem a oportunidade de atingir uma faixa
muito grande de ouvintes (...) É um samba que dá várias leituras, em qualquer
nível.
(J.A.) Não, aí é diferente. O samba duplex não se propõe a isso. Não é uma obra
aberta, que é o samba que o ouvinte completa em casa. É uma obra aberta até
passar pelo filtro. Quer dizer, ele é duplex, quando eu componho. Quando
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chega aos canais competentes, o samba assume uma das duas versões. (grifos
nossos)
(U.H.) Eu tenho a impressão que o samba duplex vai ser muito bem recebido no
seio da família brasileira.

É a partir dessa pequena (e um pouco confusa) teorização feita por Julinho da


Adelaide/Chico Buarque que podemos compreender essa duplicidade que há no discurso
do compositor.
O samba Apesar de você, composto na culminância da ditadura militar invoca
uma comemoração carnavalesca popular para um ―você‖ não apontado, que foi
subentendido como Médici, ditador do Brasil. Segundo os argumentos do próprio
compositor em depoimento diante de censores, Chico Buarque, astutamente respondeu que
se tratava de uma mulher possessiva e autoritária. O discurso pode ser lido ou entendido como
lírico (muitas vezes amoroso). Isso pode ser observado na letra da canção:

Amanhã vai ser outro dia/Hoje você é quem manda


Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
(...)
(Buarque, Apesar de você In Apesar de você, Phillips, 1970).

A canção seguinte, Quando o carnaval chegar (1972), composta para o filme


homônimo de Cacá Diegues traz a alegria, o samba, a referência ao carnaval. Essa
recorrência em muitas das composições de Chico Buarque dá-se porque a música e o
carnaval são apresentados como elementos de libertação, de catarse, de desregramento e
harmonia ao mesmo tempo.
Assim, o sujeito de Quando o carnaval chegar, que passa todos os outros dias
do ano reprimido, espera ansiosamente a chegada do carnaval, que será o seu elemento
libertário, concretizando seu momento de libertação.
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Quem me vê sempre parado, distante garante que eu não sei sambar


Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando e não posso falar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Há quanto tempo desejo seu beijo molhado de maracujá
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar

(Quando o carnaval chegar in: Chico Buarque: 1972, Polygram).

Ao abordar o tema do carnaval em suas músicas, o compositor compreende a


visão da dualidade do mundo a qual se refere Bakhtin. Mesmo nas composições
consideradas de cunho político o significado simbólico se amplia, graças, dentre outras
coisas, às manifestações populares como fonte de inspiração. Sousa (2007) afirma a esse
respeito:

Nas manifestações populares, tanto na música como na festa, há um significado


de quebra do silêncio das pessoas injustiçadas por um regime que estabelece as
condutas. Essas expressões representam, sobretudo, o fato de interromper com
as práticas rotineiras, porque estas simbolizam a aceitação das regras instituídas
pelo poder; as normas que devem ser seguidas pela sociedade.

A festa, outro tema sempre presente na obra musical de Chico Buarque,


compreende também o grotesco em todos os seus matizes: o riso ambivalente, a
valorização do baixo corporal, as inversões hierárquicas. Calado (apud SOUSA, 2007)
enfatiza que,

(...) a partir dos argumentos de Bakhtin sobre os ritos cômicos e profanos, não
existe repressão no momento em que ocorre a festa, pois tudo é permitido. A
exemplo do Carnaval – manifestação que possui significados semelhantes tanto
contra o domínio da Igreja na Idade Média (apontamentos de Bakhtin), quanto
do autoritarismo dos militares na obra de Chico Buarque – existe a busca pela
construção de um ―mundo utópico‖; outra perspectiva de existência movida pela
esperança e pelo prazer, diferente da realidade séria e oficializada.

Os elementos já antes elencados também aparecem em outras composições que


utilizam o carnaval como tema, como por exemplo, Noite dos mascarados. E a relevância
56

do pretexto da máscara, especialmente presente no carnaval, no universo simbólico da


cultura popular também foi lembrada por Bakhtin:

É o motivo mais complexo, mais carregado da cultura popular. A máscara


traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a
alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência
estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das
metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos
apelidos; a máscara encarna o princípio do jogo da vida, está baseada numa
peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais
antigas dos ritos e espetáculos. O complexo simbolismo das máscaras é
inesgotável. (...) É na máscara que se revela com clareza a essência profunda do
grotesco. (BAKHTIN, op. Cit. p.35)

Como elementos que compõem a fantasia, podemos ver sua presença na canção
Noite dos Mascarados.

Quem é você?
Adivinhe, se gosta de mim
Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:
Quem é você, diga logo
Que eu quero saber o seu jogo
Que eu quero morrer no seu bloco
Que eu quero me arder no seu fogo.

Nesta canção, podemos notar um diálogo entre um casal num baile de carnaval, o
que revela como a composição se utiliza do fato de as personagens estarem mascaradas
como pano de fundo para reflexões acerca das relações pessoais em um cenário extra-
carnavalesco.
Outros elementos do grotesco podem ser visualizados em outras composições
de Chico, toma-se a título de exemplificação a canção Não sonho mais (1980), que
seguindo a linha ―antropofágica‖ iniciada por Geni e o Zepelim, em moda na música
popular, em que o artista segue a tendência anterior, não só por abordar personagens
homossexuais (o que já configurava uma inversão dos padrões morais de uma sociedade
tradicionalista), mas também por mostrar vários valores grotescos de forma escrachada e
explicitamente.

(...) Quanto mais tu corria mais tu ficava, mais atolava


Mais te sujava, amor, tu fedia, empesteava o ar
Tu que foi tão valente chorou pra gente, pediu piedade
E, olha que maldade, me deu vontade de gargalhar
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Ao pé da ribanceira acabou-se a liça e escarrei-te inteira


A tua carniça e tinha justiça nesse escarrar
Te rasgamo a carcaça, descendo a ripa, viramo as tripas
Comendo os ovos, ai, e aquele povo pôs-se a cantar (...)

Tal canção faz parte da trilha sonora do filme República dos Assassinos de
Miguel Faria Jr., na qual Chico Buarque apresenta um travesti, diferentemente de ―Geni‖,
esse agora além de personagem é também o sujeito lírico. Na letra da canção, o sujeito
lírico se dirige a seu amante, um policial, não muito respeitável, descrevendo um sonho
que tivera com ele. Há tensão entre os dois, o que leva a acreditar que a personagem atua
como quem se confessa (como num ritual religioso) diante do homem. O ―pecado‖, por
assim dizer, poderia ser guardado em segredo, porém desse modo não haveria punição
menor para a personagem que sonha (mesmo não sendo uma mulher, o travesti ocupa o
lugar desta, na condição de oprimido, de assujeitamento diante da figura do homem): o
censor interiorizado praticamente obriga a punição a se exteriorizar. Inscrevendo o
particular da arte no histórico de uma sociedade machista como é a brasileira, é possível
discutir como a arte – no caso, as canções de Chico Buarque – colabora ou tensiona com o
horizonte social.
O sonho, na concepção de Freud (1999) é como a fantasia, o ato falho e os
chistes, um meio de divisar o inconsciente em ação. Ainda, é a realização de um desejo, na
presença de um censor, usando elementos do real e com prejuízo para esse.
Mas, voltando à presença do grotesco na letra da canção, percebe-se que a
personagem e também sujeito da história se mostra aterrorizada com a situação pela qual
passava seu companheiro: no sonho, todas as suas vítimas o perseguem a fim de vingar-se
das atrocidades cometidas contra aquelas pessoas. Apesar do temor demonstrado pela
personagem ao narrar seu sonho, é facilmente perceptível à carga humorística presente no
texto, além do fato curioso de que ela própria estar entre os perseguidores do policial. Mas
de nada adiantava fugir desse povo humilhado, morto-vivo, flagelado, toda aquela gente
tinha um forte motivo para trucidá-lo, pois quanto mais ele corria, mais se aproxima de
seus algozes.
O relevo dado ao baixo corporal mostra-se claramente em palavras e
expressões, tais como: babar na fronha; se urinar toda; escarrei-te inteira a tua carniça;
te rasgamo a carcaça; viramo as ripas; comendo os ovos. A morte que o povo destinou ao
seu verdugo é uma morte antropofágica. Ainda que diante da atitude medrosa do policial
(Tu que foi tão valente chorou pra gente, pediu piedade), motivo de escárnio, inclusive do
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próprio amante, seus carrascos não demonstraram nenhuma piedade, realizando o ritual
antropofágico, devorando-o.
A música apresenta um ―happy-sad end‖, (o movimento pendular dos finais das
estórias de Chico Buarque mostra-se tão rapidamente, que ocupa os dois extremos: a
infelicidade de um é a felicidade de todos), após comer o seu malfeitor aquele povo pôs-se
a cantar (imagem que Chico também usa, por exemplo, em Apesar de você e Rosados-
ventos). A situação de injustiça (policial-vítimas) além de ser invertida (destronamento do
policial, coroamento do povo), é feita de forma significantemente simbólica pela ingestão
de um pelos outros.
Segundo o próprio Chico Buarque em Carvalho (1992), Não sonho mais ―é
uma letra violenta pra burro‖. No entanto se trata, pode assim dizer, de outro tipo de
violência: alegre, festiva, assim como nas batalhas e pancadarias descritas por Rabelais.
Além do humor presente nessa letra, não permitindo que as imagens de violência se tornem
sérias ou trágicas, a tonalidade risonha prevalece também no próprio arranjo musical.
Nesse capítulo que aqui encerra, procurou-se delinear um perfil do artista
Chico Buarque de Holanda, no interior de algumas de suas letras-poema, sinalizando sua
importância dentro da lírica, destacando sua contribuição para o acervo cultural do Brasil.
59

2 PÓS-MODERNIDADE: A INSERÇÃO DOS DESVALIDOS NO CANCIONEIRO


BUARQUEANO

Para alguns críticos a segunda guerra mundial marcou indubitavelmente o


tempo da pós-modernidade, de modo que as distinções estabelecidas com a modernidade
podem ser consideradas como indicativos adequados para configurar uma ruptura.
Entretanto, se os ideais modernos de progresso permanecem como sustentáculos da
história, ou seja, se não aconteceu uma crise das bases materiais históricas, fundadoras da
modernidade, ainda não estamos desvinculados dela, tampouco estamos aptos para
prescindir do seu estatuto. Quando muito, podemos situar-nos num dos seus momentos de
maior tensão ou contradição, como bem atesta Antoine Compagnon em Os cinco
paradoxos da modernidade (1999).
Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (1987), declara
que as profundas mudanças sociais e econômicas do início do século XIX se deram de tal
maneira, que todo o século XX pode ser tomado, superficialmente, como momento de
desenvolvimento daquelas mudanças, entendendo a segunda metade do século, como o
momento de estrangulamento daquelas relações.
Dentre os fatores que caracterizam o período da modernidade desde a segunda
grande guerra pode-se destacar a frustração da sociedade moderna com o processo de
desumanização causado pelo encrudecimento das relações deflagradas pela produção
industrial. No exercício moderno da sociedade de consumo, as artes buscam novas formas
para expressar o descontentamento do homem com o mundo, ao mesmo tempo em que o
tomam como linguagem.
É nesse contexto que se dá à diluição das fronteiras entre arte erudita e arte
popular, como resposta estética resultante do cruzamento das diversas linguagens em
circulação. No cerne dessas estéticas, a poesia encontra na música popular um veículo
apropriado aos tempos de ordem da sociedade industrial e a música popular, ao descobrir nas
letras poéticas um refinamento estético peculiar, atua no debate das questões nacionais das
décadas de 1960 e 1970.
Conforme Giddens (1991), a ―modernidade‖ refere-se ao estilo, aos modos de
vida ou à organização social, que emergiram na Europa a partir do século XVIII e que
ulteriormente se tornaram, por sua influência, mais ou menos mundiais. Giddens (ibid),
ainda reforça que no final do século XX muitos argumentos apareceram sobre o que
60

denominava ―limiar de uma nova era‖, que levaria a humanidade para direções além da
própria modernidade e, para isso as ciências sociais deveriam corresponder à altura. Por
esse motivo, sugeriu-se uma gama de termos para esse período de transição, sendo que
alguns deles atenderam positivamente ao surgimento de um novo modelo de sistema
social, tais como ―sociedade de informação‖ ou ―sociedade de consumo‖, porém a maioria
dos termos sugere que se está chegando a um encerramento, ao que chamaram ―pós-
modernidade‖, ―pós-modernismo‖, ―sociedade pós-industrial‖.
Giddens (1991) declara ser o filósofo Jean-François Lyotard o pioneiro pela
popularização da noção de pós-modernidade. Em sua obra A condição pós-moderna,
Lyotard afirma que a ―pós-modernidade se refere a um deslocamento das tentativas de
fundamentar a epistemologia, e da fé no progresso planejado humanamente‖ (Op. cit., p.
12). Giddens ainda observa que, para Lyotard a condição da pós-modernidade caracteriza-
se por uma evaporação da grand narrative, o ―enredo‖ dominante pelo qual somos
inseridos na história como seres com um passado definitivo e um futuro predizível.
Entretanto, Giddens diverge de Lyotard em relação à condição pós-moderna,
para o crítico, a desorientação (sobre a vida social e padrões de desenvolvimento social) se
expressa na sensação de não se poder obter conhecimento sistemático sobre a organização
social que, conforme seus argumentos, resulta antes de tudo da sensação de que muitos de
nós termos sidos apanhados num universo de eventos, os quais não compreendemos
totalmente e, que, na maioria das vezes fogem ao nosso controle.
Segundo esse crítico, para analisar como isso ocorre, não basta, simplesmente
criar novos termos, como ―pós-modernidade‖, e sim, olhar outra vez para a natureza da
própria modernidade, a qual, por certas razões bem específicas, como defende, tem sido
insuficientemente abarcada pelas ciências sociais. Desse modo, argumenta, que

Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos


alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se
tornando mais radicalizadas do que antes. Além da modernidade, devo
argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente do
que é atualmente chamado por muitos de ―pós-modernidade‖ (GIDDENS, op.
Cit., p.12).

Parece que o desconforto de Giddens reside na adequação de um prefixo


suficiente para nomear a realidade que se lhe apresenta. Entretanto, seu posicionamento
diante disso não atenua suas considerações a respeito da discutível questão.
61

Quanto às consequências da modernidade, Giddens se debruça de forma mais


intensa á questão das descontinuidades, em que defende a ideia de ser a história humana
marcada por certas ‗descontinuidades‘, apresentando uma forma homogênea de
desenvolvimento e de ter sido ressaltada em muitas versões do marxismo. Destaca que, ao
usar o termo, não procura a conexão particular com o materialismo histórico, e nem o
aponta para caracterização da história humana como um todo. As descontinuidades
aludidas por Giddens já podem ser vistas como a predição ao questionamento levantado
por Hall (2005), referente à ―natureza da mudança do mundo pós-moderno‖. Coadunam-se
com o conceito de descontinuidades os de fragmentação, ruptura e deslocamento. Tais
concepções são fundamentais na visão de Hall, para a discussão do impacto da mudança
contemporânea conhecida como globalização.
Embora Giddens não acredite que estejamos vivendo além da modernidade,
concentra-se em uma discussão em que aponta a modernidade como um feito de duas
faces. Explica que se por um lado, o desenvolvimento das instituições sociais modernas e
sua difusão em escala mundial criaram maiores oportunidades para os seres humanos 
como destacaram os fundadores clássicos da sociologia Marx, Durkheim e Weber , por
outro, tais sociólogos não deram a devida atenção ao fenômeno da industrialização da
guerra, ao que Giddens denomina de ―lado sombrio‖ da modernidade para aqueles que
viveram o final do século XX.
Giddens tenta estabelecer e distinguir os termos pós-modernidade e pós-
modernismo. O segundo se refere a estilos ou movimentos no interior da literatura, artes
plásticas e arquiteturas, e diz respeito a aspectos da reflexão estética sobre a natureza da
modernidade, o primeiro se refere a algo distinto, pelo menos é o que afirma a noção
abaixo:

Se estamos nos encaminhando para uma fase de pós-modernidade, isto significa


que a trajetória do desenvolvimento social está nos tirando das instituições da
modernidade rumo a um novo e diferente tipo de ordem social. O pós-
modernismo, se ele existe de forma válida, pode exprimir uma consciência de tal
transição, mas não mostra que ela existe (GIDDENS, op. Cit., p. 52).

No rol de definições do prefixo ―pós‖, Eagleton, em As ilusões do pós-


modernismo (1998), prefere utilizar o termo pós-modernismo por abranger,
concomitantemente, aquilo definido por ele por pós-modernismo, como forma de cultura
contemporânea e, pós-modernidade, como período histórico específico. Eagleton ainda
62

acrescenta que há uma íntima relação entre os termos e que essa distinção, feita por alguns
estudiosos, mesmo que seja de alguma forma útil, não se lhe configura como objetivo. O
teórico aplica seus estudos com maior rigor na esfera cultural que em formulações
requintadas da filosofia pós-moderna, tecendo uma crítica política e teórica da
contemporaneidade com ostensiva ironia. Dentre as suas pretensões, aludidas desde o
prefácio daquela obra, Eagleton acusa o pós-modernismo de em alguns momentos fabricar
alvos imaginários e de caricaturar as opiniões de seus oponentes. Eagleton assim age, por
um lado, por aspirar exatamente ao que denomina de marcas ‗populares‘ do pensamento
pós-moderno, e, por outro, porque ―o pós-modernismo‘ constitui um fenômeno tão híbrido,
que qualquer afirmação sobre o aspecto dele quase com certeza não se aplicará a outro‖
(Eagleton, 1998, p.8). Antevendo possíveis julgamentos desfavoráveis às suas ideias,
advoga em causa própria:

Pode acontecer de um determinado teórico haver, em sua obra, questionado ou


mesmo rejeitado algumas das visões que atribui ao pós-modernismo de um
modo geral; todavia, elas constituem um tipo de sabedoria reconhecida, e nesse
sentido não me considero culpado de paródia excessiva (Eagleton, 1998).

Mesmo que a análise feita por Eagleton acerca do tema pareça pessimista e
irônica, o teórico se defende, afirmando que admite o ―lado bom do pós-modernismo‖,
apontando seus pontos fortes e os fracos. Inclusive, esclarece que ―não se trata de se
posicionar a favor ou contra o pós-modernismo‖, ainda que, segundo ele, ―haja mais
motivos para se opor a ele do que para apoiá-lo‖ (Eagleton, 1998, p.8). Eagleton diz que
ser pós-modernista

não significa que você abandonou de vez o modernismo, mas que o percorreu à
exaustão até atingir uma posição ainda profundamente marcada por ele, deve
haver algo como um pré-modernismo, que percorreu todo o pós-modernismo e
acabou mais ou menos no ponto de partida, o que de modo algum não significa
que não tenha havido mudanças (Eagleton, 1998, p.8).

Ainda conforme Eagleton, ―o pós-modernismo no auge de sua militância,


emprestou a voz aos humilhados e insultados‖ e, assim sendo, representou, pode-se assim
dizer, uma contundente ameaça à autoidentidade predominante no sistema. Um exemplo
disso pode ser observado no texto a seguir:
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A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro
Cego tocando blues
Uns têm saudade
E dançam maracatus
Uns atiram pedra
Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros
Guardas noturnos, casais
São passageiros/Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz
São faxineiros/Balançam nas construções
São bilheteiras/Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Brejo da Cruz
Que eram crianças/E que comiam luz.

(BUARQUE, C. Brejo da Cruz,, 1984)

Brejo da Cruz faz parte do disco Chico Buarque, lançado em 1984, a exemplo
de Meu Guri e Pivete trata do problema da degradação social, porém alertando, mesmo que
de forma subliminar, para a banalização desse estado. Seria como aceitar o inaceitável,
onde crianças, vítimas da falta de informação, do descaso das autoridades e do desprezo da
própria sociedade, que acomodados pelas situações privilegiadas em que vivem, ou
mesmo, pela própria cultura individualista, não enfrentam o problema desde a sua raiz.
Esse conjunto de fatores faz com que cada vez mais e em maior número, crianças
convivam frequentemente com o Brejo da Cruz. Esta é uma prática desenvolvida no Brasil,
por várias gerações, em que ao miserável lhe é dada a ―esmola‖, por caridade de uma
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sociedade dita cristã, ou, em forma de alguns ―benefícios‖ sociais, por parte das
autoridades governamentais.
A letra/poema focaliza a evolução social destas crianças, que se conseguem
escapar da criminalidade, não escapam da marginalidade, pois ao chegarem à cidade
grande se misturam a milhões de outros, seus iguais: ―se disfarçam tão bem, que ninguém
pergunta de onde essa gente vem‖. Ou seja, são pessoas que tiveram o mesmo passado
miserável e que hoje disputam tarefas socialmente inferiores, ou quando se
profissionalizam continuam executando trabalhos socialmente desvalorizados como
faxineiros, babás, baleiros, auxiliares da construção civil, dentre outras atividades, sem
nenhuma expectativa real de possível ascensão social. No mundo real tanto quanto no
ficcional, a mesma história se repete como já havia denunciado João Cabral de Melo Neto
em Morte e Vida Severina, poema, aliás, musicado pelo próprio Chico Buarque em 1965.

Somos muitos Severinos /iguais em tudo e na sina:/a de abrandar estas


pedras /suando-se muito em cima,/a de tentar despertar/terra sempre mais
extinta,/a de querer arrancar/alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam/melhor Vossas Senhorias/e melhor possam
seguir/a história de minha vida,/passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra (...) (NETO, J. C. de Melo. Morte e Vida
Severina, Duas Águas, 1956, s/p.)

Chico Buarque tece alguns comentários a respeito das ambições de uma


geração de artistas em relação às possibilidades do país

Hoje em dia a gente vê pouquíssima margem de uma mudança social. Ao


mesmo tempo, em países pobres, como o Brasil é, deveria ser mais do que
nunca premente a necessidade de uma transformação social. A situação se
deteriora e não se enxerga uma alternativa razoável. Me preocupa que estamos
nos encaminhando cada vez mais para uma situação irracional. Tudo passa pela
economia. É difícil. Eu tendo a acreditar nos economistas quando dizem ser
impossível gerenciar países como o nosso de outra forma. Quem sou eu para
opinar? Eu me sinto muito diminuído, tenho pouco interesse em me manifestar
e à música estar, da mesma forma que tenho pouco interesse em ler opiniões de
leigos, de gente desavisada a esse respeito. Às vezes podem dizer coisas
interessantes, ou até brilhantes, mas quando chega a hora de uma discussão mais
séria essas opiniões soam quase como um escárnio, coisa de poeta. 8

Diante do exposto, pode-se situar o cancioneiro de Chico Buarque nesse


período descrito por Eagleton ao se tomar por exemplos canções como Fantasia (1980);
Todos juntos (1977); Brejo da Cruz (1984). Tais canções fazem coro com Apesar de você
(1973); Deus lhe pague (1971); Quando o carnaval chegar (1972), Cálice (1978),
8
Entrevista de Chico Buarque concedida a Folha de S.São Paulo em 26 de dezembro de 2004.
65

compostas no período da ditadura militar, época de violação dos direitos políticos e civis,
chamados anos de chumbo, conforme bem observa Meneses (2002), ―anos extremos de
repressão, censura e sufoco‖.
A metáfora é uma das mais poderosas armas no processo comunicativo, pois
possui o poder de quebrar resistências, levando as mensagens que se deseja comunicar. Foi
o que fez Chico Buarque, quando fez a versão do italiano para o português e também,
compôs algumas músicas novas para a peça ―Os Saltimbancos‖, texto de Sérgio Bardotti,
inspirada em Os músicos de Bremen, dos Irmãos Grimm e, que traz uma forte crítica social
contada em um texto infantil. Com esse texto, ele conseguiu burlar a censura durante a
ditadura militar. Como exemplo segue a canção Todos juntos (1977):

(...) Uma gata, o que é que é?


- Esperta
E o jumento, o que é que é?
- Paciente
Não é grande coisa realmente
Prum bichinho se assanhar
E o cachorro, o que é que é?
- Leal
E a galinha, o que é que é?
- Teimosa
Não parece mesmo grande coisa
Vamos ver no que é que dá
Esperteza, Paciência
Lealdade, Teimosia
E mais dia menos dia
A lei da selva vai mudar
Todos juntos somos fortes
(...)

(Buarque, C. Todos Juntos In: Os Saltimbancos, 1977, Philips).

De acordo com Perrone (1988), a obra de Chico Buarque nos anos 1970 e
início dos anos 1980 é fundamental para um estudo de inter-relação da música com a
literatura no Brasil. Considera o escritor que as canções mais elaboradas de Chico
demonstram ―sutileza de ideias, especialmente com relação à ambiguidade e a
plurissignificação, estruturas textuais envolventes, usos cuidadosos da metáfora e da voz
poética, e um apurado senso de rima, ritmo e integração verbo-melódica‖ (1988, p. 83).

Ainda conforme Eagleton (1998, p.33), ―a política do pós-modernismo


significou ao mesmo tempo enriquecimento e evasão‖. Nesse contexto emergiram questões
políticas inovadoras e de grande relevância, tais como o feminismo e a etnicidade. No
66

entanto, outros não de menor relevância, foram relegados, por parecerem inoportunos para
o momento. Não era de se estranhar, a discussão teórico-cultural, na década de 1960, de
temas como o socialismo, a sexualidade e os signos linguísticos. Eagleton não entendia
isso como desvio da política para outro foco, já que linguagem e sexualidade constituem
atos políticos por sua própria natureza, ―mas se revelou por conta de tudo isso, uma
maneira valiosa de deixar para trás algumas questões políticas clássicas, tais como por que
a maioria das pessoas não dispõe do suficiente para comer‖ (EAGLETON, 1998, p. 33).
Hutcheon (1991), a seu turno, não se atém em acusar ou em defender o ―pós-
modernismo‖, como prefere denominar, definindo-o como um elemento atual e cultural
contraditório

Usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que desafia  seja
na arquitetura, na literatura, na pintura, na escultura, no cinema, no vídeo, na
dança, na televisão, na música, na filosofia, na teoria estética, na psicanálise, na
lingüística (HUTCHEON, op. cit., p. 19).

A estudiosa defende que assim como ocorreram desacordos em relação ao que,


precisamente caracterizaria o modernismo, continua gradualmente ocorrendo com o pós-
modernismo. Hutcheon cita, que mesmo Jameson  um de seus contendores mais ferrenhos
 avalia o pós-modernismo:

Cabe-me agora dizer uma palavra sobre o uso adequado desse conceito: ele não
é apenas mais um termo para descrever um estilo específico. É, também, pelo
menos tal como o emprego, um conceito periodizante, cuja função é
correlacionar a emergência de novos aspectos formais da cultura com a
emergência de um novo tipo de vida social e com uma nova ordem
econômica [...] (JAMESON, 2005, p. 133)

Entretanto, a escritora afirma que, posteriormente, Jameson viria investir contra


o pós-modernismo bem mais por suas falhas, do que para defini-lo. Preocupa-lhe o
fato, de ao escrever sobre tais contradições pós-modernas, acabe instituindo uma
―identidade transcendental‖ ou essência para o pós-modernismo. Ao contrário disso,
analisa-o

como um processo ou atividade cultural em andamento, e creio que precisamos


mais do que de uma definição estável e estabilizante, é de uma ―poética‖, uma
estrutura teórica aberta, em constante mutação, com a qual possamos organizar
nosso conhecimento e nossos procedimentos críticos (Hutcheon, op. Cit., p. 32).
67

Ainda aludindo a Hutcheon, qualquer poética do pós-modernismo deve, sobretudo,


ajustar-se ao extenso material já existente sobre o pós-modernismo em todos os domínios.
De todos os aportes teóricos já vistos, parece que o que se mantém firmemente no âmbito
das discussões é o significado do prefixo ―pós‖, conforme Linda Hutcheon (Ibid), ―um
palavrão de três letras‖.
De todos os questionamentos levantados por Hutcheon, destaca-se o de que o
pós-modernismo implica uma ponderação e um diálogo em relação ao passado à luz do
presente, o que poderia, conforme a já mencionada estudiosa, ser denominado de ―presença
do passado‖ ou talvez de ―presentificação‖ desse passado. Seguindo seu raciocínio, o pós-
modernismo não nega a existência do passado, porém interroga se jamais poderemos
conhecer o passado a não ser por meio de seus ―restos textualizados‖. Isso aconteceria por
meio das oposições binárias geralmente estabelecidas quando se escreve sobre o pós-
modernismo, tais como passado e presente, moderno e pós-moderno, dentre outras.
Afirma, portanto, que ―o pós-modernismo literalmente nomeia e constitui sua própria
identidade paradoxal, e o faz num incômodo relacionamento contraditório de constante
desgaste‖ (id., p.39).
Todos os estudos desses teóricos mencionados nesse trabalho ─ pela
abrangência da abordagem desta nova configuração do mundo ─ autorizam essa
pesquisadora a instituir uma reflexão acerca do lugar do sujeito, no âmbito da poética
brasileira contemporânea, especificamente na poética buarqueana.
Conhece-se, pelo caráter da poesia, seu papel de investigar o mundo ordenado
pelo logos na busca das coisas e dos seres e de falar dos começos e das essências
primordiais. Assim, ela tenta acessar o que já existe, constituindo-se numa espécie de
linguagem originária ordenada mais por relações de afinidades e semelhanças do que pelo
logos mesmo (BOSI, 2004). Daí ser válida a definição universal de poesia também para a
poesia contemporânea, entretanto nesta, os aspectos parecem ser mais profundos. Para
compreendê-los, fez-se necessária uma incursão nos estudos a respeito da poesia
contemporânea, a fim de entender como o conceito de poesia vem sendo modificado ao
longo dos últimos séculos, culminando na contemporaneidade. Todavia, e fazia de suma
relevância, uma pergunta inicial: o que é poesia contemporânea? Para buscar uma melhor
compreensão a esse respeito, tentou-se, a partir de um levantamento teórico-bibliográfico
respaldo para tal questionamento.
68

Depois de conhecer alguns trabalhos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa


―Poesia Contemporânea: representação e crítica‖, coordenado pela professora Sylvia
Helena Cyntrão (UNB), foi possível perceber que o conceito de poesia se amplia, através
dos tempos: a lírica deixa de ser apenas ritmo; o conceito de rima e verso se relativiza,
passando a ser também visual, cujo suporte não é mais somente o livro , mas inclusive, o
cartaz, o vídeo, a imagem. Os signos da indústria cultural penetram o texto lírico, embora,
por algumas vezes, fecha-se nos velhos procedimentos, renovados ou não, implicando
numa dispersão de tais procedimentos que, porém, não podem ser submetidos a uma
dominante, para se falar em escolas e estilos.
Entretanto, a contemporaneidade como atributo de uma época, institui como
regra a sobreposição dos estilos hiperindividuais e particulares aos universais, que são
intensamente debatidos. Nesse contexto, tomou-se a canção ―Subúrbio‖, de Chico
Buarque, a fim de detectar a presença da voz pós-moderna do poeta, que através de
categorias de análises dos textos, revelaram a ocorrência de elementos figurativos de onde
surgiram imagens fragmentadas. A análise dessa canção permitiu que se observasse que a
fragmentação reflete a pluralidade de manifestações e de sensações do sujeito como
indicador da pós-modernidade. Foi possível também, compreender que as canções
compostas depois da década de 1960 ilustram que a voz discursiva de Chico Buarque
sinaliza para outras preferências, que não apenas para textos narrativos nos quais são
contadas uma história ou uma parábola.
Ressalta-se que dentre as observações feitas, percebeu-se que a voz
ideológica do eu-lírico (feminina, masculina, homossexual) não aparece de forma explícita
naquelas canções, e isso se dá, conforme Hall (2005), porque o sujeito pó-moderno não
tem uma identidade fixa, permanente.
Dessa forma, os poetas brasileiros parecem incorporar essa metamorfose
deslizante, propiciando ao leitor uma identificação com uma ou outra voz ideológica,
entretanto, notou-se que ocorrem deslocamentos da voz ideológica do eu-lírico,
dependendo do interesse do poeta, como na canção ―Paratodos‖ (analisada na próxima
seção dessa pesquisa), quando o autorretrato do poeta aparece claramente em cada verso,
até que o eu poético se revela, assumindo ―(...) sou um artista brasileiro‖.
Hutcheon (1991, p. 30) aborda outro fator importante, a descentralização do
pós-moderno, entendendo que o centro já não é totalmente válido. A partir da perspectiva
descentralizadora, ―o marginal‖, aquele denominado de ―ex-cêntrico‖ (por classe, raça,
69

etnia, gênero, orientação sexual) ―assume uma nova importância à luz do reconhecimento
implícito de que na verdade nossa cultura, não é o monólito homogêneo (isto é, masculina,
classe média, heterossexual, branca, ocidental) que podemos ter presumido‖. A teórica
explica que o pós-moderno tem o cuidado de não transformar o marginal em um novo
centro. Esclarece também, que o movimento no sentido de repensar as margens e as
fronteiras é claramente um afastamento em relação à centralização, conjuntamente com
seus conceitos associados de origem, unidade e monumentalidade, atuantes no propósito de
vincular o conceito de centro aos conceitos de eterno e universal. Por sua vez, o local, o
regional e o não totalizante são reafirmados enquanto o centro vai tornando-se uma ficção
―necessária, desejada, mas apesar disso uma ficção‖ (Id., p. 85).
Hutcheon acredita que grande parte do debate acerca da definição do termo
pós-modernismo deve-se ao que alguns consideram como perda da fé nesse impulso
centralizador e totalizante do pensamento humanista. Lembra, ainda, que tanto o marxismo
quanto a psicanálise freudiana foram acusados de serem ―metanarrativas‖ totalizantes. No
entanto, foram profícuos em análises do pós-modernismo exatamente porque seu modelo
―fendido‖ (aos novos tempos, à dialética e a luta de classes, ou as oposições
manifesto/latente e consciente/inconsciente) deu margem a um tipo de totalização
antitotalizante ou de centralização/descentralização que afirma ser muito pós-moderno ou
contraditório.
Considerando-se as ideias de Hutcheon, sobre as noções de ―centro‖ e
―margem‖, essa pesquisa observou, a partir do olhar inclusivo do eu-lírico buarqueano na
canção Subúrbio, que ao tratar da contraposição dos índices de referências entre ―centro‖ e
―periferia‖ da cidade do Rio de Janeiro, estimula vozes das minorias a se expressarem
através de sua música e de sua dança, conforme demonstram os versos da canção:

Lá não tem brisa


Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contrassenha, é cara a tapa
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Olaria
Fala, Acari, Vigário Geral
Fala, Piedade
Casas sem cor
Ruas de pó, cidade
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Que não se pinta


Que é sem vaidade
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Desbanca a outra
A tal que abusa
De ser tão maravilhosa
Lá não tem moças douradas
Expostas, andam nus
Pelas quebradas teus exus
Não tem turistas
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus
E está de costas
Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Pavuna
Fala, Inhaúma
Cordovil, Pilares
Espalha a tua voz
Nos arredores
Carrega a tua cruz
E os teus tambores
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Fala no pé
Dá uma ideia
Naquela que te sombreia
Lá não tem claro-escuro
A luz é dura
A chapa é quente
Que futuro tem
Aquela gente toda?
Perdido em ti
Eu ando em roda
É pau, é pedra
É fim de linha
É lenha, é fogo, é foda
Fala, Penha
Fala, Irajá
Fala, Encantado, Bangu
Fala, Realengo...
Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Meriti, Nova Iguaçu
Fala, Paciência...

A voz da minoria suburbana passa, assim, pela via do discurso monofônico, a


se integrar ―ao coro das muitas vozes que compartilham a instância de enunciação do eu-
lírico‖, convertendo-se ―em princípio estruturante do universo sígnico buarqueano‖
(SILVA, 2000, p. 178). Entende-se aqui por discurso monofônico a concepção de Bakthin
71

(1992), em que o filósofo esclarece a diferença entre dialogismo e polifonia. O dialogismo


não deve ser confundido com polifonia, porque aquele é o princípio dialógico constitutivo
da linguagem e esta se caracteriza por vozes polêmicas em um discurso. Há gêneros
dialógicos monofônicos (uma voz que domina as outras vozes) e gêneros dialógicos
polifônicos (vozes polêmicas). E a voz da minoria, também aqui é ratificada como as
classes desprestigiadas socialmente.
Chico comenta as fissuras de uma comunidade socialmente desigual,
representada pelo Rio de Janeiro, dividida entre a cidade rica e ―aquela que não se pinta‖ e
nem ―figura no mapa”. O poeta, então, pergunta ―que futuro tem aquela gente toda‖? Mas
não se trata de uma comunidade sem esperança, pois o autor conclama o povo trabalhador
da periferia para ―desbancar a tal que abusa de ser tão maravilhosa‖. Propõe um novo olhar
sobre essa região tão marcada pela violência e pelos preconceitos ao contemplar um
momento de afirmação e dignidade da cultura e das tradições populares, dando voz aos
seus moradores: Fala Penha / Fala Irajá / Fala Olaria / Fala Madureira / Fala Pavuna...‖
Com reverência, conjuga estilos musicais do presente e passado para afirmar que é nesses
locais que encontramos a diversidade cultural, a sabedoria popular, a troca de experiências,
o vigor criativo e a capacidade de resistência do brasileiro: ―Vai, faz ouvir os acordes do
choro-canção / Traz as cabrochas e a roda de samba / Dança teu funk, o rock, forró,
pagode, reggae / Teu hip-hop / Fala na língua do rap (...) / Fala no pé / Dá uma idéia /
Naquela que te sombreia‖.
Subúrbio é a primeira canção do CD Carioca (2006), cujas homenagens não se
estendem apenas ao Rio da Zona Sul, frequentado por Chico Buarque e local de sua atual
residência, mas o da periferia, mostrando um lado da cidade pouco conhecido dos que
visitam o Rio de Janeiro. O Rio que não está nas rotas turísticas, haja vista que ―Lá não
tem moças douradas/ [...] não tem turistas‖ e ―Não sai foto nas revistas‖, de um lugar que
―Não tem frescura nem/ atrevimento‖; de um Rio onde ―[...] não tem claro-escuro/ a luz é
dura/ a chapa é quente‖.
Em entrevista concedida a Josué Machado, para a revista Língua Portuguesa,
Chico Buarque explica que o subúrbio que canta:

é a periferia fora do mapa de uma cidade, ela própria meio marginal. Mesmo
assim, o subúrbio mantém um lado idílico, com suas tradições e formas de
expressão próprias. Foi isso que me motivou. Não a saudação do velho Rio e
velho subúrbio, que todo mundo tem. O que me inspirou foi o subúrbio de hoje
(HOLLANDA, 2006, p. 17).
72

Ao analisar a letra da canção Subúrbio, constatou-se- que as identidades dos


sujeitos que se formam a partir dos ―entre lugares‖, como define Bhabha (1998), permitem
ao sujeito organizar novas estratégias de posicionamento e visão do mundo. Entende-se
que Chico Buarque, ao longo de sua trajetória, como vem sendo demonstrado ao decorrer
desse trabalho, elaborou e realizou novas estratégias de posicionamentos em sua obra.
Mesmo que o discurso ainda se mantenha monofônico em ―Subúrbio‖, o eu-
lírico amplia as vozes que representam a periferia e falam por si mesmas, por meio de sua
música e da representação simbólica de suas experiências.
Chico Buarque como morador da cidade do Rio de janeiro, revela-se um
conhecedor de um universo contraditório, ao fazer referências aos nomes dos bairros
suburbanos, estabelecendo um contraste entre as paisagens de belezas exuberantes,
mostradas em cartões postais da cidade e a realidade nada atraente da periferia. O autor
criador, que possui um excedente de visão9, dentro da realidade textual, ratificará esta
mesma adversidade. Um eu-lírico que se posiciona axiologicamente como um autor
criador, mesmo não sendo morador das periferias, como Chico Buarque consegue abordar
uma realidade que lhe é estranha: ―Lá não tem brisa/ [...] Lá não tem moças douradas/ [...]
Lá não tem claro escuro‖; mas que se preocupa com a realidade social que ali existe: ―Que
futuro tem/ aquela gente toda‖.
De acordo com Stuart Hall (2005), há uma crise de subjetivação. Para ele, a
cultura não mais se explica por si só, criando, por isso, com a nova ideia de sociedade, o
novo sujeito que se instala a partir de um novo conceito de nação surgirá das vozes
minoritárias. Tais vozes confluem para o discurso monofônico do eu-lírico e estabelecerão
relações dialógicas a partir do contato do leitor com o texto, atualizando-o com seu
discurso, ora por fazer parte desse coro minoritário, ora por seu conhecimento da realidade
circunscrita.
Na primeira estrofe da canção, lê-se a descrição da ambientação sócio-
geográfica do subúrbio:

Lá não tem brisa


não tem verde-azuis

9
É a possibilidade que o sujeito tem de ver mais de outro sujeito do que o próprio vê de si mesmo, devido à
posição exterior (exotópica) do outro para a constituição de um todo do indivíduo. (Faraco, C. Aspectos do
pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 21-26, jan./mar.
2011.
73

não tem frescura nem atrevimento


lá não figura no mapa
no avesso da montanha,
é labirinto/ [...] casas sem cor
ruas de pó, cidade
que não se pinta/ que é sem vaidade.

A descrição continua na terceira e quinta estrofes.


A repetição de vários elementos expressivos comporta investigar o lugar de
onde o eu-lírico fala, se é ou não morador do subúrbio; o que fala, qual é a sua postura em
relação ao espaço e às pessoas as quais descreve e como fala.
Dentre esses elementos destaca-se o advérbio lá marcado no início de várias
estrofes que compõem a letra da canção. Esse recurso permite leva a inferir que o lugar de
quem fala, certamente, esse sujeito não mora no subúrbio. Outro advérbio, recorrente é o
de negação, ―não‖, que aparece como marca da ausência, da carência do que lá não existe:
―não tem verde-azuis/ não tem frescura nem/ atrevimento/ [...] não figura no mapa/ não se
pinta/ [...] sem vaidade/ [...] não tem moças douradas/ [...] não tem turistas/ não sai na foto
nas revistas/ [...] não tem claro-escuro‖.
Percebeu-se ainda, que o verbo ―ter‖ aparece afirmando o que o subúrbio não
carece é anotada pela amarga e até mordaz comprovação do eu-lírico, procedente da
distribuição geográfica: ―Lá tem Jesus/ e está de costas‖. Como se sabe, essa presença
sagrada está materializada na imagem do Cristo Redentor, uma das obras arquitetônicas
mais representativas do Brasil e um dos cartões-postais do Rio de Janeiro, tombada como
uma das Sete Maravilhas do mundo contemporâneo. O Cristo ―abençoa‖ somente um lado
da cidade do Rio de Janeiro, a parte ―que abusa/de ser tão maravilhosa‖, devido a sua
disposição geográfica. Conforme narração do eu-lírico, os bairros citados situam-se, na sua
maioria, na zona norte carioca, portanto por trás da imagem do Cristo Redentor. A grande
ironia do eu-lírico está justamente nesse ponto: o subúrbio é afastado e não acolhido, como
se o Cristo, com as costas das mãos, afastasse para longe de si aquela gente, que o eu-lírico
insiste em se preocupar, dizendo: ‖que futuro tem/aquela gente toda‖.
Conclui-se que, por várias vezes, na letra-poema de Subúrbio, aparece um
dialogismo formado pelo contraponto entre os índices de referência da cidade
―maravilhosa‖, digna de cartão-postal com a paisagem nada atrativa da periferia,
configurada pelo abandono e pela violência, A luz é dura/ A chapa é quente” [...] É pau, é
pedra/É fim de linha/É lenha, é fogo, é foda. O poeta debruça-se sobre a cidade do Rio de
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Janeiro, incluindo no seu olhar mais especificamente, para aqueles marginalizados, alijados
da parte ―maravilhosa‖, salientando, sobremaneira, a problemática social.
Seguindo essa exposição sobre o posicionamento deChico Buarque na
contemporaneidade, evidenciará nas próximas páginas, outra estratégia utilizada pelo
artista no seu fazer poético: a autorreferenciação poética.

2.1 Chico Buarque: o lirismo mágico e a autorreferenciação poética

Silva (2000) define a lírica modernista como um processo por ele denominado
de autorreferenciação poética, que consiste em fazer do ato da criação a matéria do poema.
Esse teórico cita alguns fragmentos de poemas de Drummond para exemplificar como tal
processo pode ser compreendido, não apenas na sua, mas na obra de todo poeta moderno.
Consoante com Silva, toda a poesia de Chico Buarque, por sua vez, ilustraria um exemplo
na Música Popular Brasileira. Silva denomina a primeira concepção poética de Chico
Buarque de ―mítico mágica‖, propiciando à poesia o papel de modificar a realidade,
observando que essa concepção aparece em todas as letras-poema do primeiro LP (1966).
Desse disco, ―Tem mais samba‖, seria um indicativo de ―onde a poesia (o samba) se
constrói como um espaço lírico redimensionador da problemática humano-existencial‖. Já
no segundo LP (1967), ―A banda‖ e ―Olé Olá‖ com a poética de ―O realejo‖, recusa essa
concepção mítico mágica, buscando uma nova expressão poética. Acredita Silva que, nos
versos, ―Estou vendendo um realejo/ quem vai levar/ [...] quem comprar leva consigo/ todo
o encanto que ele traz‖, Chico estaria ―abrindo mão‖ do lirismo mágico anterior. Assim, o
poeta seguiria nesse processo de evolução até entender que aquilo chamado de realidade ―é
apenas uma metamorfose do real, operada pela linguagem, e a poesia não destrói essa
metamorfose criando outra, mas instaurando nela a ambiguidade que destrói o poder
codificante da linguagem e possibilita a criação poética‖ (SILVA, 2000, p. 155).
Uma nova concepção poética finaliza Silva, viria com ―Agora falando sério‖,
em que Chico Buarque, referenciando, de forma agressiva, o ato da criação e sua própria
obra, repudia definitivamente a concepção mítico-mágica anterior, reelaborando suas
imagens poéticas:

(...) agora falando sério


eu queria não cantar
75

a cantiga bonita
que se acreditava
que o mal espanta [...] e você que está me ouvindo
quer saber o que está havendo
com as flores do meu quintal?
o amor-perfeito, traindo
a sempreviva, morrendo
e a rosa, cheirando mal.

Chico Buarque, ao refazer sua trajetória, dá por concluída a ―fase do bom


moço‖, da ―cantiga bonita‖ e do ―lirismo ingênuo‖, divisões abordadas tanto por Meneses
(2002) quanto por Sant'Anna (2004). Acaba, assim, dando um ―[...] chute no lirismo/ um
pega no cachorro/ e um tiro no sabiá [...] um fora no violino‖. A voz que tanto cantou e
encantou a tantos nesse momento ―sério‖ desabafa: ―Preferia não falar/ [...] preferia não
cantar‖. O poeta investe, portanto, contra o processo criador para desqualificar as imagens
líricas e atingir o silêncio essencial da letra da canção. A autorreferenciação de que trata
Silva, presente em ―Agora falando sério‖, remete a duas de suas composições anteriores:
―Sabiá‖, que será discutida em seguida e ―A banda‖, quando o eu-lírico afirma: ―[...] faço a
mala e corro/ pra não ver a banda passar‖.
Em Sabiá, canção que parodia a ―Canção do Exílio‖ do poeta romântico
Gonçalves Dias, percebe-se a autorreferenciação, via intertextualidade, definida por Silva,
no início dessa explanação. Faz-se necessário conhecer um pouco da história da canção
Sabiá.
Em um ano de grande truculência como foi o de 1968, os jovens brasileiros
necessitavam, efetivamente, de um hino que lhes fomentasse o espírito de rebeldia,
suscitando-lhes o desejo de participarem ativamente da luta contra o regime militar, até
mesmo de uma luta armada (ideal preconizado por parte da militância esquerdista).
―Sabiá‖ foi rotulada como uma canção alienada da realidade brasileira e fundamentalmente
lírica: ―a pouca gente, naquele instante de exaltação, ocorreu tomá-la [― Sabiá‖] como uma
nova e premonitória canção do exílio‖ (WERNECK, 1989, p.80).
Constata-se o lirismo dessa canção sim, entretanto, configurando-se em uma
paródia da ―Canção do Exílio‖ de Gonçalves Dias, e apresentava um eu lírico, que mesmo
fixo em sua terra natal, discorrendo sobre um exílio. Sobre isso, cabe uma pergunta: de que
tipo de exílio se falava, já que a condição essencial para constituir-se em um exilado é
encontrar-se desterrado de seu lugar de origem?
76

É sabido que o texto parodístico é um processo de construção de um novo


discurso através da decomposição ou da desestruturação do discurso de base. E é
exatamente isso que faz Chico Buarque baseado na ―Canção do Exílio‖, ao reconstruir um
discurso, no qual oportuniza a abertura de um viés político dentro de um discurso lírico. Essa
reconstrução modifica o sentido inicial da temática daquele poema romântico ─ o eu lírico
saudoso de sua terra natal, que recorda a forma exuberante da natureza que ―lá‖ existe,
comparando-a com o ―cá‖, local de suas dores e desilusões.

... Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
(...)
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas mais têm mais flores,
Nossos bosques tem mais vida,
Nossa vida mais amores.
(...)
Mais prazer encontro eu lá;

(DIAS, Gonçalves. Canção de Exílio . In:


http://www.jornaldepoesia.jor.br/gdias).

Reconhece-se que, se por um lado, na Canção do Exílio, a terra natal é exaltada


ao ser descrita como um lugar paradisíaco, habitada por pássaros, flores, amores e prazer,
por outro, em ―Sabiá‖, Chico Buarque apresenta uma terra natal desprovida de tais
elementos, o compositor, então, problematiza essa ausência, apresentando uma pátria
exaurida,

Vou deitar à sombra


De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá

(Chico Buarque e Tom Jobim, Sabiá, 1968).

Em ambas as canções comprova-se o desejo do eu-lírico de regressar à terra


natal. Se na primeira, transparece um saudosismo, ao qual a terra parece corresponder, na
segunda, tal anelo aparece junto a uma postura crítica no que se refere à situação política
vivida pela pátria naquele momento. Essa leitura é possível, pois Gonçalves Dias ao
escrever sua ―canção‖ encontrava-se realmente fora do Brasil, achando-se ausente em
Coimbra, em 1843. No entanto, a canção escrita por Chico Buarque foi em 1968 quando o
compositor ainda se encontrava no Brasil.
77

A relevância de Sabiá e, obviamente de seu compositor – que apoia a


argumentação de ocorrência de uma estatura tanto política quanto lírica em suas canções,
comprovando sua enorme habilidade em lidar com as palavras, oportunizando inúmeras
leituras – é conseguir (dadas às grandes conturbações políticas no país) prever algo que
aconteceria alguns meses depois, tornando-se a realidade de muitos brasileiros: o exílio.
A esse respeito, corrobora MENESES (1982, p. 24), ―O exílio torna-se uma
realidade vivida por todos os brasileiros conscientes‖. Exílio real dos que tiveram que procurar
outro país, ou exílio interior daqueles que ficaram, mas afastados de seus projetos existenciais.
Adélia Bezerra de Meneses (1982) cita a afirmação do jornalista Fernando
Gabeira a respeito do exílio:

Os políticos podem dar o balanço do número de mortos, do número de cassados,


refugiados, banidos, mas quem dará o balanço dos projetos humanos que se
frustraram, dos abraços que se negaram, dos beijos paralisados, tudo por medo?
Quem dará o balanço do medo que nós tivemos?

A canção Sabiá demonstra como um discurso predominantemente lírico, de


uma temática já bastante parodiada por outros poetas brasileiros (a saudade da pátria), pode
numa época de grandes conturbações, como foi o ano de 1968 para o cenário brasileiro, ter
esse alcance político. Se se debruçar em uma análise mais detalhada da canção, encontrar-
se-á aquilo que Adélia Bezerra de Meneses denomina de ―semântica da repressão‖,
conforme os versos seguintes podem comprovar: ―E algum amor/ Talvez possa
espantar/As noites que eu não queria/E anunciar o dia” (grifos meus).
Chico segue, em algumas de suas canções, estabelecendo um forte diálogo
com a tradição ao relacionar-se diretamente em Rosa dos Ventos (1970) com ―O
Romanceiro da Inconfidência‖, de Cecília Meireles, quanto à musicalidade dos versos.

E do amor gritou-se o escândalo


Do medo criou-se o trágico
No rosto pintou-se o pálido
E não rolou uma lágrima
Nem uma lástima para socorrer
E na gente deu o hábito
De caminhar pelas trevas
De murmurar entre as pregas
De tirar leite das pedras
De ver o tempo correr (...)

Seguindo essa linha de ―conversas‖ intertextuais, pode-se notar uma grande


influência de João Cabral de Melo Neto em composições como Baioque e Construção, em
78

que ambas primam pela sensibilidade arquitetônica, traço característico do poeta


pernambucano. Em ―Construção‖,

Amou daquela vez como se fosse a última


Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Chico Buarque, em entrevista concedida à revista Status, em 1993, confessou


que inicialmente tudo não passava de uma experiência formal, afirmando que a ideia de
narrar os últimos momentos de vida de um operário só apareceu depois da música quase
concluída. ―Construção‖ deu a Chico a quase unanimidade nacional, trazendo-lhe elogios
de críticos de todas as tendências. Apesar disso, críticos de direita não perderam a
oportunidade de demonstrar seu mau gosto ao agredir o artista gratuitamente, a exemplo do
jornalista David Nasser, que lhe sugeriu a incorporação de mais uma palavra
proparoxítona, ―Médici‖, nome do general linha-dura, então presidente do Brasil
(HOMEM, 2009).
Conforme Homem (2009, p. 97), a riqueza da melodia e o primor da letra
composta em dodecassílabos, em que se alternam rimas em proparoxítonas, associadas aos
arranjos do maestro Rogério Duprat concorrem, em grande parte para o sucesso desse
disco. Pode-se compreender a afirmação de Homem em Baioque.

Quando eu canto, que se cuide quem não for meu irmão


O meu canto, punhalada, não conhece o perdão
Quando eu rio
Quando eu rio, rio seco como é seco o sertão
Meu sorriso é uma fenda escavada no chão
Quando eu choro
Quando eu choro
É uma enchente
Surpreendendo o verão
É o inverno
De repente
Inundando o sertão
Quando eu amo
Quando eu amo
Eu devoro
Todo o meu coração
Eu odeio
Eu adoro
Numa mesma oração
79

Quando eu canto...·.

Nos primeiros versos da canção, o eu-lírico anuncia: Quando eu canto/ que


se cuide/ quem não for meu irmão. A palavra irmão não se refere à relação parental e sim,
aos vínculos que envolvem relações nas quais os indivíduos, por algum motivo,
compartilham as mesmas opiniões e ideais. Uma forma de se identificar a impossibilidade
de incorporação do coletivo, destacando o individualismo do sujeito moderno é a
recorrência da primeira pessoa, comprovada pelo pronome possessivo meu, que também
demonstra as ações, desejos e sentimentos.
Nestes versos observa-se uma referência da persona brasileira do autor Chico
Buarque de Holanda, sem que o mesmo, entretanto, invada esse mundo criado.
O sertão e o espaço urbano são definidos por metáforas, como se pode notar
nas segunda e terceira estrofes: Quando rio/ rio seco/ como é seco o sertão/ meu sorriso/ é
uma fenda/ escavada no chão/ quando choro/ é uma enchente/ [...] é o inverno/ de repente/
inundando o sertão [...].
Quando o eu-lírico opta pelo espaço urbano e litorâneo em detrimento do
espaço sertanejo, local de origem do baião, e também espaço das tradições, renega uma
referência cultural, a qual já não mais lhe interessa, afirmando: Não quero saber/ como se
dança o baião.
Para que se conheça um pouco da tradição musical brasileira, apresenta-se
como aconteceu a construção dessa tradição.

2.2 O espaço da tradição e da contradição

A música popular brasileira surgiu a partir de uma mistura de ritmos vindos


dos europeus, africanos e indígenas, mas é entre os séculos XVI e XVIII que ela começa a
tomar forma, a partir do crescimento das cidades e da necessidade de haver entretenimento
e expressão popular. Surgem assim os dois primeiros ritmos musicais que marcaram a
história da MPB: o lundu, de origem africana, com batidas fortes e ritmada e de conotação
sexual, gerando efeito humorístico. E a modinha, de origem portuguesa, com tom
melancólico, sempre abordava temas românticos com batidas calmas e característica
erudita. No final do século XIX, surge o Choro ou Chorinho, a partir da mistura do lundu,
da modinha e da dança de salão europeia. Marcando essa fase, em 1899, surge a maestrina
80

e cantora Chiquinha Gonzaga que compõe a música Abre Alas, uma das mais conhecidas
marchinhas carnavalescas da história.
No início do século XX, pela mistura de ritmos dos morros e cortiços do Rio de
Janeiro, surge a mais popular entre todos os etilos musicais de nosso país: o samba. No
ano de 1917 o cantor Ernesto dos Santos, o Donga, compõe o primeiro samba
chamado Pelo Telefone. Ainda no mesmo ano, aparece a primeira gravação de
Pixinguinha, importante cantor e compositor de nossa música. O samba-canção, que é um
gênero do samba, surge um pouco depois, no final de 1920 centrado em temáticas de amor,
solidão, representando o contraponto do samba ritmado da época.
Dentro desse mesmo estilo, outros cantores também começam a se destacar:
Dolores Duran, Antônio Maria, Marlene, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Ângela
Maria e Caubi Peixoto.
Nas décadas de 1920 e 1930 ocorre a popularização do rádio e os cantores da
época ficam cada vez mais conhecidos e alguns cantores se destacam: Ary Barroso,
Lamartine Babo - criador de O teu cabelo não nega, Dorival Caymmi, Lupicínio
Rodrigues e Noel Rosa. Surgem também os grandes intérpretes da música popular
brasileira: Carmen Miranda, Mário Reis e Francisco Alves.
Na década de 1940, a música regional do nordeste começa a contagiar o país
através de Luis Gonzaga, surgindo o baião, ritmo que ficou popular através desse cantor. O
baião retrada o cenário da seca do nordeste. Algumas de suas músicas são conhecidas até
hoje: Asa Branca e Assum Preto.

No final da década de 1950, outro estilo chega a todo vapor: a bossa nova, um
estilo sofisticado e suave. Por ela a música brasileira começa a ser mais conhecida no
exterior. Os principais cantores da Bossa Nova são Elizeth Cardoso, Tom Jobim e João
Gilberto.
Nessa canção, pode-se estabelecer uma relação homológica entre letra e
música, pois no início, o ritmo utilizado é o do baião, em que são usados imagens e
elementos típicos do nordeste brasileiro, berço original do baião. A partir da segunda parte,
Chico inova, mudando o ritmo para o rock, utilizando não só da guitarra elétrica, mas
também de imagens urbanas, como a televisão, cinema, Ipanema.

Mamie, não quero seguir


Definhando sob o sol
81

Me leva daqui
Eu quero partir
Requebrando um rock and roll
Nem quero saber
Como se dança o baião
Eu quero ligar
Eu quero um lugar
Ao sol de Ipanema, cinema e televisão.

A mudança no ritmo, iniciando com o baião e depois passando para o rock


justifica o título da canção ―Baioque‖, mistura de Bai (baião) e oque (rock ═ roque).
Para Cyntrão (2004), quando o eu-lírico assevera: ―Nem quero saber/ como se
dança o baião‖, esse verso pode ser interpretado como simbólico, não só para o poema em
discussão, mas também, como um emblema para toda a obra buarqueana, ―como ruptura
necessária com o conhecimento aceito, para que novos caminhos se abram
descontaminados do passado e de toda a sua carga negativa de acomodação ao que é de
forma fácil, socialmente aceito‖ (CYNTRÃO, 2004, p. 118).
Nesse percurso, em que diversos textos se entrelaçam num diálogo além das
décadas, o eu lírico de Chico Buarque evoca em Até o fim e em Flor da idade Carlos
Drummond de Andrade, em Poema das sete faces, e em Quadrilha, respectivamente:

Quando nasci veio um anjo safado


O chato do querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim (Até o fim, 1973)

Carlos amava Dora que amava Lia que amava Lea


que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos
que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita
que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto
que amava
A filha que amava Carlos que amava Dora que amava
toda a quadrilha (Flor da idade, 1973)

A canção ―Flor da idade‖, que faz referência ao poema ―Quadrilha‖ foi


composta para a trilha sonora do filme ―Vai trabalhar vagabundo‖, de Hugo Carvana e,
depois, utilizada na peça ―Gota d‘água‖. Humberto Werneck citado por HOMEM (2009, p.
118), conta que ―os homofóbicos profissionais da tesoura viram relações homossexuais na
ciranda final em que ‗Carlos amava Dora que amava Lia que amava Lea que amava
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Paulo/Que amava Juca‖, curiosamente, Chico precisou recorrer ao dicionário para


comprovar que o verbo amar nem sempre carrega um sentido erótico.
Em Fantasia, Chico trava outra conversa com o poeta português Fernando
Pessoa, no poema Autopsicografia,

E se, de repente
A gente não sentisse
A dor que a gente finge
E sente
Se, de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção
Então, eu te convidaria
Pra uma fantasia
Do meu violão

Chico ainda, no seu disco ―As cidades‖ faz referências diretas a Iracema,
de José de Alencar em Iracema voou (1998),

Iracema voou
para a América
Leva roupa de lã
anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
mas não muita
Uns dias, afoita
Me liga a cobrar
É Iracema da América

e a alguns personagens de Guimarães Rosa: Manuel e Miguilim, em Assentamento, canção


que dialoga perfeitamente com a obra do escritor mineiro. Nesta canção, temos como
epígrafe um trecho da obra de Rosa (2001): ―Quando eu morrer, que me enterrem na beira
do Chapadão – contente com minha terra, cansado de tanta guerra, crescido do coração.
Tôo‖.
A presença de elementos utilizados na estrutura da poesia, além da
intertextualidade podem ser observados em canções buarqueanas. Em ―Paratodos‖, temos a
homenagem a todos os brasileiros através de citação de vários estados nacionais: São
83

Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia; e de muitos músicos e compositores do país


como Dorival Caymmi, Jackson do Pandeiro, Vinícius de Morais, Nelson Cavaquinho,
Tom Jobim (Antônio Brasileiro), entre outros. Este último, talvez possa ser visto como
uma metonímia representando todos os outros músicos que não estão presentes na canção.

O meu pai era paulista /Meu avô, pernambucano


Meu bisavô, mineiro /Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano /Foi Antônio Brasileiro
Foi Antônio Brasileiro /Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas /Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada /Ver o inferno e maravilhas
Nestas tortuosas trilhas /A viola me redime
Creia, ilustre cavaleiro /Contra fé, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi /Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades, vi dinheiro /Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho /Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius /Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho /Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo /Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes /Caetano e João Gilberto.
Viva Erasmo, Ben, Roberto /Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas /Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethânia, Rita, Clara /Evoé, jovens à vista
O meu pai era paulista /Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro.

Em Paratodos, diferentemente de Baioque, em que o individualismo sobrepõe


o coletivo, o eu-lírico deixa explícitas as divergências ideológicas contidas em ambas as
letras. Tais divergências colaboram a discussão no interior dessa pesquisa, pois evidenciam
as principais marcas de uma voz moderna e pós-moderna presente no cancioneiro
buarqueano. Percebeu-se em Baioque, o afastamento do espaço tradicional, como já antes
mencionado, criando com sua recusa, um lugar de exclusão, ao passo que em Paratodos,
ocorre o inverso, agora o poeta incorpora, valoriza e nivela a contribuição do popular, na
figura de Cartola; da elite cultural, representada por João Gilberto, da ideologia polêmica
da Jovem Guarda, cujos representantes são Roberto e Erasmo Carlos; da contraideologia,
onde se enquadram Caetano Veloso e Gilberto Gil; do cenário urbano, destacando Vinícius
de Moraes e, por fim, do espaço regional, com Luiz Gonzaga.
A voz que enuncia presta uma homenagem a todos os artistas que contribuíram
para a produção musical brasileira, podendo até entender a canção Paratodos como ―letra-
84

síntese ou letra-convergência dos sentidos e valores éticos e estéticos que Chico Buarque
deixou registrados e entranhados em sua expressão poética‖ (CYNTRÃO, 2004, p. 113).
Nessa canção é importante observar que o ―autorretrato‖ do poeta mostra-se
mais claramente que em Baioque, porém não se registra nenhuma interferência do autor
pessoa na estabilidade estética do texto, ou melhor, em momento algum o eu-lírico se
identifica, revelando-se: ―sou Chico Buarque‖.
Outro elemento da poesia apropriada por Chico em seu fazer poético, refere-se
à estruturação, em Essa moça tá diferente, o compositor utiliza a quadra, uma forma
bastante difundida na poesia popular.

Essa moça tá diferente


Já não me conhece mais
Está pra lá de pra frente
Está me passando pra trás

Esta moça tá decidida


a se supermodernizar
Ela só samba escondida
Que é pra ninguém reparar

Em ―Fado Tropical‖ detecta-se dentro da canção, um soneto:

"Meu coração tem um sereno jeito


E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito


É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta


Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta


Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa...”.

A letra-poema de Fado tropical faz parte da peça Calabar, e foi declamado pela
personagem Mathias de Albuquerque.
Além de elementos formais e métricos utilizados como parte integrante da
construção de suas canções, Chico Buarque também vai utilizar, em suas letras, vários
recursos estilísticos, como: onomatopeias, elipses, rimas ricas, neologismos, metáforas,
85

personificações, aliterações, metonímias, dentre outros. Uma canção, dentre seu extenso
repertório, na qual se podem notar numerosos recursos estilísticos é ―Pedro Pedreiro‖.
Nesta canção, o que percebemos de imediato é a afinidade direta entre nome (Pedro) e o
epíteto (Pedreiro) da personagem, estabelecida pelo morfema ―pedr‖ que nos remete à
pedra, ao que é fixo sólido e imóvel. Concorrendo assim, com a estória da canção que
narra a rotina de um migrante nordestino que pensa sobre sua vida, sugerido pelo
neologismo ―penseiro‖, enquanto espera o trem para ir ao trabalho

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem


Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro Pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Desde o ano passado
Para o mês que vem.

A repetição presente na construção da letra-poema (A repetição se dá em 60


versos) constitui um recurso de grande relevância, do qual o compositor se utiliza para criar
a sensação da espera angustiante de ―Pedro‖, reforçando também a ideia inicial da
imobilidade e fixidez da personagem, ao esperar e não vislumbrar nenhuma possibilidade
de melhorar de vida:

Pedro pedreiro espera o carnaval


E a sorte grande do bilhete pela federal
Todo mês
Esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Para o mês que vem
Esperando a festa
Esperando a sorte
E a mulher de Pedro
Está esperando um filho
Pra esperar também.

Pedro pedreiro vive o drama de milhares de pessoas pobres e trabalhadoras


do Brasil, que só esperam melhorar de vida no carnaval. Nesse evento, rito caracterizado
pela inversão dos papéis sociais, no qual é possível trocar os papéis hierárquicos marcados
86

na sociedade. No carnaval, o pobre através da fantasia pode ser o que quiser: rei, nobre,
astro de cinema, herói, ou outros, passando por uma catarse proporcionada por um lampejo
de liberdade e utopia, características desse ritual Além do carnaval, Pedro pedreiro espera,
como a maioria de seus iguais, ganhar na loteria para vencer a sua condição miserável.
Pedro pedreiro torna-se assim, porta-voz da condição da vida trabalhadora e explorada do
povo brasileiro.
A repetição, além de representar uma grande espera temporal, enfatiza
também o sentido de angústia, na qual a personagem, após esperar por tanto tempo e com
tanto sofrimento, desiste de esperar ―quer ser pedreiro pobre e nada mais/sem ficar
esperando, esperando, esperando‖, resigna-se diante da enorme desilusão.
Nos quatro últimos versos da canção, Chico utiliza de outros recursos
estilísticos, a fim de enriquecer poeticamente a sua canção, tais como a aliteração em ―p‖,
reforçando seus efeitos rítmicos e a onomatopeia, presente no último verso, em que o
compositor busca reproduzir o movimento do trem que Pedro pedreiro espera
resignadamente:

Pedro pedreiro pedreiro esperando


Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro esperando o trem
Que já vem, que já vem, que já vem (...)

Em Bárbara, as metáforas sobre a relação entre Brasil e Holanda no decorrer


das invasões holandesas no Brasil, período de 1624 a 1645, quando os holandeses foram
expulsos do nordeste brasileiro. Tais metáforas, que remetem à exploração chegam a
transformar-se em alegorias representadas pelas duas personagens – Ana e Bárbara – da
canção.
Em As vitrines, temos um eu - lírico, que como um voyeur, observa a passagem
de uma mulher. Nessa canção, aparecem imagens poéticas, como as dos versos: ―Nos teus
olhos também posso ver/As vitrines te vendo passar‖. A letra desta canção – presente no
LP Almanaque – pode ser comparada a um poema concreto, se se observar a disposição da
letra, diagramada como uma imagem no espelho, que é refletida de cabeça para baixo e de
trás para frente, possibilitando a visualização das múltiplas imagens refletidas pelos vidros
das vitrines.
Em Pedaço de mim, Chico Buarque cria uma das imagens mais belas da língua
portuguesa (impressão da pesquisadora) para representar a saudade, sentimento tão caro a
87

brasileiros e portugueses: Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o


quarto/Do filho que já morreu.
Indubitavelmente, poder-se-ia estender por muitas e muitas páginas,
discorrendo sobre elementos poéticos presentes em letras de Chico Buarque, o que serviria
como corpus para inúmeras pesquisas, pois a obra desse artista é vasta e riquíssima, o que
revela uma grande competência poética comparada à de outros ilustres poetas brasileiros.
Todas as letras-poema, que se tentou analisar, mesmo que de forma suscinta,
demonstram o cuidado e o apuro que Chico Buarque dispensa ao seu fazer artístico.
Percebeu-se a minúcia dos detalhes, seja na utilização de elementos lexicais, estilísticos ou
formais da poesia, buscando enaltecer suas canções, tanto no nível musical, quanto no
poético. Chico, mais que isso, revela sua sensibilidade como poeta, além de dominar os
aspectos formais da língua, revela-se um conhecedor de sua gente, não importando a que
classe social pertença. Chico Buarque se apresenta como erudito, popular, requintado,
escrachado, multifacetado, enfim um artista completo.
Dessa forma, quando se afirma que no cancioneiro buarqueano é possível
encontrar espaço para abordar experiências emotivas, parece apropriado associar suas
composições aos conceitos de lirismo dramático presentes nos estudos de Hugo Friedrich,
Emil Staiger e Jorge Koshiyama.

2.2 As vivências e o drama de um cantor atormentado

O repertório de Chico Buarque, como vem sendo demonstrado, reúne indícios


que autorizam identificar no interior de algumas de suas composições um alto cuidado
melódico-linguístico, constituído pela articulação do texto, pela transparência melódica e
também, pela liberdade interpretativa. Ao longo do trabalho, em que consistiu o processo
de seleção e organização das canções, constatou-se que muitas letras do cancioneiro
buarqueano são revestidas de lirismo, por isso, fez-se necessária uma reflexão mais bem
aprofundada sobre ―a lírica‖ de Chico Buarque. Para tal intento, recorreu-se aos conceitos
de lirismo desenvolvidos por Koshiyama, Staiger e Friedrich, cujo enfoque se debruça
acerca da dramaticidade e da vivência de emoções.
De acordo com esse enfoque, o lirismo pode ser percebido como a expressão
subjetiva ou dinâmica do sujeito, instituído como condição e fundamento da poesia, já que
é isso um dos principais critérios para distinguir o texto poético do não poético ao propiciar
88

a inserção desses elementos, onde o lirismo apresenta-se com recorrência não apenas em
textos poéticos, mas também em parte do cancioneiro popular. A esse respeito, Emil
Staiger (1975, p. 72) assevera: ―Poetizar lírico é aquele em si impossível falar da alma, que
não quer ‗ser tomado pela palavra‘, no qual a própria língua se envergonha de sua
realidade rígida, e prefere furtar-se a todo intento lógico e gramatical‖. E ainda, segundo
Koshiyama (2007, p. 84): ―A lírica é sempre uma resposta a uma experiência. Não é uma
experiência fora da história. Se voltarmos às raízes, aos radicais de poesia, poema, poética,
verificamos (...) a íntima associação entre trabalho, linguagem, poesia‖.
A lírica surgiu na Antiguidade como expressão pessoal do sujeito e da união
direta da sua forma com a música. Moisés (1978, p. 306-307) afirma a esse respeito:

De modo geral, o histórico da lírica apresenta dois grandes lapsos de tempo,


limitados pela Renascença: no primeiro, consistia na atividade poética destinada
ao canto, e acompanhada pela lira ou, durante a Idade Média, por outros
instrumentos de corda, como a viola, o alaúde, o saltério, a guitarra; no segundo,
instaurado o divórcio entre a letra e a pauta musical, o poema lírico endereçava-
se não mais aos ouvidos, e sim aos olhos, na medida em que visava a ser lido.
Contudo, o remoto e entranhado vínculo resistiu; a rigor, embora o poema lírico
não mais implicasse o canto, a musicalidade manteve-se como característica
indelével.

A poesia pode ser analisada como um espaço lírico estruturado pela dinâmica
do sujeito e que conforme Staiger (1975, p.73): ―O Épico precisa ser recolhido, o
Dramático tem que ser arrancado à força. O lírico, porém, é dado por inspiração. Esperar
pela inspiração é a única coisa que o poeta pode fazer‖. A lírica expressa sua ligação com a
ideia pessoal do sujeito e sua ligação direta de sua forma com a música, sua origem é dada
pelos Ditirambos que eram poemas entoados pelos gregos sempre acompanhados por
algum instrumento de percussão e em especial da lira, que por sua vez deu origem ao
termo lirismo como sinônimo de canto, cujo fundamento consiste em extravar a
subjetividade ou na temática amorosa.
Os ditirambos eram compostos por corais ou cantos festivos que anunciavam
momentos alegres ou tristes. Por sua entoação é possível perceber seu caráter polifônico, já
que neles a expressão lírica aparece através do encontro de múltiplas vozes. Os diritambos
quando são entoados utilizam simultaneamente do ritmo, do metro e do canto. Também é
perceptível na sua estrutura a presença de um autor, um eu que se apresenta como narrador
A esse respeito, Koshiyama (2007, p. 91) pondera: ―O lirismo é a renovação do canto
ditirâmbico. Se o lirismo, isto é a expressão do ser humano que é portador de experiência
89

poética, não pode capitular ‗ao que quer que seja fora de si mesmo‘, é estranho que ela seja
nomeada mediante categorias negativas‖.
Desde seu surgimento, passando pelos períodos Medieval, Renascentista e
Barroco, os poemas eram criados para serem cantados, assim como a atual música popular,
estabelecendo já uma íntima relação entre poesia e música. Tal relação pode ser atestada
conforme as palavras de Rodrigues (1989, p. 90):

... a grande poesia medieval quase que foi exclusivamente concebida para o
canto. O Barroco, séculos além, fez os primeiros ensaios operísticos, que iriam
recolocar o teatro no coração da música. Depois Mozart, com a Flauta Mágica ou
D. Giovanni, levaria, como sabemos, esta fusão ao sublime.

Durante longo tempo, a poesia destinou-se à voz e aos ouvidos. No entanto, foi
no século XV com a invenção da imprensa XV que se tornou mais clara a diferença entre
música e poesia.
A partir do século XVI, a lírica foi se separando do canto, unindo-se mais á
esfera da palavra escrita, servindo-se mais para a leitura silenciosa. Em decorrência disso, a
poesia, ainda que agregada à música deixou de ser musicada pelo próprio autor do texto
dito literário e a poesia, que antes era feita para o canto passa a ser dita e declamada. Assim
sendo, em fins do século XV, a ligação estreita entre poesia e música enfraquece o que
propicia para cada uma dessas artes buscarem sua autonomia. Apesar disso, a poesia ainda
preserva alguns traços próprios da música.
A respeito da poesia lírica, convém destacar o valor do verso medieval para a
tradição da poesia ocidental.
Acerca da poesia lírica, torna-se preciso ainda ressaltar a importância do verso
medieval para a tradição da poesia ocidental. Tal verso era originário do sul da França, da
região da Provença e conformava uma poesia predominantemente lírica que assinalou os
séculos XI, XII e XIII e que serviria de base, nos séculos seguintes, para todo o lirismo
europeu.
Essas composições eram chamadas de cantigas e se associavam à música e à
dança, tornando-se a principal forma de expressão lírica na Idade Média.
De fato, as cantigas eram poemas compostos para serem ouvidos acompanhados
por música, apresentados nos castelos. Graças às cantigas, os trovadores conseguiram se
destacar no contexto literário dos séculos XII e XIII, disseminando um tipo de composição
mais próxima da poesia popular no que concerne aos aspectos formais, tais como a
90

estrutura paralelística e o refrão e ainda, pela temática apresentada: a ideia do amor como
inspiração poética, nascendo aí o amor cortês ou o ―fin‘amors‖.
A poesia provençal ou lírica de idealização amorosa estava destinada à escrita,
composta por um esquema de tonicidade em que pudesse persistir o caráter de duração das
sílabas. Entretanto, traços do lirismo medieval, cujas origens encontram-se nos versos
provençais, podem ser encontrados no lirismo galego-português, suas cantigas além de
serem acompanhadas de instrumentos musicais também eram coreografadas. Mais uma vez
pode-se atestar aí uma estreita relação entre a letra e o som das canções.
Por volta do século XI, a Península Ibérica fora palco de sangrentas batalhas
que tinham como objetivo declarado expulsar os muçulmanos que desde o VIII ocupavam
a região. Mas como ocorrerão no caso das Cruzadas, mais do que uma intenção religiosa,
estas lutas terão fortes escopos políticos e territoriais. Assim, em breve a Lusitânia se
afirmará como região politicamente independente do resto da península, e o primeiro rei de
Portugal será Afonso I, que subirá ao trono em 1139. Ainda por esta época, embora seja
matéria difícil estabelecer o momento exato do surgimento de uma língua ou variação
linguística, na Lusitânia se consolidará como língua falada e escrita o galego-português
O poeta que viverá este momento de reconquista, de religiosidade, de
batalhas, do particular ambiente de corte da Idade Media, e da língua galego-portuguesa,
será o trovador. E a sua arte refletirá o mundo que o rodeia. Contudo, o trovador não será
um artista qualquer; a sua fama, ou o valor da sua arte, será atribuído primeiro de acordo
com as suas origens familiares. Para ser um trovador, o sujeito precisava antes de tudo ser
um nobre, participar do ambiente de corte, ser culto; e se não gozasse de um bom
nascimento, precisava ser o protegido de algum nobre de grande influência. Em outro caso
seria denominado Jogral. Este, não sendo um nobre, ou não sendo um protegido, não
frequentava a corte, e cantava a sua poesia pelas ruas, muitas vezes indo de cidade em
cidade.
O trovadorismo representa a primeira escola literária galego-portuguesa. As
suas cantigas foram tardiamente organizadas em cancioneiros (Cancioneiro da Ajuda, o
Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa e o Cancioneiro da Vaticana) e então
classificadas entre os gêneros lírico (cantigas de amor e de amigo) e satírico (cantigas de
escárnio e maldizer). Os trovadores ainda escreveram as gestas, ou estórias de cavalaria.
Nestas faz-se notar a forte influência das batalhas contra os mouros e a religiosidade cristã.
91

As cantigas de amigo tem origem popular e folclórica, nas quais o poeta fala
em nome de uma mulher, que geralmente sofre e chora pela ausência de seu amado. As
cantigas de amor apresentam os temas do amor cortês provençal, em que um trovador
idealiza uma situação amorosa, usualmente alterando a poesia primitiva produzida em
terras germânicas e italianas, cujo tema principal era a mulher e que também utilizava da
música e da coreografia. Essa poesia receberia como contribuição dos trovadores a técnica
instituída através de uma disciplina e não mais por inspiração simplesmente, bem como a
arte pela arte e a percepção dos meios para realizar essa arte poética, além da vassalagem
amorosa. Assim surge a poesia palaciana e, consequentemente a poesia popular.
Com a separação mais decisiva entre poesia e música, conforme vem sendo
abordado nesse estudo, aparecem no final do século XV e primórdios do século XVI ―as
primeiras individualidades poéticas‖ (Spina, 1972, p.44), com uma poesia com novos
contornos, trazendo novos ritmos e temas, além de novas combinações estróficas. São seus
maiores representantes Duarte de Brito, Diogo Brandão, Jorge de Aguiar e João Ruiz de
Castelo Branco.
Entretanto, no século XVIII refaz-se novamente uma ligação mais estreita entre
poesia e música, principalmente nos poemas do poeta árcade Silva Alvarenga. Antônio
Cândido (1981) afirma que a poesia de Silva Alvarenga é a primeira de nossa literatura a
sugerir um modelo de poesia lírica, de modo sistemático e absorvente, apresentando um
metro fácil e cantante, de sabor quase popular. Ainda, concentrando-se nas formas breves,
apropriadas á pesquisa lírica e a á expressão dos estados poéticos.
Durante o Romantismo, já no século XIX, tanto a poesia quanto o papel do poeta
sofrem algumas transformações, devido a questões histórico-culturais, bem como à
formação da sociedade burguesa advinda da Revolução Francesa e também, pelo progresso
científico, tecnológico e industrial. O poeta passa a desempenhar uma nova função e a
poesia lírica é vista com maior prestígio, pois a burguesia passa a perceber um esboço
profissional na manifestação artística, o que gerou uma sensação de inadequação do artista
perante a nova sociedade conduzida por aqueles avanços. Isso desencadeou nos poetas
românticos a busca pela evasão. Sendo assim, o individualismo burguês é tomado pelo
poeta como profundo subjetivismo emocional, fazendo com que o artista buscasse
expressar-se numa linguagem que incorporasse ao texto poético o mundo e as conjunturas
da modernidade que já despontava. Para conseguir tal feito, o poeta necessitou voltar-se
para a matéria-prima verbal de sua poesia, procurando aí as possibilidades de uma
92

expressão que, mesmo assentada na palavra e no som, propiciasse uma nova configuração
à linguagem poética. Os poetas românticos procuram então, expressar-se subjetivamente,
através da construção de significado ao espaço circundante, transformando-o em seu
espaço lírico, manifestando-se emocional e sentimentalmente. O poeta romântico proclama
seu lirismo no individualismo e na valorização do sentimento.
No Brasil, durante o período de construção de um projeto nacional, o lirismo
romântico acabou se impondo em decorrência de um discurso voltado para a afirmação
nacionalista, personalidade literária e eloquência retórica, possibilitando assim a integração
do ―eu‖ com a natureza na poesia.
Com o advento do Modernismo, um pouco mais à frente, a expressão lírica se
constrói a parir da dissolução da subjetividade, contida nos versos românticos.
O sujeito lírico da modernidade já não mais se fecha em torno de uma pessoa
em particular, libertando-se, tanto da figura do poeta, quanto da do leitor, que também já
não se confunde ou representa o sujeito de carne e osso. Desse modo, o sujeito lírico passa
a ser edificado conforme as escolhas de linguagem que existem no poema, atestando que
esse sujeito lírico não poderá mais ser confundido com aquele poeta ―em pessoa‖, pois sua
existência ―brota da melodia, do canto, da sintaxe, do ritmo: o sujeito lírico é o próprio
texto, e é no texto que o poeta real transforma-se em sujeito lírico‖ (Cara, 1982, p. 48). O
poema configura-se como lugar de liberdade e também, como espaço de expressão das
possibilidades essenciais à própria linguagem, dentre as quais, o ritmo, a musicalidade, a
pluralidade de sentidos e a polifonia.
As canções Atrás da porta (1980); Olhos nos olhos (1976), dentre muitas
outras, de autoria de Chico Buarque exemplificam as afirmações feitas anteriormente, uma
vez que em ambas há uma voz de autoria masculina, que se manifesta através de um eu
lírico feminino. Tais vozes falam com a pessoa amada, sendo que na primeira canção,
percebe-se uma voz dilacerada pela dor da separação e na outra, uma voz que superou
(pelo menos aparentemente) a perda amorosa.
A presença lírica nos textos modernos se vincula então, à manifestação objetiva
do sujeito lírico inserido em um espaço lírico subjetivo. Para demonstrar esse
posicionamento do sujeito lírico nos contextos romântico e moderno, buscou-se na canção
Sabiá (1968), na qual é patente o diálogo com o poema de Gonçalves Dias.

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
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Para o meu lugar


Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia.

Nesta canção, o sujeito lírico, assim como no poema ―Canção do Exílio‖, de


Gonçalves Dias, exprime um forte desejo de retornar à terra natal. Essa canção, composta
por Chico e Tom Jobim, venceu o III Festival Internacional da Canção promovido pela
rede Globo em 1968. Naquela ocasião, essa canção não foi muito bem aceita pelo público,
que a considerava alienada, não condizente com a situação política do país. Mas, vê-se
nessa composição, um exemplo claro de texto parodístico, no qual Chico e Tom
conseguem construir outro discurso, ao desconstruir o discurso original do poema
gonçalvino.
Com esse novo discurso, Chico proporciona uma leitura política da letra fixada
no discurso lírico contido na canção, diferentemente do sentido primeiro do poema
romântico. No poema de Gonçalves Dias, o sujeito lírico descreve a terra como um lugar
de belezas e riquezas sem par, enquanto que em ―Sabiá‖, esses elementos estão ausentes,
causando o esvaziamento da pátria descrita, pode-se comprovar pelos fragmentos: ―Vou
deitar à sombra / De uma palmeira / Que já não há / Colher a flor que já não dá‖. Se em
―Canção do Exílio‖, a palmeira funciona como significado para as belezas de sua terra, em
―Sabiá‖, a mesma palavra funciona como um significante para o espaço externo, pois ao
contrário de Gonçalves Dias, que retira a palmeira, o sabiá e os bosques daquele espaço,
através de forte carga emotiva. Chico os insere novamente na canção, porém pela marca da
ausência, o que causa a dissolução da subjetividade deparada no poema. Enquanto no
poema, o saudosismo parece ser correspondido pela terra, na canção de Chico, o mesmo
sentimento parece caminhar junto com a postura crítica do sujeito lírico diante da
conjuntura política do Brasil, vivida nos idos de 1968. Tal postura contém um tipo de
profecia do que viria a ocorrer tempos depois, o exílio, uma realidade experimentada por
muitos brasileiros, inclusive o próprio Chico Buarque.
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Em ―Sabiá‖, é possível perceber que um discurso essencialmente lírico pode


ser caracterizado por político ao assumir-se como tal no interior da relação objetiva
estabelecida entre o sujeito lírico e o espaço no qual se insere.
Diante dessas reflexões, pode-se compreender que ler um poema ou cantar uma
canção é dispor-se a ouvir uma outra voz, e não só, mas, é ouvir um outro ser, já que ―vida,
fala/canto e mundo se unificam, modulando os ritmos do outro‖ (ROCHA, 2006, p. 80).
Nesse processo, aparece uma voz que se põe a relacionar-se com o mundo, confrontando a
linguagem, o mundo e o sentimento. Essa voz só se fará ouvir e entender se o sujeito,
dentro dessa expressão poética, se permitir escutar uma manifestação de experiência,
reflexão ou confidência daquele que fala ou canta. Essa palavra cantada ou proferida pela
voz que expressa essas vivências servirá de mediadora das relações existentes entre o
sujeito, instituído como seu ouvinte e o lirismo, fazendo com que esse sujeito aluda fatos já
vividos, ou, desencadeando desejos que ainda não lhe afloraram. Dessa forma, o lirismo se
configuraria como resposta a uma experiência inserida tanto no tempo quanto no espaço da
existência desse sujeito. A palavra assim elaborada une canto, pensamento e experiências
vividas. Koshyiama (1996, p.90) afirma sobre o que seria o lirismo ―aquela experiência
com a linguagem, em que se funda, para nós e para os outros, a lembrança e a possibilidade
de uma comunhão autêntica. E o canto, que é feito da mediação entre vida, mundo,
linguagem, da escolha nossa, é a palavra de um vivente‖.
Portanto, é que se defende nessa dissertação a ocorrência de lirismo em
canções de Chico Buarque, cuja construção musical se expande através do
desenvolvimento de pequenas narrativas entremeadas por construções líricas às quais
SILVA (1978) denomina de ―relatos-acontecimento. Esses relatos trazem em sua estrutura
pequenas histórias circunstanciais e cotidianas, nas quais é possível perceber a tentativa de
significação existencial do sujeito do século XX, abordando as expectativas, desejos e
ansiedades de uma sociedade que se identifica com as letras das músicas, passando a
assumir o papel do sujeito lírico, buscando nas letras das canções uma forma de retratar
tais sentimentos, sejam eles experimentados ou não.
Dessa forma, pode-se conceber o lirismo como vivência, como emoção, como
experimentação das palavras na poesia, pois conforme Koshiyama (Ibidem, p. 92), isso
ocorre porque o lirismo decide-se a ―conservar plena e íntegra a recordação da experiência
individual e social, o poeta pode integrar-se a nós com a força de seu canto e de sua
emoção‖. Sendo assim, permite-se compreender o lirismo como emoção, como algo
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doloroso, mas ao mesmo tempo como uma maneira de se resgatar a memória de uma
situação. Seguindo ainda nessa argumentação, o mesmo teórico declara haver também
nessa perspectiva lírica um cuidado com a sonoridade das palavras ao se organizarem em
sucessões rítmicas melodiosas e sugestivas. Dessa forma, o lirismo seria então entendido
como a expressão do humano ao transmitir sua experiência poética. Desse modo, é
possível afirmar que o cancioneiro buarqueano se encontra nesse contexto, já que se liga à
experimentação, à vivência de emoções. Consoante com esse lirismo defendido por
Koshiyama cita-se como exemplo a letra de Futuros Amantes (1993)

Não se afobe, não


Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta- restante
Milênios, milênios
No ar
E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa,
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você.
Nessa canção, o compositor cria uma imagem da cidade do Rio de Janeiro,
cenário de suas vivências pessoais e artísticas, O Rio será/ Alguma cidade submersa, uma
espécie de Atlântida, a cidade mítica, objeto de desejos de arqueólogos e aventureiros.
Porém, o que parece ser a imagem mais forte nessa canção é a da representação do
sentimento como algo infinito e imortal, desviado de seu caráter efêmero dentro de um
relacionamento, podendo atravessar os tempos, perpassando várias gerações, através dos
tempos.
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Futuros amantes, quiçá


Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você.

Em decorrência disso, pode-se considerar essa canção como exemplificação


daquilo que Koshiyama denomina lirismo dramático, pois o eu lírico retrata a cidade do
Rio de Janeiro como palco para a propagação do desejo, equivalendo ao ―resgate da
experiência individual do eu lírico‖, e também, compreender esse lirismo como emoção,
―como um caminho em que se resgata a memória de uma circunstância‖.
De acordo com essa percepção de lirismo, convém considerar que a lírica
moderna pode ser percebida como a linguagem que expressa estados de ânimo, da alma ,
da subjetividade. ―O conceito de estado de ânimo‖, segundo Friedrich (1978, p. 17),
―indica distensão, mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que mesmo o homem
mais solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir‖, ao passo que a poesia
moderna evita exatamente essa ―intimidade comunicativa‖, pois ―prescinde da humanidade
no sentido tradicional, da ‗experiência vivida‘, do sentimento e (…) até mesmo do eu
pessoal do artista‖, que ―não mais participa em sua criação como pessoa particular, porém
como inteligência que poetiza, como operador da língua, como artista que experimentou os
atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num assunto
qualquer‖ (FRIEDRICH, 1978, p.17).
Nessa acepção, (FRIEDRICH, 1978) assevera, que ―a produção lírica se
relaciona a uma polifonia e a uma incondicional manifestação da subjetividade do sujeito
lírico, que já não pode mais estilhaçar sua expressividade, nem sua sensibilidade em
valores fechados. Entretanto, esse mesmo sujeito pode, valendo-se da linguagem lírica,
―articular o social e o plural ao individual‖, uma vez que permite ao leitor abrir espaço para
a visão do outro, bem como de ―dialogar com a manifestação expressiva lírica do sujeito
poético‖, incorporando ao texto ―múltiplas formas de pensar, de sentir, de utilizar a
linguagem‖. Para comprovar essa situação, utilizou-se a canção As vitrines (1981):

Eu te vejo sumir por aí


Te avisei que a cidade era uma vão
– Dá tua mão
– Olha pra mim
– Não faz assim
– Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
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Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.

Nessa canção, pode-se perceber ademais da narrativa que se apresenta a


abordagem de dois importantes temas da literatura, o problema do desejo e o tópico
referente à lírica medieval: a mulher que passa. Além de abordar o tema do desejo, essa
canção se liga ainda ao tópico lírico ―A mulher que passa‖, presente na literatura medieval,
retratado na poesia renascentista por Camões e retomado em Baudelaire nos versos de A
une passante. A questão do desejo aparece tanto na figura da mulher que o sujeito lírico vê
―sumir por aí‖, da qual ele não tem o controle, que mesmo sob advertências do tipo, ―não
vai lá não‖, ela não o escuta e se perde por entre os vãos da cidade. E é nos vãos da cidade
que se encontram as vitrines, também configuradas como objeto de desejo da população
dos grandes centros, onde o consumismo é exagerado. Nessa letra é patente um
transbordamento, um excesso na mulher descrita aí, ela é o sujeito que escapa, que está
fora de contato. Ela é o outro que escapa ao sujeito lírico e assim, o excede, o extrapola.
Dessa forma, só resta ao sujeito lírico ―catar a poesia que ela entorna no chão‖. Segundo
Sechhin (2004), ―O transbordamento dessa mulher ‗que gostava de ser‘ [...] apossar-se de
sobras ou cacos de poesia, como a metonímia possível do outro em definitivo perdido‖. Ela
entorna, justamente porque é excesso, não cabendo em si mesma. A ideia de excesso, de
transbordamento, pode se aproximar da compreensão do outro como o que atravessa,
ultrapassa o sujeito, que não pode ser compreendido, abarcado ou tematizado. Esse outro
pode ser configurado como da ordem do desejo, mas um desejo designado pelo excesso,
não pela falta, ―como um pensamento que pensa mais do que não pensa, ou do que aquilo
que pensa‖ (LÉVINAS, 1988, p. 84).
Em ―Laços do Desejo‖, Marilena Chaui (1995, p. 22) aborda o tema do desejo,
sob a visão de várias áreas de estudo, tais como a filosófica, a psicanalítica, entre outras.
Convém, nesse estudo retomar a origem da palavra desejo, que advém do verbo desidero,
98

originário de sidus, cujo significado é constelação. De desidero, deriva-se desiderare, que


significa abandonar o olhar para o alto ou ser abandonado pelas estrelas. Daí surge
desiderium, o desejo, cujo sentido remonta à privação do saber, à perda, que, ao mesmo
tempo, realiza o movimento de tender para fora de si em busca de preenchimento.
Chauí analisou o tema do desejo conforme a visão de diferentes filósofos,
chegando à conclusão de que eles se aproximam no que se refere à relação entre
imaginação e desejo. É através da imaginação que transcorre o movimento de atividade e
passividade do sujeito.
Segundo Spinoza (Apud CHAUÍ, 1995., p. 23), o desejo é definido como
―causa adequada‖, que se entende como encontrar interiormente no corpo e na alma a sua
razão plena. Entretanto, o desejo define-se, também, como ―causa inadequada‖, que é
constituído no homem como o encontro fora de si da razão do próprio desejo. Assim, o
desejo é, ao mesmo tempo, causa eficiente que pode ser determinada tanto do exterior
(paixão), quanto do interior (ação).
Ainda em Spinoza, o ―desejo ou apetite reside em possuir algo cuja lembrança
foi conservada. Aquele que se recorda de alguma coisa com que se deleitou deseja possuí-
la nas mesmas circunstâncias em que, pela primeira vez, com ela se deleitou‖ (Ibid.). Daí, a
necessidade do homem moderno em tentar rememorar, reviver ou deter o momento,
através das lembranças.
Frente a tais considerações, Chauí reitera em seu estudo que a ideia de desejo é
resultado da mistura ambígua de atividade e passividade, isto é, decisão determinada e
ímpeto de carência, que coloca o homem sob o poder das situações e das ocorrências.
Chauí ainda afirma que o desejo move o mundo e se encontra ligado,
permeando a vida de cada pessoa. E que é na imaginação, entendida como sensação,
percepção, memória, fantasia e linguagem, que se transcorrem a passividade e a atividade
da manifestação do desejo, movimento esse que liga alma e corpo. Ao movimento de
atividade ou passividade da manifestação do desejo a autora nomeia os termos ―desejoso‖
ou ―desejante‖. Esses dois polos da manifestação do desejo indicariam o posicionamento
do ser ante o objeto / pessoa desejados.
Sendo assim, na canção As vitrines, a figura da mulher cobiçada pelo eu-lírico,
remete-se à mulher idealizada pelo Romantismo, abundantemente retratada em produções
literárias, o que pode ser tomado como manifestação do desejo, conforme o pensamento de
Chauí, já aludido nesse estudo.
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Em ―As vitrines‖ percebe-se além da abordagem da questão do desejo, uma


ligação ao tema de ―A mulher que passa‖, tópico lírico presente na literatura medieval,
utilizado por Camões, na poesia renascentista portuguesa, exemplificado nos versos de
―Descalça vai para a fonte‖ e ―Descalça vai pela neve‖, Baudelaire retoma o tópico em A
une passante. Transcreve-se aqui o citado poema:

A rua em derredor era um ruído incomum,


Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que se embala e o frenesi que mata.
Um relâmpago, e após a noite! – Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?
Bem longe, tarde, além, "jamais" provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado – e o sabias demais!

(BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Jamil Almansur Haddad. São


Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 236).

Nele, tem-se o registro do momento singular e prófugo da contemplação da


mulher que completa o olhar do eu-lírico, embotando sua visão e sumindo, semelhante à
atitude da personagem feminina no texto buarqueano.
No cancioneiro buarqueano, a experiência lírica do sujeito retoma a mais
irrestrita intimidade, na qual é possível notar o encadeamento da palavra, que na sua
abertura para o outro, promove a possibilidade de escuta e de, ―comunhão‖ com todos os
seres, conforme assevera SANT‘ANNA (1980, p. 99)

Sua obra [a de Chico] se desenvolve sistematicamente como uma ―construção‖,


onde todas as imagens, mesmo as mais banais, contribuem para a reafirmação da
música como atividade destinada a romper o silêncio do cotidiano e a fazer falar
as verdades que os homens querem calar. Nele, a música é possibilidade de
comunhão, a lembrança do paraíso perdido, música como abertura para a vida.

Ao unir essas condições aos trabalhos de Jorge Koshiyama e Hugo Friedrich


pode-se relacionar o conceito de lirismo, defendido nesse estudo, à concepção bakthiniana
de polifonia. Bakthin (1981, p. 22-35) declara que o processo polifônico se estrutura
baseado na ideia de que vozes distintas ―cantam diversamente o mesmo tema‖, percebendo
o mundo sob a perspectiva do múltiplo e do contraditório, algo assim como uma contenda
100

permanente e insolucionável entre vozes. Segundo o crítico russo, a polifonia distingue-se,


no âmbito literário, por assinalar as ―relações dialógicas entre todos os elementos da
estrutura romanesca‖ (Ibid., p. 34). Isso possibilita uma espécie de refração de vozes.
Portanto, a relação entre lirismo e dramaticidade pode ser provocada pela conformação
polifônica presente na composição lírica.
Na abordagem do tema lirismo dramático, é possível vinculá-lo à concepção de
polifonia postulada por Bakhtin, já que, Chico Buarque, ao compor suas canções, elabora
suas personagens, muitas vezes, conformadas sob uma estrutura polifônica, através da
multiplicidade de vozes que personificam uma multiplicidade de sujeitos.
Dramaticidade é, conforme Seabra (1974, p. 19), propriedade do que é
dramático, que por sua vez é o adjetivo relativo ao teatro, arte dramática, do que representa
dramas. Entende-se por drama qualquer peça ou composição teatral, ou ainda peça teatral
de tom menos denso que a tragédia, na qual o cômico pode se misturar ao trágico.
Já Roland Barthes, citado por Seabra (1974, p. 19), declara que ―drama e
poema são palavras muito próximas, ambas são procedentes de verbos que significam
fazer‖. O ―fazer do drama‖ é interior à história, é a ação prometida à narrativa. Em
Fernando Pessoa, por exemplo, o drama reside principalmente no diálogo das linguagens
poéticas no interior de sua obra. Dessa forma, assim como há em Pessoa uma transferência
da dramaticidade para o lirismo, do poeta dramático para os poetas líricos, através da
heteronímia:

E como são estilhaços


Do ser, as coisas dispersas.
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas (...)

Em Chico Buarque essa transferência pode se dar no plano da criação dos


personagens, das máscaras e das múltiplas vozes, presentes em algumas de suas canções.
Dessa forma, ao se considerar o tema do lirismo e da dramaticidade,
articulando-o ao conceito de polifonia, pode-se analisar as formas de construção de
personagens que se utilizam de voz feminina e da narrativa de Chico Buarque em algumas
de suas canções, assunto que será discutido no próximo capítulo desse estudo.
101

3 AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM CANÇÕES BUARQUEANAS

(...) Para pisar no coração de uma mulher


O amoroso cangaço
Para pisar no coração de uma mulher
Pés descalços sem pele
Um passo que a revele
já fui mulher eu sei (...)

(César, Chico. Mulher eu sei in: Aos Vivos, Velas, 1995).

A fim de se discutir as representações do feminino em algumas canções da


obra musical de Chico Buarque, fez-se necessário, retomar a opinião quase, senão,
unânime de que Chico é o compositor brasileiro, ―que mais entende a alma feminina‖
(MENESES, 2000, Prefácio).
Dessa forma, levantou-se uma questão, que pareceu de grande relevância para
o desenvolvimento desse trabalho: se Chico Buarque é considerado o porta-voz da mulher,
de que mulher se está falando, ela fala ou é falada?
Acredita que tais discursos são construídos a partir de contextos sócio-
históricos, em que a mulher, ora se cala, ora se rebela, portanto, determinados pela
conjuntura de normas que regem a sociedade. Essa palavra, em muitas vezes é autorizada,
em outras, interditada. Por isso, buscou-se demonstrar como essa voz dita feminina
reproduz os discursos socialmente construídos a seu respeito, como outorgava a um
sujeito-outro, biologicamente distinto do seu a falar por si. Para tanto, utilizou vinte e cinco
letras de composições buarqueanas, caracterizadas como o corpus de análise divido em
cinco grupos semânticos: a mulher idealizada; a mulher submissa; a mulher libertária; a
mulher liberada e a mulher libertina.
O apoio teórico para esse capítulo será investido nos estudos de gênero;
incluindo a teoria Queer; de relações de poder; dos estudos femininos, da teoria de Bakthin
sobre dialogismo e polifonia, bem como nas construções culturais permeadas pela teoria de
arquétipos e do inconsciente coletivo de Jung, bem como de outras contribuições advindas
de áreas afins.
É fundamental para essa pesquisa, traçar um percurso sobre a história do
feminismo e suas implicações para a construção das subjetividades femininas, o que será
abordado na próxima seção desse capítulo.
102

3.1 Feminismos: o processo de (des) construção de diferentes identidades

Feminismo é o movimento social que defende igualdade de direitos e status


entre homens e mulheres. Embora ao longo da história diversas correntes filosóficas e
religiosas, tenham defendido a dignidade e os direitos da mulher, o movimento feminista
remonta mais propriamente à revolução francesa.
A Revolução Francesa é considerada, por muitos, o berço do feminismo
moderno. A convulsão desencadeada em 1789, além de pôr em cheque o sistema político e
social então vigente na França e no resto do Ocidente, encorajou as mulheres a denunciar a
sujeição em que eram mantidas e que se manifestava em todas as esferas da existência:
jurídica, política, econômica, educacional dentre outras. Enquanto os revolucionários
proclamavam uma declaração dos direitos do homem e do cidadão, a escritora e militante
Olímpia de Gouges, em 1791, lançou a "Declaração dos direitos da mulher e da cidadã",
onde proclamou que a mulher possui direitos naturais como o homem, e deve participar do
poder legislativo. A obra incluía um "Contrato social" entre os sexos. De Gouges,
entretanto, morreu guilhotinada em 1793 e, no mesmo ano, o parlamento rejeitou a
proposta de igualdade política entre os sexos. Só no século 20 a francesa teve direito ao
voto. Desde o início da revolução, as francesas participaram ativamente da vida política e
criaram inúmeros clubes de ativistas femininas.
Em 1792, uma delegação encabeçada por Etta Palm foi até a Assembleia para
exigir que as mulheres tivessem acesso ao serviço público e às forças armadas. Essa
exigência não foi atendida e o movimento feminino foi suprimido pelo Terror. Robespierre
proibiu que as mulheres se associassem a clubes, e o projeto de igualdade política de
ambos os sexos foi arquivado.
Assim como a França, os Estados Unidos e o Reino Unido também se
notabilizaram por vigorosos movimentos feministas, surgidos já em princípios do século
XIX. O feminismo despontou na Inglaterra como movimento de emancipação,
reivindicando igualdade jurídica, como direito ao voto, e acesso à instrução e às profissões
liberais. A sociedade se vangloriava de ser liberal, mas sujeitava a mulher, privando-a dos
direitos de cidadania.
No Reino Unido, Mary Wollstonecraft publicou em 1792 A Vindication of the
Rights of Women (Reivindicação dos direitos das mulheres), obra em que exigia para as
103

mulheres as mesmas oportunidades de que gozavam os homens na educação, no trabalho e


na política. Porém foi somente em meados do século XIX, graças aos esforços conjuntos
de Barbara Leigh Smith e do filósofo e economista John Stuart Mill, que se criou um
comitê do sufrágio feminino. Em 1866, esse comitê apresentou ao Parlamento um projeto
igualitário, que foi rejeitado. Apesar dos êxitos parciais alcançados, o movimento
sufragista britânico teve de esperar também o século XX para ver coroados seus esforços
John Stuart Mill escreveu em 1869, na obra Sobre a sujeição da mulher, que
considerá-la um ser incapaz é marcá-la desde o nascimento com a autoridade da lei,
decretando que jamais ela poderá aspirar alcançar determinadas posições. Mill concordava
com Fourier que o melhor modo de avaliar o grau de civilização de um povo é analisando a
situação da mulher. Defendia ainda o fim da desigualdade de direitos na família; a
admissão de mulheres em todas as funções; participação nas eleições; e melhor instrução.
Mill atribui a dominação feminina à permanência de traços característicos de
sociedades atrasadas – a ―lei do mais forte‖ – nas instituições e costumes modernos:

(...) esta dependência existente no momento não é uma instituição original,


conquistada a partir de considerações de justiça e de conveniência social. É a
continuação do estado primitivo de escravidão, através de sucessivas mitigações
e modificações provocadas pelas mesmas causas que atenuaram os costumes em
geral e colocaram todas as relações humanas sob o controle da justiça e da
influência da humanidade (Mill, 2006, p. 20)

Ainda de acordo com Stuart Mill, em seu livro A sujeição das mulheres (1869),
a opressão e subordinação das mulheres seriam solucionadas através de uma reforma das
instituições, impulsionada pelo princípio da ―perfeita igualdade‖. A eliminação dos
resquícios tradicionais que sustentam a dominação feminina presentes na legislação
moderna seria garantida graças à tendência inevitável de ―aperfeiçoamento moral da
humanidade‖ (Mill, 2006: 66).
Em outras partes da Europa, a mulher ainda sofria discriminações, como na
Itália, cuja reforma eleitoral de 1912 estendeu o direito ao voto aos analfabetos, mas
excluiu as mulheres, os menores, os prisioneiros e os dementes. Só em 1945 as italianas
tiveram direito ao voto, após duas guerras mundiais.
Na América do Norte, as mulheres também obtiveram conquistas. Em 1837,
fundou-se nos Estados Unidos a Universidade Feminina de Holyoke e, nesse mesmo ano,
realizou-se em Nova York uma convenção de mulheres que se opunham à escravidão. O
104

abolicionismo foi, efetivamente, um dos temas centrais do desenvolvimento e consolidação


do movimento feminista americano.
O movimento feminista organizado surgiu nos EUA, na segunda metade dos
anos 1960. Logo, expandiu-se pelos países do Ocidente, propugnando a libertação da
mulher, e não apenas sua emancipação. Talvez seja necessário fazer uma distinção entre
essas expressões: emancipar-se é equiparar-se ao homem em direitos jurídicos, políticos e
econômicos. Corresponde à busca de igualdade. Libertar-se é querer ir mais adiante,
marcar a diferença, realçar as condições que regem a alteridade nas relações de gênero, de
modo a afirmar a mulher como indivíduo autônomo, independente, dotado de plenitude
humana e tão sujeito frente ao homem quanto o homem frente à mulher. É este o objetivo
numa sociedade que ainda mantém a mulher como uma pessoa oprimida, estrutural e
superestruturalmente.
Bebel escreveu, em 1889, O socialismo e a mulher, no qual concordava com a
tese de Engels de que a sociedade retrocedera de um período mítico, matriarcal e feliz, para
um período patriarcal, fundado na propriedade privada. Julgou, portanto, que a abolição da
propriedade privada significaria a libertação da mulher no que se equivocou.
Não é por acaso que a maior organização de massa de Cuba é a Federação de Mulheres,
com 3 milhões de filiadas, numa população de 11 milhões de habitantes.
O socialismo no Leste europeu comprovou que não se liberta a mulher
abolindo a propriedade privada e introduzindo-a no processo produtivo. É preciso mudar
também a superestrutura cultural e psicológica da sociedade e, sobretudo, reinventar
formas de produção e de exercício de poder que tenham as mulheres como sujeito.
Enquanto o masculino for o paradigma do feminino, este ideal não será alcançado, a menos
que as mulheres descubram que elas próprias são o paradigma de si mesmas.
Em agosto de 1910, em Copenhagen, por iniciativa da jornalista alemã Clara
Zetkin, mulheres vindas de 17 países adotaram a proposição de criar um Dia Internacional
da Mulher, com o objetivo de canalizar os esforços na luta para obtenção do direito do
voto feminino. Meses mais tarde, em 25 de março de 1911, ocorreu o trágico incêndio da
fábrica de camisas Triangle, em Nova York. Cento e trinta e nove trabalhadoras, jovens
imigrantes italianas e judias, morreram devido à falta de segurança nas instalações. Esta
tragédia - e as terríveis condições em que ocorreu - passou a ser sempre invocada por
ocasião das celebrações do Dia Internacional da Mulher, oficialmente fixado em oito de
março pela Assembleia Geral da ONU, a partir de 1975.
105

Os anos de 1930 e 1940 representam um período em que as reivindicações das


mulheres, mesmo que formalmente, haviam sido atendidas: podiam votar e ser votadas,
ingressar nas instituições escolares e participar do mercado de trabalho. Nestas décadas,
houve um refluxo na organização das mulheres. Este período é marcado pela preparação e
explosão de uma nova guerra mundial. Mais do que nunca, valoriza-se a participação da
mulher no mercado de trabalho, pois se torna necessário liberar a mão de obra masculina
para as frentes de batalha. Mas é com o fim da guerra e a volta da força de trabalho
masculina, que a ideologia que reforça a diferenciação dos papéis por sexo, atribuindo à
condição feminina o espaço doméstico, é fortemente reativada.
Simone de Beauvoir foi uma voz isolada neste momento de transição (do
primeiro momento – movimento sufragista – para o segundo do movimento feminista, o de
contestação sociopolítica). Ao publicar em 1949 O segundo sexo, pôs a descoberto as
profundas raízes da opressão feminina, analisando o desenvolvimento psicológico da
mulher e as condições sociais, o que a tornam alienada e submissa ao homem. Essa obra
denuncia as raízes culturais da desigualdade sexual. Sua análise constitui um marco na
medida em que delineia os fundamentos da reflexão feminista, que ressurgirá a partir da
década de 60. Já estavam dados os primeiros passos na construção de uma teoria
feminista.
A autora analisa a condição inferior da mulher, inferioridade que não precisa
ser um destino:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,


econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o
castrado que qualificam o feminino. (BEAUVOIR, 1990, p. 13).

Em 1963, Betty Friedan lançou nos EUA A mística feminina, onde retomou as
ideias de Beauvoir, denunciando a opressão da mulher que, na sociedade industrial,
apresentava o problema sem nome - a angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e
submissa. Nessa obra, ela escreve e revela toda a frustração das mulheres de sua geração e
formação – universitárias ou não, cheias de energia e criativas – obrigadas, por convenções
sociais, a escolher entre os filhos e a carreira. Mulheres que "sofriam do mal sem nome",
(Op. Cit., p.71) com o qual conviviam à custa de antidepressivos e a da felicidade pessoal.
Para a conservadora sociedade norte-americana, o nome de Betty Friedan
soava como heresia, já que ela discordava do padrão estabelecido como modelo de
felicidade familiar no qual o marido ascendia profissionalmente, solidificando sua carreira,
106

ao passo que a mulher permanecia em casa, preparando os filhos para um futuro


igualmente exitoso, cuja configuração já se encontrava determinada pela segurança
familiar; os homens seriam executivos e as mulheres, donas de casa.
A respeito do problema sem nome, que a mulher americana sentia, mas não
conseguia explicar, Friedan declara:

O PROBLEMA PERMANECEU MERGULHADO, INTACTO, durante vários


anos, na mente da mulher americana. Era uma insatisfação, uma estranha
agitação, um anseio de que ela começou a padecer em meados do século XX, nos
Estados Unidos. Cada dona de casa lutava sozinha com ele, enquanto arrumava
camas, fazia as compras, escolhia tecido para forrar o sofá, comia com os filhos
sanduíches de creme de amendoim, levava os garotos para as reuniões de
lobinhos e fadinhas e deitava-se ao lado do marido, à noite, temendo fazer a si
mesma a silenciosa pergunta: «E' só isto?» (Friedan, Betty. A mística feminina,
1971, p. 71).

Diante desse quadro de insatisfação e vazio em que a mulher americana se


encontrava, e também a partir de questionamentos e ideias levantadas pelo conteúdo das
obras, tanto de Beauvoir quanto de Friedan, o movimento feminista alastrou-se pelo
mundo. Mulheres norte-americanas queimavam sutiãs em praça pública como contestação
à dominação masculina; a libertação sexual tornou-se um fato político; as palavras de
ordem se multiplicaram: ―Nosso corpo nos pertence‖! ―Direito ao prazer‖! ―O privado
também é político‖! ―Diferentes, mas não desiguais‖!
O modelo tradicional do ser mulher entrou em crise e um novo perfil feminino
começou a se esboçar também na América Latina.
Na Argentina, no mesmo período, Las madres de La Plaza de Mayo, mulheres
que, até hoje, mantêm permanente vigília por seus familiares desaparecidos, opositores de
esquerda que se manifestaram contra o regime político, também estavam mobilizadas,
combatendo violações dos direitos humanos, bem como qualquer tipo de violência contra
as mulheres.
A ONU declarou 1975 como Ano Internacional da Mulher, e os dez anos
seguintes, até 1985, como Década da Mulher em todo o mundo.
107

3.1.1 O Feminismo no Brasil

A história do movimento feminista possui três grandes momentos. O primeiro


foi motivado pelas reivindicações por direitos democráticos como o direito ao voto,
divórcio, educação e trabalho no fim do século XIX. O segundo, no fim da década de 1960,
foi marcado pela liberação sexual (impulsionada pelo aumento dos contraceptivos). Já o
terceiro começou a ser construído no fim dos anos 70, com a luta de caráter sindical.
No Brasil, o movimento tomou forma entre o fim do século XVIII e início do
século XIX, quando as mulheres brasileiras começaram a se organizar e conquistar espaço
na área da educação e do trabalho. Nísia Floresta (criadora da primeira escola para
mulheres), Bertha Lutz e Jerônima Mesquita (ambas ativistas do voto feminino) são as
expoentes do período. Bertha Lutz, bióloga e zoóloga, fundou em 1922, a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino. Essa organização tinha entre suas reivindicações o
direito de voto, o de escolha de domicílio e o de trabalho, independentemente da
autorização do marido.
No Brasil, a luta das mulheres pelo voto dura 22 anos. Essa luta iniciou-se em
1910, com a fundação do Partido Republicano Feminino, no Rio de Janeiro, terminando
em 1932, quando o então presidente Getúlio Vargas promulga por decreto-lei o direito das
mulheres de votar e de serem votadas.
Outra líder feminina, Nuta Bartlett James, participou das lutas políticas do país
na década de 1930 e foi uma das fundadoras da União Democrática Nacional (UDN).
As brasileiras obtiveram importantes conquistas nas primeiras décadas do
século XIX. Em 1907, eclode em São Paulo a greve das costureiras, ponto inicial para o
movimento por uma jornada de trabalho de 8 horas.
Em 1917, o serviço público passa a admitir mulheres no quadro de
funcionários. Dois anos depois, a Conferência do Conselho Feminino da Organização
Internacional do Trabalho aprova a resolução de salário igual para trabalho igual.
Em 1932, as mulheres conquistam legalmente o direito ao voto, com o Código
Eleitoral. Apesar da importância simbólica dessa conquista, à época, foram determinadas
restrições para o exercício desse direito. Foi só com a Constituição de 1946 que o direito
pleno ao voto foi concedido. Mesmo assim, um ano após de conquistado o direito ao voto,
em 1934, Carlota Pereira Queiróz torna-se a primeira deputada brasileira. Naquele mesmo
ano, a Assembleia Constituinte assegurava o princípio de igualdade entre os sexos, o
108

direito ao voto, a regulamentação do trabalho feminino e a equiparação salarial entre os


gêneros.
Com a ditadura do Estado Novo, em 1937, o movimento feminista perde força.
Só no fim da década seguinte volta a ganhar intensidade com a criação da Federação das
Mulheres do Brasil e a consolidação da presença feminina nos movimentos políticos. Mas
logo vem outro período ditatorial, a partir de 1964, e as ações do movimento arrefecem, só
retornando na década de 70.
Nos anos 1960 e 1970, o feminismo participa da luta pela volta da democracia
ao Brasil.
Um dos fatos mais emblemáticos daquela década foi a criação, em 1975 (Ano
Internacional da Mulher), do Movimento Feminino pela Anistia. No mesmo ano a ONU,
com apoio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), realiza uma semana de debates
sobre a condição feminina. Ainda nos anos 70 é aprovada a lei do divórcio, uma antiga
reivindicação do movimento.
Depois de 1975, surge o primeiro jornal endereçado às mulheres e feito por
mulheres, intitulado Brasil Mulher, (Araújo, 2000, p.160) publicado pela Sociedade Brasil
Mulher, circulando de 1975 a 1980. O segundo jornal, intitulado Nós mulheres, publicado
pela Associação de Mulheres, teve oito edições, que circularam de 1976 a 1978. O jornal
Mulherio, lançado em março de 1981, tornou-se leitura obrigatória das feministas por mais
de cinco anos.
O fato de estarem vinculados a uma associação já mostra que esses jornais
eram instrumentos de divulgação de grupos de mulheres organizadas e, como tal, davam
cobertura a assuntos não veiculados pela imprensa oficial, na época sob forte censura
política, refletindo o pensamento político da militância feminista.
Entre 1970 e 1980, o movimento de mulheres centrou-se na luta pela redemocratização do
país. Nas classes populares surgiram, incentivados pela Igreja católica, Clubes de Mães e
Associações das Donas-De-Casa. Outros movimentos, sem vínculos confessionais ou
partidários, surgiram pelo país afora, como a Rede Mulher, em defesa dos direitos da
mulher e da ampliação da cidadania feminina. Aos poucos, delinearam-se agendas
específicas, como negras, prostitutas, lésbicas, trabalhadoras rurais e urbanas, empresárias,
dentre outras.
Mais de três mil mulheres reuniram-se nos Congressos da Mulher Paulista,
entre 1979 e 1981. No Rio, o 8 de março foi comemorado por encontros estaduais, de 1977
109

a meados da década de 1980. Em Fortaleza, em 1979, houve o I Encontro Nacional


Feminista, que teve a sua 13ª versão ano passado, em João Pessoa.
Nos anos 80, as feministas embarcam na luta contra a violência às mulheres e pelo
princípio de que os gêneros são diferentes, mas não desiguais. Em 1985 é criado o
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), subordinada ao Ministério da Justiça,
com objetivo de eliminar a discriminação e aumentar a participação feminina nas
atividades políticas, econômicas e culturais.
O CNDM foi absorvido pela Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher,
criada em 2002 e ainda ligada à Pasta da Justiça. No ano seguinte, a secretaria passa a ser
vinculada à Presidência da República, com status ministerial, renomeada de Secretaria de
Políticas para as Mulheres (http://www.sepm.gov.br/. Acesso em 27/07/2012)
O movimento feminista brasileiro conquistou, nas últimas décadas, a ampliação dos
direitos da mulher. As ações do movimento feminista foram decisivas para articular o
caminho da igualdade entre os gêneros, que, apesar de todos os avanços, ainda não é
plenamente garantida. Assim, ao entrar na segunda década do século XXI, as feministas
têm em sua pauta de reivindicações pontos como: reconhecimento dos direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais das mulheres; necessidade do reconhecimento
do direito universal à educação, saúde e previdenciária; defesa dos direitos sexuais e
reprodutivos, reconhecimento do direito das mulheres sobre a gestação, com acesso de
qualidade à concepção e/ou contracepção e descriminalização do aborto como um direito
de cidadania e questão de saúde pública.

Além desses temas, um em especial tem ganhado por suas estatísticas: a


violência contra a mulher. A cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no país, de
acordo com pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo (Mulheres brasileiras e
gênero nos espaços público e privado), realizada em 25 estados, em 2010. No
levantamento, constatou-se que 11,5 milhões de mulheres já sofreram tapas e empurrões e
9,3 milhões sofreram ameaças de surra ((http://www.sepm.gov.br/. Acesso em
27/07/2012).

No entanto, as agressões diminuíram entre 2001 e 2010. Anteriormente, oito


mulheres eram agredidas a cada dois minutos. Um dos motivos para essa diminuição foi a
elaboração da Lei Maria da Penha, que garante proteção legal e policial às vitimas de
agressão doméstica. Qualquer pessoa pode comunicar a agressão sofrida por uma mulher à
110

polícia, a despeito da vontade da mulher em fazê-lo. (http://www.sepm.gov.br/. Acesso em


27/07/2012.

3. 1.2 O Movimento Feminista contemporâneo

O movimento feminista contemporâneo, reflexo das transformações do


feminismo original ─ predominantemente intelectual, branco e de classe média ─
configura-se como um discurso múltiplo e de variadas tendências, embora com bases
comuns. As feministas destacam que a opressão de gênero, de etnia e de classe social
perpassa as mais variadas sociedades ao longo dos tempos. Esta forma de opressão sustenta
práticas de discriminações, tais como: de raças; de etnia e de classes; a exclusão de grupos
de homossexuais e de outros grupos minoritários (Toledo, 2003). O feminismo é uma
filosofia que reconhece que homens e mulheres têm experiências diferentes e reivindica
que pessoas diferentes sejam tratadas não como iguais, mas como equivalentes (Louro,
1999).
Para Scott (2005), a questão da igualdade e da diferença deve ser concebida em
termos de paradoxo, ou seja, em termos de uma proposição que não pode ser resolvida,
mas apenas negociada, pois é verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Fraisse (1995) entende
que à questão filosófica epistemológica da igualdade-diferença sobrepõe-se a questão
política, sugerindo que diferentes subjetividades, masculinas e femininas, mesmo não
sendo idênticas, podem ser iguais, no sentido de serem equivalentes. Introduz-se, assim, a
noção de equidade e paridade no debate igualdade-diferença dentro dos movimentos
feministas.
As feministas acusam que a experiência masculina tem sido privilegiada ao
longo da história, enquanto a feminina, negligenciada e desvalorizada. Elas demonstraram,
ainda, que o poder foi, e ainda é predominantemente masculino, e seu objetivo, desde suas
origens foi a dominação das mulheres, especialmente de seus corpos (Butler, 2003).
Na década de 1980, a crítica pós-modernista da ciência ocidental introduz o
paradigma da incerteza no campo do conhecimento. As feministas francesas, sob a
influência do pensamento pós-estruturalista que predominava na França, especialmente por
Michel Foucault e Jacques Derrida (Pereira, 2004, P.173-198), passam a enfatizar a
questão da diferença, da subjetividade e da singularidade das experiências. Aquelas
111

feministas também defendiam que as subjetividades são construídas pelos discursos, em


um campo que é sempre dialógico e intersubjetivo. Assim se configura a terceira fase do
feminismo, cuja proposta concentra-se na análise das diferenças, da alteridade, da
diversidade e da produção discursiva da subjetividade. Dessa forma, o campo do estudo
sobre as mulheres e sobre os sexos é deslocado para o âmbito das relações de gênero.
Neste sentido é que alguns posicionamentos, embora heterogêneos, distinguem os Estudos
Feministas – os quais focam principalmente o estudo das e pelas mulheres, proposta da
militância feminista - dos Estudos de Gênero, que pressupõem uma abrangência da
compreensão do gênero enquanto categoria sempre relacional (Scott, 1896).
Ainda sobre a terceira fase ou onda feminista, recorre-se a Gamble (1999) e
também, a Amaral e Macedo (2005), pois ambas as fontes concorrem para o entendimento
de que essa fase do feminismo também pode ser nomeada como ―pós-feminismo‖, além de
destacarem que este conceito apresenta variantes na sua definição. Gamble (1999, p. 44)
apresenta o pós-feminismo ―como sendo definido em relação a ideias, atitudes, que
ignoram ou rejeitam as ideias feministas dos anos 1960 e das décadas subsequentes‖.
Amaral e Macedo (2005, p. 153) afirmam que ―o pós-feminismo aproxima-se
do discurso do pós-modernismo, na medida em que tanto o pós-modernismo como o pós-
feminismo têm por objetivo desconstruir, desestabilizar o gênero enquanto categoria fixa e
imutável‖. As duas estudiosas citadas indicam que a gênese desse movimento situa-se no
final dos anos 1960, na França, e identifica algumas escritoras como sendo teóricas da
―diferença‖, ou seja, teóricas do pós-feminismo. Entre elas encontra-se Julia Kristeva,
Hélène Cixous, Laura Mulvey e Judith Butler. Tais teóricas têm insistido nos debates
feministas para o provimento de um repertório centrado na desconstrução, diferença e
identidade.
O desafio nesta fase do feminismo é pensar, simultaneamente, a igualdade e a
diferença na constituição das subjetividades masculina e feminina. É na terceira fase ou
terceira onda do movimento feminista que se faz perceptível o encontro entre o movimento
político de luta das mulheres e a academia, quando iniciam nas universidades, inclusive em
algumas universidades brasileiras, centros de estudos sobre a mulher, estudos de gênero e
feminismos (Louro, 1995).
As três fases, ou ondas do feminismo, seja em seus aspectos políticos seja nos
teórico-epistemológicos, não podem ser percebidas desde um ponto de vista histórico
112

linear. Os diferentes argumentos, particularidades de cada uma das fases do feminismo


sempre conviveram, e ainda convivem, na contemporaneidade.
Embora o feminismo ao longo de sua história tenha constituído diferentes
feminismos, em sua essência, todos buscam por mudanças de ordem social, econômica,
política e cultural, almejando a diminuição ou até mesmo a superação de todas as formas
de discriminação contra a mulher.
O feminismo vem se mostrando, no percurso do seu processo histórico, como
uma das mais relevantes causas políticas e ideológicas das últimas décadas. Ainda que o
feminismo seja percebido sob diferentes formas, parece que todas as teses a seu respeito
afinam-se em um ponto comum: a relação entre os sexos se caracterizam pela desigualdade
ou pela opressão. Se o feminismo se mostra de múltiplos formatos é por causa de sua
necessidade de atuar, de buscar meios para transformar essa realidade de opressão que se
apresenta de diferentes maneiras, usando de muitos nomes e de muitas feições.
Destarte, Richards (1994, p. 385) institui a multiplicidade de orientações
feministas em dois grandes grupos, a saber, liberais e radicais. O feminismo liberal é
também conhecido como igualitário, ou mesmo tradicional e, de acordo com suas correntes
defende a igualdade entre os sexos.
O feminismo radical, por sua vez, apela para uma alteração de princípios,
defendendo uma nova maneira de estar no mundo, alterando assim o status quo e,
conforme suas correntes pretendem uma transformação social a partir de realidades
diferentes das masculinas predominantes nas culturas.
Deste modo, ao passo que para o feminismo radical a dominação masculina
sobre as mulheres e o reconhecimento da existência do patriarcado anterior ao capitalismo
estão na raiz da subordinação feminina, para o feminismo liberal, bastava a existência da
consagração da igualdade jurídica tanto para homens quanto para mulheres. Porque, dessa
forma, teriam uma mesma base de igualdade de oportunidades, sendo o sucesso de cada
porção da humanidade proporcional ao investimento realizado.
Observe-se que a tendência socialista marxista tem suas concepções fundadas
nas lutas de classes, localizando o sistema de dominação masculina na divisão do trabalho.
Na opinião de Silva (2000 p. 361), as feministas marxistas ―[...] argumentam no sentido da
importância do gênero e da luta de classes e analisam os modos como duas estruturas
paralelas, economia (capitalismo) e família (patriarcado), estruturam a vida das mulheres‖.
113

As feministas de tendências psicanalíticas encaram o gênero como uma ideia


de diferença que surge das relações familiares e concentram suas reflexões e discussões na
sexualidade como uma poderosa força cultural e ideológica. Assim, as mulheres são
oprimidas pelo fato de esta força cultural ideológica da diferença sexual estar inscrita nos
corpos e no inconsciente.
Ao contrário, o feminismo, com perspectiva étnica racial ou teórica,
denominado feministas culturais, discorda da construção teórica e da investigação
feminista em que se baseiam seus fundamentos, em uma posição binária de mulheres e
homens, e desafiam o conceito das categorias de gênero como sendo duas e opostas. As
feministas culturais defendem a sexualidade e o gênero como categorias mutáveis e
fluidas.
Reconhecido, atualmente, por grande parte da sociedade, o feminismo ou os
feminismos inserem-se nos importantes movimentos políticos e sociais que têm
contribuído para a emergência de relevantes debates nas diversas áreas do conhecimento
científico. Se durante algum tempo, o feminismo parecia ser visto apenas como coisa
exclusiva de mulher, no entanto, atualmente, entende-se que o feminismo não é um
movimento específico de mulheres, mas sim que amplia suas ações em prol das mulheres,
fixando-se globalmente em um projeto que visa dignificar a pessoa humana.

3.2 Chico Buarque: um „vedor‟ da mulher


.
Da vasta gama de temas e dentre as personagens criadas por Chico, maior
relevo obtiveram aquelas que representam o universo feminino. Há quem afiance ser o
compositor um dos poucos a ter percepção tão precisa acerca da alma feminina. Muito
desse raciocínio vem do fato de que são muitas as mulheres que nomeiam suas canções.
Conforme o critico Gilberto de Carvalho (1999, p.29), ―o cantar no feminino é
o traço poético mais importante desse artista, o mais evidente, o que mais salta aos olhos:
poucos souberam traduzir tão bem no canto o sentimento feminino quanto ele‖. Apesar de
a crítica apontá-lo como tal, Chico, contudo, nega ser especialista no assunto, afirmando
que:

Há sempre para mim grade mistério na alma feminina. Tenho enorme


curiosidade com relação à mulher: como ela pensa, como ela age. Eu sou um
expectador, um voyer, um ―vedor‖ da mulher. Gosto de ver como elas se movem,
reagem. Há coisas que permanecem numa zona de mistério e eu me considero
114

um grande desconhecedor da alma feminina, ao contrário do que se fala, do lugar


comum por causa das canções femininas. Eu sou sujeito muito curioso
justamente por desconhecer, por querer saber e entender e não entender nunca...
e admirar as mulheres.10

Sobre esse tema, Chico diz ainda que não foi ele quem começou a fazer
músicas no feminino. Na música brasileira sempre houve essa tradição, com compositores
da época de Ary Barroso, Assis Valente e Noel Rosa. Como não havia compositoras, os
compositores homens tinham que escrever músicas para as cantoras; ―então surgiu essa
tradição de se compor no feminino‖. O compositor também afirma que muitas canções,
inclusive as dele, eram feitas na primeira pessoa não só para cantoras como para
personagens femininas, para as atrizes que estavam em cena no teatro.
Chico Buarque complementa sua fala, colocando-se na condição de aprendiz
desse processo de compor no feminino: ―sou um discípulo de Vinícius de Moraes, que foi
o grande cantor das mulheres. Ele recorria muito às cantigas de amigo. Era um conhecedor
dos trovadores, muito mais do que eu. Eu pego ―isso por via indireta‖ 11.
Meneses (2001) fez um estudo do universo feminino e dos desejos das
mulheres no interir do cancioneiro de Chico Buarque. A autora inicia sua argumentação
afirmando que a pergunta sobre o que quer a mulher ―ressoa singularmente‖ nas canções
buarqueanas. Segundo ela, ―as canções de Chico, como poucos na Música Popular
Brasileira, tematizam a mulher e seu desejo‖ (2001, p. 15). A escritora continua, afirmando
que, se de um lado, a produção de Chico traz uma visão masculina do feminino, percebida,
por exemplo, em Tororó:

(...) Deus fez a fêmea e depois


Que ela encorpou, nunca mais
Que um mais um foram dois
E caíram de quatro os animais
E tome praga no arroz
Rebelião nos currais
Ficou o homem feroz
E estranhou seus iguais (...)

(Buarque, C. Tororó in: Dança da Meia-Lua, Biscoito Fino, 2008).

Esses versos exemplificam um olhar misógino do eu poético ao apresentar a


mulher como culpada pelas desgraças do homem, inclusive, ressalta o caráter infiel da

10
HOLANDA. Depoimento por ocasião da organização do DVD Chico Buarque: À flor da pele.
11
HOLANDA. Entrevista concedida ao professor Rinaldo de Fernandes por ocasião da defesa de sua
dissertação de mestrado. (A mulher nas canções de Chico Buarque, 1995, UF Paraíba).
115

mulher como algo inerente à sua constituição. O pensamento misógino justifica práticas
culturais e relações intersubjetivas na assimetria entre o masculino e o feminino,
desenvolvendo sentimentos de inferioridade e culpabilidade na mulher. A misoginia não é
uma invenção, mas um fato histórico (SCHOTT, 1996).
Toda a simbologia que aborda a expulsão do homem e da mulher do paraíso
traz para a humanidade a perda da condição divina e essencialmente para a mulher, a
nódoa do pecado, porque foi ela que se entregou ao demônio. Pecadora, ela terá de se
redimir na submissão e resignação.
Confúcio, quinhentos anos antes de Cristo afirmava ―É a lei da natureza que a
mulher deva ser mantida sob o domínio do homem (...) tal é a imbecilidade da mulher que
é seu dever, em todos os aspectos, desconfiar de si própria e obedecer ao marido‖
(STARR, 1993, pp.11,103).
Sobre a condição da não confiabilidade da natureza feminina, bem como da sua
responsabilidade pelas desgraças masculinas, recorre-se à Shott:

Pandora a primeira mulher foi criada por Zeus para se vingar de Prometeu pelo seu
crime de roubar o fogo. Conforme os desígnios dos deuses Pandora seria de bela
aparência e plena de maldade em seu coração. Os deuses deram à Pandora um
cântaro contendo os males e enfermidades do mundo. Entre outros males, Pandora
traz a cruel lição do malogro para os homens, que descobrem demasiado tarde que o
que é belo por fora abriga o mal no interior. A lenda de Pandora simboliza a
percepção grega de que o mal da morte está oculto por baixo da bela aparência da
vida. Dado que a raça de mulheres irradiou-se a partir de Pandora, as mulheres
carregam a nódoa do mal atribuído ao ato de Pandora (SCHOTT, 1996, p. 40).

Ao tomarem-se os versos da canção Tororó (2008) como motivo para ilustrar o


posicionamento misógino do eu poético masculino em algumas canções buarqueanas,
concorda-se com Adélia Bezerra de Meneses quando, essa estudiosa da obra musical de
Chico Buarque de Holanda, afirma que parte da produção musical desse artista ―oferece
uma visão muito masculina do feminino‖ (Meneses, 2001, p. 15). Entretanto, há que se
discordar da estudiosa ao declarar ―mas as canções de Chico como as de poucos,
tematizam a mulher e seu desejo‖ (Idem).
Na canção Beatriz (1982), o eu poemático, também masculino, fala da mulher
como uma figura mítica de uma atriz que transita entre a realidade e o mito: será que é
uma estrela/ será que é mentira. Chico Buarque escreve sobre o ponto de vista do homem
que manifesta sua incapacidade de absorver a complexidade feminina. A mulher lhe escapa
116

ao entendimento, porém por este motivo, encanta-se com Beatriz, mas sua indagação
projeta-se no verbo ―será‖, no que está por vir.

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu (...)

(...) (Buarque, C. Beatriz in: Edu Lobo - Chico Buarque Para o balé O grande
circo místico, Marola edições Musicais, 1998).

Sobre essa canção, Meneses (2001, p. 17) declara que ―no nível do significante
se explora a palavra atriz aí embutida, no nível do significado evoca-se (e com força!) a
mulher que conduz o Poeta ao céu, Beatriz musa-guia inspiradora de Dante na Divina
Comédia‖. Além desse movimento de ascensão que a canção imprime, evidenciado pela
recorrência da palavra céu, pode-se também perceber além da intensidade corporal, a
figuração do ‗eterno feminino‘ que, à maneira de Goethe, ‗acena/céu acima‘ (Meneses,
2001, p. 16).
Meneses (2001) afirma ainda que, por outro lado, em vários momentos, as
canções do referido compositor encerram um eu-lírico feminino, no qual transparecem a
fala da mulher, bem como o relato de suas perdas, privações, desejos e anseios, como na
canção Pedaço de mim:

Oh pedaço de mim
Oh metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu‖ (Buarque, C. in: Ópera do malandro, Biscoito Fino,
2003).
117

Pode-se notar ainda que, no fluxo composicional de Chico Buarque, as


personagens femininas mudaram, evoluíram com o passar do tempo – não tomando aqui tal
evolução de modo linear. O artista declara nas gravações do DVD A flor da Pele sobre
algumas das mulheres de suas composições, afirmando que no princípio, essas mulheres
nas canções do feminino ―assumem essa personalidade da mulher caseira, boazinha e
compreensiva‖, tal como em Feijoada Completa:

Mulher, você vai gostar


Tô levando os amigos pra conversar (...)
(...) Mulher, você vai fritar (ah vai) um montão de torresmo pra acompanhar
Arroz branco, farofa e a malagueta

(...) (Buarque, C. Feijoada Completa in: Chico Buarque, Philips, 1978).

É sobre as mulheres nas canções de Chico Buarque que essa pesquisa se


desenvolverá a partir desse ponto. Buscar-se-á compreender a construção das
subjetividades femininas construídas pelo discurso poético desse artista, nos quais ele, ora
lhes empresta a voz, ora lhes cerceiam o direito à fala. Para isso, o foco recairá sobre as
identidades femininas, procurando contextualizá-las dentro dos textos poéticos
configurados como letras-poema. Vale ressaltar que o discurso é o do homem, que mesmo
fazendo-se passar por sujeito feminino relata a verdade que pensa ou deseja em relação à
mulher. Santa Cruz (1992, p. 8), enfatiza que, ―nada melhor do que as letras de música
popular feitas por homens, para averiguar o que está por trás de grande parte do discurso
musical que, no seu todo, é essencialmente masculino‖.

3.3 Da submissão à transgressão: com quantas Carolinas se faz uma Geni?

O fenômeno de transição da mulher contemporânea parte da submissão


ancestral, perpassa a transgressão da liberdade sexual, a dor do divórcio e a conquista da
independência. O compositor e dramaturgo Chico Buarque, em parte de sua obra como
letrista, parece contextualizar este fenômeno na descrição de figuras femininas que se
manifestam por meio de elementos do drama – personagem, ações, tensões e conflitos.
Este trabalho pretende observar as composições entre 1970 e 1989, para tentar perceber a
existência de uma poética dramática acerca da transformação da mulher contemporânea -
da submissão à conquista de sua identidade.
118

As personagens femininas de Chico Buarque de Holanda compõem variadas


concepções sobre as mulheres presentes em nossa sociedade em diferentes momentos
históricos. Elas podem ser consideradas variações do feminino, pois o cancioneiro desse
compositor sempre sugere a autoridade de uma identidade para cada de suas mulheres-
personagens.
Para uma configuração dessas identidades do feminino, passar-se-á a
contextualização dessas mulheres personagens, ou melhor, de suas vozes no interior dos
discursos presentes nas letras de canções de Chico Buarque. A fim de que se faça uma
leitura mais produtiva, aquelas mulheres-personagens foram organizadas em cinco grupos
semânticos, para a abordagem dos seguintes arquétipos: a mulher idealizada; a mulher
submissa; a mulher libertária; a mulher liberada e a mulher libertina.
Pareceu a essa pesquisadora que seria necessário uma definição de arquétipo,
conforme o pensamento da Psicanálise Analítica de Carl Gustav Jung. Segundo Jung
(1875-19610 em Os arquétipos e o inconsciente coletivo, tradução de Maria Luíza Appy,
Dora Mariana R. Ferreira da Silva (2000), arquétipos é uma forma de pensamento universal
(ideia) aliada a fortes emoções. São as tendências estruturais invisíveis dos símbolos. Os
arquétipos criam imagens ou visões que correspondem a alguns aspectos da situação
consciente. Jung (Idem) deduz que as imagens primordiais, outro nome para arquétipos, se
originam de uma constante repetição de uma mesma experiência, durante muitas gerações.
Os arquétipos funcionam como centros autônomos que tendem a produzir, em cada
geração, a repetição e a elaboração dessas mesmas experiências, encontrando-se isolados
uns dos outros, embora possam se interpenetrar e se misturar.
Valendo-se do conceito de arquétipo, inicia-se, pois, a tentativa de análise.
Vejamos agora como algumas dessas personagens femininas que assumiram independer
suas vidas se mostram nas canções buarqueanas.

3.3.1 A mulher idealizada: soletro teu nome no escuro

No cancioneiro de Chico Buarque pode-se notar uma aproximação entre as canções


de eu lírico feminino e a lírica medieval. A construção da figura feminina em uma postura
distanciada, desempenhando apenas o papel de ser admirada e amada sempre à distância,
pode remeter à cantiga de amor medieval, quando a amada mantém esse distanciamento e a
119

não correspondência ao amor expresso pelo trovador. Ao trovador só lhe resta lamentar,
não só a ausência do corpo da amada, mas a indiferença de sua alma.
A postura do distanciamento feminino, em canções de Chico Buarque, parece
repetir a figura da mulher das cantigas de amor do trovadorismo português: uma mulher
sempre jovem, bela, perfeita, endeusada, sempre em atitude de espera, caracterizada como
uma nova Penélope.
A fim de exemplificar essa representação da mulher sempre à espera,
demonstrando passividade e distanciamento, elege-se Ela e sua janela; Carolina; Januária,
dentro do cancioneiro buarqueano.

Ela e sua menina


Ela e seu tricô
Ela e sua janela, espiando
Com tanta moça aí na rua
O seu amor só pode estar dançando
Da sua janela imagina ela
Por onde hoje ele anda
E ela vai talvez
Sair uma vez na varanda
Ela e um fogareiro
Ela e seu calor
Ela e sua janela, esperando
Com tão pouco dinheiro
Será que o seu amor ainda está jogando
Da sua janela uma vaga estrela
E um pedaço de lua
E ela vai talvez
Sair outra vez na rua
Ela e seu castigo
Ela e seu penar
Ela e sua janela, querendo
Com tanto velho amigo
O seu amor num bar só pode estar bebendo
Mas outro moreno joga um novo aceno
E uma jura fingida
E ela vai talvez
Viver duma vez a vida

(Buarque, C. Ela e sua janela in: Chico Buarque de Hollanda,


RGE, 1966).

Menezes (2001) afirma que essa canção apresenta um movimento feminino,


um percurso que prefigura a evolução da mulher na própria obra de Chico Buarque.
Segundo a autora, na canção,
120

Há uma progressiva gradação da atitude feminina, um desenvolvimento


progressivo da mulher, no sentido de dentro para fora. Assim, ao longo da
canção a mulher que está na janela vai para varanda (1ª estrofe), para a rua (2ª
estrofe) e para vida (3ª estrofe). A mulher sai do ―interior do lar‖, do recesso da
casa, espaço a ela reservado pelos cânones convencionais de uma certa
sociedade, e se projeta no espaço aberto, sem molduras, da rua – para viver duma
vez a vida (MENEZES, 2001, p. 92).

Ela e sua janela já anuncia uma nova mulher que estaria se configurando,
conforme o novo contexto social e cultural, já não parece estar disposta a ficar esperando
pelo homem que ―só pode estar dançando‖ jogando ou bebendo. Sua feminilidade já não
pode ser representada apenas por ser mãe (sua menina) ou por fazer tricô, há outro moreno
que lhe acena e há a lua, elementos que lhes servem de motivo para ir ―outra vez na rua‖ e
quem sabe ―viver duma vez a vida‖.
Na sequência, aparecem Carolina (1968) e Januária (1968) que se configuram
como as personagens que se posicionam diante da janela e, portanto, segundo Meneses ―na
posição de quem fica à margem das coisas vendo a vida e a banda passarem‖ (MENESES,
2001, p. 89).

Carolina, nos seus olhos fundos


Guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei, que não vai dar
Seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor, uma rosa nasceu, todo mundo sambou, uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo. pela janela, ói que lindo
Mas Carolina não viu
Carolina, nos seus olhos tristes, guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar
Agora não sei como explicar
Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela
E só Carolina não viu.
(Buarque, C. Carolina in: Chico Buarque de Hollanda - Vol. 3, RGE,
1968).

Carolina, mesmo diante dos apelos do eu poético, tanto em demonstrar seu


amor através dos versos e dos convites para que ela aproveitasse a vida quanto em querer
lhe mostrar as transformações do mundo lá fora, segue impassível, alheia. O trovador sofre
coma indiferença e o amor acaba.
121

A canção toma a personagem Carolina como possível metáfora de uma parte


da intelectualidade do país, que nos primeiros anos do regime ditatorial vivido pela
sociedade brasileira, se distanciava, não demonstrando um posicionamento político,
tendendo ao imobilismo, refugiava-se em situações de melancolia e passividade, assim
como a personagem que da janela vê, ou não vê, o tempo passar.
Outra moça da janela, aliás, tema recorrente nas canções dos primeiros discos
de Chico Buarque, é Januária (1968), que também, a despeito dos apelos da natureza e do
povo, assume a postura do distanciamento.

Toda gente homenageia


Januária na janela
Até o mar faz maré cheia
Pra chegar mais perto dela
O pessoal desce na areia
E batuca por aquela
Que malvada se penteia
E não escuta quem apela
Quem madruga sempre encontra
Januária na janela
Mesmo o sol quando desponta
Logo aponta os lados dela
Ela faz que não dá conta
De sua graça tão singela
Que o pessoal se desaponta
Vai pro mar levanta a vela

(Buarque, C. Januária in: Chico Buarque de Hollanda - Vol. 3, RGE,


1968).

Januária, diferentemente de Carolina, que demonstrava profunda melancolia


nos seus olhos fundos, consegue provocar grande alarido na vida lá fora: o mar que faz
maré cheia para chegar mais perto dela; o pessoal que lhe faz batuque. Indiferente, ou
numa dissimulada indiferença, Januária se penteia , ignorando tanto sua ―graça singela‖ e
a homenagem que lhe é prestada. Essa personagem, já conhece os limites além da sua
janela, entretanto ainda não tem a coragem suficiente para sair à rua, espaço de riscos, para
o qual a mulher do início dos anos sessenta, no Brasil, ainda não estava preparada.
Ainda na linha da idealização da mulher, os versos de Cecília (1999), o eu
poético aparece como um voyeur, que de dentro de sua observação da amada apenas
sussurra seu nome, não ousando pronunciá-lo, lhe parece suficiente apenas admirá-la de
longe. O eu poemático inveja os românticos, pois eles exaltam suas musas em versos e
prosa, ele apenas ―com todas as letras‖ a murmura, a suspira, a soletra, assim como
122

aqueles românticos por ele invejados, eleva sua musa a mais alta condição, a mulher
perfeita, portanto, inatingível.

Quantos artistas
Entoam baladas
Para suas amadas
Com grandes orquestras
Como os invejo
Como os admiro
Eu, que te vejo
E nem quase respiro
Quantos poetas
Românticos, prosas
Exaltam suas musas
Com todas as letras
Eu te murmuro
Eu te suspiro
Eu, que soletro
Teu nome no escuro
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve
Tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
Espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir

(Buarque, C. e Ramos, L. C. Cecília In: Chico Buarque Ao Vivo, Sony/ RCA


Records Label, 1990).

A última canção desse bloco a ser analisada é Abandono (1988), que também
ilustra um eu lírico feminino em face da ausência do ser amado,

O que será ser só


Quando outro dia amanhecer
Será recomeçar
Será ser livre sem querer
O que será ser moça
E ter vergonha de viver
Ter corpo pra dançar
123

E não ter onde me esconder


Tentar cobrir meus olhos
Pra minh'alma ninguém ver
Eu toda a minha vida
Soube só lhe pertencer
O que será ser sua sem você
Como será ser nua em noite de luar
Ser aluada, louca
Até você voltar
Pra que
O que será ser só
Quando outro dia amanhecer
Será recomeçar
Será ser livre sem querer
Quem vai secar meu pranto
Eu gosto tanto de você

(Buarque, C. e Lobo, E. Abandono In: Dança da meia lua, Som Livre:1988).

Na canção acima, o eu lírico indaga a seu interlocutor O que será ser?


acrescentando aí vários complementos, só, sua sem você, moça, todos para expressar sua
situação de incompletude, já que lhe falta a outra parte, aquela que lhe dá sentido à
existência. Uma vez mais, Chico Buarque lança mão da lírica trovadoresca, nesse caso, da
canção de amigo, em que o trovador pretendeu se transferir para o ponto de vista da mulher
e a partir daí constrói o seu poema, colocando-a como narradora.

3.3.2 A mulher submissa: mirem-se no exemplo daquelas mulheres, mas não muito.

Santo Tomás de Aquino, (1225-1274) (apud SCHOTT, 1996, p.69), afirma: ―A


mulher é um ser acidental e falho (...) O seu destino é de viver sob a tutela do homem, de si
mesma ela não tem autoridade alguma‖.
Confirmando o que defende Santo Agostinho, a canção Com açúcar, com afeto
(1966), aborda a submissão de um eu poético feminino que desempenha as ditas tarefas de
mulher, cuidando de sua casa, do marido e, sem aparentar nenhuma resistência. Porém essa
mulher que só se expressa em solilóquio, com aparente submissão e renúncia para manter seu
casamento e seu homem, num jogo de habilidades, mais domina que é dominada. Essa espécie
12
de reedição de Amélia demonstra com sua pretensa resignação, o quanto sua atitude de
perdoar e abrir sempre os braços para receber o marido só vai torná-lo cada vez mais

Canção composta em 1941 por Ataulfo Alves e Mário Lago, na qual declaravam que Amélia era mulher
de verdade porque não tinha vaidade, porque achava bonito não ter o que comer, porque lhe sobrava
paciência e tolerância para com seu homem. http://revistaalfa.abril.com.br/entretenimento/musica/mario-
lago-e-a-nossa-amelia/ acesso em 21 de jul. 2012.
124

dependente dela. Essas manhas e artimanhas do sujeito feminino são expostas nos versos da
canção.

Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto


Pra você parar em casa, qual o quê!
Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é um operário, sai em busca do salário
Pra poder me sustentar, qual o quê!
No caminho da oficina, há um bar em cada esquina
Pra você comemorar, sei lá o quê!
Sei que alguém vai sentar junto, você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias de quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo, sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo vai bater um samba antigo
Pra você rememorar
Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão, qual o quê!
Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer? Qual o quê!
Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você.

(Buarque, C. Com açúcar, com afeto In: Chico Buarque de Hollanda, vol. 2,
RGE, 1967).

Muito se escreveu sobre esta famosa composição pelo fato de ter sido a
primeira em que o Chico colocou como protagonista a Mulher. O texto mostra a esposa
responsável e o marido irresponsável. Não há um confronto, mas um entendimento, a
despeito da inversão de valores pregados pelos moldes sociais contemporâneos, ainda bem
patriarcais.
Com Açúcar, Com Afeto é uma Trova em Cantiga de Amigo, na qual o poeta
procurou colocar na boca da mulher as impressões que o mesmo tinha do seu próprio
comportamento cotidiano, numa típica autocrítica espelhada no comportamento da
companheira. Essa atitude feminina, apresentada aqui da perspectiva da mulher (atraindo,
assim, as simpatias para a suposta vítima de uma situação desequilibrada), pode ser vista de
outro viés, que revelará, sob a camada de afeto, a dimensão de controle e cerceamento da
liberdade estabelecida por essa mulher doméstica.
A canção Mulheres de Atenas (1976) é vista por algumas feministas como
apologia à submissão das mulheres gregas, já que parece enaltecer seu servilismo e
obediência a seus maridos, ampliando esses domínios para a realidade brasileira, ou
125

qualquer outra, em que a mulher é cerceada. Entretanto, o discurso representado na canção


é revestido de ironia, apresentando efeitos contrários de sentido, onde se afirma Mirem-se
se sugere que se faça o contrário. Dessa forma, o texto é um hino contra a submissão das
mulheres que se sujeitam às regras ditadas pelas sociedades patriarcais, criticando tais
sociedades nas quais a mulher não tinha nenhuma visibilidade, a não ser a de gerar filhos e
cuidar da casa e atender aos desejos do marido. A canção é apresentada na íntegra, a fim
de ilustrar essa exposição:

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas


Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas
Quandos eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
126

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas


Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas
(Buarque e Boal, A. Mulheres de Atenas In: Meus caros amigos, Philips, 1976).

Diante das representações das identidades das mulheres gregas, surgem alguns
questionamentos: de onde viria a submissão, a paciência e o recato de Penélope? Quem lhe
ensinou a reprimir seus desejos? E o aprisionamento do tempo, nas linhas que teciam
bordados e que capturavam segredos contados em cada ponto? E quantas Helenas tiveram
seus corpos violados em nome da superioridade masculina?
Desde muito cedo a identidade de gênero vai sendo construída de acordo com a
construção social. Todos nós estamos fortemente impregnados do caráter binário de
categorias como feminino e masculino, no entanto, nas últimas décadas, uma grande zona
de desconforto foi criada, com tantas possibilidades que estão sendo declinadas na
categoria gênero. A diversidade nos coloca diante de novas formas de agrupamentos
sociais, esvaziando o discurso binário, do certo ou errado, normal ou patológico.
O gênero nos remete ao movimento, à transformação social, aos significados
que vão sendo construídos e (re) significados à medida que o homem se depara consigo
mesmo e com o seu entorno, uma busca incessante para dar sentido a sua existência.
Na mesma trilha das canções analisadas acima, A mais bonita (2011) apresenta
um eu lírico que precisa se mostra bonita e revelar-se da forma mais bonita para que seja
notada pelo homem amado. A personagem não só chora, mas também, finge que está feliz,
finge que não sabe e finge que finge para agradar seu homem. Deseja se fazer bonita para
que os olhos do seu bem não olhem para mais ninguém. Nesse jogo de dissimulações, ela
espalha seus rostos e arrasa na casa dos espelhos. Os versos da canção podem colaborar
com essas afirmações.

Não, solidão, hoje não quero me retocar


Nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas
Deixo que as águas invadam meu rosto
Gosto de me ver chorar
Finjo que estão me vendo Eu preciso me mostrar
Bonita
Pra que os olhos do meu bem
Não olhem mais ninguém Quando eu me revelar
Da forma mais bonita
Pra saber como levar todos os desejos que ele tem
Ao me ver passar bonita
Hoje eu arrasei na casa de espelhos
Espalho os meus rostos e finjo que finjo que finjo
Que não sei
127

Deixo que as águas invadam meu rosto


Gosto de me ver chorar
Finjo que estão me vendo Eu preciso me mostrar
Bonita
Pra que os olhos do meu bem
Não olhem mais ninguém Quando eu me revelar
Da forma mais bonita
Pra saber como levar todos os desejos que ele tem
Ao me ver passar bonita
Hoje eu arrasei na casa de espelhos
Espalho os meus rostos e finjo que finjo que finjo
Que não sei

Nas representações sobre o feminino é necessário atentar-se para os papeis que


são atribuídos a homens e mulheres pela esfera sociocultural, além da fisiologia. É certo
que para o menino é dado o espaço para que ele se faça em um livre movimento para o
mundo. Essa diferença é colocada de forma antagônica para a menina desde o inicio: "e
ensinada que para agradar é preciso agradar, fazer-se objeto" (BEAUVOIR, 1980, p.22).
Mas os costumes opõe-se que as meninas sejam tratadas iguais aos meninos. A
coerção social é muito mais forte na cobrança dos papéis fazendo com que as meninas
achem conveniente optar por encarná-lo do que tentar vivenciá-lo de uma forma diferente.
Até mesmo porque as meninas e os meninos em geral são entregues às mulheres (mães,
irmãs, tias, etc.) que respeitam a virilidade do menino, que logo lhes escapa, mas como
para si mesmas, cobram das meninas um jeito feminino de ser.
Assim, hoje em dia as mulheres procuram ocupar seus espaços e são até
encorajadas a seguir uma profissão, a estudar, a crescer, mas sempre lembradas também
para não perderem por isso a sua feminilidade.
A hierarquização dos sexos dessa forma contorna-se inicialmente dentro da
família. E através de lendas de príncipes e de canções que a menina começa a perceber o
mundo pelo olhar masculino, constatando que tal como ontem, hoje ainda são homens que
dirigem o mundo. A menina vai apreendendo que para ser feliz tem que ser amada e que
por isso e preciso esperar: um amor, um príncipe, um herói, reforçando isto em seu
universo de fantasias.
Cabe à mulher, para tornar-se mulher, em primeira instância, seduzir um
homem; é através das relações com o mundo vivido que ela vai estabelecendo este
aprendizado.
É sabido que, em nossa civilização, é acintoso exigir-se da menina dedicação
aos estudos e paralelamente o auxilio nas tarefas domesticas. Além disso, sua
128

espontaneidade e desconcentração são geralmente cerceadas em nome da postura e da


moral, fazendo com que quase toda experiência espontânea seja reprimida: resta-lhe a
tensão e o tédio mais tarde transformados em preguiça, derrotismo e mediocridade.

Essa impotência física traduz-se por uma timidez mais geral: ela não acredita
numa força que nunca experimentou em seu corpo; não ousa empreender,
revoltar-se, inventar: votada á docilidade à resignação, não pode se não aceitar,
na sociedade, um lugar já preparado. Ela encara a ordem das coisas como dadas
(BEAUVOIR, 1980, p.69).

Assim, a mulher é ensinada desde criança que não é aumentando seu valor que
será respeitada e estimada aos olhos do homem; nem com agressividade, autoridade ou
franqueza poderá conquistá-lo; mas sim, abdicando de seus desejos é que poderá agradá-lo.
O eu lírico de A mais bonita parece saber disso muito bem.
A canção Atrás da porta (1972) é tomada como emblemática para configurar a
submissão feminina. Os versos dessa canção ilustram tal posicionamento:

Quando olhaste bem nos olhos meus


E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito (Nos teus pelos)*
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar


Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...

(Buarque, C. Atrás da porta in: Caetano e Chico - juntos e ao vivo,


Polygram: 1972)
*Verso original vetado pela censura
Em Atrás da porta (1972), percebe-se um eu lírico feminino dilacerado pela
dor da separação, refletindo a perda da autoestima e do autocontrole, num rebaixamento da
dignidade ao nível da humilhação, chegando quase à total aniquilação de sua subjetividade.
129

Essa canção traduz o sentimento de inconformismo da mulher face ao


abandono anunciado pelos olhos do amigo; isso se faz numa sequencia de verbos de ação
na primeira pessoa do singular que vem reforçada pela aliteração das consoantes /r, /t/ e
/b/, formando um conjunto sonoro puro e forte que sugere ao ouvinte uma atitude de raiva
e desespero por parte da personagem:

E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito
Nos teus pêlos (sic!)
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama‖

Chico realça a noção de amor como instinto selvagem, uma série de atitudes
impulsivas, a visão selvagem dá destaque a esta ação. Um dos versos mais interessantes é
―Sem carinho, sem coberta‖. A ausência de carinho, uma palavra que assume sentido
abstrato e a da palavra coberta, como algo concreto. A primeira estrofe termina com ―No
tapete atrás da porta / Reclamei baixinho‖. O tapete atrás da porta e a gradação do advérbio
baixo para baixinho destacam a submissão do sujeito poético feminino.
Na segunda estrofe. Há uma ruptura com a submissão e a presença do
sentimento de vingança é inevitável, tendo como pano de fundo a selvageria. A
ambiguidade da canção fica a cargo de Te adorando pelo avesso que cria uma imagem
confusa de amor, tanto pode referir a não adorar, como a adorar apesar do lado ruim, dos
defeitos, das imperfeições do interlocutor, objeto desse amor desmedido.
A última canção desse bloco referente à submissão feminina na obra musical
de Chico Buarque é Meu namorado (1983). Nos seus versos percebe-se um eu lírico que
sofre de uma crise de identidade, caracterizada como a ―perda de sentido de si‖ (HALL,
2005, p.9).

Ele vai me possuindo


Não me possuindo
Num canto qualquer
É como as águas fluindo
Fluindo até o fim
É bem assim que ele me quer
Meu namorado
Meu namorado
Minha morada
É onde for morar você
130

Ele vai me iluminando


Não iluminando
Um atalho sequer
Sei que ele vai me guiando
Guiando de mansinho
Pro caminho que eu quiser
Meu namorado
Meu namorado
Minha morada é onde for morar você
Vejo meu bem com seus olhos
E é com meus olhos
Que o meu bem me vê

(Buarque, C. e Lobo, E. Meu namorado In: O grande circo místico, Som Livre,
1983).

O eu lírico dominado pela paixão, o que a faz submissa diante do seu amor,
mostrando-o ao mundo como um homem dominante, entretanto é ela, no íntimo da relação,
quem conduz e domina a paixão, dando e recebendo o que decidiu sobre os sentimentos.
Hall relaciona o processo de deterioramento da noção de identidade única e
coerente aos novos modelos culturais da pós-modernidade, pois ―à medida que os sistemas
de representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar ─ ao menos temporariamente‖ (HALL, 2005, p. 13).
Quanto a esse aspecto da perda de uma identidade definida pelo sujeito, a
análise empreendida para as canções acima procurou mostrar como a busca amorosa
constitui uma tentativa de encontrar o sentido de si e a completude na união com o outro. A
canção Meu namorado revela essa entrega, sobretudo, nos seguintes versos: ―Vejo meu
bem com seus olhos / E é com meus olhos / Que o meu bem me vê‖.

3.3.3 A mulher libertária: essa moça tá diferente!

Na primeira fase da carreira artística de Chico Buarque, cujas primeiras


canções remontam aos meados da década de 1960, a mulher é retradada, sobretudo sob
uma perspectiva mais intimista, ausente de qualquer conotação que fuja do âmbito
sentimental. De um lado, ela é a mulher distante, e de outro, ela é a mulher bem próxima,
que está em casa, apoiada à janela. Ambas são referenciadas, em sua maioria, por um eu-
lírico masculino, representadas, segundo o ponto de vista do homem.
Mas gradativamente, a mulher na obra do compositor levanta-se do tapete, sai
de trás da porta, abre totalmente sua janela e resolve respirar um pouco de ar puro. Numa
131

progressiva gradação, a partir dos anos 1970, ocorre uma mudança na representação
buarqueana sobre a postura da mulher, que se realiza no sentido de dentro para fora. Ao
sair do interior do lar, espaço a ela destinado pelos cânones convencionais, a mulher passa
a se projetar no espaço ilimitado da rua. Essa mudança ocorre em dois níveis: tanto no
domínio sentimental e emotivo, quanto no político-social, num percurso que delineia a
libertação da mulher que sai de sua casa – moradia e o próprio corpo e alma – para viver a
vida. Uma produção artística marcada, portanto, pela lírica amorosa concomitante com a
temática de teor político-social. Mas ao se referir às mulheres, Chico Buarque não apenas
as menciona numa situação em que elas são apenas referentes. Ele extrapola essa relação, a
partir a partir do momento em que cria vários eus-líricos femininos para diferentes
manifestações.
A partir de então, é dada autonomia e voz às mulheres menosprezadas pelo
universo machista e pelo sistema. Com uma exacerbada sensibilidade, o poeta deixa de
lado seu subjetivismo como eu individual e se lança, num protesto veemente, sob a
perspectiva do outro. Não é somente uma questão de solidariedade, pois se trata de um eu
pungente que sente e se fragmenta em múltiplas faces de um mesmo individuo. Nessa
postura de assumir a voz de uma mulher, diminui-se consideravelmente o distanciamento
que havia nos textos em que a mulher era apenas referente, em muitas vezes uma figura
idealizada. Ao assumir um outro eu, Chico Buarque passa a experimentar essa outra
identidade, os sofrimentos e as alegrias nela existentes. Daí a naturalidade do compositor
em transitar por vários eus, conforme nos assegura Maria Helena Sansão Fontes:

Esse dado, muito importante na primeira fase da obra buarquiana (―Januária,


―Carolina, ―Madalena foi pro mar, ―Morena dos olhos d‗água entre outras)
cede lugar cada vez mais à mulher ―de carne e osso, que, vista sob seus
conflitos existenciais e necessidades afetivas, revela a preocupação visceral do
poeta com a existência feminina em toda sua plenitude de esposa, mãe, amante,
amada, traída, abandonada, desrespeitada
ou marginalizada (FONTES, 2003, p.46-47).

Na esfera sentimental, quando o eu feminino se torna o emissor, percebe-se, ao


nível das vivências afetivas, uma intensificação no lirismo e no dilaceramento amoroso, se
comparados aos poemas em que a mulher é apenas referente ou destinatária. É
representada a mulher capaz de reação perante uma dissolução amorosa, em que
prevalecerá a capacidade feminina de se sobressair perante o homem que a ultrajou. Uma
canção que serve como exemplo dessa superação é Olhos nos olhos (1976), em que o
132

sentimento de vingança, aparece de forma irônica e sutil. O eu lírico feminino, inicialmente


obedece, como era de costume. Porém essa obediência não soa como servilismo e sim,
como uma forma de revolta. O eu feminino rebaixa e despreza o ex-companheiro, já que
refez a vida amorosa e sente-se mais feliz com outros homens. Essa agressão irônica
aparece inclusive no vocativo ―meu bem‖

Quando você me deixou, meu bem


Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos
Quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando, sem mais, nem por quê
Tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos
Quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz

(Buarque, C. Olhos nos olhos In: Meus caros amigos, Polygram/Philips, 1976).

Conforme as palavras da personagem, ser amadas por muitos homens e ainda,


melhores do que o ex- companheiro é possível perceber aí um novo perfil de mulher. Nesse
sentido, é muitas vezes destacada a transgressão erótica como uma das formas de a mulher
se libertar de certos modelos comportamentais determinados e guardados a sete chaves
pela sociedade patriarcal.
Mas é na esfera político-social que a figura da mulher dará o seu grande salto.
Os signos habituais relacionados a ela, como a passividade, a docilidade e a dedicação ao
lar acabam sendo questionados e substituídos por atributos mais ―viris, como
racionalidade, força e determinação. Toda essa mudança de ponto de vista em relação à
temática da mulher na obra de Chico Buarque acompanhava a revolução que estava
ocorrendo na esfera das questões femininas da década de 70, questões essas já apresentadas
anteriormente. Nessa fase é que surgiram algumas músicas que têm como temática não
somente papéis convencionais como o de mãe e de esposa como também a da mulher
transgressora da moral convencional. É revelada, em ambas as situações, uma preocupação
com a mulher marginalizada e esquecida socialmente.
133

Nessa medida, a transgressão, tanto ligada à prostituição quanto a qualquer tipo


de ―desordem feminina, recebe por parte do poeta a adesão irrestrita, seja de
maneira solidária, revelando uma inquietação social através da denúncia, seja
simplesmente fruto de uma admiração sem limites pela mulher e pelas causas
femininas.(FONTES, 2003, p.90).

Dentre os vários eus-líricos que o poeta assume, são destacadas algumas


identidades da mulher, até então nunca bem discutidas pela sociedade: a amante, a
prostituta, a esposa traída e vingativa, a mulher do malandro, entre outras.
Do rol de vozes femininas que se configuram como libertárias, evoca-se o eu
lírico de Essa moça tá diferente (1970), mesmo que representada pelo discurso do homem.

Essa moça tá diferente


Já não me conhece mais
Está pra lá de pra frente
Está me passando pra trás
Essa moça tá decidida
A se supermodernizar
Ela só samba escondida
Que é pra ninguém reparar
Eu cultivo rosas e rimas
Achando que é muito bom
Ela me olha de cima
E vai desinventar o som
Faço-lhe um concerto de flauta
E não lhe desperto emoção
Ela quer ver o astronauta
Descer na televisão
Mas o tempo vai
Mas o tempo vem
Ela me desfaz
Mas o que é que tem
Que ela só me guarda despeito
Que ela só me guarda desdém
Mas o tempo vai
Mas o tempo vem
Ela me desfaz
Mas o que é que tem
Se do lado esquerdo do peito
No fundo, ela ainda me quer bem
Essa moça tá diferente etc..
Essa moça é a tal da janela
Que eu me cansei de cantar
E agora está só na dela
Botando só pra quebrar
Mas o tempo vai etc..

(Buarque, C. Essa moça tá diferente In: Chico Buarque de Hollanda


- Vol.4, Universal Music, 1970).
134

Pode-se observar que a primeira e a segunda estrofe da canção sugerem uma


reestruturação do cenário feminino e propõe uma visualização quanto à trajetória da
mulher contemporânea, que está decidida a quebrar os paradigmas de uma cultura que
associa a feminilidade à dependência do homem, e que separa os papéis em públicos e
privados segundo o gênero (Souza, & Rosa, 2000). Nos versos: Essa moça tá diferente,
Está pra lá de pra frente e Essa moça tá decidida é possível perceber a evolução do seu
comportamento contemporâneo.
As transformações no cenário feminino permitem refletir também, se as
transformações ocorridas no campo da mulher implicarão alterações também no campo do
homem. Nesta direção, a extrema dominação do homem dar-se até o ponto em que este
teme a sobreposição da mulher sobre si. O verso da canção referenciada está me passando
pra trás é um exemplo disso.
O eu lírico masculino reclama atenção, conforme é mostrado através dos
versos, Não me reconhece mais e Faço-lhe um concerto de flauta, e não lhe desperto
atenção. A nova identidade feminina passa a compartilhar, graças às lutas emancipatórias
propiciadas pelos movimentos sociais como o feminismo, espaços anteriormente ocupados
somente por homens: Ela descobriu o mundo, Conhece a Índia e o Japão.
Ressalta-se também que ―essa moça é a tal da janela‖, que deixou sua condição
de imóvel, contemplativa; ansiosa, mas receosa de aventurar-se além do espaço doméstico,
que agora ousa desafiar a ordem masculinizante, atestada pela diferença do gênero e
começa a ensaiar os primeiros passos rumo à sua libertação.
Contudo faz-se necessária a desconstrução do arquétipo de mulher ideal,
atrelado à de sua feminilidade e de sua condição feminina, pois a moça que está decidida a
se supermodernizar, ainda só samba escondida, que é pra ninguém notar. Estes versos
sugerem uma moça que ainda está atrelada aos preceitos sociais, levando a crer, que a
sociedade a recompensará por, ter sua feminilidade assegurada, pois no fundo, ela ainda
quer bem ao sujeito masculino, e também, de acordo com essa visão, parece que nova
liberdade para trabalhar, informar-se, divertir funciona uma licença concedida.
Dentre as vozes femininas que ilustram o período das repressões, ampliadas
pela ditadura militar, surge Bárbara.
135

Bárbara evoca um ponto de vista feminino e sensual, marcado por sua relação
amorosa-política com o companheiro Calabar13. É o corpo feminino e a terra conjugados
num mesmo plano semântico, e ambos marcados por acentuado erotismo e sensualidade. A
terra, enquanto metáfora de corpo se deixa interpenetrar através de dois sentidos (O corpo
feminino e o geográfico) e que, inevitavelmente, pela associação de imagens, sobrepõem-
se uns aos outros. Por outro lado, permite-se considerar todo esse campo semântico erótico
sexual através de outro aspecto de Bárbara, agora não mais voltada para a sensualidade e o
prazer. Essa receptividade, característica do feminino em diversas de suas abrangências,
agora empresta lugar a uma feição de cunho político e guerreiro. A parceria com Calabar
agora pode ser considerada através da luta em que ambos se engajavam, pois ela era a
companheira de seu homem nos combates. Elementos como Terra, matas, rios, campanhas,
currais, trincheiras, entranhas e pântanos de onde emergiam vazantes e correntes não mais
se referem à geografia corporal de Bárbara, mas assumem seu sentido literal: paisagens
geográficas pelas quais o casal se aventurava durante as batalhas.
Apresenta-se em versos da canção Cala a boca Bárbara (1973), cujos versos
exemplificam a relação de cumplicidade, tanto como amantes quanto guerreiros:

Minhas matas percorreu


Os meus rios
Os meus braços
Ele é o meu guerreiro
Nos colchões de terra
Nas bandeiras, bons lençóis
Nas trincheiras, quantos ais, ai
(...)
Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina
Onde guardo o meu prazer
Em que pântanos beber
As vazantes
As correntes
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro
Nas campanhas, nos currais
Nas entranhas, quantos ais, ai
Cala a boca
Olha a noite
Cala a boca
Olha o frio
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara.
(Buarque, C. Cala a boca Bárbara In: Chico canta, Philips, 1973)

13
Calabar o elogio da traição, peça teatral escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra em 1973, m que
desmitifica-se o papel de traidor e do conceito de traição.
136

Quando a peça se inicia, Calabar já está morto, executado pelos portugueses,


que não apenas exigiram que seu nome fosse apagado de qualquer registro como proibiram
que fosse pronunciado. Sua mulher, Bárbara, que é quem canta a canção, e em quem ele
está intensamente presente. Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o ―ele‖
a que Barbara se refere. O ―cala a boca, Bárbara‖, que marca a canção estigmatiza a peça e
os tempos que a geraram: remete ao mesmo silêncio imposto de ―Cálice‖ (= Cale-se) da
época em a canção foi produzida, a década de chumbo dos inícios dos anos 70, auge da
ditadura militar; mas também remete a uma imposição de silêncio, referindo-se à proibição
da pronúncia do nome de Calabar, porém serve ao seu reverso uma vez que, é esse nome
que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelação, à força da repetição do
refrão: ―Cala a boca, Bárbara‖. Aqueles que lerem a letra ou ouvirem esta canção
incorporarão o ‗Cala a boca‘ ao nome de Calabar. E o nome de Calabar conterá o nome de
Bárbara: fusão de amantes apaixonados
Entretanto a morte física de Calabar dá origem a toda uma discussão sobre suas
atitudes e permanência de seus ideais na consciência popular. Mas aos poucos, Bárbara vai
sendo calada por uma força que ela mal identifica, e acaba aderindo a essas vozes que
apelam:

Cala a boca
Olha a noite,
Cala a boca,
Olha o frio,
Cala a boca Bárbara.
Cala a boca Bárbara.
Cala a boca Bárbara.
Cala a boca Bárbara.

Enquanto mulher libertária, Bárbara participou dos ideais de Calabar e é a voz


que procura mantê-lo vivo. É através dela que emerge ―a consciência popular‖, que dita
uma verdade não oficial, provocando uma inversão de valores em relação à interpretação
do fato histórico: ―ela inaugura a voz do oprimido‖ (PEIXOTO, 2006, p. 19).
Diante do exposto, pode-se afirmar que são duas, as posturas de Bárbara. A
primeira, dizendo respeito à sua receptividade erótico-sexual, e a segunda, a sua atitude
político-guerreira. É esboçado, como se percebe, o perfil de uma mulher consciente de suas
diferentes potencialidades, tanto as de cunho mais elementar e corporal do universo
feminino, quanto às de cunho mais viris, geralmente associadas ao universo masculino.
137

Seguindo esse percurso de análise, utiliza-se da canção Ela desatinou (1968)

Ela desatinou, viu chegar quarta-feira


Acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando
E ela ainda está sambando
Ela desatinou, viu morrer alegrias, rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando e ela ainda está sambando
Ela não vê que toda a gente, já está sofrendo normalmente
Toda a cidade anda esquecida, da falsa
vida, da avenida onde
Quem não inveja a infeliz, feliz
No seu mundo de cetim, assim,
Debochando da dor, do pecado, do tempo perdido, do jogo acabado

(Buarque, C Ela destinou, In: Chico Buarque de Hollanda, vol. 3, RGE, 1968).
O eu lírico dessa canção é o que Meneses (2002) denomina de ―mulher órfica‖
– que não respeitaria, por exemplo, o princípio da realidade, e continuaria sambando após a
quarta-feira de cinza, num carnaval continuado, não vendo que as outras pessoas já estão
sofrendo normalmente. A personagem feminina demonstra uma perda do censo,
utilizando-se do carnaval, como momento agendado para o extravasamento de pulsões
reprimidas e como um grito alegre e libertário de condenados à insanidade. Se em Essa
moça tá diferente, a manifestação da dança, como expressão da liberdade corporal, bem
como em Bárbara, cuja palavra é interditada, em Ela desatinou, a alegria só é autorizada
como sinônimo de devaneio ou desvario.
Morena de Angola (1980) apresenta outra personagem feminina que transgride
a ordem, instaurado a agitação, desfazendo o previsível, os costumes. Nada mais se podia
esperar da Morena bichinha danada minha (de Chico Buarque) camarada do M.P.L.A 14.

Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela


Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela?
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela?
Será que a morena cochila escutando o cochicho do chocalho?
Será que desperta gingando e já sai chocalhando pro trabalho?
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela?
Será que ela tá na cozinha guisando a galinha cabidela?
Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela?
Será que no meio da mata, na moita a morena ainda chocalha?

14
O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) é um partido político de Angola, que governa o
país desde sua independência de Portugal em 1975. Foi, inicialmente, um movimento de luta pela
independência de Angola, transformando-se num partido político após a Guerra de Independência de 1961-
74. Conquistou o poder em 1974/75, durante o processo de descolonização e saiu vencedor da Guerra Civil
Angolana de 1975-2002, contra dois movimentos/partidos rivais, a UNITA e a FNLA. Avante, nº
1793, 10.Abril.2008. http://www.avante.pt/pt/1793/emfoco/24123. /Acesso em 22 de jul. de 2012.
138

Será que ela não fica afoita pra dançar na chama da batalha?
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Passando pelo regimento ela faz requebrar a sentinela
Iá, iá, iá
(...)
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Morena bichinha danada minha camarada do M.P.L.A.

(Buarque, C. Morena de Angola In: Vida, Universal Music, 1980).

A personagem de Morena de Angola, não nomeada, mas inscrita no discurso


do eu lírico como representação do coletivo, é também uma mulher órfica, da estirpe de
Dionísio como define Meneses (2002), a que estabelece a ordem da festa, subvertendo e
transgredindo a ordem repressiva do cotidiano, conforme o verso seguinte demonstra:
Passando pelo regimento ela faz requebrar a sentinela.
Nesse sentido, pode-se dizer que da canção analisada acima essa personagem
através da força que outrora lhe fora negada, uma participação efetiva em questões e
posições coletivas de grande relevância, tais como o engajamento e até mesmo na liderança
política de movimentos, de estados e de nações.
Não é só na ordem da festa que sobressai a ação da mulher libertária, no se
desejo de defender a vida, dimensionada como fantasia, gratuidade ou prazer. Assim como
Bárbara, tem-se no cancioneiro buarqueano a presença drama, do trágico. Como
representação dessa subjetividade, recorre-se aqui ao arquétipo da mãe, como geradora e
mantenedora da vida ou da Grande Mãe, um conceito de Jung (2000) definido assim por
Neumann (1968, p. 31): Tudo o que é grande e envolvente e que contém, circunda,
envolve, protege, preserva e nutre qualquer coisa pequena pertence ao reino maternal
primordial.
Das canções de Chico Buarque, analisa-se agora Angélica (1982), na qual se
depara com uma mãe real, que de pessoa passa à personagem. Chico Buarque nos versos
dessa canção retrata a história de Zuzu Angel, famosa estilista do Brasil, que teve seu filho
Stuart torturado e morto pelas forças repressoras na década de 1970. Em consequência de
sua luta, a fim de que se fizessem justiça, a estilista também morreu em circunstâncias
misteriosas.
Quem é essa mulher? Essa é a grande pergunta reiterada no corpo da canção,
cuja resposta encontra-se fora dela, no contexto social. Os versos abaixo ilustram essa
situação:
139

Quem é essa mulher


Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar

(Buarque, C. Angélica In: Almanaque, Universal Music, 1982).

As evidências mis fortes da maternidade estão sugeridas pelos verbos de ação


embalar, agasalhar e na locução deixar descansar. Tais ações indicam proteção e cuidado,
assim como a preservação o que é frágil: seu filho, seu menino, seu anjo.
Como marcas da feminilidade de Angélica, percebem-se as ações de lembrar e
cantar, bem como a sua atividade profissional (arquetipicamente feminina), na qual lidava
com tecidos, costura. Entretanto essa subjetividade, marcadamente como frágil,
transformou em forte, viril, ao enfrentar o regime militar, que tantas vítimas fez ao longo
dos anos de ditadura no país.
Com a sua morte, Zuzu Angel não pode mais cantar, aí entra o poeta que vai
emprestar-lhe a voz, surgindo assim Angélica.
O discurso de Angélica é o de tantas outras mães das Américas, ou de qualquer
outro lugar. É também, o discurso de tantos que lutam por justiça, daí nesse jogo polifônico
ser possível perceber esse coro de vozes interditadas.
Angélica é a personagem que assim como aquela de Ela desatinou, opõem-se
ao princípio de morte, ―representam modulações extremadas de uma mesma atitude de
oposição às forças de repressão e do extermínio, só que uma no registro do trágico (defesa
da vida contra uma situação-limite da repressão, que é a morte) e outra, na ordem da festa
(defesa da vida naquilo que esta significa de fantasia, prazer e imaginação criadora)‖
(MENESES, 2001, p. 59-60).
Nessa tentativa de análise, tentou-se esboçar uma configuração para a
subjetividade feminina, no que se refere à sua força libertária. Percebeu-se que a mulher se
mostra como um sujeito de atitudes combativas e atua em várias frentes da sociedade,
140

assumindo assim sua multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,


com cada uma das quais, só temporariamente, se identificando com o sujeito pós-moderno
referido por Hall (2005).

3.3.4 A mulher liberada: parece que criou asa, é ave de arribação.

A mulher liberada, a partir da década 1980, é tomada como uma nova mulher:
trabalha fora; responde, consequentemente pela satisfação de suas necessidades
econômicas; compartilha com o marido, a divisão das despesas do lar; assim como
colabora fortemente para o crescimento do patrimônio familiar (em termos de bens
materiais). A mulher passa a competir com os homens e com outras mulheres pelo seu
lugar no mercado de trabalho; e escolhe se, quando e com quem deve ter filhos. Nessa
balada, passa a considerar o amor, tentando não depender dele para ser feliz.
As canções que se passa a analisar nesta seção foram selecionadas para mostrar
comportamentos femininos desviados dos padronizados pela sociedade tradicional, na qual
os papéis identitários do masculino e do feminino eram claramente definidos. A fim de
apresentar mulheres que transgridem tais padrões, utilizou-se das canções: História de uma
gata (1981); Murro em ponta de faca (1978), A Rosa (1995), A violeira (1983) e O meu
amor (1978).
Pode parecer estranho o fato de se abrir essa tentativa de análise com uma letra
de música feita para a trilha sonora de um filme voltado para o público infanto-juvenil (Os
saltimbancos Trapalhões, 1981), porém a mesma canção já havia feito parte do espetáculo
Os Saltimbancos, em 1977, para tratar de mulher liberada. Atentemo-nos, então, aos versos
da canção. Os Saltimbancos é um musical infantil com letras de Sergio Bardotti e músicas
de Luis Enríquez Bacalov, versão em português e músicas adicionais de Chico Buarque,
numa adaptação de Os músicos de Bremen recolhido pelos irmãos Grimm. Em 1981, a
peça foi adaptada para o cinema, intitulada Os Saltimbancos Trapalhões (Europa Filmes)
interpretada por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, Os Trapalhões.
Nos versos iniciais, pode-se perceber como era tranquila e confortável a vida
da gata, recebia todos os cuidados e não precisava se preocupar com as dificuldades do
mundo real: comida e teto. Assim como a mulher dos chamados ―anos dourados‖, que
tinha na figura masculina, pai ou marido o seu provedor e protetor. Diante da segurança do
lar, só restava aproveitar e não reclamar.
141

Me alimentaram
Me acariciaram
Me aliciaram
Me acostumaram
O meu mundo era o apartamento
Detefon, almofada e trato
Todo dia filé-mignon
Ou mesmo um bom filé... De gato
Me diziam todo momento
Fique em casa não tome vento

Entretanto com as lutas por emancipação, por direitos à igualdade entre os


gêneros, a gata/mulher resolve ouvir os alaridos que lhe chegavam aos ouvidos, sinais de
mudanças urgentes de comportamentos eram esperados. O mundo masculino se tornava
mais amplo, cabendo agora a presença feminina. E a gata/mulher não cede aos apelos dos
novos tempos, não resistindo à tentação causada pelo movimento:

Mas é duro ficar na sua


Quando à luz da lua
Tantos gatos pela rua
Toda a noite vão cantando assim
Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora senhorio
Felino, não reconhecerás (2x)

A gata transgrediu a ordem estabelecida. Saindo da redoma, incorporou outros


papeis, ousou cantar, beber, sair à noite e só voltar de manhã. Depois de misturar-se à
gataria, tornava-se difícil retomar sua vida anterior, a felina teve que pagar o preço, as
regalias acabaram.

De manhã eu voltei pra casa


Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria

Porém a liberdade, condição natural para os felinos, é conquistada; e sua


identidade restaurada.

Mas agora o meu dia-a-dia


É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata
Numa louca serenata
Que de noite sai cantando assim
Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora senhorio
Felino, não reconhecerás (2x).
142

Assim como a gata, a mulher contemporânea também quebrou tabus, sofreu


interdições, foi desrespeitada por uma sociedade que antes lhe oferecera segurança, luxo.
De uma forma metafórica, o substantivo gata utilizado pelo compositor
permitiu dentro do contexto da análise associá-la ao tratamento gata na acepção de mulher
jovem e bonita, conforme a gíria comumente usada atualmente.
Chico Buarque empregou o recurso da carnavalização, que segundo Bakthin
(1997), pode ser compreendida como uma linguagem carregada de símbolos e alegorias,
em que se pontua a divergência entre o oficial e o não oficial ou, mais propriamente, a
ruptura com tudo que é institucionalizado. Entende-se, portanto, como carnavalesca, a
completa quebra de tabus, a liberação de energias, instintos e desejos, castrados e
censurados pela cultura oficial. No contexto da produção da letra da canção História de
uma gata, década de 1970, o Brasil sofria com vários tipos de violações de suas liberdades,
daí a necessidade de estratégias no uso da linguagem para driblar a censura
institucionalizada. Ao subverter a obra base Os músicos de Bremen, na qual os Irmãos
Grimm criticam o feudalismo europeu, o compositor brasileiro recorre à paródia tanto na
transposição para o Brasil da década de 1970, tanto a situação política. Ainda, no campo da
transgressão, alteram-se os gêneros de alguns dos animais: galo vira galinha e gato, vira
gata. Pode-se, diante dos versos da canção em análise, que se trata de uma alegoria da
liberdade, por isso a elegemos para a abertura dessa seção que aborda a mulher libertária.
A próxima canção a ser analisada é Murro em ponta de faca (1978). Essa canção
foi composta por Chico Buarque e Augusto Boal, para a peça de autoria deste, denominada
homônima, porém ainda não foi gravada em disco.
O eu lírico dessa canção segue a trajetória da mulher contemporânea, que tem
assumido vários papeis no interior de espaços antes forjados como masculinos. Na
construção de sua identidade, a mulher vem desafiando normas sociais e enfrentando
preconceitos, dentre os quais o da identidade unívoca, da diferença entre os sexos e da
condição de submissa e de vítima da opressa. Atualmente, o sujeito é portador de múltiplas
identidades, seja ela de gênero, espacial, étnica, social, territorial. Ou seja, o sujeito pós-
moderno está sempre ressignificando suas identidades e assumindo outras de acordo com a
situação em que está inserido. Como afirma Hall (2005, p. 13), ―O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um ―eu‖ coerente‖.
143

A voz enunciadora dos primeiros versos declara que não gostava de sair de
casas, demonstrando como se sentia acolhida, segura de seus domínios; mas sem que
percebesse criou asas, ou seja, o tempo passou, as coisas mudaram e ela, que antes não
tinha consciência de si, de repente encontra-se diante de suas possibilidades. Erros e
acertos fazem parte de seu percurso, de sua busca de encontrar-se no mundo, o sujeito uno,
já não consegue atracar em nenhum porto seguro.

Eu até que nem gostava


De sair de casa
Mas quando eu menos esperava
Parece que criei asa
Errando de porto em porto
Sou ave de migração
Mala de mão, peso morto
Sou quilombola ou balão
Não sei se sou o inimigo
Ou do inimigo me escondo
Não sei se fujo ou persigo
Por esse enredo, enredo, redondo

Na segunda parte da letra-poema, o sujeito lírico, ainda desnorteado, assume


uma postura aparentemente masculina: quer entrar num boteco, mas a jogam num avião;
vai dormir em sueco e a acordam em alemão.

Eu até que nem gostava


De sair da minha casa
Mas quando eu menos esperava
Parece que criei asa
Eu quero entrar num boteco
Me jogam num avião
Eu vou dormir em sueco
Me acordam em alemão
Não sei se espero ou se brigo
Não sei se calo ou respondo
Não sei se fujo ou persigo
Por esse enredo, enredo, redondo

(Buarque, C. & Boal, A.Murro em ponta de faca, não gravada,1978, para a peça
Murro em ponta de faca).

A canção a seguir A Rosa também apresenta uma mulher transgressora,


segundo a sociedade patriarcal. A voz que se mostra é masculina e é através dela que se
conhece uma flor que não cheira muito bem.
144

Arrasa o meu projeto de vida


Querida, estrela do meu caminho
Espinho cravado em minha garganta
Garganta
A santa às vezes troca meu nome
E some
E some nas altas da madrugada
Coitada, trabalha de plantonista
Artista, é doida pela Portela
Ói ela
Ói ela, vestida de verde e rosa
A Rosa garante que é sempre minha
Quietinha, saiu pra comprar cigarro
Que sarro, trouxe umas coisas do Norte
Que sorte
Que sorte, voltou toda sorridente
Demente, inventa cada carícia
Egípcia, me encontra e me vira a cara
Odara, gravou meu nome na blusa
Abusa, me acusa
Revista os bolsos da calça
A falsa limpou a minha carteira
Maneira, pagou a nossa despesa
Beleza, na hora do bom me deixa, se queixa
A gueixa
Que coisa mais amorosa
A Rosa
Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Bandida, cadê minha estrela guia
Vadia, me esquece na noite escura
Mas jura
Me jura que um dia volta pra casa
Arrasa o meu projeto de vida
Querida, estrela do meu caminho
Espinho cravado em minha garganta
Garganta
A santa às vezes me chama Alberto
Alberto
Decerto sonhou com alguma novela
Penélope, espera por mim bordando
Suando, ficou de cama com febre
Que febre
A lebre, como é que ela é tão fogosa
A Rosa
A Rosa jurou seu amor eterno
Meu terno ficou na tinturaria
Um dia me trouxe uma roupa justa
Me gusta, me gusta
Cismou de dançar um tango
Meu rango sumiu lá da geladeira
Caseira, seu molho é uma maravilha
Que filha, visita a família em Sampa
Às pampa, às pampa
Voltou toda descascada
A fada, acaba com a minha lira
A gira, esgota a minha laringe
Esfinge, devora a minha pessoa
À toa, a boa
Que coisa mais saborosa
145

A Rosa
Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Bandida, cadê minha estrela guia?
Vadia, me esquece na noite escura
Mas jura
Me jura que um dia volta pra casa

(Buarque, C. A Rosa In: Uma Palavra, Sony/BMG, 1995).

Não se ouve a voz feminina, porém o eu lírico a descreve usando vários


adjetivos, cada qual caracterizando essa mulher, conforme suas atitudes, os quais nem
sempre corresponde ao perfil sonhado para uma companheira. Aliás, companheira é tudo
que Rosa não é, afinal é ela que arrasa o projeto de vida do eu lírico. Rosa, segundo a
descrição feita é mentirosa, engana, some, mas jura que um di volta. Parece que o
arquétipo de mulher ideal, delicada, boa dona de casa se desfez. Ao eu lírico, cabe
acreditar nas juras de Rosa e esperar. Ao contrário das moças da janela, presença em tantas
canções buarqueanas, agora os papeis se invertem e quem espera é o homem. A Rosa
demonstra os novos papeis que o sujeito masculino e feminino vem desempenhando na
pós-modernidade: se no passado, o homem saía para ―comprar cigarros‖ quando tinha a
intenção de abandonar o lar ou como pretexto para viver qualquer outra aventura, nos
versos da canção é a Rosa quem faz isso.
A violeira (1983) é a canção que apresenta em seus versos, o perfil da nova
mulher, cujas identidades são múltiplas: mulher, feminina, mãe, caprichosa e nordestina,
artista ─ faz artesanato e toca viola. E é pela voz do eu lírico feminino que se conhece a
sua história:

Desde menina
Caprichosa e nordestina
Que eu sabia, a minha sina
Era no Rio vir morar
Em Araripe
Topei como chofer dum jipe
Que descia pra Sergipe
Pro Serviço Militar
Esse maluco
Me largou em Pernambuco
Quando um cara de trabuco
Me pediu pra namorar
Mais adiante
Num estado interessante
Um caixeiro viajante
Me levou pra Macapá
Uma cigana revelou que a minha sorte
Era ficar naquele Norte
146

E eu não queria acreditar


Juntei os trapos com um velho marinheiro
Viajei no seu cargueiro
Que encalhou no Ceará
Voltei pro Crato
E fui fazer artesanato
De barro bom e barato
Pra mó de economizar
Eu era um broto
E também fiz muito garoto
Um mais bem feito que o outro
Eles só faltam falar
Juntei a prole e me atirei no São Francisco
Enfrentei raio, corisco
Correnteza e coisa-má
Inda arrumei com um artista em Pirapora
Mais um filho e vim-me embora
Cá no Rio vim parar
Ver Ipanema
Foi que nem beber jurema
Que cenário de cinema
Que poema à beira-mar
E não tem tira
Nem doutor, nem ziguizira
Quero ver que é que tira
Nós aqui desse lugar
Será verdade
Que eu cheguei nessa cidade
Pra primeira autoridade
Resolver me escorraçar
Com tralha inteira
Remontar a Mantiqueira
Até chegar na corredeira
O São Francisco me levar
Me distrair
Nos braços de um barqueiro sonso
Despencar na Paulo Afonso
No oceano me afogar
Perder os filhos
Em Fernando de Noronha
E voltar morta de vergonha
Pro sertão de Quixadá
Tem cabimento
Depois de tanto tormento
Me casar com algum sargento
E todo sonho desmanchar
Não tem carranca
Nem trator, nem alavanca
Quero ver que é que arranca
Nós aqui desse lugar

(Buarque, C. A violeira in: Para viver um grande amor, Vários, 1983).

O eu lírico desde cedo conhecia o seu destino, não esperou contar com a sorte e
foi trilhar o seu caminho: viajou de norte ao sudeste do Brasil, teve muitos amores e filhos
bem feitos, mas apaixonar só pela beleza de Ipanema, de onde foi escorraçada pela
147

autoridade, porém resiste Não vê sentido em se casar com um qualquer e ainda ter que
refazer o caminho de volta para o sertão. È briosa, determinada, valente, dona de seu corpo
e de sua vontade, não se vitimiza nem aceita a opressão. Assim a mulher contemporânea
vai construindo suas identidades, com luta e dignidade, com tropeços e contradições, como
é próprio da natureza humana.
A última letra-poema que será analisada nessa seção é O meu amor (1983).
Nos versos dessa canção assiste-se a um duelo de forças femininas, em que ambas
ressaltam as qualidades do amante, disputando-o usando o corpo como instrumento. Esta
música fez parte da trilha sonora da peça e do filme Ópera do Malandro. No filme, a
composição é cantada por duas mulheres, a prostituta – interpretada pela cantora Elba
Ramalho – e a ―mocinha‖ – interpretada pela atriz Cláudia Ohana –, que se põem a falar
sobre as estratégias de sedução do amado, formando, nessa gravação, um jogo polifônico,
no qual vozes femininas diferentes cantam o mesmo tema. As personagens femininas aqui
abordam a questão da sensualidade e da sexualidade, num movimento semântico
desenvolvido em dois pontos distintos: ele e eu (sujeito lírico feminino), sendo o polo ele
indicativo da ação e o polo eu indicando ação:

Me beija a boca,
brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes,
me roça a nuca
e quase me machuca com
a barba mal feita,
pousar a coxa sobre as minhas coxas

E que me deixa louca


Minha pele toda fica arrepiada,
De me deixar maluca
Me deixar em brasa.

Em cada estrofe, a voz feminina menciona as partes do corpo tocadas por seu
amor, descrevendo uma série de artifícios e jogos de sedução para envolvê-la e seduzi-la.
Além disso, o eu-lírico descreve também as sensações de prazer sentidas ao ser seduzido,
como se pode observar na letra integral da canção.

Teresinha:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
148

A minha pele toda fica arrepiada


E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai

Lúcia:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai

As duas:
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz

Lúcia:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai

Teresinha:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai

A duas:
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz

(Buarque, C. O meu amor In: Chico Buarque, Philips, 1978).

Uma vez mais é possível perceber a inversão dos papeis na sociedade


contemporânea, o corpo masculino passa a receber o mesmo olhar que o feminino recebia
o de mero objeto de satisfação sexual. Quando Chico Buarque estabeleceu a descrição
psicológica do comportamento feminino em suas letras-poema que tentamos analisar, o
compositor/poeta já iniciava a elaboração de um discurso revolucionário para a mulher da
década de 1970. Ao emprestar suas canções para dar voz às mulheres, Chico Buarque
149

potencializa suas narrativas de vida quando enuncia discursos acerca dos seus desejos mais
íntimos e suas histórias de amor, comportamentos antes enunciados e assumidos pelos
homens. Dessa forma, tais canções passam a demonstrar uma ambiguidade textual quanto à
questão desses comportamentos vistos como próprios do sexo masculino assumido pelas
mulheres buarqueanas, na sua virilidade e energia empreendida. Ao romper com essas
binaridades, Chico Buarque consagra a indeterminação textual indicada pela teoria Queer;
mulheres com comportamentos masculinos não se transformam em homens, apenas
apresentam esses comportamentos, porém não os incorporam à sua subjetividade, não
assumem a identidade masculina. A respeito da politização do corpo, cita-se Michel
Foucault:

Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político: as


relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o
dirigem, o suplicam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-
lhe sinais. (...) Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder, posta
em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de
algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua
materialidade e suas forças (FOUCAULT, 2002, p. 25-26).

3.3.5 A mulher libertina: o meu corpo de criança não se cansa de querer.

O gênero é algo social e historicamente constituído, conforme se tem afirmado


no decorrer desse trabalho. Mas essa ideia vem se tornando cada vez mais clara, passando
a mulher a assumir de forma recorrente o dito comportamento feminino, bem como seu
oposto, o homem também assumir o dito comportamento feminino, apresentando a fluidez
que o estudo de gênero denota.
Chico Buarque é o compositor brasileiro que desde a década de 1970 vem (des)
vinculando a binaridade homem/mulher em suas canções. Ele empresta suas canções para
dar voz às mulheres, ao mesmo tempo que revigora suas narrativas de vida. Assim, ―na
obra musical de Chico Buarque, o poeta sentimental tem menos espaço que o poeta
objetivo, aquele que encontra sua poética ao dar a voz para personagens pinçados na vida
conectar brasileira‖ (MELLO, 2003, p. 49), já que essas mulheres passam a ser vistas sob
outro prisma: como mulheres revestidas de pleno poder de fala.
150

A partir desse ponto na pesquisa, as canções buarqueanas serão ajuizadas pelo


prisma da teoria queer, a qual se propõe a estabelecer uma concepção de vida que vai além
das normas veiculadas e preestabelecidas socialmente. Ser homem ou mulher é conceber
uma simples identidade, ser queer é romper com as binaridades e consagrar uma
indeterminação textual. Os sujeitos queer surgem da reflexão, da análise crítica e da
desconstrução de autores pós-estruturalistas, os quais discutem e desmistificam a
supremacia do masculino em relação ao feminino, cujos preceitos provenientes de uma
visão patriarcal, de uma visão masculina centrada na relação de produção e reprodução,
insistem em manter a noção de sujeito criada por meio de discursos da linguagem e da
cultura.
Nesse sentido, o ponto nuclear dos ativistas queer consiste em virar pelo
avesso as práticas de normalização dos tais sujeitos. A teoria queer deseja questionar os
processos ditos ―[...] institucionais e discursivos, as estruturas de significação que definem,
antes de mais nada, o que é correto e o que é incorreto, o que é moral e o que é imoral, o
que é normal e o que é anormal‖ (SILVA, 2002, p. 108).
O percurso analítico que agora se inicia se apoiará nas premissas de alguns
teóricos denominados pós-estruturalistas, em que se analisam as ideias de gênero
defendidas por Judith Butler (2003, p. 24), que assevera:

Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente


independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a
consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar
tanto um corpo feminino como um masculino e mulher e feminino, tanto um
corpo masculino como feminino. (BUTLER, 2003, p. 24).

Dessa forma, o comportamento atribuído às mulheres, especialmente às


prostitutas constituídas nessas canções, dá margens para se perceber que a mulher
conseguiu─ em plena década de 1970, através das composições de Chico Buarque, que
tratam da subjetividade feminina ─ falar de sexo e de prazer sem ser vista como leviana,
por apresentar comportamentos cristalizados como masculinos.
Ao se analisar a obra musical de Chico Buarque, é perceptível, em algumas
canções aqui selecionadas, um lirismo feminino que o próprio Chico Buarque se
encarregou de descrever eloquentemente, falando da alma feminina de uma forma que lhe é
bem particular. Nesse sentido, Meneses (2006, p. 103) afirma: ―No entanto, o poeta não
fala apenas da mulher, ou à mulher. Assumindo o eu lírico feminino, ele fala como mulher.
151

E de um ponto de vista, por vezes, espantosamente feminino‖. As imagens de mulher


assim como os papéis e identidades que emergem dessas canções compõem as
representações sociais do que se convencionou chamar de comportamentos ditos
femininos; essa constelação de imagens alude às várias concepções desse mesmo feminino.
Conforme Butler (2003, p. 47), ―se é possível falar de um 'homem' com um
atributo masculino e compreender esse atributo como um traço feliz, mas acidental desse
homem, também é possível falar de um 'homem' com um atributo feminino, qualquer que
seja, mas continuar a preservar a integridade do gênero‖.
Conforme a canção Qualquer amor (1984), a mulher que se manifesta como eu
lírico apresenta o comportamento tido como desviado dos padrões pela sociedade
patriarcal. A mulher que se mostra nos versos abaixo não se intimida, não sente culpa em
declarar seu desejo sexual e sua disponibilidade alucinante em buscar prazer.

Qualquer amor
Me satisfaz
Qualquer calor
Qualquer rapaz
Qualquer favor
E só chamar
Pousar a mão
Qualquer lugar
Qualquer verão
E só chamar
É tudo, é do primeiro
Qualquer hora, qualquer cheiro
Qualquer boca, qualquer peito
Qualquer jeito de prazer
Qualquer prazer é pouco
Qualquer éter, qualquer louco
Que o meu corpo de criança
Não se cansa de querer
Qualquer amor
Eu corro atrás
Qualquer calor
Eu quero mais
Qualquer amor
Qual nada

(Buarque, C. & Hime, F. Qualquer amor. In Essas parcerias, Elenco, 1984)

Se para as concepções que dividiam atitudes e desejos, entre os polos


feminino/masculino, para a teoria Queer as identidades unificadas ou a lógica binária que
hierarquiza, classifica, domina e exclui precisam ser repensadas e desconstruídas. E seus
estudiosos defendem que em face da devida sexualidade do ser humano, este enfrentará
152

conflitos durante trajeto na vida, em virtude do que já está predeterminado e prescrito nos
cânones para cada um. A esse respeito Louro (2004, p. 13) argumenta: ―Não existe um
sujeito unificado preexistente, há sujeitos modelados pelos padrões regulamentadores da
sua existência.) (...) ―não há lugar de chegar, não há destino pré-fixado, o que interessa é o
movimento e as mudanças que se dão ao longo do trajeto‖.
A próxima canção a ser analisada é Tango de Nancy (1985). Nesta letra-poema,
percebe-se que o (sub) mundo da personagem é o da prostituição. No primeiro verso, o eu
lírico faz uma indagação, demonstrando sua insatisfação diante da sua condição: ―Quem
sou eu para falar de amor‖. Assim, pode-se compreender que o sentimento amoroso é
interditado a aquela categoria feminina. No senso comum é recorrente a afirmação de que
as prostitutas não devem se apaixonar, há até quem diga em tom debochado ―que não se
deve misturar negócio com prazer‖. Em Anna de Amsterdam (1972) já se conhecia a
situação da moça que cruzara tantos mares na esperança de casar, mas chegando aqui na
Colônia só encontrou exploração e desprezo por parte da sociedade. Amor, família, filhos
pareciam ser considerados como frutos proibidos para as prostitutas.

Quem sou eu para falar de amor


Se o amor me consumiu até a espinha
Dos meus beijos que falar
Dos desejos de queimar
E dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha
Quem sou eu para falar de amor
Se de tanto me entregar nunca fui minha
O amor jamais foi meu
O amor me conheceu
Se esfregou na minha vida
E me deixou assim
Homens, eu nem fiz a soma
De quantos rolaram no meu camarim
Bocas chegavam a Roma passando por mim
Ela de braços abertos
Fazendo promessas
Meus deuses, enfim!
Eles gozando depressa
E cheirando a gim
Eles querendo na hora
Por dentro, por fora
Por cima e por trás
Juro por Deus, de pés juntos
Que nunca mais

(Buarque, C. Tango de Nancy In: O Corsário do Rei, BMG, 1985).


153

Os versos Se de tanto me entregar nunca fui minha e Homens eu não fiz a


soma de quantos rolaram no meu camarim vêm reafirmar a vida fugaz das relações que
envolvem prostitutas.
Quanto a essa fugacidade e esvaziamento das relações na Pós-modernidade, em
que o amor foi transformado em mercadoria fácil, por não ser necessário esforçar-se para
conseguir, nem dificuldade para descartar. Bauman (2004, p. 26) chama atenção para o que
se vive atualmente: ―não existe desejo e sim impulso‖. A instantaneidade das relações
sexuais, bem como das relações de consumo, não podem ser da ordem do desejo, pois este
depende de uma ―prolongada criação e maturação‖.
Na sequência, analisar-se-á a canção Bárbara (1972), polêmica pela
abordagem de uma relação homoafetiva, cujas personagens são duas mulheres. Essa
canção é parte da peça teatral Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy
Guerra e gravada no álbum Caetano e Chico – juntos e ao vivo, de 1972. Trata-se da
relação amorosa vivida pelas personagens Anna de Amsterdam e Bárbara. A segunda,
viúva de Calabar e a primeira amante dele.
O afeto feminino, em meio ao proibido e o desejo, aparece de forma urgente e
bela, rodeado pelo universo da dor, da perda e do abandono. Ambas encontram recíproco
refúgio contra a injustiça, o preconceito e a solidão. Passa-se à canção:

Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar
O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua
Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva
Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar
Vamos ceder enfim à tentação
Das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas
Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia
Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor vem me buscar
Bárbara
154

(Buarque, C. Bárbara In: Caetano e Chico - juntos e ao vivo,


Polygram, 1972).

Bárbara é o fator determinante desse amor, é ela quem conduz, quem determina o
rumo da relação. Bárbara retrata um amor proibido, cuja figura amada está longe e ausente
mostrando a busca incessante do eu-lírico pela pessoa amada, ou seja, por Bárbara. O que nos
permite voltar o olhar para a questão do homoerotismo, uma vez que a canção retrata o amor
existente entre duas mulheres.
Fatores como distanciamento; ausência; medo; desespero; tentação e
obscuridade são mostrados no interior do discurso de Bárbara, o que foi possível apreender
nos versos da canção referenciada.
Seguindo esse percurso de análise, utiliza-se agora a canção Mar e lua (1980).
Esta também é uma canção composta inicialmente para o teatro, assim como Bárbara. Esta
para Calabar e Mar e Lua para Geni, de Marilena Ansaldi, em 1980. Ambas as canções
são consideradas como símbolos para suas épocas, pois representam a ruptura de padrões e
conceitos conservadores; a segunda até tomada como um hino para as lésbicas, dadas as
circunstancias em que se originou; inspirada em uma crônica de jornal, que contava o
duplo suicídio de mulheres, por serem discriminadas pela moral vigente. Apresenta-se a
letra-poema;

Amaram o amor urgente


As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar
E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
155

Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E à beira-mar.

(Buarque, C. Mar e Lua In: Vida, Philips, 1980)

Esta canção narrada em 3ª pessoa retrata, em uma metáfora, o amor entre duas
mulheres. No entanto, um amor marcado pela dor, pelo sofrimento e pelo preconceito. É
facilmente notável a interdição desse amor nessa canção, por se tratar de uma relação
homoafetiva. As marcas da aversão da sociedade a esse amor são visíveis em muitos
momentos na canção: Amavam o amor proibido (...) E foram ficando marcadas, ouvindo
risadas, sentindo arrepios(...) E foram correnteza abaixo, rolando no leito, engolindo água(...)
E a se desmanchar(...).
Experimentar o proibido é o que cabe àqueles que transgridem as regras
preestabelecidas que delimitam o seu rumo ou direcionamento, em que as características
físicas são vistas como diferencial, atribuindo uma gama significativa de cultura.
De acordo com Louro (2004, p. 15), ―tal lógica implica que esse 'dado' sexo vai
determinar o gênero e induzir a única forma de desejo. Supostamente, não há outra
probabilidade senão seguir a ordem prevista‖. O compromisso com a masculinização e a
feminilização do ser é uma convenção do sujeito; o viver no perigo cabe aos transgressores
do percurso, não havendo como impedir aqueles que atravessam e subvertem as normas, os
quais são certamente os primeiros a serem localizados e escolhidos pelas entidades
corretivas e de recuperação, uma vez que para eles são prescritas exclusões e penalidades.
A última canção selecionada para esse corpus é Geni e o Zeppelin, uma ária da
peça teatral Ópera do Malandro (1976-77) e gravada em 1978 no álbum homônimo.
Entretanto é na sua forma como canção ter conseguido solidificar, dentro de
seu tempo e contexto sociopolítico, uma representação de mulher é o que chamou a
atenção dessa pesquisadora.
Ao cristalizar como música uma visão estabelecida sobre uma categoria
peculiar de mulher, ou seja, de uma prostituta é que se pode inferir a respeito do
156

comportamento feminino diante da quebra de expectativa sobre o gênero feminino


performado pela personagem Geni.
Conforme o que vem se afirmando nessa pesquisa, Chico Buarque se dedica
especialmente em suas composições a expressar o universo feminino. Dias coloca que as
mulheres em Chico Buarque são apresentadas de diversas formas:

Amadurecidas na luta e na paixão (como ―Bárbara‖ e Joana de ―A Gota


d‘água‖), mulheres fortes (como a protagonista de ―Com açúcar, com afeto‖), a
mulher órfica, que continua sambando após a quarta-feira de cinzas (como em
―Ela desatinou‖ e ―Madalena‖), a mulher prometéica (como a protagonista de
―Logo eu‖ e ―Cotidiano‖), aquela ―que encerra seu homem num abraço de ferro
de um quotidianismo insuportável, metafórico e literal (―me aperta pra eu quase
sufocar‖), além da tragicidade de ―Angélica‖, a favelada do morro de ―Meu
Guri‖, e muitas outras mulheres, que representam a maternidade ferida, anti-
heroínas, prostitutas, etc ((DIAS, MELLO, PIEDADE, 2007).

Acrescentando a recorrência do tema ―mulher‖ nas canções de Chico Buarque,


se agrega também o valor e a representatividade que o compositor tem na representação
desse universo, também já foi referenciado aqui sobre a sensibilidade e habilidades do
compositor em compor para e no feminino.
Faz-se necessário informar a origem de Geni e o Zepelim para que se
compreenda melhor sobre essa subjetividade de Chico Buarque, bem como a compreensão
das pessoas sobre o gênero.
Para a escrita e montagem da Ópera do Malandro, Chico Buarque baseou-se
em A Ópera dos Mendigos de John Gay (1728) e A Ópera dos Três Vinténs de Bertold
Brecht e Kurt Weill (1928). Diversos artigos demonstram claramente a fonte histórica e
poética de onde Chico Buarque se inspira para a composição tanto de sua ópera quanto da
história de Geni e o Zepelim. Conforme Bernutti:

Se continuarmos a examinar no campo das árias o parentesco entre as três obras


[Ópera dos Mendigos, Ópera dos Três Vinténs e Ópera do Malandro], teremos
que forçosamente chegar àquela intitulada "Geni e o Zepelim" por várias razões.
Primeiro, porque é a reelaboração musical mais bem trabalhada em cima do tema
da vingança do oprimido em Brecht-Weill e que se converte, no brasileiro, em
tema da exploração de uma vítima social, a prostituta miserável (BERNUCCI,
ano, p.36)

Bernucci cita o conto de Guy de Maupassant Boule de Suif no qual, durante a


guerra franco-prussiana, uma prostituta francesa teve de se entregar sexualmente ao oficial
alemão para salvar a vida de compatriotas que a desprezavam – situação idêntica à
experenciada por Geni. Por isso não se defende aqui a leitura metafórica, que coloca Geni
157

como alegoria do Brasil e o comandante como os militares, inimigos do povo. Isso poderia
configurar como uma maneira simplista e talvez, até leviana, já que a leitura metafórica
não se sustenta diante da análise mais pormenorizada dos elementos do texto, nem musical,
nem teatral.
A música é uma canção, nos moldes das cantadas por um menestrel ou
trovador moderno. A canção é longa, estrófica e narrativa, apresentando uma história quase
fabular, na qual vários estereótipos sociológicos são apresentados e conforme essa
estruturação uma cidade moderna se constrói e a trama acontece.
Os temas tratados por Chico Buarque são: a protagonista Geni, e a situação
delicada na qual ela se envolverá. A canção cita a cidade, pois é ela o canal pelo qual o
ouvinte perceberá Geni e seu altruísmo, consoante o olhar da população. E também, é a
cidade e seus moradores que servirá como motivo para que se critique a hipocrisia e o
egoísmo.
A primeira questão a ser considerada é a do gênero que, com exceção das
teorias linguísticas e literárias, refere-se ao binarismo masculino/feminino ou
homem/mulher. Embora Geni pertença, biologicamente, ao gênero masculino, a sua opção,
aparência e expressão discursiva é feminina: todos os elementos discursivos que a ela se
referem encontram-se marcados pelo feminino: ela, donzela, namorada, rainha, menina, na,
feita, boa, maldita, formosa dama, coitada, singela, dela, bendita e, inclusive, o seu próprio
nome. Não há marca linguística que prove, pela letra da canção, que Geni é uma travesti,
no sentido de um homem travestido de mulher. Esse fato é coerente com o contexto de
composição da canção, acreditamos que a opção de apagamento dessa importante marca na
letra da canção tenha acontecido como estratégia para driblar a censura e também para
tratar a heroína com respeito à sua escolha: uma mulher, como outras, ainda que diferente.
Geni é tão diferente que ela é a escolhida, logo ela pelo comandante do Zeppelin. Talvez,
se tais marcas fossem visíveis, os censores não tivessem liberado a canção, nem a crítica
presente no texto passasse despercebida, pois até os dias atuais há quem acredite que Geni
era uma prostituta.
Essa estratégia intrigante também deixa no mesmo plano, prostitutas, travestis,
homossexuais e tudo que é nego torto. A pista seguida para interpretar Geni como um
travesti é o fato de haver na peça teatral referenciada uma personagem Genival (Geni), que
é um travesti e assim como as mulheres de um bordel barato presta serviços sexuais, cuja
clientela segue regiamente a lista descrita na canção.
158

Mais que isso, Geni não pertence ao bordel onde trabalha e frequenta. Ela é
dona de sua vida e de seu corpo. Vive como quer e decide com quem dividir seu prazer. Os
versos a seguir servem como exemplo para ilustrar essa afirmação:

Dá-se assim desde menina


Na garagem, na cantina.
Atrás do tanque, no mato.
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos.
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir.

Por parte de Geni não há, pela descrição feita, preconceito de gênero ou faixa
etária, mas há uma escolha implícita, sua identificação com os excluídos, seus iguais. Isso
fica claro quando, ao ser escolhida pelo comandante, responde com um não: prefere amar
com os bichos. O narrador, ao apresentar Geni, faz uma revelação: e isso era segredo dela:
também tinha seus caprichos. O lexema caprichos, usado com ironia, revela o pensamento
non sense da cidade, uma vez que os ―caprichos‖ se referem à sua liberdade de escolher
com quem quer se relacionar e de ser dona de seu próprio corpo e vontade. Essa
apresentação que parece valorar negativamente a escória social se transforma na presença
do comandante, da cidade, do prefeito, do bispo e do banqueiro. Tal postura é curiosa, já
que a chamada escória é posta a margem, como se não fizesse parte daquela comunidade.
Também se pode notar outra diferença entre as prostitutas em geral e Geni, ela
não se vende, dá-se.
Quanto ao gênero feminino de Geni, recorre-se a Foucault em A mulher e os
rapazes (1997), onde ele delineia um retrospecto a respeito das relações entre homem e
mulher, a partir de vários pensadores da Grécia clássica, origem do pensamento e do modo
de vida ocidental e a forma como ocorreu essa construção. Além disso, Foucault mostra a
contradição dessa mesma sociedade que rejeita o relacionamento sexual/amoroso entre
iguais, ser formada por forte influência daquela civilização, haja vista ser essa uma prática
comum e até pedagógica, naquela sociedade. Mesmo que de forma implícita, aquele
pensador também se refere á prostituição, independente do gênero de quem a praticasse; e
ainda mostra a instituição do casamento entre homem e mulher como forma de regulação
da vida em sociedade.
159

Bakhtin (1987) demonstra como o discurso oficial se apropriou da festividade


não oficial da praça pública, impondo um discurso de proibições e medos, muitas vezes
respaldado pelos valores que dirigiam o discurso religioso, que, dentre os vários tabus e
preconceitos gerados no interior do embate ideológico liberdade X proibição, contempla a
sexualidade como um dos pontos a serem combatidos. O que até então era percebido como
parte das festas populares e entendido como completamente integrado, tanto no
vocabulário da praça como na exaltação do chamado baixo estrato corporal e do corpo
grotesco, passa a ser escuro, obtuso, feio e pecaminoso, daí, excluído.
Encontra-se confluência nos estudos de Bakhtin e Foucault na questão em que
ambos demonstram como o discurso excludente e moralista que norteia o pensamento
hegemônico da sociedade contemporânea foi se constituindo e se cristalizando no decorrer
dos séculos, ecoando nos discursos valorativos sobre a personagem Geni, a heroína travesti
ou herói travestido da canção buarqueana. Sobre ela recai toda a sorte de insultos e
humilhações manifestadas por uma sociedade hipócrita,
egoísta, machista e individualista, que, respectivamente, apedreja, aclama, venera e volta a
apedrejar quando seus interesses já estão satisfeitos, dessa vez, até com mais intensidade.
Mesmo com o desfecho satisfatório, a cidade mal agradecida ataca Geni veementemente de
forma grotesca:

Joga bosta na Geni


Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir.
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Considera-se as vozes sociais representadas pelos sujeitos da canção,


orquestrada pelo narrador, que traz para o centro da cena a relação dialógica entre eu-
outros na canção. Por isso, recorreu-se a Bakhtin, que conceitua dialogia como o embate
de valores ideológicos presente em todo e qualquer signo e também em todo e qualquer
sujeito. A palavra para Bakhtin é uma arena de lutas, onde se instalam as vozes dos sujeitos
eu outro. Segundo Bakhtin, ―A segunda voz ao instalar-se no discurso do outro, entra em
hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. O
discurso se converte em palco de luta entre duas vozes‖ (Bakhtin, 1997, p.194). As
palavras do outro, revestidas de uma nova valoração, tornam-se bivocais (pois contemplam
as palavras do ―eu‖ e de outros ―outros‖) pela nova compreensão que recebem, instalando
160

uma relação dialógica com as palavras do eu outro. Ao mesmo tempo em que se opera uma
subversão da autoridade da palavra do outro, há a construção de novos valores de
autoridade aos outros discursos, pois ―As palavras são tecidas a partir de uma multidão de
fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios‖
(Bakhtin, 2006, p.42). Assim, é possível revolver camadas da vida social ao se desfazer
supostas verdades, ao se dessacralizar valores instituídos, revelando assim, outras faces do
mundo
O embate ideológico entre os sujeitos narrados em Geni e o Zepelim é
apresentado pelas vozes orquestradas pelo narrador do texto. A voz de Geni, pelo visto
desde sua apresentação, reflete e ecoa as vozes daqueles que se encontram à margem da
sociedade. Já os discursos do prefeito, do bispo e do banqueiro representam os discursos de
algumas esferas de atividade, que, se por um lado, dirigem os meandros normativos do
discurso oficial, por outro, são dominados pelo poder do comandante, símbolo do Estado,
relativizado através da ironia presente na canção que o coloca à mercê ―dos caprichos e
vontades‖ de um travesti, Geni. Por fim, o discurso da cidade, em coro e romaria, reflete e
refrata a voz hegemônica dos três poderes citados. Em outras palavras, de maneira estética,
o diálogo entre os sujeitos se estrutura, de maneira hierárquica, mesmo que através da
ironia predominante no discurso da canção. Esse diálogo ocorre pela representação das
vozes sociais simbolizadas pelos sujeitos narrados e essas relações revelam e refratam
valores ideológicos e poder.
Em Microfísica do Poder, Foucault (1979) norteia seus estudos sobre como a
verdade passa a ser um importante mecanismo operatório do poder. Para ele, a verdade
relaciona-se com o discurso científico e com as instituições que produzem esse discurso.
Assim, há uma profunda influência da economia e da política, na proporção em que há
uma necessidade de verdade tanto para a produção econômica quanto política. É
interessante ainda evidenciar que essa vontade de verdade é veiculada pelos discursos
oficiais de instâncias e/ou instituições oficializadas, como, no caso representado na canção,
as instituições políticas, econômicas e religiosas.
A verdade é que nenhum gesto de bondade será capaz de redimir Geni, de
reverter sua função de objeto não aceitável, excluído, sujo e inútil ao olhar preconceituoso
e moralista da cidade. Geni está sem Zepelim, sem poder, sem voz, sem nada, é quase um
não sujeito, a exemplo de Madalena, a pecadora bíblica, senão um Cristo redentor
conforme convém à situação.
161

Para efeito de conclusão dessa tentativa de análise cita-se Ramos (2006, p. 147)
que ressalta:

Na música popular de Chico Buarque de Holanda, encontram-se muitas vozes


que constituem a sociedade brasileira. Vozes daqueles que, em princípio, não
têm voz, que são calados pela repressão emocional, social, econômica e política.
Vozes daqueles que não conseguem dizer, dos que são marginalizados no
sistema. A obra de Chico é plural pelos diversos enfoques que ela acolhe e revela
e também pelas visões assumidas tanto da condição feminina como da masculina

Quando se constata o teor das canções analisadas, nota-se a ideia de como um


homem pode relatar o mundo dito feminino com propriedade sem perder suas
características determinadas como masculinas. A partir desse pressuposto, chega-se à
conclusão de que o homem pode compreender o comportamento psicológico definido
como feminino, já que as próprias composições de Chico Buarque, aqui referenciadas,
denotam essa pluralidade da concepção de gênero. Sendo assim, tenta-se (des) construir a
lógica suplantada do pensamento historicamente constituído nas relações binárias
homem/mulher e masculino/feminino, lembrando que no estudo de gênero não se deve
reforçar tais binaridades identitárias.
162

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como dar por concluído algo que, por sua natureza já é inconcluso? Quando se
pretende abordar o texto literário, sabe-se de antemão que qualquer pretensão de conclusão
consiste em uma ideia simplista da dimensão do abismo que lhe apresenta. A literatura
conforma um universo de múltiplas possibilidades, e como que levados pelo mesmo
turbilhão que transportou Alice, aqueles que pretendiam pisar em solo firme, perdem o
chão da segurança. Entretanto, para que se obedeça às regras da inteligibilidade, todo texto
necessita ter suas partes bem definidas; começo, meio e fim. Seguindo esse princípio, este
estudo alcançou o limite de suas intenções. Pretende-se apresentar aqui algumas questões
permitidas pelas leituras, discussões e análises. Entre elas a possibilidade de Chico
Buarque de Holanda configurar como grande entendedor da alma feminina, não apenas por
sua habilidade de compor no feminino, pois isso soaria como constatação óbvia, mas
demonstrar como essa voz feminina é construída por meio de uma gama variada de
discursos instituídos pela cultura e pela sociedade patriarcal, que ainda preserva alguns de
seus resquícios.
Outra questão significativa que foi observada diz respeito ao status de poeta,
que a despeito do que afirmam muitos estudiosos a seu respeito, Chico Buarque nega
veementemente. Entretanto parece haver uma discrepância entre o que o homem nega e o
que o sujeito poético confirma como fica evidenciado em muitos de seus versos. Por isso,
recorreu-se ao conceito de persona, um dos arquétipos formulados por Jung.
Para a realização deste estudo, foram levantadas teorias pertinentes sobre a
canção, desde suas origens na lírica trovadoresca e a aproximação com a produção musical
de Chico Buarque, seja pela forma, seja pela temática.
Ao tratar dos diálogos possíveis entre música e poesia, não houve a pretensão
de se debruçar sobre os conceitos referentes à teoria musical, já que isso seria leviano, por
não ser este campo do domínio da pesquisadora; o componente melódico só interessou
enquanto recurso causado pela sonoridade presente nos textos denominados como letras-
poema. Também foi importante para a percepção desses diálogos, o papel da MPB para a
reafirmação do ideal modernista no aproveitamento de elementos da cultura popular e sua
respectiva valorização.
163

Constatou-se no interior dessa pesquisa, a presença de elementos da poética nas


composições do artista referenciado, tais como: a profusão de figuras de linguagem; o
conhecimento da forma; o domínio da sintaxe; o uso de elementos sonoros; do ritmo; do
apuro lexical; da utilização da intertextualidade e da paródia dentre outros.
Ao se refazer a trajetória do lirismo, desde sua conceituação mais remota até
sua compreensão na contemporaneidade, deparou-se com a ideia de que lirismo não mais
se radica a um sujeito apenas, mas também a uma experiência, à vivência de emoções,
podemos dizer que a palavra drama, neste estudo, não foi usada dentro da conceituação dos
gêneros literários; o lirismo nas canções de Chico Buarque assume uma forma dramática,
constituída a partir da pluralidade dos sujeitos existentes em suas composições, bem como
do diálogo das linguagens poéticas ali inseridas. Daí a opção por abordar o lirismo
dramático associado ao conceito de polifonia. Para dar suporte a essa abordagem, contou-
se com os estudos de Hugo Friedrich e de Jorge Koshiyama.
Utilizando a teoria de Bakhtin sobre dialogismo e polifonia, buscou-se dentro
das narrativas líricas de Chico Buarque selecionadas para esse trabalho de pesquisa,
compreender os sujeitos que compunham ―o coro lírico de vozes interditadas‖, os
desvalidos, tema recorrente na obra do artista. Dessas vozes interditadas, destaca-se a da
mulher. Como essa mulher é representada em canções de Chico Buarque, permeadas pelos
discursos proferidos por uma sociedade erigida sob a hegemonia masculina. Para isso,
recortou-se do cancioneiro buarqueano vinte e cinco canções, a fim de ilustrar como a
mulher vem construindo sua identidade, passando pelas transformações ocorridas nos
contextos socioculturais. Assim, fez-se necessário, refazer o caminho percorrido pelo
feminismo até os dias atuais, o que possibilitou a percepção de que as identidades, assim
como os sujeitos não podem mais ser tomados como cêntricos e unos, e sim, móveis e
fragmentados.
O corpus de análise foi constituído pelas seguintes letras-poema: Ela e sua
janela; Carolina; Januária,, Cecília e Abandono, para a abordagem da mulher idealizada.
Com açúcar, com afeto; Mulheres de Atenas; A mais bonita; Atrás da porta e Meu
namorado compõem a seleção para tratar da mulher submissa. Olhos nos olhos; Essa moça
tá diferente; Cala a boca Bárbara; Morena de Angola e Angélica são representações da
mulher libertária. Já História de uma gata; Murro em ponta de faca, A Rosa, A violeira e
O meu amor constituem o grupo que representa a mulher liberada. No último momento de
análise, foram utilizadas as letras-poema Qualquer amor; Tango de Nancy; Bárbara, Mar
164

e Lua e Geni e o Zepellim para conformar o bloco da mulher libertina. Como tais
representações estão configuradas dentro do imaginário coletivo, contou-se também com a
contribuição dos estudos de Carl Gustav Jung sobre arquétipos.
Para respaldar essa tentativa de análise, recorreu-se, sobretudo, aos estudos de
gênerona concepção de Judith Butler, a fim de compreender as atitudes que muitas vezes
revelaram continuidades e rupturas que contribuem para a construção da identidade da
mulher pós-moderna. O estudo de gênero nos remete ao movimento, à transformação
social, aos significados que vão sendo construídos e (re) significados à medida que o
homem se depara consigo mesmo e com o seu entorno, uma busca incessante para dar
sentido a sua existência.
Para as últimas três canções analisadas: Bárbara, Mar e Lua e Geni e o
Zepellim utilizou-se de uma vertente dos estudos de gênero, a chamada teoria Queer, para
a qual a binaridade masculino/feminino que revestiu todo o pensamento sobre os estudos
das subjetividades não fazem mais sentido, face às transformações ocorridas na Pós-
modernidade. A personagem Geni é um travesti que apresenta gênero feminino
performado. Geni, assim como Bárbara e as duas personagens de Mar e Lua são
representações desse novo perfil de feminino que a contemporaneidade vem forjando: ora
não aceita identidades fixa e papeis demarcados, ora assume novas marcas identitárias.
Para a fundamentação concernente aos estudos sobre Modernidade e Pós-
modernidade, novas configurações de sujeitos e de identidades, considerou-se o aporte
cunhado por Stuart Hall, Linda Hutcheon e Anthony Giddens.
Do questionamento inicial que problematizou esse estudo, se Chico Buarque
seria mesmo o grande entendedor da alma feminina e, caso fosse, se essa mulher falava ou
era falada, pode-se compreender que, na maioria das canções a mulher é apresentada pelo
olhar do homem, e a presença de estereótipos femininos enraizados numa variedade de
discursos, que tem como grande expoente concepções dicotômicas, como a mulher santa e
a prostituta, por exemplo. Essas concepções foram forjadas em discursos ditos
institucionais, como o da Igreja; da Medicina e até da Filosofia em diferentes contextos.
Neles, o comportamento tido como próprio da mulher seria o da castidade, da discrição, do
recato e o da submissão ao homem. Manifestações contrárias a esse padrão eram julgadas
aberrações de mulheres que contrariavam sua natureza.
Esse tipo de discurso, apresentado em algumas letras de canção neste estudo,
permaneceu sendo do homem, que mesmo fazendo-se passar por sujeito feminino relatava
165

a verdade que pensava ou desejava em relação à mulher. Santa Cruz (1992, p. 8), enfatiza
que, ―nada melhor do que as letras de música popular feitas por homens, para averiguar o
que está por trás de grande parte do discurso musical que, no seu todo, é essencialmente
masculino‖. No entanto, Chico Buarque, com sua perspicácia de artista antenado com se
tempo, cria outras possibilidades para que a mulher contemporânea se revelar para o
mundo, em O meu amor, os sujeitos poéticos possuem voz, assim como Bárbara e falam,
inclusive com o corpo, do qual elas têm pleno poder.
Portanto a hipótese que foi conjeturada se confirma: as representações do
feminino são construídas no interior dos discursos, ou das formações discursivas, que ora
vitaliza, ora apaga a subjetividade feminina.
Mas, como se pautou nesse estudo pelas mobilidades identitárias propiciadas
pelos estudos que contemplam a crise do mundo pós-moderno, da dissolução da fixidez em
todos os aspectos, é possível atenuar a desconfiança que gerou essa discussão e
compreender que na poesia de Chico Buarque, em se tratando do feminino e masculino há
um alargamento das expressões, que não fixa o ser-homem e ser-mulher, mas permite
transitar entre os sentimentos humanos.
É reconhecido nessas ponderações que muitas outras abordagens sobre as
canções do compositor/poeta Chico Buarque de Holanda serão motivo para outras
discussões acadêmicas. Espera-se com esse trabalho de pesquisa poder contribuir para
reflexões que contribuam para um novo olhar sobre a subjetividade feminina e suas tantas
identidades conforme os contextos exigirem. Que a mulher se reconheça como o ser ativo
que é, reivindicando a autoria de sua voz, iniciando sua própria história, inscrevendo-se
nela, de forma a ser a compositora e intérprete de obra mais relevante jamais escrita: sua
vida.
166

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