Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Viktor Chklóvski
1
Isto é, a retirada das terras dos proprietários tribais para dá-las aos oprichnikis – uma espécie de polícia
secreta fundada por Ivan, o Terrível – “descontextualizando”, assim, a ligação que havia entre a aristocracia
tribal e a tradição especificamente medieval.
2
Chklóvski refere-se ao poema “Uma carniça” que faz parte do famoso volume As flores do mal, de Charles
Baudelaire. Seguimos aqui a tradução de Ivan Junquera, publicada pela editora Nova Fronteira.
Essa metodologia é quase universal. Muitos procedimentos de estilo são,
inclusive, baseados nela; como, por exemplo, o paralelismo.
3
Tipo de canção folclórica ligada ao contexto de guerra. Foi particularmente explorada como um gênero
musical e de dança entre a classe dos marinheiros russos.
4
Hipocorístico do nome Ekaterina. Essa forma, no entanto, não é tão usual. A escolha aqui diz respeito ao
paralelismo sonoro que criam as palavras “katilosia” (rolou) e “Katitchka”.
5
Poema “Na estrada de ferro” (1910), de Aleksandr Blok.
6
O trecho está no sexto capítulo da segunda parte de Guerra e Paz. Volume de referência: TOLSTÓI, L.
Guerra e Paz. (Trad. Rubens Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.293-297.
primeira vez que os visse; chamando o cenário (em Guerra e Paz) de “um pedaço de
papelão colorido"7, e a hóstia sacramental de “pão”, ou afirmando que os cristãos comem
o seu próprio Deus8.
Não tentarei sequer dar um breve esboço de como Tolstói desenvolve esse
procedimento no processo de elaboração de sua poética e me contentarei em dar alguns
exemplos. O jovem Tolstói utiliza o paralelismo de modo bastante ingênuo.
Principalmente no que diz respeito à exploração do tema da morte, ao desenvolvê-lo. Para
Tolstói era necessário coordenar três pontos: a morte de uma senhora da nobreza, a morte
de um mujique e a morte de uma árvore. Falo a respeito do conto “Três mortes”. As partes
desse conto estão ligadas por uma motivação específica: o mujique é o cocheiro da
senhora e a árvore é cortada para fazer o caixão para ele.
7
A menção ocorre no nono capítulo da quinta parte do romance. Volume de referência: TOLSTÓI, L.
Guerra e Paz. (Trad. Rubens Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.1150-1158.
8
Essa referência ocorre durante a descrição da missa que acontece no capítulo 39 da primeira parte do
romance Ressurreição (segundo nosso volume de referência: TOLSTÓI, L. Ressurreição. (Trad. Rubens
Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.137-139.
serviram para nada”9. A conexão entre os componentes do paralelismo é motivada, nesse
conto, pelo fato de que Serpukhóvskoi foi, durante um determinado tempo, o mestre de
Kholstomier. Em “Dois hussardos” o paralelismo fica evidente no próprio título e aparece
nos detalhes: o amor, o jogo de cartas e o relacionamento entre amigos.
Desse ponto de vista, Tolstói é, por assim dizer, mais primitivo que Maupassant;
para ele, o paralelo explícito é necessário, como ocorre em Os frutos da instrução10 [por
meio da relação entre a] cozinha e sala de estar. Acredito que isso ocorre em virtude da
maior clareza da tradição literária francesa, em comparação com a russa. O leitor francês
percebe mais claramente a violação do cânone e até mesmo compreende os paralelos com
mais facilidade do que os nossos leitores, cuja percepção da normalidade é mais vaga.
9
TOLSTÓI, L. Kholstomier. In. Contos completos. (Trad. de Rubens Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify,
2015, p.74
10
Peça de Tolstói ainda sem tradução para o português.
Por exemplo, as claras oposições que aparecem em Guerra e Paz: 1) Napoleão e Kutúzov,
2) Pierre Bezúkhov e Andrei Bolkonski e, ao mesmo tempo, Nikolai Rostov, que serve
como uma espécie coordenador (parâmetro) para os dois. Em Anna Kariênina a oposição
é feita entre o grupo de Anna e Vrónski e o grupo de Lévin e Kitty, de modo que a ligação
entre esses grupos é motivada pelo laço de parentesco. Essa é uma motivação comum
para Tolstói e, talvez, para os romancistas em geral. O próprio Tolstói escreveu que fez
do “velho” Bolkonski o pai de um rapaz jovem e brilhante (Andrei) “pois seria esquisito
descrever uma personagem que não estivesse relacionada com o romance”. Ao contrário,
Tolstói quase não fez uso do método de participação de uma mesma personagem em
diferentes combinações – recurso querido pelos romancistas ingleses –, exceto no
episódio de Petrúchka e Napoleão em que ele o fez com o objetivo de gerar estranhamento
(остранение).
Aqui a conexão dos personagens não é explicada por uma relação de parentesco;
o próprio Tolstói não hesitou em associar personagens que foram concebidos
individualmente nas páginas do romance. Nesse caso especificamente, o parentesco era
necessário [apenas] para a construção escalonada.
Assim, fica claro que o retrato das relações familiares, na tradição literária, é
absolutamente alheio às circunstâncias que expõem a particularidade de uma determinada
personagem e é por meio do procedimento tradicional de justapor um irmão nobre a um
criminoso – que nasceu no seio de uma mesma família – que [o paralelismo] fica
demonstrado.
Como sempre ocorre na arte, tudo é fruto da motivação de uma maestria.