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Os paralelos em Tolstói

Viktor Chklóvski

Tradução Raquel Siphone

Para fazer de um assunto um fato artístico, é preciso [antes] extraí-lo de um dos


numerosos fatos da vida. Para isso, antes de tudo, é necessário “movimentar as coisas”,
assim como Ivan, o Terrível, “moveu” aqueles homens menores1. É preciso retirar as
coisas da série de associações habituais as quais elas pertencem. É preciso transformar as
coisas, assim como a lenha [se transforma] nas chamas. Tchékhov, em seu “Caderno de
anotação” (não o tenho em casa), contém o seguinte exemplo: alguém que passou todos
os dias [por mais de] 15, de 30 anos por uma travessa em que se lia placa: “Grande seleção
de peixes brancos (сигов)” e diariamente pensava: “Quem precisa de uma grande seleção
de peixes brancos?”; por fim, de alguma maneira, a placa foi removida e apoiada de lado
contra a parede, então ele pôde ler: “Grande seleção de cigarros (сигар)”. O poeta retira
todas as placas dos seus lugares, o artista é sempre um instigador da revolta das coisas [–
sejam elas objetos ou acontecimentos]. As coisas se rebelam [nas obras dos] poetas,
eliminando os seus nomes antigos e adquirindo um novo nome, uma nova aparência. O
poeta faz uso das imagens-tropos em suas comparações; ele chama, por exemplo, de
“fogo” a uma flor vermelha, dá um novo epíteto à palavra antiga, ou ainda, assim como
Baudelaire, chama a carniça com as pernas para cima, como uma mulher lasciva2. Com
isso, o poeta faz um deslocamento semântico; ele retira a ideia de seu segmento
semântico, em que se encontrava, e a transforma com a ajuda da palavra (do tropo) para
um novo segmento semântico, assim percebemos a novidade, a descoberta do assunto em
um novo segmento. Uma nova palavra se adequa ao assunto assim como um vestido novo
[em um corpo]. A placa foi removida. Essa é uma das maneiras de transformar o assunto
em algo tangível, em algo capaz de se tornar o material de uma obra de arte. Outra
maneira, é a criação de uma forma escalonada. A bipartição das coisas em seus reflexos
e contrastes.

1
Isto é, a retirada das terras dos proprietários tribais para dá-las aos oprichnikis – uma espécie de polícia
secreta fundada por Ivan, o Terrível – “descontextualizando”, assim, a ligação que havia entre a aristocracia
tribal e a tradição especificamente medieval.
2
Chklóvski refere-se ao poema “Uma carniça” que faz parte do famoso volume As flores do mal, de Charles
Baudelaire. Seguimos aqui a tradução de Ivan Junquera, publicada pela editora Nova Fronteira.
Essa metodologia é quase universal. Muitos procedimentos de estilo são,
inclusive, baseados nela; como, por exemplo, o paralelismo.

Oh, maçãzinha, para onde vais rolando?


Oh, mãezinha, quero me casar!3

Certamente, o poeta da continuidade à tradição desse tipo de canção:

A maçãzinha rolou do meio-fio,


Katitchka4 despediu-se do banquete.

Há nisso um par de conceitos absolutamente distintos, mas que deslocam um ao


outro de sua série de associações habituais.

Por vezes, a própria matéria se duplica e se decompõe. Em Aleksandr Blok, a


palavra “ferrovia” é decomposta em “saudades da estrada de ferro”5. Lev Tolstói, em seus
aspectos formais, como acontece na música, elaborou as construções segundo o
estranhamento (остранение) (chamando os objetos por nomes inabituais) e deu exemplos
de construções escalonadas.

Já escrevi o suficiente sobre o estranhamento em Tolstói. Uma das


particularidades desse procedimento é que, ao fixar ou enfatizar algum detalhe específico
no quadro que descreve, o escritor altera as proporções habituais das coisas. Assim,
durante uma cena de batalha, Tolstói acrescenta o detalhe de uma boca úmida
mastigando6. Esse recurso, de prestar atenção aos detalhes, cria um deslocamento
peculiar. Konstantin Leóntiev em seu excelente trabalho sobre Lev Tolstói não
compreendeu esse procedimento. Assim, o procedimento mais comum em Tolstói
consiste justamente em ele se recusar a nomear os objetos e os descrever como se fosse a

3
Tipo de canção folclórica ligada ao contexto de guerra. Foi particularmente explorada como um gênero
musical e de dança entre a classe dos marinheiros russos.
4
Hipocorístico do nome Ekaterina. Essa forma, no entanto, não é tão usual. A escolha aqui diz respeito ao
paralelismo sonoro que criam as palavras “katilosia” (rolou) e “Katitchka”.
5
Poema “Na estrada de ferro” (1910), de Aleksandr Blok.
6
O trecho está no sexto capítulo da segunda parte de Guerra e Paz. Volume de referência: TOLSTÓI, L.
Guerra e Paz. (Trad. Rubens Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.293-297.
primeira vez que os visse; chamando o cenário (em Guerra e Paz) de “um pedaço de
papelão colorido"7, e a hóstia sacramental de “pão”, ou afirmando que os cristãos comem
o seu próprio Deus8.

Acredito que a tradição desse procedimento tolstoiano provém da literatura


francesa, talvez de O ingênuo, de Voltaire, ou das descrições da corte francesa, em
Chateaubriand, feitas pela ótica de um selvagem.

De todo modo, Tolstói “estranhava” (остранял) as obras de Wagner, as descrevia


justamente do ponto de vista de um campesino astucioso, isto é, do ponto de vista de uma
pessoa que desconhece as associações habituais, como os “selvagens franceses”. No
entanto, esse mesmo procedimento de descrever a cidade segundo a perspectiva de um
aldeão foi usado também no romance antigo (segundo Vesselóvski).

O segundo procedimento – o procedimento da construção escalonada –, foi


desenvolvido por Lev Tolstói de maneira muito original.

Não tentarei sequer dar um breve esboço de como Tolstói desenvolve esse
procedimento no processo de elaboração de sua poética e me contentarei em dar alguns
exemplos. O jovem Tolstói utiliza o paralelismo de modo bastante ingênuo.
Principalmente no que diz respeito à exploração do tema da morte, ao desenvolvê-lo. Para
Tolstói era necessário coordenar três pontos: a morte de uma senhora da nobreza, a morte
de um mujique e a morte de uma árvore. Falo a respeito do conto “Três mortes”. As partes
desse conto estão ligadas por uma motivação específica: o mujique é o cocheiro da
senhora e a árvore é cortada para fazer o caixão para ele.

Na poesia popular tardia, o paralelismo, por vezes, também é motivado. Desta


forma, por exemplo, há um paralelo usual: [a relação] “amar” e “pisar na grama” é
motivada pelo fato de que os apaixonados pisam na grama enquanto conversam.

Em “Kholstomier” o paralelismo entre o cavalo e o homem é delineado pela


seguinte frase: “Muito tempo mais tarde, depois de andar pelo mundo, comer e beber, o
corpo morto de Serpukhóvskoi foi enterrado. Nem o couro nem a carne nem os ossos

7
A menção ocorre no nono capítulo da quinta parte do romance. Volume de referência: TOLSTÓI, L.
Guerra e Paz. (Trad. Rubens Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.1150-1158.
8
Essa referência ocorre durante a descrição da missa que acontece no capítulo 39 da primeira parte do
romance Ressurreição (segundo nosso volume de referência: TOLSTÓI, L. Ressurreição. (Trad. Rubens
Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.137-139.
serviram para nada”9. A conexão entre os componentes do paralelismo é motivada, nesse
conto, pelo fato de que Serpukhóvskoi foi, durante um determinado tempo, o mestre de
Kholstomier. Em “Dois hussardos” o paralelismo fica evidente no próprio título e aparece
nos detalhes: o amor, o jogo de cartas e o relacionamento entre amigos.

A motivação entre as partes se dá pelo parentesco das personagens.

Se compararmos os procedimentos da maestria de Tolstói com os procedimentos


de Maupassant é possível observar que o mestre francês, ao usar o paralelismo, tende a
esconder o segundo eixo da relação.

Quando Maupassant escreve suas novelas, ele, geralmente, como se estivesse


latente, omite o segundo termo do paralelo. Essa segunda parte implícita é, geralmente,
um depósito tradicional da novela, que é violado da seguinte maneira: ele escreve novelas
como se elas não tivessem fim ou, como a atitude usual, ou melhor, convencional, da
burguesia francesa em relação à vida. Assim, por exemplo, em diversas novelas
Maupassant descreve a morte de um camponês de maneira simples, porém, de modo
incrivelmente “estranho”; além disso, a descrição da morte de um citadino, que seria a
medida de comparação, não aparece nessa mesma novela.

Desse ponto de vista, Tolstói é, por assim dizer, mais primitivo que Maupassant;
para ele, o paralelo explícito é necessário, como ocorre em Os frutos da instrução10 [por
meio da relação entre a] cozinha e sala de estar. Acredito que isso ocorre em virtude da
maior clareza da tradição literária francesa, em comparação com a russa. O leitor francês
percebe mais claramente a violação do cânone e até mesmo compreende os paralelos com
mais facilidade do que os nossos leitores, cuja percepção da normalidade é mais vaga.

De passagem, gostaria de acrescentar que ao falar de tradição literária, não a


compreendo na forma de um empréstimo em que um escritor toma de outro. Entendo a
tradição de um escritor como sua dependência a um determinado depósito comum das
leis literárias, assim como a tradição de um inventor consiste na soma das possibilidades
técnicas de seu tempo.

Em Tolstói, os casos mais complexos de paralelismo estão em seus romances, nas


oposições que ocorrem entre as personagens ou entre um e outro grupo de personagens.

9
TOLSTÓI, L. Kholstomier. In. Contos completos. (Trad. de Rubens Figueiredo). São Paulo: Cosac Naify,
2015, p.74
10
Peça de Tolstói ainda sem tradução para o português.
Por exemplo, as claras oposições que aparecem em Guerra e Paz: 1) Napoleão e Kutúzov,
2) Pierre Bezúkhov e Andrei Bolkonski e, ao mesmo tempo, Nikolai Rostov, que serve
como uma espécie coordenador (parâmetro) para os dois. Em Anna Kariênina a oposição
é feita entre o grupo de Anna e Vrónski e o grupo de Lévin e Kitty, de modo que a ligação
entre esses grupos é motivada pelo laço de parentesco. Essa é uma motivação comum
para Tolstói e, talvez, para os romancistas em geral. O próprio Tolstói escreveu que fez
do “velho” Bolkonski o pai de um rapaz jovem e brilhante (Andrei) “pois seria esquisito
descrever uma personagem que não estivesse relacionada com o romance”. Ao contrário,
Tolstói quase não fez uso do método de participação de uma mesma personagem em
diferentes combinações – recurso querido pelos romancistas ingleses –, exceto no
episódio de Petrúchka e Napoleão em que ele o fez com o objetivo de gerar estranhamento
(остранение).

De todo modo, os paralelismos em Anna Kariênina estão tão fragilmente


motivados que se poderia imaginar que a conexão entre as duas partes é motivada apenas
por uma necessidade artística.

Tolstói usou o “parentesco” de modo muito interessante, não para motivar a


conexão, mas sim, para a construção escalonada. Vemos dois irmãos e uma irmã Rostov.
Eles representam um desdobramento de um único aspecto. Por vezes, Tolstói os compara,
como ocorre, por exemplo, na passagem da morte de Petia. Nikolai Rostov é a
simplificação de Natacha, uma versão “encrudescida” dela. Stiva Oblónski revela uma
faceta da construção da alma de Anna Kariênina – a relação domiciliar se estabelece por
meio da expressão “um pouquinho”, que Anna fala com a entonação de Stiva. Stiva está
um passo atrás em relação à irmã.

Aqui a conexão dos personagens não é explicada por uma relação de parentesco;
o próprio Tolstói não hesitou em associar personagens que foram concebidos
individualmente nas páginas do romance. Nesse caso especificamente, o parentesco era
necessário [apenas] para a construção escalonada.

Assim, fica claro que o retrato das relações familiares, na tradição literária, é
absolutamente alheio às circunstâncias que expõem a particularidade de uma determinada
personagem e é por meio do procedimento tradicional de justapor um irmão nobre a um
criminoso – que nasceu no seio de uma mesma família – que [o paralelismo] fica
demonstrado.
Como sempre ocorre na arte, tudo é fruto da motivação de uma maestria.

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