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GODOY, Karla Estelita. Controvérsias do turismo como atividade sustentável em museus.

Revista
Museu. Edição comemorativa do Dia Internacional dos Museus: Museus para uma sociedade
sustentável. ISSN: 1981-6332. Disponível em: <http://69.16.233.73/~revistamuseucom/18-de-
maio/index.php/6-controversias-do-turismo-como-atividade-sustentavel-em-museus>. 18 maio 2015.

Quando situações polêmicas ainda não estão estabilizadas em um campo de estudos,


entra em ação o que Bruno Latour – antropólogo, sociólogo e filósofo francês, cuja
contribuição teórica privilegia a interação entre o discurso científico e a sociedade – chamou
de “controvérsias”. Ele as considera fundamentais para que adentremos no mundo da “ciência
em construção”, e não no da “ciência acabada”, pronta, com conhecimentos científicos e
técnicos já assegurados.

É de se esperar que quanto maior o número de pesquisas que expressam dados


quantitativos e análises confiáveis e quanto mais esses resultados forem disseminados na
sociedade, maior também a tendência de serem aceitos e legitimados como verdades.

A citação e a reprodução dessas verdades por outros autores e pesquisadores fazem


que este conhecimento se consolide como um fato. Esse é o caso, por exemplo, de várias
investigações que levam a crer que o turismo seja uma atividade de inegável impacto positivo
para os museus, uma vez que funciona como fator de desenvolvimento econômico e de
valorização da cultura. Muitos estudos destacam a relação turismo e museus de modo a
desconsiderar outros aspectos que se pronunciam através de vozes contraditórias e do jogo de
interesses financeiros, que resultam nos perigosos fenômenos da “privatização da cultura”
(Wu, 2006) e da indústria cultural.

Assim sendo, entre as duas faces da ciência – a que já sabe e a que ainda não sabe –,
talvez seja mais profícuo escolher aquela que nos oferece as controvérsias como “porta de
entrada” (LATOUR, 2000), para discutir quando e em que medidas a atividade turística pode
ser considerada sustentável ou insustentável em museus. Sem muitas dúvidas, é um percurso
de desafios e que provoca incômodos, especialmente quando se abordam temas consolidados
por profissionais das áreas em questão. Contudo os espaços de conflito e negociação podem
produzir ambientes híbridos de grande efervescência para a construção de sempre novos e
outros saberes.

Comecemos a pontuar, então, algumas controvérsias, considerando que o conceito de


sustentabilidade, que consta nos “Marcos conceituais do turismo” (BRASIL. MTur, 2007),
documento oficial do Ministério do Turismo, e oriundo do World Commission on
Environment and Development (1987), refere-se à capacidade de se “atender às necessidades
da geração atual, sem comprometer os recursos para a satisfação das gerações futuras” (p.10).
Aponta, ainda, que o turismo, para adquirir uma consciência sustentável, deverá ser
“planejado e orientado visando ao envolvimento do turista nas questões relacionadas à
conservação dos recursos que se constituem patrimônio”. (p. 10). De acordo com essas
proposições, algumas controvérsias já podem ser apontadas, se compararmos o discurso
oficial com algumas práticas existentes. O aumento de público em museus, provocado pela
também questionável ideia de que, agora, os museus estão mais “acessíveis a todos” – como
se acesso fosse algo a ser medido apenas quantitativamente –, nem sempre está de acordo com
o que reza a referida cartilha. A inobservância da capacidade de carga nas instituições
museológicas – no turismo, o termo refere-se “à capacidade que um determinado meio ou
ambiente possui para suportar o afluxo de visitantes e turistas, sem perder as características de
sua originalidade ou ter ameaçada a sua integridade’” (LOHMANN; PANOSSO NETO,
2008, p.420) –, por exemplo, pode causar tanto possíveis riscos à preservação dos bens
culturais – entendendo-se que “preservar significa proteger uma coisa ou um conjunto de
coisas de diferentes perigos, tais como a destruição, a degradação, a dissociação ou mesmo o
roubo” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2014, p.79) –, quanto prejudicar a qualidade da visita.

Aglomerados de pessoas que disputam um cantinho, para enxergar uma obra de arte ao
longe, muito provavelmente não estão desfrutando de experiência estética de qualidade, muito
menos vivenciando um momento memorável, que acrescente um pouco mais do que a
confirmação de sua ida ao museu, muitas vezes, obtida apenas através de uma fotografia de si
mesmo com a obra embaçada ao fundo.

Um exemplo clássico é o Museu do Louvre. Seu diretor, Jean-Luc Martinez, afirmou


em várias entrevistas que a instituição estava preparada para receber 5 milhões de pessoas,
entretanto, nos últimos três anos, esse número se ampliou para 9 milhões. É impossível,
portanto, que se considere sustentável, nos termos propostos, um turismo em massa, que leve
multidões aos museus, sem que se estabeleçam medidas de adaptação a esta realidade, tanto
por parte dos gestores do turismo, quanto dos gestores de museus. Não é uma equação
simples apenas criar alternativas de fluxo para resolver o problema do “escoamento” de
público, ou fazer dos museus um shopping de variedades, mas trata-se, sim, de se pensar
desde o plano de “marketing” a ser empreendido até a elaboração de meios para que a
atividade não se torne insustentável, gerando, por exemplo, mais custos de manutenção para a
instituição museológica – quase nunca proporcionais ao lucro obtido com a visitação.

Um dano a uma obra de arte por problemas de segurança, de superação da capacidade


de carga ou concentração desordenada de visitantes em algumas áreas, não equivale a
quaisquer valores materiais oriundos do pagamento de ingresso ao museu. Isso sem contar
que vários museus possuem entrada gratuita, e outros, mesmo pagos, não são subsidiados por
essa receita.

Evidentemente, a inexorabilidade do fenômeno turístico e a desejável ampliação do


hábito de se frequentarem museus como espaços de aprendizado, lazer e entretenimento são
inegáveis no mundo contemporâneo. Como destaca Dominique Poulot (2013), quando cita as
tentativas de “repovoar” os diversos espaços de arte, “a visita ao museu é uma atividade
complexa, nem somente lazer nem apenas aprendizado, implicando maneiras de enunciar e
pôr em prática determinados interesses e valores” (p. 139). Logo não se deve provocar essa
ação inadvertidamente, sob pena de se cair na armadilha de entender aumento de público
como prerrogativa de sucesso e de sustentabilidade para os museus. Antes, dever-se-ia
contemplar, no plano museológico (CÂNDIDO, 2013) ou nos demais planos de gestão dos
museus, estratégias que assegurassem a atividade turística de forma viável e ajustada às
demandas atuais, derivadas especialmente das propostas realizadas pelos próprios museus.
Estudos sobre a qualificação dos museus para o turismo (GODOY, 2010, 2013, 2014) e sobre
os diferentes tipos de públicos de museus são bem-vindos para levantar controvérsias,
alavancar discussões e para propor ações específicas, “com o intuito de direcionar e
aperfeiçoar as formas de organização e comunicação das exposições.” (COELHO, 2012,
p.344-345).

Contudo decidir se a atividade turística e o número excedente de visitantes causam


mais benefícios ou danos aos museus pode parecer um aforismo esvaziado, especialmente no
Brasil, em que são esporádicos e pontuais os episódios com grandes públicos. Mas todos os
dias surgem desafios que colocam em xeque o turismo como atividade sustentável em
museus. Então, para fazermos breve exercício que mapeie essas controvérsias, sugere-se
confrontar o que seria da ordem do sustentável e do insustentável nessa relação, entendendo
que sustentabilidade é algo que tem durabilidade no tempo, enquanto o contrário está
relacionado a processos que se esgotam.

Considerar o público de turistas em museus uma massa homogênea não é sustentável;


realizar pesquisas que identifiquem as diferentes necessidades e expectativas do público que
visita a sua instituição museológica é sustentável.

Nortear as estratégias de ingresso do público apenas a partir de pressupostos


econômicos, tornando a instituição um “museu-empresa”, não é sustentável; planejar ações
que garantam o acesso ao espaço do museu como possibilidade de transformação social é
sustentável.

Recepção de público tratada como equivalente à venda de ingressos é insustentável;


acolhimento do público com base nos princípios da hospitalidade é sustentável.

Circuito expositivo asséptico e automatizado não é sustentável; visitação interativa e


visita guiada personalizada para o público turista são sustentáveis.

Folheteria turística somente em idioma local ou com informações superficiais não é


sustentável; informações e serviços disponíveis “online” ou presencialmente, com foco na
excelência do atendimento aos turistas é sustentável.

Ampliar a capacidade de fruição nos museus apenas com a abertura de mais lojas e
restaurantes é insustentável; despertar a sociedade para atividades menos consumistas, mais
solidárias e que aproveitem os recursos de forma mais respeitosa e consciente é sustentável.
Diante dessas proposições, talvez a maior das controvérsias esteja no fato de se
perceber que, para o turismo se tornar uma atividade sustentável em museus, são as
instituições museológicas que deverão, primeiramente, criar tais condições. Partindo do
princípio de que a sustentabilidade deve ser compreendida nas esferas ambiental,
sociocultural, econômica e político-institucional (BRASIL. MTur, 2007), os museus
precisarão empreender novos métodos de pensar e agir, promovendo o desenvolvimento
sustentável (ICOM, 2015) e enfrentando, de modo corajoso e inovador, os desafios que o
turismo lhes impõe na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, Ministério do Turismo. Segmentação do Turismo: Marcos Conceituais. Brasília:


Ministério do Turismo, 2006.

BRASIL. Ministério do Turismo. Coordenação Geral de Regionalização. Programa de


Regionalização do Turismo. Roteiros do Brasil: Turismo e Sustentabilidade/Ministério do
Turismo. Secretaria Nacional de Políticas de Turismo. Departamento de Estruturação,
Articulação e Ordenamento Turístico. Coordenação Geral de Regionalização. – Brasília,
2007.

CÂNDIDO, Manuelina Maria Duarte. O Estatuto dos Museus e a exigência do Plano


Museológico. In: Gestão de Museus, um desafio contemporâneo: diagnóstico museológico
e planejamento. Porto Alegre: Medianiz, 2013 p. 110-112.

COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. 2 ed. [ver.
e ampl.]. São Paulo: Iluminuras, 2012.

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de museologia. São Paulo:


Armand Colin; Comitê Internacional para Museologia do ICOM; Comité Nacional Português
do ICOM. 2014.

GODOY, Karla Estelita. Turistificação dos museus no Brasil: para além da construção de
um produto cultural. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 42, p. 197-
209, 2010.

______. Fortificações como atrativo turístico: um estudo sobre o Museu Forte Defensor
Perpétuo, em Paraty (RJ). Caderno Virtual de Turismo. Edição especial: Turismo em
fortificações. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.34-48, out. 2013.

GODOY, Karla Estelita; SANCHES, Flávio. Turistas online: produção, distribuição e


qualidade das informações para o turismo em museus. In: II Seminário Serviços de
Informação em Museus: o trabalho da informação em instituições culturais: em busca de
conceitos, métodos e políticas de preservação. Organização: Gabriel Moore Forrel
Bevilacqua. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014. p. 209-219.

ICOM Portugal. Museus para uma sociedade sustentável – Dia Internacional de Museus 2015.
Disponível em: <http://www.icom-portugal.org/destaqupropostaes,6,466,detalhe.aspx>.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora.
São Paulo: Editora UNESP, 2000.

LOHMANN, Guilherme; PANOSSO NETO, Alexandre. Teoria do turismo: conceitos,


modelos e sistemas. São Paulo: Aleph, 2008.

POULOT, Dominique. Museu e museologia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

WU, Chin-tao. Privatização da cultura: a intervenção corporativa na arte desde os anos


1980. São Paulo: Boitempo, 2006.

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