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Introdução
Este trabalho pretende analisar o conto “El otro duelo”, que conta a história do
ódio entre dois gaúchos, Manuel Cardoso e Carmen Silveira, que atravessa os anos e as
fronteiras entre o pampa argentino e uruguaio na segunda metade do século XIX, e só é
resolvido no campo de batalha, numa corrida final, quando são degolados pelo inimigo.
O líder do bando vencedor, Nolan, é uma das fontes pelas quais o relato se constrói –
são quatro, no total: o narrador, Carlos Reyles e Laderecha, que “acrescenta detalhes”
aos acontecimentos, além do próprio Nolan. Relato conciso e direto, “El otro duelo”
revela-se de uma violência e crueldade inéditas na obra do escritor argentino Jorge Luis
Borges (1899-1986), que decidiu publicá-lo duas vezes no ano de 1970: como uma
avant première na revista Los Libros, e depois de forma definitiva em El informe de
Brodie, coletânea composta por onze contos, onde apareceria pela segunda vez naquele
mesmo ano.
Neste conto, Borges resgata não só a história “entreverada de las dos patrias”
(BORGES, 1974, pg 1058) (1), mas também um pouco da história familiar materna e de
antepassados de origem ibérica, que participaram de conflitos militares e batalhas pela
formação do Estado Nacional argentino, como os relatados nesta ficção. Ao retomar
fatos ocorridos há mais de um século, ao trazer para o presente da escritura um passado
supostamente guerreiro e heroico, aproximar história familiar e nacional, em fronteiras
sul-americanas indefinidas e personagens errantes como Cardoso e Silveira, Borges
elege a violência como elemento homogeneizador e constitutivo daquela nação em
formação. Uma abordagem que pode ser entendida também como a forma literária que
uma discussão política, que já há muito aparecia nos seus ensaios, assume nesta coleção
de contos, e diz respeito às relações entre liberdades individuais e o poder controlador
do Estado. Tema que já constava em textos como “Nuestras imposibilidades”, em 1932,
ou “Nuestro pobre individualismo”, de 1946, dois ensaios clássicos para entender a
forma política como Borges pensava, e aos quais devemos incluir o Prólogo a El
informe de Brodie, onde o autor declara filiação partidária, adere a um ideal político
liberal de viés conservador e individualista, mas acima de tudo declara ceticismo sobre
qualquer forma de governo e controle estatal.
Esses dois discursos literários, o ficcional e o ensaístico, remetem a questão da
violência, mais ainda, da violência explícita, para a conturbada Argentina dos anos
1970, quando Borges publica duas vezes essa história de ódios e duelos mortais numa
encenação sinistra, um espetáculo sanguinolento protagonizado por dois gaúchos que
perecem como personagens trágicos de um barbarismo que subsiste há séculos nos
pampas e nas terras do Novo Mundo. Entender como essas instâncias se articulam na
ficção de “El otro duelo” e como ele dialoga, pela temática da violência, com os demais
contos de El informe de Brodie, talvez a obra mais violenta e política do escritor
argentino, é o objetivo desse estudo.
Civilização e barbárie
O epílogo de “El otro duelo” se resolve não no enfrentamento direto, a cuchillo
ou punhal, mas numa disputa “esportiva”, num jogo que acaba com as cabeças cortadas
dos dois protagonistas, indicando que o lugar do pensamento e do intelecto e, portanto,
da ação culta e civilizadora, foram finalmente derrotadas pela repetição de atos e
guerras cruentas que formaram as nações íbero-americanas, como foi o caso de
Argentina e Uruguai. Ao estirar os braços, um finado Cardoso ganha a disputa, dando a
vitória mais uma vez à força bruta e à barbárie – quem determina a vitória no duelo final
é o braço, uma continuação da mão que maneja as armas, principalmente as armas
brancas (a batalha de Manantiales referida no texto, foi um momento importante e
decisivo da Revolución de las Lanzas). Esse é também um momento em que os gaúchos
são cooptados pelo poder militar e estatal, enviados ao campo de batalha onde por fim
perecem. Carlos Gamerro, em Facundo o Martín Fierro, comenta sobre esse embate
que ocorreu ao longo do século XIX e que colocava de um lado o individualismo e um
certo anarquismo dos gaúchos dos pampas contra o governo central e suas elites
letradas, para quem o progresso e a civilização eram incompatíveis com o modo de vida
que os dois personagens representam. Ao analisar e reinterpretar a importância do
poema Martín Fierro para a história e a cultura argentina, o crítico recupera o papel
preponderante que a “Ley de Leva” teve no desaparecimento de figuras como Cardoso e
Silveira. A lei permitia ao Ministério da Guerra recrutar homens, geralmente jovens,
sem ocupação e domicílio definidos, ou sem posse de terras, para lutarem no exército na
expulsão dos indígenas locais e na consolidação das fronteiras, além de outros conflitos
militares. “El problema, señala Hernández, es que la ley de Estado se aplica de modo
diferencial: la ley de vagos, cuyo objetivo es proporcionar brazos a las estancias, y la
ley de levas, destinada a proveer de tropa a los fortines, se aplican em el campo y no
em la ciudadd” (GAMERRO, 2013, p. 79). A naturalidade com que seguem seu
caminho ao lado do exército no conflito uruguaio, a total falta de resistência em seguir
para o campo de batalha, que afinal colocará fim às suas vidas, revelam não só o
processo de cooptação e institucionalização desse procedimento, mas também a
cotidianização desse comportamento guerreiro e violento, e da sua presença em todas as
esferas da vida social – “matar hombres no le custaba mucho a la mano que tenia
hábito de matar animales”, comenta o narrador. Ou, como recupera Gamerro, “el
deguello de cichillo, erigido em médio de ejecución pública, viene de la costumbre de
degolar las reses que tiene todo hombre de campaña” (GAMERRO, 2013, p. 34)
O contexto desse processo histórico pode ser resumido na disputa entre os
conceitos de civilização e barbárie, discussão que atravessa a história não só da
Argentina, mas a de todo o continente desde a chegada dos conquistadores espanhóis e
portugueses. No caso da pátria de Borges, ela pode ser localizada no embate entre a
proposta de Domingo F. Sarmiento em Facundo, e a de defensores de Martín Fierro, de
José Hernández. Enquanto o primeiro estaria associado aos aspectos civilizadores
localizados nos espaços urbanos, letrados e promovidos por um governo ilustrado, que
aponta para o futuro que deveria se inspirar no modelo europeu, o segundo estaria
localizado no campo oposto da barbárie, onde os caudilhos, os gaúchos e seus hábitos
semisselvagens estariam atrelados a um passado irremediavelmente condenado pelo
progresso de um modelo capitalista que avançava pelo pampa e pelo interior argentino
na segunda metade do século XIX. “La solución de los conflictos se da cuando una de
las partes derrota y elimina a la outra: triunfo de la civilización sobre la barbarie,
deguüello del caudillo, reemplazo del gaucho por el inmigrante, eliminación física del
sealvaje” (GAMERRO, 2013, p. 45). Em ambos os casos, a violência predomina e
determina as relações.
Borges faz questão de apoiar seu relato em uma série de datas e dados factuais e
acontecimentos históricos - a revolução de Aparício, as guerras pela Independência, os
acontecimentos que se passam no inverno de 1870, a batalha de Manantiales,
protagonizados por gaúchos de Cerro Largo –, mas também, ao mesmo tempo, dá
indícios de que esse comportamento é atemporal. Ao trazer um fato histórico passado
para o presente, ao escolher este conto para antecipar seu novo livro ficcional, o escritor
nos dá pistas de que fala de uma prática que atravessa o tempo e permanece até pelo
menos o momento atual da escritura e da Argentina dos anos 1970. Beatriz Sarlo
recupera o contexto da sua publicação - “em agosto de 1970, a revista Los Libros
publicou “O outro duelo”, de Borges. A nota editorial dizia: no dia 24 de agosto Jorge
Luis Borges completa 71 anos. Coincidindo com a data, será publicado pela Emecé um
novo livro de contos...”. Por que então, “depois de muitos anos, Borges escolhia como
antecipação a O informe de Brodie essa história bárbara, e mais uma vez afrontava seus
leitores com a narração diáfana de um acontecimento brutal e remoto”? (SARLO, 2003,
p. 9), se pergunta a crítica? Por que, “en las lindes de la vejez”, como faz questão de
frisar no Prólogo do livro, ele retorna a esse mundo bárbaro? Para Beatriz Sarlo, a
decisão de publicar o conto e elegê-lo como antecipação de sua obra ficcional inédita
depois de muitos anos remete diretamente ao conturbado momento, violento e cruel,
vivido pela Argentina que atravessava um período de ditadura militar e via explodir a
luta armada e o movimento guerrilheiro. Como ela mesma afirma, “a Argentina já não
seria mais a mesma depois dos acontecimentos de maio e junho de 1970” (SARLO,
2003, p. 11), referindo-se ao audacioso sequestro seguido de execução do ex presidente
Pedro Aramburu pelos Montoneros, num ato espetacular, de grande repercussão e
redefinidor do jogo político interno a partir daí. A coincidência dos atos – a publicação
do conto por Borges acontece dois ou três meses depois desse ato audacioso – pode não
ser apenas coincidência. Decidir publicar uma coletânea de contos onde a brutalidade e
irracionalidade predominam e aparecem associadas ao seu uso político, como forma de
dominação, pode indicar que Borges quer acentuar que esse é apenas mais um capítulo
violento de uma história que se repete. Ao retomar no final da vida o tema da vingança,
dos duelos e lutas cruéis, Borges procura num passado idealizado, mítico-heroico, um
sentido e uma ordem para aqueles tempos caóticos. A escolha pelo relato curto e direto
de violência extremada que é “El otro duelo” é a expressão literária (entre as inúmeras
encontradas nesta coletânea) do reconhecimento eivado de ceticismo de que, um século
depois da revolução de Aparício, “en este mundo criollo, el coraje tomó el lugar de
otras virtudes, más “civilizadas””. (SARLO, 2007. P. 161).
Conclusão
Ao criar em “El otro duelo” um relato apoiado em várias instâncias – o narrador
escuta a história do filho do novelista que por sua vez reproduz o que escutou de Nolan,
com acréscimos de Laderecha –, Borges estabelece um jogo entre a efetividade dos
fatos históricos narrados e a impossibilidade de fazê-lo com fidedignidade. Com datas e
referências históricas e geográficas precisas, o autor remete ao período formativo da
Argentina no século XIX, onde seus antepassados combateram. Mas, ao sinalizar tantas
vezes sobre a instabilidade do seu relato, a impossibilidade do escritor e sua obra
captarem depois de tanto tempo como os fatos realmente aconteceram, e assumir a
confusão e a falsidade como disparo do seu relato, o escritor argentino subverte essas
referências e dá um caráter atemporal à sua história, ressaltando que privilegia a
invenção e as possibilidades dramáticas da sua narrativa, não sua fidedignidade. Não é
só essa época e dessa região que ele está falando. É também, mas não só. Ao fazer da
violência o fio condutor e o protagonista desse conto mais do que em outros de El
informe de Brodie, e decidir por este relato específico para antecipar a nova obra
ficcional, dando voz a múltiplas fontes e narrativas, Borges reafirma que “há uma
espécie de permanência do passado ao longo do que se entenderia por presente. Essa
permanência é proposta como ausência de superação do passado, como expressão de um
desespero para uma distinção entre a percepção mediada pela memória e apercepção
imediata da experiência” (GINZBURG, 2017, p. 155). Um passado que permanece e
retorna pela mão da violência.
Notas
(1) Utilizaremos em todas as citações referentes ao conto “El outro duelo” a edição de 1974 das Obras
Completas de Jorge Luis Borges, onde se encontra publicado o texto entre as páginas 1058 e 1061.
(2) A degola como prática de gaúchos foi registrada pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa
em A Guerra do fim do mundo, relato inspirado no conflito de Canudos, ocorrido no sertão
brasileiro no final do século XIX: “-Sabia que degolar é uma especialidade gaúcha? O alferes
Maranhão e seus homens eram especialistas. Nele, a destreza se aliava com o gosto pela coisa.
Com a mão esquerda pegava o jagunço pelo nariz, levantava a cabeça e com a outra fazia o
corte. Um talho de vinte e cinco centímetros, que abria a carótida: a cabeça caia como se fosse
um fantoche” (LLOSA, 2016, p. 417).
(3) A ideia da representação como simulacro já tinha aparecido pelo menos uma década antes
em outro pequeno texto do autor, “El simulacro”, publicado em El hacedor (1960). Nele,
Borges conta sobre um personagem que teria surgido no interior da Argentina por volta de
1952, logo após o longo e espetaculoso ritual fúnebre de Evita Perón. Vestido de farda como
costumava aparecer o ex-presidente Juan Perón (1895-1974), e acompanhado por uma boneca
loira numa caixa mortuária de papelão, o personagem recebia as condolências dos moradores
locais que faziam fila para prestar sua última homenagem à líder peronista recém-falecida).
Bibliografia
ARRIGUCCI Jr, Davi – Borges ou do conto filosófico. Folha de São Paulo. São Paulo:
03 abril 1996. Folha Especial, s/p.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas 1923-1972. Buenos Aires: Emecé Editores,
1974.
- O informe de Brodie. São Paulo: Editora Globo, 2001.
DORFMAN, Ariel – Imanginación y violencia en America. Barcelona: Editora
Anagrama. 1968.
GINZBURG, Jaime – Crítica em tempos de violência. São Paulo: Edusp. 2017.
LACLAU, Ernesto – Populismo:? Que hay em el nombre?. In: Arfuch, Leonor. Pensar
este tiempo – espacios, afectos, pertinências. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2014.
LLOSA, Mario Vargas. A guerra do fim do mundo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
PIGLIA, Ricardo – Ideologia y ficción en Borges. Revista de Cultura. Buenos Aires,
ano 2, número 5. 1979.
SARLO, Beatriz – A paixão e a exceção – Borges, Eva Perón, Montoneros”. São
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- Borges, um escritor em las orillas. Buenos Aires: Editora Seix Barral.
2007.
WEFFORT, Francisco C. Espada, cobiça e fé – As origens do Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.