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A PERPETUAÇÃO DA TORTURA NO BRASIL: UMA ANÁLISE GERAL DOS

APARATOS LEGAIS E SUA EFETIVIDADE

Evelly de Aguiar Santos da Silva


Isadora Rodrigues Veras
Kassyla Layanne Silva Castro
Lícia Tácila Torres Silveira
Lucas Ricardo Pereira dos Santos
Luana Ramos Pereira
Maria Eduarda Oliveira Fontes

RESUMO: ​Após o período da ditadura militar, uma nova preocupação se


inseriu na jurisdição brasileira: assegurar os direitos da pessoa humana e
sobretudo o repúdio aos atos de tortura. A Constituição Federal, os tratados e
convenções da ONU, além da promulgação da Lei 9.455/97, se tornam matéria
principal no combate à tortura. Em análise a condução desses fundamentos em
sua efetividade jurídica e social, o presente artigo questiona os problemas
encarados na erradicação da tortura.

PALAVRAS-CHAVES​: Tortura – Direito Internacional – Constituição Federal –


Direito Penal Brasileiro – Efetividade normativa.

ABSTRACT:​ After the period of the military dictatorship, ​a new concern was
inserted in the brazilian jurisdiction: ensure the rights of the human person and
especially the repudiation of acts of torture.​ ​The​ ​Federal​ ​Constitution​, ​the
treaties ​and​ conventions ​of​ ​the​ UN, ​in​ ​addition​ ​to​ ​the​ promulgation ​of​ ​the​ ​Law
9.455/97, become the main matter in the fight against torture. ​In​ ​analysis​ ​the
conduction ​of​ ​these​ ​fundamentals​ ​in​ ​their​ ​legal​ ​and​ ​social​ effectiveness, ​the
present article questions the problems faced in eradicating torture.

KEY WORDS:​ Torture – International Right – Federal Constitution – Brazilian


Criminal Law – Normative effectiveness.
SUMÁRIO: ​1. Introdução; 2. Ditadura Militar e a transição para um Estado
Democrático de Direito; 3. Tratados Internacionais e o Direito Penal Brasileiro;
4. A vulnerabilidade à tortura e seus efeitos; 5. Os impasses na efetivação do
combate à tortura; 6. Considerações Finais; 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Ao longo da história a tortura sempre foi uma prática recorrente e se


adequou aos propósitos das diferentes épocas. No Brasil, tendo
manifestando-se de forma mais explícita no período da Ditadura Militar. Assim,
a Constituição Cidadã de 1988, concebida na reconstituição de um Estado
Democrático de Direitos, se estrutura sobre princípios fundamentais,
incluindo-se o princípio da dignidade da pessoa humana. O Brasil introduziu em
seu art.5º, inciso III que​ “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante”,​ e no mesmo artigo o inciso XLIII declara que ​“a lei
considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática
de tortura” ​(CF/88, art.5º, III e XLIII), dessa forma, entende-se que a legislação
brasileira expressa claramente a proibição dos atos de tortura.

Além disso, dispõem-se também uma preocupação por parte de órgãos


internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) em relação a
proteção dos direitos humanos. Assim sendo, a ​Convenção contra a Tortura e
Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradante e a
Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, foram ambos
ratificados em 1989 pelo Brasil e possuem suas próprias definições sobre
tortura. N​a legislação brasileira, após sete anos promulgou-se a Lei 9.455/97
que definiu o crime de tortura e suas penas.
Apesar da existência dos aparatos legais contra a tortura, a violação dos
direitos continua sendo uma prática rotineira. As práticas acabam resultando em
danos irreparáveis de fatores físicos e psicológicos às vítimas, além de serem
resultado de violações gravíssimas. Dessa forma, o presente artigo se propõe a
uma reflexão questionável sobre a eficiência do Estado em garantir que este ato
seja devidamente punido.

2. DITADURA MILITAR E A TRANSIÇÃO PARA UM ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A construção da democracia no Brasil e em diversos países não seguiu


uma trajetória linear. A lenta construção das instituições democráticas é
acompanhada pela construção vagarosa e árdua de uma cultura em que
prevaleçam atitudes e valores próprios do ideário democrático. O aprendizado
democrático requer o entendimento dos fatores envolvidos nos processos de
transição dos regimes autoritários para a democracia.

O Brasil não alcançou de fato a completa transição para a democracia.


Pois ainda existe resquícios de autoritarismo em algumas instituições,
principalmente na segurança pública. A qual é conhecida pelos menos
favorecidos por abusar do seu poder, matando e violentando. No período da
ditadura militar, o regime foi responsável pela fixação de uma longa fase de
cerceamento das liberdades civis. Entre os anos de 1969 a 1974, a repressão
chega ao seu auge, período em que a ditadura se escancarou, com a
multiplicação de prisões ilegais, de práticas de tortura, de desaparecimentos
forçados e de execuções sumárias (MOURA et al, 2009, p. 171).

Como neste período ditatorial, o governo não tinha o mínimo interesse


nos direitos humanos, a população contrária ao governo viu-se obrigada a
denunciar as torturas as Nações Unidas (a consequência dessas denúncias foi
o esgotamento da imagem do Brasil no exterior). Após estas denúncias, a
sociedade mobilizou-se através de movimentos populares, a oposição crescia e
adquiria cada vez mais adeptos, além de um fator essencial que foi a mudança
de postura dos Estados Unidos (o qual deixou de ser aliado às ditaduras e
passou a levantar a bandeira dos Direitos Humanos), e assim, gradativamente
o país caminhou para um processo de abertura (CNV, 2007, p. 27).

Apenas em 1978, o MDB trouxe um grande avanço para a restituição da


democracia. Fizeram um acordo com o governo militar, que resultou na criação
da Lei de anistia, a qual deixa impune aqueles que torturaram e mataram. Após
a aprovação da Lei, o Brasil passou por uma gradual tramitação para a
democracia. Infelizmente a Anistia fez com que atos cruéis praticados fossem
simplesmente esquecidos. E consequentemente que fosse gradualmente
apagado da memória de muitos. Durante décadas, o país tudo fez para nada
fazer no que se refere ao acerto de contas com os crimes contra a humanidade
perpetrados pela ditadura (SAFATLE, 2011, p. 66).

Num futuro não muito distante, não haverá mais vítimas do regime para
contar sobre o período de inúmeras atrocidades. Visto que atualmente há um
clamor por parte de certa camada social para o retorno da ditadura, vê-se que
é necessário o resgate de memórias, e a perpetuação destas memórias: “Meu
pai contou para mim; eu vou contar para meu filho. Quando ele morrer? Ele
conta para o filho dele. E assim: ninguém esquece (Kelé Maxacali, índio da
aldeia de Mikael)”.

3. TRATADOS INTERNACIONAIS E O DIREITO PENAL BRASILEIRO

Os direitos humanos se constituem como invioláveis, construídos sob


preceitos que os tornam totais e absolutos. No artigo 5º da Declaração Universal
de Direitos Humanos, dispõe-se, assim como na Carta Magna de 1988, que
“Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano
ou degradante” ​(DUDH, 1948), assim, é inexorável a prática de qualquer ato de
tortura ou maus-tratos. No entanto, tal como afirma Norberto Bobbio, a
complicação que persiste em relação aos direitos do homem é o de protegê-los:

Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico,


mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de
saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e
seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos
ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para
garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações,
eles sejam continuamente violados (BOBBIO, 1990, p.17).

Analogamente, se faz presente na Carta Federal de 1988 o princípio da


dignidade humana, que tem como primazia o bem-estar do cidadão e a garantia
de que seus direitos sejam efetivados. Tal qual assegura Sarlet (2001), essa
dignidade é qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana,
devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo ser
concedida ou mesmo retirada.

Assim, o autor elucida sua definição jurídica sobre a dignidade:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser


humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem
a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano (SARLET, 2001, p.62).

O combate à tortura, no entanto, parte dos pressupostos estabelecidos no


Direito Internacional do qual o Brasil faz parte e é signatário de tratados e
convenções. ​Dessa forma, se faz ressaltar especialmente a Convenção Contra a
Tortura e Outras Penas e Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, que
foi adotada pelas Nações Unidas em 1984 e promulgada pelo Brasil em 15 de
fevereiro de 1991. A Convenção definiu a prática de tortura como:
o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou
sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos
intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma
terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por
ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja
suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou
outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em
discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou
sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra
pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação,
ou com o seu consentimento ou aquiescência (Decreto nº 40,
art.1, alínea a, 1991).

A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura da qual o


Brasil também se tornou signatário e foi adotada em 09 de dezembro de 1985,
determina em seu art.1º a obrigação dos Estados em prevenir e punir de acordo
com os termos estabelecidos pela Convenção. Em seu artigo 2º define tortura
como:
[...] todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma
pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de
investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo
pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer
outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre
uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da
vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora
não​ causem dor física ou angústia psíquica (art.2º, 1985).

Tal qual a Convenção Contra a Tortura, classifica o sujeito ativo do crime,


considerando condições específicas em que são aplicáveis apenas para
situações envolvendo agentes do Estado, − como funcionários, militares,
policiais, etc − que submetem pessoas a intenso sofrimento físico ou psíquico,
como castigo ou para obter confissão ou informação (MAIA, 2006, p. 14).
Entretanto, a Convenção contra a Tortura deixa em aberto a possibilidade
de considerar outros objetivos da tortura baseados em qualquer tipo de
discriminação. Já a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura
incorpora, entre os objetivos da tortura, que esta possa ser usada como uma
“medida preventiva”. Isso talvez para dissuadir o cometimento de futuras
infrações, quiçá para anular a personalidade da vítima ou para diminuir sua
capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica,
acrescentando que pode dar-se para outros fins que não especificados
(MALAVER e VANRELL, 2016, p. 50).

O que de fato faz-se interessante em relação às convenções é que


determinam que os Estados-membros devem se comprometer em prevenir e
punir devidamente os atos de tortura em suas legislações, carregando uma
condição obrigatória primordial a esses Estados. É preterível elencar que as
medidas a serem tomadas precisam visar especialmente a proteção e garantia
dos direitos fundamentais. ​Na legislação brasileira, encontrou-se certa lentidão
em se adequar a essas medidas. Segundo Luciano Maia, só era considerado
crime quando praticado contra crianças e adolescentes, como disposto no
art.233 (Lei nº 8.069/90) do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
tipificava como crime “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade,
guarda ou vigilância, a tortura”. Mas não definia o que vinha a ser tortura (MAIA,
2006, p.119).

Contudo, somente em 7 de abril de 1997, o Estado Brasileiro trouxe para


sua legislação o crime de tortura ao emitir a Lei 9.455/97. A análise da norma
brasileira sobre tortura se configura em atos efetivamente qualificados em que os
meios empregados são violência ou grave ameaça, ocorrendo a vítima prejuízo
físico ou mental com finalidades distintas que estão prevista na lei.

Logo no inciso I, prever a sua tipificação mediante constrangimento:


I - Constranger alguém com emprego de violência ou grave
ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da
vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

Em contraste o art. 1º, inciso II, se pauta mediante a submissão, o ato de


submeter alguém em posição inferior causando-lhe intenso sofrimento físico e
mental. É importante salientar que a pessoa deve se encontrar sob guarda,
poder ou autoridade do praticante do delito. Deve-se ressaltar também a
diferença que se faz entre tortura e maus-tratos, tal como afirma a autora Maria
Gorete de Jesus, os maus-tratos se qualificam quando o agente abusa de seu
ius corrigendi (direito de correção) para fim de educação, ensino, tratamento ou
custódia. O castigo aparece como meio de ensinar uma lição, como forma de
corrigir um ato considerado inaceitável. Diferentemente no crime de tortura, no
qual o agente pratica a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de
caráter preventivo. Ou seja, a diferença é que no delito de maus tratos o
agressor expõe a vítima ao dano, enquanto que na tortura, ele provoca o dano à
vítima (JESUS, 2009, p.137-138).

Voltando ao exposto da Lei 9.455/97, o § 1° se especifica ao determinar a


tipificação mediante a submissão de pessoa presa ou outrem que está sujeita a
medida de segurança, da seguinte forma:

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou


sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por
intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante
de medida legal (Lei 9.455/97, art. 1º, § 1º).

De certo modo, é assegurado aos presos o respeito à integridade física e


moral (CF/88, art. 5º, XLIX), mesmo assim esta nem sempre é respeitada. Nas
palavras do autor Alberto Jorge:
No Direito Penal, é correto afirmar que o cometimento do crime
não retira do agente o valor de ser humano, da posição que ele
ocupa junto aos seus semelhantes, não faz desaparecer a sua
dignidade e, assim, a reação penal deve, necessariamente, partir
deste axioma normativo (LIMA, 2017, p. 34).

No exame do Recurso Especial Nº 1.580.470 ​╴​PA (2016/00266875-4),


em que foi o relator o Ministro Rogerio Schietti Cruz, o caso do STJ aponta
circunstância em que policiais militares praticaram delitos de tortura qualificada
e foram sentenciados em primeira instância de acordo com o que estava
previsto no artigo 1º, inciso I, alínea “a” e o § 4º, inciso I, da Lei 9455/97.

No corpo do Voto, os fatos são relatados da maneira como se


desenvolveram, explicitando como a conduta se deu e o seu enquadramento
ao crime de tortura:

[...]. Foi empregada violência física aos ofendidos, mediante


chutes, pontapés, baques nas mãos com palmatória, tapas,
etc., ação delituosa grave, de especial relevância, conduzindo
sofrimento físico, dor física e ainda inquietação, abalo
psicológico, com fim precípuo, pelo que consta, de obter
confissão.
[...]. Não bastassem referidas declarações, que confirmaram a
existência da palmatória, constata-se às folhas 89 e 90, cópia
do Laudo de exame de Corpo de Delito atestando lesões
corporais nas vítimas José Ricardo Viana Gomes e Márcio
Furtado Paiva, tendo em vista que a perícia efetuada em Valdir
Alexo Barata não confirmou lesões. Por mais que tenham as
vítimas praticado ação ilícita e por este motivo detidas e
conduzidas ao PM BOX da Ligação, inaceitável a atitude
irracional, hedionda dos policiais a produzir tortura com
indicativos de que a finalidade seria confissão do local em que
teriam escondido a arma utilizada no assalto e os bens
subtraídos da vítima. Portanto, enquadra-se a ação dos
denunciados nas normas previstas no artigo 1º, inciso I, alínea
a e § 4º, inciso I, da lei 9.445/97 (CRIME DE TORTURA
QUALIFICADA), posto que o delito foi cometido por agente
público. Deve o agente público cumprir fielmente com o seu
mister, aplicando a lei, rechaçando qualquer atitude de
violência física, moral ou por meio de outros atos considerados
cruéis, que venham a causar dor intensa, sofrimento ou
atentem contra dignidade humana. Se age o agente público ao
arrepio da lei, constrangendo alguém com emprego de
violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou
mental, acaba por trair a confiabilidade que lhe deposita a
sociedade e a administração pública a qual está vinculado,
devendo, pois, pagar pelas suas atitudes contra legis (STJ,
2018).

Nas formas em que se decorreram os fatos, os agentes foram


condenados por tortura em primeira instância, mas recorreram à apelação.
Assim, o Tribunal de Justiça do Pará desclassificou a imputação do crime de
tortura para o delito de lesões corporais leves, alegando que o sofrimento
ocasionado não provocou intenso sofrimento físico ou mental nas vítimas nos
termos do seguinte resumo:

APELAÇÃO PENAL - CRIME DE TORTURA PRATICADOS


POR POLICIAIS MILITARES - INEXISTÊNCIA DE PROVAS
DE QUE AS AGRESSÕES PERPETRADAS CONTRA AS
VÍTIMAS SE REVESTIRAM DE CARÁTER MARTIRIZANTE
DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE LESÕES
CORPORAIS - PRECEDENTES - OCORRÊNCIA DA
PRESCRIÇÃO – EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DECRETADA
– Não é toda agressão que configura a tortura, mas somente
aquela de caráter martirizante, reveladora de extrema
crueldade e capaz de causar à vítima atroz sofrimento físico,
verdadeiro suplício. Se não existem provas de que as
agressões perpetradas contra as vítimas se revestiram desse
caráter, a desclassificação para o delito de lesões (STJ, 2018).

Contudo, a acepção sobre o “intenso sofrimento” se faz presente apenas


no inciso II do artigo 1º da lei 9455/97:

II - Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade,


com emprego de violência ou grave ameaça, ​a intenso
sofrimento físico ou menta​l, como forma de aplicar castigo
pessoal ou medida de caráter preventivo (grifo nosso).

Dessa forma, a pena se encaixa diretamente ao inciso I, alínea a que


define qualquer emprego de violência ou grave ameaça com a finalidade de
obter declaração, confissão ou informação. No caso disposto, os agentes
pretendiam obter informações do local no qual os ofendidos teriam escondido a
arma usada no crime, assim como também os bens que foram subtraídos,
inferindo a eles agressões físicas ao empregar-lhes chutes, tapas e pontapés.
Ademais, por ser praticado por agente público submete-se a um aumento da
pena de um terço como posto no § 4º, inciso I.

A decisão do STJ proferiu a condenação dos acusados, entendendo que


o Tribunal de Justiça do Pará violou o art. 1º, inciso I, da Lei nº 9.455/97.
Concluiu-se que:
Diversamente do previsto no tipo do inciso II do art. 1º da Lei nº
9.455/1997, definido pela doutrina como tortura-pena ou
tortura-castigo, a qual requer intenso sofrimento físico ou
mental, a tortura-prova, do inciso I, alínea “a”, não traz o
tormento como requisito do sofrimento causado à vítima. Basta
que a conduta haja sido praticada com o fim de obter
informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa e que haja causado sofrimento físico ou mental,
independentemente de sua gravidade ou sua intensidade
(​REsp nº 1.580.470/PA, 2018).
Portanto, o caso em evidência ao alcançar o STJ, obteve novamente
uma resolução enquadrável com a Lei 9.455/97.

Vale lembrar que ​da mesma forma que está prescrito no artigo V, inciso
XLIII (CF/88), o § 6º (Lei 9.455/97) julga o crime de tortura como ​inafiançável e
insuscetível de graça ou anistia.

4. A VULNERABILIDADE À TORTURA E OS SEUS EFEITOS

O Brasil é berço de um panorama paradoxal, é inegável que as


implementações dos direitos de natureza social se tornaram uma grande
conquista para a democracia brasileira. No entanto, deve-se ressaltar que a
maneira como funcionam expressam uma gentileza quase cruel. ​Será que
todos esses direitos são respeitados? O Estado é capaz de garantir a justiça e
evitar as violações desses direitos?

O autor Paulo Sérgio expressa objetivamente sobre a situação atual do


Estado Brasileiro:

O caso brasileiro ilustra com grande clareza os problemas


enfrentados pelas novas democracias ao tentar diminuir as
enormes distâncias entre as conquistas políticas da
consolidação democrática e as persistentes violações dos
direitos civis, sociais e econômicos da maioria da população. O
Brasil oferece o paradoxo de estar hoje ao mesmo tempo no
que poderia ser o melhor dos mundos e também no pior [...]
(DIMENSTEIN; PINHEIRO,1996, p.22).

A nova Era que aspira os desejos mais sublimes de um Estado


Democrático de Direito se desdobra em ociosidade profunda, pois apesar de
abominar os métodos mais cruéis de tortura que estão previstos em sua
legislação, é notável que se perdura o reflexo de um passado que ainda
continua muito presente.

Inegavelmente, o corpo estruturado no sistema estatal se degenera em


circunstâncias críticas de uma doença sintomática, que tem causa e
consequência, mas nem sempre são tratadas. Segundo a autora Teresa
Caldeira (2000), a deslegitimação dos direitos civis apresenta-se enraizada
numa história e numa cultura em que o corpo é incircunscrito e manipulável,
em que “a dor e o abuso são vistos como instrumentos de desenvolvimento
moral, conhecimento e ordem” (Caldeira, 2000, p.375).

A priori, nota-se que os crimes de tortura afetam diretamente os que


estão em posições vulneráveis, emparelhados em relações de poder em que
pendem para o lado mais “fraco”, nas situações mais comuns se faz presente
principalmente em instituições públicas como em delegacias e presídios.
Segundo o relatório feito pela Pastoral Carcerária Nacional (2018), ocorreram
175 casos de tortura e outras violações no sistema prisional (...), e apesar de
constarem relatos de agressão física em 58% dos casos (prática mais
comumente relacionada à tortura), 41% das denúncias também apontavam
condições degradantes de aprisionamento, especialmente relacionadas com a
salubridade das celas e espaços de privação de liberdade (PCN, 2018,
p.17-22).
Em entrevista realizada ao site da revista Exame pela jornalista Bárbara
Ferreira Santos, o representante regional para América do Sul do Alto
Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Amerigo
Incalterra, afirma que a impunidade em casos de tortura praticados por agentes
públicos contra presos se tornou regra no sistema penitenciário brasileiro:

A falta de esforços consistentes para documentar e investigar,


processar e castigar delitos de tortura e mortes em presídios
vão contra as disposições da Convenção contra a Tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou
degradantes, da qual o Brasil é parte (ONU/BR, 2017).

Em suma, demonstram-se como oportunidades que surgem em


determinadas ocasiões são vistas como adequada ou favorável a determinado
propósito. Nestas situações se fazem salientar dois aspectos: a atratividade do
alvo (vítima) e sua acessibilidade. Ao se afirmar acessível significa que se pode
ter acesso facilmente, e, mais relevante, que está sem vigilância, fiscalização
ou supervisão (MAIA, 2006, p.87).

Maia evidencia a tortura e as relações de poder da seguinte maneira:

A tortura sempre foi instrumental, estando presente nas


relações de poder, com supremacia de forças do torturador e
inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do
torturado (2006, p.97).

A questão sempre vai ser de submeter alguém a este tipo de tratamento


considerando justamente o propenso poder de realizá-lo. Dessa forma, o corpo
da vítima é subjugado a sofrimentos intencionais, sendo estes, violados das
maneiras mais cruéis.

Como destaca Teresa Caldeira,

O significado criado pela dor nos corpos das pessoas é a


vontade da autoridade absoluta, uma autoridade que não está
interessada em entrar em debates ou discordâncias, uma
autoridade que negligencia a linguagem.​ Um mundo de
significação negociada é criado pela linguagem, não pela
dor ​(CALDEIRA, 2000, p. 369, grifo nosso).

Ao que se refere aos danos físicos e psíquicos do torturado, Alfredo


Guillermo lista as sequelas que decorrem deste ato, entre elas as mais
frequentes são: danos cefálicos, infecções com compromisso cefálico,
neuralgias e mialgias, debilidade orgânica em geral, escoriações, contusões,
fraturas, etc. Além disso, o autor retrata o processo traumatizante em um grau
mais rigoroso de tortura. A priori, na destruição da pessoa (seus valores e
convicções) e depois na relação do indivíduo consigo mesmo e com o mundo,
em que sua identidade e história são aniquiladas (MARTÍN, 2005, p. 437).

Conclui-se que a prática de infligir suplício a alguém, além de violar os


direitos garantidos, também se revelam como usurpadores de toda a essência
e identidade do indivíduo em relação a si mesmo, além de causar danos
corporais gravíssimos. Além disso, elenca-se que a ineficiência do Estado é
quase estrutural, revelando falhas tanto na investigação quanto no processo, o
que provoca embate diretamente com o que consta nas convenções e nas
legislações a respeito do delito.

5. OS IMPASSES NA EFETIVAÇÃO DO COMBATE À TORTURA

Como já foi outrora mencionado, o Estado atua de maneira incompatível


com o que está previsto nos dispositivos legais, retratando uma jurisprudência
atrelada às dificuldades no combate à tortura. As complicações com o devido
processo legal e toda a banalização a impunidade, diminui as chances de ter
uma punição devida dos casos.

Em suma, a forma adequada de se reagir a denúncias de tortura é a


necessidade imediata de haver uma investigação, além do procedimento de
registro de denúncia ser de caráter simples e objetivo, e de início, confidencial.
O órgão responsável por receber a denúncia deve acusar imediatamente o
recebimento da denúncia. Quando o caso estiver em andamento e a vítima vier
a correr riscos, deve haver ação imediata; no caso de detentos, eles devem ser
transferidos para outra casa de detenção onde possam ser tomadas medidas
especiais em prol da segurança da vítima (FOLEY, 2009, p.55).
Ademais, torna-se necessário que os meios de denúncia sejam de fácil
acesso, segundos dados da CNBB (Pastoral Carcerária Nacional, 2018),
destaca-se principalmente a importância dos meios virtuais de denúncia (e-mail
e formulário disponível no site da organização), cerca de 69.9% dos
denunciantes utilizaram esse meio, uma vez que são de fácil divulgação e uso,
além de darem mais segurança aos denunciantes que preferem manter a sua
identidade em sigilo (46% do total). De acordo com a mesma instituição, em
37% dos casos foi instaurado procedimento de apuração perante a Vara de
Execução ou outros órgãos de controle social; em apenas 12% dos casos foi
instaurado inquérito policial; 7% das denúncias resultaram na propositura de
Ação Civil Pública; 4% deram origem a procedimento administrativo disciplinar
contra servidor público e em apenas 0,5% dos casos foi proposta ação
indenizatória em benefício da vítima ou dos seus familiares (CNBB, 2018, p.
28).

Dessa forma, é evidente que a desumanização e impunidade no sistema


de justiça criminal é recorrente. Se manifesta como um processo desde os que
ordenam e aos que cometem diretamente, até aos que se tornam cúmplices,
alimentando a continuação de violações de direitos humanos.

Por outro lado, causa intenso espanto dizer que estas ações quase nem
sempre produzem impacto negativo na sociedade, uma vez que muitos
defendem a prática de tortura, no entanto, desde que atribuída aos corpos de
um preso comum ou de pessoas de “segunda classe”. Estes corpos,
geralmente de negros e outras minorias, não causam indignação e são, por
vezes, legitimados como um mal necessário e de merecimento.

Como destaca José Reinaldo, a impunidade e a defesa da autonomia


são elementos que ajudam a entender essa questão:

[...] A impunidade não se reduz a uma questão empírica ou da


eficácia da lei: é reveladora de uma atitude moral [...]. Em
nossas circunstâncias, continua sendo prioritário justificar os
direitos humanos para além de torná-los efetivos. É que a força
de opinião contrária tanto facilita a impunidade quanto legitima
o atual ​status quo​ de não realização dos direitos da pessoa
humana (LOPES, 2000, p. 77).

Em vários níveis esse discurso é defendido e bastante aceito, não há


choque ou questionamento quando esses casos acometem a pessoa que
praticou algum tipo de delito, é como se essa prática criasse um conceito mais
intenso de justiça. De certa maneira, a banalização da violência e o intenso
fomento da insegurança que se difundiu no século XX e tomou outras
proporções no século XXI, explicam a causa do alastramento desse
pensamento. Ora, o país que elegeu um presidente com base favorável no
discurso de “bandido bom é bandido morto”, não se gera espanto que essas
declarações sejam tão bem aceitas.

Em relação às medidas que devem ser tomadas para erradicar esta


conduta que se movimenta junto a democracia em passos sincronizados e ao
mesmo tempo incompatíveis, é de suma importância que não somente o
Estado, mas também a população se atente ao quanto essas práticas agridem
o ínfimo da dignidade da pessoa humana.

Em relatório do Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura (SPT),


algumas medidas foram propostas com base nos problemas identificados,
entre elas: investigação de mortes por agentes; a capacitação profissional em
Direitos Humanos; a adoção de protocolos oficiais sobre o uso da força da
polícia; a revisão de salários da força policial e também a supervisão adequada
dos presos, além de penas mais severas em relação a Lei 9.455/97, tornando
possível os preceitos da Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos
Cruéis e Degradantes (SPT, 2017).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É sabido, que o combate a tortura é uma estrada tortuosa, uma vez que
ela sempre esteve presente na história brasileira. A tortura é uma prática
degradante, infligida para causar dor e sofrimento, e assim, submeter quem
está em posição inferior ao que é imposto pelo torturador. São comumente
punidos em nossa esfera estatal aqueles que estão sob custódia do Estado,
como por exemplo, os encarcerados.

Partindo dessa premissa, conclui-se que só com a atuação de todos e


com a problematização crítica desse ato como violações de direitos humanos,
é que poderá ser mais efetiva a luta contra essas transgressões. O Estado
deve ser atuante como também fomentador na educação da população em
relação ao repúdio dessas práticas, além de elaborar pesquisas e
disseminação dos casos para que se possa combater os números de
ocorrência. Destarte, manifestar-se-á o que foi estabelecido pela Constituição
Cidadã de 1988, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante” (art. 5º, III).

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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