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5.1 INTRODUÇÃO
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integram, se cruzem, se afastam, se chocam, se justapõem, e geram
outras combinações – em um processo de constante transformação. Ao
perceber o Camaquã dessa forma, estamos atentando para a percepção
de processos vitais e históricos que o compõem, segundo aqueles que
vivem o Alto Camaquã. Nesse sentido, incluímos etnograficamente as
abelhas de diversas variedades que se integram a troncos e árvores, os
papagaios-charão que habita as matas ciliares em determinadas esta-
ções do ano, os cardumes de peixes que habitam o Rio Camaquã, as
árvores centenárias que habitam suas margens, as chuvas que aumen-
tam a vazão de suas águas, os diferentes coletivos humanos que habi-
tam a região, seus afluentes e que articulam seus modos de ser e viver
o Rio. Especialmente, levamos em consideração a preocupação com o
próprio Rio Camaquã, cujas águas rápidas e indomáveis transbordam
os limites geopolíticos de Caçapava do Sul e de Santana da Boa Vista/
RS, sítio do empreendimento de mineração.
O Rio Camaquã pode ser pensado como uma “malha” (IN-
GOLD, 2012b). Composta por múltiplas linhas, que se entrelaçam.
Pode ser representado através da percepção da Bacia Hidrográfica que
lhe dá forma (Figura 1).
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Figura 1 - Bacia Hidrográfica do Rio Camaquã.
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5.2 O RIO É COMO O SANGUE DA GENTE
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Voltamos à região do Alto Camaquã e a um paradoxo: a região
mais preservada do bioma pampa é considerada pelo Estado como a
mais pobre. Borba (2016, p. 187), indica que esta região não teve “êxito
na implementação dos modelos de desenvolvimento propostos”. Nesse
sentido, a proposta de um desenvolvimento endógeno, que dê centra-
lidade aos modos de vida e de relações como o entorno, o ambiente,
vem sendo desenvolvida há alguns anos na região por vias do grupo as-
sociativo Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Ca-
maquã (ADAC). Levar em consideração as características biofísicas,
naturais e culturais colocam em cheque essa noção reproduzida pelo
Estado e pela Ciência de uma região historicamente empobrecida.
Vale buscar responder, portanto, como os coletivos interagem
com o ambiente e com os outros entes e, assim, nos propomos a escre-
ver sobre o Rio Camaquã dentro desse contexto de conflito entre epis-
temologias da natureza e concepções de desenvolvimento. Por meio de
uma síntese transdisciplinar (LITTLE, 2006) entre Ciências Humanas
e Ciências Naturais podemos perceber que as causas de um fenômeno
podem proceder tanto do mundo social quanto natural. A noção de
agente natural considera as forças da natureza como uma espécie de
ator, no sentido de que agem sobre uma realidade determinada, mas
que difere qualitativamente dos atores sociais, já que não tem “vontade
nem intencionalidade”. (LITTLE, 2006, p. 89). O Rio Camaquã entra
nessa questão, enquanto um ator que envolve a tensão sobre os impac-
tos que a extração de chumbo as suas margens podem ocasionar.
Segundo o sociólogo Walter Benjamin (1996, p. 224), “[...]
articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele
de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo”. Não deixa de chamar aten-
ção que outro braço da empresa, a Votorantim Celulose, foi uma das
responsáveis em décadas anteriores pelo projeto de implantação das
lavouras de eucaliptos e de pinho no pampa. Naquele momento, a
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produção de celulose para exportação foi vendida como a oportuni-
dade de desenvolvimento para a metade Sul do Estado e batizada de
“reflorestamento”. Para Luiza Chomenko (2007, p. 04), porém,
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Para Márcia, “o Rio é como o sangue da gente”. A pecuarista
recorda do desastre ambiental que aconteceu em 1989, envolvendo
atividade de mineração próxima às margens do Rio. Naquela época,
as águas ficaram vermelhas. Era uma água estranha aos pecuaristas do
Alto Camaquã. Logo depois, os peixes começaram a morrer e cobrir o
Rio. Ela lembra do cheiro dos peixes em decomposição e do medo que
os pais ficaram de entrar no Rio. De repente, estavam apartados daqui-
lo que talvez não seja entendido como externo, mas interno, como o
sangue. Perante a possibilidade de mineração de chumbo na beira do
Rio, este medo é revivido a atualizado. Os moradores relatam que por
muito tempo o Camaquã, que era farto de grumatãs, dourados, piavas,
pintados, jundiás, ficou sem peixes. (Diário de Campo, verão de 2017).
O antropólogo Michael Taussig (1993), tendo como pano de
fundo processos históricos coloniais de longa duração, se debruça para
criação de sentidos em contextos de violência. Para o autor, os espaços
de morte, onde a tensão e o medo são uma presença constante, acio-
nam uma série de defesas socioculturais como forma de cura. Segundo
Taussig (1993, p. 28 e 29),
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Na relação ecológica tecida entre os pecuaristas familiares e
o Rio Camaquã encontramos alguns elementos daquilo que Ingold
(2012a) designa como economia de pensamento, onde o Rio pode ser
pensado como um ente vivo. Assim, chamamos atenção para dicoto-
mia natureza e sociedade ao atentarmos para a centralidade da relação
entre humanos e outros seres, neste caso, com especial destaque para
o Rio, frente a empreendimentos de mineração que podem sintetizar a
ruína destes modos de vida.
Em 2017, durante a realização do Seminário Regional Sobre
os Impactos dos Projetos de Mineração, em São Lourenço do Sul/RS,
a peruana Ana Maria Llamoctanta Edquen, Presidente de Base de Las
Rondas Campesinas de Mujeres del Centro Poblado El Tampo, alertou
como, de repente, a produção de batatas, uma das bases alimentares
da comunidade, começou a secar. Ao mesmo tempo, as águas ficaram
turvas e membros da comunidade começaram a adoecer. Para Ana Ma-
ria, “não podemos viver sem água”. Assim, a estratégia do coletivo foi
seguir o curso das águas, pois, para o grupo, é essencial “saber onde
nascem os rios”. Foi então que descobriram a retomada da atividade de
mineradoras de ouro em cavas na região de Cajamarca, Norte do Peru.
Com a chuva, a água levava os resíduos até os rios, envenenando o am-
biente. A atividade se torna ainda mais destrutiva pelas cavas estarem
encravadas em territórios tradicionais, que estão associados aos modos
de vida dos moradores. Conforme Ana Maria e demais campesinos “as
montanhas e as águas são a vida”. (Diário de campo, outono de 2017).
Apenas recentemente os moradores do Alto Camaquã começa-
ram se perceber o retorno os peixes ao Rio, porém, não com a mesma
abundância de antes. Mas, e se considerarmos, de acordo com Ingold
(2012a), um cosmo polifônico em que o Rio seja o sangue da gente? Na
relação com o ambiente se cria aquilo que podemos chamar de expe-
riência. Para Turner (2005: 177),
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[...] o significado surge quando tentamos associar o que a
cultura e a língua cristalizaram a partir do passado com
o que sentimos, desejamos e pensamos em relação ao
instante presente da vida. Em outras palavras, retoma-
mos as conclusões que nossos ancestrais estabeleceram
como modos culturais que classificamos hoje, dentro da
tradição ocidental, como “religiosos”, “morais”, “políti-
cos”, “estéticos”, “proverbiais”, “aforísticos”, de “senso
comum” etc., para ver como e em que medida essas con-
clusões iluminam ou se relacionam com as nossas ques-
tões, dificuldades, problemas, ou alegrias individuais do
presente.
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5.3 CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS: UMA ANTROPOLOGIA
DA/NA VIDA
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na f(r)icção de suas experiências com o ambiente, com o Rio. O para-
doxo, que ressaltamos novamente, é que esta área é justamente uma
região em que o pampa está mais preservado, pois são terras marginais,
campos de pedra e, significativamente, território das populações tra-
dicionais. Populações invisibilizadas que foram, e continuam sendo,
desconsideradas na história.
Nós, também, além de pesquisadores, somos cidadãos, cujas
vidas se cruzam, neste momento, com o Rio Camaquã, considerando
que nosso município compõe sua Bacia Hidrográfica. Expomos aqui
nossas reflexões na defesa dos modos de vida ao redor do Rio Cama-
quã, entendendo tais práticas enquanto referência cultural do pampa
brasileiro, por acreditarmos, assim, que a Antropologia pode contribuir
aos debates sobre impactos ambientais. Ressaltamos a importância da
diversidade sociocultural e da biodiversidade, bem como os modos de
viver que mantém o Camaquã vivo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos
num mundo de materiais. Horizontes antropológicos, Porto Alegre,
ano 18, n. 37, p. 25- 44, 2012.
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