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Urgência e memória.

Berna Reale e a arte como necro-política

“Louvando o que bem merece, deixo o que é ruim de lado” 1, foi pensando assim que até hoje
escolhi os temas de meu interesse. Em um mundo pluralista saturado com tudo que tem direito de
se apresentar como interessante, seria mais estratégico fazer promover o que é bom ainda que
mínimo ao invés de criticar o que não presta ou o que é visto como maléfico. Pois, sabe-se, que
falar/escrever condenando um objeto ainda é falar dele, o que é mais uma forma de promoção.

Mas sinto falta daquela crítica de arte do passado fervilhante de ideias, análises e declarações
dissensuais nas artes, contraposto ao hoje, quando praticamente quase não existe crítica de artes
no país. Há crítica de arte nos grupos de estudos, nas faculdades dos cursos de graduação e pós-
graduação de Belas Artes, pesquisas, projetos, publicações, fóruns, congressos, mesas, bienais,
revistas, etc, mas não vim falar desses espaços. Dizer que quase não existe crítica de arte corrente e
funcional hoje não quer dizer que não exista pensamento crítico de arte, pelo contrário, ele é
exigido. Não há exposição de arte que não tenha pregado na entrada um texto de 3 parágrafos em
que se tente ao mínimo fingir sobre fundamentos críticos e conceituais, por mais ou menos prolixo
quem seja o autor. Filosofia ou economia, arqueologia ou política, psicanálise ou qualquer outra
forma de conhecimento (e procedimentos) não são tabus para a arte há muitas e muitas décadas.
Mais importante, durante esse tempo, a crítica de arte foi assimilada como ferramental da
curadoria em grande medida como aquela instância reguladora de quais artistas e obras são
relevantes, o que deve ser visto e o que não. Qualquer jovem ou velho artista contemporâneo sabe
que o pensamento crítico (seja o conceitual ou o formalista) é uma expertise das mais valorizadas
no metier, mais que uma habilidade manual. Embora a crítica de arte seja condição prévia da
produção em arte contemporânea, a profissão do crítico deu lugar ao do curador e só poderia ser
assim, como um processo vinculado à lógica do neoliberalismo que fundamentava a indústria
cultural florescente, ao mesmo tempo que ampliava a desigualdade entre o artista de sucesso e os
milhares no fracasso. O crítico era contra-producente no novo sistema de produção, difusão e
consumo das artes visuais estabelecido a partir dos 1980s.

Dezenas de vezes na vida fui lembrada por pares que a “crítica não é a mesma coisa que falar mal
de”. A crítica de arte é algo de mais nobre e profunda que simples juíza de valor, e mais parecida
com uma ciência humana de expressão lírica do que com um ramo do jornalismo. A melhor crítica
de arte me parece uma literatura comparada das imagens, melhor ainda, uma imaginatura
comparada. Quero levantar a moral da crítica de arte contra os pueris que usam como sinônimos
para o “criticar”: o “ desconstruir (até aqui tudo bem), destruir, acabar com, detonar, humilhar,

1
Gilberto Gil. Louvação. Salvador: Philips Records, 1967.
fazer calar”: triste e confusa época essa nossa da “lacração”. A “lacração” é vizinha do
“linchamento”, é oposta mas irmã da “louvação”, fazendo parte do regulamento de condutas do
inferno das redes. Também acredito e prezo pela sofisticação da literatura da crítica de arte, no
entanto, muito me incomoda o fato da crítica de arte já não incomodar a ninguém. Ou seja, trata-se
de uma mentalidade que ao cabo restringe a crítica escrita ao âmbito da “chapa branca”,
manejando um discurso hermético ao povo, à maior parte do público.

Gostaria de escrever diferentemente, urgentemente, quero escrever sobre a marca da discórdia. A


crítica é mais do que “falar mal de”, mas ela ainda tem que ter, ou tem que abrir, um campo de
debate que aceite acusações e a franqueza das divergências. Só a crítica de arte tem perícia para
poder dizer de uma obra de arte: isso é um lixo, isso é uma porcaria, esse artista é picareta; e eu
acuso. E note, não se está afirmando: “isso não é arte”, não se trata disso; está se declarando que
isso é arte mal feita segundo me consta, inoportuna e oportunista, leviana, vil, mórbida,
humilhante. Inocente útil, ignorante, burra. Alienada. Grotesca. Obscena. Frouxa. Cínica, niilista,
perversa e espetacular.

Mas eu ainda nem apresentei o objeto de análise de minha crítica de arte de hoje, ainda chegarei
lá, mas, ainda, algumas linhas sobre o prejuízo que tem a atividade de crítica em relação à atividade
de curadoria. Quando um crítico de arte fazia um julgamento de que um artista não prestava, em
termos lógicos ocorria que: se o crítico estivesse correto, não teríamos porque lembrar de sua
intervenção ao passo que tanto o artista que não presta quanto sua crítica seriam esquecidos. Mas,
se o crítico estivesse errado e o artista realmente prestava, então se lembraria do crítico mas
apenas a título de representar um ponto de vista insuficiente e equivocado. Se a crítica ousou
criticar o mercado capitalista algum dia, o mercado a cooptou e a fez de mercadoria (ou
embalagem da mercadoria, o que dá na mesma, no sentido de que a embalagem e o rótulo são
obrigatórios para uma série de produtos em certos mercados), nada de notícia. O crítico aposta
(vanguarda), o curador investe (pós-vanguarda). Mas o jogo está terminado? A crítica de arte já
cumpriu todas as suas demandas ou ela pode recomeçar a partir de qualquer lugar, ser recolocada
tão rápida quanto se faça necessária? Os artistas apareceram escrevendo no passado para rebater
os críticos, esses rebatimentos alimentavam as cenas. Quando o artista deixa o lugar de intelectual
e perde a interlocução com o crítico de arte, com o filósofo, com o poeta, com o escritor, com o
compositor..., ele também perde a interlocução muito específica que era a dele entre outros
artistas, que podiam medir-se, ajudar-se, ou confrontarem-se intelectualmente sobre arte e
estética.
Sou artista, me chamo Leira Atsoc, ou só Leira que está bom. Artista-etc, hoje, artista-crítica. Aqui
marco minha inauguração com um artigo de crítica de arte. Não tenho o compromisso de que este
texto inédito seja o primeiro de muitos e não o último, aliás, eu só nasci ontem, sou praticamente
uma autora inventada. Eu não sou uma artista conhecida, não sou famosa, ainda, e irei escrever
sobre uma artista um pouco mais velha e muito mais conhecida do que eu, chamada Berna Reale.
Entendedores me entenderão, ou não, se sou movida pela “inveja branca”. Movida pela urgência e
pela memória.

TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT

Fig1 instagram de Berna Reale. Fig.2 Facebook de Ramon Reis


Era 3 de dezembro de 2019 quando, distraída, conversava jocosamente no Facebook sobre a
necessidade imperativa e compulsiva do artista em receber elogios incessantemente com uma
artista-curadora-professora, Flavia Lasan, quando esta me remete um “textão” de alguém de Belém
do Pará, chamado Ramon Reis. Ele fazia uma crítica afrontosa à última performance de Berna
Reale, ocorrida em 29 de novembro, três dias antes, nas ruas de sua cidade. Considerei comigo
mesma ainda dois dias se escreveria ou não sobre o assunto. Um tanto abalada, como tantos de
nós, pelas notícias do massacre dos jovens em Paraisópolis, decidi pelo sim. Ele começava a sua
postagem assim: Não. Não creio que exista contexto de criação que fundamente e justifique tais
imagens. Apesar de eu entender inúmeros defeitos nas colocações de Ramon, alguns trechos de
seu texto eram os questionamentos mais críticos e contundentes que eu já ouvi a respeito de
alguma obra daquela artista desde o seu surgimento na cena há uns 10 anos atrás. Mesmo o tom
afrontoso de algumas passagens em que ele podia errar no conteúdo acertava na forma de uma
crítica à altura: os trabalhos de Berna Reale são afrontosos, afrontosos à dignidade da gente.
Ramon:

Outro ponto que observo diz respeito às posições. Precisamos levar em consideração que a
arte da performance tem como elemento visual central o corpo. A maneira desastrosa
como essa artista manipula e dispõe corpos negros no espaço, enfileirados, ordenados,
obedientes, correndo militarmente, em “degrade”; a maneira como ela coloca o seu
próprio corpo branco no espaço em posição de poder, na figura de autoridade, em pé,
calçada, concedendo ordens, gritando, apitando, em meio a dezenas de jovens ajoelhados
apoiando a cabeça sobre o asfalto, de punhos atados, reforça de forma grotesca posições
humilhantes fixadas pela sociedade escravocrata e as abordagens policiais do presente em
periferias.

(...) Por que consideram [a galeria Nara Roesler que a representa e seus mecenas] aceitável
esse espetáculo sádico com o corpo negro? Por que uma imagem dessa performance será
levada para a #ArteBaselMiamiBeach2019 essa semana? Por que irão comercializar
imagens sádicas de homens negros em uma das maiores feiras de arte no mundo? 2

Ramon termina seu texto fazendo uma comparação mostrando um registro da performance de
Berna ao lado de duas fotografias de “tipos” tiradas no século XIX. Ele questiona o fato de que tanto
num momento quanto no outro os corpos de negros são completamente manipulados pelos
artistas coloniais para o consumo colonial. Nelas podemos ver não o “negro”, mas sim a construção
e sujeição que o branco ou a branca quis conformar. Mas há diferenças entre uma produção e a
outra. A violência colonial está implícita nas fotografias antigas, uma violência que precisa ser lida a
contrapelo, os corpos ainda estavam cobertos desempenhando cenas de trabalho e são
propositalmente edificantes, não há sadismo. E ainda há aura nas fotografias vindas do passado, no
2
REIS, Ramon. Belem do Pará, 02, dezembro, 2019. Facebook: Ramon Reis. Disponível em 10/01/2020:
[https://www.facebook.com/encharcado/posts/2198860907083786]
sentido de que o rosto humano é seu último refúgio; no caso de tratarem-se de rostos que
testemunharam a violência mais atroz, que foi a escravidão, torna seus olhares a nós algo
lancinante.

Mas Ramon reclama que as fotografias são de “tipos” e não de pessoas, e está correto. Isso é muito
interessante por que tem a ver com a nossa expectativa em relação a essas imagens. Quando
vemos as fotografias de Felipe Augusto Fidanza (1847-1903) trazidas por Ramon é como se: vemos
como retratos, mas as fotos não retratam alguém em especial, diferente dos nossos retratos de
família, o meu ou o seu. O retrato foi usado ali apenas como forma, os semblantes são como que
alegorias da imagem do “povo”, é uma idealização.

As fotografias do passado são representativas, icônicas, atendendo a um mercado do século XIX


pequeno burguês, as fotografias de Berna Reale por outro lado são performances públicas para os
cidadãos e geram registros fotográficos e videográficos para o mercado de arte contemporânea,
tratam-se de dois ou três lugares e protocolos diferentes. Antes o povo através do indivíduo, agora
os corpos são arranjados apagando-se todas as singularidades, a massa segundo um totalitarismo
brutal, explícito, de mau gosto. Se tínhamos antes um retrato (forma de retratar alguém em
específico) que não retratava ninguém (em específico), o trabalho de Berna Reale é um tipo de arte
política na forma que não é exatamente política. É tipo uma arte coletiva (por que feita com muitas
pessoas) que não é coletiva, um anti-teatro schilleriano. Performance, intervenção urbana, arte
relacional, choque, nudez: não apenas a temática mas também as formas de ação que a artista se
apropria poderia fazer pensar que se trata de uma arte engajada, mas, em Ginástica da Pele, o
engajamento é epitelial no sentido irônico do termo. O fato de ser na rua concede à performance
uma “aura”, afinal um “aqui-agora” é construído, uma “aura” de arte crítica social envolvendo uma
dada comunidade.

Passados poucos dias depois encontrei as reflexões de uma artista de Belo Horizonte sobre a
mesma performance com a mesma ênfase que Ramon. Priscila Rezende não fala de Belém mas fala
de dentro da prática da performance, ela diz:

Meta na vida:

Ter dinheiro para pagar 200 negrxs pra aceitarem estar nos meus trabalhos (...)

Meus trabalhos trazem violência, é fato, mas quando eu quero falar de violência, racismo e
as dores advindas do mesmo, EU AO MENOS DISPONHO O MEU PRÓPRIO CORPO, ao invés
de submeter outras pessoas negras a um lugar de humilhação, que diga-se de passagem, já
é habitual para elas. Quando elas tem sorte, elas saem vivas da situação...(caixa alta da
autora)3

As reflexões dela me fizeram refletir sobre quando foi que se tornou comum (ou desejável) ao
artista de sucesso contratar outras pessoas para uma performance, foto-performance ou vídeo-
performance dirigida. Minha memória me leva até um trabalho de Santiago Sierra em 1999 em
Cuba no qual manda tatuar uma linha fina de dois metros e meio pelas costas de 6 homens jovens 4.
O trabalho dele também não tem a prerrogativa de “transformar a realidade”, mas aderindo a ela
sistematicamente ele evidencia e não se omite, nem às instituições artísticas na co-participação das
estruturas de poder, colonialismo, racismo e exploração dos corpos dos submetidos que tudo
sustenta e ali são assinalados. Não é colorido nem feitichizado como o de Berna, mas é franco e
crítico, uma ferida no espetáculo da arte contemporânea.

Quando se torna comum que uma performance de um artista pode ser feita através do corpo de
outros que não o próprio? A pergunta permanece porque as apropriações de corpos e mão-de-obra
que Santiago Sierra estipula não parecem comuns, são des-comunais. Para dar uma data e um lugar
eu diria que se tornou comum em 2010, em Nova Iorque durante a retrospectiva de Marina
Abramovic. Em a Artista Está Presente, nome da exposição e também de uma performance sua no
ultimo piso, além de registros de performances passadas a artista selecionou e preparou 36
“artistas” para re-performar cinco de suas obras. Abramovic é autoridade da arte da performance
mas não deveria ser indiscutível suas propostas, no campo da arte contemporânea ninguém é
inconteste. As re-performances desses últimos não são do mesmo tipo de que quando a própria
artista refazia performances de Beuys, Nauman ou Acconci (Seven Easy Pieces, 2005). Achar que se
tratam da mesma natureza seria faltar com a verdade oculta da performance. Cada performer, em
dada situação artística, dispõe de seu corpo para um ato cujas regras foram pré-estabelecidas ou
imaginadas por ele mesmo. O corpo, coisa imanente, é submetido à soberania da vontade artística
própria transcendente. Ao fim de uma apresentação o artista-performer pode dizer ter
ultrapassado ou tocado seus limites. Há um curto-circuito entre o dar-se como corpo alienado e o
afirmar-se como vontade soberana numa performance original, um lampejo de emancipação dos
próprios limites inviável àqueles que performam segundo os limites de outrem. Isso seria ainda
mais verdadeiro se a proposta tem a ver com sofrimento, resistência, violações, perda da
consciência: se não parte de algo auto-direcionado a performance descamba para uma tortura na
época do trabalho neo-liberal. É diferente a auto-alienação da alienação do outro, muito diferente.
Diferente de uma performance do próprio artista que pode se concentrar exclusivamente aos

3
RESENDE, Priscila. Meta na Vida. Belo Horizonte, 01/12/2019. Facebook: Priscila Rezende. Belo Horizonte;
Disponível em: [https://www.facebook.com/priscilarezende.art/posts/1429999153843273]
4
Cf. o site do artista: [https://www.santiago-sierra.com]
fatores estéticos, quando se faz performances sujeitando o outro à categoria de objeto, a estética
precisaria ser posta como coisa ética de forma incontornável.

Toda arte é política. Mas toda arte na rua deveria ser planejada ainda mais como coisa política. Não
parece ser assim que Berna Reale pensa, ela acredita em uma cisão entre participação política e
ativismo de um lado e a arte na rua e a estética de outro, ou vejamos como se pronuncia em torno
de uma aula inaugural em Caxias do Sul:

– Sempre digo aos estudantes de arte que estamos vivendo um momento político
muito importante e a gente tem que se colocar (se posicionar). Mas quando vocês
vão para a rua, vocês têm que decidir se estão indo como artista ou como cidadão.
Eu já fui para movimento de rua, em 2013, com aquela grande pressão no Brasil
todo. Fui como a Berna, cidadã. Falei para eles: quando vocês forem para rua, se
vocês colocarem um cartaz escrito de caneta, numa cartolina, OK. Mas se vocês vão
como artista, vocês têm que pensar qual instrumento vocês estão levando. Uma
cartolina rabiscada, suja, melada, não me serve. Vocês têm que separar bem. A
arte, ao meu ver, está intrinsecamente ligada à estética. Eu gosto do que é bonito.
Quando eu fui falar do poder do Estado em 2012, em Palomo, que criticava essa
posição de cercear a liberdade de expressão, eu não quis fazer um cavalo pintado
de qualquer jeito. Eu queria fazer o cavalo mais lindo do mundo. Então Palomo
(esse é o nome do animal e também faz uma referência à pomba da paz, paloma,
em espanhol) foi pintado com 38 tubos de tinta. Eu fiz vários testes com ele. Eu
queria que ele desfilasse e fosse imponentemente lindo, porque a estética era
importante. Eu queria estar de policial, mas eu queria que quando passasse (pelas
ruas) todo mundo parasse pra ver, e não fosse mais uma manifestação, não fosse
mais um ato de ativismo político e sim um ato também estético. É importante que o
artista pense sobre isso.5

5
REALE, Berna. “A violência é alimentada pelo governo”, diz a artista Berna Reale em passagem por Caxias do
Sul, participou da aula inaugural do curso de artes na UCS. (02/04/2018). [Entrevista concedida a] Diego
Adami. Pioneiro, Caxias do Sul. Disponível em 10/01/2020: [http://pioneiro.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-
tendencias/noticia/2018/04/a-violencia-e-alimentada-pelo-governo-diz-a-artista-berna-reale-em-passagem-
por-caxias-do-sul-10212415.html]
Fig. 3: Palomo, Berna Reale. 2012. fig. 4 A Vida é Bela, Dir. Roberto Benigni, 1997.

Nem por Ramon nem por Priscila passou desapercebida a maneira como na legenda de Ginástica da
Pele em seu Instagram Berna nivela os preconceitos em relação aos tatuados, afeminados e aos
negros: de duas repressões a desvios disciplinares é passado à repressão de uma essência biológica;
são diferenças mostradas de forma indistinta enquanto fala (quando esconde rostos e nomes) em
“tatuar histórias em seu trabalho”. Não está claro que conexão a artista quis estabelecer entre as
abordagens policiais rotineiras nas cidades com a estatística da cor de pele dos presidiários em
número geral, há um deslocamento entre prisão-rua que merece ser pensado. Ninguém é
encarcerado por ser gay, nem tatuado, nem negro no Brasil, mas, por exemplo, com uma
quantidade ínfima de maconha são presos por tráfico de drogas, como um crime hediondo. As
injustiças raciais, no cerne da produção de supeitos, são aplicadas através de uma burocracia que
não é questionada nem minimamente abordada pela artista, que diz trabalhar simultaneamente
como artista e perita criminal.

A postagem no instagram da artista começa por falar em punir com preconceito e termina com
uma comemoração pessoal de aniversário, como muito indignou a Priscila. Quando Picasso expos
Guernica e um oficial nazista veio lhe elogiar, ao perguntar “foi você quem o fez?”, o pintor
respondeu rápido que não, que do contrário tinha sido homens como ele, os fascistas que tinham
feito Guernica. É uma resposta muito complicada mas é cristalina a recusa de elogios e a escolha do
tema de representação. Pois Berna pergunta se existe algo melhor para um artista do que ter seu
trabalho coberto de elogios, acreditamos que sim.

Não é trivial o fato de serem duas vozes alinhadas pelas lutas de identidade do povo negro a terem
se sensibilizadas e se levantadas criticamente contra a performance de Berna Reale, pois os negro é
a vítima preferencial da abordagem policial do país quem mais mata negros no mundo. Mas
embora eu reconheça o caráter tão revelador trazido pelas duas críticas sobre a performance, como
se finalmente afirmassem que “o rei está nú!”, eu gostaria de dar um passo além entrando em
desacordo com seus pontos de vista de forma radical. Mantendo o protagonismo e pioneirismo de
Ramon e Priscila amplio a questão: a apresentação dirigida por Berna não humilha apenas o povo
negro brasileiro, mas a todo o povo brasileiro que anda nas ruas. Berna Reale representa um
autoritarismo em que todos deveriam se preocupar e se ver implicados, no contexto atual.
“Nínguém, ninguém é cidadão”6. Os negros são o alvo da repressão policial mas o recado é para
todos.

Fig. 5: Pasqualino Settebellezze, dir. Lina Wertmüler. 1975.

Ainda não obtive acesso ao vídeo da performance por isso vou confiar na narrativa de Ramon Reis,
fazendo de seus olhos os meus, repetindo, “... a maneira como ela coloca o seu próprio corpo
branco no espaço em posição de poder, na figura de autoridade, em pé, calçada, concedendo
ordens, gritando, apitando, em meio a dezenas de jovens ajoelhados apoiando a cabeça sobre o
asfalto, de punhos atados”. Essa descrição poderia coincidir ponto por ponto à imagem de um
campo de extermínio, na figura mais clássica dos nazistas alemães. Ao ver as duas fotografias da
performance elas também me lembraram imediatamente imagens midiáticas das rendições de
rebeliões em presídios tomadas de cima, de helicópteros ou drones ao vivo. Os presos são levados
até os pátios e dispostos sentados, de cabeça baixa, assim organizados. Lembram também os atos
de revista geral e triagem de presos em que o Estado mede forças com as organizações criminosas.
Ou ainda os registros dos casos recentes de tortura em Santa Catarina em que policiais carcereiros
atiram com balas de borracha a esmo sobre as costas de presos desarmados, rendidos, sentados e
6
Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado / Pra ver do alto a fila de
soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos / E outros
quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos / (E são quase todos pretos) /
E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase
pretos de tão pobres são tratados (...)Caetano Veloso e Gilberto Gil. Haiti. Tropicalia 2, 1993.
com as costas nuas. As costas nuas dos negros, expostas em público, é um lugar comum no Brasil
da encenação prática da tortura, do pelourinho.

Fig. 6: O 3 de Maio de 1808, Francisco de Goya. (1814). Fig. 7: Foto tirada de vídeo capturado por
câmeras de segurança no Presídio de Joinville, 2013.

Eu acho que a Berna Reale acha que sua performance é sobre o comportamento preconceituoso do
guarda na rua que entope o sistema carcerário brasileiro; da rua para a carceragem. Mas o que
miro é algo muito mais horripilante. A performance desloca a carceragem para a rua, a praça vira
fazenda de café: agora é a cidade que é a penitenciária, o cidadão tem virtualmente os mesmo
direitos e tratamento que alguém condenado ou foragido frente ao poder da autoridade policial-
militar: da vigia como punição sem conhecer a justiça ou a perícia, só conhece a estatística.

Gostaria de fazer mais um questionamento sobre a performance agora de cunho sexual, embora
em nenhum momento esse tema tenha sido colocado. Pergunto: o fato de Berna ser uma artista
mulher é relevante para Ginástica da Pele? Uma mulher que se traveste de homem e subjuga 100
homens jovens com torsos nus (possivelmente desocupados ou precarizados) está abordando as
questões sobre o domínio sexual dos corpos? Pois o espaço da violência policial e a hierarquia
militar sobre detidos é um terreno sociológico fundamentalmente masculino. Entretanto nenhuma
senha sobre o deslocamento sexual nessa performance é nomeada pela artista... Diferente de uma
performance de tendência procedente entre discurso e ato, corpo e performance, fornecerei um
contra-exemplo, tratar-se-ia de Un violador en tu camino do coletivo chileno Las Tesis, cujo objetivo
é traduzir teses de autoras feministas para uma múltipla audiência, nesse caso Rita Segato. Alguns
dos versos de sua canção mais conhecida e repetida pelo mundo diz “O estuprador é você. São
policiais. Os juízes. O Estado. O presidente. O Estado opressor é um macho estuprador ....”. Nessas
performances públicas e coletivas as mulheres se auto-convocam e se organizam para uma
coreografia em que apresentam-se de olhos vendados, buscando apontar as estruturas do poder
patriarcal. O ato de vendar os olhos me parece a recusa de um lugar comum das provocações
feministas nos últimos tempos, que era a nudez se não de todo o corpo o do peito. Pois a nudez
enquanto instauradora da performance, o empoderamento da nudez em espaço público, sem
querer podia satisfazer tanto a mirada liberal como a mirada libidinosa machista heterossexual.
Dizendo de outro modo, Las Tesis procura não fazer o jogo do opressor, não lhe dá mais carne para
moer, mais vítimas. A performance de Berna é, dentro do interior das artes, a estetização da
política, a teatralização e espetacularização da política, enquanto Las Tesis responde com a
politização da estética, do teatro, a partir do exterior entanto espaço público. Las Tesis expõe e
protege a gente, Berna expõe e explora os outros.

Fig. 8: Uma das muitas manifestações com a canção "Un violador en tu camino". Foto Aton, 2019.

Mas Ginástica da Pele não é um disparate em sua carreira. Ali está presente o aspecto triunfal de
muitos outros de seus trabalhos, a mesma sensibilidade pelas tragédias sociais. Voluntariosamente
ali discursa com boa intenção em falar da dor dos outros, pelos outros, nos espaços do outro. Há
muito tempo cita a violência urbana, o Estado e o Poder como temas de suas intervenções na rua.
Está interessada em imagens fortes e quase apelativas, chocantes. “Berna Reale é uma das artistas
mulheres mais importantes no atual cenário contemporâneo do Brasil, sendo reconhecida
internacionalmente como uma das principais expoentes da prática da performance no país” 7. Ela é
semi-ignorante sobre os assuntos que elege trabalhar, muito por isso rotulo sua prática de
surrealismo: ela sonha as conformações nefastas do poder militar-senhorial-estatal brasileiro mas
sem ter consciência do próprio papel que desempenha e do alcance disso. Dada a proeminência
que a artista conquistou desde uma década no maisntream de arte brasileira, eu fiquei me
7
Portifólio de Berna Reale. Disponível em 10/01/2020
[https://nararoesler.art/usr/library/documents/main/69/gnr-berna-reale-portfolio.pdf]
perguntando como foi que ela chegou até aqui? Minha resposta é que, além da habitual má
consciência em relação às desigualdades sócio-regionais que influem em nossos julgamentos de
valor dos artistas, houve muita gente que, como diz o provérbio, bateu palmas para ver doido
dançar, em especial, curadores: pois são os curadores que recompensam certas produções em
detrimento de outras. E muitos outros no circuito de arte como eu que, vendo seu trabalho
criticável apenas virei meu rosto, e, deixei passar.

Para escrever esse artigo acessei o portifólio da artista e algumas de suas entrevistas. Meu plano
era, após criar uma polêmica em torno de sua última performance, me voltar para antigos
trabalhos seus e mostrar que as contradições e equívocos de hoje pré-existiam há muito tempo,
mesmo em seus sucessos de elogios. Entretanto creio não ter mais tempo para compor o texto de
forma detalhada. No entanto proporei quase uma colagem de um trecho do seu portifólio, uma fala
sua sobre o mesmo trabalho, e, um texto retirado de um contexto completamente alheio, de um
psicanalista e doutor em filosofia chamado Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco em um programa de
televisão, no qual apresenta o termo Necropolítica, cunhado por Achille Mbembe. Deixo para
leitor(a) que tire suas próprias conclusões se o termo surrealismo necropolítico foi bem esboçado.

Em Ordinário, Berna recolhe com suas mãos e transporta em um carrinho similar ao


de
Pedreiros cerca de 40 ossadas de vítimas anônimas de homicídios no violento bairro
de Jurunas em Belém. Esses restos mortais são de pessoas dadas como
desaparecidas geralmente encontrados por agentes policiais em cemitérios
clandestinos e levados para depósitos, diante da ausência de reclamação de
exames de DNA. Em seu traje negro e minimalista, Berna encarna a morte em sua
mais estereotipada e horripilante forma. Uma figura ordinária num local comum
das metrópoles brasileiras.8

8
Idem.
Fig. 8: Ordinário, Berna Reale, 2013.

Interesse pela violência: Estou sempre representando os dois lados, porque os dois
lados chamam a atenção. Não só a vítima, mas também o cara que tem o poder, o
cara que censura. Ele também é um elemento importante. Às vezes eu me visto do
papel dele para provocar uma reflexão. E, às vezes, eu me visto do papel da vítima,
como aquela mulher que empurra os ossos dos cadáveres (Ordinário, 2013). Eu
estou ali como aquela pessoa, aquela mãe, aquela mulher, aquela filha que
empurra aqueles ossos. Ali eu estou como vítima de uma ação de uma sociedade.
Quando eu estou em cima de um cavalo vermelho (Palomo, 2012), eu estou como o
poder que oprime, que censura.9

Como assim? Se às vezes sou A e em outras vezes sou B, quer dizer que não sou “sempre” A e B ao
mesmo tempo, a não ser sob uma abordagem psicológica muito sutil, o que não parece ser vocação
da artista. Ou se está no papel da morte “estereotipada”, ou da vítima da morte, ou do parente da
vítima... : são posições dolorosamente antagônicas. As afirmações da artista são vagas e
escorregadias mas grandiloquente. “Berna recolhe com suas mãos”, há que se completar: mãos
privilegiadas e autorizadas de perita criminal ao acesso rotineiro do necrotério público. Sinto a
falta de que nem uma palavra sobre a história dos desaparecidos do último Regime Militar (1964-
1985) tenha sido mencionada, sem referência à mais conhecida ação de Arthur Barrio com suas
9
REALE, Berna. “A violência é alimentada pelo governo”, diz a artista Berna Reale em passagem por Caxias do
Sul, participou da aula inaugural do curso de artes na UCS. (02/04/2018). [Entrevista concedida a] Diego
Adami. Pioneiro, Caxias do Sul. Disponível em 10/01/2020: [http://pioneiro.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-
tendencias/noticia/2018/04/a-violencia-e-alimentada-pelo-governo-diz-a-artista-berna-reale-em-passagem-
por-caxias-do-sul-10212415.html]
Trochas Ensanguentadas (em Belo Horizonte, 1970, também ao lado de um parapeito de um
córrego canalizado), nada que aponte para uma arqueologia do presente: o carro com os mortos
aparecem como que ex nihilo.

Eu tenho utilizado o termo necro-governamentalidade, termo técnico, justamente


para enfatizar essa dimensão positiva ou produtiva da necropolítica. Em que
aspecto? Eu diria em dois aspectos. Em primeiro lugar, a produção de cadáveres
não identificados e não reclamados, os chamados cadáveres desconhecidos, que
são ainda produzidos em larga-escala, os cadáveres desconhecidos não aparecem,
eles não existem; todos nós temos identidade, todos nós temos nome. Então, que
existam cadáveres não identificados, isso é uma produção do poder. O poder
produz certos corpos sem nome, o poder produz corpos cuja identidade é não ter
identidade, essa é uma produção. Uma segunda produção é o que tenho discutido
como um efeito de melancolização geral da população. Isto é, certos setores cujos
mortos não podem ser chorados, certos setores cujos mortos desaparecem, certos
setores sociais cujas mortes não tomam nenhuma proporção na sociedade, esses
grupos, em alguns casos, ou alguma dessas pessoas podem se identificar com uma
posição melancólica, isto é, com uma posição de quem já não tem mais nada a fazer
contra esse poder, uma posição de alguém que perdeu algo, que não sabe o que
perdeu, que não pode simbolizar o que perdeu, que não pode dizer nada sobre o
que perdeu, e que resta a ela se identificar com essa perda e portanto se converter
em uma forma de subjetividade passiva e silenciosa. 10

Sem conclusão:

NÃO ACREDITE EM CONTOS DE FARDAS, Grafiti em muro de Paraisópolis, São Paulo.

Segundo a ONU, desde a Reabertura Política no Brasil (1985), o país vive a sua maior crescente de
autoritarismo. A performance Ginástica da Pele, com toda a rigidez e ordem formal (mistura de
parada militar com desfile de prisioneiros) acabou por nos deixar longe de um aspecto muito
importante do exercício do terror racial por parte do Estado. Ele não acontece de forma
estritamente organizada e legalizada, transparente à luz do dia; o trabalho de Berna impede a
revelação do descontrole dentro das estruturas de controle. Por exemplo, em Paraisópolis (São
Paulo/SP) ficamos sabendo que os chamados de emergência à rede do SAMU (Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência) naquela fatídica madrugada foram cancelados pelo Corpo de
Bombeiros, pois lhes foi informado que o atendimento estava sendo feito pela PM, não obstante 9
mortos e 12 feridos. Moradores relataram ainda que não houve a presença de peritos legistas
lançando dúvidas sobre manipulação das cenas dos crimes. O princípio de desordem dentro da
ordem fica por ser pensado, quem vigia quem vigia? Em segundo ponto, fica-se por ser imaginado a
razão de tanto ódio, truculência e censura, medo de quê está por baixo de toda essa violência?
Qual é o alvo de tanta repressão? O alvo é a felicidade brotando da pobreza sem autorização, o
prazer, o lazer e a recreação barulhenta de quem não devia nem ser notado. Os jovens negros de
periferia que não estavam dormindo em casa nem indo à igreja orar, fora da hora de trabalho e de
estudo; que encontravam amizades e o respeito dos iguais, encontravam a música, o sexo, as

10
FRANCO, Fábio Luís Ferreira Nóbrega. Necropolítica, entenda o que é a política da morte. Rede TVT,
Programa Vire e Mexe. Disponível em 10/01/2020: [https://www.youtube.com/watch?v=w5Ebmemh2Nk]
drogas; o êxtase dos corpos. A desobediência, a vida, a experiência. O que vem, o fluxo. Mas esse
não era um texto para louvar o que bem merece.

Ps.: Eu tenho as imagens em maior resolução, em uma pasta aqui comigo.

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