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Estudos Literários:

Gêneros, Identidades,
Etnias e Representações
Prof.a Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza

Indaial – 2020
1a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2020

Elaboração:
Prof.a Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

SO729e

Souza, Marilsa Aparecida Alberto Assis

Estudos literários: gêneros, identidades, etnias e representações.


/ Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.

276 p.; il.

ISBN 978-85-515-0447-5

1. Estudos literários. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 869.909

Impresso por:
Apresentação
Prezado acadêmico! Neste momento, inicia-se uma nova etapa
de sua formação profissional em torno da construção de conhecimentos
relacionados aos estudos literários. No caminho trilhado até aqui, você já fez
muitas descobertas acerca da importância da literatura. Compreendeu que o
acesso a ela permite o desenvolvimento de uma gama de conhecimentos que
perpassam por aspectos linguísticos, pela educação estética e pelo contato
com diferentes saberes e culturas.

Além disso, já percebeu que desde a Antiguidade a literatura é uma


forma de expressão de sentimentos, anseios, aspirações e ideologias. Assim, o
saber literário permite a formação de um sujeito mais crítico e reflexivo, ou seja,
trata-se de uma importante ferramenta de formação e educação do ser humano.

Neste livro didático, especificamente, serão abordados temas


referentes a gêneros, identidades, etnias e representações. Além de ampla,
trata-se de uma temática bastante presente nas discussões contemporâneas e
no dia a dia da escola. Dessa forma, os estudos que iniciamos a partir de agora
pretendem propiciar uma reflexão analítica e crítica acerca da Literatura
enquanto fenômeno social, histórico, cultural, político e ideológico, capaz de
influenciar o modo de pensar e agir das pessoas.

O livro didático está dividido em três unidades, sendo a primeira


intitulada Relações de gênero e literatura. Inicialmente, discutiremos o conceito
de gênero e como as questões relacionadas a essa temática estão presentes no
cotidiano escolar. Também veremos como as questões de gênero são abordadas
na literatura, de forma geral, bem como em algumas obras específicas.

Na unidade denominada Raça, etnia, diversidade cultural e literatura,


trataremos da diversidade cultural e suas implicações no contexto
educacional. Faremos uma reflexão sobre a literatura pós-colonial e
entraremos em contato com a literatura africana, indígena e de imigrantes.
Por fim, na terceira unidade, intitulada Literatura, leitura e identidade na
contemporaneidade, teremos a oportunidade de pensar a identidade do leitor
contemporâneo frente à era digital. Também discutiremos a ciberliteratura e
os novos suportes de leitura.

Como você pode perceber, os assuntos a serem tratados neste livro


didático são extremamente oportunos e pertinentes ao contexto educacional
atual. Espera-se que por meio destes estudos seja possível ampliar o debate,
alargar horizontes e aprimorar sua formação em torno das questões que
envolvem o respeito à diversidade, tendo como viés os estudos literários.

III
Ao término de cada unidade, você também encontrará uma lista
de referências bibliográficas, composta por autores e autoras com os quais
dialogamos na tessitura do texto. São estudiosos — alguns mais antigos,
outros mais recentes — que vêm fomentando o debate acerca dos temas
trabalhados. À medida do possível, e quando você achar oportuno, busque
essas referências para que possa ampliar o olhar sobre a temática estudada.

Prof.a Marilsa Aparecida Alberto

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro


que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá
contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares,
entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

VI
Sumário
UNIDADE 1 – RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA...............................................................1

TÓPICO 1 – REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO..................................................3


1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................3
2 GÊNERO E MOVIMENTO FEMINISTA............................................................................................4
3 COMPREENDENDO O CONCEITO DE GÊNERO.........................................................................6
4 ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: COMPREENDENDO O CONCEITO DE GÊNERO
E SUAS IMPLICAÇÕES ........................................................................................................................8
5 RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESPAÇO ESCOLAR E INTERVENÇÃO DOCENTE..............14
6 GÊNERO GRAMATICAL E LINGUAGEM INCLUSIVA.............................................................21
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................25
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................26

TÓPICO 2 – LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE LEITORAS E LEITORES...........29


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................29
2 A INTERFACE ENTRE A LITERATURA E A REALIDADE SOCIAL .......................................30
3 A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA..............................................................................................33
4 QUESTÕES DE GÊNERO NAS NARRATIVAS INFANTIS E JUVENIS...................................39
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................49
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................50

TÓPICO 3 – REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA


LITERATURA BRASILEIRA...........................................................................................53
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................53
2 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM CLARICE LISPECTOR..................................................54
3 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM LYGIA BOJUNGA..........................................................63
4 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM MARINA COLASANTI.................................................69
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................74
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................77
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................................78

UNIDADE 2 – RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA...........................................................83

TÓPICO 1 – DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO.....................................................................................85


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................................85
2 A DIVERSIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR..............................................................................86
3 COMPREENDENDO O CONCEITO DE CULTURA E ETNOCENTRISMO ..........................88
4 A DIVERSIDADE CULTURAL E A CONSTRUÇÃO DAS DIFERENÇAS...............................94
5 A DIVERSIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR ...........................................................................101
6 A EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DAS LEIS nº 10.639/2003 E Nº 11.645/2008.........................103
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................106
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................107

VII
TÓPICO 2 – A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS.............................................113
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................113
2 COLONIALISMO, ETNOCENTRISMO E EUROCENTRISMO...............................................113
3 PÓS-COLONIALISMO .....................................................................................................................117
4 DESCOLONIZAÇÃO, LITERATURA E CRÍTICA PÓS-COLONIAL......................................122
5 CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA E ESTUDOS PÓS-COLONIAIS .....................................126
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................127
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................128

TÓPICO 3 – LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES.............................131


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................131
2 LITERATURA AFRICANA................................................................................................................131
2.1 JOSÉ LUANDINO VIEIRA . .........................................................................................................135
2.2 PEPETELA.......................................................................................................................................138
2.3 AGUALUSA ...................................................................................................................................142
2.4 PAULINA CHIZIANE...................................................................................................................145
2.5 MIA COUTO...................................................................................................................................148
3 LITERATURA INDÍGENA................................................................................................................153
3.1 YAGUARÊ YAMÃ..........................................................................................................................157
3.2 DANIEL MUNDURUKU..............................................................................................................160
3.3 LITERATURA DE IMIGRANTES.................................................................................................166
3.3.1 Tatiana Salem Levy . .............................................................................................................167
3.3.2 Milton Hatoum .....................................................................................................................171
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................175
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................179
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................180

UNIDADE 3 – LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE


NA CONTEMPORANEIDADE................................................................................183

TÓPICO 1 – LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL......................................................185


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................185
2 UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA LEITURA ......................................................................186
2.1 CULTURA, LEITURA E LETRAMENTO DIGITAL..................................................................192
3 A ESCOLA NA ERA DIGITAL.........................................................................................................197
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................201
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................202

TÓPICO 2 – LITERATURA NA ERA DIGITAL...............................................................................205


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................205
2 SUPORTES DE ESCRITA AO LONGO DA HISTÓRIA.............................................................205
3 CIBERLITERATURA, A LITERATURA NA ERA DIGITAL.......................................................212
4 NARRATIVAS E POESIAS DIGITAIS............................................................................................215
4.1 TRISTESSA, DE MARCO ANTONIO PAJOLA ........................................................................216
4.2 INANIMATE ALICE, DE KATE PULLINGER ...........................................................................217
4.3 UM ESTUDO EM VERMELHO, DE MARCELO SPALDING..................................................218
4.4 DOIS PALITOS, DE SAMIR MESQUITA....................................................................................219
4.5 MINICONTOS COLORIDOS, DE MARCELO SPALDING......................................................219
4.6 POESIA MULTIMÍDIA .................................................................................................................221
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................225
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................226

VIII
TÓPICO 3 – LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES, .........................................................229
ESPAÇOS E SUPORTES........................................................................................................................229
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................229
2 CARACTERÍSTICAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA.....................230
3 CONHECENDO ALGUNS AUTORES DA LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA................................................................................................235
3.1 RUBEM FONSECA.........................................................................................................................236
3.2 FERNANDO BONASSI.................................................................................................................238
3.3 ADRIANA LUNARDI....................................................................................................................240
4 A ESCOLA E A FORMAÇÃO DE LEITORES NA CONTEMPORANEIDADE ....................243
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................245
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................255
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................256

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................259

IX
X
UNIDADE 1

RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender e discutir o conceito de gênero e suas implicações no


contexto educacional;

• analisar como as questões de gênero são abordadas nas obras literárias;

• identificar a representatividade e a representação feminina na literatura


brasileira;

• discutir aspectos relacionados à representatividade e à representação


feminina na literatura brasileira.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

TÓPICO 2 – LITERATURA, GÊNERO E FORMAÇÃO DE LEITORAS E


LEITORES

TÓPICO 3 – REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA


NA LITERATURA BRASILEIRA

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Os assuntos abordados neste primeiro tópico fazem parte de uma pauta
bastante atual, quando diversos setores da sociedade têm debatido questões de
gênero, respeito às diferenças e conquista de novos espaços pelas mulheres. É
possível que neste momento você esteja se perguntando: qual é a relação do
docente de Língua Portuguesa e Literatura com essas discussões?

Primeiramente é preciso compreender que a sala de aula é, por excelência,


espaço da diversidade, no qual é possível encontrar uma pluralidade de
expressões. Saber lidar com essa diversidade de forma ética e responsável é um
desafio para todos que resolveram dedicar-se ao magistério.

Por esse motivo, concordamos com a professora Maria Eulina Pessoa de


Carvalho ao afirmar que “gênero atravessa as relações escolares e interessa a
educador/as. Atravessa as relações sociais e interessa a todas as pessoas. Então
é preciso estudar e entender gênero, sua construção e suas implicações para o
desenvolvimento humano e para a vida coletiva” (CARVALHO, 2000, p. 19).

Além disso, é preciso ter em mente que, mesmo que o corpo docente adote
uma postura de não trabalhar diretamente com questões relacionadas a gênero em
sala de aula, essa temática emerge naturalmente no contexto escolar. A propósito,
considerando que profissionais que trabalham com a Língua Portuguesa e a
Literatura têm a linguagem como principal ferramenta de trabalho, é oportuno
ressaltar que ela se constitui em um instrumento poderoso no processo de construção
do gênero, uma vez que o ser humano tende a incorporar esse conceito por meio
do aprendizado de discursos que são produzidos a partir de padrões socialmente
determinados como sendo inerentes à constituição feminina ou masculina.

Por hora, este primeiro tópico irá retomar, inicialmente, um pouco da história
do movimento feminista, didaticamente dividido na Primeira, Segunda e Terceira
Onda Feminista. A seguir, será abordado o conceito de gênero e suas implicações
práticas no cotidiano de homens e mulheres e, finalmente, faremos alguns
apontamentos sobre como as questões de gênero se manifestam no espaço escolar,
dando algumas pistas sobre o trabalho que pode ser realizado em sala de aula.

3
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

2 GÊNERO E MOVIMENTO FEMINISTA


Vamos iniciar nossa conversa sobre gênero fazendo uma pequena
retrospectiva histórica. Provavelmente, você deve ter ouvido bastante essa
palavra ultimamente, visto que ela tem estado em evidência tanto na mídia como
nos discursos que norteiam as políticas públicas do país. Entretanto, o conceito
de gênero não é recente, tendo sido incorporado às discussões pertinentes às
Ciências Sociais desde a década de 1970. Isso mesmo! Embora para muitas pessoas
possa parecer um conceito novo, há aproximadamente cinquenta anos diversas
pesquisas, dos mais diversos campos do saber, vêm tratando de estudos sobre
esse tema. De acordo com a definição encontrada em Barreto, Araújo e Pereira
(2009, p. 60), gênero é um

[...] conceito formulado nos anos 1970 com profunda influência do


pensamento feminista. Ele foi criado para distinguir a dimensão
biológica da dimensão social, baseando-se no raciocínio de que
há machos e fêmeas na espécie humana, no entanto, a maneira de
ser homem e de ser mulher é realizada pela cultura. Assim, gênero
significa que homens e mulheres são produtos da realidade social e
não decorrência da anatomia de seus corpos.

Como você pôde perceber neste pequeno conceito, as discussões em torno


desse assunto surgiram no bojo do movimento feminista, organização de cunho
político e social em defesa da igualdade de direitos, oportunidades e tratamento
entre homens e mulheres. É importante ressaltar que o movimento feminista não
surgiu nos anos 1970. A partir da Revolução Francesa (1789), que foi embasada
nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, as mulheres começaram
a tomar consciência das desigualdades sociais às quais eram expostas. A partir
de então as reflexões em torno dessas diferenças entre homens e mulheres foram
intensificando-se, passando por três momentos distintos, denominados “ondas
feministas”. Veja, a seguir, as principais características dessas três fases:

• A Primeira Onda feminista ocorreu no final do século XIX e início do século


seguinte. Destacou-se, nesse momento, o movimento sufragista, que lutava
pela garantia do direito ao voto das mulheres. Tal movimento já vinha
ocorrendo na Inglaterra e nos Estados Unidos, com destaque para a escritora
Mary Wollstonecraft, que desde 1792 já escrevia livros e manifestos em defesa
do voto feminino. Interessante, não é? No final do século XVIII ela já clamava
sobre os direitos das mulheres na obra Vindication of the rights of women,
traduzida livremente por Nísia Floresta, com o título Os direitos das mulheres e as
injustiças dos homens (ZINANI, 2009). No contexto da Primeira Onda feminista
foi notório, no Brasil, o envolvimento da bióloga Bertha Lutz que fundou, em
1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, com o objetivo de lutar
pela extensão de direito de voto às mulheres, entre outras pautas.
• A Segunda Onda feminista perdurou entre os anos de 1960 a 1980, com a
intensificação da luta pela igualdade social e de direitos e contra toda forma
de opressão, além das discussões acerca da liberdade sexual, maternidade e
reprodução. Nesse momento, o movimento foi bastante influenciado pelas

4
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

ideias de Simone de Beauvoir, que em 1949 havia publicado o livro O Segundo


Sexo, no qual ela reflete sobre a inferiorização feminina, inaugurando um novo
modelo de pensamento acerca da mulher na sociedade moderna. Nesta obra,
fica evidente o pensamento existencialista da autora por meio da célebre frase
“Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 9). Observe que
essa frase está estritamente relacionada ao conceito de gênero apresentado no
início deste tópico, que enfatiza que a maneira de ser homem e ser mulher é
mediada pela sociedade e pela cultura, e não pela anatomia dos corpos. De
acordo com Zinani (2011, p. 412), “essa obra foi um marco no pensamento
feminista, discutindo a questão da mulher através de vários ângulos: da
biologia, da psicanálise, do materialismo histórico, a fim de demonstrar como
a realidade feminina se constitui como o outro e quais as consequências desse
posicionamento”. Para Silva (2007, p. 2), o ganho concreto para as mulheres,
decorrente da Segunda Onda feminista, foi “[...] a emergência da questão de
gênero na agenda governamental e a consequente implementação de política
públicas direcionadas para as mulheres, principalmente, na área de combate à
violência e na atenção à saúde”.
• A Terceira Onda feminista iniciou-se a partir dos anos 1990, tendo como
particularidade a busca de total liberdade de escolha pelas mulheres. Na
pauta do movimento feminista destacam-se questões referentes à igualdade
salarial entre homens e mulheres, igualdade de participação política, combate
ao assédio e à violência contra a mulher, libertação de padrões de beleza
culturalmente impostos, entre outros. Também é importante observar que no
contexto da Terceira Onda surgiu o termo interseccionalidade, utilizado para
referir-se a marcadores sociais da diferença que se interagem, potencializando
cenários de desigualdades sociais e hierarquizações. Trata-se, por exemplo,
das diversas formas de opressão que uma mesma mulher pode sofrer quando
as questões de gênero se interseccionam com outros marcadores, como idade/
geração, raça/etnia, classe social, dentre outros (HENNING, 2015). Conforme
apontado por Zinani (2011, p. 413),

[...] a Terceira Onda apresenta uma pauta de reivindicações mais


ampla do que o grupo da Segunda Onda, uma vez que engloba a
teoria queer, a conscientização da negra, o pós-colonialismo, a teoria
crítica, o transnacionalismo, entre outros. Aponta como aspecto
relevante a autoestima sexual, uma vez que a sexualidade é também
uma modalidade de poder. Feministas marginalizadas, anteriormente,
contribuem para estabelecer a identidade dessa onda que acredita ser
a contradição e a negociação das diferenças uma das características
mais significativas do feminismo contemporâneo.

Como você deve ter percebido, essas ondas mostram que as


mulheres vêm se organizando na história de diversas maneiras e contextos,
sendo que cada momento tem suas pautas, demandas, reinvindicações, interesses
e conquistas. Em meio a esses movimentos surgiu a crítica literária feminista,
assunto que será abordado mais adiante, ainda nesta unidade.

5
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

DICAS

Quer saber mais sobre a Primeira Onda FIGURA – AS SUFRAGISTAS


Feminista que tinha, dentre suas pautas, o direito ao
voto feminino? Assista ao filme As sufragistas (2015),
ambientado na Inglaterra do início do século XX,
quando o movimento feminista lutava pelo direito de
voto e melhores condições de vida para as mulheres.

FICHA TÉCNICA
Título: Suffragette (Original)
Ano produção: 2015
Dirigido por: Sarah Gavron
Duração: 106 minutos
Gênero: Biografia-Drama-História FONTE: http://www.ipvc.pt/ese-
Países de Origem: Reino Unido da Grã-Bretanha e geed-cinema-as-sufragistas.
Irlanda do Norte Acesso em: 7 set. 2019.

3 COMPREENDENDO O CONCEITO DE GÊNERO


Dando continuidade a nossa conversa sobre gênero, é importante ter uma
compreensão clara acerca desse conceito. Afinal, o que é gênero? Para responder
a essa indagação é pertinente estabelecer a diferença entre as terminologias gênero
e sexo, observando que são dois conceitos distintos, embora sejam algumas vezes
utilizados equivocadamente como sinônimos.

Entende-se por sexo as distinções biológicas entre homens e mulheres,


ou seja, ao classificar os seres humanos a partir desta categoria, faz-se uma
separação entre eles de acordo com as diferenças impressas na anatomia de
seus corpos. O sexo, portanto, é construído biologicamente e está relacionado
à constituição dos órgãos genitais, que apontam se determinada pessoa, ao
nascer, é macho ou fêmea.

O conceito de gênero, por sua vez, é muito mais amplo, devendo ser
compreendido na perspectiva da construção das identidades. De acordo com
Scott (1989, p. 3),

[...] o “gênero” parece ter aparecido primeiro entre as feministas


americanas que queriam insistir no caráter fundamentalmente social
das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição ao
determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou
“diferença sexual”. O gênero sublinhava também o aspecto relacional
das definições normativas das feminilidades.

6
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

Louro (1997), por sua vez, explica que as questões de gênero estão
relacionadas à subjetividade, bem como a aspectos históricos, sociais e culturais
que diferenciam homens e mulheres. Por esse motivo, pessoas que viveram em
épocas diferentes ou que tiveram contato com culturas diferentes podem ter
comportamentos totalmente distintos, mesmo tendo o mesmo formato de órgão
genital. E o que isso significa, na prática?

Significa que a forma de se portar, de homens e mulheres, corresponde a


aprendizagens socioculturais adquiridas ao longo da vida. Em outras palavras,
o modo de ser, pensar e agir das pessoas não é determinado apenas pelo órgão
sexual com o qual elas nasceram. Trata-se de uma dimensão que se constrói
progressivamente, de acordo com o meio em que se vive, com os exemplos que se
tem, com os discursos que se ouve.

Um exemplo simples de como os discursos circulantes podem moldar o


comportamento das pessoas é o dito popular Homem que é homem não chora. Uma
pessoa que ouve constantemente essa frase, no meio em que vive, mesmo sem
perceber vai incorporando essa crença ao longo da vida, passando a acreditar
que o não chorar é uma atribuição natural do ser homem, e não algo que lhe foi
ensinado, mesmo que de forma indireta.

Considerando então que o gênero é incorporado por meio da vivência de


comportamentos, é importante lembrar que estes são predefinidos pela própria
sociedade que, imbuída pelo senso comum, acredita que as diferenças entre
homens e mulheres se devem unicamente a motivos naturais. Dessa forma, a
própria sociedade é quem dita as regras daquilo que é ou não pertinente a homens
e mulheres, rapazes e moças, meninos e meninas.

O papel que a biologia desempenha na determinação de


comportamentos sociais é fraco — a espécie humana é essencialmente
dependente da socialização. Contudo, de acordo com o senso
comum, as condutas de homens e mulheres originam-se de uma
dimensão natural (os instintos) inscrita nos corpos com que cada
indivíduo nasce. Acredita-se, com frequência, que existe um tipo
de personalidade ou padrão de comportamento para cada um dos
sexos. Na cultura ocidental, supõe-se que o masculino seja dotado de
maior agressividade e o feminino de maior suavidade e delicadeza
(BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 45).

O conceito de gênero, portanto, foi cunhado com o intuito de mostrar que


o sexo anatômico não é suficiente para definir as formas de comportamento e as
condutas humanas, ressaltando a importância e a influência dos aspectos sociais
e culturais no decorrer deste processo de construção da identidade do sujeito.

7
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Em uma sociedade patriarcal, por exemplo, ser representado como


homem pressupõe os atributos de força, virilidade e insensibilidade,
uma vez que, desde a mais tenra infância, a grande maioria dos
homens é advertida de que “homem não chora”, e de que qualquer
demonstração de sentimentos pode gerar dúvidas em relação à
masculinidade. Por outro lado, ser representada como mulher
pressupõe a existência de valores tradicionalmente considerados
“femininos”, tais como a maternidade, a empatia, a sensibilidade, a
solidariedade e o sentimentalismo (BELLIN, 2011, p. 6).

Percebe-se, assim, que características que muitas vezes são atribuídas ao sexo
com que a pessoa nasceu, são, na verdade, resultantes de aprendizagens construídas
ao longo da vida. Portanto, a diferença sexual não é a única variável na construção da
identidade dos sujeitos, pois nesse processo entram em cena os valores e as normas
de conduta que configuram as representações culturais e sociais.

4 ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: COMPREENDENDO O


CONCEITO DE GÊNERO E SUAS IMPLICAÇÕES
Até aqui você já compreendeu o conceito de gênero e situou-o
cronologicamente, a partir da contextualização histórica do movimento feminista.
Agora, vamos refletir sobre as implicações sociais decorrentes das diferentes
concepções em relação às questões de gênero. Para isso, é oportuno retomar o
pensamento de Louro (1997, p. 20-21) ao afirmar que:

O argumento de que homens e mulheres são biologicamente


distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que
é complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel
determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento final,
irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma
linguagem “científica”, a distinção biológica, ou melhor, a distinção
sexual, serve para compreender — e justificar — a desigualdade social.

Conforme observado nesse trecho, a principal implicação desta concepção


que limita as diferenças entre homens e mulheres a aspectos unicamente biológicos
é que ela passa a servir de justificativa para a preservação e a reprodução das
desigualdades de gênero, que são muitas em nossa sociedade. Esta posição
também é defendida nos Parâmetros Curriculares Nacionais, formulados pelo
MEC, que na década de 1990 já diziam o seguinte sobre o assunto:

O conceito de gênero diz respeito ao conjunto das representações


sociais e culturais construídas a partir da diferença biológica dos
sexos. Enquanto o sexo diz respeito ao atributo anatômico, no conceito
de gênero toma-se o desenvolvimento das noções de ‘masculino’
e ‘feminino’ como construção social. O uso desse conceito permite
abandonar a explicação da natureza como a responsável pela grande
diferença existente entre os comportamentos e os lugares ocupados
por homens e mulheres na sociedade. Essa diferença historicamente
tem privilegiado os homens, na medida em que a sociedade não tem

8
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

oferecido as mesmas oportunidades de inserção social e exercício de


cidadania a homens e mulheres. Mesmo com a grande transformação
dos costumes e dos valores que vêm ocorrendo nas últimas décadas,
ainda persistem muitas discriminações, por vezes encobertas,
relacionadas ao gênero (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 45).

A referência, no trecho que você acabou de ler, a diferentes lugares


ocupados por homens e mulheres na sociedade, faz alusão à distinção,
historicamente engendrada, da rua enquanto espaço masculino e do lar enquanto
espaço feminino. Muito embora as formas de apropriação do espaço pelas
mulheres venham se modificado progressivamente, os discursos que permeiam
as relações de gênero ainda são baseados em relações hegemônicas de poder, que
podem ser percebidas por meio de diversos estereótipos e preconceitos.

Essa delimitação de espaços nos permite reportar à Grécia Antiga, quando


a cidadania era exercida somente pelos homens que participavam das decisões
políticas e das atividades relativas ao mercado na praça principal da polis, que
representava o espaço público. Às mulheres era negado o direito de participar das
decisões que aconteciam nesse espaço, ficando responsáveis por cuidar da oikos,
que era a unidade social que comportava os membros da família. Observa-se,
porém, que também no espaço da oikos as mulheres não tinham voz ativa, pois a
família era nuclear e seguia uma rígida hierarquia na qual o poder se concentrava
na figura masculina paterna.

Assim, historicamente o espaço público, simbolizado pela rua, é


identificado como sendo um espaço tipicamente masculino. Durante muitos
séculos, o homem assumiu o papel de provedor, saindo de casa para as ruas em
busca de renda para o sustento familiar, enquanto à mulher cabia a execução
de tarefas domésticas. Este tipo de relação social de gênero naturalizou-se com
o passar dos tempos, distinguindo o papel familiar de cada um: o homem, por
ser o produtor/provedor apropriou-se do espaço público incorporando-se no
mercado de trabalho e à mulher coube o papel reprodutivo biológico, no âmbito
domiciliar. Conforme Bourdieu,

a divisão do trabalho entre os sexos concede ao homem a política,


como lhe concede o exterior, a praça pública, o trabalho assalariado
fora de casa, etc., ao passo que vota a mulher ao interior, ao trabalho
obscuro, invisível, e também à psicologia, ao sentimento, à leitura de
romances, etc. (BOURDIEU, 2003, p. 21).

Atualmente, nem todas as famílias se enquadram nesse modelo de família


nuclear e essa distinção de papéis, segundo o gênero, vem se modificando.
Entretanto, os reflexos desse modelo familiar patriarcal que perdurou por
tanto tempo na sociedade continua influenciando o processo de organização
familiar e na educação das crianças. Assim, ainda é comum, em muitas famílias,
encontrar situações em que tanto o homem como a mulher trabalham fora para o
provimento da casa, mas, ao término da jornada de trabalho, enquanto o homem
descansa, a mulher cuida da organização do lar. Também é comum encontrar

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UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

mães que ensinam às filhas desde cedo a arrumarem a casa, mas isentam os filhos
desta aprendizagem. Da mesma forma, diversas famílias liberam as crianças do
sexo masculino para brincarem de bola ou bicicleta na rua, enquanto as do sexo
feminino brincam de casinha dentro de casa. E tem mais:

A divisão do “espaço público e privado” pode ser percebida, por


exemplo, quando se quer insultar uma mulher. Ela é chamada de
“mulher da rua”, “vadia”, “puta”, em oposição à “mulher da casa”,
“mulher ou moça de família”, “santa”, “do lar”. A oposição “rua x casa”
é particularmente interessante para percebermos como os gêneros
masculino e feminino estão associados a cada uma dessas instâncias,
conformando a divisão entre o mundo da produção (masculino) e o da
reprodução (feminino) (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 55).

Essa forma de pensar o espaço da rua, levando em consideração a distinção


dos gêneros, reflete-se em várias instâncias da vida social. Vamos pensar, por
exemplo, nas relações de gênero presentes nas situações que envolvem o trânsito.
A relação do homem com o automóvel é construída socialmente, desde a infância,
quando o quarto dos meninos é decorado com automóveis e os presentes mais
comuns que recebem são carrinhos, pistas de corrida, skates e jogos eletrônicos
que remetem à ideia de velocidade e competitividade, comuns no ambiente do
trânsito. Além disso, são encorajados a brincar em espaços abertos e a ter um
comportamento que prioriza a força, a valentia e a independência. Os estímulos
recebidos, portanto, reforçam seu pertencimento ao espaço público e estimulam
a criatividade e a agressividade. Esses pequenos gestos refletem a preparação do
menino para ser um futuro motorista a usufruir, quando adulto, do espaço público.

As meninas, por outro lado, são orientadas a ter um comportamento


mais sensível, frágil, dependente, dócil e passivo. Os brinquedos que recebem
(bonecas, panelinhas e outros utensílios domésticos) reforçam seu pertencimento
ao ambiente doméstico e seu envolvimento com situações que indiquem o
cuidado com os filhos ou com o lar. Não é de se estranhar, portanto, que quando
alguém vê uma mulher tendo alguma conduta inadequada no trânsito, repita a
frase “Vai pilotar fogão!”, cujo significado remete à exclusão do espaço público e
sua devolução ao universo doméstico.

A forma de apropriação do espaço pela mulher vem se modificando


através dos tempos, muito embora o discurso social que rege as condutas de
gênero tenha se perpetuado de maneira a reproduzir relações hegemônicas nas
quais as mulheres sempre ocupam uma posição inferior em relação ao homem.
Assim, se por um lado a mulher vem conquistando espaço no trânsito, por
exemplo, por outro lado essa conquista não é legitimada nos mecanismos dos
discursos sociais, que continuam propagando que lugar de mulher é na cozinha,
pilotando fogão. Vale lembrar aqui que a utilização do automóvel pela mulher,
além de significar a conquista do espaço da rua, significa também a conquista de
espaço no mercado de trabalho, realizando funções que até pouco tempo eram
consideradas típicas do universo masculino (SOUZA, 2010).

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TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

Além disso, até o início do século XX, as relações assimétricas entre homens
e mulheres eram respaldadas pela ideologia da maternidade, que, segundo Rago
(2001), reduzia as mulheres à esfera privada, lugar considerado natural da esposa/
mãe/dona de casa. Entretanto, é importante observar que somente as mulheres
pertencentes a famílias mais abastadas ficavam restritas ao espaço doméstico,
podendo dedicar seu tempo unicamente à maternidade. Mulheres pobres
sempre trabalharam fora de casa, o que corrobora com a ideia de que diferentes
desigualdades, quando interagidas simultaneamente — neste caso, o fato de ser
pobre e ser mulher — geram tratamentos desiguais. O fato de trabalhar fora,
entretanto, não significa reconhecimento. Segundo Fonseca (2001, p. 517),

[...] ironicamente, apesar de ser evidente que em muitos casos a mulher


trazia o sustento principal da casa, o trabalho feminino continuava a
ser apresentado pelos advogados e até pelas mulheres como um mero
suplemento à renda masculina. Sem ser encarado como profissão, seu
trabalho em muitos casos nem nome merecia.

Além desse caráter de invisibilidade, a mulher trabalhadora era duplamente


discriminada: primeiro pela sociedade, pois em vez de ser admirada por ser
boa trabalhadora, como o homem em situação parecida, a mulher com trabalho
assalariado tinha de defender sua reputação contra a poluição moral, uma vez que o
assédio sexual era lendário (FONSECA, 2001), e também em relação ao salário, visto
que, em geral, na divisão do trabalho, as mulheres ficavam com as tarefas menos
especializadas e mal remuneradas; os cargos de direção e de concepção, como os de
mestre, contramestre e assistente, cabiam aos homens (RAGO, 2001).

A partir da segunda metade do século XX, o movimento feminista


conseguiu colocar em discussão o tema da desvalorização da mulher,
expressamente manifestado na divisão sexual do trabalho, na organização
política e no ordenamento jurídico social. À custa de muita persistência e luta
foi possível pensar em uma nova configuração social por meio de legislações e
políticas públicas voltadas para a valorização da mulher. A partir da década de
1960, o movimento pela saúde da mulher passou a defender o direito ao acesso à
contracepção, que possibilitou a autonomia das mulheres na escolha do momento
para engravidar, criando assim maiores possibilidades de inserção e permanência
no mercado de trabalho. Tal situação pode ser considerada uma conquista, pois,

[...] penetrar na esfera pública era um velho anseio por longo tempo
vedado às mulheres. Significava uma conquista, possibilitando-
lhes, segundo Hannah Arendt, assumir sua plena condição humana
através da ação política, da qual, por longo tempo, permaneceram
violentamente excluídas. Passavam as mulheres a garantir sua
transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não
pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente
para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida dos
homens mortais, aos quais acrescentamos, também, a das mulheres
mortais (SOIHET, 2002, p. 116).

Não restam dúvidas de que foram muitas as conquistas obtidas pelas


mulheres ao longo da história. Entretanto, a luta continua, pois existem muitas
demandas a serem atendidas. Reflita a seguir sobre algumas delas:

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UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

• Em décadas não muito distantes, o mercado de trabalho era majoritariamente


masculino, sendo que a mulher não tinha muitas perspectivas em relação à
carreira profissional. Muito embora esse quadro tenha mudado e a mulher
apresente uma presença significativa nesse setor, ainda existem alguns
impasses que não foram solucionados, como, por exemplo, salários inferiores,
mesmo realizando funções semelhantes às dos homens e menor quantidade de
mulheres em cargos de chefia e liderança.
• Atividades relacionadas ao cuidado como cuidar do lar, das crianças, dos idosos
ou dos doentes, por exemplo, quase sempre são atribuídas às mulheres. Além
da carga horária diária dedicada ao trabalho remunerado, cabe às mulheres
a realização destas atividades de cuidado que acabam trazendo implicações
em relação à participação em condições de igualdade no mercado de trabalho,
restringindo as oportunidades de acesso aos recursos econômicos, culturais,
sociais e políticos. O fato de a mulher engravidar e amamentar faz com que
quase toda a totalidade do trabalho reprodutivo fique sob sua responsabilidade,
levando algumas delas a abandonarem a carreira profissional para cuidar dos
filhos, fato que gera uma dependência econômica em relação aos homens. Ou
então, nota-se um excesso de trabalho devido ao acúmulo da jornada laboral
remunerada com os afazeres domésticos. Em suma, a conquista do mercado
de trabalho pela mulher trouxe, em contrapartida, impactos na saúde física e
mental, incluindo o sentimento de culpa por achar que não está desempenhando
bem essas funções relacionadas ao cuidado.
• Em relação à participação política, o ato de votar só foi conquistado pelas
mulheres brasileiras em 1932 devido à intensa luta do movimento sufragista
feminino. Entretanto, a representatividade feminina nos cargos eletivos ainda
hoje é bastante pequena, muito embora as mulheres correspondam a quase
52% do eleitorado brasileiro. O fato de as mulheres não serem devidamente
representadas no sistema político implica, para alguns estudiosos, no
enfraquecimento da elaboração e execução de políticas públicas que priorizem
as questões de gênero.

Conforme já mencionado, essas diferenças entre os gêneros são construídas


culturalmente, sendo que o papel esperado de cada pessoa já é delimitado desde o
nascimento, sendo que tais expectativas continuam ao longo da vida. A partir do
momento em que se sabe o sexo do bebê, aqueles que fazem parte de seu círculo
de relações (pai, mãe, família, escola e sociedade em geral) passam a ensinar, de
forma direta ou indireta, determinados comportamentos e modos de conduta, ou
seja, a todo momento as crianças são bombardeadas com estímulos que reforçam
a divisão de papéis entre os diferentes gêneros.

Não se trata de negar as diferenças físicas e biológicas entre homens e


mulheres, que comprovadamente existem. Pretendemos, sim, refletir se essas
diferenças justificam formas desiguais de tratamento. Além disso, vale lembrar
que uma das consequências mais graves da desigualdade de gênero é a violência
de gênero, que é aquela proveniente de preconceitos e da desigualdade instaurada
entre mulheres e homens.

12
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

[...] a despeito de todos os avanços e conquistas das mulheres


na direção da equidade de gênero, persiste entre nós essa forma
perversa de manifestação do poder masculino por meio da expressão
da violência física, sexual ou psicológica, que agride, amedronta
e submete não só as mulheres, mas também os homens que não se
comportam segundo os rígidos padrões da masculinidade dominante
(BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 74).

A questão do gênero em interface com a violência é um fenômeno


social presente no cotidiano. Trata-se de um fenômeno complexo cujas raízes
envolvem questões sociais, econômicas, políticas e culturais, estando diretamente
relacionado com as desigualdades sociais e as relações de gênero. Os alarmantes
e assustadores números referentes à violência de gênero em nosso país apontam
para a necessidade de ações multisetoriais e multidisciplinares, ações estas que
não poderiam isentar a participação da escola, entendida como espaço educativo
por excelência.

DICAS

Com certeza, você já ouviu falar na Lei Maria da Penha, decretada em 2006,
com o objetivo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. O nome Maria da Penha é uma homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes,
farmacêutica e bioquímica que sofreu violência doméstica durante 23 anos de casamento,
tendo ficado paraplégica após ser vítima de dupla tentativa de feminicídio pelo marido. Seu
caso é representativo da violência doméstica sofrida por inúmeras mulheres em nosso país.
Para saber mais sobre a história dessa mulher você pode:

• Acessar o site do Instituto Maria da Penha e ler sobre sua história de vida: http://www.
institutomariadapenha.org.br/.
• Ler o livro Sobrevivi... posso contar, escrito por ela mesma.
• Assistir ao documentário O silêncio das inocentes (2010), dirigido por Ique Gazzol.

FIGURA – SOBREVIVI... FIGURA – SILÊNCIO DAS INOCENTES


POSSO CONTAR

FONTE: http://www.ameliapt.com.br/
FONTE: https://www.saraiva.com.br/ sesc-tv-exibe-documentario-violencia-
sobrevivi-posso-contar-3065914/p>. domestica-mulher-dia-2812/.
Acesso em: 7 set. 2019. Acesso em: 7 set. 2019.

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UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Nesse subtópico, você esteve em contato com o conceito de gênero e suas


implicações e compreendeu o contexto em que o termo começou a ser utilizado. Pelos
estudos realizados até aqui você deve ter percebido que o conceito de gênero parte de
uma perspectiva relacional, isto é, os estudos relacionados às mulheres e aos homens
devem ser “definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão de qualquer um
pode existir através de estudo inteiramente separado” (SCOTT, 1989, p. 4).

Essa perspectiva relacional também é explorada por Bellin (2011, p. 7),


que explica que “o gênero é também a representação de uma relação, a relação
de pertencer a uma classe. A noção de gênero constrói uma relação entre uma
pessoa e outras pessoas previamente constituídas como classe, não se referindo a
um indivíduo isolado e sim a uma relação social”.

Para Matos e Soler (1997, p. 97) “a categoria gênero procura destacar que
os perfis de comportamento feminino e masculino se definem um em função do
outro. Esses perfis se constituem social, cultural e historicamente num tempo,
espaço e cultura determinados”. Tendo compreendido o conceito de gênero sua
abordagem enquanto categoria relacional, no próximo subtópico trataremos das
questões de gênero em um espaço específico que é o ambiente escolar.

5 RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESPAÇO ESCOLAR E


INTERVENÇÃO DOCENTE
Conforme vimos até aqui, até o momento de ser enviada para a escola,
a criança já incorporou diversos comportamentos relativos às questões de
gênero aprendidos na convivência familiar e em outros grupos sociais dos quais
porventura ela faça parte; já percorreu um caminho social no qual conviveu com
diferentes pessoas e teve contato com diferentes modelos de homem, de mulher
e de família e já começou a construir suas referências de gênero tendo como base
essas pessoas com as quais conviveu, os discursos que ouviu, os comportamentos
que assimilou.

Ao ingressar na escola, e durante os vários anos de permanência


na instituição, amplia-se consideravelmente o leque de relacionamentos da
criança/adolescente, e a escola passa a ser um novo local de aprendizagem
de comportamentos e de construção (ou desconstrução) de estereótipos e
preconceitos adquiridos em relação às questões de gênero.

O processo de socialização que ocorre no ambiente escolar, tanto na


infância quanto na adolescência, tem importância fundamental na construção da
identidade do sujeito, sendo que a escola tem significativa responsabilidade no
processo de formação de meninos e meninas, bem como de moças e rapazes, ao
desnaturalizar as diferenças de gênero e possibilitar um ambiente propício ao
debate acerca das desigualdades decorrentes dessas diferenças.

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TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

Conforme já mencionado no decorrer desta unidade, a imagem que


construímos acerca do outro no que tange às questões de gênero são construídas
a partir dos modelos que a própria sociedade nos oferece. Em outras palavras,
é a sociedade, e não os aspectos biológicos, que determina as normas de
comportamento, bem como as possibilidades e os limites de cada sujeito.

À medida que estamos convencidos de que as diferenças entre os gêneros


não estão inscritas nos corpos, mas são decorrentes de aprendizagens construídas
desde o nascimento, é possível, em contrapartida, desconstruí-las por meio do
processo educativo, conforme sugerido por Moreno (1999, p. 28) ao afirmar que

se os seres humanos se comportassem unicamente a partir de seus


impulsos biológicos, se as condutas consideradas masculinas e
femininas fossem espontâneas, naturais e predeterminadas, não seria
necessário educar tão cuidadosamente todos os aspectos diferenciais;
bastaria deixar que a natureza atuasse por si mesma.

A escola, portanto, enquanto espaço de socialização e interação, possibilita


o processo de construção de homens e mulheres enquanto sujeitos sociais. Nesse
espaço, os sujeitos não somente são influenciados como também ajudam a
construir o próprio meio no qual estão inseridos. A escola, portanto, não é uma
instância neutra. Mesmo que haja um silenciamento por parte da instituição ao
optar por não trabalhar diretamente com questões que envolvam diversidade e
gênero, este silenciamento, por si só, já produz um efeito sobre a realidade dos
sujeitos inseridos na dinâmica escolar.

Em outras palavras, mesmo que a escola não aborde em seu currículo,


seja de forma transdisciplinar ou interdisciplinar, temática que envolva a
desigualdade entre os gêneros, o currículo oculto manifesto no ambiente escolar
tem muito a dizer. Sobre o currículo oculto, que pode ser definido como um
conjunto de normas, princípios e valores transmitidos de forma tácita no ambiente
escolar, Giroux (1986, p. 70) propõe três bases essenciais que permitem melhor
compreender sua fundamentação:

As escolas não podem ser analisadas como instituições removidas


do contexto socioeconômico em que estão situadas; as escolas são
espaços políticos envolvidos na construção e controle do discurso, dos
significados e das subjetividades; os valores e crenças do senso comum
que guiam e estruturam a prática escolar não são universais a priori, mas
construções sociais baseadas em pressuposições normativas políticas.

Concordando com os fundamentos apresentados por Giroux (1986),


é possível afirmar a existência de uma relação intrínseca entre a instituição
educativa e os sistemas social, cultural e econômico, que perpassa pelo conceito
do currículo oculto. Por meio da investigação desse currículo é possível proceder
a uma análise do que ocorre por entre os muros escolares.

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UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Desse modo, a instituição escolar pode acabar reproduzindo, mesmo


que de forma sutil ou velada, práticas androcêntricas já enraizadas em uma
cultura patriarcal que não dá espaço para questionamentos acerca de um modelo
diferente de relações entre homens e mulheres pautados em princípios de
respeito, igualdade e justiça, sem fortalecer modos de conduta, pensamentos e
atitudes discriminatórias.

O currículo oculto pode se manifestar, por exemplo, por meio da prática


do bullying no interior da escola e consequente posicionamento da equipe escolar
frente a essa situação. A forma como a escola lida (ou deixa de lidar), em seu
dia a dia, com essas manifestações de violência expressa, de forma indireta, seus
valores e princípios. Sendo uma prática bastante recorrente no ambiente escolar:

O bullying é um problema generalizado em escolas de todo o mundo.


Trata-se de uma violência intencional e repetitiva, praticada por um
ou mais estudantes e dirigida a outros, manifestando uma relação
de desigualdade de poder. O bullying exerce efeito negativo sobre a
escolarização, a saúde e o desenvolvimento psicossocial, atingindo,
além de suas vítimas, dos próprios agressores e das testemunhas. Essas
agressões podem ser praticadas de forma reativa, como defesa contra
alguma provocação ou agressão sofrida, ou de forma proativa, como uma
ação deliberada e planejada, com o propósito de atingir algum objetivo,
não necessitando de estímulos para se efetivar (SILVA et al., 2019, p. 2).

Em se tratando especificamente da violência de gênero, o que muitas


vezes acontece na escola é que

a discriminação a determinados grupos considerados frágeis ou passíveis


de serem dominados (mulheres, homens que não manifestam uma
masculinidade violenta etc.) é exercida por meio de apelidos, exclusão,
perseguição, agressão física. Além disso, a depredação de instalações ou
atos de vandalismo são algumas das manifestações públicas da violência
por parte daqueles que querem se impor e se afirmar pela força de seu
gênero (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 76).

Ainda sobre o currículo oculto que permeia o ambiente educacional, é
interessante observar que a própria estrutura escolar é uma forma silenciosa
de ensino que pode ser considerado um “elemento curricular que proporciona
aprendizagem de um conjunto de valores, normas, conteúdos e estímulos que
não são determinados pelo currículo formal [...]” (SÁ, 2007, p. 131-132). Não é raro
adentrar em salas de aula e constatar, pela própria disposição das carteiras, uma
separação evidente entre alunos e alunas. Essa divisão fica mais patente quando
se observa as brincadeiras e os jogos organizados durante o recreio, nos quais
é possível notar uma expressa demarcação de espaços e territórios. Conforme
Barreto, Araújo e Pereira (2009, p. 105), “esses territórios são construídos
utilizando-se diferentes artifícios originados nos conceitos preestabelecidos de
masculino e feminino e de relações de poder”.

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TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

Assim é possível constatar, no pátio escolar, atividades consideradas


exclusivas de meninas (geralmente são atividades mais calmas), de meninos
(atividades mais agitadas) ou outras em que ambos podem participar (atividades
que não requerem habilidades e movimentos próprios “de meninos” ou “de
meninas”). A cada ano que passa, essas delimitações de territórios vêm se
apresentando menos rígidas, sendo comum encontrar, por exemplo, meninas
jogando futebol. Cabe notar, porém, que quando a situação é inversa (meninos se
ocupando de atividades tradicionalmente consideradas femininas, como brincar
de boneca, por exemplo), o estranhamento das pessoas é mais exacerbado. Tal
situação está relacionada à hierarquização dos gêneros, que atribui valores
àquilo que é pertinente ao masculino e ao feminino. Por esse motivo, é frequente
a desvalorização de meninos ou rapazes que realizam atividades do universo
feminino, consideradas atividades inferiores.

[...] as atividades típicas do pátio são potentes expressões de como


as concepções de gênero orientam a maneira como alunos e alunas
interagem entre si, expressam seus corpos e aproveitam de forma
diferenciada e desigual, por toda a infância e até a idade adulta, o elenco
de movimentos, jogos e brincadeiras possíveis. Portanto, a observação
dessas atividades pode evidenciar como se dá o aprendizado da
separação. Em última análise, jogos e brincadeiras são capazes de
fornecer dados necessários à elaboração de atividades de lazer que
remetam às competências a serem desenvolvidas igualmente por
meninos e meninas. As brincadeiras seriam de todos que quisessem
reinventá-las cotidianamente. As quadras poderiam ser ocupadas
segundo diferentes objetivos que não apenas o desenvolvimento
da agilidade e da força. Esta seria uma das variadas maneiras de
escolarizar crianças e adolescentes visando a perseguir a igualdade
racial, de gênero e de orientação sexual como conteúdos curriculares
de orientação interdisciplinar, abarcando inclusive disciplinas como
matemática, português geografia e língua estrangeira (BARRETO;
ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 106).

Conclui-se, assim, que pela simples observação das atividades rotineiras
realizadas no recreio é possível perceber evidências de um currículo oculto
que potencializa as diferenças no espaço escolar por meio da sedimentação de
práticas que hierarquizam os gêneros e reforçam modelos estereotipados de
masculinidade e feminilidade.

Esse modelo também pode ser percebido no interior das salas de aula, nas
quais é possível encontrar dois tipos de demarcação dos lugares em conformidade
com as expectativas esperadas de comportamento conforme a distinção entre os
gêneros. Por julgarem que as meninas costumam ser mais ordeiras e disciplinadas
que os meninos, é comum, nas escolas, a disposição de alunos e alunas de forma
alternada, com o intuito de manter o controle da disciplina em sala de aula. Em
alguns casos, docentes preferem manter meninos e meninas em grupos separados.

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UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Nesta ambiência, espera-se que as meninas sejam mais atentas, organizadas,


caprichosas, asseadas, disciplinadas e tenham mais propensão à submissão e
à obediência. Como consequência desses padrões de comportamento, espera-
se que tenham um melhor rendimento em sala de aula. Quanto aos meninos,
espera-se que façam mais bagunça, falem alto, perturbem a ordem e a disciplina
da sala. Não é exigido dos meninos o mesmo zelo e capricho com a letra, os
cadernos e outros materiais escolares quando comparado com o que se espera
das meninas. A inversão desses modelos estereotipados quase sempre provoca
um estranhamento da parte do corpo docente que geralmente é mais propenso a
tolerar atitudes desrespeitosas dos meninos, agindo de forma mais intransigente
quando esse tipo de comportamento parte de uma menina. Como consequência:

o rendimento das estudantes é favorecido de diferentes maneiras, pois


a escola beneficia-se das distintas habilidades produzidas por outras
instâncias de socialização. O papel de “boa aluna que ajuda os colegas”
é uma dessas habilidades. As meninas devem ser aquelas que servem
e cuidam, que estão à disposição para ajudar e atender às necessidades
das outras pessoas. Estes são afazeres e posturas relacionados à
feminilidade, segundo o modo com que tradicionalmente as relações
de gênero foram construídas e organizadas em nossa sociedade. Vale
notar que isto não corresponde a uma subordinação das estudantes,
uma vez que aceitar tais demandas dá a elas a oportunidade de
angariarem prestígio ao se relacionarem, em um patamar diferenciado,
com as/os professoras/es e com os/as demais estudantes. Fazer com
que as estudantes assumam tarefas de organização e cuidado expressa
como a tradicional socialização feminina opera na escola de modo a
reforçar e a perpetuar uma determinada divisão sexual do trabalho,
na qual as mulheres e os homens devem se ocupar de diferentes
obrigações. Nesta divisão, as meninas e as mulheres são as obedientes
cuidadoras, que trabalham duro e asseguram a ordem, sem subvertê-
la ou questioná-la. Para meninos e homens, resta corresponder à
demanda por comportamentos rebeldes e agressivos, a fim de ser
reafirmado um modelo específico de masculinidade (BARRETO;
ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 96).

A propósito, essa divisão sexual do trabalho pode acabar influenciando


os jovens na escolha profissional. Cursos cujos atributos envolvem o ensinar e
o cuidar - que são, tradicionalmente, associados ao gênero feminino – são, na
maioria das vezes, preenchidos por mulheres, como, por exemplo, Enfermagem,
Pedagogia, Serviço Social, Terapia Ocupacional, dentre outros. Em contrapartida,
alguns cursos são, de acordo com o senso comum, mais favoráveis aos homens,
como as Engenharias, o Direito, a Informática, a Administração.

Gradualmente, esse quadro tem mudado, com mulheres buscando


profissões predominantemente masculinas e vice-versa. Entretanto, as
escolhas não são aleatórias; essa suposta propensão natural para a escolha de
determinadas profissões em conformidade com a divisão sexual do trabalho é
fruto de expectativas criadas e fabricadas ao longo do tempo, no convívio social,
inclusive durante o processo de escolarização.

18
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

E
IMPORTANT

Por trás das palavras...

Mesmo que de forma sutil, pela linguagem é possível estabelecer diferenças e promover
desigualdades, pois os discursos produzidos na sociedade costumam demarcar, de forma
direta ou indireta, os lugares dos gêneros. Veja, a seguir, uma lista de ditos populares carregados
de valores metafóricos que reproduzem estereótipos e preconceitos referentes à mulher.

Mulher no volante, perigo constante.


Mulher magra sem ser de fome, foge dela que te come.
Mulher de cego, para que se enfeita?
Mulher boa, ave rara.
Mulher não casa com sapo porque não sabe qual é o macho.
Mulher sabida é mulher perdida.
Entre marido e mulher nunca metas a colher.
Ele não sabe porque bate, mas ela sabe porque apanha.
Mulher é como bife, só amacia quando apanha.
Mulher na janela não cozinha nem mexe panela.
Espelho reflete sem falar, a mulher fala sem refletir.
Segredo em mulher é pão em boca de pobre.

Qual destes ditos populares você já conhecia? Conseguiu entender o significado de


cada um deles? O que eles revelam? Você saberia levantar outros ditos populares para
completar esta lista?

As reflexões apresentadas até aqui mostraram quanto a escola pode ser um


local de reprodução das desigualdades de gênero, que pode acontecer de forma
consciente ou inconsciente ou até mesmo por meio da omissão, concordando aqui
com as palavras de Moreno (1999, p. 74) ao asseverar que “não intervir equivale
a apoiar o modelo existente”.

A proposta deste subtópico é trazer reflexões sobre como você pode
melhorar esse quadro de desigualdade de gênero reproduzido ao longo do
processo de escolarização de crianças e jovens, tendo em mente a perspectiva
freiriana de que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p. 67).

A promoção da igualdade de gênero e do respeito à diversidade


perpassa pelo ambiente escolar e, portanto, deve ser objeto de políticas públicas
de formação docente, seja ela inicial ou continuada. Também deve incorporar
o Projeto Pedagógico das instituições educativas e de seus respectivos cursos,
que devem primar por um ambiente educacional no qual as diferenças entre os
gêneros sejam repensadas e, no mínimo, desnaturalizadas.

Não há dúvidas de que lidar com estas questões constituiu um desafio à prática
docente, pois faz-se necessário desconstruir conceitos e preconceitos que fazem parte
de sua própria constituição identitária. Como bem coloca Gomes (2004, p. 13),

19
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

[...] em face de uma forma de pensar e de agir, de uma lógica que


nos é proposta por alguém que fala a partir de uma experiência outra,
diferente da que estamos prontos a compreender, podemos, mesmo
sem perceber, reconduzir o que ouvimos ao que já conhecemos. É
somente nessa interação com o outro, nas reiteradas verificações
do que não compreendemos (quando temos tanta pressa em já ter
entendido tudo) e no exercício paciente de continuar a procurar
entender, que avançamos no conhecimento das diversas formas que
a realidade social pode assumir para os diferentes sujeitos envolvidos.

Assim, é de extrema importância o processo de formação no qual o corpo


docente possa continuamente repensar e reavaliar prática, considerando que
“pensar o mundo – nomear o mundo [...] é agir sobre ele” (GOMES, 2004, p. 15).
Para propiciar o debate em torno da diversidade é importante que professoras e
professores aprendam a interrogar sua posição frente à diversidade tão presente
no universo escolar. Endossamos aqui as palavras de Carrara (2009, p. 15), que
afirma que:

Ao discutir tais questões com os/as professores/as brasileiros/as, busca-


se contribuir, mesmo que modestamente, com a escola em sua missão
de formadora de pessoas dotadas de espírito crítico e de instrumentos
conceituais para se posicionarem com equilíbrio em um mundo de
diferenças e de infinitas variações. Pessoas que possam refletir sobre o
acesso de todos/as à cidadania e compreender que, dentro dos limites
da ética e dos direitos humanos, as diferenças devem ser respeitadas
e promovidas e não utilizadas como critérios de exclusão social e
política. Precisamos, portanto, ir além da promoção de uma atitude
apenas tolerante para com a diferença, o que em si já é uma grande
tarefa, sem dúvida. Afinal, as sociedades fazem parte do fluxo mais
geral da vida e a vida só persevera, só se renova, só resiste às forças
que podem destruí-la através da produção contínua e incansável de
diferenças, de infinitas variações. As sociedades também estão em
fluxo contínuo, produzindo a cada geração novas ideias, novos estilos,
novas identidades, novos valores e novas práticas sociais.

Trata-se, portanto, de um processo de reconstrução de sentidos e


práticas que não deixa de ser um desafio para o professorado, que precisa estar
devidamente instrumentalizado para ter um posicionamento crítico e equilibrado
frente a uma realidade infinitamente plural.

20
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

6 GÊNERO GRAMATICAL E LINGUAGEM INCLUSIVA


Para concluir esse tópico que traz algumas reflexões acerca do conceito
de gênero e educação, é importante fazermos algumas ponderações sobre gênero
social e gênero gramatical, uma vez que este último é trabalhado diretamente em
sala de aula por docentes de Língua Portuguesa.

Primeiramente, é preciso ter em mente que, apesar de o senso comum


veicular a ideia generalizada de que o gênero gramatical está relacionado à noção
de sexo, tal correlação nem sempre é verdadeira, muito embora o gênero tenha
como função “parear as palavras entre masculino e feminino” (KOLODNY, 2016,
p. 12). Em decorrência dessa função, de natureza contrastiva, “toda língua dotada
desta categoria gramatical possui no mínimo dois gêneros” sendo que, no caso
da Língua Portuguesa, “o sistema reduz-se à presença de dois gêneros formais:
masculino (não marcado) e feminino (marcado)” (KOLODNY, 2016, p. 13).

O uso dos termos masculino e feminino para referir-se ao gênero das palavras
costuma gerar confusão entre a categoria gramatical e a característica biológica dos
sexos. Para evitar tal equívoco, os gramáticos Pasquale e Ulisses esclarecem:

[...] observe que definimos gênero como um fato ligado à concordância


das palavras em seu relacionamento linguístico: pó, por exemplo, é um
substantivo masculino pela concordância que estabelece com o artigo
o, e não porque se possa pensar num possível comportamento sexual
das partículas de poeira. Só faz sentido relacionar o gênero ao sexo
quando se trata de palavras que designam pessoas e animais, como os
pares professor/professora ou gato/gata. Ainda assim, essa relação não é
obrigatória, pois há palavras que, mesmo pertencendo exclusivamente a
um único gênero, podem indicar seres do sexo masculino ou feminino.
É o caso de criança, palavra do gênero feminino que pode designar seres
de dois sexos (CIPRO NETO; INFANTE, 2008, p. 218).

Levando em consideração a polissemia do termo – que detém significados


diferentes na literatura, na sociologia, na biologia, nas artes e na linguística –
é importante compreender que, enquanto categoria gramatical, o gênero opera
como divisor semântico que nem sempre está relacionado ao traço de sexo,
embora isso fique evidente quando se trata de substantivos animados, ou seja,
que designam pessoas ou animais.

Sobre a etimologia da palavra, sabe-se que ela é derivada do latim genus,


que originalmente significava tipo (KOLODNY, 2016). De acordo com Cipro Neto
e Infante (2008), a tipologia de gênero compreende as seguintes distribuições:
substantivos biformes, substantivos comuns de dois (ou comuns de dois
gêneros), substantivos sobrecomuns e epicenos, cujas definições e exemplos estão
apresentados no quadro seguinte:

21
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

QUADRO 1 - CLASSIFICAÇÃO DOS SUBSTANTIVOS

TIPOLOGIA DEFINIÇÃO EXEMPLOS


Substantivos que designam seres menina/menino
humanos e animais, apresentando gata/gato
Substantivos biformes
uma forma para o masculino e outra pomba/pombo
para o feminino. francês/francesa
Apresentam uma forma única para os
o agente/a agente
dois gêneros, sendo que a distinção
Substantivos comuns de o dentista/a dentista
entre a forma masculina e a forma
dois gêneros (uniformes) o colega/a colega
feminina é feita pela concordância
o jornalista/ a jornalista
com o artigo ou outro determinante.
o cônjuge
a criança
Substantivos de um único gênero que a testemunha
Substantivos sobrecomuns
se referem a seres humanos. a criatura
o indivíduo
a vítima
a águia
a baleia
Substantivos de um único gênero que a borboleta
Substantivos epicenos
designam animais e algumas plantas. o besouro
a palmeira
o mamoeiro

FONTE: Adaptado de Cipro Neto e Infante (2008, p. 218-221)

A classificação apresentada corrobora a ideia de que, na língua portuguesa,


a diferenciação de gênero nem sempre está relacionada à identificação de sexo
do substantivo, uma vez que apenas substantivos animados apresentarão esse
tipo de caracterização. Além disso, até mesmo em alguns casos de substantivos
animados essa diferenciação não é evidente, como se pode notar nos substantivos
sobrecomuns e epicenos nos quais palavras de gênero feminino podem fazer
referência a algum ser do sexo masculino e vice-versa (como exemplos temos
as palavras vítima e cônjuge, dentre os sobrecomuns, e as palavras cobra e jacaré,
dentre os epicenos).

Feito esse esclarecimento acerca da “incompreensão semântica”


(CÂMARA JR., 2004, p. 42), que envolve o estudo de gênero enquanto categoria
gramatical, é oportuno mencionar uma discussão recente na sociedade, tanto
no Brasil como em outros países, que originou estudos relacionados à linguagem
inclusiva e gênero, bem como a criação de diversos manuais voltados para uma
linguagem não sexista. Tais estudos defendem o uso de marcadores de gênero em
substituição ao uso do masculino genérico, entendido como:

[...] o uso do gênero gramatical masculino para denotar o gênero


humano (isto é, a espécie humana, incluindo homens e/ou mulheres).
O conceito de gênero não marcado, por sua vez, origina-se na escola
estruturalista e ainda ocupa um lugar de destaque nos estudos
linguísticos atuais como suporte teórico para a descrição do masculino
genérico (MÄDER, 2015, p. 17).

22
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

As pessoas que defendem uma linguagem inclusiva afirmam que o uso do


genérico masculino, aceito com naturalidade por parte expressiva da sociedade,
confere um caráter machista à linguagem. O Manual para o uso não sexista da linguagem,
por exemplo, elaborado pelo governo do Rio Grande do Sul, explica que:

Se a Língua Portuguesa apresenta os gêneros masculino e feminino, por


que não os usarmos quando falamos, escrevemos ou lemos? Por sua
origem, não se caracteriza como uma ferramenta de comunicação sexista,
mas sim a forma como a utilizamos faz com que haja discriminação
entre mulheres e homens. Da mesma forma que contribui para a
discriminação de gênero, a linguagem pode ser utilizada para reforçar
estereótipos impostos culturalmente. A linguagem sexista, utilizada
de forma irrestrita, impõe-nos que o masculino (homem) é empregado
como norma, ficando o feminino (mulheres) incluído como referência ao
discurso masculinizado (TOLEDO et al., 2014, p. 13).

Contrariando esse pensamento, significativo número de linguistas afirma


que a adoção desse tipo de linguagem demonstra desconhecimento de questões
linguísticas. Acerca desse assunto, Silva (2019) apresenta o pronunciamento da
Real Academia Espanhola (2005) que diz:

Em substantivos que designam seres animados, o masculino gramatical


é usado não apenas para se referir a indivíduos do sexo masculino,
mas também para designar a classe, ou seja, todos os indivíduos
da espécie, sem distinção de sexos. [...] consequentemente, nomes
masculinos, quando usados no plural, podem incluir ambos os sexos
em sua designação [...]. Apesar disso, nos últimos tempos, por razões
políticas, e não linguísticas, o costume de tornar esse uso comum, a
alusão de respeito a ambos os sexos está se espalhando [...]. Esquece-se
de que, na linguagem, se prevê a possibilidade de se referir a coletivos
mistos através do gênero gramatical masculino, possibilidade em que
não se visse intenção discriminatória, mas a aplicação da lei linguística
da economia expressiva [...] (SILVA, 2019, p. 25).

Concordando com o exposto pela Real Academia Espanhola, Silva (2019)


observa que muitas pessoas que acreditam agir de forma politicamente correta
ao utilizar, em seus discursos, formas do feminino e do masculino, acabam
incorrendo no equívoco de confundir gênero gramatical com sexo biológico,
conforme já descrito nesta seção. Muito embora linguistas e gramáticos renomados
defendam esse ponto de vista, ele não é um consenso entre todas as pessoas
da área. Mäder (2015, p. 24-25), por exemplo, defende que o uso do masculino
genérico, justificado pelo conceito de gênero não marcado, pode, “em nome
de uma suposta neutralidade, escamotear as relações de poder entre homens e
mulheres e contribuir para a manutenção de relações sexistas e opressivas”.

Nota-se, assim, que essa temática ainda demanda novos debates, de


caráter multidisciplinar, com o envolvimento de pessoas da área da linguística
e outros setores da sociedade. Por ora, é interessante uma leitura crítica das
propostas relacionadas à linguagem inclusiva que têm como propósito apresentar
estratégias para construção de uma linguagem mais equitativa.

23
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

E
IMPORTANT

É importante refletir como a linguagem institui e demarca


os lugares dos gêneros não apenas pela ocultação do
feminino, mas também pelas adjetivações diferenciadas que
são atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do diminutivo,
pela escolha dos verbos, pelas associações e pelas analogias
feitas entre os gêneros e determinadas qualidades, atributos
ou comportamentos. É importante escutar o que é dito
sobre os sujeitos, mas também perceber o não dito, aquilo
que é silenciado — os sujeitos que não são, seja porque não
podem ser associados aos atributos desejados, seja porque
não podem existir ou porque não podem ser nomeados
(BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 99).

De acordo com o texto apresentado, não é apenas por meio da ocultação do feminino que
as produções discursivas e linguísticas podem hierarquizar diferenças e gerar desigualdade.
Você concorda com essa afirmativa? Em caso afirmativo, consegue dar exemplos de
situações – que vão além das questões de marcadores de gênero – nas quais a prática
discursiva contribui para reforçar estereótipos e preconceitos sociais?

24
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Por meio do movimento feminista as mulheres vêm se organizando, ao longo


da história, lutando por diversas pautas acerca da condição da mulher na
sociedade.

• Sexo e gênero são termos diferentes, estando o primeiro ligado à anatomia do


indivíduo e o segundo a construções sociais.

• O gênero é construído ao longo da vida por meio da aprendizagem. Sendo


assim, as diferentes entre homens e mulheres são decorrentes da cultura,
situam-se no campo da subjetividade e estão relacionadas ao processo de
construção de identidade.

• Gênero e diversidade são temas inerentes ao espaço escolar, motivo pelo qual
profissionais de quaisquer disciplinas devem atentar para não reproduzirem
estereótipos e preconceitos em sala de aula.

• As obras literárias podem construir ou desconstruir preconceitos de gênero e


reforçar a desigualdade.

• A análise feita pela crítica literária feminista tem como foco o gênero da autoria
das obras literárias.

• A linguagem inclusiva tem como propósito apresentar estratégias para


construção de uma linguagem mais equitativa.

25
AUTOATIVIDADE

1 “Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, de fato, apenas homens e
mulheres, mas homens e mulheres de várias classes, raças, religiões, idades
etc. e suas solidariedades e antagonismos podem provocar os arranjos mais
diversos, perturbando a noção simplista e reduzida de ‘homens dominantes
versus mulher dominada’ [...]. Essas múltiplas identidades não podem, no
entanto, ser percebidas como se fossem ‘camadas’ que se sobrepõem umas
às outras, como se o sujeito fosse se fazendo ‘somando-as’ ou agregando-
as. Em vez disso, é preciso notar que elas se interferem mutuamente, se
articulam; podem ser contraditórias; provocam, enfim, diferentes ‘posições’.
Essas distintas posições podem se mostrar conflitantes até mesmo para os
próprios sujeitos, fazendo-os oscilar, deslizar entre elas — perceber-se de
distintos modos” (LOURO, 1997, p. 33 e 51).

O trecho que você acabou de ler foi retirado do livro Gênero, sexualidade e
educação: uma perspectiva pós-estruturalista, de Guacira Lopes Louro, importante
referência nos estudos sobre gênero em nosso país. Com base no que você
estudou até aqui, faça uma análise do trecho lido relacionando-o com o termo
interseccionalidade, cuja definição foi apresentada no decorrer da unidade.

2 (ENADE/2014 - LETRAS PORTUGUÊS LICENCIATURA)


As mulheres frequentam mais os bancos escolares que os homens, dividem
seu tempo entre o trabalho e os cuidados com a casa, geram renda familiar,
porém continuam ganhando menos e trabalhando mais que os homens.
As políticas de benefícios implementadas por empresas preocupadas em
facilitar a vida das funcionárias que têm criança pequena em casa já estão
chegando ao Brasil. Acordos de horários flexíveis, programas como auxílio-
creche, auxílio-babá e auxílio-alimentação são alguns dos benefícios oferecidos.

FONTE: <http ://www1.folha.uol.com.br>. Acesso em: 30 jul. 2013 (adaptado)

26
Considerando o texto e o gráfico, avalie as afirmações a seguir.

I- O somatório do tempo dedicado pelas mulheres aos afazeres domésticos


e ao trabalho remunerado é superior ao dedicado pelos homens,
independentemente do formato da família.
II- O fragmento de texto e os dados do gráfico apontam para a necessidade
de criação de políticas que promovam a igualdade entre os gêneros no
que concerne, por exemplo, a tempo médio dedicado ao trabalho e
remuneração recebida.
III- No fragmento de reportagem apresentado, ressalta-se a diferença entre
o tempo dedicado por mulheres e homens ao trabalho remunerado, sem
alusão aos afazeres domésticos.

É CORRETO o que se afirma em:


a) ( ) I, apenas.
b) ( ) III, apenas.
c) ( ) I e II, apenas.
d) ( ) II e III, apenas.
e) ( ) I, II e III.

3 (ENADE/2008 – CIÊNCIAS SOCIAIS)


As relações de gênero assumem formas diferentes em diferentes sociedades,
períodos históricos, grupos étnicos, classes sociais e gerações. Não obstante,
têm em comum a diferenciação entre homens e mulheres, apesar da imensa
variabilidade social da natureza da diferença. Um aspecto muito comum é
que a diferença de gêneros se associa à desigualdade de gênero, com homens
exercendo poder sobre as mulheres – alguns afirmam universalmente,
outros que quase universalmente.

FONTE: Sylvia Walby. Gênero. In: William Outhwaite e Tom Bottomore (Ed.). Dicionário do
pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 332.

O termo sociológico utilizado para conceituar a desigualdade estrutural de


gênero em nossa sociedade é:
a) ( ) Feminismo.
b) ( ) Liberalismo.
c) ( ) Patriarcado.
d) ( ) Homofobia.
e) ( ) Paternalismo.

27
28
UNIDADE 1
TÓPICO 2

LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE


LEITORAS E LEITORES

1 INTRODUÇÃO
Após estudar o conceito de gênero, entender o espaço escolar como
expressão da diversidade e compreender que por meio de seus discursos e práticas
docentes pode construir ou desconstruir estereótipos de gênero junto aos discentes,
vamos tratar especificamente de questões relacionadas a gênero e literatura.

Sabemos que a literatura é uma forma de expressão que permite a reflexão


sobre o ser humano, instaurando diálogos entre textos e leitores de diferentes
épocas e contextos. Por meio das obras literárias é possível identificar marcas
discursivas que permitem situar a escrita em um determinado momento histórico;
estas refletem, por sua vez, sua visão de mundo e sociedade.

Por outro lado, o texto literário desencadeia um processo de comunicação


com sujeitos-leitores, sendo capaz de provocar reflexões que contribuem para
a construção da identidade. Por meio da literatura a pessoa percorre caminhos
permeados de inúmeras sensações e emoções que unem o mundo imaginário e o
real, ocasionando a expansão e a transformação de sua visão de mundo, levando-a
a refletir, expor opiniões, cotejar o lido e a realidade vivida e, quem sabe, intervir
nessa realidade.

No caso específico das discussões de gênero, são inúmeras as obras


literárias — infantis, juvenis e do universo adulto — nas quais é possível perceber
as relações homem-mulher na sociedade. Tais textos contribuem para subsidiar
uma prática de ensino e aprendizagem comprometida com uma postura crítica
frente às diferentes situações de desigualdade e preconceito que permeiam as
relações sociais.

A inserção dessas obras no currículo escolar é uma forma de oportunizar


ao corpo discente reflexões sobre a condição histórica da mulher na sociedade, de
forma a desenvolverem a criticidade para que possam ser capazes de enxergar o
mundo de outra maneira e contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária.

No primeiro momento desse tópico retomaremos como a literatura pode


contribuir para as transformações das práticas sociais e traçaremos um olhar
panorâmico sobre as ideias fundamentais que orientam a crítica literária feminista.

29
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

A seguir, serão apresentadas algumas análises de obras literárias infantis e


juvenis, incluindo contos de fadas, com o intuito de subsidiar a abordagem das
questões de gênero em sala de aula por meio da literatura.

A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as


outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem,
decifrando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco
ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando
uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre
o outro, aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de
circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando
no tempo (CÂNDIDO, 1985, p. 74).

As palavras de Antônio Cândido que você acabou de ler condensam o


que iremos abordar a partir de agora: a literatura enquanto um sistema vivo de
obras capaz de agir sobre leitores e leitoras a partir do momento em que eles se
permitem mergulhar na tessitura do texto, interpretando-o, problematizando-o,
questionando-o e criticando-o.

Ao mesmo tempo analisaremos o texto literário como algo não fixo,


passivo, acabado, pois é na interação com o público leitor que o texto se completa.
Diante de uma mesma obra cada pessoa vivencia sentimentos diferentes, tem
reações diferentes e faz interpretações diferentes, ou seja, o ser humano não é
passivo nem fica indiferente diante do texto literário. Entendemos, portanto, que
a literatura pode contribuir no processo de formação do sujeito à medida que o
instiga a pensar criticamente, a expor opiniões, a realizar comparações entre o
lido e a realidade vivida.

2 A INTERFACE ENTRE A LITERATURA E A REALIDADE SOCIAL


Como você viu na unidade anterior, é importante que a escola promova
reflexões sobre as diferenças e preconceitos de gênero, contribuindo para
a desconstrução de estereótipos que invisibilizam e inferiorizam a mulher,
naturalizando situações de violência, seja ela física ou simbólica. Apesar das
mudanças e dos avanços obtidos pelas mulheres, principalmente devido à
luta dos movimentos sociais, ainda prevalece em nossa sociedade uma cultura
machista que interpreta o mundo pelo viés androcêntrico.

Embora diferentes no que se refere à anatomia e biologia, homens e


mulheres compartilham de sua humanidade, devendo primar por relacionamentos
equilibrados nos quais não haja espaço para o preconceito, a discriminação, a
hierarquização e, principalmente, a violência. Nesse contexto, qual seria o papel
da escola? Ela deve fechar os olhos para o problema e permitir a reprodução
da desigualdade ou garantir uma cultura escolar que lute pela efetivação dos
direitos humanos?

30
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

A escola é, por excelência, espaço de socialização e aprendizagem de


comportamentos, seja de forma direta ou indireta. Assim, em todas as disciplinas
escolares é possível introduzir a temática acerca das relações de gênero,
oportunizando momentos de reflexões e discussões que contribuam para aguçar
a criticidade do corpo discente em relação a esse assunto.

A literatura, por sua vez, é uma disciplina privilegiada, já que permite


a abordagem do tema por meio de uma infinidade de títulos que fornecem
elementos para a compreensão da relação homem-mulher na sociedade. Por meio
da leitura e reflexão das obras literárias é possível estimular o debate, conferindo
aos discentes o desenvolvimento da criticidade de forma que sejam capazes de
questionar a sociedade e combater as desigualdades que afetam não somente às
mulheres, mas a todos aqueles que estão associados ao universo feminino, como
os homossexuais e transgêneros.

Por esse motivo, é importante que você compreenda o poder da


literatura enquanto transformadora da sociedade, já que por meio dela as
pessoas são instigadas a refletir sobre o próprio cotidiano. As obras literárias
podem veicular paradigmas de comportamento que reforçam a ordem social
vigente ou desconstruir esse tipo de representação, dando voz e possibilitando
a identificação de quem as lê. A literatura, portanto, contribui para a formação
do sujeito, pois propicia situações em que o aluno pode pensar, emitir opiniões
e atuar frente a realidade.

Enquanto futuros professores e professoras de Língua Portuguesa e


Literatura, é importante que vocês compreendam como se dá a interface entre
a literatura e a realidade social. Abordaremos esse tema a partir de agora, tendo
como referência a proposição de alguns autores que há algum tempo já se detêm
sobre os estudos literários.

Rildo Cosson, por exemplo, ao apresentar suas reflexões acerca do lugar


da literatura na sociedade contemporânea, faz referência ao crítico literário
Itamar Even-Zohar, que afirma que a literatura deve ser concebida “não como
uma atividade isolada na sociedade, regulada por leis exclusivamente (e
inerentemente) diferentes de todo o resto das atividades humanas, mas sim como
um fator integral — frequentemente central e muito poderoso — entre essas
atividades” (EVEN-ZOHAR, 2005 apud COSSON, 2016, p. 48).

Além de endossar o pensamento de Even-Zohar, Cosson (2016) acredita


que a literatura vai além da promoção do encontro do púbico leitor com o texto. A
experiência da literatura em sala de aula – que é composta por uma comunidade
de leitores – permite um processo de compartilhamento de saberes e práticas,
ou seja, trata-se de uma experiência que permite a organização de um repertório
pessoal e coletivo, abrindo caminhos “que os levem para o futuro desejado, os
caminhos que dizem sobre o que se quer ser e como se quer ser humano, os
caminhos que mostram como construímos e devemos construir a nós e a nossas
comunidades” (COSSON, 2016, p. 64).

31
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Zinani e Santos (2002) reforçam a importância do papel da literatura


enquanto forma de compreensão da realidade e do aguçamento do espírito
crítico. Para elas, a experiência com a literatura permite que discentes melhorem
sua percepção de mundo e fiquem mais sensíveis aos problemas sociais, detendo
mais instrumentos para colaborarem na transformação da realidade.

Zilberman (2008) também contribui com essas reflexões ao apresentar o


ângulo individual e social que envolve a literatura e o ato de ler. Sob o ponto de
vista individual, a leitura literária constitui-se em uma atividade que permite ao
sujeito ampliar os horizontes e ultrapassar fronteiras, por meio de um processo
que envolve a imaginação e o intelecto. Pensando no ângulo social, a leitura
permite a socialização de experiências e encoraja o diálogo: “[...] não se trata
de uma atividade egocêntrica ou narcisista, se bem que, no começo, exercida
solitariamente; depois, aproxima as pessoas e coloca-as em situação de igualdade,
pois todos estão capacitados a ela” (ZILBERMAN, 2008, p. 17-18).

Antônio Cândido (2004), por seu turno, é contundente ao apresentar a


relação entre a literatura e os direitos humanos, afirmando que ao “dar forma aos
sentimentos e à visão do mundo”, a literatura “nos organiza, nos liberta do caos
e, portanto, nos humaniza”. Partindo dessa premissa, o autor alega que “negar
a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade”. Para ele, “a literatura
pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar
as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a
servidão, a mutilação espiritual” (CÂNDIDO, 2004, p. 186).

Concordando com as proposições apresentadas, é oportuno salientar


que a abordagem dessas questões em sala de aula deve estreitar as relações
entre público-leitor e o texto literário, fazendo com que a leitura deixe de ser
simplesmente um processo constituinte da escolarização, passando a configurar-
se como uma ação cultural. A propósito, as relações entre a leitura, a literatura
e a teoria literária em sala de aula também devem ser estreitadas, conforme
apresentado por Silva (2003, p. 514-515):

A própria natureza interdisciplinar do ato de ler que envolve


contribuições de diversas áreas. No caso da leitura literária, o ato de ler
é influenciado por estratégias cognitivas, linguísticas, metalinguísticas,
conhecimento do policódigo literário, noção de gênero literário, estilo
de época no qual o texto está inserido, enfim, um conjunto de noções
determinantes na interação do leitor com o texto; o fato de a significação
do texto literário ser construída a partir da participação efetiva do
receptor, o que torna evidente as relações dinâmicas entre a literatura e o
leitor; a teoria literária só existe em função da leitura e da literatura: esse
é outro aspecto a ser considerado quando se trabalha o texto literário em
sala de aula. A teoria literária deve estar presente na escola, subsidiando
a prática do professor, no sentido de ampliar concepções críticas sobre o
fazer literário e a recriação do texto pelo leitor, o que só ocorre no ato da
leitura. As relações entre leitura e literatura nem sempre são analisadas,
reavaliadas e praticadas como deveriam no contexto escolar. A leitura
– como atividade atrelada à consciência crítica do mundo, do contexto
histórico-social em que o aluno está inserido – ainda é uma prática que
precisa ser mais efetivada no espaço escolar.

32
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

Chama a atenção, no excerto lido, a necessidade ainda premente de


vincular a leitura à consciência crítica do mundo, dado o caráter privilegiado
da literatura enquanto ferramenta capaz de discutir e equacionar questões que
ainda não foram suficientemente debatidas acerca dos problemas sociais. Em se
tratando especificamente das questões de gênero, Zinani e Carvalho (2015, p. 13)
salientam que

[...] a crítica literária androcêntrica criou e consolidou importante


instrumental teórico para a análise literária que tem, tradicionalmente,
orientado esses estudos; outrossim, coube aos estudos literários
feministas desenvolverem um aparato teórico que possibilitasse uma
abordagem igualmente científica, mas que atendesse às especificidades
de uma literatura escrita e lida, a partir do ponto de vista da mulher.

Dada a importância da temática, trataremos, a seguir, da crítica literária


feminista, lembrando que, na esteira do movimento feminista, a literatura foi
um meio utilizado como forma de expressão de diversos artistas, especialmente
mulheres, que se utilizaram desse recurso como um modo de se posicionarem
frente aos desafios enfrentados.

3 A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA


A crítica literária feminista constitui-se em “um modelo conceitual de
questionamento da cultura dominante, mas também uma prática de leitura e
análise da produção de autoria feminina”, (CUNHA, 2012, p. 1). Isso significa
que, diferentemente da crítica literária tradicional, que você já estudou em outros
momentos do curso, a crítica feminista propõe um modelo de análise que se
detém sobre o gênero da autoria das obras literárias, sobre o gênero do público-
leitor e, consequentemente, sobre questões que buscam ressignificar o papel da
mulher enquanto produtora e consumidora de literatura.

A propósito, é oportuno ressaltar que o próprio ato de ler, a princípio, era


uma ação pertencente ao universo masculino, já que às mulheres era negado o
acesso à educação. No Brasil, desde o período colonial já circulavam discursos que
colocavam a mulher “em seu devido lugar”. Por meio de versinhos aparentemente
inocentes e divertidos como “Mulher que sabe muito é mulher atrapalhada, para
ser mãe de família, saiba pouco ou saiba nada”; “A mulher honrada deve ser
sempre calada”; e “Mulher que sabe latim não tem marido, nem bom fim”, nota-
se que a aprendizagem da leitura pela mulher não era considerada importante
porque as atividades a elas destinadas prescindiam do domínio dessa habilidade.

Por esse motivo, a educação feminina ocorreu tardiamente quando


comparada à educação dos homens. Ademais, no início, essa educação era voltada
somente à aprendizagem dos saberes elementares de assuntos considerados
pertinentes às mulheres, como os trabalhos domésticos e de agulha. Com o
surgimento das escolas normais, o processo de feminização do magistério ampliou

33
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

o acesso das mulheres à educação. Entretanto, conforme Rezzutti (2018), isso se


deu porque o ato de cuidar das crianças não deixava de ser um prolongamento das
funções maternas e, por isso, aceitável como profissão feminina. Esse pensamento
também é corroborado em Souza, Ribeiro e Isobe (2014, p. 173) ao afirmarem que:

Ao longo do século XX [...], a escola primária se tornou um


campo profissional majoritariamente feminino. Diversos fatores
contribuíram para o processo de feminização do magistério no
Brasil, dentre eles os movimentos de urbanização e industrialização
que expandiram as oportunidades de trabalho para os homens e
ampliaram a apropriação dos espaços públicos pelas mulheres.
Nesse processo, o fazer docente foi se constituindo no âmbito de
um conjunto de normas e prescrições que contribuíram de forma
significativa para a construção da identidade docente enquanto
ocupação que demandava paciência, afabilidade, desprendimento,
virtudes historicamente atribuídas ao gênero feminino.

Paulatinamente, a mulher começou a se fazer presente nos espaços


públicos, participando, de alguma maneira, da vida social. Entretanto, de forma
geral, a história das mulheres foi marcada por pouca visibilidade social, o que é
referendado por Bortolanza (2014, p. 423) ao explicitar que

[...] até final do século XIX, as mulheres foram mais imaginadas,


idealizadas, representadas que descritas, narradas, contadas.
Frequentemente excluídas da vida pública, não apareciam nas
estatísticas, não votavam, não tinham visibilidade em arquivos
públicos, e só começaram a ter presença à medida que se apropriaram
da leitura e da escrita.

Também é importante destacar que a extensão da escolarização às mulheres


— e consequente apreensão do hábito de leitura — aliada ao surgimento do romance
sentimental, no século XVII — ampliaram o acesso da mulher a esse tipo de literatura,
cujos temas giravam em torno daquilo que se considerava pertinente ao universo
feminino, como o casamento, as conquistas, as decepções amorosas, o ciúme e a
infidelidade (BELLIN, 2011). A propósito, cabe observar que:

[...] leitura e escrita sempre estiveram associadas ao poder e foram


usadas como forma de dominação. Por isto, o romance do século XIX
acabou associando a leitura feminina às características tidas como
naturais da mulher como sensibilidade, irracionalidade e emoção,
impondo o amor como ingrediente constitutivo, e essencial, da
identidade feminina (DUMONT; ESPÍRITO SANTO, 2007, p. 31).

Nota-se, assim, que até no processo de apropriação da leitura constata-


se uma assimetria entre os gêneros. Enquanto aos homens eram produzidos
textos considerados canais de informação e estudo, às mulheres eram reservados
escritos de entretenimento, na forma de romances que, segundo Lyons (2002, p,
172), eram mais adequados às mulheres “por serem elas vistas como criaturas
em que prevalecia a imaginação, com capacidade intelectual limitada, frívolas e
emotivas [...] era a antítese da literatura prática e instrutiva”.

34
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

Felski (2003 apud BELLIN, 2011), por sua vez, assegura que o gosto pelos
romances sentimentais por parte das mulheres era algo concebível, já que estes,
ao priorizarem temas relacionados à psicologia e aos sentimentos humanos,
tornavam-se adequados para a mulher devido a sua expertise em emoções e por
serem consideradas guardiãs da vida privada.

É neste contexto que surge a crítica literária feminista, que tem, a princípio,
o desafio de percorrer o caminho trilhado pelas mulheres enquanto leitoras. Ela
busca retratar a interface entre a literatura e o mundo social, demonstrando o
quanto as representações de gênero circulantes na sociedade estão intrinsecamente
relacionadas com valores e crenças construídos historicamente e socialmente.

Eminentemente pragmática, acreditando numa relação direta entre


a prática literária e o efeito político das representações de gênero, a
crítica feminista nesta fase inicial desdenhava a teoria por considerá-la
a viga mestra do edifício intelectual patriarcal que aprisionara a mulher
numa verdadeira torre de marfim conceitual. Era preciso reformular o
estatuto representação (e da autorrepresentação) da mulher e alterar
os parâmetros das identidades de gênero (FUNCK, 1996, p. 45).

Ao traçar o caminho percorrido pela crítica literária feminista, nota-


se quanto ela está imiscuída ao movimento feminista que, conforme tratado
anteriormente, repercutiu, historicamente, em momentos distintos denominados
Ondas Feministas. A crítica feminista assenta-se em duas perspectivas distintas,
que se inter-relacionam. A primeira, que corresponde à fase inicial do movimento
feminista, evidencia o papel da mulher enquanto leitora. Nota-se, nessa
perspectiva, uma

[...] crítica contundente em relação à noção de universalidade do


sujeito e aos parâmetros de verdade e subjetividade, afirmando que
tudo isso era, na realidade, uma construção masculina. O ato fundador
da crítica feminista foi uma releitura de obras que fazem parte da
tradição literária ocidental, quase em sua totalidade escrita por
homens. Tal crítica se concentrava nos modos de representação das
personagens femininas e continha um caráter de denúncia, afirmando
que elas eram muitas vezes representadas como seres passivos, sem
qualquer influência no desenrolar da ação de romances centrados na
experiência masculina, tais como, por exemplo, o Dom Quixote, de
Miguel de Cervantes (BELLIN, 2011, p. 2).

A estudiosa literária americana Judith Fetterly é um dos expoentes da


primeira fase da crítica feminista. Na obra The Resisting Reader: Uma Abordagem
Feminista à American Fiction, publicada em 1978, Fetterly, ajudou a formular o
conceito de leitura resistente. Conforme explicitado por Bellin (2011), Fetterly
defende que a leitura da literatura clássica americana implica a identificação da
mulher com o masculino, uma vez que a leitora se vê forçada a identificar-se
contra si própria, ou seja, trata-se de uma linguagem que exclui e oprime, pois
impõe às mulheres a adoção do ponto de vista masculino. E é nesta conjuntura que

35
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Fetterly propõe a adoção de uma postura crítica e de resistência frente à literatura


produzida por homens, encarando-a unicamente como um veículo reprodutor de
valores androcênticos (BELLIN, 2011).

Mesmo reconhecendo a importância da contribuição de Fetterly naquele


momento inicial da crítica feminista, seu posicionamento foi posteriormente
problematizado por outros teóricos que postulam que a leitura resistente prevê
“uma leitura dogmática da questão de gênero, esquecendo-nos de considerar as
convenções estéticas e formais que estão presentes no texto ficcional” (BELLIN,
2011, p. 4). Ademais, Felsky (2003 apud BELLIN, 2011, p. 4) acentua que a leitura
feminina de resistência “confina o leitor a uma instância negativa, forçando-o
sempre a reagir ao que lê. Ao recusar baixar sua guarda, a leitura feminista se
priva de ser inspirada, afetada ou transformada pela leitura de uma obra”.

Outra autora que se destaca nesse primeiro momento da crítica feminista


foi Kate Millet, autora do livro Sexual Politics, de 1970, no qual ela realiza um
estudo da representação feminina na literatura, analisando estereótipos femininos
presentes em textos de autoria masculina. Na obra, Millet:

[...] analisa textos de Henry Miller, Norman Mailer e Jean Genet em busca
da maneira como a personagem feminina, ou do personagem masculino
em posição feminina, no caso da obra de Genet, é retratada nessas obras.
Mais do que se aprofundar na análise dos textos desses autores, Millet os
utiliza como base para a formulação de sua teoria da política sexual, onde
denuncia, entre outras coisas, a extensão e penetração do patriarcado em
nossa sociedade (ANDREOSSI, 2011, p. 254).

Para Zolin (2005), a aguçada consciência política de Kate Millet faz com
que ela problematizasse a prática acadêmica fundamentada no patriarcalismo,
fazendo emergir reflexões sobre a posição notoriamente secundária ocupada
pelas heroínas dos romances de autoria masculina. O mesmo ocorre em relação
às escritoras e críticas literárias. Assim, neste sistema que hierarquiza as
relações de gênero, “o poder é exercido na vida civil e doméstica de modo a
submeter a mulher, que, a despeito dos avanços democráticos, tem continuado
a ser dominada, desde muito cedo, por um sistema rígido de papéis sexuais”
(ZOLIN, 2005, p. 226).

Em um segundo momento, a crítica feminista teve como perspectiva de


análise as obras escritas por mulheres, ou ainda, a análise da mulher enquanto
escritora, produtora de textos que refletem sua identidade e seu estar no mundo.
Destacaram-se, nesse momento, as proposições de Elaine Showalter, crítica
literária americana que desenvolveu o conceito de ginocrítica, termo usado para
designar o estudo de mulheres como escritoras ou das obras escritas por mulheres.

36
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

Elaine Showalter, reconhecendo que as leituras da primeira fase do


feminismo não tinham um objeto próprio, pois se concentravam
predominantemente na análise dos estereótipos sexuais presentes nas
obras de autores masculinos, preocupava-se com a sistematização dos
estudos feministas, propondo que, ao invés de se debruçar sobre toda
a literatura, era mais proveitoso se debruçar sobre a literatura escrita
por mulheres (BELLIN, 2011, p. 5).

Ao cunhar o termo ginocrítica, Showalter queria ressaltar as peculiaridades


de expressão do gênero feminino na literatura. A ginocrítica propunha, então, a
criação de um modelo de interpretação literária voltado unicamente para textos
de autoria feminina, ou seja, um cânone feminino oposto ao cânone masculino.
Entretanto, Andreossi (2011) explicita que essa teoria apresenta falhas por não
conseguir abarcar a pluralidade dessa literatura. Essa posição é endossada por
Mariano (2005, p. 486) que, revisitando a obra de Joan Scott, conclui ser necessário

[...] pensar em termos de pluralidades e diversidades, em lugar de


unidades e universais; que rompam o esquema tradicional das velhas
tradições filosóficas ocidentais, baseadas em esquemas binários que
constroem hierarquias, como aquela entre universos masculinos e
especificidades femininas; que nos permitam articular modos de
pensamento alternativos sobre o gênero [...].

Bellin (2011) chama a atenção para o fato de que Elaine Showalter não
conseguiu solucionar o impasse acerca das diferenças nos escritos femininos que
permitiriam considerar as mulheres como um grupo literário distinto.

Concretamente, não existem marcas específicas do feminino ou do


masculino na escrita, de forma que nos parece complicado considerar
as escritoras mulheres como um grupo à parte. Além disso, tal
separatismo, assim como a teoria cultural de Showalter, pode reforçar
a ideologia patriarcal, aumentando ainda mais as diferenças entre
escritores homens e escritoras mulheres (BELLIN, 2011, p. 6).

Ainda no contexto da ginocrítica, é importante conhecer as três fases da


tradição literária de autoria feminina formulada por Elaine Showalter, a saber:

a) a fase feminina (1844-1880), na qual as escritoras imitam os


modelos literários vigentes — colocados em circulação pelos
escritores homens —, reproduzindo os papéis sociais de gênero; b)
a fase feminista (1880-1920), que assinala um período de protesto no
qual as mulheres rejeitam as normas vigentes e defendem reformas
sociais e direitos iguais em seus projetos literários (tais como o
sufrágio universal, o direito ao divórcio e a paridade salarial); e c)
a fase da mulher (1920-1965), período no qual surge uma literatura
fortemente intimista, caracterizada como “viagem para dentro”,
quando as escritoras passam a escrever sobre seus processos de
autodescoberta (ALÓS; ANDRETA, 2007, p. 22).

37
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Os momentos pelo qual passou a crítica literária feminista são importantes


porque possibilitaram uma nova leitura das obras literárias a partir de uma
perspectiva feminina, considerando o espaço ocupado pela mulher enquanto
produtora, consumidora e/ou objeto representado nos textos literários; afinal, “se é
verdade que as mulheres, como leitoras, releem a tradição literária sob novas lentes, as
mulheres, como escritoras, reescrevem, subvertem e reelaboram a tradição literária”
(ALÓS; ANDRETA, 2017, p. 28). Ao considerar a inter-relação existente entre as
obras literárias e o contexto sociocultural em que foram produzidas, evidencia-se
as relações políticas estabelecidas entre os textos e os discursos propagados, visto
que envolvem relações de saber/poder (ALÓS; ANDRETA, 2017).

Os estudos da crítica literária feminista colocam em pauta discussões acerca


do cânone, evidenciando o fato de que muitas escritoras, mesmo produzindo
obras de reconhecida qualidade literária, não figuram nessa categoria (ZINANI,
2011). Acerca desse assunto Zolin (2005, p. 202) observa que, mesmo diante
da dificuldade de “desafiar os valores instituídos e arraigados no inconsciente
coletivo”, qualquer discente, em especial aqueles que cursam Letras, precisam
conhecer “não apenas os textos literários canônicos, mas também outros tipos de
textos, provenientes de outros segmentos culturais”. E você? Como acadêmico
de Letras, o que pensa disso? Acredita que o contato com outros tipos de textos
contribuirá para uma leitura mais crítica do mundo?

NOTA

Gostaria de aprofundar mais nos estudos


da crítica literária feminista? FIGURA – TEORIA E CRÍTICA
Leia o livro Teoria e crítica literária feminista: conceitos LITERÁRIA FEMINISTA:
e tendências, de Thomas Bonnici. Organizado como CONCEITOS E TENDÊNCIAS
dicionário, apresenta verbetes explicativos sobre temas
literários, históricos, conceituais, ficcionais, psicanalíticas,
sociológicos e de política sexual referentes aos estudos
feministas e de gênero. Encontram-se biografias de
teóricas como também a trajetória histórica das duas
Ondas Feministas e uma análise dos vários feminismos,
especialmente os que envolvem raça e opção sexual.
Esse dicionário tenta fornecer explicações sobre termos
mais usados na crítica literária feminista (como Outro/
outro, gênero, sexo, patriarcalismo, poder, dominância,
paródia) para instrumentar o/a leitor(a) para o desafio da
alternativa feminista. FONTE: <http://twixar.me/J6jT>.
Acesso em: 7 set. 2019.
FONTE:<http://twixar.me/xCjT>. Acesso: 13 ago. 2019).

38
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

4 QUESTÕES DE GÊNERO NAS NARRATIVAS INFANTIS


E JUVENIS
Como você já deve ter percebido, nos estudos realizados até aqui, mulher
e gênero compreendem complexos campos de estudo que se constituem como
categorias interpretativas por meio das quais é possível desvelar constructos
sociais. Embora vasta, essa temática encontra refúgio na literatura que consegue
— devido à singularidade de sua forma de expressão artística — dar lugar a
diversas formas de representação, trazendo à tona, seja de forma lúdica, poética,
realista, crítica ou filosófica, aspectos inerentes às relações sociais de gênero que
afloram na sociedade.

Por meio da arte literária é possível perceber o tratamento dispensado


às mulheres através dos tempos, as presenças e as ausências, as invisibilidades
e os silenciamentos, as continuidades e as rupturas, os enfrentamentos e as
resistências. Neste momento, trataremos especificamente das narrativas infantis
e juvenis, modelo historicamente caracterizado por veicular paradigmas de
comportamento que reproduzem um padrão de sociedade associado à ideologia
dominante (ZINANI, 2009).

Para iniciar nossa conversa faremos uma breve retrospectiva histórica


a fim de compreender o lugar ocupado pela literatura infantil no contexto de
seu surgimento. De acordo com Zilberman (2003), a literatura infantil, enquanto
gênero literário, pode ser considerada recente. Sua origem está relacionada a
algumas mudanças ocorridas na sociedade como a ascensão da família burguesa,
o ordenamento do sistema escolar e a instituição do conceito de infância.

Sim, a infância configura-se como uma construção social que assume


diversos significados ao longo da história, sendo que alguns estudiosos chegam a
defender a tese de que o sentimento de infância não existia na sociedade medieval;
trata-se de um conceito que surgiu na modernidade ocidental (ARIÈS, 1981).

Na sociedade antiga, não havia a “infância”: nenhum espaço separado


do “mundo adulto”. As crianças trabalhavam e viviam junto com
os adultos, testemunhavam os processos naturais da existência
(nascimento, doença, morte), participavam junto deles da vida pública
(política), nas festas, guerras, audiências, execuções, etc., tendo assim
seu lugar assegurado nas tradições culturais comuns: na narração de
histórias, nos cantos, nos jogos (ZILBERMAN, 2003, p. 36).

Assim, não havia uma modalidade de literatura específica para esse


segmento etário, e os textos que hoje são considerados como literatura infantil
e juvenil faziam parte da tradição oral e circulavam em meio a população, sem
distinção de adultos e crianças (ZINANI, 2009). Tratava-se, portanto, de uma
produção direcionada para adultos, porém aproveitada para as crianças.

39
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Com a organização do sistema de ensino, a literatura foi incorporada


à escola, passando a ter acentuado valor pedagógico propagador de normas
de comportamento a serem incorporadas pelas crianças. O aspecto didático-
pedagógico conferido à literatura infantil tinha como foco a moldagem da criança
segundo as expectativas dos adultos, incitando-as a serem obedientes às normas
sociais. Partindo de uma concepção de mundo maniqueísta, as histórias quase
sempre terminavam premiando o bom e castigando o mau (CASTRO, s/d).

De acordo com Zinani (2009, p. 147), a literatura, nesse contexto, passou a


destacar “seu caráter exemplar na consolidação de valores burgueses, ao mesmo
tempo que eram menos considerados os valores estéticos, o que configura a
literatura infantil como uma arte menor, em consonância com o tamanho de
seu recebedor”. Zilberman (2003, p. 4) também assevera que “o novo gênero
careceu de imediato de estatuto artístico, sendo-lhe negado a partir de então um
reconhecimento de valor estético, vale dizer, a oportunidade de fazer parte do
reduto seleto da literatura”.

Com o passar do tempo a literatura infantil adquire um novo status,


passando a ser objeto de estudo de outros campos do saber. Os estudos
psicanalíticos, por exemplo, reconhecem a fantasia — elemento quase sempre
presente na literatura infantil, especialmente nos contos de fadas — como
fundamental para o desenvolvimento da criança. De acordo com, Bettelheim
(1980, p. 19), o conto de fadas “[...] é orientado para o futuro e guia a criança
— em termos que ela pode entender tanto na sua mente consciente quanto
inconsciente — a abandonar seus desejos de independência infantil e a conseguir
uma existência mais satisfatoriamente independente”.

A sociologia, por sua vez, defende “a adequação dos contos à infância,


uma vez que auxiliam na elaboração de um esquema compreensível do mundo;
no entanto, também enfatizam a possibilidade de realização de desejos e projetos
através do sonho, o que lhe empresta uma índole escapista” (ZINANI, 2009, p. 147).

A partir da segunda metade do século XX, a literatura infantil ganha novo


impulso e passa a ser mais valorizada. As temáticas produzidas imbricavam-se
com várias dimensões da atividade humana, passando a “suprir a necessidade
de ficção, veiculando fantasia e criatividade, ao mesmo tempo em promove o
acesso ao real [...] possibilitando uma experiência de vida de caráter formativo”
(ZINANI, 2009, p. 147).

A literatura infantil e juvenil deixou de ter um caráter eminentemente


pedagógico e passou a ser vista também como fonte de prazer, abrindo a
possibilidade de retratar a aventura pela aventura ou tratar de temas do cotidiano
de forma lúdica e inusitada. A partir de então passou a abarcar uma pluralidade
de temas e problemas existenciais próprios da infância, permitindo às crianças
uma melhor compreensão de seus sentimentos em relação ao mundo.

40
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

É ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoção importante,


como a tristeza, a raiva, a irritação, o bem estar, o medo, a alegria,
o pavor, a insegurança, a tranquilidade, e tantas outras mais, e viver
profundamente tudo que as narrativas provocam em quem as ouve
— com toda amplitude, significância e verdade que cada uma delas
fez (ou não) brotar... Pois é ouvir, sentir e enxergar com os olhos do
imaginário! (ABRAMOVICH, 1991, p. 17).

Tendo como princípio o potencial da literatura como forma de reflexão


sobre o ser humano e as relações sociais, bem como sua capacidade de proporcionar
ao público leitor caminhos que levem ao autoconhecimento e à organização da
personalidade (SANTOS, 2009), a literatura infantil e juvenil é uma importante
ferramenta para trabalhar as relações de gênero no espaço escolar pois, além de
suscitar o debate sobre a discriminação, o preconceito e as diferenças sociais,
permite uma melhor compreensão e apreensão da realidade.

Se a criança — devido não só a sua circunstância social, mas também


por razões existenciais — se vê privada ainda de um meio interior
para a experimentação do mundo, ela necessitará de um suporte fora
de si que lhe sirva de auxiliar. É este lugar que a literatura infantil
preenche de modo particular, porque, ao contrário da pedagogia
ou dos ensinamentos escolares, ela lida com dois elementos que são
especialmente adequados para a conquista desta compreensão do
real: — com uma história que apresenta, de maneira sistemática, as
relações presentes na realidade, que a criança não pode perceber por
conta própria; [...] — com a linguagem, que é o mediador entre a
criança e o mundo, de modo que, propiciando, através da leitura, um
alargamento do domínio linguístico, a literatura infantil preencherá
uma função de conhecimento (ZILBERMAN, 2003, p. 13).

A literatura infantil pode, portanto, ser um instrumento de mediação e


problematização das relações de gêneros construídas na sociedade, possibilitando
um ambiente mais propício para a abordagem dessas temáticas em sala de aula.
Para tanto, é necessário um olhar atento do corpo docente na seleção de obras
que propiciem diálogos acerca das relações de gênero, contribuindo para uma
educação em que “as diversidades sejam respeitadas e aceitas como constituintes
e legítimas da nossa sociedade plural” (DAROS, 2013, p. 181).

Dada a relevância e pertinência dessa temática, diversos pesquisadores


têm se debruçado sobre obras literárias infantojuvenis com o objetivo de fazer
uma análise das distintas representações das diversidades de gênero presentes
nessas produções, evidenciando, assim, como essa diferença é representada na
tessitura do texto. Selecionamos algumas dessas pesquisas para apresentá-las
a você. Com base nessas análises interpretativas, você poderá selecionar outros
livros e fazer suas próprias análises acerca da pertinência da obra em relação aos
objetivos propostos.

A primeira obra é Bia Bisa, Bisa Bel, de Ana Maria Machado. Trata-se de
uma obra que já foi traduzida para diversas línguas e ganhou vários prêmios,
já tendo vendido mais de 500.000 exemplares. O livro conta a história de Isabel,

41
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

uma menina de dez anos que encontra uma fotografia antiga de sua bisavó, Bia. A
partir de então se estabelece um diálogo imaginário entre ambas, que desencadeia
um processo de autoconhecimento de Isabel, em um momento delicado da vida
que é a fase da puberdade. A obra em questão foi analisada por Salete Rosa Pezzi
dos Santos (2009), com o objetivo de explorar a representação do sujeito feminino
em épocas distintas: Bisa Bia, representativa de uma sociedade do século XIX, de
uma época em que “a gente lavava o rosto no quarto mesmo, e sempre tinha uma
bacia e um jarro d’água, com uma toalha limpinha do lado” e Isabel, jovem do final
do século XX, protagonista de um tempo do “congelado, enlatado, desidratado,
ensacado, emplasticado...” (MACHADO, 1985, p. 24-25).

De acordo com Santos (2009, p. 158), ao traduzir experiências de vida de


épocas diferentes, “descortinam-se as coordenadas de um universo feminino
repleto de contradições”. Dessa forma, ao trazer as vivências da bisavó, Ana
Maria Machado consegue remeter a uma época em que o casamento era a única
alternativa de vida para as mulheres, que deveriam manter-se restritas aos espaços
privados: “mulheres como Bisa Bia repetiam comportamentos estereotipados
sem questionamentos, pois não se vislumbrava, no horizonte de expectativas
do universo feminino da época, mais que a realização pelo casamento, pela
maternidade, pela dedicação exclusiva ao lar” (SANTOS, 2009, p. 159).

No desenrolar da história vão se entrecruzando costumes do momento


passado e do momento presente que causam estranhamento, tanto aos olhos da
bisa como aos olhos da menina. Isabel, inclusive, começa a perceber diferenças
de comportamento também no tempo presente, como, por exemplo, quando ela
e sua amiga Marcela reagem de formas diferentes diante de um portão trancado:
enquanto Isabel se dispõe a pular o muro, Marcela recua, porque aquilo era “coisa
de moleque”.

Diante das reflexões dessas diferentes formas de ser, de agir, de brincar e


de estar no mundo, Isabel percorre um caminho no qual ela vai se transformando
e construindo sua autonomia. Na perspectiva de Santos (2009, p. 163-164):

Essa capacidade de relativizar circunstâncias de vida só se concretiza à


medida que a menina entende que há formas diferentes de perceber o
mundo, que não há respostas definitivas, e que convenções fixas podem
ser modificadas. [...] A heroína depara-se com a descoberta de que
passado, presente e futuro fazem parte dela e, do entendimento dessa
confluência surge a consciência de si mesma. [...] A heroína alcança,
na integração entre passado e futuro, a essência de si mesma; sua
identidade consolida-se na capacidade de transgredir o estabelecido,
na busca de novas alternativas de vivências, na possibilidade de
autonomia e de aprendizado contínuo, oferecendo ao leitor mirim um
modelo reassegurador de vida.

Uma outra obra interessante é O mágico de Oz, de L. Frank Baum (1901).


Trata-se de uma obra clássica da literatura infantil estadunidense que conta a
história de Dorothy, uma garota órfã que vivia com seus tios em uma fazenda no
interior do Kansas, mas que acaba se perdendo deles ao ser levada inesperadamente

42
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

por um ciclone, junto com seu cachorro, para a Terra de Oz. A partir daí a história
narra as aventuras e os perigos enfrentados pela menina, como bruxas malvadas e
monstros, na tentativa de voltar para casa. Neste percurso ela faz alguns amigos,
sendo que cada um estava à procura de algo que pudesse suprir suas carências: o
Lenhador de Lata, que procura um coração, o Espantalho, que deseja um cérebro,
e o Leão, que quer ser corajoso. Juntos eles se unem para encontrar o Mágico de
Oz, acreditando que este poderia ajudá-los na realização de seus desejos.

A obra em tela foi analisada tanto por Cecil Jeanine Albert Zinani (2009)
como por Ana Carolina Lazzari Chiovatto (2017), ambas com o intuito de
discutir as representações de gênero veiculadas pelas personagens femininas que
compõem a história. Primeiramente, Zinani (2009) chama a atenção para o fato de
que a história dá visibilidade não só a uma criança, mas a uma criança do gênero
feminino, dois segmentos até então pouco valorizados na literatura, que raramente
tinha infantes e mulheres como protagonistas. A propósito, a introdução de
personagens infantis na condição de protagonistas foi mais recorrente depois da
metade do século XIX, com a publicação das obras Alice nos país das maravilhas, As
aventuras de Tom Sawyer e Pinóquio (ZINANI, 2009).

Para Zinani, a grande contribuição da obra no que tange às reflexões


acerca das relações de gênero é a ênfase dada aos papéis femininos, até então
negligenciados nas obras literárias:

O gênero feminino desempenha um papel muito importante na


narrativa: além de ser uma menina a personagem principal, são
as mulheres que contribuem para que ela obtenha sucesso em seu
empreendimento [...]. Numa época em que as mulheres tinham pouca
representatividade, a narrativa de Baum causa certo estranhamento.
Se for considerada a categoria ser humano, constata-se que o polo
positivo é representado, exclusivamente, pelo gênero feminino. Na
categoria não humano, representada pelos amigos de Dorothy e
pelas Bruxas Boas, há equilíbrio entre os gêneros, no polo positivo.
Dessa maneira, o universo feminino apresenta uma visibilidade
incomum para a época. Provavelmente, o início do novo século que
estava sendo prenunciado já apontava para transformações que iriam
ocorrer nos tempos que estavam por vir, entre eles o reconhecimento
e a valorização da criança e da mulher. Dessa maneira, a apresentação
de obras que desconstruam os estereótipos de gênero e de infância e
que deem voz à criança contribuem para desenvolver a criticidade e o
gosto pela leitura (ZINANI, 2009, p. 153).

Chiovatto (2017), por sua vez, observa que as representações do feminino


contidas no livro são inovadoras quando comparadas aos contos de fadas e outros
clássicos infantojuvenis, havendo a

[...] quebra de diversos estereótipos do feminino nas diferentes personagens


baumianas analisadas, que têm como resultado uma ampla grade de
modelos femininos para seu público-alvo, pois trazem figuras femininas nos
mais diversos papeis, euforizando nelas poder e autoridade, disforizando
apenas o que é universalmente disforizado, como a maldade, o egoísmo, a
vaidade, a futilidade etc. (CHIOVATTO, 2017, p. 168).

43
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Sobre a pertinência do trabalho desse livro nas escolas, Zinani (2009)


afirma que ele permite a desconstrução de estereótipos de gênero e de infância,
ajudando a desenvolver o senso crítico. Em consonância com Zinani, Chiovatto
(2017, p. 168) assevera, acerca da obra, que “seu rompimento com os tradicionais
estereótipos é conduzido de maneira a mantê-los reconhecíveis, o que é adequado
a funções didáticas num mundo que ainda se baseia no binarismo sexual”.

Outro título analisado foi Hoje é dia de Maria, de Luis Alberto de Abreu e
Luiz Fernando Carvalho. Trata-se de uma obra que ficou bastante conhecida ao
ser produzida em formato de minissérie, transmitida pela televisão brasileira em
2005. A narrativa conta a história de uma menina órfã de mãe que vive em um
sítio localizado no interior do Nordeste brasileiro. Utilizando-se do recurso da
intertextualidade, os autores dialogam com a obra A gata borralheira, de Charles
Perrault, pois assim como a protagonista do clássico literário, Maria também
convive com as perversidades de uma madrasta cruel. Cansada de ser perseguida
pela madrasta, Maria resolve fugir em busca de seu sonho que é conhecer as
franjas do mar. No decorrer dessa jornada Maria enfrenta vários perigos, ao
mesmo tempo em que revisita diversos contos populares. A obra em questão
foi analisada pelas pesquisadoras Elisângela Araújo Silva e Naelza de Araújo
Wanderley (2015).

Ao fazer uma releitura de A gata borralheira, as autoras revelam ao público-


leitor uma representação feminina bem diferente daquela que protagoniza o clássico
literário: Maria não somente é diferente como também é divergente, trata-se de
uma princesa que, embora queira encontrar seu amor, não fica esperando por ele;
ao contrário, ela é capaz de lançar-se em busca de seus sonhos de forma destemida,
aventureira, com segurança e inteligência (SILVA; WANDERLEY, 2015).

De acordo com as autoras, a travessia realizada por Maria, que sai da


pequena cidade em que morava em busca das franjas do mar, extrapola o percurso
geográfico. Trata-se de uma travessia interior na qual Maria perde a infância e se
transforma em mulher, ingressando na vida adulta.

Além de apresentar a metamorfose, elemento característico dos


contos de fadas, proporciona a discussão em torno das questões
comuns à mulher adulta. A inocência infantil da personagem,
após a transformação, dá lugar a outros desafios como trabalho,
problemas amorosos, sexualidade, dentre outros que compõem as
preocupações do cotidiano da mulher comum, principalmente a
mulher contemporânea e, a nosso ver, faz de Maria a representação
de uma menina, uma mulher, uma princesa divergente, uma vez que
dos ideários dos contos de fadas ela faz uma trajetória, na condição
de uma heroína do interior do Nordeste, pautada nos elementos
representantes da cultura popular, seja nas cantigas, nas festas, na
pelejas e até nas descrições dos interiores e exteriores presentes na
obra (SILVA; WANDERLEY, 2015, p. 102).

44
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

A guisa de conclusão, as autoras reforçam o caráter transformador do texto


literário, que permite um diálogo entre o clássico e o popular, destacando que por
meio de histórias do passado é possível tematizar questões do presente. Além
disso, Silva e Wanderley chamam a atenção para o fato de a narrativa atualizar
a discussão sobre a situação da mulher na contemporaneidade, que pode ir
além dos estereótipos historicamente determinados, sendo capaz de contrariar o
padrão da figura indefesa comumente disseminado no imaginário social.

Os contos de fadas, por sua vez, também são narrativas nas quais podemos
encontrar muitas representações de gênero. Originalmente, construídos para o
mundo adulto, a partir da apropriação do conceito de infância (ARIÈS, 1981) eles
passaram a ser adaptados para o universo infantil. Embora denominadas contos
de fadas, o que caracteriza essas narrativas não é, necessariamente, a existência de
fadas, mas a presença do espaço maravilhoso, que extrapola a realidade concreta
(PINHEIRO; GOMES, 2018). São narrativas caracterizadas pela prevalência da
magia e do encantamento, pela existência de um núcleo problemático no qual
protagonistas buscam sua realização pessoal e pela existência de entraves a
serem heroicamente enfrentados, culminando na vitória do bem contra o mal.
Normalmente, eles são compostos em torno de algumas etapas distintas: “a
travessia, a viagem ao mundo mágico; o encontro com o personagem do mal ou
o obstáculo a ser vencido; a dificuldade a ser superada; e a conquista (destruição
do mal); a celebração da recompensa” (SCHNEIDER; TOROSSIAN, 2009, p. 135).

A primeira coletânea de contos infantis que chegou até nós foi organizada
por Charles Perrault, ainda no século XVII, na França. As histórias por ele coletadas
tinham origem na tradição oral e até então não haviam sido documentadas.
Posteriormente, destacaram-se as coletâneas dos irmãos Grimm, na Alemanha, e
as de Hans Christian Andersen, na Dinamarca, que além de compilar e adaptar
contos orais, criou diversas outras narrativas (PINHEIRO; GOMES, 2018).

Perrault, Grimm e Anderson podem ser considerados, portanto, os


precursores da literatura infantil. Entretanto, ao realizarem a documentação das
narrativas orais, fizeram algumas adaptações no enredo de algumas histórias,
tornando-as mais palatáveis aos valores morais da época e à fé cristã. Sobre a
importância dos contos de fadas, Bastos e Nogueira salientam que eles:

[...] partilham de uma narrativa na qual o personagem central deve


enfrentar grandes obstáculos passando por diversas provações antes
de triunfar contra o mal. Tais narrativas transferem o leitor para um
mundo imaginário, mas ainda assim pautado em elementos do seu
cotidiano, como os valores morais e os ideais de bondade e maldade.
Além disso, os contos de fada evocam sentimentos como medo,
amor, ódio e simpatia através de uma jornada que envolve conflitos,
rivalidade e superação, convidando o leitor a experimentar a sensação
de um final feliz, transferindo essa expectativa para sua experiência
individual. Historicamente, os contos de fadas oferecem informações
sobre a sociedade em diferentes aspectos, como as relações de
poder, de afeto, as concepções familiares e a moralidade (BASTOS;
NOGUERIA, 2016, p. 13).

45
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Em meio à diversidade de questões sociais que podem ser analisadas


pelo viés dos contos de fadas situam-se as questões de gênero, uma vez que tais
narrativas revelam expectativas, valores e anseios que emergem no contexto
social, podendo influenciar na produção de identificações binárias de masculino
e feminino. Assim, tais narrativas estão repletas de representações engendradas
pelo imaginário social acerca das relações de gênero, divulgando e reproduzindo
comportamento e estereótipos, muito embora estando envolvidas por uma
roupagem aparentemente inocente (BASTOS; NOGUEIRA, 2016). Mesmo assim
é possível, a partir desse diálogo entre fantasia e realidade, utilizar tais narrativas
como ferramentas problematizadoras das relações de gênero.

Um exemplo é o conto de fadas Cinderela, que será analisado a seguir.


Embora seja um conto bastante conhecido, faremos aqui um breve resumo de
uma das versões mais populares da obra, cuja protagonista é Cinderela, uma
linda moça vive com seu pai, viúvo, a madrasta e suas duas filhas. Com a morte
do pai, a madrasta começa a maltratar Cinderela, delegando-lhe todos os afazeres
domésticos e privando-a do conforto do qual usufruíram suas duas filhas. Certo
dia, o rei decide realizar um baile para que seu filho pudesse escolher uma moça
com a qual se casar.

Embora todas as moças do reino tenham sido convidadas para o baile, a


madrasta não permite que Cinderela compareça, obrigando-a a ficar em casa. No
entanto, após a saída da madrasta e suas filhas, surge a fada madrinha que, por
meio de um encanto, transforma as roupas esfarrapadas da jovem em um lindo
vestido que se completa com um par de sapatinhos de cristal. A fada, porém,
adverte que o encanto terminaria à meia-noite, motivo pelo qual Cinderela sai do
baile repentinamente, deixando para trás o príncipe que havia se encantado com
sua beleza. Na pressa de voltar para casa, Cinderela perde seu sapato de cristal,
e é por meio dele que o príncipe a reencontra. Em seguida, eles casaram-se e
viverem felizes para sempre.

Diversos estudiosos já analisaram o clássico infantil em questão a


partir da perspectiva das relações de gênero. Vamos nos deter aqui às analises
empreendidas por Bastos e Nogueira (2016) e Pereira et al. (2018). Vejamos,
então, a percepção desses autores sobre a forma com que a figura feminina e as
relações de gênero são concebidas na obra. Bastos e Nogueira (2016) chamam a
atenção, inicialmente, para o fato de os estereótipos sociais estarem muito bem
demarcados:

De um lado, temos o bem representado por Cinderela, submissa,


dócil, virtuosa e prendada, incapaz de apresentar qualquer sinal de
rebeldia; na extremidade oposta, o mal é representado pela madrasta
e suas filhas, que fazem de tudo para alcançar seus objetivos. O papel
de Cinderela como passiva e/ou submissa remete-nos à crença de que
a mulher, para ser feliz, precisa sujeitar-se às ordens e imposições,
esperando que forças mágicas e exteriores (fada madrinha, por
exemplo) lhe auxiliem e a guiem até ao príncipe — homem sempre
forte e seguro que representa a salvação, libertação e felicidade
(BASTOS; NOGUEIRA, 2016, p. 20).

46
TÓPICO 2 | LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE

Ainda recorrendo à análise feita por Bastos e Nogueira, conclui-se que os


contos de fadas “servem para acentuar e perpetuar estes paradigmas femininos,
além de (re) afirmarem que o modelo ideal de mulher é aquele submisso, que
merece e recebe a tutela do poder divino e/ou mágico e masculino como é o caso
de Cinderela” (BASTOS; NOGUEIRA, 2016, p. 20).

Pereira et al. (2018, p. 343) também evidenciam, em sua análise, a divisão


social de papéis atribuídos ao masculino e ao feminino ao pontuarem que a
sociedade referendada, na obra em destaque, “era a burguesa, branca, em que as
mulheres, deviam ser gentis, contidas e bem-comportadas, enquanto os homens
seu inverso, deviam ser fortes e viris para defender a amada e sustentar uma
casa”. As autoras também chamam a atenção para o fato de que a obra não só
reproduz modelos estereotipados de comportamento de gênero, mas também
acerca dos padrões de beleza endossados naquela época. Desta feita, afirmam
que tais escritos:

[...] ditam determinado padrão de beleza, isentos na segunda mulher


do pai da heroína, caracterizada como má, assim como em suas
duas filhas igualmente que, além de malvadas, eram feias. Enredos
que “ensinam” crianças e instruem leitores e ouvintes, formando a
sua forma de ver, entender e se reproduzir na sociedade. Percebe-se
assim que, estão reproduzindo e propagando um tipo de sujeito social
normalizado pela sociedade e que acaba legitimando certas práticas
de discriminação à mulher que ainda emergem no interior de diversas
instâncias sociais, de forma bastante sutil (PEREIRA et al., 2018, p. 344).

As autoras também atentam para o fato de que, mesmo ocupando a posição


de protagonista, figura central da narrativa, Cinderela acabava tendo um lugar
secundário em relação ao príncipe, ao qual é atribuído o papel de salvador por
libertar a jovem indefesa da condição social e familiar em que vivia. Cinderela, por
sua vez, dissemina um padrão de comportamento historicamente atribuído ao gênero
feminino de submissão em relação ao masculino, sendo o casamento apresentado
como a única via para a felicidade. De acordo com Pereira et al. (2018, p. 341),

os contos de fadas não são somente estórias distrativas, posto que são
amplamente disseminados, transcendem barreiras geográficas, encantam
o imaginário de crianças (e adultos) com narrativas, personagens, padrões
de beleza, estereótipos, sentimentos e comportamentos que traduzem
fascínio e, em geral, exprimem relações de gênero marcadas pela cultura
patriarcal. Reafirmam papéis sociais distintos para cada sexo como
produto natural, ao mesmo tempo em que reproduz hierarquias e lugares
distintos para homens e mulheres, prenhes de simbolismos que ofuscam
a percepção de suas construções sociais, como produto deliberado da
ação humana que institui o jeito de ser, agir e viver de ambos. Determina
o espaço público, a razão, a força, ao primeiro, e o espaço privado, a
emoção, a delicadeza à segunda.

Apesar desse conto infantil reproduzir modelos estereotipados de gênero


ele não precisa ser descartado como ferramenta pedagógica. Ao contrário, tanto
ele como outros contos de fadas podem ser abordados em sala de aula de forma
problematizada, levando o alunado a refletir sobre os valores e estereótipos nele
apresentados e a questionar os papeis sociais ali representados.

47
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

E
IMPORTANT

Quer conhecer alguns títulos de obras literárias que abordam temas como
igualdade, feminismo e direitos humanos direcionados ao público infantojuvenil?

Veja, a seguir, uma relação de quinze livros que ajudam a desconstruir preconceitos e
estereótipos sociais. Boa leitura!

• Coleção antiprincesas, de Nádia Fink e Pitu Saá.


• O Mundo no Black Power de Tayó, de Kiusam de Oliveira e Taisa Borges.
• As cientistas: 50 mulheres que mudaram o mundo, de Rachel Ignotofsky.
• Malala, a menina que queria ir para a escola, de Adriana Carranca e Bruna Assis Brasil.
• Para educar crianças feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie.
• Histórias de ninar para garotas rebeldes, de Elena Favilli.
• Coisa de menina, de Pri Ferrari.
• Coisa de menino, de Pri Ferrari.
• A vida não me assusta, de Maya Angelou e Jean-Michel Basquiat.
• Tudo bem ser diferente, de Todd Parr.
• O menino de vestido, de David Walliams.
• Até as princesas soltam pum, de Ilan Brenman e Ionit Zilberman.
• Cachorros não dançam balé, de Anna Kemp e Sara Ogilvie.
• Aparelho sexual e cia: um guia inusitado para crianças descoladas, de Zep e Hélène Bruller.
• Mais pessoas para me amar: família de tudo que é jeito! – Mo O’Hara.

Para saber mais sobre os livros, acesse: https://livroecafe.com/2019/01/27/15-livros-para-


ensinar-criancas-sobre-igualdade-feminismo-e-direitos-humanos/.

48
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura é uma importante ferramenta para a compreensão da realidade,


uma vez que ela é uma forma de expressão que instiga as pessoas a pensarem
de forma crítica.

• A literatura é uma ferramenta que pode ser utilizada para reflexões e discussões
acerca das questões de gênero que permeiam as relações sociais.

• Por meio da disciplina de Literatura o docente pode estimular o debate das


relações de gênero em sala de aula.

• A crítica literária feminista tem como escopo retratar a interface entre a


literatura e o mundo social.

• Em um primeiro momento, a crítica literária feminista evidenciou o papel da


mulher enquanto leitora. Posteriormente também passou a analisar as obras de
autoria feminina.

• Obras literárias infantojuvenis, inclusive contos de fadas, são ferramentas que


podem ser utilizadas em sala de aula para problematizar as relações de gênero
na sociedade.

49
AUTOATIVIDADE

1 As obras literárias infantojuvenis podem ser instrumentos no trabalho com a


temática gênero e diversidade em sala de aula. Com base no que foi estudado
até aqui, analise as afirmativas a seguir referentes à literatura infantojuvenil:

I- Devido às peculiaridades do público  infantojuvenil, os escritores, desde


sempre, tiveram o cuidado de produzir uma literatura específica para esse
segmento etário, muito embora, a princípio, essa literatura não tivesse como
preocupação desconstruir estereótipos e preconceitos de gênero comuns
na sociedade.
II- Com a incorporação da literatura na escola, o aspecto didático-pedagógico
conferido a esse tipo de literatura tinha como foco a inculcação de valores
morais e normas de comportamento.
III- A literatura infantojuvenil nem sempre teve o status que tem hoje, sendo
que a princípio ela não era reconhecida como produção artística.
IV- Os contos de fadas são caracterizados pela presença da fantasia, da magia
e do encantamento e, por não tratarem do real, são incapazes de refletir
valores e normas de conduta próprios do momento histórico em que foram
produzidos.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.
b) ( ) As afirmativas I, II e IV estão corretas.
c) ( ) As afirmativas II e III estão corretas.
d) ( ) As afirmativas III e IV estão corretas.

2 (ENADE/2017 – LETRAS/INGLÊS)
As escolas brasileiras não têm um único jeito de ensinar sobre gênero e
sexualidade; pesquisas evidenciam currículos e práticas pedagógicas e
de gestão marcadas pela discriminação.  Distinções sexistas nas aulas, na
chamada, nas filas de meninos e de meninas, nos uniformes, no tratamento
e nas expectativas sobre alunos ou alunas, tolerância da violência verbal e
até física entre meninos, representações de homens e mulheres nos materiais
didáticos,  abordagem quase exclusivamente biológica da sexualidade  no
livro didático, estigmatização referente à manifestação da sexualidade das
adolescentes, perseguição sofrida por homossexuais, travestis e transexuais,
evidenciam o quanto a escola (já) ensina, em diferentes momentos e espaços,
sobre masculinidade, feminilidade, sexo, afeto, conjugalidade, família.
FONTE: <http://www.spm.gov.br>. Acesso em: 11 jul. 2017 (adaptado)

50
Nesse contexto, para construir uma prática pedagógica que promova
transformações no sentido da igualdade de gênero a partir do respeito às
diferenças, espera-se que a escola

a) ( ) incorpore o conceito de gênero nos diferentes componentes do currículo


de maneira transversal.
b) ( ) realize atividades em seu cotidiano que definam para as crianças o que
é masculino e o que é feminino.
c) ( ) se valha das diferenças sexuais naturais entre meninos e meninas para
conduzir a classe e manter a disciplina.
d) ( ) se refira à questão de gênero de forma tangencial, suficiente para promover
vivência menos intransigente e mais equânime entre homens e mulheres.
e) ( ) reforce modelos de comportamentos  socialmente atribuídos  a
homens e mulheres que formam um conjunto de representações sobre
masculinidade e feminilidade.

51
52
UNIDADE 1
TÓPICO 3

REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA


LITERATURA BRASILEIRA

1 INTRODUÇÃO
Durante muito tempo, o universo literário constituiu-se em um espaço
precipuamente masculino, o que não significa que as mulheres não tivessem
competência e habilidade para transitar nesse ambiente. Na verdade, as pressões
socioculturais restringiam as mulheres à esfera doméstica, conforme já abordado
nessa unidade, e aquelas que resolvessem percorrer outros caminhos eram vistas
como transgressoras da ordem social. Por esse motivo, algumas mulheres tiveram
que publicar livros usando pseudônimos masculinos, sob pena de não serem
reconhecidas ou de terem que dar satisfações à sociedade relativas ao seu desejo
de transitar por esse universo de predominância masculina.

A propósito, não foram somente as mulheres que sofreram esse processo


de exclusão. De forma geral, os escritos literários eram praticados por homens,
quase sempre brancos, heterossexuais e pertencentes à classe média, o que limitava
as manifestações artísticas que expressassem os sentimentos dos negros e outras
minorias historicamente marginalizadas. Grande parte das obras literárias, nessa
conjuntura, externavam a visão masculina das pessoas e do mundo, contribuindo
para corroborar formas de pensamento que justificavam a submissão feminina e a
desigualdade. Tal pensamento é endossado por Zolin (2005, p. 275) ao afirmar que:

Historicamente, o cânone literário, tido como um perene e exemplar


conjunto de obras-primas representativas de determinada cultura
local, sempre foi constituído pelo homem ocidental, branco, de classe
média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos
das mulheres, das etnias não brancas, das chamadas minorias sexuais,
dos segmentos sociais menos favorecidos etc.

Esse processo de exclusão também fez com que a produção literária das
mulheres fosse quantitativamente inferior à masculina, gerando um pensamento
equivocado de que a escrita feminina também seria inferior em termos de
qualidade. Apenas com a emergência da crítica literária feminista, já estudada no
tópico anterior, que se começou a questionar o papel da mulher enquanto leitora,
enquanto escritora e enquanto objeto de representação nas obras literárias. Os
escritos femininos, por sua vez, passam a dar voz às inquietudes individuais e
coletivas das mulheres em geral, problematizando seu papel na sociedade por meio
de personagens femininas que muitas vezes estão em processo de descoberta de si.

53
A seguir, será feita a análise de algumas obras protagonizadas por
personagens femininas. São contos produzidos por três importantes escritoras
da literatura brasileira: Clarice Lispector, Lygia Bojunga e Marina Colasanti.
Você conhece a obra de alguma delas? No decorrer das análises, serão transcritos
alguns trechos das respectivas obras. Esperamos que essas transcrições agucem
sua curiosidade para que você busque os textos, na íntegra. São textos bastante
acessíveis, facilmente encontrados em livraria, bibliotecas e até mesmo na internet.

E
IMPORTANT

Antes de continuar a leitura, vamos propor um pequeno exercício. Quando


fazemos referência escritos de autoria feminina, que nomes vêm a sua cabeça? Você já
leu obras de escritoras? Quais? Consegue identificar alguma obra ou texto representativo
da situação da mulher na sociedade que tenha sido escrito por uma mulher? Qual? Pegue
papel e caneta e anote as obras e escritoras que você conseguir lembrar.

2 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM CLARICE LISPECTOR


Clarice Lispector é uma das autoras mais celebradas e estudadas pela
academia. Nas palavras de Barbosa e Moraes (2007, p. 81), “a linguagem clariceana
atinge a essência do ser, uma vez que deixa em alerta o leitor, permitindo-o fazer
questionamentos profundos que ultrapassam o cotidiano e o superficial da língua,
possibilitando, assim, uma percepção desautomatizada da vida”.

Destaca-se, em sua obra, a construção de personagens femininas que,


criadas com riqueza de sentimentos, permitem uma reflexão acerca da condição
humana da mulher na contemporaneidade. A representação feminina, recorrente
nas obras de Clarice Lispector, coloca o leitor face a face com multirrepresentações
da mulher, em meio a uma variedade de contos produzidos.

54
E
IMPORTANT

Um pouco sobre Clarice Lispector

“Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, mas seus pais imigraram para o Brasil pouco
depois, indo instalar-se em Maceió e, mais tarde, em Recife. Estudou inglês e francês, na
infância, e cresceu ouvindo o idioma dos pais, o iídiche. Mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde se formou em direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na universidade,
conheceu aquele que viria a ser seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente. Da união
nasceram seus dois filhos [...]. Dedicou a vida à escrita, produzindo textos para jornais, mas
principalmente, escrevendo literatura” (MACENA, 2017, p. 27).

Algumas de suas obras:


FIGURA – CLARICE LISPECTOR
• Perto do coração selvagem (1942)
• O lustre (1946)
• A cidade sitiada (1949)
• Laços de família (1960)
• A maçã no escuro (1961)
• A legião estrangeira (1964)
• A paixão segundo G. H. (1964)
• O mistério do coelho pensante (1967)
• A mulher que matou os peixes (1968)
• Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969)
• Felicidade clandestina (1971)
• Água viva (1973)
• A imitação da rosa (1973)
• Via-crúcis do corpo (1974)
• Onde estivestes de noite? (1974) FONTE: <http://twixar.me/Z2jT>.
• Visão do esplendor (1975) Acesso: 9 set. 2019.
• A hora da estrela (1977)

Quer saber mais sobre essa importante escritora? Acesse o site https://claricelispectorims.
com.br/vida/.

Nele você encontrará uma variedade de informações, muito bem organizadas, sobre
a vida e a obra de Clarice Lispector, além de ter acesso a um rico acervo de imagens
que compõem a linha do tempo da escritora. Também poderá localizar artigos, teses e
dissertações já escritas sobre ela.

Agora que você já conheceu um pouco sobre a vida e a obra de Clarice


Lispector, vamos analisar alguns contos de sua autoria que refletem sobre a
condição da mulher na sociedade. A forma irreverente de compor suas personagens
faz com que a cada conto Clarice traga à tona uma mulher diferente, sendo que
algumas delas, inclusive, não costumam ocupar o papel de protagonistas nas
obras literárias por não se enquadrarem dentro dos padrões aceitáveis de beleza.

55
É o caso do conto A solução, no qual Clarice dá visibilidade à mulher
gorda, tipo de personagem comumente retratado no modelo discursivo
patriarcal de forma negativa, quase sempre associada a termos pejorativos como
“feia, irritadiça, arfante, de olhar guloso, irrequieta, engraçada, de classe baixa”
(AZEVEDO, 2016, p. 55).

A solução é um pequeno conto de apenas duas páginas do livro A Legião


Estrangeira, publicado em 1964, que narra a estranha amizade entre duas colegas
de trabalho, Almira e Alice, cujos contrastes são evidentes: “À medida que a
amizade de Alice não existia, a amizade de Almira mais crescia. Alice era de rosto
oval e aveludado. O nariz de Almira brilhava sempre. Havia no rosto de Almira
uma avidez que nunca lhe ocorrera disfarçar: a mesma que tinha por comida, seu
contato mais direto com o mundo” (LISPECTOR, 1999, p. 65).

Ao apresentar Almira, protagonista da história, Clarice nos mostra uma


figura estereotipada em relação à representação comumente associada às pessoas que
possuem esse tipo de porte físico, mas ao mesmo ela tempo humaniza a personagem,
ao afirmar que “só a natureza de Almira era delicada” (LISPECTOR, 1999, p. 6).

No decorrer do conto, Clarice vai desvendando Almira, revelando uma


personagem “sufocada com a sensação de que fez algo errado, falou algo errado,
é uma pessoa errada que vive em uma sociedade na qual não há lugar nem
pertencimento para as pessoas gordas” (AZEVEDO, 2016, p. 56). O sentimento de
solidão e exclusão da personagem é evidenciado quando a autora descreve sua
amizade com Alice, colega de trabalho: “Alice era a sua maior amiga. Pelo menos
era o que dizia a todos com aflição, querendo compensar com a própria veemência
a falta de amizade que a outra lhe dedicava” (LISPECTOR, 1999, p. 65).

Ao final da trama, um acontecimento inesperado faz com que Almira


tome consciência de si. Entretanto, essa tomada de consciência não significa uma
reviravolta rumo a um final feliz, como nos contos de fadas. Ao contrário, conforme
advertido por Azevedo (2016, p. 57), “a literatura de Clarice não é redentora,
não tem a função de agradar o leitor e a leitora”. O conto em questão propicia
uma reflexão acerca da condição humana, representada por meio de uma figura
feminina que não atende aos padrões estéticos da contemporaneidade. Trata-se
de uma obra que “procura nos provocar incômodo e nos acompanha ao longo do
tempo, como reflexão do que somos, como vivemos, quem é o nosso outro e como
somos indiferentes ao estranho” (AZEVEDO, 2016, p. 57).

Outra obra de Clarice Lispector que permite fazer várias leituras da condição
feminina na contemporaneidade é Laços de Família, coletânea de contos publicada em
1960 cujas temáticas se interligam por tratarem de relações familiares.

56
DICAS

O livro Laços de Família está disponível para FIGURA – LAÇOS DE FAMÍLIA


download em: https://cs.ufgd.edu.br/download/Lacos%20
de%20Familia%20-%20Clarice%20Lispector.pdf.

Que tal fazer uma leitura prévia dos contos que serão
analisados a seguir? Posteriormente, leia os demais
contos da coletânea. Com certeza você vai gostar!

Contos que serão analisados a seguir:

• Devaneio e embriaguez de uma rapariga.


• Amor.
• A imitação da rosa.
FONTE: <http://twixar.me/R2jT>.
Boa leitura! Acesso: 8 set. 2019.

Apresentaremos, agora, três contos que fazem parte dessa obra, iniciando
por Devaneio e embriaguez de uma rapariga, que retrata a história de uma mulher
consumida pela rotina e entediada com as funções cotidianas e repetitivas da
vida doméstica. Em um dia em que o marido estava no trabalho e os filhos na
casa das tias, ela se vê absorta em seus devaneios que indicam um estado de
angústia e inquietação: “Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam
ora escuros, ora luminosos [...]. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente
trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios
entrecortados de várias raparigas” (LISPECTOR, 1998, p. 17).

A insatisfação com a vida doméstica evidencia-se com a chegada do


marido que a encontrou ainda dentro do quarto, sem ter cuidado dos habituais
afazeres: “Não quis jantar nem sair de seus cuidados, dormiu de novo: o homem
lá que se regalasse com as sobras do almoço. E, já que os filhos estavam na quinta
das titias em Jacarepaguá, ela aproveitou para amanhecer esquisita: túrbida e
leve na cama, um desses caprichos, sabe-se lá” (LISPECTOR, 1998, p. 19).

Na sequência, ao recusar os carinhos do marido, a mulher demonstra


também estar insatisfeita no campo sexual e amoroso:

Mas quando ele se inclinou para beijá-la, sua leveza crepitou como
folha seca: - Larga-te daí! – E o que tens? pergunta-lhe o homem
atônito, a ensaiar imediatamente carinho mais eficaz. Obstinada,
ela não saberia responder, estava tão rasa e princesa que não tinha
sequer onde se lhe buscar uma resposta. Zangou-se: – Ai que não me
maces! não me venhas a rondar como um galo velho! Ele pareceu
pensar melhor e declarou: – Ó rapariga, estás doente. Ela aceitou
surpreendida, lisonjeada (LISPECTOR, 1998, p. 19).

57
Ao sugerir que a mulher estava doente, o marido, na verdade, não queria
aceitar uma recusa da esposa: “o homem, por sua vez, cujo papel social atribuído
a ele o fez crer que sempre teria seus galanteios atendidos, diante da situação,
recusa-se a acreditar que sua mulher não mais se enquadrava no padrão de esposa
ideal, e prefere acreditar que ela estaria doente” (RIBEIRO; MOL, 2014, p. 184).

O conto segue narrando os devaneios da rapariga, que continuava


“ainda à cama, tranquila, improvisada. Ela amava… Estava previamente a amar
o homem que um dia ela ia amar” (LISPECTOR, 1998, p. 20). Por fim, no final
daquela semana acontece uma reviravolta no enredo quando ela precisou sair
com o marido para jantar com um negociante. No restaurante ela acaba bebendo
muito vinho e, embriagada, sente aflorar sua sensibilidade, fazendo com que
perceba que sua vida pode ir muito além do âmbito doméstico familiar ao qual
estava confinada.

Ao término do jantar a mulher regressa para casa, reassumindo seu papel


de dona de casa, tal como preconizado pela cultura patriarcal: “Mas depois de
amanhã aquela sua casa havia de ver: dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão
que se arrancaria as sujidades todas! A casa havia de ver! Ameaçou ela colérica.
Ai que sentia tão bem, tão áspera, como se ainda estivesse a ter leite nas mamas,
tão forte” (LISPECTOR, 1998, p. 27).

É interessante notar que tanto os devaneios da rapariga – desencadeados


no momento em que ela vê sua imagem refletida no espelho – quanto o estado
de embriaguez sinalizam momentos de tomada de consciência de si. Os conflitos
internos levam a mulher a se autoconhecer. Na percepção de Lima (2007, p. 99),
“é nesse universo em que a arte e a vida se confundem, através de devaneios
provocados ora pela imaginação da mulher, ora por seu estado de embriaguez,
que a portuguesa desperta, após a experiência do contato com o seu outro possível
e até mais desejável”.

Já no conto Amor, o público-leitor é apresentado à personagem Ana, que


“por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele
caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem
verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros” (LISPECTOR, 1998,
p. 30). Esse trecho dá a entender que Ana adaptara-se bem à vida de casada,
tornando-se uma mulher dedicada à casa, ao marido e aos filhos, sendo que sua
ocupação principal era manter a casa limpa e organizada. Tratava-se de uma vida
que ela “quisera e escolhera”, expressão destacada mais de uma vez no conto.

Entretanto, sua maior preocupação era “tomar cuidado na hora perigosa


da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada
membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos,
seu coração se apertava um pouco em espanto” (LISPECTOR, 1998, p. 31). Ana,
portanto, procurava ocupar-se o tempo todo, reprimindo seus sentimentos e

58
inquietações: “na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu
espanto – ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam
transmitido” (LISPECTOR, 1998, p. 31).

Por esse motivo, na “hora perigosa da tarde”, quando as obrigações


domésticas estavam todas cumpridas, Ana precisava encontrar alguma forma de
despistar o vazio e a solidão. Para isso ela costumava aproveitar esse momento
para ir às compras ou sair para levar algo para consertar, pois quando voltava a
família já estava em casa, logo chegaria a noite e no dia seguinte ela “encontrava
os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos”
(LISPECTOR, 1998, p. 31), ou seja, a cada manhã ela podia retomar sua rotina
habitual, que lhe permitia sentir-se segura.

E é justamente numa dessas idas regulares às compras que acontece


algo inusitado na rotina da protagonista. Voltando para casa, de bonde, ela vê
um homem cego parado no ponto mascando chicletes. Uma cena que passaria
despercebida para a maioria das pessoas incomodou profundamente a
protagonista: “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos
abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de
sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o [...]”
(LISPECTOR, 1998, p. 32).

Na sequência dos acontecimentos, Ana deixa cair a sacola de compras e


a atenção de todas as pessoas no bonde volta-se para ela, inclusive do condutor,
que estacou o veículo para saber o que estava acontecendo. Por fim o bonde
voltou a se movimentar, o cego ficou para trás, mas para Ana, “o mal estava feito.
Por quê? Teria esquecido que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava
pesadamente [...]. O mundo se tornara de novo um mal-estar” (LISPECTOR,
1998, p. 33).

Não se sabe porque, mas aquele encontro insólito com o cego desperta
profundos sentimentos na personagem, que começa a refletir profundamente
sobre sua própria existência. Conforme Pozenato (2010, p. 167),

[...] o cego desempenha aqui a função do espelho do conto anterior.


Ana se vê, de alguma forma, refletida no cego: ela também não vê o
mundo. Ao fazer esta constatação, entra em crise. E a marca da crise é
o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada.
A esse novo olhar o mundo se apresenta sem lei, a serena compreensão
baseada na separação entre as coisas desaparece. Tudo isso provoca
simultaneamente prazer e mal-estar. É a náusea doce como situação-
limite da consciência.

Diante de uma vida resignada, na qual Ana desempenhava mecanicamente


as funções tradicionalmente designadas para a mulher/mãe/esposa/dona de
casa, Ana vive um processo de tomada de consciência após seu encontro com o
cego, passando a refletir e questionar sua própria existência. Entretanto, mesmo
passando a ter consciência de seu estar no mundo,

59
Ana não conseguirá mudar o futuro que seu destino de mulher lhe
reserva, porque este é, na verdade, uma invenção de Ana para tornar
inteligível o que ela não consegue compreender, mas que a epifania
do cego mascando chicles a faz intuir, isto é, a falta de sentido da
monotonia de sua vida. E o retorno de Ana à alienação não se dá
mediante uma imposição, mas devido ao seu próprio assujeitamento
(RÖHRIG, 2017, p. 202).

Por fim analisaremos o conto A imitação da Rosa, cuja protagonista é Laura,


personagem feminina de Clarice Lispector cujo rosto “tinha uma graça doméstica,
os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os
olhos marrons, os cabelos marrons, a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto
já não muito moço um ar modesto de mulher” (LISPECTOR, 1998, p. 48). Trata-
se de mais uma personagem clariceana que, que ao longo da narrativa, tem seu
momento de epifania ao se deparar com o lado mais profundo do seu interior. De
acordo com Brito (2007, p. 39),

A imitação da rosa ilustra bem a noção de mimesis como “criação


imagética”. A simplicidade dessa história é só aparente, ou seja, quando
nos limitamos a ver que o fluxo narrativo se refere a uma mulher, no
interior de sua casa, ocupando apenas três dos cômodos: a sala, o
quarto, a cozinha. Ficam muito claras, neste conto, as transformações
que a literatura promove ao incorporar referências e valores aceitos
entre sujeitos da realidade da vida cotidiana.

A narrativa, que gira em torno das rememorações e reflexões da


personagem principal, começa com sua Laura preparando-se para aguardar
a chegada do marido, Armando, pois juntos iriam ao encontro de um casal de
amigos cujos nomes eram Carlota e João. Em sua imaginação, Laura pensava, em
detalhes, sobre como seria a noite e como deveria esforçar-se para não falhar, não
decepcionar o marido e nem seus amigos: eles iriam para o jantar de ônibus, “ela
olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele” (LISPECTOR, 1998, p. 47).
No jantar, Armando, seu marido, ficaria conversando com João sobre as notícias
dos jornais, ao passo que ela “falaria com Carlota sobre coisas de mulheres,
submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a
desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele
carinho perplexo e cheio de curiosidade” (LISPECTOR, 1998, p. 47).

À medida que o conto avança, Clarice vai compondo o universo íntimo


da personagem, levando o público-leitor a compreender, por exemplo, que
Laura passa por um momento de retomada da normalidade, após um período de
tratamento em uma clínica ou hospital. Ela está, portanto, tentando reassumir o
controle de sua vida, “com seu gosto minucioso pelo método”, (LISPECTOR, 1998,
p. 30) esforçando-se para cumprir seu papel de esposa conforme as convenções
sociais determinadas pela sociedade.

60
Ao dar voz aos devaneios de Laura no momento em que ela se prepara para
o jantar, Clarice vai compondo paulatinamente a personagem, contrapondo-a à
amiga: “Carlota ambiciosa e rindo com força: ela, Laura, um pouco lenta, e por
assim dizer cuidando em se manter sempre lenta; Carlota não vendo perigo em
nada. E ela cuidadosa” (LISPECTOR, 1998, p. 49).

A diferença entre ambas também fica evidente quando a autora descreve


a forma com que elas organizam suas respectivas casas: “ao contrário de Carlota,
que fizera de seu lar algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em
fazer de sua casa uma coisa impessoal; de certo modo perfeita por ser impessoal”
(LISPECTOR, 1998, p. 50).

O ponto alto da narrativa acontece quando Laura se vê diante de um jarro


com rosas e fica surpresa com tamanha beleza e perfeição:

Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade. E como se não


tivesse acabado de pensar exatamente isso, vagamente consciente de
que acabara de pensar exatamente isso e passando rápida por cima
do embaraço em se reconhecer um pouco cacete, pensou numa etapa
mais nova de surpresa: “sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas”.
Olhou-as com atenção. Mas a atenção não podia se manter muito
tempo como simples atenção, transformava-se logo em suave prazer,
e ela não conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper-
se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas
(LISPECTOR, 1998, p. 57).

Pensa, então, em pedir à empregada que leve as rosas para Carlota, que
ficaria surpresa com a sua “delicadeza de sentimentos”, já que, afinal, “ninguém
imaginaria que Laura tivesse também suas ideiazinhas” (LISPECTOR, 1998,
p. 59). Esse gesto também impressionaria seu esposo, que “encararia com
benevolência os impulsos de sua pequena mulher, e de noite eles dormiriam
juntos” (LISPECTOR, 1998, p. 60). Esses pensamentos demonstram, mais uma
vez, o desejo de Laura em ser reconhecida por estar adaptada a um padrão
esperado de comportamento, bem como o desejo de agradar às pessoas, para ser
bem vista e aceita socialmente. Entretanto, depois de pedir para a empregada
enviar as rosas, Laura se vê arrependida, afinal:

Por que dá-las, então? lindas e dá-las? Pois quando você descobre
uma coisa boa, então você vai e dá? Pois se eram suas, insinuava-se
ela persuasiva sem encontrar outro argumento além do mesmo que,
repetido, lhe parecia cada vez mais convincente e simples. Não iam
durar muito – por que então dá-las enquanto estavam vivas? O prazer
de tê-las não significava grande risco – enganou-se ela – pois, quisesse
ou não quisesse, em breve seria forçada a se privar delas, e nunca mais
então pensaria nelas pois elas teriam morrido – elas não iam durar
muito, por que então dá-las? O fato de não durarem muito parecia
tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de mulher que
peca. Pois via-se que iam durar pouco (ia ser rápido, sem perigo) [...].
Olhou-as com enlevo, pensativa, profunda. E, sinceramente, nunca vi
na minha vida coisa mais perfeita (LISPECTOR, 1998, p. 61).

61
Um simples jarro de rosas foi capaz de perturbar a ordem recentemente
estabelecida, já que a “beleza extrema” das rosas a incomodava, contrastando com a
opacidade de sua vida. Além disso, as rosas despertam em Laura questionamentos
acerca de si, fazendo-a refletir sobre questões que nunca havia pensado, como, por
exemplo, o fato dela nunca se preocupar consigo, vivendo a vida em função do
outro: “Um segundo depois, muito suave ainda, o pensamento ficou levemente
mais intenso, quase tentador: não dê, elas são suas. Laura espantou-se um pouco:
porque as coisas nunca eram dela” (LISPECTOR, 1988, p. 61).

Todo o discurso narrativo desenvolve-se na zona de tensão entre o


pessoal e o impessoal, entre o positivo e o negativo, entre o sim e o não,
revelando o quanto atitudes individuais podem afetar a coletividade.
As escolhas de Laura são pensadas e repensadas com o objetivo de
não frustrar os outros, aqueles com quem convive socialmente. A
preocupação com a opinião alheia é o que mais a atormente. Enquanto
Laura desempenha o papel social que dela esperam, a vida segue
tranquila para os que estão a seu redor. No entanto, a partir do
momento em que deixa de agir conforme os padrões sociais para ela
estabelecidos, tudo se abala, tudo se desestrutura (BRITO, 2007, p. 46).

Por fim, ao desfazer-se das rosas, Laura sente sua falta pois “haviam
deixado um lugar claro dentro dela [...]. As rosas haviam deixado um lugar sem
poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia
ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo, faltava. Como uma falta
maior” (LISPECTOR, 1998, p. 31). O conto leva o público-leitor a refletir sobre os
conflitos internos que podem ser desencadeados mediante situações simples e
inusitadas do cotidiano.

DICAS

Quer conhecer outra interessante personagem feminina de Clarice Lispector?


Leia o livro A hora da estrela, romance protagonizado por Macabéa, que será brevemente
apresentado a seguir:

62
“Em seu último texto, A hora da estrela nos apresenta a história de Macabéa, uma
nordestina pobre, raquítica e semianalfabeta. Diferente de suas personagens
anteriores que inseridas no vazio de um quotidiano pequeno burguês, viviam
um tédio confortável, Macabéa é só, sem laços de família e que mal tem forças
para lutar pela sua sobrevivência na cidade do Rio de Janeiro. Macabéa, essa
personagem de existência insignificante e miserável, é de grande importância
no conjunto da obra de Clarice Lispector, pois trata-se de sua última
personagem, de seu último livro. Depois de A Hora da Estrela, Clarice retira-
se de cena, como que num gesto de desistência de tentar entender-se, de tentar
entender a vida e sua dor, cessa sua busca desesperada de seu eu. Órfã de pai
e mãe, Macabéa foi criada por uma tia “muito madrasta má” que também vem
a falecer alguns anos depois. Não se sabe de que maneira, mas um dia a jovem
chega ao Rio de Janeiro. Lá vai viver em uma pensão na rua do Acre, dividindo
o quarto com mais quatro moças, todas Marias (da Penha, Aparecida, José e
uma quarta que era apenas Maria), que trabalham como balconistas nas Lojas
Americanas. Macabéa consegue um emprego de datilógrafa em um pequeno
escritório (foi a única que aceitou trabalhar por aquele salário tão baixo). Lá
divide o espaço com o chefe, o dono da firma e Glória, uma carioca da gema,
fogosa e loira (artificial)” (CORDEIRO, 2017, p. 3273).

DICAS

Quer conhecer o restante da história dessa intrigante personagem? Leia


o livro na íntegra, que está disponível em: http://colegioplante.com.br/wp-content/
uploads/2016/06/A-Hora-da-Estrela-Clarice-Lispector.pdf.

Você também pode assistir ao filme cujo roteiro é uma adaptação do romance
homônimo de Clarice Lispector. Ele foi produzido por Suzana Amaral em 1985.

3 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM LYGIA BOJUNGA


Lygia Bojunga é autora de um expressivo conjunto de obras infantojuvenis,
reconhecida pela qualidade de suas produções as quais problematizam o universo
da criança inserida na dinâmica familiar e social. A notoriedade alcançada pelas
personagens criados pela autora ganhou tamanho significado que ela é apontada
pela crítica como sucessora de Monteiro Lobato.

63
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

De acordo com Cristófano (2011, p. 1), “ao pensar na literatura como uma
possibilidade de contribuir para a formação ideológica do povo brasileiro”, a
escritora “utiliza as suas obras infantis e juvenis como um compromisso social.
Por meio de suas obras literárias denuncia e favorece reflexões sobre várias
questões, entre eles, o preconceito contra a mulher”.

Além disso, em seu universo literário a temática de gênero também


ganha atenção, motivo pelo qual será feita, a seguir, a análise de duas obras
publicadas por Bojunga: A bolsa amarela e Corda Bamba. De forma sensível, a
autora utiliza-se da fantasia para abordar temas essenciais como o respeito, a
desigualdade e a liberdade, além de problematizar importantes questões acerca
da identidade feminina.

E
IMPORTANT

Um pouco sobre Lygia Bojunga

Antes de continuar a leitura, que tal conhecer um pouco sobre a vida e a obra dessa
escritora?

“Nascida em Pelotas, em 1932, desde sua primeira publicação – Os colegas – em 1972,


cativou um público que foi se solidificando a cada nova publicação. Esse reconhecimento
resultou em premiações de mérito, tais como: em 1973, recebeu o Prêmio Jabuti, o mais
importante prêmio literário do Brasil; em 1982, o Prêmio Hans Christian Andersen, o mais
prestigiado prêmio literário da literatura infantojuvenil, considerado o pequeno Nobel de
Literatura; em 2004, foi agraciada com o Prêmio Memorial Astrid Lindgren, que é outorgado
pelo governo da Suécia a um autor de literatura infantil e juvenil, a um ilustrador ou a um
promotor da leitura, de qualquer país do mundo” (SANTOS, 2015, p. 34).

FIGURA – LYGIA BOJUNGA

FONTE: <http://obviousmag.org/literatura_em_movimento/2017/por-que-amar-as-obras-
de-lygia-bojunga.html>. Acesso em: 8 set. 2019.

Para conhecer as obras e outros dados interessantes da vida da autora, acesse o site: http://
www.casalygiabojunga.com.br/pt/index.html.

64
TÓPICO 3 | REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA

O livro A bolsa amarela conta a história de Raquel, protagonista que, apesar


de criança, possui personalidade forte e está sempre atenta a tudo que se passa ao
seu redor, sendo detentora de três vontades. Logo no início do livro, Raquel deixa
claro que sua vontade não é “vontade magra, pequenininha”, mas são vontades
que “vão crescendo e engordando toda a vida” (BOJUNGA, 1990, p. 11), a saber:
vontade de ser escritora, de ser garoto e de crescer.

Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade
de crescer de uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a
vontade de ter nascido garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando
que é a vontade de crescer. Já fiz de tudo para me livrar delas. Adiantou?
Hmm! É só me distrair um pouco e uma aparece logo. Ontem mesmo
eu tava jantando e de repente pensei: puxa vida, falta tanto ano pra eu
ser grande. Pronto: a vontade de crescer desatou a engordar, tive que
sair correndo pra ninguém ver. Faz tempo que eu tenho vontade de
ser grande e ser homem. Mas foi só no mês passado que a vontade de
escrever deu pra crescer também (BOJUNGA, 1990, p. 11-12).

É a partir desses três desejos de Raquel que o público-leitor é convidado


a mergulhar no universo da menina, caçula de quatro irmãos que sente falta da
atenção familiar: “quando eu nasci minhas duas irmãs e meu irmão já tinham
mais de dez anos. Fico achando que é por isso que ninguém aqui em casa tem
paciência comigo” (BOJUNGA, 1990, p. 12).

O grande conflito de Raquel é a necessidade de reprimir suas vontades,


pois teme ser ridicularizada pela família. Esse fato, por si só, já dá pistas da
estrutura familiar tradicional na qual crianças não podem ter vontades, devendo
adotar uma postura de submissão frente às regras que lhe são impostas. Por
esse motivo, a bolsa amarela torna-se o refúgio ideal para guardar e proteger as
vontades de Raquel, que ficariam escondidas dos adultos que não se esforçam
por compreendê-las.

Não serão somente suas vontades que viverão na bolsa, mas também
outros personagens que a menina vai agregando ao longo da história, como o
galo Afonso. E assim a narrativa vai se desenvolvendo, em meio a relatos que
misturam acontecimentos reais da família com o mundo criado no pensamento
de Raquel, povoado por fantasias e por seus amigos imaginários, denominados
André e Lorelai.

Acerca das vontades de Raquel, Zinani (2015) observa que os problemas


mais cruciais enfrentados pela menina são os dois últimos (vontade de ser garoto
e de crescer). Considerando que crescer é algo que se resolverá automaticamente
com o tempo, resta a vontade de tornar-se um garoto, desejo este que não
está relacionado à troca de sexo, ou seja, o que está em jogo não são aspectos
relacionados à anatomia ou à fisiologia, mas às questões sociais decorrentes das
relações de gênero. Raquel passou a ter vontade de ser menino quando percebeu
as relações de poder que remetem, inevitavelmente, as questões relacionadas à
inferioridade atribuída ao feminino (ZINANI, 2015).

65
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Porque eu acho que é muito melhor ser homem do que mulher [...].
É, sim. Vocês podem um monte de coisas que a gente não pode.
Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe, pras
brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é
sempre o homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo
de jogo que eu gosto, todo o mundo faz pouco de mim e diz que é coisa
pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só
a gente bobear que fica burra: todo o mundo tá sempre dizendo que
vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser
chefe de família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que – puxa
vida! – você é que vão ter tudo. Até pra resolver casamento – então eu
não vejo? – a gente fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre
esperando vocês resolverem as coisas pra gente. Você quer saber de
uma coisa? Eu acho fogo ter nascido menina (BOJUNGA, 1990, p. 16).
 
Algumas formas de representação do feminino vão se desvelando no
decorrer do texto, por exemplo, quando Raquel descreve uma de suas irmãs mais
velhas: “Essa irmã que eu tô falando é bonita pra burro, você precisa ver. Nem
sei o que ela é mais se bonita ou mascarada. Imagina que outro dia ela me disse:
Eu sou bonita, não preciso trabalhar nem estudar: tem homem assim querendo
me sustentar; posso escolher à vontade” (BOJUNGA, 1990, p. 26). A fala da irmã
de Raquel (“tem homem querendo me sustentar”) associada à descrição física da
moça (“bonita pra burro”) remete à objetificação do corpo feminino, que consiste
em considerar a mulher como objeto ou coisa, e não como sujeito dotado de
aspectos emocionais e psicológicos (BELMIRO et al., 2015).

Em outro momento da narrativa Raquel tece reflexões sobre seu tio Júlio,
cuja esposa gosta de gastar dinheiro com coisas que logo enjoam e descarta:

Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de ver a tia Brunilda gastar o


dinheiro numas coisas que ela enjoa logo. Mas ele não fica. Eu acho isso
tão esquisito! Outra coisa um bocado esquisita é que, se ele reclama,
ela diz logo: Vou arranjar um emprego. Aí ele fala: De jeito nenhum!
E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais. E continuar enjoando
(BOJUNGA, 1990, p. 26).

Esse pequeno excerto do livro evidencia “uma forma de pensamento
arcaico, base da sociedade patriarcal, no qual o homem se constitui como o único
provedor e mantenedor do lar, não aceitando, de forma alguma, a participação
feminina”; além disso, esse modo de pensar “contrapõe-se às discussões que
preconizam o reconhecimento da mulher como sujeito e a valorização dos papeis
sociais de ambos os gêneros” (ZINANI, 2015, p. 26-27).

Ao situar o texto no momento histórico em que foi produzido, Cristófano


(2011) lembra que

[...] o discurso da protagonista vem de encontro às preocupações e ao


debate das mulheres na década de setenta, quando o movimento hippie
tendo por ideal ideias de Betty Friedman, luta pela igualdade entre os
sexos qualquer que fosse a sua raça, sexo ou cor. Pela voz de Raquel, a
autora apresenta, do ponto de vista da infância, reflexões a respeito de
uma sociedade patriarcal que trata a mulher como um “segundo sexo”.

66
TÓPICO 3 | REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA

Ao término da narrativa Raquel descobre que “ser menina podia ser tão
legal quanto ser garoto (BOJUNGA, 1990, p. 125), e a vontade de ser um menino
emagreceu tanto que foi sumindo. Isso aconteceu após Raquel conhecer a Casa
dos Consertos, onde ela encontra uma família diferente na qual os papéis sociais
não estão pré-definidos; ao contrário, os moradores alternam nas funções que
tradicionalmente são divididas entre homens e mulheres.

A bolsa amarela propicia ao público-leitor momentos de reflexão sobre


o papel do homem e da mulher na sociedade, bem como sobre os problemas
relacionados à infância, às relações familiares e ao questionamento da autoridade.
Trata-se, portanto, de uma obra que contribui para a tomada de consciência da
própria identidade.

Outro livro importante de Lygia Bojunga que põe em cena questões


relacionadas à descoberta da identidade e emancipação feminina é Corda bamba,
protagonizada pela personagem Maria, menina que com apenas dez anos sofre
a perda dos pais, Márcia e Marcelo, equilibristas de circo. Após o acidente ela vai
morar com a avó materna, Dona Maria Cecília Mendonça de Melo, mulher de classe
média alta que tentava comprar tudo, inclusive pessoas, com o poder do dinheiro.

A narrativa tem início com a chegada de Maria na casa da avó, levada


por Barbuda e Foguinho, artistas que trabalhavam no mesmo circo que os pais
de Maria. A menina, que estava em luto pela perda dos pais, passava também
por um momento de bloqueio psicológico que a impedia de compreender os
acontecimentos em torno daquelas mortes. O obscurantismo desses fatos fazia
com que a menina se sentisse culpada pelos acontecimentos.

Percebe-se logo de início, pela atitude da avó, que a vida de Maria mudaria
drasticamente na nova residência. Quando Barbuda explica aos moradores
da casa que Maria trabalhava com eles no circo, a avó interrompe de forma
veemente: “v – Agora ela não trabalha em mais nada, agora ela vai ficar morando
aqui comigo e só vai estudar e brincar [...] – Isso era antigamente, essa história de
Maria trabalhar em circo já passou (BOJUNGA, 1987, p. 13-14).

A partir de então, além de ser tolhida em sua criatividade e liberdade,


Maria passa a sofrer um processo de perda de identidade, já que as aprendizagens
e vivências do circo são anuladas e ela passa a ter aulas particulares para recuperar,
na percepção da avó, o tempo perdido em relação aos estudos.

Entretanto, tal como a personagem Raquel, de A bolsa amarela, Maria


encontra uma forma, em seu mundo imaginário, de sair daquele mundo em que
ficava reclusa sob as determinações da avó. Tratava-se de uma corda bamba que
a leva para um prédio em frente à janela do seu quarto, no qual se visualiza uma
janela distinta das demais. Ao atravessá-la, Maria descobre seis portas de cores
diferentes pelas quais ela vai incursionando ao longo da narrativa, sendo que a
cada porta atravessada ela vai fazendo importantes descobertas acerca de si e da
sua família.

67
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Maria acordou na hora certinha: estava recém clareando [...] pegou


o arco e saiu pro calçadão. Não sentiu mais medo, não tremeu nem
nada. E foi achando tão bom lá em cima, o passeio, tudo, que quando
viu já tinha passado a janela diferente [...] então deu macha-à-ré até
chegar no andaime [...] e aí espiou de rabo de olho. Viu um rapaz
deitado e se assustou [...] Maria pulou pro andaime [...] Parou.
Fascinada. Mal podendo acreditar. O rapaz era igualzinho ao pai
dela, só que mais moço [...] ouviu uma voz dizendo Oi! Acorda! E
só de ouvir a voz, o coração deu um esbarrão no peito e ela toda se
virou pra olhar. Tinha uma moça debruçada na janela, igualzinha a
mãe dela (BOJUNGA, 1987, p. 63)

Durante os passeios que fez pela corda bamba Maria descobre, por
exemplo, o motivo da solidão e do egoísmo da sua avó e revive o momento
da morte dos pais, compreendendo o motivo pelo qual eles arriscaram a vida
no espetáculo circense que ocasionou a tragédia. Ao reviver fatos de dor,
Maria consegue elaborar seu luto e viver momentos de superação: trata-se de
um processo que, “embora doloroso, conduz a menina para a recuperação da
memória e, de posse do conhecimento da vida vivida, sente-se livre da culpa
[...]” (SANTOS, 2015, p. 46-47).

Finalmente, Maria se vê diante de uma porta de cores múltiplas, que ela


nunca tinha visto:

[...] ué que porta nova era aquela? Era uma porta diferente de
tamanho e de feitio, diferente de pintura também: parecia que estavam
experimentando uma porção de cor: tinha uma porção de pinceladas,
cada uma de uma tinta. Maria abriu a porta bem devagar. Mas
sem medo. Era um quarto vazio [...] Maria começou a passar muito
tempo no quarto novo [...] O tempo vai passando, mais portas vão
aparecendo, e Maria vai abrindo todas elas, e vai arrumando cada
quarto[...] Num quarto ela bota o circo onde vai trabalhar; no outro ela
gota o homem que ela vai gostar; no outro os que ela vai ter. Arruma,
prepara, prepara: ela sabe que vai chegar o dia de poder escolher
(BOJUNGA, 1987, p. 123).

Na percepção de Santos (2015), Corda bamba é uma obra emancipatória, pois


a menina consegue suplantar um passado opressor podendo, por fim, planejar
ela mesma seu futuro, sem ficar presa às determinações que lhe são impostas.
Lima (2014), por sua vez, destaca a importância desse processo de emancipação
uma vez que o que se vê, ao longo do tempo, é que ao gênero feminino sempre
foi “imposto o silêncio, a aceitação a tudo que lhes fosse imputado e a não
permissividade de realizar escolhas”.

É interessante notar que o processo de escolha e de emancipação feminina


pode ser notado também na história da mãe de Maria, que mesmo contrariando
sua mãe, resolve casar-se com Marcelo, que não pertencia à mesma classe social.
A tentativa de Dona Maria Cecília de comprar Marcelo para que a união não se
concretizasse foi em vão, já que o amor de ambos falou mais forte.

68
TÓPICO 3 | REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA

4 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM MARINA COLASANTI


Marina Colasanti, além de escritora de obras literárias é também jornalista,
ensaísta, tradutora e artista plástica. Autora de mais de 50 títulos publicados dentro
e fora do Brasil, ela é também uma das mais premiadas escritoras brasileiras.
De acordo com Silva (2003, p. 32), a principal característica dessa personalidade
cultural expoente da contemporaneidade é a diversidade, sendo que “em cada
uma dessas suas atividades, constitui uma espécie de leitmotiv a preocupação
com o universo feminino. (Re) pensar a condição feminina no mundo é, para a
autora, reflexão imprescindível na prática intelectual e artística da mulher”.

De fato, a obra literária de Colasanti fornece uma série de elementos


que permitem ao público-leitor perceber as relações homem-mulher no
mundo. A propósito, Marina não somente escreve sobre a mulher como
também tece importantes reflexões sobre o papel social da mulher-escritora,
sendo bastante conhecido seu artigo Por que nos perguntam se existimos, no
qual ela afirma que

[...] as escritoras estão perfeitamente conscientes de que ainda hoje


um preconceito pesado tende a colorir de rosa qualquer obra de
literatura feminina. Apesar da onda dos anos sessenta que envolveu
os escritos das mulheres em um grande e esperançoso movimento,
não conseguimos vencer a barreira. O preconceito perdura. Pesquisas
mostram que basta a palavra mulher em um título para espantar os
leitores homens e abrandar o entusiasmo dos críticos. E embora não
precisemos mais nos esconder atrás de pseudônimos masculinos,
como no século XIX, sabemos que os leitores abordam um livro de
maneira diferente quando ele é escrito por uma mulher ou por um
homem (COLASANTI, 1997, p. 37).

Por meio de suas obras, Marina Colasanti leva o público-leitor a refletir


sobre a condição da mulher na sociedade e, ao mesmo tempo, dá voz a essa
mulher, sugerindo a construção de outras imagens representativas do feminino.
Para compreender como essa temática está presente na obra dessa escritora,
faremos a análise dos contos A moça tecelã e Além do bastidor.

69
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

E
IMPORTANT

Que tal conhecer um pouco mais sobre a escritora Marina Colasanti antes de
continuar a leitura? Leia, a seguir, sua biografia.

Marina Colasanti nasceu em 1937 na cidade de Asmara, capital da Eritreia. Residiu


posteriormente em Trípoli, na Líbia, mudou-se para Itália e, em 1948, transferiu-se com a
família para o Brasil, onde vive até hoje na cidade do Rio de Janeiro. É casada com o também
escritor Affonso Romano de Sant’Anna e tem duas filhas, Fabiana e Alessandra Colasanti.
De formação artista plástica, ingressou no Jornal do Brasil, dando início à sua carreira
de jornalista. Desenvolveu atividades em televisão, editando e apresentando programas
culturais. Foi publicitária. Traduziu importantes autores da literatura universal.
Seu primeiro livro data de 1968, hoje são mais de cinquenta títulos publicados no Brasil e
no exterior, entre os quais livros de poesia, contos, crônicas, livros para crianças e jovens e
ensaios sobre os temas literatura, o feminino, a arte, os problemas sociais e o amor. Hora
de alimentar serpentes e Mais de 100 histórias maravilhosas são algumas de suas obras
consagradas. Por meio da literatura, teve a oportunidade de retomar sua atividade de artista
plástica, tornando-se sua própria ilustradora. [...]

FIGURA – MARINA COLASANTI

FONTE: <https://globaleditora.com.br/autores/biografia/?id=2607>. Acesso em: 8 set. 2019.

É uma das mais premiadas escritoras brasileiras, detentora de vários prêmios Jabutis,


do Grande Prêmio da Crítica da APCA, do Melhor Livro do Ano da Câmara Brasileira do
Livro, do prêmio da Biblioteca Nacional para poesia, de dois prêmios latino-americanos.
Foi o terceiro prêmio no Portugal Telecom de Literatura 2011. Tornou-se hors-concours
da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), após ter sido várias vezes premiada.

FONTE: <https://globaleditora.com.br/autores/biografia/?id=2607>. Acesso: 13 ago. 2019.

A moça tecelã é considerado um conto de fadas moderno, que retrata a


vida de uma jovem que passa o dia a tecer, conforme enunciado nos parágrafos
iniciais da narrativa:

70
TÓPICO 3 | REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás


das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para
começar o dia. Delicado traço cor da luz que ela ia passando entre
os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava
o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a
hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e
no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos
fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra
trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos
rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à
janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as
folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos
fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim,
jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes
pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias
(COLASANTI, 1985, p. 7).

Conforme reiterado mais de uma vez no texto, “Tecer era tudo o que fazia.
Tecer era tudo o que queria fazer”, pois realizando essa atividade cotidiana ela
se sentia feliz. Com o tempo, porém, a tecelã começa a se sentir sozinha, motivo
pelo qual resolve tecer um marido: “com capricho de quem tenta uma coisa
nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam
companhia” (COLASANTI, 1985, p. 8). E foi assim que ela compôs seu esposo,
com o qual viveu feliz por um certo tempo, sempre pensando em aumentar sua
felicidade quando os filhos viessem a fazer parte daquela família.

O marido, porém, não compactuava dos mesmos sonhos que a esposa.


Ao invés de filhos ele pediu que ela tecesse uma casa melhor, e a seguir quis que
a casa se transformasse em um palácio, feito de pedra e arrematado em prata.
O trabalho de tessitura do palácio foi exaustivo, exigindo muito trabalho da
jovem tecelã. Quando ficou pronto, o marido abrigou-a no alto da torre, para
que ninguém descobrisse seu tear. Os desejos do marido eram infinitos e, sem
descanso, a mulher era obrigada a tecer seus caprichos: estrebarias, cavalos,
cofres de moedas, salas de criados.

Porém, quanto mais tecia mais triste ficava, passando a sentir saudades
do tempo em que, mesmo sozinha, era feliz, tecendo sua vida, sonhos e humores
com as diversas cores dos fios que colocava em seu tear. Resolveu, então, voltar
ao tear, segurar a lançadeira ao contrário e desfazer todo aquele tecido:

Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois


desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha.
E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além
da janela. A noite acabava quando o marido, estranhando a cama
dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se
levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus
pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo
corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como
se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã
repetiu na linha do horizonte (COLASANTI, 1985, p. 8).

71
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

Analisando o conto nota-se que o marido, a princípio, exerce uma evidente


dominação em relação à tecelã, que cumpria todos os seus desejos materiais.
Instaurado o conflito, ou seja, quando a mulher tem consciência do estado de
tristeza em que vivia, ela mesma resolve a situação em busca do seu final feliz.
Como bem observado por Soares e Carvalho (2015, p. 119), é interessante notar que
“a resolução do conflito não está na figura masculina e sim no desaparecimento
do companheiro”, expediente bastante inusitado quando comparado aos contos
de fadas tradicionais.

Além do bastidor, conto integrante do livro Uma ideia toda azul (1998), também
gira em torno do ofício do tear, metáfora recorrente na obra de Colasanti que remete
à ideia de transformação interior e crescimento natural (GOULD, 2005). O conto tem
início com a personagem decidindo o que irá bordar; ela sabe apenas que quer utilizar
a cor verde. Ao começar o bordado, viu que ele tomou a forma de capim, “alto, com as
pontas bordadas como se olhasse para alguma coisa” (COLASANTI, 2015, p. 16). Aos
poucos, diferentes componentes são gradativamente tecidos e um cenário vai surgindo
por meio de suas habilidosas mãos:

Assim, aos poucos, sem risco, um jardim foi aparecendo no bastidor.


Obedecia às suas mãos, obedecia ao seu próprio jeito, e surgia como se no
orvalho da noite se fizesse a brotação. Toda manhã a menina corria para o
bastidor, olhava, sorria, e acrescentava mais um pássaro, uma abelha, um
grilo escondido atrás de uma haste (COLASANTI, 1985, p. 7).

Embora fruto de um trabalho intenso da jovem, trata-se de um cenário


que vai se formando espontaneamente, sendo sua composição comparada à
brotação que surge imperceptivelmente no orvalho da noite. À medida que vai
compondo seu bordado, a menina sente-se feliz, diante daquele universo que ela
mesma criara. Começa, então, “a gostar dele mais do que qualquer outra coisa”
(COLASANTI, 1985, p. 5).

Na sequência da narrativa chama a atenção uma mudança repentina na


forma verbal utilizada por Marina Colasanti, que do passado contínuo vai para
pretérito perfeito “Foi no dia da árvore”. Na percepção de Cordeiro (2018), a
mudança é indicativa de que algo definitivo estava prestes a acontecer:

Foi no dia da árvore. A árvore estava pronta, parecia não faltar nada. Mas
a menina sabia que tinha chegado a hora de acrescentar os frutos. Bordou
uma fruta roxa, brilhante, como ela mesma nunca tinha visto. E outra, até
a árvore ficar carregada, até a árvore ficar rica, e sua boca se encher do
desejo daquela fruta nunca provada (COLASANTI, 1985, p. 13).

Ao término do bordado, portanto, a menina sente necessidade de bordar


os frutos, cuja presença lhe despertam novos desejos. Para Cordeiro (2018, p.
3330), “a fruta bordada a conduz para um mundo de descoberta. Provado esse
novo sabor, todos os dias, a personagem busca por ele, descendo ao seu bordado”.

72
TÓPICO 3 | REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA

O final da narrativa permite supor que a menina foi viver dentro do seu
próprio bordado, contando, para isso, com a ajuda da irmã mais velha, já que ela
mesma não poderia fazer seu próprio bordado:

Bordou os cabelos, e o vento não mexeu mais neles. Bordou a saia, e as


pregas se fixaram. Bordou as mãos, para sempre paradas no pescoço
da garça. Quis bordar os pés, mas estavam escondidos pela grama.
Quis bordar o rosto, mas estava escondido pela sombra. Então bordou
a fita dos cabelos, arrematou o ponto, e com muito cuidado cortou a
linha (COLASANTI, 1985, p. 14).

Chama a atenção, no final, o fato de a menina ir morar dentro de um


bordado que ela mesma criou, situação que remete à ideia da mulher enquanto
construtora de seu próprio destino. Ao contrário dos contos de fadas tradicionais,
nos quais a mulher fica à espera do príncipe que a levará para um castelo, aqui
seu futuro é definido e composto por ela mesma.

Também é interessante notar que em nenhum momento a garota


demonstra medo ou insegurança; ao contrário, ela sempre se mostrava decidida
quanto ao que fazer. Isso configura-se, para Soares e Carvalho (2015, p. 115),
em um novo tipo de protagonismo feminino presente nos contos de fadas
modernos, que “propõe a desconstrução de estereótipos. O natural, para alguns,
seria que a personagem feminina tivesse seus medos e fosse frágil, características
tradicionalmente ligadas ao feminino”.

Fazendo uma correlação entre A moça tecelã e Além do bastidor, nota-


se que ambas as narrativas são canalizadas para o desejo de libertação de suas
protagonistas que, em suas atividades cotidianas, tecem seus mundos, atravessam
obstáculos e constroem seus destinos de forma independente. São contos em
que “novas imagens são divergentes das que foram estigmatizadas, ao longo
da história, por obras em que a voz autoral masculina era a única legitimada”
(SOARES; CARVALHO, 2015, p. 120).

Chegamos ao final da primeira unidade. Esperamos que os estudos


realizados até aqui tenham contribuído para sua construção do conhecimento acerca
das relações entre gênero e literatura. Na próxima unidade daremos continuidade
ao debate, colocando em pauta questões relacionadas à raça, à etnia e à diversidade
cultura. Será que esses temas são contemplados na nossa literatura?

73
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

LEITURA COMPLEMENTAR

DA MARGEM: A MULHER ESCRITORA E A HISTÓRIA DA LITERATURA

Cecil Jeanine Albert Zinani


Natalia Borges Polesso

Este artigo busca, dentro de uma visão histórico-cultural, aproximar-se do


entendimento da crítica feminista e de suas implicações no sistema literário brasileiro
e sul-rio-grandense, bem como agregação ou exclusão de obras no cânone. Também,
procura mostrar que literatura é, por vezes, uma provocação ao conhecimento
das coisas e do mundo. A literatura carrega marcas do particular cultural de cada
autor/a e das posições de sujeito com as quais ele ou ela se identifica e se relaciona.
Nessa perspectiva, podemos pensar a literatura como um produto estético não
determinado pelo meio nem feito para determiná-lo como algo específico, porém,
carregado de marcas culturais que afetam os processos de formação, com suas
peculiaridades e possibilidades, ou seja, o registro de uma construção das diferenças
e das distintas formas de se lidar com as experiências do desenvolvimento social
e cultural do indivíduo e da coletividade. Para esse entendimento, Lopes (2005, p.
19) sugere que se desconstrua o discurso canônico, pois “a certeza fendida solicita
o diálogo [...], descentraliza o poder e ilumina facetas do objeto que um único olhar
não desvendaria. Sob essa luz, a literatura brasileira deve transparecer um pouco
mais claramente”. Como consequência, a compreensão desses processos poderia
propor uma diferente leitura do mundo, valorizando as produções culturais que
figuram às margens da história da literatura.

É realmente necessário discutirmos a violência aplicada à subjetividade


feminina numa sociedade de arranjos patriarcais. Portanto, um olhar a partir da
margem é urgente. E o que seria essa margem? Nas relações de gênero, assimétricas
e de dominação, o que não é masculino assume uma posição marginal.

No século XVIII, Mary Wollstonecraft (1792) fazia uma crítica ao poeta


Hans Carvel que escreveu “If weak women go astray, the stars are more in fault
than they”, dizendo que mulheres fracas não são capazes de exercer a razão,
o pensamento próprio, e vivem à deriva de sonhos. Wollstonecraft percebeu o
insulto à intelectualidade feminina no poema de Carvel, e no livro A vindication
of the rights of woman, ela discute o fato de que as mulheres são forçadas a uma
passividade e caracterizadas como inocentes ou ingênuas quando o mérito é o
intelecto. Podemos notar que a discussão é bastante longa e adversa, visto que
ainda hoje é preciso quebrar preconceitos e retomar debates acerca do tema, para
que se crie um espaço de diálogo simétrico.

Historicamente, o discurso dominante (androcêntrico) reforçou a ideia


de inferioridade intelectual feminina e, nesse sentido, podemos dizer que “a
figura da autora foi deformada [...] e para se chegar a ela é preciso ler através das
ocultações que apontam conflitos sincrônicos entre as representações da mulher,

74
TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO

as representações de sua desfiguração e sua afirmação pela escrita”, conforme


Telles. (1992, p. 45-46). Isto é, além de fazer uma espécie de decodificação do
texto, é preciso fazer emergir o discurso que ali subjaz. Além disso, segundo
Moi (1988), o principal objetivo de uma crítica feminista sempre foi político,
simplesmente porque procura desvelar e não perpetuar práticas tomadas como
naturais na sociedade. Logo, a crítica feminista está para, em princípio, revelar
essa “desfiguração” e, depois, para, gradativamente, diminuir as lacunas culturais
deixadas ao longo dos séculos na consolidação do percurso intelectual feminino.
A crítica feminista e os estudos culturais de gênero trazem a possibilidade de
observação do fenômeno de maneira mais atenta, iluminando as produções
deixadas às escuras margens da dita Literatura – com L maiúsculo.

Porém, além de observar a margem, é também necessário trazer o


olhar desde a margem. Dessa forma, criando um estranhamento às práticas
naturalizadas, é possível reescrever “a” história da literatura e perceber que há
sempre uma perspectiva diferente da que hoje existe e que já está tão desgastada.
A pluralidade que o olhar da margem traz, permite a inclusão e a legitimação de
escritores e escritoras que foram esquecidos ao longo da história. Esse calibrado
olhar desde a margem proporciona um deslocamento completo do sujeito para
com a visão de mundo, que, muitas vezes, é construída monoliticamente, e, assim,
se inscreveu na história da sociedade, no pensamento dessa. Subverter esse modo
de pensar tradicional é penetrar no território selvagem de que fala Showalter
(1994), um campo de domínio masculino, onde o poder autoriza o próprio poder,
criando um hermetismo sociocultural para o trânsito intelectual feminino. Então,
subverter significa desvincular-se de alguns padrões e criar conceitos para uma
crítica marginal, ou seja, preparar um aparato crítico que dê conta da análise
textual de escritores e escritoras, sem se contaminar com o olhar dominante que
se tinha até então, para, mais tarde, verificar as diferenças interiores dessa escrita.

Assim, a revisitação teórico-crítica de obras marginalizadas, as


reinscreveria na trajetória da literatura, propondo a desuniversalização do ponto
de vista masculino. E, através da compreensão de escritoras que produzem uma
literatura particular, construída pelo seu ato de escrever, num campo em que
predominam valores tradicionais arraigados às práticas sociais e à sua cultura,
poder-se-ia ter um enriquecimento do processo literário.

Contudo, a produção de estudos acadêmicos sobre gênero, ou estudos


femininos dentro da literatura de pesquisa, é recente no Brasil, e, em termos de
crítica literária independente, pode ser considerada ainda um tanto incipiente,
especialmente se levarmos em consideração o fator da alfabetização. De
acordo com Galvão (2002), até as primeiras décadas do século XX, as taxas de
analfabetismo chegavam a quase 70% da população, e os índices de escolarização
eram muito baixos. Ora, a produção de cultura escrita e a produção acadêmica
geradas algumas décadas atrás, certamente, não tinham o impacto que têm hoje.
Ao contrário, essas produções poderiam ser acessadas, entendidas e discutidas
apenas por uma elite letrada, em geral, dos grandes centros urbanos, que, muitas
vezes, se identificava mais com o mote do poema de Carvel, citado no início do

75
UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA

artigo, do que com a discussão que Mary Wollstonecraft (1995) gerou a partir
dele. Portanto, muito da produção feminina escrita, tanto literária quanto crítica,
política ou social pode ter-se perdido, especialmente pela não valorização desses
trabalhos, afinal, o contexto da produção é uma sociedade patriarcal dominante
que não considera a mulher como cidadã dotada de pensamentos, vontades
e direitos, negando-lhe, também, uma identidade intelectual. Entendemos
sociedade patriarcal como uma sociedade em que naturalmente os homens detêm
o poder de decidir as verdades que sustentam o mundo. Lemaire, considera que

a história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até


hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho
e anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da
genealogia nas sociedades patriarcais do passado: primeiro, a sucessão
cronológica de guerreiros heroicos; o outro, a sucessão de escritores
brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham
lutado com heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou
apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos
de homem, não há espaço para mulheres “normais” (1994, p. 58).

Sendo assim, por muito tempo, a literatura feminina foi uma literatura
de margem, ou seja, esteve à parte das grandes obras canônicas, salvo algumas
exceções. Conforme considera Pinto (2003), embora no fim do século XIX, já
houvesse indícios de um movimento sufragista no Brasil, foi mesmo no século
XX, com o processo de urbanização, que ele ganhou expressão. Logo, precisamos
lembrar que apenas uma pequena elite tinha acesso à língua escrita no País e que
essa elite era composta, em sua maioria, pelo gênero masculino, portanto, tanto a
figura da leitora quanto a da autora foram restringidas ou totalmente excluídas.

Muito embora as relações entre os gêneros sejam díspares, e os estudos


sobre essas relações sejam baseados no contraste das representações simbólicas,
culturalmente relativas, de masculinidades e feminilidades, ou de classes, ou
ainda étnicas, é também possível estudar a representação de cada gênero por si,
situado historicamente num espaço construído, como o da literatura. Através dos
estudos culturais de gênero, é possível estabelecer algumas hipóteses relevantes,
especialmente, se considerarmos a desuniversalização dos pontos de vista
canônicos. Sabemos que a construção da identidade e, no caso, de uma identidade
cultural, é marcada pela diferença e envolve certa negação. Isto é, ser mulher é
não ser homem. Mas a constituição da identidade tem caráter relacional e, por
isso, sempre há um ponto de convergência: somos todos humanos. Os fatores
se entrelaçam sem que possamos delimitar uma margem. Contudo, não se pode
negar a influência dessa divisão na construção das sociedades e de seus reflexos
no campo intelectual, bem como na linguagem e na cultura, proporcionando
leituras hierárquicas que são aceitas como verdades.

[...]

FONTE: ZINANI, C. J. A.; POLESSO, N. B. Da margem: a mulher escritora e a história da literatura.


Métis: história e cultura, Caxias do Sul, v. 9, n. 18, p. 99-112, jul./dez. 2010. Disponível em: www.
ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/download/998/1054. Acesso: 13 ago. 2019.

76
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Durante muito tempo as mulheres não tiveram espaço na literatura, motivo


pelo qual a representatividade do cânone é majoritariamente masculina.

• O fato das mulheres não compuserem o cânone literário não significa


incompetência para escrever, mas que a escrita literária era um espaço de
predominância masculino.

• A leitura de obras literárias escritas por mulheres permite identificar suas


inquietudes individuais e coletivas, problematizando seu papel na sociedade.

• Dentre as diversas escritoras que retratam a condição da mulher na sociedade


por meio de obras com protagonistas femininas destacam-se Clarisse Lispector,
Lygia Bojunga e Marina Colasanti.

• Os diversos contos produzidos por Clarice Lispector, que quase sempre retratam
situações do cotidiano, colocam o leitor face a face com multirrepresentações
da mulher na sociedade.

• As obras infantojuvenis produzidas por Lygia Bojunga favorecem reflexões


sobre diversas questões sociais, dentre elas as relações de gênero.

• A obra de Marina Colasanti permite que o público-leitor reflita sobre a


condição da mulher na sociedade, sugerindo a construção de outras imagens
representativas do feminino.

CHAMADA

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77
AUTOATIVIDADE

1 Leia o conto Entre a espada e a rosa, de Marina Colasanti.

Qual é a hora de casar, senão aquela em que o coração diz "quero"?


A hora que o pai escolhe. Isso descobriu a Princesa na tarde em que o
Rei mandou chamá-la e, sem rodeios, lhe disse que, tendo decidido fazer
aliança com o povo das fronteiras do Norte, prometera dá-la em casamento
ao seu chefe. Se era velho e feio, que importância tinha frente aos soldados
que traria para o reino, às ovelhas que poria nos pastos e às moedas que
despejaria nos cofres? Estivesse pronta, pois breve o noivo viria buscá-la.

De volta ao quarto, a Princesa chorou mais lágrimas do que


acreditava ter para chorar. Embotada na cama, aos soluços, implorou ao
seu corpo, a sua mente, que lhe fizesse achar uma solução para escapar da
decisão do pai. Afinal, esgotada, adormeceu.

E na noite sua mente ordenou, e no escuro seu corpo ficou. E ao


acordar de manhã, os olhos ainda ardendo de tanto chorar, a Princesa
percebeu que algo estranho se passava. Com quanto medo correu ao espelho!
Com quanto espanto viu cachos ruivos rodeando-lhe o queixo! Não podia
acreditar, mas era verdade. Em seu rosto, uma barba havia crescido.

Passou os dedos lentamente entre os fios sedosos. E já estendia a


mão procurando a tesoura, quando afinal compreendeu. Aquela era a sua
resposta. Podia vir o noivo buscá-la. Podia vir com seus soldados, suas
ovelhas e suas moedas. Mas, quando a visse, não mais a quereria. Nem ele
nem qualquer outro escolhido pelo Rei.

Salva a filha, perdia-se, porém, a aliança do pai. Que tomado de


horror e fúria diante da jovem barbada, e alegando a vergonha que cairia
sobre seu reino diante de tal estranheza, ordenou-lhe abandonar o palácio
imediatamente.

A Princesa fez uma trouxa pequena com suas joias, escolheu um


vestido de veludo cor de sangue. E, sem despedidas, atravessou a ponte
levadiça, passando para o outro lado do fosso. Atrás ficava tudo o que havia
sido seu, adiante estava aquilo que não conhecia.

Na primeira aldeia aonde chegou, depois de muito caminhar, ofereceu-


se de casa em casa para fazer serviços de mulher. Porém ninguém quis aceitá-la
porque, com aquela barba, parecia-lhes evidente que fosse homem.

78
Na segunda aldeia, esperando ter mais sorte, ofereceu-se
para fazer serviços de homem. E novamente ninguém quis aceitá-
la porque, com aquele corpo, tinham certeza de que era mulher.
Cansada, mas ainda esperançosa, ao ver de longe as casas da terceira aldeia,
a Princesa pediu uma faca emprestada a um pastor, e raspou a barba. Porém,
antes mesmo de chegar, a barba havia crescido outra vez, mais cacheada,
brilhante e rubra do que antes.

Então, sem mais nada pedir, a Princesa vendeu suas joias para um
armeiro, em troca de uma couraça, uma espada e um elmo. E, tirando do
dedo o anel que havia sido de sua mãe, vendeu-o para um mercador, em
troca de um cavalo.

Agora, debaixo da couraça, ninguém veria seu corpo, debaixo


do elmo, ninguém veria sua barba. Montada a cavalo, espada
em punho, não seria mais homem, nem mulher. Seria guerreiro.
E guerreiro valente tornou-se, à medida que servia aos Senhores dos castelos
e aprendia a manejar as armas. Em breve, não havia quem a superasse nos
torneios, nem a vencesse nas batalhas. A fama da sua coragem espalhava-se
por toda parte e a precedia. Já ninguém recusava seus serviços. A couraça
falava mais que o nome.

Pouco se demorava em cada lugar. Lutava cumprindo seu trato e


seu dever, batia-se com lealdade pelo Senhor. Porém suas vitórias atraíam
os olhares da corte, e cedo os murmúrios começavam a percorrer os
corredores. Quem era aquele cavaleiro, ousado e gentil, que nunca tirava
os trajes de batalha? Por que não participava das festas, nem cantava para
as damas? Quando as perguntas se faziam em voz alta, ela sabia que era
chegada a hora de partir. E ao amanhecer montava seu cavalo, deixava o
castelo, sem romper o mistério com que havia chegado.

Somente sozinha, cavalgando no campo, ousava levantar a viseira


para que o vento lhe refrescasse o rosto acariciando os cachos rubros. Mas
tornava a baixá-la, tão logo via tremular na distância as bandeiras de algum
torreão. Assim, de castelo em castelo, havia chegado àquele governado por
um jovem Rei. E fazia algum tempo que ali estava.

Desde o dia em que a vira, parada diante do grande portão, cabeça


erguida, oferecendo sua espada, ele havia demonstrado preferi-la aos outros
guerreiros. Era a seu lado que a queria nas batalhas, era ela que chamava
para os exercícios na sala de armas, era ela sua companhia preferida,
seu melhor conselheiro. Com o tempo, mais de uma vez, um havia salvo
a vida do outro. E parecia natural, como o fluir dos dias, que suas vidas
transcorressem juntas. 
 

79
Companheiro nas lutas e nas caçadas, inquietava-se, porém, o
Rei vendo que seu amigo mais fiel jamais tirava o elmo. E mais ainda se
inquietava, ao sentir crescer dentro de si um sentimento novo, diferente de
todos, devoção mais funda por aquele amigo do que um homem sente por
um homem.
 
Pois não podia saber que à noite, trancado o quarto, a princesa
encostava seu escudo na parede, vestia o vestido de veludo vermelho,
soltava os cabelos, e diante do seu reflexo no metal polido, suspirava
longamente pensando nele.

Muitos dias se passaram em que, tentando fugir do que sentia, o Rei


evitava vê-la. E outros tantos em que, percebendo que isso não a afastava da
sua lembrança, mandava chamá-la, para arrepender-se em seguida e pedia-
lhe que se fosse. 

Por fim, como nada disso acalmasse seu tormento, ordenou que
viesse ter com ele. E, em voz áspera, lhe disse que há muito tempo tolerava
ter a seu lado um cavaleiro de rosto sempre encoberto. Mas que não podia
mais confiar em alguém que se escondia atrás do ferro. Tirasse o elmo,
mostrasse o rosto. Ou teria cinco dias para deixar o castelo. 

Sem resposta, ou gesto, a Princesa deixou o salão, refugiando-se


no seu quarto. Nunca o Rei poderia amá-la, com sua barba ruiva. Nem
mais a quereria como guerreiro, com seu corpo de mulher. Chorou todas
as lágrimas que ainda tinha para chorar. Dobrada sobre si mesma, aos
soluços, implorou ao seu corpo que lhe desse uma solução. Afinal, esgotada,
adormeceu. 

E na noite seu mente ordenou, e no escuro seu corpo brotou. E


ao acordar de manhã, com os olhos inchados de tanto chorar, a Princesa
percebeu que algo estranho se passava. Não ousou levar as mãos ao rosto.
Com medo, quanto medo! Aproximou-se do escudo polido, procurou
seu reflexo. E com espanto, quanto espanto! Viu que, sim, a barba havia
desaparecido. Mas em seu lugar, rubras como os cachos, rosas lhe rodeavam
o queixo. 

Naquele dia não ousou sair do quarto, para não ser denunciada pelo
perfume, tão intenso, que ela própria sentia-se embriagar de primavera.
E perguntava-se de que adiantava ter trocado a barba por flores, quando,
olhando no escudo com atenção, pareceu-lhe que algumas rosas perdiam o
viço vermelho, fazendo-se mais escuras que o vinho. De fato, ao amanhecer,
havia pétalas no seu travesseiro. 

80
Uma após a outra, as rosas murcharam, despetalando-se lentamente.
Sem que nenhum botão viesse substituir as flores que se iam. Aos poucos,
a rósea pele aparecia. Até que não houve mais flor alguma. Só um delicado
rosto de mulher. 

Era chegado o quinto dia. A Princesa soltou os cabelos, trajou seu


vestido cor de sangue. E, arrastando a cauda de veludo, desceu as escadarias
que a levariam até o Rei, enquanto um perfume de rosas se espalhava no castelo. 

FONTE: <https://www.marinacolasanti.com/2014/01/entre-espada-e-rosa.html>. Acesso:


13 ago. 2019.

Agora é sua vez!  Tendo como base os estudos realizados nessa unidade
e as análises dos textos literários apresentados, faça sua própria análise do
conto Entre a espada e a rosa, com o olhar voltado para as relações sociais de
gênero presentes na narrativa.

2 (ENADE/2008 – LETRAS)
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas
como aços espalhados. Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome
da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que
me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito
difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo.
Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.

Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 25.

No trecho do romance A hora da Estrela, de Clarice Lispector, apresenta-se uma


concepção do fazer literário, segundo a qual a literatura é:

a) ( ) uma forma de resolver os problemas sociais abordados pelo escritor ao


escrever suas histórias.
b) ( ) uma forma de, pelo trabalho do escritor, tornar sensível o que não está
claramente disponível na realidade.
c) ( ) um dom do escritor, que, de forma espontânea e fácil, alcança o indizível
e o mistério graças a sua genialidade.
d) ( ) o resultado do trabalho árduo do escritor, que transforma histórias
complexas em textos simples e interessantes.
e) ( ) um modo mágico de expressão, por meio do qual se de abandona a
realidade histórica em favor da pura beleza estética graças à sensibilidade
do escritor.

81
82
UNIDADE 2

RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• discutir o conceito de cultura, etnocentrismo, relativismo cultural,


preconceito e discriminação e perceber a relação entre eles;

• identificar a escola enquanto espaço de diversidade, respeito e valorização


das diferenças;

• compreender a importância das Leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008 no


contexto das relações étnico-raciais;

• avaliar a importância dos estudos pós-coloniais enquanto perspectiva


teórica e cultural que valoriza saberes não hegemônicos;

• identificar autores e obras da literatura africana, indígena e de imigrantes.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

TÓPICO 2 – A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

TÓPICO 3 – LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

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84
UNIDADE 2
TÓPICO 1

DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Estamos iniciando a Unidade 2 deste Livro Didático denominado Raça,
etnia, cultura e literatura, em que trataremos da diversidade cultural e suas
implicações no contexto educacional e veremos como esses temas podem ser
trabalhados em sala de aula por meio da literatura.

A diversidade étnica e cultural brasileira é um fator de destaque do nosso


país quando comparado com outros povos. O processo de colonização e os
movimentos migratórios possibilitaram o desenvolvimento de um país plural no
qual se integram culturas diversas como a indígena, a africana e a europeia, entre
outras. Esse encontro de culturas pode ser sinônimo de riqueza – sempre há algo
de bom para aprender com o outro – mas também pode significar a imposição de
uma cultura sobre a outra, fazendo com que determinados modos de vida sejam
considerados atrasados e inferiores.

Assim, refletir sobre as relações étnico-raciais no ambiente escolar é uma


forma de contribuir para a eliminação de atitudes preconceituosas que dificultam
a convivência, estigmatizam pessoas e interferem no processo de construção da
identidade pessoal e coletiva. O intuito desta unidade é abordar temas como
diversidade, cultura e construção da identidade para que você, quando docente,
esteja instrumentalizado teoricamente para adotar uma postura crítica e reflexiva
frente aos desafios que provavelmente encontrará em sala de aula.

No caso específico da literatura, adotamos o posicionamento de Jordão


(2011, p. 291) ao enfatizar que “a sala de aula de literatura precisa ser valorizada
como lócus potencial para a transformação dos processos interpretativos de
alunos e professores, como espaço de confronto com o legitimado”. Assim, a
temática da literatura pós-colonial e dos textos da literatura africana, indígena
e de imigrantes serão contemplados nesta unidade para que posteriormente
sejam levados para a sala de aula, oportunizando a formação de leitores e leitoras
multiculturais e de pessoas que reconhecem a importância e o valor da diferença
no processo de construção de si próprio.

85
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

2 A DIVERSIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR


Conforme visto na unidade anterior, a sala de aula é, por excelência,
espaço de manifestação da diversidade na qual convivem pessoas de diferentes
gêneros, etnias, religiões, orientação sexual, composição familiar, regiões
geográficas, características físicas e comportamentais, ritmos de aprendizagem
etc. Tais diferenças, que configuram uma riqueza cultural, muitas vezes acabam
servindo para demarcar espaços que separam uns dos outros, em meio a uma
prática social que inferioriza as pessoas conforme suas características identitárias
e seu pertencimento a um determinado grupo:

[…] tal como acontece de maneira mais ampla na sociedade, sexismo,


racismo e homofobia fazem parte do cotidiano escolar. Atitudes
preconceituosas, discriminatórias, ofensivas, constrangedoras e
mesmo práticas violentas com relação a mulheres, negros, pobres,
homossexuais, entre outras categorias na qual se veste o preconceito,
se inserem no meio escolar, fazendo com que se tenha que lidar, desde
a mais tenra infância, com aquilo que se pode chamar de uma pedagogia
do insulto, constituída de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos,
insinuações, expressões desqualificantes – poderosos mecanismo de
silenciamentos e de dominação simbólica (DESLANDES, 2010, p. 1-2).

Nesse contexto, a compreensão e o respeito à diversidade constituem-se


em dimensões extremamente importantes do processo educativo, já que aprender
a conviver com as diferenças é um grande desafio da contemporaneidade.
Entretanto, tal como acontece em relação às questões de gênero, a escola
muitas vezes contribui para reforçar atitudes preconceituosas, haja vista que
a discriminação pode manifestar-se de diferentes formas, seja por meio do
currículo formal ou do currículo oculto, ou seja, ela pode evidenciar-se no
conteúdo ensinado, nos livros didáticos, nas atividades desenvolvidas, nas
formas de avaliação, nas festas e comemorações, nos jogos e brincadeiras, nas
piadas, apelidos, gestos e comportamentos de todos os sujeitos que fazem parte
da dinâmica institucional.

E
IMPORTANT

Conforme visto na unidade anterior, currículo oculto é tudo aquilo que é


ensinado e aprendido na escola que não está expresso no currículo formal.
“A acepção do currículo como conjunto de experiências planejadas é insuficiente, pois os
efeitos produzidos nos alunos por um tratamento pedagógico ou currículo planejado e suas
consequências são tão reais e efetivos quanto podem ser os efeitos provenientes das experiências
vividas na realidade da escola sem tê-las planejado, às vezes nem sequer ser conscientes de sua
existência. É o que conhece como currículo oculto” (SACRISTÁN, 1998, p. 43).

86
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

Dessa forma, é necessário um olhar atento sobre as práticas escolares


cotidianas, observando se elas estão ajudando a reforçar preconceitos e atitudes
discriminatórias. Além disso, docentes podem fazer da sala de aula um espaço
em que tais ações sejam problematizadas, discutidas e desnaturalizadas, uma
vez que “a pluralidade cultural brasileira exige de cada um de nós um constante
aprendizado de respeito às diferenças e de percepção da riqueza cultural que
estas trazem consigo” (MICHALISZYN, 2014, p. 7).

Por outro lado, é importante compreender que as diferenças não existem


por si só; ao contrário, elas são construídas socialmente. Quando se definem
pessoas ou atitudes como diferentes ou estranhas, faz-se uma comparação
que é estabelecida por meio de parâmetros previamente determinados. Assim,
é importante que o corpo docente reflita, junto com o discente, qual a origem
histórica, social e cultural desses padrões de comportamento, uma vez que
tais reflexões podem, segundo Michaliszyn (2014, p. 10), “contribuir para a
eliminação de pensamentos e atitudes etnocêntricas, decorrentes das diferenças
socioculturais presentes em grupamentos humanos distintos”.

DICAS

Antes de dar continuidade à leitura, que tal


assistir a uma animação que ilustra como a diversidade
pode ser trabalhada a partir de uma perspectiva de
integração, em vez de negação? O curta metragem
FIGURA – CURTA METRAGEM
Dia e Noite (Day & Night) – dirigida por Teddy Newton
DIA E NOITE
e produzida pelos estúdios Disney Pixar – retrata o
encontro do Dia com a Noite. A princípio eles se
estranham e divergem entre si, mas depois percebem
que cada um possui suas próprias especificidades e
fascínios. Trata-se de uma animação que pode ser
trabalhada em sala de aula com pessoas de qualquer
idade, servindo como estímulo à reflexão sobre a
importância de estarmos abertos para conhecer e
vivenciar o modo de ser do outro.

FICHA TÉCNICA:
Título: Day & Night (Original)
Ano produção: 2010
Dirigido por: Teddy Newton
FONTE: <http://twixar.me/CHjT>.
Duração: 6 minutos
Acesso em: 10 jan. 2020.
Gênero: Animação
País de Origem: Estados Unidos
Link para acesso ao vídeo: https://www.youtube.com/
watch?v=ZxFlN-yHES0.

87
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

3 COMPREENDENDO O CONCEITO DE CULTURA E


ETNOCENTRISMO
Conforme você acabou de ver, a hierarquização das diferenças não
existe por si só; ela é construída socialmente a partir de parâmetros previamente
determinados como sendo melhores ou mais corretos. Você também viu que
é importante compreender a origem histórica, social e cultural desses padrões
de comportamento que tentam sobrepor uma cultura a outra. Vejamos como
isso acontece em relação a diferentes povos, por exemplo. É comum cada povo
acreditar que sua cultura é melhor que a de outros povos, e tudo aquilo que se
distancia de seu modo de vida é visto com estranhamento. Essa forma de enxergar
o mundo é chamada de etnocentrismo, termo formado pela justaposição da palavra
grega ethnos, que significa nação, tribo ou pessoas que vivem juntas e centrismo,
que indica o centro. Ser etnocêntrico, portanto, significa colocar a própria cultura,
o próprio modo de vida, no centro das relações.

Retomando a canção popular que diz que Narciso acha feio o que não é
espelho, Barreto, Araújo e Pereira (2009), sugerem que cada povo carrega em si
um pouco de narcisismo e que isso, em certa medida, é compreensível, já que é
normal gostarmos daquilo que crescemos acostumados a aprender a gostar.

NOTA

O termo narcisismo “tem origem na Mitologia Grega, na narrativa sobre Narciso,


um jovem muito bonito que desprezou o amor de Eco e, por este motivo, foi condenado a
apaixonar-se por sua própria imagem espelhada na água. Este amor levou-o à morte, afogado
em seu reflexo. A partir deste mito, narcisismo passou a significar a tendência doentia de os
indivíduos alimentarem paixão por si mesmos” (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 197,
grifo das autoras). Segundo a lenda, a mãe Terra o converteu em uma flor (narciso).

FIGURA – NARCISO, OBRA DO PINTOR BARROCO ITALIANO CARAVAGGIO

FONTE: <https://virusdaarte.net/caravaggio-narciso/>. Acesso em: 15 set. 2019.

88
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

Você já deve ter ouvido falar, por exemplo, que os seguidores do


hinduísmo não comem carne bovina porque para eles a vaca é um animal
sagrado. Provavelmente, essa crença causa estranhamento a nós, povo brasileiro,
que crescemos imersos em outra cultura e em outras crenças religiosas. Da
mesma forma, muitos hábitos e costumes brasileiros são estranhos para pessoas
de outras nacionalidades, já que cada espaço organizado socialmente tem sua
própria cultura, suas crenças e sua forma de compreender o mundo.

NOTA

Você conhece crenças ou hábitos que são comuns em outros povos, mas que
parecem estranhos a nós que vivemos no Brasil e vice-versa? Vamos pensar em alguns e
anotá-los aqui?

Veja, a seguir, dez costumes brasileiros que são estranhos para pessoas que vivem em
outros países. Hábitos que para algumas pessoas são normais podem ser estranhos para
pessoas de outras culturas.

Mostramos 10 hábitos brasileiros para gringos e eles estranharam tudo

1- Tomar mais de um banho por dia.


2- Escovar os dentes no trabalho.
3- Sentar ao lado do parceiro no restaurante.
4- Segurar sanduíche com guardanapo e comer pizza com garfo e faca.
5- Chamar todo mundo pelo primeiro nome (inclusive a presidente da República).
6- Jogar papel higiênico sujo em um lixinho ao lado da privada.
7- Ter 30 dias de férias por ano e mais de dez dias de feriados.
8- Comer abacate como fruta, inclusive com açúcar.
9- Marcar o horário de uma festa sabendo que as pessoas só vão chegar duas ou três
horas depois.
10- Terminar mensagens com “abraços” ou “beijos”, mesmo com pessoas que você não
conhece pessoalmente.

Caso queira ler a matéria na íntegra, acesse o link:


https://www.buzzfeed.com/br/rafaelcapanema/gringos-reagem-a-habitos-brasileiros.

89
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Quando pensamos em hábitos e costumes de um determinado grupo


social, estamos nos referindo a sua cultura. Assim, é importante que inicialmente
tenhamos claro o conceito de cultura, palavra que norteará nossos estudos a
partir de agora. Para isso, é preciso estabelecer um diálogo com a Antropologia,
ramificação das Ciências Sociais responsável por estudar esse conceito.

De forma geral, a cultura pode ser definida como um conjunto de padrões
de comportamentos, mitos e crenças criados pelos seres humanos em determinada
época e local. Trata-se, portanto, de um conjunto de saberes e conhecimentos
acumulado pelas pessoas de um determinado grupo social que se torna traço
distintivo de outros agrupamentos.

O conceito de cultura foi modificando-se ao longo do tempo, sendo que
algumas teorias antropológicas que surgiram no século XIX foram refutadas em
estudos posteriores. Uma dessas teorias, conhecida como determinismo biológico,
entende que a grande variedade cultural existente no mundo está relacionada à
variedade genética. Essa teoria, que postula que a cultura está vinculada à biologia,
influenciou teorias racistas e eugênicas, que defendiam o aperfeiçoamento e
melhoria da raça por meio da genética. Tal ideia, entretanto, pode ser facilmente
refutada: imagine, por exemplo, um bebê asiático sendo criado por uma família
francesa. Com certeza ao longo da vida ele aprenderá hábitos e costumes
europeus, e não asiáticos.

Esse simples exemplo demonstra que o comportamento não está


relacionado a fatores genéticos, mas sim a um processo de aprendizagem que
recebe o nome de endoculturação, ou seja, “[...] não existe correlação significativa
entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos comportamentos
culturais. Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer
cultura, se for colocada desde o início em situação conveniente de aprendizado”
(LARAIA, 2011, p. 17).

Essa explicação serve também para reforçar o que vimos na unidade


anterior acerca das relações de gênero, já que muitos estudos antropológicos
demonstram que atividades atribuídas a homens em uma determinada cultura
podem ser delegadas a mulheres em outra, ou seja, a divisão sexual do trabalho é
determinada culturalmente, e não biologicamente (LARAIA, 2011).

O determinismo geográfico, por sua vez, é uma teoria que associa a cultura a
aspectos geográficos, tentando provar que os comportamentos estão relacionados
ao ambiente físico (clima, temperatura, vegetação, latitude) em que determinada
população vive. Essa teoria também foi refutada pela constatação de que podem
ocorrer manifestações culturais distintas entre povos que habitam o mesmo tipo
de ambiente físico. Os esquimós e os lapões, por exemplo, que habitam a calota
polar do norte da América e da Europa, respectivamente, embora vivendo sob
as mesmas condições climáticas, encontraram maneiras distintas de solucionar
problemas básicos de sobrevivência (LARAIA, 2011).

90
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

O britânico Edward Taylor (1832-1917), por sua vez, influenciado pelas


ideias evolucionistas, acreditava que a cultura seria um conjunto de regras, leis,
tradições, religiões etc. organizadas em um todo complexo que passaria por
diversos estágios até chegar em um grau mais elevado. Tendo como parâmetro
a sociedade europeia, entendida como centro da civilização e polo irradiador de
cultura, demais sociedades, segundo esse conceito, eram vistas como selvagens
e deveriam, portanto, passar por um processo de evolução até conseguirem
atingir o patamar europeu. Estabelecia-se, então, uma escala evolutiva que,
na perspectiva de Laraia (2011, p. 34), “[…] não deixava de ser um processo
discriminatório, através do qual as diferentes sociedades humanas eram
classificadas hierarquicamente, com nítida vantagem para as culturas europeias.
Etnocentrismo e ciência marchavam então de mãos juntas”.

Refutando essa teoria de viés evolucionista, Franz Boas (1858 a 1942)
afirmava que “cada cultura segue seus próprios caminhos em função dos diferentes
eventos históricos que enfrentou” (LARAIA, 2011, p. 36). Boas desenvolveu, então,
o método denominado particularismo histórico, que tinha como proposta investigar
as particularidades de cada sociedade através do detalhamento histórico para
então proceder à busca de evidências culturais.

Ainda em oposição à perspectiva evolucionista, Bronislaw Manilowsky


(1884-1942) concluiu que todas as culturas têm problemas muito parecidos,
ou seja, todos os povos precisam criar formas de lidar com questões básicas
de sobrevivência como a alimentação, a locomoção, a economia e a própria
organização social. Entretanto, mesmo tendo problemas parecidos, cada cultura
organiza-se de formas diferentes, ou seja, cada elemento da cultura tem como
propósito cumprir determinada tarefa ou função, daí o nome da teoria por ele
desenvolvida ficar conhecida como funcionalismo.

Apesar das críticas à teoria evolucionista de Taylor, é preciso reconhecer,


dentre outros méritos, que ele foi o primeiro a formular uma definição de cultura
do ponto de vista antropológico. Utilizando a palavra germânica Kultur, que
está relacionada aos aspectos espirituais de uma comunidade, e a palavra
francesa civilization, que está relacionada às conquistas materiais, Taylor criou
a ideia de culture, relacionada a um todo complexo que inclui tanto os aspectos
espirituais quanto os materiais de uma sociedade, isto é, a cultura é um conjunto
de “conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes, ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”
(LARAIA, 2011, p. 25). Assim, consolidou-se a ideia de que a cultura está muito
mais relacionada a um aprendizado – denominado endoculturação – do que a uma
aptidão inata.

Em 1917, um artigo publicado por Alfred Kroeber (1876-1960), denominado


O superorgânico, trouxe elementos que finalmente dissociaram os aspectos
culturais dos biológicos. Nele, Kroeber deixa claro que é pela cultura que homens
e mulheres se distanciam do mundo animal, já que seus comportamentos são
influenciados pela aprendizagem, e não definidos por instintos.

91
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

O defensor da teoria estruturalista Claude Lévi-Strauss (1908-2009), por


sua vez, postula que as culturas operam com uma lógica própria a partir de sua
própria estrutura simbólica. Assim, não é possível entender a lógica de outra
cultura a partir da lógica da própria cultura, ou seja, sem conhecer o sistema
que fundamenta essa lógica. Quando a pessoa tenta enxergar a cultura do outro
a partir da própria lógica, quase sempre existe uma tendência a considerar o
próprio modo de ser e viver como o melhor e o mais correto. Essa propensão
para considerar a própria cultura como referência central para entender o mundo
recebe o nome de etnocentrismo.

E
IMPORTANT

Etnocentrismo é uma forma de pensar que considera o grupo em que se vive


como melhor ou mais importante que qualquer outro. Assim, se um indivíduo acredita
que seu grupo social é superior aos demais, ele pode ser considerado etnocêntrico. Tal
conceito contrapõe-se ao de alteridade, que busca o respeito e a valorização do outro.

O pensamento etnocêntrico geralmente gera intolerância em relação


ao diferente, já que o ser humano tem uma propensão a entender aquilo que
é diferente como errado, estranho ou bizarro, ou seja, ele tem uma tendência a
considerar a própria cultura como superior à do outro. A ideia de superioridade,
por sua vez, está relacionada à ideia de dominação, pensamento que ocasionou
diversas guerras e conflitos no decorrer da história da humanidade.

Vejamos, por exemplo, o que aconteceu durante o período de colonização


brasileira. Os portugueses que chegaram ao Brasil enxergaram o modo de
viver indígena com o olhar europeu e, por esse motivo, tentaram impor sua
própria cultura para que a população nativa se portasse de acordo com seus
padrões de comportamento. A não aceitação da imposição portuguesa pelos
indígenas originou uma série de estereótipos, já que eles passaram a ser vistos
como rebeldes, preguiçosos, indecentes e não civilizados. Da mesma forma, a
situação de escravidão a qual os negros foram submetidos denota uma relação de
dominação e controle visivelmente etnocêntrica (MICHALISZYN, 2014).

Essa forma de entender a cultura remete ao pensamento da antropóloga


americana Ruth Benedict, que afirma que “[...] as lentes através das quais
uma nação olha a vida não são as mesmas que uma outra usa. É difícil ser
consciente com os olhos através dos quais olhamos” (BENEDICT, 1972, p. 19). A
compreensão de mundo de cada pessoa, portanto, passa por um filtro cultural,
ou seja, por referências de sua própria cultura que lhe permite constituir valores
e identidades. Em outras palavras, é possível afirmar que nossa visão de mundo
está intrinsecamente relacionada a nossa herança cultural.

92
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

NOTA

Você já deve ter ouvido falar na carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao rei D.
Manuel por ocasião do descobrimento do Brasil, na qual ele registra suas impressões sobre
a nova terra e o novo povo encontrado. Veja, a seguir, alguns trechos da carta. À medida
que for lendo, grife as partes em que é possível perceber o estranhamento do europeu
frente aos hábitos e costumes do povo indígena.

FIGURA – MANUSCRITO DE PERO VAZ DE CAMINHA

FONTE: <https://www.todamateria.com.br/carta-de-pero-vaz-de-caminha/>.
Acesso em: 15 set. 2019.

“Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como
pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco
mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma
coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto
da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os
colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que
não havia nisso desvergonha nenhuma”.

“Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta
da largura de dois dedos”.

“Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão
e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão.
Depois lhe pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não
quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada,
nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não
beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito
com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e
acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam
ouro por aquilo”.

FONTE: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf>. Acesso: 15 set. 2019.

93
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

4 A DIVERSIDADE CULTURAL E A CONSTRUÇÃO DAS


DIFERENÇAS
A compreensão das relações étnico-raciais perpassa pelo entendimento
de alguns conceitos importantes que envolvem essa temática como racismo,
preconceito, diversidade e alteridade, dentre outros. Portanto, no desenvolvimento
deste tópico iremos consolidando nossos conhecimentos sobre esses termos à
medida que formos refletindo sobre as consequências das práticas etnocêntricas
na sociedade.

De acordo com Barreto, Araújo e Pereira (2009), ao longo da história da
humanidade, povos relativamente homogêneos conseguiram manter contato com
outros de culturas diversas por meio de encontros cuidadosamente organizados a
fim de diminuir riscos de desentendimentos devido à dificuldade de compreensão
de um em relação ao outro. Tais encontros eram motivados por determinações
específicas, por exemplo, as relações comerciais ou troca de esposas.

Entretanto, conforme explicitado por Barreto, Araújo e Pereira (2009, p.


192), a situação fica diferente quando “os baralhos dos povos se misturam”,
ou seja, quando “o contexto muda e no lugar desses povos relativamente
homogêneos, mas separados, surge um mundo conectado por diversas formas
de comunicação e onde se dá a migração de populações”, acontecendo, então, o
encontro com o Outro:

Pensemos no primeiro grupo humano que se encontrou com “outro”,


sendo ao mesmo tempo por “outro” encontrado, um “outro” para
quem ele próprio revestia-se deste selo definidor da alteridade…
Reconhecimento mútuo como semelhante? Ou evidência de
“diferenças”, que levam a duvidar da participação a uma ipseidade
radical: “Isto é gente?”. Ora, esta experiência da Diferença, a humanidade
a fez com diversas modalidades, em diversos patamares, revestindo-a
em diversos graus de compacta densidade ou de seletividade de traços.
Para os ocidentais – e vejam como o problema é sutil e complexo: somos
nós, do Brasil, parte deste Ocidente, aquele que um dia “encontrou”?
Ou, neste dia, fomos nós por ele encontrados? […] –, em todo caso, os
primeiros grandes momentos desta experiência, depois do encontro dos
gregos com os “bárbaros”, foram, sem dúvida, o das cruzadas, encontro
antagônico de dois universos redondamente fechados, o das “Grandes
Descobertas” do séc. XVI, quando a “humanidade” descobre-se no
plural, e o da colonização, que expande sobre todos os Continentes
a presença desse Outro universal, que se dá o direito de ser em toda
parte o Mesmo, Ele Mesmo, enquanto o resto passa a ser “os outros”
(SANCHIS, 1996, p. 25).

Observa-se, então, que nesse encontro com o Outro, as diferenças – que


antes eram pontuadas apenas em relação ao distante – passam a ser percebidas
no interior de uma mesma sociedade; tal estranhamento em relação ao diferente
manifesta-se de diversas formas, sendo o racismo a mais perversa de todas. Para
Barreto, Araújo e Pereira (2009, p. 193),

94
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

[…] é impossível entender o racismo sem fazer referência, mesmo que


muito rápida, à relação que em sua origem ele mantém com dois fatos
históricos de enorme importância: a afirmação da ciência positiva
contra as teorias religiosas na explicação da origem e das diferenças
entre as pessoas humanas; e a expansão colonial europeia que, por
meios militares, religiosos e comerciais, dominou grandes extensões
de terras ultramar, onde habitavam povos com culturas e aparências
físicas muito diferentes daquelas dos europeus. Reconhecer isto
implica perceber a estreita relação que existe entre saber e poder,
assim como considerar o racismo um dos mais indignos produtos de
tal relação.

O racismo, portanto, serviu como justificativa para o domínio europeu


sobre os povos africanos, asiáticos e americanos, já que o primeiro julgava que
estes últimos, em decorrência de suas supostas incapacidades raciais, fossem
incapazes de exercer o autogoverno. Essas diferenças, vistas como supostamente
naturais, justificaram a exclusão do outro do exercício de direitos políticos e
sociais, ou seja, “o mundo estava separado não mais pela fé e pela cultura, mas
pela própria natureza” (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 195).

Um dos desdobramentos dessa forma de pensar foi a eugenia, que postulava


o aprimoramento da raça humana com a aplicação das teorias evolucionistas e
de seleção natural. A propósito, a ideia de hierarquização das raças é anterior à
configuração da ciência eugênica, fazendo parte da ideologia liberal burguesa,
conforme visto em Hobsbawm (2000), que explica que

[…] outras raças eram “inferiores” porque representavam um


estágio anterior da evolução sociocultural, ou então de ambas. E essa
inferioridade era comprovada porque, de fato, a “raça superior” era
superior pelos critérios de sua própria sociedade: tecnologicamente
mais avançada, militarmente mais poderosa, mais rica e mais “bem-
sucedida”. O argumento era tão lisonjeiro quanto convincente – tão
convincente que as classes médias estavam inclinadas a tomá-lo dos
aristocratas (que haviam por longo tempo se considerado uma raça
superior) por razões internas e também internacionais: os pobres
eram pobres porque biologicamente inferiores, e, por outro lado, se
cidadãos pertenciam às “raças inferiores”, não era de se esperar que
eles permanecessem pobres e atrasados. […] de uma forma primitiva,
a ideia de que as classes superiores eram um tipo mais elevado de
humanidade, desenvolvendo uma superioridade por endogamia, e
ameaçada pela mistura com as ordens inferiores e, mais ainda, pelo
rápido aumento numérico desses inferiores, era largamente aceita
(HOBSBAWM, 2000, p. 370).

As teorias eugênicas originaram experiências e políticas governamentais


que tinham como objetivo controlar a qualidade racial das populações. Nesse
contexto foram alvo de práticas eugenistas povos considerados inferiores como
aqueles compostos por negros, índios, ciganos e aborígenes, dentre outros. Por
fim, chegamos ao regime nazista, cuja principal característica foi

95
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

dar forma oficial, obrigatória e sistemática, em moldes científicos


e industriais, às normas de separação, seleção e eliminação de
indivíduos em função de determinados caracteres “naturais” tidos
como desviantes: desde as minorias nacionais até as pessoas com
déficit intelectual (consideradas doentes mentais); as pessoas com
deficiências físicas (tidas como aleijadas); os/ as homossexuais, judeus
e judias, passando pelos/as artistas e escritores/as modernistas,
identificados como responsáveis por uma arte degenerada (BARRETO;
ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 196).

As reflexões apresentadas até aqui permitem elaborar uma conceituação


do termo racismo que, conforme Michaliszyn (2014, p. 85), “refere-se a uma
conduta ideológica, etnocêntrica por excelência, que se baseia no princípio de
que uma raça ou etnia pode ser encarada como superior a outras raças e etnias.
Ou seja, o racismo constitui-se em uma ideologia que apregoa a existência de uma
hierarquia entre grupos raciais […]”.

O racismo, portanto, vai além do etnocentrismo, pois enquanto esse último


pode ser encarado como um comportamento generalizado decorrente do olhar
que cada um tem sobre o outro, ou seja, decorrente de uma reação ao outro, ao
diferente, o racismo utiliza as diferenças como forma de dominação/subordinação
(BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009). Conforme nos mostra Vieira (2012, p. 98),
“as vítimas mais óbvias do racismo são os povos e os grupos, cujas identidades
foram forjadas no caldeirão colonial: os africanos, os asiáticos e os povos nativos
das Américas, assim como aqueles que foram deslocados pelo colonialismo”.

E
IMPORTANT

Por razões lógicas e ideológicas, o racismo é geralmente abordado a partir da


raça, dentro da extrema variedade das possíveis relações existentes entre as duas noções.
Com efeito, com base nas relações entre “raça” e “racismo”, o racismo seria teoricamente
uma ideologia essencialista que postula a divisão da humanidade em grandes grupos
chamados raças contrastadas que têm características físicas hereditárias comuns, sendo
estas últimas suportes das características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e
se situam numa escala de valores desiguais. Visto deste ponto de vista, o racismo é uma
crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o
físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido
sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo
definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais,
linguísticos, religiosos etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo à qual ele
pertence. De outro modo, o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as
características intelectuais e morais de um dado grupo, são consequências diretas de suas
características físicas ou biológicas (MUNANGA, 2003).

96
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

A definição de racismo trazida anteriormente por Michaliszyn (2014)


apresenta dois termos que também merecem especial atenção nesse estudo: raça
e etnia. Do ponto de vista científico, não é correta a referência a raças humanas,
visto que há apenas uma raça, a humana. Entretanto, do ponto de vista social e
político, e em uma sociedade marcada pelo racismo, alguns autores acreditam
fazer sentido a adoção do termo raça, reconhecendo a existência do racismo
enquanto atitude (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009).

Em consonância com esse pensamento, Dias (2005, p. 174) afirma que “a


importância do conceito de raça não é a sua precisão do ponto de vista biológico,
mas a sua realidade social, ou seja, se as pessoas acreditam e agem em função do
que se entende do conceito de raça”. Michaliszyn (2014), por seu turno, observa
que o conceito de raça passou por um processo de ressignificação, haja vista que a
ideia da existência de diferentes raças perdeu sua sustentação quando a biologia
comprovou que as diferenças genéticas entre os seres humanos são mínimas.
Sobre esse aspecto são oportunas e pertinentes as considerações do sociólogo
Kabengele Munanga ao afirmar que:

Ao decretar, no início da segunda metade do século XX, que


cientificamente a raça não existe, o racismo científico deixou
de existir, mas o racismo de fato já incorporado nas culturas de
diversas sociedades continua a persistir, e é contra ele que se luta
hoje. As raças como construção sociológica ou política continuam
a existir no imaginário coletivo de todos os racistas, e a raça como
noção e ferramenta de análise sociológica e histórica se mantém no
vocabulário das ciências sociais. Não se trata mais de raças biológicas,
mas sim de raças sociais. Em outros termos, depois da morte científica
da raça, seu filhote “racismo” continua solto no mundo e faz vítimas
independentemente da mãe já morta (REVISTA IHU, 2015).

Michaliszyn (2014) também ajuda a compreender o conceito de etnia,


ponderando que esse termo abarca os fatores culturais de um povo, dentre eles
a língua, a religião, as tradições e as afinidades linguísticas e culturais. Dessa
forma, “cada grupo étnico tem uma origem comum – sua história é construída e
transmitida de geração a geração por meio da língua, sendo esta considerada um
dos elementos principais para a sua classificação” (MICHALISZYN, 2014, p. 83).
A etnia, portanto, refere-se à classificação de um povo segundo sua organização
social e cultural, sendo que cada povo possui modos de vida particulares e
distintos uns dos outros.

E é por meio da comunicação que cada grupo étnico se desenvolve, além


de acumular e transmitir conhecimentos e experiências de vida que são passadas
de geração em geração. Por outro lado, também é por meio da comunicação
que as pessoas expressam sentimentos de pertencimento, respeito ou repulsa
em relação aos diversos grupos sociais (MICHALISZYN, 2014). Quando o
sentimento em relação ao outro não é de respeito, mas de repúdio, ocorre o
preconceito, que pode ser definido como “qualquer atitude negativa em relação
a uma pessoa ou a um grupo social que derive de uma ideia preconcebida sobre
tal pessoa ou grupo” (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 197). Entretanto,

97
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

essa atitude preconceituosa não tem como fundamento opiniões adquiridas


devido à experiência, mas a generalizações advindas de estereótipos construídos
socialmente. Retomando a origem da palavra, que vem do latim praeconcepto,
trata-se de um conceito, opinião ou julgamento formado a priori, ou seja, sem
conhecimento ou ponderação dos fatos (DESLANDES; FIALHO, 2010, p. 9).

O preconceito, por sua vez, quando manifestado publicamente por meio


de ações deliberadas e intencionais, sejam elas verbais ou não verbais, constitui-se
em discriminação que, conforme apresentado no texto da Convenção Internacional
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação, citado por Deslandes e Fialho
(2010, p. 9-10), pode ser definida como:

[…] qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada


em raça, cor, descendência, ou origem nacional ou étnica, que tenha
o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo
ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em
qualquer outro campo da vida pública.

Atitudes de racismo, preconceito e discriminação levam as pessoas que as


praticam a sentirem-se ilusoriamente superiores e, ao mesmo tempo, fazem com que
as vítimas dessas ações se sintam excluídas e marginalizadas socialmente. Estudos
realizados por Maria Batista Lima (2008) referentes à identidade e às relações
étnico-raciais no Brasil apontam que o racismo apresenta quatro características
básicas, a saber: autoria, ambiguidade, irresponsabilidade e oralidade. Veja como
essas características foram sintetizadas por Michaliszyn (2014, p. 87-88):

Autoria: apresenta forte conteúdo ideológico racial, de conotação


científica, cuja elaboração responde a interesses das elites econômicas,
intelectuais, políticas, científicas, artísticas e militares. Envolve sempre
questões relacionadas a raças, mestiçagem, grupo étnico, minorias étnicas,
classe social e região/redutos/bolsões. Ambiguidade: apresenta um
comportamento característico que resulta de atitudes, ideias e discursos
paradoxais apoiados pela mídia e praticados nos espaços públicos e
privados, envolvendo um agressor e uma vítima. Também apresenta
variações entre culturas, folclores, grupos culturais, cor da pele, fenótipos,
status e função social. Irresponsabilidade: marcada pela negação dos
direitos humanos, pode ser identificada em várias formas de violência
policial, bem como nas agressões física, verbal e visual. Também se traduz
em políticas institucionais e em comportamentos sociais de todos os
grupos (inclusive a vítima) contra o objeto da ideologia racista. Oralidade:
põe em descrédito a vítima do racismo, garantindo a impunidade do
agressor. O uso da oralidade está diretamente relacionado à posição
ocupada pelos atores sociais na hierarquia social, de modo a cumpri o
objetivo racista de reprodução das desigualdades.

As discussões apresentadas até aqui demonstram a urgência da construção


de um projeto social sustentado no reconhecimento da diversidade étnica e
na valorização das diferentes culturas. Uma das estratégias possíveis para a
superação de atitudes etnocêntricas é a adoção do relativismo cultural enquanto
norteador ético.

98
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

E
IMPORTANT

O relativismo cultural é um conceito oriundo da sociologia que entende que


cada sociedade tem seu próprio código cultural, ou seja, “[…] cada grupo social é portador
de seus próprios padrões, valores e normas de conduta. Em cada contexto sociocultural,
é possível identificarmos reações psicológicas específicas para cada fenômeno, assim
como convenções estabelecidas, por meio das quais é possível conceituar e diferenciar
o certo e o errado, o bem e o mal, o belo e o feio, além de concepções de justiça e
injustiça” (MICHALISZYN, 2014, p. 60). O relativismo cultural, portanto, entende que cada
sociedade possui características próprias que devem ser conhecidas e compreendidas, e
não julgadas. Isso não significa que devemos concordar com todo tipo de comportamento,
mas, diante de modos de agir que nos parecem estranhos, devemos procurar entender por
que determinada sociedade age de tal maneira, analisando seu contexto histórico e social.
De acordo com Assis e Nepomuceno (2008, p. 8), o relativismo cultural nos ensina:

• a compreender que a diferença deve ser tomada como sinônimo de diversidade e nunca
de desigualdade;
• que não devemos usar os padrões da nossa própria cultura para julgar os padrões
culturais de outro grupo;
• e a perceber que o que caracteriza o homem é sua aptidão praticamente infinita para
inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversas.

Embora existam críticas ao relativismo cultural – especialmente


da corrente universalista, que defende a existência de padrões culturais
universalmente aceitos como bons – o relativismo cultural evita que as culturas
sejam estratificadas como melhores ou piores e incita-nos a praticar o exercício
de olhar o outro não a partir do lugar em que estamos – já que nosso olhar
estará contaminado pelos nossos próprios julgamentos – mas do lugar em que
esse outro está, uma vez que os usos e costumes de um povo só têm sentido a
partir dele próprio (BODART, 2016).

O relativismo cultural leva-nos ao conceito de alteridade, concebido por


Michaliszyn (2014, p. 16) como “moeda de troca fundamental e antídoto contra
posturas e práticas etnocêntricas”. Ainda segundo esse autor, a alteridade

[…] adota como princípio a necessidade de conhecermos,


compreendermos e respeitarmos os demais seres humanos (o outro)
exatamente como são, respeitando-os em suas diferenças e em seus
direitos. […]. Quando esse princípio não é respeitado nas relações
sociais, podemos ampliar situações de conflito (MICHALISZYN, 2014,
p. 16-17, grifo do autor).

A alteridade, portanto, pressupõe a aceitação do outro, tendo em vista


a coexistência respeitosa entre as partes. Trata-se de aceitar o outro e respeitar
a diferença, ajustando o próprio comportamento de forma a criar um ambiente

99
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

inclusivo no qual seja possível relacionar e conviver com pessoas que pensam,
sentem e veem o mundo de forma diferente. Conforme exposto em Barreto,
Araújo e Pereira (2009, p. 204), “uma relação de alteridade é uma relação com um
outro no qual não nos vemos refletidos. É oposto de identidade”.

NOTA

Vamos fazer uma pausa na leitura para apreciar o poema Anedota búlgara, de
Carlos Drummond de Andrade (2009, p. 36).

Anedota Búlgara

Era uma vez um czar naturalista


que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.

FIGURA ­– ALGUMA POESIA

FONTE: <https://www.travessa.com.br/alguma-poesia/artigo/32907be0-eb06-4667-
8b4a-c4c6d2f4365a>. Acesso: 4 out. 2019.

Com base no que estudamos até agora, pense na relação que pode ser feita entre o
poema de Drummond e o conceito de alteridade. Anote aqui suas considerações:

100
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

5 A DIVERSIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR


A diversidade é inerente às relações sociais e, por esse motivo, está
presente na escola e no interior da sala de aula. Ela pode ser vista como uma
riqueza cultural, já que permite contato com diversas formas de ser, agir e pensar,
mas também pode originar atitudes de preconceito e discriminação. No trecho a
seguir, retirado de uma campanha da Unicef contra o racismo infantil, é possível
perceber os efeitos danosos dessa prática social na vida de crianças e adolescentes:

Estudos na área de educação infantil revelam que, ainda na primeira


infância, a criança já percebe diferenças na aparência das pessoas
(cor de pele, por exemplo). A responsabilidade dos adultos é muito
importante nesse momento, evitando explicações ou orientações
preconceituosas. Não importa se uma criança é negra, branca
ou indígena. Qualquer criança ao conviver em uma realidade de
desigualdade e de discriminação tem a ilusão de que negros, brancos
e indígenas devem ocupar necessariamente lugares diferentes na
sociedade. Seja diante da TV, nas escolas, ou em histórias infantis, as
crianças vão se desenvolvendo com imagens retorcidas de papéis e
lugares segundo cor de pele ou aparências. Por essa razão, uma criança
pode achar “desvantajoso” ter nascido negra ou indígena ou pertencer
a um grupo étnico-racial mais discriminado. Os efeitos disso são a
negação e o esquecimento de suas histórias e culturas. Portanto, nosso
compromisso é construir um lugar justo, igual e sem discriminação
para nossas crianças (UNICEF, 2010, p. 3).

O racismo, portanto, gera impactos nas pessoas envolvidas, motivo pelo


qual faz-se necessário “rever imaginários e promover mudanças que ajudem a
eliminar atitudes discriminatórias, que, por gerações, vêm exercendo efeitos
danosos na formação e na afirmação da identidade da criança e do adolescente
indígenas, negros e brancos” (UNICEF, 2010, p. 6).

Conforme reiteradas diversas vezes, neste livro didático, a escola pode ser
um local que reproduz, de forma direta ou indireta, estereótipos e preconceitos.
Isso acontece quando ela mantém um abismo entre a cultura escolar e a cultura
de referência de discentes pertencentes a grupos sociais, étnicos e culturais
marginalizados, deixando prevalecer, em seu currículo, a matriz cultural europeia.
Conforme exposto por Moreira e Candau (2005, p. 37-38):

[…] tais questões refletem visões de cultura, escola, ensino e


aprendizagem que não dão conta, a nosso ver, dos desafios encontrados
em uma sala de aula “invadida” por diferentes grupos sociais e
culturais, antes ausentes desse espaço. Não dão conta, acreditamos, do
inevitável caráter multicultural das sociedades contemporâneas, nem
respondem às contradições e às demandas provocadas pelos processos
de globalização econômica e de mundialização da cultura […], que
tanto têm intensificado a cisão do mundo em “ricos” e “pobres”,
“civilizados” e “selvagens”, “nós” e “eles”, “incluídos” e “excluídos”.

101
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Assim, práticas curriculares excludentes não permitem que a criança negra


ou indígena possa identificar-se com a escola, bem como com padrões estéticos
que a ajude a se afirmar de forma positiva. Por outro lado, o espaço escolar pode
assumir a formação e o respeito para com as diferenças étnicas, de gênero, classes
sociais e de outros grupos historicamente subalternizados. A escola pode ajudar a
desconstruir preconceitos quando reconhece, de forma equânime, a diversidade
cultural brasileira, ou seja, “em vez de preservar uma tradição monocultural, a
escola está sendo chamada a lidar com a pluralidade de culturas, reconhecer os
diferentes sujeitos socioculturais presentes em seu contexto, abrir espaços para a
manifestação e valorização das diferenças” (MOREIRA; CANDAU, 2005, p. 45).
Entretanto, ao contrário do que muitos acreditam,

[…] pensar numa perspectiva multicultural não significa promover festas,


trabalhar com manifestações folclóricas, lendas e mitos. Para além disso
– ou melhor, em paralelo a todas essas ações, que tampouco devem ser
descartadas –, devemos ter sempre em mente que lidamos com realidades
distintas e culturas diversificadas (MICHALISZYN, 2014, p. 107).

Para que se possa avançar nesse processo de reconhecimento da


diversidade e problematização das diferenças no ambiente escolar o papel de
cada docente é fundamental. Conforme posto por Moreira e Candau (2005, p. 54),
“[…] a formação docente, tanto a inicial como a continuada, passa a ser um lócus
prioritário para todos aqueles que queremos promover a inclusão destas questões
na educação”. Esses autores também reconhecem que:

Construir o currículo com base nessa tensão não é tarefa fácil e irá
certamente requerer do professor nova postura, novos saberes, novos
objetivos, novos conteúdos, novas estratégias e novas formas de
avaliação. Será necessário que o docente se disponha e se capacite a
reformular o currículo e a prática docente com base nas perspectivas,
necessidades e identidades de classes e grupos subalternizados
(MOREIRA; CANDAU, 2005, p. 39).

Além disso, cada área do conhecimento deve reconhecer e trabalhar a


diversidade cultural de forma a valorizar culturas até então esquecidas. No caso
específico da Língua Portuguesa e Literatura, faz-se necessária a valorização, no
currículo, das literaturas pós-colonial, africana, indígena e de imigrantes, que
serão abordadas nos próximos tópicos dessa unidade.

102
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

NOTA

Antes de dar continuidade à leitura, veja essas “10 maneiras de contribuir


para Uma Infância sem Racismo” apresentadas pela Unicef.

1- Eduque as crianças para o respeito à diferença. Ela está nos tipos de brinquedos, nas
línguas faladas, nos vários costumes entre os amigos e pessoas de diferentes culturas,
raças e etnias. As diferenças enriquecem nosso conhecimento.
2- Textos, histórias, olhares, piadas e expressões podem ser estigmatizantes com outras
crianças, culturas e tradições. Indigne-se e esteja alerta se isso acontecer – contextualize
e sensibilize!
3- Não classifique o outro pela cor da pele; o essencial você ainda não viu. Lembre-se:
racismo é crime.
4.- Se seu filho ou filha foi discriminado, abrace-o, apoie-o. Mostre-lhe que a diferença
entre as pessoas é legal e que cada um pode usufruir de seus direitos igualmente. Toda
criança tem o direito de crescer sem ser discriminada.
5- Não deixe de denunciar. Em todos os casos de discriminação, você deve buscar defesa
no conselho tutelar, nas ouvidorias dos serviços públicos, na OAB e nas delegacias de
proteção à infância e adolescência. A discriminação é uma violação de direitos.
6- Proporcione e estimule a convivência de crianças de diferentes raças e etnias nas
brincadeiras, nas salas de aula, em casa ou em qualquer outro lugar.
7- Valorize e incentive o comportamento respeitoso e sem preconceito em relação à
diversidade étnico-racial.
8- Muitas empresas estão revendo sua política de seleção e de pessoal com base na
multiculturalidade e na igualdade racial. Procure saber se o local onde você trabalha
participa também dessa agenda. Se não, fale disso com seus colegas e supervisores.
9- Órgãos públicos de saúde e de assistência social estão trabalhando com rotinas de
atendimento sem discriminação para famílias indígenas e negras. Você pode cobrar essa
postura dos serviços de saúde e sociais da sua cidade. Valorize as iniciativas nesse sentido.
10- As escolas são grandes espaços de aprendizagem. Em muitas, as crianças e os
adolescentes estão aprendendo sobre a história e a cultura dos povos indígenas e da
população negra; e como enfrentar o racismo. Ajude a escola de seus filhos a também
adotar essa postura.

E você? Como acha que docentes podem contribuir para que atitudes de racismo não
aconteçam na escola?

6 A EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DAS LEIS nº 10.639/2003


E Nº 11.645/2008
Na unidade anterior vimos a importância do movimento feminista em
defesa dos direitos das mulheres ao longo da história. Com relação às questões
étnico-raciais, destacaram-se as lutas do Movimento Negro que tiveram como
pauta a equidade racial na sociedade brasileira, sendo que dentre as diversas
ações de promoção do diálogo intercultural e da igualdade racial evidenciou-
se, em 2001, a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação

103
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata realizada em Durban, na África do Sul.


Por ocasião dessa conferência o Brasil assumiu publicamente o compromisso de
desenvolver ações afirmativas contra o racismo e a discriminação racial no campo
da educação (MEINERZ, 2017).

Em decorrência desse compromisso foi promulgada, em 2003, a Lei nº


10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Afro-Brasileira. De acordo com o texto legal,

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira. § 1o  O conteúdo programático a que se refere
o  caput  deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o
negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição
do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura
Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e
História Brasileiras (BRASIL, 2003).

Posteriormente, em 2008, essa lei foi alterada por outra, de nº 11.645, que
acrescentava a temática da cultura indígena ao lado da afro-brasileira. Ambas as leis
trouxeram, portanto, novas demandas para serem inseridas no currículo escolar
brasileiro que – movido por um legado eurocêntrico – dava pouco ou nenhum
espaço para reflexões acerca da contribuição da cultura afro-brasileira e indígena
na constituição de nossa identidade. Conforme nos lembra Meinerz (2016, p. 3),

[…] a História do Brasil contém muitas histórias. Nem todas foram ou


são contadas nas pesquisas historiográficas, nas escolas ou nos materiais
didáticos. Em geral, falamos do Brasil numa perspectiva que coloca a
chegada do europeu em sua centralidade, consolidando uma espécie
de eurocentrismo inclusive em nossas formas de pensar nós mesmos.

Como você pode perceber, as Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 trouxeram


para as escolas uma série de questões antes silenciadas, ignoradas ou tratadas
de forma equivocada. No caso dos indígenas, por exemplo, a visão que foi
disseminada por décadas nas escolas era a de que estes povos “pertencem a
culturas ‘atrasadas’, ‘inferiores’, ‘ignorantes’, despossuídas de tecnologia e de
saberes. Da mesma forma, tais imagens consideram os índios como ‘coisas do
passado’, como ‘primitivos’, acreditando que suas culturas são incompatíveis
com a existência de um Brasil moderno” (FREIRE, 2016, p. 33-34). A África,
por seu turno, na maioria das vezes era apresentada de forma generalizada,
disseminando a ideia de um país uniforme, exótico, selvagem e pobre. A abolição
da escravatura também era ensinada como se fosse um ato de bondade para com
a população negra. Cabe ressaltar, ainda, que a implementação dessas leis

104
TÓPICO 1 | DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO

[...] justifica-se num contexto de reparação histórica que atende ao


reconhecimento de que nossa sociedade, através de seus gestores,
cometeu crimes gravíssimos no passado (comércio transatlântico,
escravização, impedimento de acesso à terra, trabalho e escola),
causando uma assimetria do ponto de vista étnico-racial. Reconhecem-
se os crimes do passado, contudo, no presente, novos processos de
racismo e racialização se reinventam, exigindo de fato um projeto de
transformação da sociedade brasileira. Essa política de estado vincula-
se ao que chamamos de ações afirmativas que se interseccionam, mas
que parecem ter objetivos distintos. Uma delas são as cotas raciais em
concursos públicos, que atingem profundamente a meta de equidade
racial em todas as instituições, começando com as que são públicas
e sobre as quais o Estado legisla e fiscaliza mais diretamente. Outra
é a política curricular vinculada à obrigatoriedade legal do ensino
positivado de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena
(MEINERZ, 2017, p. 242).

A inclusão de estudos sobre essa temática no currículo escolar causou


estranhamento e resistência por parte de alguns segmentos da sociedade que
desconhecem e/ou ignoram sua importância. Entretanto, é preciso ter em mente
que se trata de:

[…] uma perspectiva de intervenção na história e nos processos


educativos que nos possibilita compreender que o respeito à diferença
não implica a transformação do outro no que somos, tampouco que
devemos ser tal qual o outro é. Ao contrário, trata-se de compreender
e aceitar que o outro é o que não somos. Trata-se de evidenciar,
na identidade nacional, nossas raízes, reconhecendo a presença e
respeitando as contribuições culturais trazidas por diferentes povos e
etnias que constituem a identidade do povo brasileiro. Eis aí a riqueza
dessa lei: ela exige um novo olhar sobre nós mesmos, sobre o outro e
sobre as nossas diferenças (MICHALISZYN, 2014, p. 109).

Como você deve ter percebido, essas leis são extremamente importantes
pois reconhecem a pluralidade que faz parte da formação da sociedade brasileira,
sendo a diversidade inerente ao espaço escolar. A propósito, pensar o espaço
escolar enquanto lócus de manifestação da diversidade cultural implica pensar
no papel do docente enquanto mediador das relações de ensino-aprendizagem,
relações éticas e conflitos de ideologias (SILVA; SILVA, 2013), uma vez que sua
figura acaba sendo central na aplicação destas leis.

Considerando-se que a simples promulgação da lei não garante sua


aplicação, faz-se necessário o envolvimento do corpo docente na implementação de
práticas afirmativas nas escolas. Para tanto, é imprescindível investir na formação
docente, tanto inicial quanto continuada, por meio de estudos e pesquisas que
promovam a reflexão acerca da diversidade étnica e cultural existente no país.

105
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• O termo cultura não está relacionado a aspectos biológicos ou geográficos,


mas sociais.

• Etnocentrismo é uma forma de pensar que considera a própria cultura como


melhor ou superior às demais.

• Etnia, raça, racismo, preconceito, discriminação e alteridade são termos


importantes a serem estudados no contexto das relações étnico-raciais.

• É importante que as relações étnico-raciais sejam trabalhadas nas escolas,


motivo pelo qual foram criadas leis no Brasil para garantir a inserção da cultura
afro-brasileira e indígena no currículo escolar.

106
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2017) Uma das questões discursivas da prova do Enade em


2017 abordou a temática das relações étnico-raciais. Leia os dois textos
apresentados para responder à questão.

Texto 1

Texto 2

Essa Negra Fulô

Ora, se deu que chegou


(isso já faz muito tempo)
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

107
Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa


que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco".

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)

108
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra


levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar


sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!


Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

Lima, J. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980 (adaptado).

109
Considerando que o trabalho de leitura na educação básica visa ao letramento
crítico e à discussão das representações acerca de diferenças de sexo, de
gênero, de raça e de classe social, redija um texto estabelecendo pontos de
aproximação e distanciamento entre os textos 1 e 2. Em seu texto, aborde:

• dois aspectos (temáticos e/ou formais) que fundamentam uma leitura


comparativa das obras;
• uma estratégia de leitura para a abordagem dos dois textos em sala de aula,
com vistas ao desenvolvimento do letramento crítico do estudante.

2 (ENADE, 2014)
Fora de Foco

Uma jornalista baiana passou pelo que classificou como "enorme constrangimento"
ao tirar a foto para renovar o passaporte, em Salvador: agentes da Polícia
Federal pediram que ela prendesse o cabelo estilo black power, pois o sistema
não aceitava a imagem gerada. "Eu gosto do meu cabelo e, naquela foto, fiquei
terrível", disse. A jornalista descarta ter recebido qualquer tratamento racista
dos funcionários do local, mas reclamou no Facebook: "Essas coisas podem
não ser intencionais, mas tudo, no fundo, tem um padrão que desvaloriza a
estética que foge do convencional." O delegado, chefe do setor, explicou que
um cabelo de proporções maiores diminui o rosto do fotografado, e foi isso que
o sistema impediu. "A gente concorda com ela que isso é inadmissível. O caso
já foi passado para nossa sede em Brasília, para sabermos que medidas podem
ser adotadas", afirmou.
Diários Associados. Estado de Minas, 18 jul. 2014 (adaptado).

A notícia publicada no jornal abre um leque de possibilidades para o professor


abordar o tema da diversidade cultural, por meio de práticas educativas que
contemplem as questões históricas e suas implicações na vida cotidiana. Nessa
perspectiva, avalie as afirmações a seguir.

I- A temática diversidade cultural é parte do currículo de História do Brasil,


conforme preconiza a Lei nº 9.394/1996 (LDB), e, por estar relacionada a
aspectos referentes a identidade nacional, portanto, a abordagem das
temáticas correlatas deve restringir se ao âmbito da referida disciplina.
II- A abordagem disciplinar da diversidade cultural deve ser priorizada,
buscando se associações com conhecimentos não constantes do programa
da disciplina.
III- A diversidade cultural é tema a ser abordado na perspectiva da
transversalidade, o que possibilita colocar em prática a relação entre as
áreas dos conhecimentos em sua aplicabilidade transformadora dos
fenômenos sociais e naturais.
IV- A principal característica do trabalho com temas transversais é a condição
de estabelecimento de relações entre disciplinas e teoria e prática; sujeito e
sua produção de conhecimento; conhecimento trabalhado em sala de aula
e conhecimentos não constantes dos programas escolares.
110
É CORRETO apenas o que se afirma em:
a) ( ) I e II.
b) ( ) I e III,
c) ( ) III e IV.
d) ( ) I, II e IV.
e) ( ) II, III e IV.

FONTE: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2014/36_
pedagogia.pdf.>. Acesso em: 22 set. 2019.

3 Em 2003 e 2008 foram promulgadas, respectivamente, as Leis n° 10.639 e


n° 11.645 que incluíram a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino. Leia as
alternativas abaixo referentes a essas legislações:

I- De acordo com a lei, apenas docentes das áreas de Educação Artística,


Literatura e História devem a incluir a temática da cultura afro-brasileira
e indígena em seu planejamento didático-pedagógico.
II- A promulgação da lei não assegurou sua implementação nas escolas, visto
que sua execução está relacionada à sua incorporação, por aqueles a quem
ela se destina, na prática pedagógica escolar, bem como ao compromisso
do poder público em sua execução.
III- A contemplação da temática da diversidade cultural na legislação brasileira
deve ser entendida como uma concessão resultante de um processo de
democratização do país que prescinde da luta dos movimentos negros e
indígenas por visibilidade e reconhecimento.
IV- A falta de preparo docente para trabalhar com conteúdos relacionados à
história da África é uma das dificuldades encontradas na implementação
de práticas afirmativas nas escolas.

Assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As afirmativas I e II estão corretas.
b) ( ) As afirmativas II e IV estão corretas.
c) ( ) As afirmativas I e III estão corretas.
d) ( ) As afirmativas III e IV estão corretas.

4 (ENADE, 2011) A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e


códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa
e institui. Informa o “lugar” dos pequenos e dos grandes, dos meninos e
das meninas. Através dos seus quadros, crucifixos, santas ou esculturas,
aponta aqueles/as que deverão ser modelos e permite, também, que os
sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos [...] Currículos, normas,
procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processo
de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero, sexualidade,
etnia, classe — são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo,
seus produtores. Todas essas dimensões precisam, pois, ser colocadas em
questão. É indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas

111
o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que
aprendem. Atrevidamente é preciso, também, problematizar as teorias
que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui, até mesmo aquelas teorias
consideradas “críticas”). Temos de estar atentas/os, sobretudo, para nossa
linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo e o etnocentrismo
que ela frequentemente carrega e institui.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 7. ed.


Petrópolis: Vozes, 1997, p. 58 e 64.

Com base no texto anterior, avalie as afirmações que se seguem.

I- A escola define os espaços que cada um deve ocupar socialmente, visto


que reproduz modelos e condiciona os alunos a segui-los.
II- Os espaços delimitados pela escola representam a sala de aula em si, visto que
é o ambiente predominante em que acontece o processo de aprendizagem.
III- A delimitação de espaços pela escola só acontece no espaço escolar, visto
que o(a) aluno(a) o ignora nos momentos em que não está inserido no
contexto educacional.
IV- Os espaços delimitados pela escola representam a rotulação e o
estabelecimento de papéis e padrões de comportamento.

É CORRETO apenas o que se afirma em:


a) ( ) I e II.
b) ( ) I e IV.
c) ( ) II e III.
d) ( ) I, III e IV.
e) ( ) II, III e IV.

FONTE: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2011/PEDAGOGIA.pdf>.
Acesso em: 29 set. 2019.

112
UNIDADE 2 TÓPICO 2

A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

1 INTRODUÇÃO
Estamos iniciando mais um tópico no qual estudaremos a relação entre
a produção literária e os estudos pós-coloniais. Antes, porém, será feita uma
retomada de alguns termos importantes como colonialismo, etnocentrismo e
eurocentrismo, essenciais para a compreensão dos estudos relacionados.

Faremos uma reflexão sobre o significado do processo de colonização ao


qual o país foi submetido e quais as consequências disso em termos de disseminação
do conhecimento. Por fim, veremos que, com o surgimento da crítica pós-colonial,
voltou-se a atenção para produções que até então não tinham visibilidade. De
acordo com Mascena e Lúcio (2011, p. 2), “com a sistematização da crítica pós-
colonial, foi possível documentar, representar e publicar as literaturas produzidas
pelos povos colonizados, classificados até então por incultos, selvagens e ausentes
de qualquer tipo de cultura”.

Veremos, então, que o estudo de literaturas não pertencentes ao cânone


literário tradicional é essencial no processo de construção da identidade individual e
coletiva, uma vez que tais textos, quando devidamente estudados e problematizados,
promovem o autoconhecimento e melhor compreensão de si e do outro.

2 COLONIALISMO, ETNOCENTRISMO E EUROCENTRISMO


Antes de adentrar no conceito de pós-colonialismo e nos estudos pós-
coloniais, é importante fazer uma retomada do significado do termo colonialismo.
Veja, a seguir, a definição e a explicação acerca do colonialismo apresentadas por
Thomas Bonnici (2005, p. 187):

O colonialismo consiste na opressão militar, econômica e cultural de


um país sobre um outro, qual a invasão europeia da África, Ásia e
América a partir do século 16. Evidentemente, a ideia de império e
colônias não é algo novo na história humana. Não apenas houve
a colonização pré-capitalista na antiguidade engendrada pelos
fenícios, gregos, persas e romanos, mas também na Idade Média
os árabes colonizaram o norte da África e a península ibérica, as
potências europeias invadiram o Oriente Médio sob a forma de
Cruzadas e o mongol Genghis Khan dominou a China. A diferença
entre a colonização antiga e a capitalista na Modernidade consiste no

113
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

fato que essa não exigia apenas tributos, bens e riquezas dos países
conquistados, mas reestruturava as economias dos países colonizados
de tal modo que o relacionamento entre o colonizador e o colonizado
interferiu no intercâmbio de recursos materiais e humanos trocados
entre ambos. Consequentemente essa colonização devastou a cultura,
as vezes milenar, de muitos povos, a qual foi substituída por uma
cultura eurocêntrica e cristã.

Entende-se, portanto, que o colonialismo está relacionado ao conceito


de etnocentrismo, pois enquanto este último considera a própria cultura como
parâmetro para entender o mundo, o colonialismo é uma forma de imposição
de uma cultura sobre ou, em outras palavras, “o termo colonialismo caracteriza
o modo peculiar como aconteceu a exploração cultural durante os últimos 500
anos causada pela expansão europeia” (BONNICI, 2009, p. 262). Além dos
exemplos de colonialismo citados por Bonnici é importante retomar a história
do nosso país que, durante muitos anos, foi colônia de Portugal. Durante esse
período, além de explorarem os recursos naturais do Brasil, os portugueses
também tiveram a preocupação em impor sua cultura, linguagem e religião aos
povos indígenas que aqui viviam.

Infere-se, assim, que o processo de colonização não se restringiu a


motivações de ordem política e econômica, estando também relacionado a uma
visão etnocêntrica dos colonizadores que enxergavam as culturas não europeias
como atrasadas e inferiores. De acordo com Dermeval Saviani,

[…] o processo de colonização abarca, de forma articulada mas não


homogênea ou harmônica, antes dialeticamente, esse três momentos
representados pela colonização propriamente dita, ou seja, a posse
e exploração da terra subjugando os seus habitantes (os íncolas); a
educação enquanto aculturação, isto é, inculcação nos colonizados
das práticas, técnicas, símbolos e valores próprios dos colonizadores;
e a catequese entendida como a difusão e conversão dos colonizados à
religião dos colonizadores (SAVIANI, 2010, p. 29).

Ademais, no contexto da colonização agravou-se a situação dos povos


colonizados que eram racialmente diferentes já que, conforme Bonnici (2009), a
relação colonizador/colonizado era notoriamente injusta e desigual:

Os termos raça, racismo e preconceito racial são oriundos da posição


hegemônica europeia. Esse tópico transformou-se numa justificativa
para introduzir o regime escravocrata a partir de meados do século
XVI, quando se formou a ideia de um mundo colonial habitado
por gente “naturalmente” inferior, programada pela natureza para
trabalhar braçalmente e servir ao homem europeu branco. […] Aos
olhos dos europeus colonizadores, o estado naturalmente inferior
dos colonizados era um fato indiscutível, “provado” no século XIX
pelas teorias da evolução e da sobrevivência do mais forte na doutrina
darwinista (BONNICI, 2009, p. 262).

114
TÓPICO 2 | A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

A implantação da ordem colonial no Brasil foi organizada em meio


a um discurso eurocêntrico que inferiorizava os povos nativos, ou seja, essa
suposta condição de superioridade cultural serviu de justificativa para a ação
colonizadora nas terras encontradas. De acordo com Ashcroft et al. (1991 apud
BONNICI, 2009), as colônias podem ser sistematizadas em três categorias:
colônias de povoadores, colônias de sociedades invadidas e colônias de
sociedades duplamente invadidas. O Brasil enquadra-se na primeira situação,
ou seja, colônia de povoadores, situação em que:

[…] a terra foi ocupada por colonos europeus que conquistaram,


mataram ou deslocaram as populações indígenas. Uma modalidade
de civilização europeia foi transplantada no vazio construído e
os descendentes europeus, mesmo após a independência política,
mantiveram o idioma não-indígena. Os colonos inquestionavelmente
consideraram que o idioma europeu era apropriado para expressar
a complexa realidade do lugar ocupado, marginalizando as línguas
indígenas (BONNICI, 2009, p. 263).

Diversos registros, tanto escritos quanto iconográficos, demonstram como


era o modo de vida das populações nativas sob a ótica do colonizador, ou seja,
demonstram como se formou, no imaginário europeu, um conjunto de conceitos
sobre as terras descobertas. Veja, por exemplo, nas imagens a seguir que, ao
retratar os povos indígenas que viviam nas terras colonizadas, os europeus não
conseguiam dissociá-los das práticas de canibalismo, presentes em muitos relatos
de viajantes. Tais imagens, que passaram a nutrir o imaginário da população,
serviam aos interesses expansionistas da época uma vez que legitimavam a
colonização e o processo de aculturação perpetrados pelos europeus.

FIGURA 1 – THEODOR DE BRY, 1528-1598. CENA DE CANIBALISMO, A PARTIR DE “AMERICAE TERTIA


PARS”, 1592. GRAVURA COLORIDA. SERVICE HISTORIQUE DE LA MARINE, VINCENNES, FRANCE

FONTE: <https://lume-re-demonstracao.ufrgs.br/imagens-para-pensar-o-outro/1-recursos.html>.
Acesso em: 21 set. 2019

115
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

De acordo com Bonnici (2009, p. 265), essa forma de retratar os habitantes


locais era uma “degradação sistemática do nativo”, sendo que “a imagem do
nativo/escravo em tais condições foi o gatilho psicológico para a rapinagem da
colônia em todos os sentidos”.

Dentre os registros escritos podemos citar a obra denominada Tratado da


Terra do Brasil, do historiador e cronista português Pero de Magalhães Gandavo.
Além de dissertar sobre a fauna e a flora brasileira, Gandavo também registrou
suas impressões sobre os hábitos e costumes das pessoas encontradas no local:

[…] Estes índios andam nus sem cobertura alguma, assim machos
como fêmeas, não cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem
descoberto quanto a natureza lhes deu. Vivem todos em aldeias, pode
haver em cada uma sete, oito casas, as quais são compridas feitas à
maneira de cordoarias; e cada uma delas está cheia de gente duma
parte e doutra, e cada um por si tem sua estância e sua rede armada em
que dorme, e assim estão todos juntos uns dos outros por ordem, e pelo
meio da casa fica um caminho aberto para se servirem. Não há como
digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem
um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não
por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não
serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e aconselhá-los como
se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre
eles cousa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro
mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das
outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram cousa alguma
nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena para
os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com
os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem
medida (GANDAVO, 2008, p. 66).

Como você pôde perceber, nesse pequeno trecho, Gandavo aponta diversos
aspectos do modo de vida indígena fazendo referência ao não uso de vestimentas,
ao tipo de moradia, à ausência de autoridade política, à prática da poligamia
pelos homens e à ausência algum tipo de culto religioso que pudesse cercear as
ações dos indivíduos. Os aspectos destacados por Gandavo não foram aleatórios
pois, ao abordá-los, ele estabelece, internamente, um diálogo com os valores da
cultura na qual estava inserido. O autor, portanto, olha para a população nativa
com as lentes da própria cultura, concluindo, então, que aquele modo de vida era
bestial, fazendo-se necessária a intervenção do colonizador para salvar essa gente.

O encontro com os nativos deste Novo Mundo originou relatos e discussões


nas quais delineava-se tanto uma recusa quanto uma fascinação por esse Outro
desconhecido, visto em alguns momentos como bom e em outros como mau selvagem.

O discurso acerca do mau selvagem colocava-o em contraposição ao bom


civilizado. Assim falava-se, nessa ideologia, “dos outros descobertos, como naturais
ou selvagens (seres da floresta) opondo-se a humanidade e parecendo como
aberrações: são sem religião, sem moral, sem leis; eles estão nus; comem carne crua;
falam uma língua inteligível” (GERHARDT, 2019, p. 1, grifo nosso).

116
TÓPICO 2 | A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

Por outro lado, naquela ambiência também circularam discursos que


originaram o mito do bom selvagem, fundamentado na obra de Jean-Jacques
Rousseau. De acordo com esse filósofo, todo homem primitivo seria bom,
tornando-se mau quando corrompido pela sociedade. O selvagem primitivo,
portanto, “gozava de uma índole pacífica e pura, desprovida de desejos de
riqueza, glória e poder, próprios de cidadãos civilizados” (GERHARDT, 2019, p.
9). Assim, “o que era apreendido como um menos agora se torna um mais. Ou seja,
o selvagem, mesmo sem clero, sem leis, sem tecnologia, passa a ser valorizado,
suas ausências são vistas como vantagens” (GERHARDT, 2019, p. 3).

Vale ressaltar, porém, que, em ambos os casos, sendo concebido como bom
ou mau selvagem, esse outro era visto apenas como “objeto-pretexto para todo
tipo de exploração econômica, política quanto à conversão religiosa ou à emoção
estética” (GERHARDT, 2019, p. 4). Em outras palavras, “a tarefa civilizatória e
a tutelagem paternal assumidas pela nação europeia nada mais foram que um
pretexto pelo qual intensificavam a rapinagem e a luta pela aquisição de matérias-
primas” (BONNICI, 2009, p. 264), não podendo ser dissociado, portanto, do
ideário colonialista.

Essa breve retomada do conceito de colônia teve como intuito situar o


eurocentrismo – conceito que entende a cultura europeia como a mais importante
do mundo – no período das grandes navegações e descobrimentos. Muito embora
os países descobertos nesta conjuntura tenham conquistado sua independência
política, permaneceu em nosso meio uma visão equivocada da existência de uma
essência cultural europeia que se contrapõe aos demais povos, ou seja, hoje, a
dominação das metrópoles hegemônicas perpetua-se por meio de outros arranjos.
Essa situação de dependência cultural e epistemológica dos povos colonizados
originou os estudos pós-coloniais, que serão abordados a seguir.

3 PÓS-COLONIALISMO
O colonialismo contribuiu para que a diversidade cultural da humanidade
acabasse sendo limitada “a apenas uma perspectiva paradigmática que vê a
Europa como a origem única dos significados, como o centro de gravidade do
mundo, como realidade ontológica em comparação com a sombra do resto do
planeta” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 20). Em contrapartida, “as experiências
culturais dos subalternos – dos povos colonizados – as suas construções culturais
são relegadas a um secundário lugar rotulado como saber local, que a tradição
filosófica ocidental não considera relevante” (MATA, 2014, p. 29).

Não restam dúvidas de que a Europa contribuiu, sobremaneira, para a


consolidação do pensamento filosófico e científico da humanidade. Entretanto, a
visão eurocêntrica – estabelecida nas práticas e representações contemporâneas –
acabou promovendo o apagamento e o silenciamento de outros povos, especialmente
indígenas e africanos, que também fazem parte de nossa identidade multicultural.

117
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Por esse motivo é possível afirmar que o colonialismo foi muito além
das dominações políticas, territoriais e econômicas, configurando-se também
como uma dominação epistemológica pois, em meio a uma relação notoriamente
desigual, “conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos
e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de
subalternidade” (SANTOS; MENESES, 2009, p. 5).

Para melhor compreender as relações de poder entre colonizador/


colonizado que permaneceram mesmo após a superação do colonialismo,
são oportunas as reflexões de Quijano (2009) ao forjar o termo colonialidade,
contrapondo-o ao conceito de colonialismo:

Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado a


Colonialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura de
dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos
recursos de produção e do trabalho de uma população determinada
domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão,
além disso, noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre, nem
necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo
é obviamente, mais antigo, enquanto a Colonialidade tem vindo a
provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura que o
colonialismo. Mas, foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e,
mais ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjetividade do
mundo tão enraizado e prolongado (QUIJANO, 2009, p. 74).

Uma das consequências do colonialismo é a perda da identidade e da


autorreferência dos povos colonizados, conforme explicado por Santos e Meneses
(2009, p. 10):

De facto, sob o pretexto da missão colonizadora, o projeto da colonização


procurou homogeneizar o mundo, obliterando as diferenças culturais
[…]. Com isso, desperdiçou-se muita experiência social e reduziu-
se a diversidade epistemológica, cultural e política do mundo. Na
medida em que sobreviveram, essas experiências e essa diversidade
foram submetidas à norma epistemológica dominante […]. A perda de
uma auto-referência genuína não foi apenas uma perda gnoseológica,
foi também, e sobretudo, uma perda ontológica: saberes inferiores
próprios de seres inferiores.

Levando em consideração as palavras de Hall (2002, p. 48) ao afirmar


que “as identidades nacionais não são como coisas com as quais nós nascemos,
mas são formadas e transformadas no interior da representação”, é possível
inferir que o respeito e a valorização das diferentes culturas constituintes da
nossa identidade estão relacionados à forma com que essas culturas nos são
apresentadas, especialmente no ambiente escolar:

[…] o eurocentrismo constitui a visão “normal” da história que a


maioria das pessoas no Primeiro Mundo (e até no Terceiro Mundo)
aprendem na escola e assimilam através dos meios de comunicação.
O resultado dessa operação de naturalização é a possibilidade de ser
contra o racismo em um nível consciente e prático, e mesmo assim ser
eurocêntrico (SHOHAT; STAM, 2006, p. 24).

118
TÓPICO 2 | A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

As ponderações apresentadas por Shohat e Stam (2006) corroboram as


palavras de Quijano (2009, p. 74-75), segundo o qual

[…] a colonialidade do poder e a dependência histórico-estrutural


implicam ambas na hegemonia do eurocentrismo como perspectiva
epistemológica. No contexto da colonialidade do poder, a população
dominada, nas novas identidades que lhes haviam sido atribuídas,
foram também submetidas à hegemonia eurocêntrica como maneira
de conhecer, na medida em que alguns de seus setores puderam
aprender a língua dos dominadores. Portanto, o eurocentrismo não é
exclusivamente a perspectiva cognitiva dos europeus, ou apenas dos
dominantes do capitalismo mundial, mas também do conjunto dos
educados sob sua hegemonia.

Sobre o processo de constituição da identidade dos povos colonizados,


Carvalho (2010, p. 4) salienta que estes “aprenderam a habitar duas identidades:
a cultura do colonizador – socialmente mais valorizada e aceita como válida –
eurocêntrica, masculina, heterossexual e cristã, e a do colonizado – comunitária,
matrial e coletiva”.

Em meio a esses questionamentos acerca da diversidade cultural e da


construção da identidade surgiu o termo pós-colonialismo, cuja perspectiva
conceitual remete à ideia de que determinados lugares e povos são vistos como
subalternos em relação a outros, considerados superiores e desenvolvidos.

A abordagem pós-colonial constrói, sobre a evidência […] de que toda


enunciação vem de algum lugar, sua crítica ao processo de produção
do conhecimento científico que, ao privilegiar modelos e conteúdos
próprios ao que se definiu como a cultura nacional nos países europeus,
reproduziria, em outros termos, a lógica da relação colonial. Tanto as
experiências de minorias sociais como os processos de transformação
ocorridos nas sociedades “não ocidentais” continuariam sendo
tratados a partir de suas relações de funcionalidade, semelhança ou
divergência com o que se denominou centro. Assim, o prefixo “pós”
na expressão pós-colonial não indica simplesmente um “depois” no
sentido cronológico linear; trata-se de uma operação de reconfiguração
do campo discursivo, no qual as relações hierárquicas ganham
significado […]. Colonial, por sua vez, vai além do colonialismo e
alude a situações de opressão diversas, definidas a partir de fronteiras
de gênero, étnicas ou raciais (COSTA, 2006, p. 117-118).

O termo pós-colonialismo, portanto, refere-se a uma perspectiva teórica e


cultural que realiza uma releitura crítica do processo de colonização apontando
para novas perspectivas de análise que valorizam saberes não hegemônicos.

119
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

E
IMPORTANT

O pós-colonialismo não deve ser tratado como um órgão


unificado de pensamento; pelo contrário, ele é múltiplo,
diverso e não é fácil de generalizar. Embora o pós em pós-
colonialismo seja indicativo do fim do colonialismo e do
imperialismo como dominância política directa, isto não
implica o desaparecimento do colonialismo como um sistema
mundial de poder hegemônico imperial. A abordagem
pós-colonial procura captar as continuidades, rupturas e
complexidades específicas de períodos históricos, na tentativa
de ir além das concepções cronológicas estritas, lineares e
dicotômicas, que dominam o pensamento social e político
contemporâneo (MENESES, 2009, p. 178).

A utilização desses saberes, considerados alternativos à epistemologia


dominante, apresenta como premissa o fato de que “o mundo é epistemologicamente
diverso e essa diversidade, longe de ser algo negativo, representa um enorme
enriquecimento das capacidades humanas para conferir inteligibilidade e
intencionalidade às experiências sociais” (SANTOS; MENESES, 2009, p. 12).

Fazendo uma retomada do emprego desse conceito, Carvalho (2010)


explicita que inicialmente ele foi utilizado em referência ao processo de
independência das colônias europeias. Somente a partir da década de 1970 o
conceito de pós-colonialismo passou a ser usado pelos críticos literários para
explicar as consequências da colonização para os povos colonizados.

Constata-se, assim, que o prefixo pós, “[…] apesar de ser um depois,


vai além do colonialismo, já que as teorias pós-coloniais se fundamentam
numa atividade crítica de contestação e leitura crítica do legado colonial”
(CARVALHO, 2010, p. 3). Não se trata, portanto, de uma sucessão cronológica de
algo que aconteceu imediatamente depois, uma vez que “o fim do colonialismo
não representou o fim das relações de poder discriminatórias desenvolvidas no
seio das sociedades pós-coloniais” (CARVALHO, 2010, p. 2). Em síntese, “o pós-
colonial, portanto, vai além do cronológico – de um período específico – para
estabelecer-se enquanto corrente teórica que problematiza as relações desiguais
entre quem produz o conhecimento e quem carrega as marcas de desigualdade
advindas da situação colonial” (CARVALHO, 2010, p. 3). A compreensão deste
conceito, portanto, deve levar em consideração a utilização do prefixo pós não
no sentido de sucessão, mas de superação.

Embora o conceito de pós-colonialismo tenha emergido nos anos 1970, ele


adquire consistência a partir dos anos 1980, com a produção de obras seminais
voltadas para essa temática. A propósito, cumpre ressaltar que não é possível

120
TÓPICO 2 | A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

falar de uma única teoria pós-colonial, mas de uma série de estudos oriundos de
diversos campos epistemológicos cujo ponto em comum é a crítica às narrativas que
apresentam a cultura eurocêntrica como modelo civilizatório universal (GUERRA,
2014). Ou ainda, trata-se de “uma variedade de contribuições com orientações
distintas, mas que apresentam como característica comum esforço de esboçar, pelo
método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica
às concepções dominantes da modernidade” (COSTA, 2006, p. 84). De acordo com
esse autor, a crítica colonial foi iniciada por “autores qualificados como intelectuais
da diáspora negra ou migratória – fundamentalmente imigrantes oriundos de
países pobres que vivem na Europa Ocidental e na América do Norte – teve, na
crítica literária, sobretudo na Inglaterra e nos EUA, a partir dos anos 1980, suas
áreas pioneiras de difusão” (COSTA, 2006, p. 84).

Os estudos pós-coloniais, portanto, estão voltados para a história dos


grupos subalternos, termo utilizado para descrever o colonizado-objeto. De acordo
com Bonnici (2009, p. 265), o termo subalterno “refere-se a pessoas na sociedade
que são o objeto da hegemonia das classes dominantes. As classes subalternas
podem ser compostas por colonizados, trabalhadores rurais, operários e outros
grupos aos quais o acesso ao poder é vedado”.

Um dos primeiros autores a tratar do pós-colonialismo foi o palestino


Edward Said, cujo livro, denominado Orientalismo: o Oriente como invenção
do Ocidente, é considerado um dos textos fundadores desses estudos. Nele, o
autor – além de retratar a imagem que o Ocidente criou em relação ao Oriente
principalmente durante o período da colonização europeia na África – chama a
atenção para o fato de que essa imagem é repleta de estereótipos, homogeneizações
e generalizações acerca do outro (SAID, 1990). Ao afirmar que o Oriente foi, na
verdade, fabricado pelo Ocidente, Said questiona a representação binária que
divide o mundo em Nós e o Outro, sendo o primeiro constituído pelo ocidental/
europeu/civilizado e o segundo pelo oriental/não-europeu/bárbaro. O autor
também aponta para uma relação de poder por parte do colonizador ocidental
frente ao colonizado, sendo que o colonizador sempre é detentor de privilégios
do ponto de vista social, político e discursivo (COELHO, 2009).

Alguns autores apresentaram críticas à teoria formulada por Said,


apontando seu reducionismo. Um desses autores é Homi Bhabha, que ao
analisar as relações entre colonizadores e colonizados, conclui que elas “não
são homogêneas, mas marcadas pela ambivalência […], pondo em relevo a
esfera inconsciente das relações coloniais e mostrando de que forma o sujeito
colonial se converte em objecto de fantasia e desejo por parte do colonizador”
(COELHO, 2009, s.p.). A crítica de Gayatri Chakravorty Spivak, por sua vez,
põe em evidência a história dos subalternos e propõe “dar voz aos excluídos,
nomeadamente às mulheres nativas subalternas, cujo ponto de vista nunca é
ouvido, vítimas que são da visão de superioridade do feminismo ocidental
que autora considera sinônimo dos comportamentos do colonizador face ao
colonizado” (COELHO, 2009, s.p.).

121
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Ainda sobre autores e obras que tratam do pós-colonialismo, mais


especificamente no campo da literatura pós-colonial, o livro The empires writes
back: theory and practice in post-colonial literatures (ASHCROFT; GRIFFITHS;
TIFFIN, 1989) é considerado um dos mais significativos e importantes trabalhos
publicados. Além desses autores já citados destacam ainda, Aimé Césaire, Frantz
Fanon, Boaventura de Sousa Santos e Stuart Hall. Na América Latina destacam-se
autores como Enrique Dussel, Edgardo Lander, Aníbal Quijano, Walter Mignolo,
María Lugones, Silvia Rivera Cusicanqui e Rita Segato (GUERRA, 2014).

4 DESCOLONIZAÇÃO, LITERATURA E CRÍTICA


PÓS-COLONIAL
Entende-se por literatura pós-colonial aquela “afetada pelo processo
imperial, desde o primeiro momento da colonização europeia até o presente”
(ASHCROFT et al., 1991 apud BONNICI, 2009, p. 267). Ela abrange, portanto, “as
literaturas provenientes das ex-colônias europeias que surgiram da experiência
da colonização e diante das diferenças com os pressupostos do centro imperial”,
sendo que o desenvolvimento dessas literaturas dependem de dois fatores:
“progressão gradual da conscientização nacional e convicção de serem diferentes
da literatura do centro imperial” (BONNICI, 2009, p. 267-268).

Analisando as produções literárias brasileiras, Bonnici (2009) destaca


três momentos distintos: no primeiro momento tem-se uma gama de textos
produzidos por representantes do poder colonial, ou seja, trata-se de um material
no qual não é possível localizar nem a conscientização nacional e muito menos a
diferenciação. Tais textos, produzidos por viajantes, administradores, soldados
e esposas de administradores coloniais “privilegiam o centro em detrimento da
periferia porque visavam exclusivamente ao lucro que a metrópole terá com a
invasão e a manutenção da colônia” (BONNICI, 2009, p. 268).

A seguir, predominam os textos escritos por nativos educados na metrópole


que deixaram de lado a própria língua para utilizar a língua do colonizador
europeu. Já na terceira etapa começam a ser produzidos textos que rompem com
os padrões, ocorrendo “a guinada completa do estranhamento e afastamento da
literatura brasileira dos parâmetros metropolitanos” (BONNICI, 2009, p. 268).

Com a emergência dos debates acerca da relação de dependência cultural


dos povos colonizados de seus colonizadores, mesmo após a conquista da
independência, deu-se início ao processo de descolonização, definida por Bonnici
(2009, p. 272) como “processo de desmascaramento e demolição do poder
colonial em todos os seus aspectos”. Na perspectiva desse autor, o processo de
descolonização faz-se necessário porque a independência política não garante,
por si só, a descolonização da mente, já que tanto nas literaturas nacionais
como também em outros campos do saber permanecem resíduos coloniais. De

122
TÓPICO 2 | A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

forma contraditória, “os defensores e proclamadores da independência sentem-


se herdeiros dos modelos políticos europeus e relutam em rejeitar a cultura
importada, não podem escapar de uma profunda cumplicidade com os poderes
coloniais dos quais queriam se libertar” (BONNICI, 2009, p. 272). Fazem parte do
processo de descolonização o deslocamento do cânone literário, a releitura e a
reescrita, que serão explicados a seguir.

A formação do cânone literário dá-se não somente em função da excelência


literária ou do valor estético de uma obra, mas também “reflete características
positivas reguladoras de um comportamento compatível com a sociedade
em questão”  (CORRÊA, 1995, p. 325). Veja, por exemplo, como aconteceu a
apropriação (ou a não apropriação) de algumas obras no cânone literário brasileiro
e internacional:

Os romances de José de Alencar (1829-1877), o principal escritor da


ficção romântica brasileira e expoente máximo do Indianismo, foram
apropriados ao cânone literário porque nos períodos pós-independência
e pós-república necessitava-se de alguém que mostrasse orgulho,
amor, defesa da pátria e criasse arquétipos de uma terra edênica e da
unificação nacional. Na Inglaterra, as obras de Alfred Tennyson (1809-
1892) naturalmente entraram no cânone literário por causa de seu
enaltecimento do imperialismo britânico, da coragem de seus soldados
e dos arquétipos criados no conjunto de poemas sobre os fundamentos
míticos do povo inglês. Por outro lado, numa sociedade patriarcal e
machista, os textos e as biografias das escritoras brasileiras do século
XIX e do início do século XX foram quase todos suprimidos. Suas obras
foram literalmente relegadas ao esquecimento. Somente nestas últimas
décadas a academia brasileira (especialmente nas universidades federais
do Rio Grande do Norte, de Minas Gerais e de Santa Catarina) resgatou a
história e as obras de autoras brasileiras. O mesmo aconteceu no bojo da
sociedade branca e europeia dos Estados Unidos. Entraram no cânone
literário estadunidense os textos dos ex-escravos Frederick Douglass
(1817-1895) e Harriet Ann Jacobs (1813-1897) apenas nos últimos vinte e
cinco anos do século XX, devido a interesses de diferentes experiências
culturais e de formas literárias (BONNICI, 2009, p. 269).

Quando se propõe, em um processo de descolonização, o deslocamento


do cânone literário, busca-se abrir espaço para a diversidade, voltando o olhar
para outros tipos de produção. Não se trata de desmerecer as obras clássicas,
mas questioná-las e, ainda, deixar de estabelecer comparações que sobrepujem
as demais criações.

A reescrita, por sua vez, é um fenômeno literário “que consiste em


selecionar um texto canônico da metrópole e, através de recursos da paródia,
produzir uma nova obra escrita do ponto de vista da ex-colônia”, sendo que sua
finalidade é “a quebra da ocultação da hegemonia canônica e o questionamento
dos vários temas, enfoques, pontos de vista da obra literária em questão, os quais
reforçavam a mentalidade colonial” (BONNICI, 2009, p. 271).

123
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Um exemplo de reescrita é o romance Foe (1986), de John Maxwell Coetzee


e, no qual o autor faz uma releitura contemporânea da obra Robson Crusoe (1719),
de Daniel Defoe. Em seu texto, Coetzee lança um novo olhar para a obra de Defoe
com o enfoque pós-colonial. Uma das estratégias utilizadas pelo autor foi dar voz
a uma narradora feminina, inexistente na obra original. Além disso,

[…] o texto de Coetzee desconstrói a aparência de verdade incontestável


presente em Defoe, trazendo para a discussão a ordem sob a qual
aquela sociedade estava organizada, apontando lacunas deixadas pelo
clássico. O escritor sul-africano chama atenção para aquilo que não foi
passível de discussão no texto de Defoe e figurou como natural. Dessa
maneira, Coetzee leva à reflexão sobre questões sociais relevantes como
o comércio de escravos, a marginalização da mulher, e a imposição do
poder colonizador como questões estruturais e, por isso, não passíveis
de questionamentos (MORAES, 2012, p. 13-14).

Já a releitura é uma estratégia de leitura de textos literários e não


literários que permite “garimpar suas implicações imperialistas e trazer à
tona o processo colonial”, fazendo “emergir nuanças coloniais que ele mesmo
esconde” (BONNICI, 2009, p. 269). O autor ainda destaca algumas estratégias
de releitura, a saber:

1. Passar de uma atitude que define a literatura como enaltecedora


e transcendente para uma visão de literatura inserida no contexto
histórico e no espaço geográfico. 2. Perceber como as obras de certos
autores aprofundam o imperialismo, o colonialismo e o patriarcalismo,
especialmente quando supõem que os leitores sejam do sexo masculino
e brancos. 3. Classificar o autor segundo o esquema representando
os três momentos da literatura pós-colonial. 4. Detectar na ficção a
ambiguidade ameaçadora do nativo e da mulher diante da ideologia
dominante da conquista. 5. Descobrir o silêncio absoluto, escondendo
o sistema escravagista, a objetificação da mulher e o aviltamento dos
nativos, embora mascarados atrás de manifestações de riquezas e de
patriarcalismos. 6. Investigar o aprisionamento do espaço colonial e
pós-colonial pelo texto europeu ou pela teoria literária oriundos das
metrópoles renascentistas ou modernas (BONNICI, 2009, p. 271).

Tais estratégias visam fazer a releitura dos textos de forma a localizar os


efeitos da colonização sobre as obras literárias e outras produções escritas por meio
de um processo de desconstrução. Veja, como exemplo, algumas considerações
referentes à análise empreendida por Bonnici (2009, p. 270) das obras Na festa de
São Lourenço e O Ateneu:

A peça Na festa de São Lourenço (1578), de José de Anchieta (1534-


1597), parece revelar simplesmente um drama singelo e primário
com que o missionário podia facilitar a pregação da doutrina cristã.
Uma leitura pós-colonial traz à tona a demonização e a zoomorfização
dos índios, as quais revelam o maniqueísmo (ou binarismo) de
Anchieta, a objetificação dos nativos, o vilipêndio de sua cultura, a
superioridade da civilização europeia (e da religião cristã). O texto
dramático expõe às claras a ideologia colonial. Normalmente a leitura
de O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, mostra a história do internado
como reflexo da sociedade no terceiro quartel do século XIX, ou seja,

124
TÓPICO 2 | A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

a história da elite brasileira enriquecida pela setentrional borracha ou


pela charqueada do sul, no contexto da falência e da decadência do
regime monárquico de base escravista. Uma releitura poderia revelar
o sistema educacional europeu como centralizador e esmagador da
personalidade; a resistência de uma sociedade oprimida que anseia
por uma independência verdadeira, em todos os sentidos; a elite
traidora da nacionalidade e do povo; a incapacidade de distanciar-
se do contexto de dependência completo; o surgimento de sujeitos/
agentes que constroem dos escombros a autonomia da nação.

Nota-se, assim, que a proposta de releitura e reinterpretação das obras


acaba por subverter o texto metropolitano, trazendo à tona algumas nuances do
colonialismo ao revelar as implicações do processo de dominação e a forma como
o nativo era tratado pelos colonizadores. A literatura pós-colonial, portanto, tem
como intento resgatar a identidade dos povos subjugados para que estes possam
narrar, “sob sua própria perspectiva, a experiência de contato com o Outro e
assim revelar um outro ponto de vista, jamais antes citado, o ponto de vista da
margem” (MORAES, 2012, p. 39).

NOTA

Antes de continuar a leitura, conheça um trecho do segundo ato da peça Na


festa de São Lourenço, escrita por José de Anchieta. Ao caracterizar os costumes do povo
nativo como demoníacos e afastados das crenças do povo europeu, percebe-se a visão do
colonizador frente ao indígena por ocasião da chegada dos portugueses ao Brasil. Você
pode ler a peça na íntegra acessando o link:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000145.pdf.

Guaixará
Esta virtude estrangeira
me irrita sobremaneira.
FIGURA ­– O AUTO DE SÃO LOURENÇO
Quem a teria trazido,
com os seus hábitos polidos
estragando a terra inteira?
Quem é forte como eu?
Como eu, conceituado?
Sou diabo bem assado,
a fama me precedeu:
Guaixará sou chamado
Que bom costume é bailar!
Adornar-se, andar pintado,
tingir pernas, empenado
fumar e curandeirar,
andar de negro pintado.
Para isso
com os índios convivi.
FONTE: <http://twixar.me/nypT>.
Vêm os tais padres agora
Acesso em: 13 jan. 2020.
com regras fora de hora
para que duvidem de mim.
Lei de Deus que não vigora.

125
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

5 CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA E ESTUDOS PÓS-COLONIAIS


Conforme estudado na unidade anterior, a crítica literária feminista propõe
um modelo de análise que se detém sobre as questões de gênero, com o intuito de
ressignificar o papel da mulher enquanto produtora e consumidora de literatura.
Ao retratar a interface entre a literatura e o mundo social, a teoria feminista procede
a uma análise das representações de gênero circulantes na sociedade, enfatizando
sua relação com questões culturais, políticas, sociais e econômicas.

Os estudos feministas e os estudos pós-coloniais abordam temas


convergentes, já que ambos se ocupam de temáticas semelhantes tais como
“representação, voz, marginalidade e da relação entre política e literatura.
Visto que os dois projetos empregam perspectivas multidisciplinares, ambos
estão atentos, pelo menos em princípio, ao contexto histórico e às coordenadas
geopolíticas do tema em discussão” (BAHRI, 2013, p. 662).

De acordo com Bonnici (2009), existe uma analogia entre patriarcalismo/


feminismo e metrópole/colônia ou colonizador/colonizado, já que é possível
considerar o termo mulher da colônia como uma metáfora da mulher como colônia.
Além disso, Bonnici (2009, p. 231) também pontua que “se o homem foi colonizado,
a mulher, nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente colonizada”.

Cabe ressaltar que, durante muito tempo, o cânone literário consolidou a


hegemonia das elites letradas, majoritariamente compostas por homens, brancos
e europeus. Dessa forma, o discurso de um grupo acabou sendo tomado como o
discurso de toda a sociedade. Os discursos pós-coloniais, entretanto, junto a crítica
feminista, se propõem a questionar “as formas literárias e o desmascaramento
dos fundamentos masculinos do cânone” (BONNICI, 2009, p. 231-232).

O tema do feminismo, portanto, está inter-relacionado aos estudos
pós-coloniais pois ambos pressupõem uma leitura crítica dos textos coloniais
e pós-coloniais. Assim, uma perspectiva feminista pós-colonial pretende “ler
representações literárias de mulheres levando em conta tanto o sujeito quanto
o meio de representação. Exige também um letramento crítico geral, isto é, a
capacidade de ler o mundo (especificamente, nesse contexto, as relações de
gênero) com um olhar crítico” (BAHRI, 2013, p. 660).

126
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Existe uma inter-relação entre os termos colonialismo, etnocentrismo e


eurocentrismo.

• O processo de colonização contribuiu para limitar nosso conhecimento a


determinados paradigmas.

• A crítica pós-colonial contribui para a desconstrução de estereótipos, pois


permite ampliar o olhar e valorizar culturas diferentes.

• A crítica literária feminista e os estudos pós-coloniais se inter-relacionam, já


que ambos se ocupam com a questão da representação.

127
AUTOATIVIDADE

1 “O Feminismo e Pós-Colonialismo são movimentos que surgiram no século


XX no âmbito das Ciências Sociais e, nos estudos literários, procuram
analogamente desconstruir o cânone literário hegemonicamente europeu e
patriarcal, para então entendê-lo e modificar as estruturas performáticas dos
indivíduos, possibilitando a eles uma interação ainda maior com a literatura
e todas as áreas do conhecimento e expressão humana” (SENEM, 2008, p. 11).

Considerando o que foi estudado neste tópico, e tendo como referência a


citação de Senem transcrita anteriormente, elabore um pequeno texto no qual
sejam apresentadas as interfaces entre a teoria feminista e a crítica pós-colonial,
identificando possíveis linhas de continuidade entre ambas.

2 (ENADE, 2018):

TEXTO 1:

FONTE: <http://design.ufes.br/sites/design.ufes.br/files/field/anexo/provas-e-gabarito_
enade2018-design.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2019.

A frase em latim “Ex Africa semper aliquid novi”, do escritor romano Caio
Plínio, dita há 2.000 anos, significa “da África sempre há novidades a reportar”.
A partir dessa ideia, o curador alemão Alfons Hug montou a exposição “Ex
Africa”, que conta com 18 artistas de oito países africanos e dois artistas
brasileiros. A ideia da mostra é retratar a produção artística africana sem
estereótipos aos quais estamos acostumados, como objetos de artesanato e
referências iconográficas.

FONTE: Adaptado de <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/. Acesso em: 12 jul. 2018.

TEXTO 2

Até as vésperas da era colonial moderna era comum encontrar as imagens


positivas sobre a África. Árabes e europeus descreveram as formas políticas
africanas altamente elaboradas e socialmente aperfeiçoadas, entre as quais se
alternavam reinos, impérios, cidades-estados, entre outras. Após a conferência

128
de Berlim (1885), que definiu a partilha colonial da África, essas imagens
“simpáticas” começaram a sombrear. Reinos e Impérios foram substituídos
pelas tribos primitivas em estado de guerra permanente, umas contra outras,
para justificar e legitimar a Missão Civilizadora, que até hoje alimenta o
imaginário da África no Brasil.

FONTE: Adaptado de VIEIRA, F. S.S. Do eurocentrismo ao afropessimismo: reflexões sobre a


construção do imaginário “África” no Brasil. Em Debate. PUC-Rio, n° 3, 2006.

A partir dos textos apresentados, avalie as afirmações a seguir.

I- A África tem sido pensada, por muitos, como um único país, compreendida
de forma monolítica, como se fosse formada por cultura única, ou, até
mesmo, um lugar de povos sem cultura alguma, o que contribui e reforça
a exclusão social das obras africanas do sistema das artes visuais.
II- Construídas sob a égide do clichê da miserabilidade, as clássicas
representações sobre a África, que retratam o continente como um celeiro
da tradição, do arcaísmo, da produção manufaturada e artesanal, são
estereótipos que precisam ser superados, por serem incompatíveis com a
multiplicidade de expressões artísticas africanas.
III- Os estereótipos sobre o continente africano foram construídos a partir
de interesses políticos, culturais e econômicos que sustentaram, durante
séculos, projetos de exploração e ações excludentes.

É CORRETO o que se afirma em:


a) ( ) I, apenas.
b) ( ) III, apenas.
c) ( ) I e II, apenas.
d) ( ) II e III, apenas.
e) ( ) I, II III.

129
130
UNIDADE 2 TÓPICO 3

LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

1 INTRODUÇÃO
Conforme visto no decorrer desta unidade, a Lei nº 11.645/08 regulamentou
a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, da temática
História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. A escola, enquanto locus de transmissão
e socialização de conhecimento e cultura, pode contribuir ou não para a
implantação de uma prática pedagógica de respeito e valorização de diferentes
culturas, dentre elas a africana e a indígena. Assim, espera que as escolas superem
práticas pedagógicas que submetem tais culturas a um processo de cristalização
ou folclorização (GOMES, 2003), tornando o currículo mais democrático e aberto
à diversidade cultural existente em nosso país.

Por esse motivo, é essencial que o corpo docente esteja preparado para
trabalhar com tais temáticas em sala de aula. No caso específico da Literatura,
o conhecimento das obras de escritores africanos, indígenas e de imigrantes
oportuniza uma aproximação rica e interessante com essas culturas nem sempre
valorizadas no ambiente escolar.

2 LITERATURA AFRICANA
Para iniciar os estudos sobre a literatura africana é importante ter
em mente que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, não existe uma
uniformidade cultural neste continente. Além de ser necessário levar em conta
as diferenças existentes entre os países localizados ao norte do deserto do Saara
e aqueles localizados ao sul, na região denominada África subsaariana, é preciso
compreender que, mesmo nesta região, de grande extensão territorial, também
é possível encontrar bastante diversidade, muito embora eles tenham diversos
traços em comum.

131
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

AUTOATIVIDADE

No mapa a seguir, que distingue a África do Norte da África Subsaariana, é


possível divisar o nome dos países que compõem o continente. Que tal localizar e
marcar no mapa os países africanos que têm como idioma a Língua Portuguesa?

FIGURA – REGIONALIZAÇÃO DO CONTINENTE AFRICANO

FONTE: <https://www.todamateria.com.br/africa-subsaariana/>. Acesso em: 3 out. 2019.

A ideia de uniformidade acerca do continente africano está relacionada


a uma visão eurocêntrica que desconsidera a pluralidade étnica e cultural
existente no continente. Essa visão não deixa de estar relacionada ao fato de que
“estamos familiarizados com ideia da África como uma invenção do Ocidente e
com o fato de a história da África ter sido escrita por historiadores não africanos”
(SOARES, 2011, p. 99). Dessa forma, muitos aspectos da riqueza desse continente
permanecem desconhecidos para nós, brasileiros, muito embora sejam inúmeras
as semelhanças que unem e aproximam nosso país dos países africanos.

A literatura produzida no continente africano também é extremamente


heterogênea, a começar pela língua em que é produzida, havendo a vertente
lusófona, a francófona, a árabe, a egípcia, a sul-africana, dentre outras. Para
além da língua utilizada, essa diversidade também pode ser observada em
suas diferentes pautas identitárias, como, por exemplo, a racial, a nacional, a
continental, a étnica, a de gênero etc. Além disso, considerando que cada país
africano teve sua própria história de colonização e de independência, isso acaba
reverberando no processo de produção literária de cada um.

132
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

Outras diferenças também podem ser percebidas quando se analisa


diferentes momentos da produção literária. Entre 1950 a meados de 1970, por
exemplo, a literatura teve relevada importância enquanto instrumento de
afirmação política e cultural no processo de emancipação e construção dos estados-
nações africanos (ANDRADE, 2013), sendo que os escritores representativos
desse período

[...] incorporaram a tradição oral local para difundir os ideais


anticoloniais e versar sobre conflitos existentes na relação entre
passado e presente, tradição e modernidade, mundo autóctone
e mundo estrangeiro. Esses autores percebiam nos métodos de
instrução e de socialização formas variadas de dependência cultural,
denunciando temas como o assimilacionismo, o racismo e outras
formas de desigualdades sociais originadas pelo sistema colonial
(ANDRADE, 2013, p. 46).

No período anterior à independência dos países africanos a literatura


produzida girava em torno de ideais comuns como, por exemplo, a libertação,
a independência e a afirmação da identidade nacional (ANDRADE, 2013). Após
esse período, verifica-se a emergência de uma pluralidade de estilos que passam
a retratar diferentes realidades. Nessa nova fase, que se estende até os dias atuais,
chama a atenção a “tematização dos conflitos internos e das guerras civis que
marcaram os seus países após o processo de independência, legado deixado
pelo sistema colonial no seu reforço dado às rivalidades étnicas já existentes”
(ANDRADE, 2013, p. 46).

A produção literária pós-colonial dos países africanos, portanto, é vasta,


diversificada e, tendo emergido da luta e do conflito, consegue problematizar
diversos processos de identificação social como por exemplo a noção de lugar,
de africanidade e de nação (ANDRADE, 2013). A propósito, de acordo com Soares
(2011, p. 99-100), as literaturas africanas

[...] deveriam ser compreendidas simplesmente como literatura.


Como qualquer literatura, ela é um produto da vida social e, como
tal, surge em contextos específicos (sempre vinculados aos processos
de modernização e urbanização), transforma-se, diversifica-se,
assume novas formas, cria estilos etc. Em África, como decorrência do
processo de colonização, a literatura parece ter assumido uma posição
especial: ela teria ocupado o lugar da antropologia, produzindo
etnografias sobre o que seria o continente e os seus habitantes [...].
Trata-se de uma literatura de luta e conflito, uma literatura produtora
e problematizadora da identidade, uma literatura que dialoga de
modo ambíguo com a “tradição”, a “literatura colonial” e com o seu
tempo. Uma literatura tipicamente moderna no sentido de ser aquela
que surge da contingência de um conjunto de mudanças e que expõe
um sem número de conflitos e contradições.

Também é interessante observar que, durante os movimentos de


independência, diversos escritores africanos foram influenciados pela literatura
brasileira; entretanto, hoje é possível perceber o movimento inverso, ou seja, a
literatura africana tem-se afirmado no Brasil, contribuindo, inclusive, para nosso

133
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

processo de afirmação identitária. Utilizando as palavras de Soares (2011, p.


95), primeiramente “observa-se um fluxo da literatura brasileira em direção aos
países de colonização portuguesa, no qual navegou a estrutura de sentimento
da mestiçagem harmoniosa”. A seguir, nota-se um “fluxo no sentido África-
Brasil, em que uma estrutura de sentimento afirmativa, amadurecida no período
pós-independência das ex-colônias, passa a influenciar, já no século XXI, uma
estrutura de sentimento emergente na sociedade brasileira, a estrutura de
sentimento africanizante”.

O estudo das literaturas africanas de língua portuguesa promove uma


aproximação com diferentes aspectos culturais, históricos e sociais destes povos.
Trata-se, conforme Silva (2011, p. 1), de uma “uma aproximação entre culturas
que, historicamente, sempre estiveram unidas”, ou seja, o estudo destas literaturas
permite lidar com uma realidade que, ao mesmo tempo, é próxima, porém diversa
da nossa. Vamos conhecer, a partir de agora, um pouco da literatura produzida
em Angola e Moçambique, dois países africanos de língua portuguesa.

Conforme estudado na unidade anterior, toda produção literária faz


parte de um determinado contexto histórico e, por esse motivo, é influenciada
por questões políticas, econômicas e sociais do tempo e local em que é produzida.
E isso não é diferente com a literatura angolana que, embora tenha surgido bem
antes de sua independência, ocorrida em 1975, foi extremamente profícua no
período que antecedeu e que sucedeu o processo de libertação.

De acordo com Crosariol (2009), a literatura na Angola, articulada com


outras forças, desempenhou “um importante papel na superação do estatuto de
colônia. Presente nas campanhas libertadoras foi responsável por ecoar o grito
de liberdade de uma nação por muito tempo silenciado, mas nunca esquecido”.

A literatura produzida em Moçambique apresenta uma trajetória


semelhante à de Angola, muito embora possua suas singularidades decorrentes
da necessidade de dialogar com as questões culturais locais. De forma didática,
Silva (2011) distingue cinco fases da literatura moçambicana, sendo a primeira,
de formação (1920-1940), caracterizada pela presença profissionais liberais que
procuravam dar voz à cultura africana nativa por meio da literatura. A segunda
fase (1940-1960), pré-independente, é movida pela motivação política, muito
embora ainda seja evidente a influência europeia. A seguir, temos a literatura
revolucionária (1960-1980), na qual predominam um entusiasmo nacionalista
bem como a temática independentista. A seguir temos a fase independente (1980-
1990) que tem como características a valorização da independência e o apego a
valores nacionais. Por fim, a literatura contemporânea, que conforme Silva (2011,
p. 7-8) tem como características “confecção de uma prosa mais intimista, bem
como pela valorização da literatura popular e, ao mesmo tempo, a superação da
perspectiva político-ideológica”.

A seguir, conheceremos alguns autores de Angola e de Moçambique e


respectivas obras literárias.

134
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

2.1 JOSÉ LUANDINO VIEIRA


Escritor angolano, José Luandino Vieira nasceu
a 4 de maio de 1935, na Lagoa do Furadouro (Portugal).
É cidadão angolano e participou activamente no
movimento de libertação nacional, contribuindo para
o nascimento da República Popular de Angola. Passou
toda a infância e juventude em Luanda, onde fez o
ensino secundário. Exerceu diversas profissões até ser
preso em 1959, sendo depois libertado. Posteriormente,
em 1961, foi de novo preso e condenado a 14 anos de
prisão e medidas de segurança. Transferido, em 1964,
para o campo de concentração do Tarrafal, onde passou
oito anos, foi libertado em 1972, em regime de residência vigiada em Lisboa.
Iniciou então a publicação da sua obra, escrita, a maioria, nas diversas prisões
por onde passou.

Depois da independência angolana, foi nomeado para diversos cargos:


organizou e dirigiu a Televisão Popular de Angola de 1975 a 1978; dirigiu o
Departamento de Orientação Revolucionária do MPLA até 1979; organizou e
dirigiu o Instituto Angolano de Cinema de 1979 a 1984.

FONTE: <https://www.wook.pt/autor/jose-luandino-vieira/15732>. Acesso: 4 out. 2019.

As obras de José Luandino Vieira, produzidas – em grande parte, nas


prisões por onde passou devido à sua militância nas lutas anticolonialistas e por
pertencer ao Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA) – trazem em
sua essência a tensão entre a sociedade colonial e a sociedade angolana. Produzida
no contexto colonial, trata-se de uma obra marcada pela resistência e pelo desejo
de construção da nacionalidade e identidade angolana, conforme explicitado por
Silva (2011, p. 4):

Do ponto de vista dos temas e motivos literários representados em


sua obra, destaca-se, sem dúvida alguma, a temática social, sempre
reconstruída a partir da ótica literária, com a exposição dos conflitos
raciais e a exploração da dicotomia entre civilização (europeus)
e barbárie (africanos), temas construídos a partir de uma visão
deliberadamente pessimista da sociedade. Não se trata, evidentemente,
de um pessimismo desalentador, que enrijece a vontade de luta e
mudança, mas um pessimismo aliciante, que instiga à revolta contra
as distorções sociais apontadas na trama de suas efabulações.

Dessa forma, além de apresentar denúncias contra o modo de vida colonial,


a obra de Luandino também aponta caminhos para a independência, destacando
a importância do processo de afirmação da identidade do povo angolano. Além
desse relevante papel político e social, suas obras também possuem inegável valor
estético marcado “pelos achados criativos e pelas ousadias estilísticas – numa
moderada tradição de transgressão linguística” (SILVA, 2011, p. 4).

135
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

A utilização de recursos da oralidade nas obras de Luandino funciona,


conforme Ferreira e Souto (2013, p. 20), como “um grito de liberdade de um país
que ainda não tinha voz”. Dentre as diversas obras produzidas por esse autor,
Luuanda (1964) foi vencedora de vários prêmios, fazendo de Luandino Vieira uma
expressão máxima da literatura angolana (SILVA; SILVA, 2013). Veja, a seguir, o
que é tratado nessa narrativa.

Luuanda está dividida em três contos que têm em comum o fato de tratarem
do cotidiano e da luta pela sobrevivência nos musseques – bairros pobres de Luanda.
Utilizando-se de recursos da oralidade, o autor consegue recriar o modo de vida
angolano, aproximando o leitor de aspectos culturais e linguísticos de seu povo.
A primeira narrativa – denominada Vavó Xíxi e Seu Neto Zeca Santos – conta a vida
desses dois personagens, sempre marcada pela pobreza e pela fome. Utilizando as
palavras de Ferreira e Souto (2013, p. 12), “a dificuldade imposta pela colonização,
impedindo dignidade de vida aos personagens, o espaço de discriminação imposto
pelos musseques, soa como um grito na narração de Luandino”.

Em A Estória do Ladrão e do Papagaio, segunda narrativa de Luuanda,


Luandino Vieira conta o envolvimento de Lomelino dos Reis em um roubo
de patos. Embora sendo aparentemente simples, o conto apresenta uma forte
denúncia à realidade social. De acordo com Ferreira e Souto (2013, p. 13), “o
envolvimento dos personagens no roubo dos patos representa o cotidiano nos
musseques, a criminalidade, a miséria através de uma linguagem que protesta a
disjuntura da sociedade local com a imposição de outra cultura, outras normas”.

Já em Estória da Galinha e do Ovo, o autor narra a disputa por um ovo entre


Nga Zefa e Nga Bina, duas mulheres que são vizinhas no musseque. A partir de
então diversas pessoas aparecem na história para dar sua opinião sobre a situação
das mulheres. Apesar de retratar uma briga aparentemente boba entre duas
vizinhas, em suas entrelinhas o conto “esconde uma realidade de opressão de
um povo negro e pobre de uma colônia governada por brancos [...] revela uma
realidade de extrema pobreza dos musseques angolanos” (OLIVEIRA, 2017, p. 95).

Ao fazer uma análise das obras de Luandino Vieira, Ferreira e Souto (2013,
p. 14) ponderam que:

O tecido de Luandino é aqui desfiado, exercendo uma função social.


Tratam-se de narrativas que acalentam crianças e adultos, promovendo
risos e sorrisos, imprescindíveis aos agitados movimentos de leitura
contemporânea. Nesse largo tecido, o natural, a dor, a sorte, a ira, a
fome mesclam-se aos mitos universais para expressarem o desejo de
um povo a infinitas vozes, emergindo de um sistema austero, que
pune, faz calar, mas não faz silenciar. Os contos de Luuanda retratam,
de forma singular e encantadora, a busca pela identidade, representada
na figura dos personagens. Identidade essa que estava desenraizada,
deteriorada, mas que, de alguma maneira, tentava mostrar seus
vestígios deixados na língua e no cotidiano dos personagens.

136
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

Além de Luuanda, José Luandino Vieira escreveu outras obras, dentre as


quais destacam-se A Cidade e a Infância (1960), A Vida Verdadeira de Domingos Xavier
(1961), Velhas Estórias (1974), No Antigamente, na Vida (1974), Nós, os do Makulusu,
(1975), Macandumba (1978) e João Vêncio e os seus Amores (1979).

Para conhecer melhor o autor, apresentaremos, a seguir, alguns trechos


do livro Nós, os do Makulusu, seguido de uma breve análise feita por Barboza
(2017). Antes, porém, cabe destacar um fato curioso sobre este livro: ele foi escrito
em apenas uma semana, enquanto o autor estava no Campo de Concentração do
Tarrafal, em Cabo Verde, entre 16 e 23 de abril de 1967.

FIGURA 2 – NÓS, OS DO MAKULUSU

FONTE: <https://melhorliteratura.files.wordpress.com/2014/12/imagem.jpg>.
Acesso em: 13 jan. 2020.

“Isto, Mais-Velho, é que é difícil e tenho de o fazer: o capim do Makulusu secou


em baixo do alcatrão e nós crescemos. E enquanto não podemos nos entender
porque só um lado de nós cresceu, temos de nos matar uns aos outros: é a razão
da nossa vida, a única forma que lhe posso dar, fraternalmente, de assumir a
sua dignidade, a razão de viver – matar ou ser morto, de pé”.

“Quero rir, me sentir feliz, livre, despreocupado, Paizinho está ali, mas não
posso: no seu rir e estar ali eu vejo, como Rute vai ver daqui a pouco no último
passeio de barco na baía da nossa terra de Luanda, a morte de Maninho.

É a chorar e sem as flores na mão que a Igreja do Carmo me entra pelo corpo
adentro”.

“[…] por isso, mãe, eu não quero ser enterrado, é uma palavra tão feia, tão fria,
tão fosca, tão fresca; ou sepultado, outra, rima com abandonado, excomungado,
capado e castrado, dominado e discriminado – escravizado! – essas todas
palavras e suas rimas e sinónimos, todas têm silêncio e quietez e eu quero
ser lançado no mar, então terei ao menos a ilusão de movimento, vou nascer
outra vez embalado, baloiçado nas ondas todo o tempo e não vou ser pó, serei
plâncton e vadiarei, vou andar no quilapanga por todas as praias do Mundo”
(VIEIRA, 2004).

137
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

“O breve e denso romance apresenta ao leitor quatro personagens principais


que cresceram juntas no musseque de Luanda: Mais-Velho, Maninho,
Paizinho e Kibiaka. Agudas tensões decorrentes do colonialismo obrigam
os companheiros de aventuras infantis a escolher caminhos inconciliáveis:
Maninho, branco nascido na metrópole (assim como seu irmão Mais-Velho)
vai lutar no exército colonial português [...]; Paizinho, meio-irmão mestiço dos
dois, participa de ações clandestinas e é preso pela PIDE. Kibiaka, colega negro
morador do Bairro Operário, entra para a guerrilha, partindo para o mato.
MaisVelho, narrador onisciente por meio de quem tomamos conhecimento de
todos os demais elementos da narrativa [...].

As personagens são levadas a uma situação diante da qual não há neutralidade


possível. Deflagrada a guerra, não há mais possibilidade de negociação e cada
um precisa escolher seu lado. A conjuntura que, por fim, obriga companheiros
de infância a se enfrentarem em uma guerra que não querem impede que o
leitor faça uma leitura irrefletida e o mergulha no centro nevrálgico da situação
colonial que, como fato social total, abarca tudo e todos, em todas as instâncias,
de modo inevitavelmente violento.

[...]

O movimento que rodopia o texto, desorganiza o tempo, inquieta a memória,


pode também ser encontrado no interior contraditório de cada personagem,
capaz de, a partir dali, retomar o conflito social amplo de um espaço turbulento”
(BARBOZA, 2017).

2.2 PEPETELA
FIGURA 3 – PEPETELA (ANGOLA)

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pepetela>. Acesso em: 4 out. 2019.

138
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

O angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (Pepetela)


nasceu em Benguela, a 29 de outubro de 1941. Fez os seus estudos primários e
secundários em Benguela e em Lubango. Em 1958, mudou-se para Lisboa para
fazer faculdade. Frequentou o Instituto Superior Técnico, tendo a essa altura
participado de atividades políticas e literárias. Por razões políticas, em 1962
saiu de Portugal para Paris, França, onde passou seis meses. Depois, seguiu
para a Argélia, onde se licenciou em Sociologia e trabalhou na representação do
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e no centro de Estudos
Angolanos, que ajudou a criar.

De volta a Angola, ele participou diretamente na luta armada como


guerrilheiro e como responsável pelo setor da educação, em diferentes áreas de
combate, de 1969 a 1974. Adotou o nome de guerra de Pepetela, que significa
“pestana” na língua Umbundo, e que mais tarde passou a utilizar como
pseudônimo literário. Integrou a primeira delegação do MPLA que chegou à
capital, Luanda, em novembro de 1974. Desempenhou os cargos de Diretor
de Departamento de Educação e Cultura e do Departamento de Orientação
Política. Foi membro do Estado Maior da Frente Centro. De 1975 a 1982 foi
vice-ministro da Educação, passando posteriormente a lecionar sociologia
na Universidade de Luanda.  É membro fundador da União dos Escritores
Angolanos.

FONTE: <https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/pepetela-biografia/>. Acesso em: 4 out. 2019.

Pepetela é um escritor de repercussão internacional cuja obra – que


dialoga com a história contemporânea de seu país – também contribuiu para a
consolidação da literatura angolana. Tendo lutado junto ao MPLA, possui obras
que retratam a história de vida do povo angolano antes, durante a guerra e
depois da independência. O romance Mayombe (1980), por exemplo, recompõe a
vida dos guerrilheiros que lutaram pela independência do país contra as tropas
portuguesas na década de 1970. A geração da utopia, por sua vez, retrata o período
pós-independência no qual se busca um sentido para a nacionalidade angolana e
uma razão para a consolidação de sua identidade cultural (SILVA; SILVA, 2013).
Em A geração da utopia (1992), Pepetela reflete sobre as incertezas advindas do
projeto político desenvolvido no país após a independência, conforme se observa
no excerto que segue:

O colonialista é colonialista, acabou. Dele não há nada a esperar. Mas


de nós? O povo esperava tudo de nós, prometemos-lhe o paraíso na
terra, a liberdade, a vida tranquila do amanhã. Falamos sempre no
amanhã. Ontem era a noite escura do colonialismo, hoje é o sofrimento
da guerra, mas amanhã será o paraíso. Um amanhã que nunca vem,
um hoje eterno. Tão eterno que o povo esquece o passado e diz ontem
era melhor que hoje (PEPETELA, 2013, p. 169).

139
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Em linhas gerais, é possível afirmar que a obra de Pepetela nos convida ao


debate acerca do tema da identidade nacional angolana. Tal perspectiva é confirmada
pelo próprio autor que, questionado pelo Zero Hora (2013) se sua literatura tem
como propósito construir uma versão da identidade angolana, afirmou:

Sim, até porque a história de Angola é mal conhecida. E é uma história


escrita por estrangeiros, fossem portugueses ou não, há também
relatos de missionários italianos, por exemplo. Sobretudo a visão
angolana da história é pouco conhecida – a visão angolana hoje, já
que durante a guerra não a havia. Tenho tentado tratar alguns temas
do passado mostrando que há elementos do passado que ficaram
preservados no inconsciente coletivo e que servem para marcar
aspectos importantes da identidade nacional. E penso que é com base
no uso desses elementos de uma forma consciente, trabalhada, que
nós podemos ter fato uma nação orgulhosa de si própria, porque,
apesar de dominada, sabia lutar, e tinha personagens, tinha pessoas
com capacidade de enfrentar todas as situações. E por isso procuro
essas situações no passado para minha literatura. O objetivo é esse: a
procura das linhas da chamada angolanidade.

Além das obras citadas, Pepetela também escreveu As aventuras de


Ngunga (1973), Muana Puó (1978), A revolta da casa dos ídolos (1979), Yaka (1985),
O cão e os calús (1985), Lueji (1989), Luandando (1990), O desejo da Kianda (1995),
Parábola do cágado velho (1996); A gloriosa família (1997); A montanha da água lilás
(2000) e Jaime Bunda, agente secreto (2001). Veja, a seguir, um excerto da obra
Yaka, seguido de uma breve análise feita por Santos (2014).

FIGURA 4 – YAKA

FONTE: <https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTxwqc3o8Vx2jG-Kp7KiIL
7kmTA4PVtj182spLXwo9wo3cjq9UI&s>. Acesso em: 13 jan. 2020.

É o fim, pensou ele, já sem forças para o dizer em voz alta. Devo fazer o balanço
da minha vida. [...] Só tenho que fazer a das perdas. Uma família a que dei
origem, hoje espalhada pelo mundo. Só Joel e Chico sobraram. E Joel talvez agora
já esteja morto, sem sepultura. É importante estar sem sepultura? Gostaria de
levar a enterrar esse menino que descobri no fim da vida. E fui egoísta e ia dizer-

140
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

lho, quando me alegrei que fosse lutar. Ia fazer o que nunca fui capaz de fazer,
ele ia redimir-me. É sempre assim, descobre-se demasiado tarde. Não deixará
traço no mundo. Nem o sapalalo. Não foi ele que o construiu, mas deixei-o
apodrecer, já saí pó por todos os lados, basta uma explosão aqui perto para ele
desabar. Nada, não deixa nada atrás dele. A sociedade será outra nesta terra,
nem vestígios registará na História. A História guarda os feitos de heróis, na
medida que interessam às forças vitoriosas da época. Não são os seus vestígios
que a nova sociedade vai querer na História. Um colono a mais. Para esquecer.
A culpa foi minha? Tinha sido apenas o mexilhão da história, uma bimba que
se afogou porque duas vagas chocaram exactamente sobre ela. [...] A terra que
a boca de Alexandre Semedo morde lhe sabe bem. É o cheiro do barro molhado
pelo orvalho de madrugada e o som longínquo de badalos de vacas na vastidão
do Mundo. Leva esse sabor e cheiro de terra molhada para cima da pitangueira,
onde fica a balouçar, para sempre (PEPETELA, 1998, p. 393-395).

“Yaka segue o modelo grego de saga familiar pelo fato de ter o seu principal
núcleo narrativo centralizado na história dos Semedo, uma família de colonos
portugueses que veio para Angola no final do século XIX, ao mesmo tempo
em que a história desse clã está atrelada ao desenvolvimento histórico de
uma região de Angola e da própria nação angolana.

A utilização da saga familiar como estratégia narrativa permite a Pepetela


entrelaçar a história da família fictícia à história do desenvolvimento da cidade
de Benguela e de Angola, de modo a realizar uma análise da sociedade colonial,
ao mesmo tempo em que faz uma releitura da história do país, dando voz a tudo
aquilo que foi silenciado e obscurecido pela historiografia oficial portuguesa.
Para tanto, Pepetela se apropriou de matéria de extração histórica tanto angolana
quanto portuguesa e mundial.

[...]

Em sua análise da sociedade colonial angolana, Pepetela representa


literariamente como os colonos que viveram naquela sociedade foram afetados
por determinados acontecimentos históricos do período e como reagiram a eles,
mostrando como pensavam e agiam.

[...]

Desse modo, a narrativa mostra que o pensamento do colono português em


relação às terras africanas é que elas eram propriedade portuguesa por direito
natural de descoberta, sem levar em conta, em nenhum momento, que essas
terras já eram habitadas e possuíam donos” (SANTOS, 2014).

141
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

2.3 AGUALUSA
FIGURA 5 – AGUALUSA (ANGOLA)

FONTE: <https://www.estantevirtual.com.br/livros/jose-eduardo-agualusa>.
Acesso em: 4 out. 2019.

José Eduardo Agualusa [Alves da Cunha] nasceu no Huambo, Angola,


em 1960. Estudou agronomia e silvicultura e foi jornalista. Publicou até agora
13 romances, e diversas colectâneas de contos e de poesia. Os seus livros estão
traduzidos em mais de 30 idiomas. Um dos seus romances, “O Vendedor de
Passados”, ganhou o Independent Foreign Fiction Prize, em 2007. “Teoria
Geral do Esquecimento” foi finalista do Man Booker International, em 2016,
e vencedor do International Dublin Literary Award, em 2017. José Eduardo
Agualusa divide o seu tempo entre a Ilha de Moçambique, no norte de
Moçambique, e Lisboa, em Portugal.

FONTE: <https://www.agualusa.pt/cat.php?catid=27>. Acesso em: 4 out. 2019.

José Eduardo Agualusa, autor expressivo da literatura contemporânea,


narra, em suas obras, “acontecimentos relacionados não apenas a história recente
de Angola, mas também ao vasto imaginário do continente africano, com sua
diversidade cultural e suas ricas manifestações locais” (SILVA, 2011, p. 6). Além
disso, ele também estabelece, em suas narrativas, um diálogo fecundo com a
cultura e a literatura brasileiras.

Na obra A Conjura (1989) – que traz como cenário a cidade de Luanda em


1880 – Agualusa apresenta “questões relacionadas à colonização portuguesa e à
independência de Angola, num contexto em que se planeja uma revolta (conjura)
independentista, frustrada pelo barbeiro Jerónimo Caninguili” (SILVA, 2011, p.
5). Em A Feira dos Assombrados e Outras Estórias Inverossímeis (1992), Agualusa
“exercita com mais competência e ousadia faces da mística africana, misturando
história e ficção, com uma narrativa de cunho memorialístico em que verdade e
mentira se entrecruzam constantemente” (p. 6). Já em Estação das Chuvas (1996)
“prevalece o cunho documental, inspirada na história de Angola”. Em seu

142
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

livro mais famoso, o romance epistolar Nação Crioula (1997), “afirma-se como
o desfecho de um longo percurso de construção de uma identidade marcada
pela miscigenação e pela consciência crítica das relações entre os continentes
americano, europeu e africano” (SILVA, 2011, p. 7). Veja, a seguir, um enxerto
da obra O vendedor de passados, seguida de uma breve análise empreendida por
Martins e Martins (2015).

FIGURA 6 – O VENDEDOR DE PASSADOS

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/5126uMjIrQL.jpg>.
Acesso em: 13 jan. 2020.

“Podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim, também


eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é o meu
passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável,
está sempre lá, belo ou terrível, ele ficará para sempre”.
[...]
«Não!», conseguiu dizer. «Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não sou um
falsário... Além disso, permita-me a franqueza, seria difícil inventar para o
senhor toda uma genealogia africana.»
«Essa agora! E por quê?!...»
«Bem... O cavalheiro é branco!»
«E então?! Você é mais branco do que eu!...»
«Branco, eu?!»
O albino engasgou-se. Tirou um lenço do bolso e enxugou a testa:
«Não, não! Sou negro. Sou negro puro. Sou um autóctone. Não está a ver que
sou negro?...» (AGUALUSA, 2004, p. 9).
[...]

“Porque queriam um herói angolano, suponho, naquela época precisávamos


de heróis como de pão para a boca. Se quiser ainda lhe posso arranjar outro
avô. Consigo documentos provando que você descende do próprio Mutuya
Kevela, de N 'Gola Quiluange, até mesmo da Rainha Ginga. Prefere?”
(AGUALUSA, 2004).

143
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Em O Vendedor de Passados (2004), Agualusa focaliza os principais debates da


contemporaneidade como a diversidade cultural, o estranhamento, a tradição
revisitada e, sob uma nova perspectiva, o estilhaçamento da identidade, do
sujeito e da História africana. O tema visceral do livro é o repensar sobre o
valor da identidade.
Tem-se como trama discursiva um enredo inusitado. Félix Ventura é um homem
que nasceu diferenciado, é albino: “A pele perfeita, muito negra, húmida e
luminosa, contrasta com a do albino, seca e áspera, cor-de-rosa” (AGUALUSA,
2004, p. 4). Escolheu um estranho ofício: vende passados falsos, fictícios: “Ele
vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-
lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina estampa, senhoras
do tempo antigo” (AGUALUSA, 2004, p. 8). Seus clientes são diferenciados:
prósperos empresários, políticos, generais, enfim, a burguesia angolana que
irrompe e quer assegurar o futuro de maneira gloriosa: “Eram empresários,
ministros, fazendeiros, camanguistas, generais, gente, enfim, com o futuro
assegurado. Falta a essas pessoas um bom passado, ancestrais ilustres,
pergaminhos” (AGUALUSA, 2004, p. 8).
[...]
Tendo como debate central a identidade, Agualusa, em O Vendedor de
Passados (2004), ressalta no romance um espaço que re-elabora um discurso
tentando dar conta dessa multiplicidade que existe em África. Na atualidade, o
processo de construção nacionalista angolano sofre modificações nos sistemas
internos e externos, sempre evidenciando a dicotomia tradição e modernidade.
Tem-se instaurada a instabilidade do sujeito e do seu discurso na sua cultura,
nas sociedades africanas. Acometido por um sentimento de perturbação de
suas bases sólidas, o povo africano procura o fechamento desse processo e
encontra a fragmentação; assim como Félix Ventura que se despedaça, frente
ao novo, em outros “eus” – Eulálio, José Buchmann, o diário. Esse processo
conflituoso de recusa e aceitação cultural, essa busca por uma composição que
dê conta da multiplicidade africana, essa necessidade em transpor as marcas
do colonialismo, e de todo um percurso de tentativa de anulação identitária,
faz do continente africano um caso de particularidade significativamente
sensível. Talvez a transculturação seja o momento de fôlego. Mas a inquietude,
essa energia explosiva da cultura africana não cabe em si, e nem se limita a
conceituações enfaixadas. É preciso, contudo, reconhecer esse mosaico, ouvir o
balbucio, acompanhar a riqueza que vem de fora, avançar nos paradigmas dos
cânones literários (MARTINS; MARTINS, 2015).

144
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

2.4 PAULINA CHIZIANE


FIGURA 7 – PAULINA CHIZIANE (MOÇAMBIQUE)

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulina_Chiziane>. Acesso em: 6 out. 2019.

Nasceu a 4 de Junho de 1955 na província moçambicana de Gaza, no


seio de uma família protestante, onde se falava chope e ronga. Aprendeu a
falar português na escola de uma missão católica, pouco antes de se mudar
para Maputo. Iniciou os estudos superiores na Universidade Eduardo
Mondlane, mas nunca concluiu a licenciatura de Linguística. A viver na capital
moçambicana, Paulina acabou por se juntar a FRELIMO durante a luta pela
independência. Desiludida com a política, em 1984 abraça a escrita, começando
pelos contos. A grande influência veio do avô, um contador de histórias nato.
Começa por publicar alguns dos seus contos na imprensa moçambicana, como
a Página Literária e a revista Tempo, histórias que falam da vida em tempos
difíceis, mas da esperança, do amor, da mulher, e de África. Em 1990, Paulina
Chiziane torna-se a primeira mulher moçambicana a publicar um romance –
‘Balada de Amor ao Vento’. No entanto, Paulina não gosta do termo romancista
e diz sobre si: Sou contadora de estórias e não romancista. Escrevo livros com muitas
estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha
primeira escola de arte. 

FONTE: <http://ensina.rtp.pt/artigo/paulina-chiziane/>. Acesso em: 6 out. 2019

Conforme visto na unidade anterior, a crítica literária feminista


enfatiza questões que buscam ressignificar o papel da mulher na literatura,
seja como produtora, consumidora ou personagem das obras literárias. Se a
representatividade feminina na literatura contemporânea pode ser considerada
uma subversão ao cânone literário, o que não dizer da presença de escritoras
africanas, cuja cultura sempre foi marcada pela invisibilidade ou inferioridade
frente à perspectiva eurocêntrica? Conforme Silva (2018, p. 1-2),

145
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

A literatura escrita por mulheres africanas é, acima de tudo, uma


das grandes vitórias sobre os estigmas sociais e antropológicos
consolidados no decorrer dos séculos, os quais acabaram por instituir
“verdades absolutas” baseadas em preconceitos raciais e de gênero.
São textos que permitem a subversão do cânone literário europeu
através das variadas perspectivas sobre a realidade da mulher africana
que ali se apresenta. [...] A presença da mulher, principalmente a
mulher negra africana, enquanto escritora, torna-se transgressora das
verdades estabelecidas pelo cânone literário e por segmentos sociais
específicos, os quais desconhecem, ou ignoram, a perspectiva feminina
da literatura.

De acordo com Silva (2018, p. 2), a obra de Paulina Chiziane, que aborda
questões femininas e da cultura moçambicana, acaba configurando-se como “o
espaço da representação universal feminina, já que ali encontram-se transfiguradas
as inúmeras e diversas faces e vozes há muito silenciadas”. Ainda segundo essa
autora, “a prosa de Paulina Chiziane, por meio de uma narrativa livre de tabus e
de um lirismo advindo de uma estrutura discursiva específica que assume o tom
confessional [...] desloca o leitor do centro masculino ocidental e lhe apresenta
diversas margens interpretativas até então não observadas” (SILVA, 2018, p. 14).

Uma das obras de destaque de Chiziane é Niketche: uma história de


poligamia (2002), que conta a história de Rami, mulher que, após vinte anos
casada, descobre que seu marido é polígamo, tendo outras quatro mulheres e
vários filhos espalhados pelo país. Conforme Araújo (2018, p. 314),

[...] através de uma extensa pesquisa e sensibilidade literária, a autora


constrói um enredo emocionante que narra as dores, incertezas e
conflitos de Rami, uma mulher de meia idade criada em meio à
cultura cristã, que se vê na necessidade de aceitar os outros quatro
relacionamentos do seu marido para não o perder, e que com isto
passa por um momento de crise pessoal e de reflexão acerca da
situação das mulheres que concerne às tradições e heranças cristãs.
Dessa forma, a protagonista se encontra enredada por um embate de
culturas distintas, bem como entre seus anseios e limites interiores.

Por meio de uma escrita extremamente sensível, Chiziane convida seus


leitores a dialogarem com aspectos da contemporaneidade moçambicana, expondo
situações conflituosas e de opressão às quais as mulheres são submetidas. Além
dessa obra, Chiziane publicou diversos outros livros, entre eles: Balada de amor ao
vento (1990), Ventos do apocalipse (1993), Sétimo juramento (2000), O alegre canto da
perdiz (2008), As andorinhas (2009), Por quem vibram os tambores do além (2015) e O
canto dos escravizados (2017). Veja agora alguns excertos retirados da obra O sétimo
juramento seguidos de uma breve análise feita por Inocência Mata (2001).

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TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

FIGURA 8 – O SÉTIMO JURAMENTO

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51kLX3pK39L._SX322_
BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 13 jan. 2019.

“Mulher é fruta boa. Mulher é tranquilidade e frescura. Mulher é noite negra


que faz a luz ofuscante transformar-se em penumbra. Mulher é mãe, mulher é
terra que Deus colocou à disposição do homem como rampa de lançamento no
voo da vida.
[...]
Oh, Vera, usa o exemplo de Eva, a traidora. Aprende a subtileza da serpente.
Que poderes tinha Eva perante Deus e Adão? Nenhuns. Usou a traição e
vingou-se. Ela conseguiu provocar a fúria de Deus de tal modo que Adão,
filho adorado, acabou condenado. Se nós mulheres não temos poder, que seja
a traição a nossa força.
[...]
Lobolo é casamento. E como todos os casamentos do mundo é um contrato de
desigualdade e injustiça, em que o homem jura dominar a mulher, e a mulher jura
subordinar-se ao homem e obedecer até ao fim dos seus dias” (CHIZIANE, 2000).

O último romance da moçambicana Paulina Chiziane, O sétimo juramento,


retoma algumas preocupações que têm marcado a obra desta romancista
moçambicana: a encenação quotidiana do feminino. Com este edifício
sociocultural como pano de fundo, o romance focaliza o ritual de iniciação de
uma personagem masculina, David, que, para ascender ao poder político,
consolidado o poder econômico, recorre à feitiçaria, ao poder de um nynaga,
que lhe exige, em troca, o que tem de mais precioso: a família. É aqui que as
mulheres têm um papel fundamental: de simples objeto de prazer e de troca,
elas se unem e se tornam sujeitos do processo, revertendo-o apesar de duas não
terem logrado sobreviver. Portanto desta vez, para além da deslocação da cena
para o mundo urbano do poder político e socioeconómico, o romance, embora
revelando os meandros que determinam a vida da mulher mesmo numa
sociedade urbana, diz também do conhecimento feminino sobre estratégias
para contornar o peso da condição subalterna (MATA, 2001).

147
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

2.5 MIA COUTO


FIGURA 9 – MIA COUTO (MOÇAMBIQUE)

FONTE: <http://www.pluraleditores.co.mz/our-country/authors/author/ver/?id=32845>.
Acesso em: 6 out. 2019

Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto (Beira, 5 de julho


de 1955), é um biólogo e escritor moçambicano. Mia nasceu e foi escolarizado na
Beira. Adotou o nome porque tinha uma paixão por gatos e porque o seu irmão
não sabia pronunciar o nome dele. Com catorze anos de idade, teve alguns poemas
publicados no jornal  Notícias da Beira  e três anos depois, em 1971, mudou-se
para a cidade capital de Lourenço Marques (agora Maputo). Iniciou os estudos
universitários em medicina, mas abandonou esta área no princípio do terceiro
ano, passando a exercer a profissão de jornalista depois do 25 de Abril de 1974. 
Foi nomeado diretor da  Agência de Informação de Moçambique  (AIM) e formou
ligações de correspondentes entre as províncias moçambicanas durante o tempo
da guerra de libertação. A seguir trabalhou como diretor da revista Tempo até 1981
e continuou a carreira no jornal Notícias até 1985. Em 1983, publicou o seu primeiro
livro de poesia, Raiz de Orvalho, que inclui poemas contra a propaganda marxista
militante. Dois anos depois, demitiu-se da posição de diretor para continuar os
estudos universitários na área de biologia. Além de considerado um dos escritores
mais importantes de Moçambique, é o escritor moçambicano mais traduzido.
Em muitas das suas obras, Mia Couto tenta recriar a língua portuguesa com uma
influência moçambicana, utilizando o léxico de várias regiões do país e produzindo
um novo modelo de narrativa africana. 

FONTE: <https://www.fnac.pt/Mia-Couto/ia240684/biografia>. Acesso em: 6 out. 2019.

Mia Couto é considerado, na atualidade, o autor de maior visibilidade


na literatura africana de língua portuguesa. Devido à inventividade presente na
sua escrita por meio da criação de novas palavras, já foi comparado ao escritor
brasileiro Guimarães Rosa. De acordo com Silva (2011, p. 11), em sua obra ficcional
que tematiza a vida do povo moçambicano e sua cultura, “não faltam o humor
e o trágico, a incorporação da linguagem cotidiana, a inclusão do fantástico e do
imaginário, tudo veiculado por meio de uma escrita em que se destaca [...] um
intenso trabalho de criatividade linguística”.

148
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

Muitas obras de Mia Couto sinalizam a tensão e o confronto provocados


pelos conflitos resultantes do colonialismo. É o caso da obra Venenos de Deus,
remédios do Diabo: as incuráveis de Vila Cacimba (2008), na qual o autor ilustra “o
embate entre os sujeitos envolvidos no processo de colonização, bem como de que
maneira o legado do passado colonial se faz presente nesse contexto” (TAVARES,
2011, p. 4). Ao narrar a história de Bartolomeu Sozinho e outras personagens que
se entrelaçam à vida do mecânico, Mia Couto problematiza os discursos sobre a
construção da identidade africana. Na perspectiva de Tavares (2011, p. 4),

[...] embora os discursos fabricados sobre a reconstrução das nações,


que foram vítimas das forças coloniais, divulguem a imagem de que os
povos envolvidos nesse processo possuíram uma relação harmônica, a
obra aqui analisada apresenta tensões que apontam para o fato de que
os conflitos existentes entre colonizador e colonizado não chegaram ao
fim com a descolonização.

Dessa forma, a questão da constituição da identidade do sujeito pós-


colonial é tematizada de forma crítica nesta obra em que a diversidade étnica se
faz presente na construção de cada uma das personagens. Além disso, “o aspecto
da representação de superioridade entre etnias é colocado em primeiro plano em
diversos contextos da narrativa” (TAVARES, 2011, p. 4).

A temática do pós-colonialismo também se faz presente na obra Um rio


chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), na qual Mia Couto apresenta, ora
de forma conflituosa, ora pacífica, os “retratos de um país colonizado, com
elementos tanto das tradições africanas, quanto da cultura do colonizador
europeu; além das marcas da guerra pela independência” (ENEDINO;
ZAMPIERI, 2016, p. 176).

A temática é recorrente na obra A varanda do frangipani (1996), na qual


o autor moçambicano desenvolve uma narrativa na qual “a guerra civil deixa
um cenário de desolação e vulnerabilidade para as pessoas que residem no país.
Sobretudo, a dizimação da população e a falta de esperança e credibilidade sobre
o futuro também podem ser consideradas como consequências do colonialismo”
(MASCENA; LÚCIO, 2011, p. 3).

Além das obras citadas, Mia Couto publicou diversos contos, crônicas e
romances, dentre eles: Terra Sonâmbula (1992), Mar Me Quer, (1998), Vinte e Zinco
(1999), Último Voo do Flamingo (2000), O Gato e o Escuro (2001), A Chuva Pasmada,
(2004), O Outro Pé da Sereia  (2006), O beijo da palavrinha (2006), Jesusalém (Antes
de nascer o mundo) (2009), Pensageiro frequente  (2010), A Confissão da Leoa  (2012),
Mulheres de cinzas  (2015), A Espada e a Azagaia  (2016), O Bebedor de Horizontes
(2017). Veja agora alguns trechos da obra Terra Sonâmbula e respectiva análise
feita por Rabello (2011).

149
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

FIGURA 10 – TERRA SONÂMBULA

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/517etOJMUVL.jpg>.
Acesso em: 13 jan. 2020.

“– Que pátria, Kindzu? Eu não tenho lugar nenhum. Ter pátria é assim como
você está a fazer agora, saber que vale a pena chorar. [...] – Não gosto de pretos,
Kindzu. – Como? Então gosta de quem? Dos brancos? – Também não. – Já sei:
gosta de indianos, gosta da sua raça. – Não. Eu gosto de homens que não tem
raça. É por isso que gosto de si, Kindzu.
[...]
O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilo. Ainda não morrera
e já seus ossos brilhavam no sol. Agora, eu via o meu país como uma dessas
baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe
roubavam pedaços, cada um tentado o mais para si.... Estou condenado a uma
terra perpétua, como a baleia que esfalece na praia. Se um dia me arriscar num
outro lugar, hei de levar comigo a estrada que não me deixa sair de mim.
[...]
Então ele com um pequeno pau rabisca na poeira do chão: “AZUL”. Fica a olhar
o desenho, com a cabeça inclinada sobre o ombro. Afinal, ele também sabia
escrever? Averiguou as mãos quase com medo. Que pessoa estava em si e lhe
ia chegando com o tempo? Esse outro gostaria dele? Chamar-se ia Muidinga?
Ou teria outro nome, desses assimilados, de usar em documento?” (COUTO,
2007).

“[...] A obra de Mia Couto revela-se de extrema importância para a análise da


construção da identidade, pois questiona a suposta condição de dependência
política e cultural em que se encontram os povos africanos de língua portuguesa.
É essencial levar esses dados em consideração durante a leitura do romance de
Mia Couto, visto que a questão da língua, da construção de uma ideia de nação
e da especificidade da literatura em um espaço colonizado contribuem para a
discussão. Não é gratuito o fato de que a identidade, bem como toda a ideia de
país, se mostre no livro como uma busca pessoal e não como algo meramente
herdado de outrem.
[...]

150
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

É notável, de fato, que Mia Couto faça com a língua portuguesa o que ele próprio
chamou de “brincriações”, criando neologismos e expressões peculiares como
uma maneira de se apropriar de uma língua que veio do colonizador, mas
modificando-a segundo sua sensibilidade artística [...]. Os neologismos aparecem
na formação de adjetivos ou verbos, acrescentando novos valores semânticos às
palavras primitivas. Mesmo que algumas construções causem certa estranheza
ao leitor, é evidente como os neologismos e os termos autóctones enriquecem o
texto, ampliando e diversificando o léxico da língua portuguesa.
Mia Couto explora consistentemente os significados telúricos ou primitivos da
ligação do homem com a terra, simbolizada de diversas maneiras ao longo
do livro. O romance se inicia com a revelação de que naquele lugar onde se
encontram as personagens, a estrada havia sido destruída pela guerra. Trata-se
de uma paisagem devastada, em que hienas se arrastam e a tristeza se adensa,
retirando a leveza das cores. Nesse cenário, movimentam-se as personagens
em uma dimensão mítica, errando pela terra destroçada, com um desespero
pungente e uma recusa da morte. Assim se apresentam Muidinga e Thuair,
vagando em busca de um lugar até avistarem um machibombo queimado.
Nesse momento, também descobrem os cadernos de Kindzu, o único dos
mortos que não tinha o corpo queimado. A figura de um homem se faz notável
enquanto Muidinga e Thuair retiram as vítimas carbonizadas de dentro do
antigo automóvel [...].
A presença da escrita e da oralidade, do novo e do antigo, é sensível em Terra
Sonâmbula, envolvendo toda a complexa construção textual e a busca das
personagens por sua identidade. É através da alternância de perspectivas entre
os cadernos de Kindzu e as vidas de Muidinga e Thuair que decorre a trama. O
texto é narrado em primeira e em terceira pessoa. Há uma voz em terceira pessoa
que narra as aventuras das personagens que se sucedem ao longo dos capítulos e
uma voz em primeira pessoa que narra os escritos de Kindzu” (RABELLO, 2011).

DICAS

Antes de dar continuidade à leitura, veja essa lista com 10 obras bastante
interessantes e seus respectivos resumos para que você possa mergulhar na literatura
africana.

Dez obras fundamentais para conhecer ou se aprofundar na literatura africana

Autor: Mia Couto (Moçambique)


Terra Sonâmbula
Narra a trajetória iniciática do menino Muidinga, auxiliado pelo mais velho Tuahir, em
meio à devastação da guerra civil pós-independência em Moçambique. Duas narrativas se
entrecruzam nesse romance: a peregrinação de Muidinga e Tuahir em direção ao mar; e
a composição dos cadernos de Kindzu, diário encontrado nos escombros da guerra pelo

151
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

menino Muidinga, cuja leitura devolve humanidade e esperança às duas personagens em


meio a tantas privações. O traço cultural moçambicano e o elemento social e histórico é
transposto pela linguagem poética de Mia Couto.

Estórias Abensonhadas
Os contos podem ser uma boa iniciação à literatura africana. Nesse livro, eles foram escritos
depois da guerra e, conforme o autor, “surgiram entre as margens da mágoa e da esperança”.
Em cada uma das 26 histórias é possível notar o traço inventivo e original da linguagem de
Couto. Aspectos da tradição oral africana recebem relevo na obra desse premiado autor.

Autor: Pepetela (Angola)


Mayombe
Escrito quando Pepetela participava como guerrilheiro na guerra de libertação de Angola,
o autor constrói uma estrutura narrativa complexa e trabalhada pela alternância de vozes
a relatar os fatos. O leitor tem acesso, assim, a diferentes pontos de vista a respeito da
organização do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) a partir do contato
com os combatentes em plena guerrilha, no interior da floresta que dá nome ao romance.

A Sul. O sombreiro
Trabalho mais recente de Pepetela, é ambientado em Angola nos séculos XVI e XVII,
portanto, no início da 
colo­nização portuguesa naquele país. O núcleo narrativo desdobra-
se novamente. Desta feita, Pepetela dá voz a três narradores que se revezam no intuito de
contar a história dos primórdios do que viria a ser a Angola atual.

Autor: Ondjaki (Angola)


A Bicicleta Que Tinha Bigodes
É um romance infantojuvenil do jovem autor. Ambientado em Luanda, o livro tem como
enredo a busca de três crianças por uma boa história que seja uma forte concorrente em
um concurso de redação cujo prêmio, muito desejado, é uma bicicleta. As personagens
adultas, como o tio Rui, que tem bigodes mágicos, acompanham a busca das crianças e
compartilham a vida cotidiana da rua no bairro simples da cidade de Luanda.

Bom Dia Camaradas


A temática da infância é novamente trabalhada em Bom Dia Camaradas, publicado em
2003. Desta feita o desafio do autor é narrar o momento histórico da independência de
Angola pelo olhar da criança. Nascido em 1977, dois anos após a independência, Ondjaki
maneja elementos da história e suas memórias infantis para construir o romance.

Autor: Naguib Mahfouz (Egito)


O Ladrão e os Cães
Escritor egípcio, Nobel de Literatura em 1988, Mahfouz publicou O Ladrão e os Cães em
1961. O romance mistura suspense, fábula moral e alegoria política. A história de Said,
presidiário que acaba de ser libertado, é ambientada no Cairo e narrada, alternativamente,
em terceira e em primeira pessoa para dar vazão aos monólogos interiores de Said.

Noites das Mil e Uma Noites


Tradição e modernidade atualizam a vida de Xerazade, grande contadora de histórias
do mundo árabe. O romance começa onde termina o clássico As Mil e Uma Noites. Ao
estabelecer esse diálogo, Mahfouz rompe as expectativas ocidentais em torno da descrição
de uma cultura exótica e insere elementos sobre suas expectativas em relação à literatura,
cultura e  história.

152
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

Autor: Nadine Gordimer (África do Sul)


A Arma da Casa
A obra publicada em 1998 traz a história de assassinato cometido por um filho da elite branca
sul-africana e os desdobramentos morais e legais desse ato. Aspectos do preconceito racial
e social da sociedade pátria de Nelson Mandela são trabalhados pela autora para questionar
a presença da violência e da culpa na África do Sul pós-apartheid.

Beethoven era 1/16 negro


Ganhadora do Prêmio
Nobel de Literatura em 1991, a autora utiliza como base para suas
histórias o contexto histórico de uma sociedade dividida pelo apartheid e as consequências
morais e psicológicas dessa divisão.

*Ludmylla Mendes Lima é professora da Universidade da Integração Internacional da


Lusofonia Afro-brasileira (Unilab).

FONTE: <https://www.cartacapital.com.br/opiniao/paraconheceraliteraturaafricana/>. Acesso


em: 8 out. 2019.

3 LITERATURA INDÍGENA
Antes de falarmos da literatura indígena propriamente dita, é importante
tecer algumas considerações acerca da literatura indianista e indigenista. A literatura
indianista foi aquela produzida no Brasil no século XIX, no período do romantismo.
Ela exaltava a natureza nacional e a construção da imagem idealizada do índio
como herói brasileiro. Tais obras, escritas por autores não índios, tinham como
perspectiva a visão do branco/colonizador, ou seja, elas “trazem a cultura, os
costumes, a língua e a religiosidade do índio retratados pelo outro, pelo não índio.
É o olhar do outro sobre uma cultura que não é a sua” (AMARAL, 2017, p. 24074).

Tal literatura, comumente disseminada nos currículos escolares, reporta a


obras como O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), de José de Alencar;
I-Juca-Pirama (1851), Os Timbiras (1857) e Canção do Tamoio, de Gonçalves Dias,
dentre outras. De acordo com Carvalho (2018, p. 175),

[...] o indianismo de Gonçalves Dias ou José de Alencar, ou mesmo


as complexas possibilidades de diálogo antropófago de Oswald de
Andrade, tudo isso construiu uma perspectiva de apreensão do ser
indígena pela ótica colonizadora, ou neocolonizadora, e a construção
do nosso arsenal literário esteve atrelado indubitavelmente em prol de
afirmar um sujeito que deveria se enquadrar numa problemática em
que ele funcionaria como um apêndice privilegiado [...].

153
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

As obras indigenistas, por sua vez, são caracterizadas por Thiél (2013, p.
1178) como sendo aquelas:

[...] produzidas também por não índios e tratam de temas ou


reproduzem narrativas indígenas. A perspectiva ocidental
característica destas narrativas pode ser evidenciada pela vinculação
dos textos nativos a gêneros literários ocidentais, lendas, por exemplo;
entretanto, os gêneros textuais e literários são também gêneros
culturais, consequentemente construídos a partir de visões de mundo
e conceitos diferentes.

Para além dos estudos literários, vale ressaltar que o termo indigenista
também está relacionado, na contemporaneidade, às políticas de proteção ao
índio (CARVALHO, 2018).

Nota-se, assim, que tanto as obras indianistas como as indigenistas abordam


a temática indígena – seus costumes, língua, religiosidade e tradição – sob a ótica
do outro, ou seja, a ótica do não índio. Entretanto, conforme destacado por Amaral
(2017, p. 24079), é importante ter em mente que tais literaturas não devem ser
vistas “como algo negativo ou errado, haja vista que foi o ponto de partida para
a legitimação da Literatura Indígena”. Mas elas devem, sim, ser estudadas como
“algo escrito sob a perspectiva do colonizador onde ele é visto como o bom selvagem
e passível de se aculturar ou, como símbolo nacional e herói romântico ou, ainda
como figura satirizada e ridicularizada” (AMARAL, 2017, p. 24079).

Tais representações, portanto, desconsideram a identidade indígena no


que tange ao contexto político, social, religioso e cultural. Exemplos disso são
os rituais antropofágicos que, presentes nas culturas indígenas, são citados em
diversas obras literárias sob o olhar da incivilidade. Também em I-Juca Pirama,
de Gonçalves Dias, nota-se que “[...] apesar de narrar a saga de um guerreiro
verdadeiro, por ser forte, fiel e bravo, o protagonista entrega-se à sentimentalidade
romântica, tal qual os heróis dos romances e da poesia romântica europeia – e
fraqueja diante da morte, pedindo aos inimigos para não morrer” (GAUDÊNCIO;
BERNARDES; MELO, 2014, p. 5-6). Além disso, o poema reproduz estereótipos
ao fazer referência ao indígena como ignavo, cujo significado é preguiçoso.

Ainda sobre a representação indígena na literatura indianista, Gaudêncio,


Bernardes e Melo (2014, p. 6) fazem a seguinte observação acerca das obras de
José de Alencar e Lima Barreto:

O romancista brasileiro José de Alencar, mesmo que tenha levantado


a bandeira indianista em uma de suas vertentes românticas, optou
pelo etnocentrismo. Em Iracema, a virgem dos lábios de mel (1865),
o autor trabalha a submissão da índia em busca de um amor por um
representante do colonizador e acaba sucumbindo ao abandono,
ficando só afastada dos seus e sem a presença daquele que julgava
amá-la. Em outra obra sua, O Guarani (1857), assinala para submissão
masculina, mas o enredo também tem um desfecho eurocêntrico.

154
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

Em ambas as obras se percebe a necessidade de se adaptar as


expectativas de um público leitor burguês. O pré-modernista, Lima
Barreto, conhecido pela sua crítica ferrenha à sociedade brasileira
também abordou a temática indianista. Em seu clássico “Triste Fim
de Policarpo Quaresma”, que passou de folhetim (1911) a livro (1915),
busca resgatar a nacionalidade por meio da referência ao índio, tanto
no âmbito na linguagem – ao propor que o tupi seria a forma mais
original de se expressar a cultura do país –, quanto no que se refere à
eleição deste como representação de uma cultura local, amplamente
impregnada de valores europeus. Tais valores são tão fortes que ao
longo do Realismo/Naturalismo não se percebe mais a presença de
protagonistas índios, entra em cena o mestiço, considerado como
símbolo da predileção pela “branquetude”.

A literatura indígena, por sua vez, é aquela produzida pelos próprios


indígenas, ou seja, uma de suas especificidades é ser uma auto-história, devendo
conferir significado à história de um povo que sempre foi retratado pelo viés do
outro. Além disso,

[...] a produção indígena é realizada pelos próprios índios segundo as


modalidades discursivas que lhes são peculiares. As obras indígenas,
voltadas para o público infanto-juvenil e para o público maduro,
apresentam uma interação de multimodalidades: a leitura da palavra
impressa interage com a leitura das ilustrações, com a percepção de
desenhos geométricos, de elementos rítmicos e performáticos. Os
grafismos indígenas constituem narrativas e devem ser valorizados
por sua especificidade, podendo inclusive indicar a autoria do texto
indígena, se coletiva/ancestral ou individual. Ademais, a leitura da
literatura indígena deve levar em conta o entre-lugar cultural dessa
produção que está em uma zona de contato e conflito localizada
entre a oralidade e a escrita, entre línguas nativas e europeias, entre
tradições literárias europeias e indígenas, entre sujeição e resistência
(THIÉL, 2013, p. 1178).

Ainda acerca da especificidade da literatura indígena, são oportunas as


considerações de Graúna (2013, p. 190) ao afirmar que:

[...] a literatura escrita pelos povos indígenas no Brasil pede que se leiam
as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação
que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de outras
nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla
cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura
estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura nacional.

Reafirmando o que está preconizado na Lei nº 11.645/2008, que insere a


temática da cultura indígena ao lado da afro-brasileira nos currículos escolares, o
ensino da literatura indígena nas escolas permite que crianças e jovens estejam em
contato com textos que promovem a diversidade cultural do país. Tal prática contribui
para a desconstrução de visões estereotipadas e depreciativas acerca do outro e sua
cultura, permitindo aos alunos o enriquecimento de sua prática de letramento.

155
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

A literatura indígena possui alguma s peculiaridades em relação à


linguagem utilizada, que é “construída no imbricamento da tradição oral, escrita
e performática”, ou seja, “estratégias narrativas da tradição oral aparecem nos
textos juntamente com estratégias de modalidade gráfica e visual” (THIÉL,
2013, p. 1180). No caso do recurso da oralidade, a autora salienta que, “ao serem
traduzidas para o texto escrito, as estratégias discursivas da oralidade [...] podem
promover a sensibilidade estético-linguística de seus leitores, neste caso, de
crianças e jovens” (THIÉL, 2013, p. 1181).

Além do recurso da oralidade, é recorrente na literatura indígena a


narrativa mítica que, conforme pontuado por Thiél (2013, p. 1181), possui sentido
diferente daquele difundido na cultura europeia:

Dentre os gêneros narrativos indígenas, o relato mítico assume, em


tradições tribais, um papel essencial; o mito, na tradição europeia
normalmente vinculado a relatos fantasiosos e desvinculado de
um discurso histórico ou verdadeiro, assume outras conotações em
contextos tribais. Nestes, sugere ligação a narrativas verdadeiras,
servindo uma função religiosa. O relato mítico que se refere à origem
do mundo, dos deuses e do homem, oferece mais que entretenimento,
como poderia ser concebido pela perspectiva ocidental; entendido
como verdadeiro saber, o mito fornece as bases que sustentam as
relações sociais das comunidades tribais. Portanto, o mito não é
construção ficcional, mas construção social.

Outra peculiaridade da literatura indígena é o contato com modalidades


discursivas diversas, tais como o recurso visual, o som, a música, o gesto, a fala.
Acerca dos recursos visuais, Thiél (2013, p. 1182) salienta que:

[...] as ilustrações estão presentes em grande parte dos textos indígenas,


principalmente naqueles dedicados ao público jovem. Há um enredo
nos desenhos que lança o leitor para uma rede de significados forjados
pela interação de palavra e imagem. Muitas vezes a palavra escrita,
tão privilegiada pela literatura canônica, passa a ser um complemento
do elemento visual. Assim, a partir da representação visual e gráfica
de seu potencial imaginativo, o narrador indígena amplia a latitude e
a longitude de seu olhar sobre o mundo e recorre à imaginação como
forma de se relacionar com o real, projetando-o ou reformulando-o.

Por fim, é importante ressaltar que a literatura indígena no ambiente


escolar é uma forma de valorização da diferença, lembrando que, “o contato com
a literatura indígena nos desafia e proporciona o encontro com este outro cuja
relação com a terra, o divino, a ordem social, a história, as artes, problematiza
nossa própria relação com estes elementos e com a nossa própria identidade”
(THIÉL, 2013, p. 1185). A seguir, serão apresentados alguns autores e obras
pertencentes à literatura indígena classificadas como infanto-juvenis.

156
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

3.1 YAGUARÊ YAMÃ


Yaguarê Yamã nasceu no Amazonas. Formou-
se em Geografia pela Unisa, em São Paulo, onde
lecionou no ensino público por dois anos e iniciou sua
carreira de escritor. Em 2004, retornou ao seu estado
natal e organizou o projeto de volta às origens, cujo
objetivo era a conscientização, revitalização cultural
e a luta pela demarcação das terras do povo indígena
Maraguá. Atualmente, mora no município de Nova
Olinda do Norte (AM), onde continua dando aulas de
Geografia, escrevendo livros e atuando no movimento
indígena, como líder Maraguá. Seu trabalho como ilustrador e artista plástico
pode ser visto em seus livros e em exposições. Participou da obra Brasil 500
anos, da escultora Maria Bonomi, no Memorial da América Latina. É autor de
dez livros, entre eles O caçador de histórias, que recebeu o prêmio Altamente
Recomendável, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ);
e  Sehaypóri, selecionado pelo catálogo White Ravens para a Biblioteca de
Munique e para a Feira de Bolonha.

FONTE: <https://www.editorapeiropolis.com.br/biografia/?autor=46>. Acesso em: 8 out. 2019.

Dentre as diversas obras publicadas por Yaguarê Yamã, vamos nos deter
em duas delas, que foram analisadas por Amaral (2017). A primeira é O caçador de
histórias Sehay Ka’at Hariá (2004):

Nesta, escrita em 2004, as “histórias” (assim denominadas pelo autor)


possuem uma esférica mística, onde todas as narrativas possuem seres
fantásticos, heróis com poderes e figuras já conhecidas, a exemplo do
“kurupyra” mas contadas de maneira mais densa, como os nativos
ouvem e contam para os seus. Os títulos das histórias são escritos em
língua portuguesa e em língua indígena. Não se verificou a presença
do termo genérico “índio”, mas nomes próprios em sateré ou em
língua geral [...]. Para o melhor entendimento do não indígena há
também nesse livro um glossário com o significado das palavras, tanto
em língua geral ou em língua sateré. Isso demonstra que apropriação
da língua numa Literatura Indígena traz enraizado o empoderamento
da nação enquanto parte de uma nação maior que é a brasileira. Ou
seja, não basta escrever sobre si utilizando um mecanismo de tradução,
mas falar, dizer, mesmo que em partes a partir de sua língua, é dar
poder a sua própria voz enquanto nação brasileira. Nesses livros o
termo genérico “Índio” não ocorre, ao mencionar, por exemplo, os
guerreiros, utiliza-se o termo “homem” que também é genérico, mas
refere-se à raça humana (AMARAL, 2017, p. 24077).

O livro Murũgawa: mitos, contos e fábulas do povo Maraguá (2007), por sua
vez, está dividido, como indicado no título, em mitos, contos e fábulas. De acordo
com Amaral (2013, p. 24078), “tal obra abre caminho para uma análise mais

157
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

aprofundada sobre as semelhanças e diferenças entre a estrutura das narrativas


ocidentais, já fixadas e estudadas pela Teoria Literária, e as narrativas indígenas e
seus possíveis enquadramentos”.

Veja, a seguir, alguns trechos da obra Contos da Floresta e uma breve análise
feita por Siscú (2017) acerca de três narrativas pertencentes à obra: História de
Kâwerá, As makukáwas e História de Mapinguary.

FIGURA 11 – CONTOS DA FLORESTA

FONTE: <https://www.antroposofica.com.br/lojas/00000472/prod/contos_floresta_g.
jpg?cccfc=21b7b5db>. Acesso em: 13 jan. 2020.

“Muito tempo voaram, até que, finalmente, chegaram à casa de Kãwera. Um


lugar escuro e sombrio. Desceram. O bicho jogou o rapaz no chão e falou: -
Olhe ao seu redor e me diga o que está vendo. O homem, tremendo de medo,
respondeu: - Vejo cadáveres. - Esses cadáveres são de pessoas teimosas, iguais
a você, que me desafiaram.
[...]
Mas, rapidamente, sentiu sua cabeça crescer e os cabelos se arrepiarem, ao ver
descer à sua frente um terrível monstro alado, de asas de morcego. Ao pousar,
deixou à mostra dentes enormes e garras, com as quais arranhou o homem nas
costas. Em seguida, o monstro levantou voo e sumiu na escuridão da mata.
[...]
– Ah, tipuã, se você fosse um homem, na certa, não ficava aí cantando, viria
me ajudar a fazer essa janta. E continuou a depenar as aves. Passados alguns
minutos, em frente à porta da casa apareceu um homem alto, forte, mas com os
pés de pássaros, iguais ao do tipuã. Ele foi para a cozinha, pegou as makukawas
do jirau com brutalidade e começou a depená-las com avidez. Assustada com o
estranho, a mulher olhou para os pés dele. Teve mais medo ainda, ao perceber
que eram pés de pássaro”
[...]

158
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

Tomou um susto, ao ver que o corpo do amigo não estava mais lá, apenas
a cabeça. O homem parou. E, no momento em que se virou, viu a cabeça se
transformando em Mapinguary. A cabeça mesmo já não existia mais. O que
havia era um corpo enorme, todo peludo, com uma hedionda boca no meio do
estômago que começou a gritar e a gemer pavorosamente” (YAMÃ, 2012).
“A literatura indígena se constrói com elementos típicos da cultura oral.
Fortemente marcada pela tradição, esta literatura traz em seu corpus histórias
recheadas do sobrenatural, do maravilhoso, do fantasmagórico. Categoriza-se
essas narrativas como insólitas, pois falam muito sobre as crenças do homem
da Amazônia, principalmente os que moram em áreas fora da cidade e que
têm experiências estranhas a partir de uma situação vivenciada por ele mesmo
ou por outrem. Assim no enredo destas histórias é comum aparecerem seres
e situações incríveis que extrapolam o humano, como é o caso dos três contos
elencados para este estudo.
[...]
No conto História de Kãwera o leitor é levado a conhecer o mundo estranho onde
reina o Kãwera, “esqueleto velho. Ser da mitologia Maraguá, metade homem,
metade morcego” (YAMÃ, 2012, p. 56).
[...]
As Makukáwas, o insólito se faz presente na figura de um homem alto e forte, mas
com pés de pássaro. A aparição desse ser na história acontece em decorrência a
do lamento constante de uma mulher que ao cuidar de inúmeras makukawas,
as quais seriam servidas como refeição para o esposo, reclama o fato de ter que
sozinha cuidar dos pássaros.
[...]
Na narrativa História de Mapinguary o insólito também acontece por meio da
aparição de um ser estranho e de uma situação sobrenatural. O Mapinguary,
figura estranha e amedrontadora, é “um ser mitológico Maraguá. Entidade
maligna da floresta, com o corpo coberto de pelos e boca no estômago” (YAMÃ,
2012, p. 56). Esta entidade sobrenatural é tida no imaginário amazônico como
um monstro que persegue as pessoas na floresta, usa pedaços de carne para
atraí-las e depois devorá-las.
[...]
As três histórias deste estudo fazem parte do imaginário amazônico e são
frutos de narrativas orais, típicas das sociedades indígenas. Essas narrativas
têm como uma das características fundamentais a presença do insólito que se
concretiza na presença de seres fabulosos, estranhos e situações suprarracionais
que extrapolam os limites da condição natural humana.
[...]
O leitor dessas narrativas é assim convidado a entrar no jogo da ficção, a
aceitar como verdade as situações e seres anormais e estranhos. As narrativas
indígenas, frutos da cultura oral, circulam entre os membros da comunidade
por meio de um interlocutor que empresta a sua voz e assim narra a história
aos seus receptores de forma que estes a recebam como uma verdade possível
na ficção e por que não na realidade concreta” (SISCÚ, 2017).

159
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

DICAS

Quer conhecer um pouco mais sobre esse autor? Acesse o site http://
blogdeyaguare.blogspot.com/p/obras-de-yaguare.html e conheça o blog de Yaguarê Yamã.
Nele, você encontrará fotos e informações sobre o Povo Maraguá, outros livros do escritor
e ainda uma relação de diversos autores que produzem literatura indígena.

3.2 DANIEL MUNDURUKU


Nasceu em Belém, PA, filho do povo
Indígena Munduruku. Formado em Filosofia, com
licenciatura em História e Psicologia, integrou o
programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social na USP. Lecionou durante dez anos e atuou
como educador social de rua pela Pastoral do
Menor de São Paulo. Esteve em vários países da
Europa, participando de conferências e ministrando
oficinas culturais para crianças. Autor de  Histórias
de índio, coisas de índio  e  As serpentes que roubaram a
noite, os dois últimos premiados com a Menção de
livro Altamente Recomendável pela FNLIJ. Seu livro  Meu avô Apolinário  foi
escolhido pela Unesco para receber Menção honrosa no Prêmio Literatura para
crianças e Jovens na questão da tolerância. Entre outras atividades, participa
ativamente de palestras e seminários destacando o papel da cultura indígena
na formação da sociedade brasileira.

FONTE: <https://globaleditora.com.br/autores/biografia/?id=1000>. Acesso em: 8 out. 2019.

Dentre os livros publicados por Daniel Munduruku, vamos apresentar


uma breve análise empreendida por Amaral (2017) acerca do livro Contos indígenas
brasileiros (2004), baseada em mitos de diversos povos, como os Munduruku,
Guarani, Karajá, Terena, Kaingang, Tukano e Tulipang. É importante destacar
que, de acordo com Amaral (2017, p. 24076),

[...] a escrita de Daniel Munduruku não traz uma imagem genérica


do índio cimentada por estereótipos, mas reforça, logo no início
dos contos, a etnia de origem, não se utilizando do termo genérico
“índio”. O termo índio, entende-se, como sinônimo de enfrentamento,
e símbolo máximo da aculturação diante do colonizador. Sinônimo
também de enfrentamento, o termo na obra de Munduruku é
substituído por “sou munduruku”, “sou guarani”. Os contos possuem
maneiras diferentes de narrar, mas têm em comum traços centrados no

160
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

cotidiano da vida indígena, isso é feito por meio de relatos vivenciados


pelo autor através da memória, trazendo histórias ouvidas na infância.
Nas páginas que antecedem o conto em si, há a menção do povo a
qual pertence a história, a língua, a família, o tronco e um mapa do
Brasil mostrando os estados em que há (ainda) esse povo. Na narrativa
há diversas palavras que pertencem à língua indígena, para melhor
compreensão do não indígena o autor traz um glossário ao final de
cada conto. As narrativas iniciam com “Em tempos muito antigos”,
pois a maioria faz parte dos contos (mitos) de origem, pois, são povos
que valorizam as histórias contadas pelos velhos, pelos idosos da
aldeia. Desse modo, verifica-se que a literatura trazida nas páginas do
livro de Daniel Munduruku pode ser categorizada como Literatura
Indígena, não só por ser escrita por um indígena, mas por trazer em
seu bojo a voz do indígena como pertencente à raça humana, mas a um
povo, uma nação.

Sobre a questão da identidade indígena são oportunas as palavras de


Baniwa (2006, p. 49) ao afirmar que:

[...] não existe uma identidade cultural única brasileira, mas diversas
identidades que, embora não formem um conjunto monolítico e
exclusivo, coexistem e convivem de forma harmoniosa, facultando e
enriquecendo as várias maneiras possíveis de indianidade, brasilidade
e humanidade. Ora, identidade implica a alteridade, assim como
alteridade pressupõe a diversidade de identidades, pois é na interação
com o outro não-idêntico que a identidade se constitui.

A propósito, é importante ressaltar que as realidades indígenas são


distintas nos vários locais em que os povos estão distribuídos. Assim, cada
parque ou reserva indígena merece uma forma de tratamento diferenciada, já
que “cada uma dessas maneiras de vida tem nuanças diferentes na relação com a
civilização não índia” (CARVALHO, 2018). Veja, a seguir, alguns trechos do livro
As peripécias do jabuti (2007), cuja análise foi feita por Martins (2014).

FIGURA 12 – AS PERIPÉCIAS DO JABUTI

FONTE: <http://lojasaraiva.vteximg.com.br/arquivos/ids/6973198/785202.
jpg?v=637075265593030000>. Acesso em: 13 jan. 2020.

“As histórias que irei contar, ou melhor, recontar, já foram narradas milhares de
vezes por este Brasil afora. Estas fábulas, cujos personagens são animais, fazem
parte do repertório popular, mas a origem delas é da gente indígena, embora

161
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

seus nomes tenham sido esquecidos ou apagados da memória brasileira. Não


faz mal. Essa tem sido a silenciosa contribuição que os povos indígenas têm
dado para tornar nossa terra mais bonita, sadia, equilibrada. O importante é
que o ensinamento que fica serve para alimentar nosso espírito e nossa memória
ancestral.
[...]
Nosso povo caminha por essas terras há muito tempo, e vive de acordo com
nossas tradições para continuar respeitando os antepassados. Sabemos, no
entanto, que corremos riscos porque estamos em contato com uma cultura que
se acha muito melhor que a nossa. É uma cultura que adotou coisas modernas
para si. Eles muitas vezes esquecem que a gente precisa ficar quieto e respeitar
o silêncio, para poder ver as coisas com mais clareza. Por isso, quero contar a
história da raposa e do jabuti. Vocês vão ver que nem sempre aquele que se
considera o mais esperto é o melhor. Escutem com atenção” (MUNDURUKU,
2007).

“É bastante comum nas literaturas de temática indígena o reconto de textos de


tradição oral: mitos, lendas e fábulas. Vale destacar que essa particularidade
está presente desde os primeiros textos que discutem a cultura indígena sob
a perspectiva do colonizador. No entanto, foram os folcloristas do início do
século XX os responsáveis por sua divulgação mais ampla. A obra em estudo é
composta por três fábulas: O Jabuti e a Raposa, O Jabuti e o Veado Catingueiro
e O Jabuti e a Onça.
[...]
O narrador das três fábulas sobre o jabuti se encontra em terceira pessoa. Todas
elas são iniciadas com um personagem contador de histórias mais velho (um avô
ou um pajé), como é típico dos povos de tradição oral, que toma a palavra após
a introdução feita pelo narrador, o qual destaca a importância das tradições
e comenta sobre o ritual de contação dos indígenas: o silêncio, o respeito às
tradições, a importância da transmissão de saberes, a performatividade.
Destaca-se assim a importância do narrador como tradutor dos costumes
indígenas para as crianças não índias.
[...]
Dessa forma, os narradores das três fábulas apresentam-se como conselheiros,
e não apenas eles, os personagens narradores também.
[...]
As três narrativas apresentam esse intuito do autor em demonstrar aspectos de
sua cultura, sempre estabelecendo um contraponto com a cultura hegemônica.
Perfazem um ciclo que aborda a questão da sensação de superioridade do
não índio com relação às outras culturas até chegar à apropriação da cultura
do outro (pela escrita) como forma de denúncia e resgate. Nos três casos, a
tradição é capaz de ensinar a cultura hegemônica e deixá-la perplexa diante
da esperteza daquele que era visto como fraco ou oprimido e que foi capaz de
utilizar os mesmos artifícios para adquirir um status capaz de romper com as
hegemonias por meio da inteligência. Assim, nota-se o exercício de alteridade
vislumbrando a um equilíbrio de forças” (MARTINS, 2014).

162
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

DICAS

Veja, a seguir, a sugestão da especialista em Literatura Indígena, Janice Thiel,


de 10 obras escritas por índios e não índios. Tais obras pode ser um bom ponto de partida
para trabalhar a temática indígena em sala de aula:

A Terra sem Males: mito guarani

O mito guarani de A Terra sem Males é o foco desta obra direcionada para o público
infantojuvenil. À simplicidade da narrativa somam-se a complexidade mito e sua relevância
na cultura guarani. O leitor não índio, possivelmente, construirá um diálogo de parte do
mito com a narrativa bíblica do Dilúvio, mas a narrativa abre as portas para uma discussão
sobre as especificidades a cultura desse povo. Informações que seguem a narrativa são
acompanhadas por grafismos geométricos, que dialogam com formas de expressões
indígenas. Questões diversas, como história dos guaranis, a resistência e diversidade
indígena no Brasil, as migrações e a demarcação das terras podem ser aprofundadas,
servindo como propostas para pesquisa.

A Terra sem Males: Mito guarani. São Paulo, Jakson de Alencar, Paulus, 2009 (Coleção
Mistura Brasileira)

Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo Mïrang

Os pequenos ikpeng são os guias de uma narrativa que descreve 24 horas em sua aldeia.
O texto, acompanhado do filme que o inspirou, em um enredo circular e edição bilíngue,
é ideal para apresentar a cultura do povo ikpeng, do Mato Grosso. A linguagem é concisa,
mas densa de informações e possibilidades de discussão sobre o que aproxima e o que
diferencia o povo ikpeng de outras culturas. Tarefas, brincadeiras, costumes passados e
presentes, festas e rituais, objetos ancestrais e cotidianos, papéis sociais, medos e perigos da
floresta, além de mudanças incorporadas pelo contato com culturas europeias, fazem parte
da obra. O texto promove a abertura cultural ao outro e constrói pontes para a compreensão
das diferenças sem preconceitos. Das Crianças Ikpeng para o Mundo Marangmotxíngmo
Mïrang, de Rita Carelli (Adaptação e ilustrações). São Paulo: CosacNaify, 2014 (Coleção
Um Dia na Aldeia)

A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio

Este foi o primeiro livro escrito por um autor indígena brasileiro que li e a obra me apresentou
novas possibilidades de ver os índios na história e na literatura. O texto mostra o poder
da palavra na tradição ancestral indígena, aponta a pluralidade de etnias, conta como os
povos nativos leem o mundo, constroem suas identidades e suas relações com os não
índios, revelam respeito pelo poder criador e pela terra. O livro é um relato individual e
ancestral, mas muito mais que isso: trata-se de um convite para conhecermos a história
tribal brasileira, a contribuição e presença dos povos indígenas no Brasil de hoje.

A Terra dos Mil Povos: História indígena do Brasil contada por um índio, de Kaka Werá
Jecupé. São Paulo: Peirópolis, 1998 (Série Educação para a Paz).
 
Câmera na Mão, o Guarani no coração

Ler O Guarani, de José de Alencar, constitui desafio para muitos jovens. Contudo, o texto
de Scliar pode promover o interesse pela leitura da obra de Alencar. Em uma linguagem
contemporânea, o narrador conta, em primeira pessoa, como foi motivado à leitura de

163
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

O Guarani para produzir um filme e concorrer a um prêmio. O que o leitor acompanha,


porém, é a trajetória do personagem que vai aos poucos se transformando em leitor,
não só de livros, mas de discursos, estereótipos, realidades sociais e contextos culturais.
O personagem e seus amigos leem O Guarani e o leitor também o faz, enquanto todos
aprendem a apreciar criticamente a construção do índio pela literatura do século XIX.

Câmera na Mão, o Guarani no Coração, de Moacyr Scliar. 2. ed. São Paulo: Ática, 2008.
 
Kurumi Guaré no Coração da Amazônia

De autor amazonense, a obra narra aventuras infantis e descreve o povo maraguá. Além
de acompanhar registros da memória do narrador, uma auto e cosmorrepresentação, e
ensinamentos dos povos da floresta, o leitor pode observar a composição multimodal do
texto e os símbolos maraguá. Grafismos indígenas constituem uma poética que traduz uma
vontade política de expressão de identidade, contam histórias complementares e podem
sinalizar a origem do texto na tradição ancestral. A compreensão da obra envolve uma leitura
dos símbolos maraguá, do Glossário Nheengatú e de termos regionais amazônicos. Há um
enredo nos desenhos da obra de Yamã que lança o leitor para uma rede de significados
construídos na interação entre palavra e imagem.

Kurumi Guaré no Coração da Amazônia, de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD, 2007.

Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã

“Ouça o que dizem os antigos. Preste atenção na fala dos velhos sábios, pois eles guardam
a Palavra Criadora”. Esta frase de Ailton Krenak, inserida em uma carta nas páginas iniciais
desta obra, marca o tom do texto xavante. Um envelope contendo a carta inclui cartões-
postais com ilustrações que narram histórias encontradas nos objetos de arte dos povos
indígenas. Como um prefácio, as imagens anunciam as palavras dos membros mais velhos
da aldeia Pimentel Barbosa. Suas vozes foram gravadas e traduzidas para a escrita por
xavantes do Núcleo de Cultura Indígena. Em edição bilíngue, o texto é acompanhado por
desenhos de jovens artistas da aldeia, fotos dos xavante e dos warazu, não índios, e por um
panorama histórico que vai do século XVI ao século XX.

Wamrêmé Za’ra: Nossa palavra – Mito e história do povo xavante, de Sereburã; Hipru;
Rupawê; Serezadbi; Sereñimirâmi. São Paulo: Editora Senac, 1998.

Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões

Há obras que buscam reconstruir, pela ficção, figuras indígenas heroicas. É o caso do
romance que, narrado pela perspectiva de um jesuíta, em um vaivém da memória, destaca
a resistência dos Sete Povos das Missões (RS) e de um dos líderes e guerreiros indígenas do
Sul do Brasil, Sepé Tiaraju. No texto, Tiaraju é apresentado pela visão do colonizador, Michael,
ou Padre Miguel. Seu olhar constrói o herói indígena e a história da colonização dos povos
indígenas pela missão catequizadora dos jesuítas e pela política europeia. Documentos
históricos, como os tratados de Tordesilhas e de Madrid, além de conflitos e migrações
indígenas formam o contexto da obra.

Sepé Tiaraju: Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Porto Alegre: AGE,
2012. 

O Karaíba: Uma história do pré-Brasil

No romance O Karaíba, Munduruku narra, em linguagem poética, a história de povos que


viviam numa terra ainda não chamada Brasil, numa época na qual os índios não eram assim
chamados. Não haviam sido colonizados, mas antecipavam mudanças vindas do contato

164
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

com europeus. O texto nos apresenta essa terra como um personagem com um passado,
com povos que vivem à sombra de uma profecia anunciada pelo velho Karaíba, de que “um
grande monstro” viria e destruiria tudo. A obra preenche uma lacuna histórica e literária
e apresenta costumes, crenças e leituras do mundo pela visão cultural indígena. Assim,
constrói vozes para povos que não tiveram sua palavra registrada e enfrentaram a crueldade
da colonização europeia e da escravidão.

O Karaíba: Uma história do pré-Brasil, de Daniel Munduruku. Barueri, SP: Manole, 2010.

Amazonas: Pátria da água = Water Heartland

Com prosa e poesia, Thiago de Mello traça sua gênese e conduz os leitores em uma
viagem pela extensão do Rio Amazonas, percorrendo sua história e dos homens que nele
navegaram: os índios que chegaram à Amazônia, as icamiabas, os exploradores e cronistas
europeus e o poeta. Nesta edição bilíngue, que conta com as encantadoras fotografias de
Luiz Cláudio Marigo, o poeta descreve com suavidade a beleza e a tristeza das águas, da
floresta, das plantas e dos animais da Amazônia e trata de seus espíritos protetores, que
tentam defender a floresta da ganância, do lucro, da caça predatória. O poeta retrata os
cantos dos índios, suas angústias e sofrimentos, mas anuncia a esperança de que a vida
ainda pode ser salva.

Amazonas: Pátria da água = Water Heartland. Textos e poemas, Thiago de Mello.


SP:  Boccato, 2007.

Maíra

O entrelaçamento das culturas indígenas e europeias nunca esteve tão em evidência


quanto neste romance de Darcy Ribeiro. Nele, o autor emprega seus conhecimentos
para criar uma obra com esferas culturais e vozes narrativas que se cruzam: dos índios,
dos não índios e dos seres sobrenaturais ou demiurgos. O texto revela o encontro
de cosmogonias e o entrelugar cultural de Avá/Isaías, um índio mairum que se torna
sacerdote cristão, e Alma, jovem carioca que vive com os índios. A história tem
início com uma investigação policial, mas conduz à investigação das identidades
culturais brasileiras, em uma narrativa cuja confluência de discursos é projetada no
capítulo final. Vale a pena ler esta obra para apreciar seu caráter multicultural e literário.

Maíra, de Darcy Ribeiro. São Paulo: Global, 2014.

FONTE: <https://www.cartacapital.com.br/educacao/dez-obras-com-a-tematica-indigena/>.
Acesso em: 8 out. 2019.

165
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

3.3 LITERATURA DE IMIGRANTES


Considerando que nossa sociedade é constituída por uma pluralidade de
vozes e que muitas delas destoam, às vezes, das vozes hegemônicas. Neste tópico,
refletiremos sobre a contribuição do imigrante para a formação da identidade
nacional e sua representação na literatura brasileira.  O escritor e crítico literário
Moacyr Scliar (1998) pondera que a imigração é um fenômeno complexo pois
envolve questões sociais, econômicas, políticas, culturais e emocionais. De acordo
com o autor,

[...] o imigrante é uma pessoa que obedece – o mais das vezes a


contragosto – ao chamado/ordem de Jeová a Abraão: “Sai de tua
terra”. É em busca da Terra Prometida que ele vai, mas ao fazê-
lo paga o preço do desenraizamento e da frustração; e contrai, com
o país que o acolhe, uma relação ambivalente, de ódio e amor. Por
outro lado, é privilegiado o olhar que lança o recém- chegado à sua
nova terra; um olhar revelador, um olhar capaz de perceber até aquilo
que Marx denominou de “poros da sociedade”. Pois é nesses poros
que o imigrante, muitas vezes, vai encontrar a sua única forma de
sobrevivência (SCLIAR, 1998, p. 137-138).

Penalva (2017) também apresenta suas considerações acerca da situação


do imigrante refletindo sobre o fato de que há uma tendência em apagar ou
inferiorizar sua figura nas histórias nacionais. Para a autora, uma das causas
desse silenciamento é que

[...] como o nacionalismo distancia-se de concepções pluralistas e


heterogêneas, a tendência é excluir ou perseguir o estrangeiro, pois ele
destoa da definição nacional. Nesse sentido, definir uma identidade
própria, uma cultura nacional, significava passar por cima dos traços
distintivos, homogeneizando em termos de gênero, classe ou raça. A
intenção era unificar a cultura nacional, representando todos os sujeitos
como se fizessem parte de uma grande família nacional. Esse projeto
previa, para alcançar tal unificação, a exclusão da diferença sempre que
fosse detectada como indesejável (PENALVA, 2017, p. 373).

Nota-se, assim, que além das problemáticas que envolvem a saída do


imigrante da sua terra, ao chegar em um novo país ele passa a ser visto como o
estrangeiro, o outro. O imigrante “não é apenas aquele ou aquela no estrangeiro,
no exterior da sociedade, da família, da cidade. Assim, estrangeiro é o ser que é e o
não-ser que é (PENALVA, 2017, p. 374).

Desta feita, são diversas as sensações e sentimentos que permeiam a vida


de imigrantes distantes da terra natal. Por esse motivo, Scliar (1998, p. 138) conclui
que “uma situação tão rica em emoções teria de necessariamente ser aproveitada
pela literatura; sobretudo na América, o Novo Mundo que sempre atraiu, como
ímã, os imigrantes”.

166
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

Entretanto, a produção de obras literárias dos imigrantes, na percepção


desse autor, não foi imediatamente posterior à chegada destes no Brasil: a primeira
geração, ou seja, os primeiros que chegaram ao país, além de não dominarem o
idioma, estavam mais preocupados em prover meios de sobrevivência; a segunda
geração, por sua vez, teve mais acesso aos bens culturais e à linguagem literária –
tal situação, aparentemente cômoda, tem um preço que é o conflito de identidade,
que acaba sendo expresso nas obras produzidas; já a terceira geração, segundo
Scliar (1998, p. 138), “é a geração da globalização, da linguagem planetária”.

No Brasil, o livro Canaã (1902), de José Pereira da Graça Aranha, pode ser
considerado a primeira obra importante no gênero. De acordo com Fogal e Araújo
(2012), a obra é constituída por “uma polifonia de argumentos e perspectivas,
disfarçados sob a couraça racial, que visam discutir a nação brasileira. Na obra,
pode-se observar a configuração de ideias do brasileiro resignado, do brasileiro
patriótico, do estrangeiro dominador e do estrangeiro humanitário, todos a
discutirem o futuro do país”. Ainda de acordo com estes autores, a imigração, em
Canaã, é apresentada de forma estilizada, uma vez que ela

[...] representa a implementação da mão de obra imigrante, no Brasil


recém-egresso do escravismo. Pode-se observar que a narrativa do
romance traz um registro polifônico de diferentes vozes – o imigrante,
o brasileiro, o escravo – a debaterem a cultura brasileira e a formação
do nacional. Em uma indistinção entre raça e cultura, notou-se que o
romance representa a formação da identidade brasileira por meio de seu
patrimônio cultural diverso, múltiplo (FOGAL; ARAÚJO, 2012, p. 136).

Na literatura contemporânea, diversas obras tratam da temática do


imigrante nas quais focalizam-se questões que vão além do deslocamento físico
de um país para outro, mas abordam uma dimensão ontológica que sinaliza uma
viagem interna, em busca da própria identidade. A seguir, conheceremos uma obra
de Tatiana Salem Levy e outra de Milton Hatoum, que abordam essa temática.

3.3.1 Tatiana Salem Levy


FIGURA 13 – TATIANA SALEM LEVY

FONTE: <https://blogdoims.com.br/ficcao-sem-teoria-quatro-perguntas-para-tatiana-
salem-levy/>. Acesso em: 9 out. 2019.

167
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Tatiana Salem Levy (Lisboa, Portugal, 1979). Romancista, contista,


tradutora, ensaísta e autora de histórias infantis. Nasce em Lisboa, onde os pais
se exilam da ditadura militar brasileira, retornando ao Rio de Janeiro aos nove
meses de idade. Gradua-se em Letras com ênfase em português e literatura,
em 1999, e em francês, em 2002, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Também em 2002 defende o mestrado em estudos de literatura na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). A dissertação é
o ponto de partida para a publicação do ensaio A Experiência do Fora: Blanchot,
Foucault e Deleuze, em 2003. [...] A tese de doutorado, defendida em 2007, é em
parte formada pelo texto ficcional que dará origem ao romance A Chave de Casa,
lançado primeiramente em Portugal. Com este título vence, em 2008, o Prêmio
São Paulo de Literatura como autora estreante. O segundo romance,  Dois
Rios, inspirado em viagens para Córsega e Dois Rios, é editado em 2011. No
ano seguinte, integra o volume da revista britânica  Granta, dedicado aos 20
melhores jovens escritores brasileiros. Ainda nesse mesmo ano estreia na
literatura infantil, com a publicação de Curupira Pirapora.

FONTE: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa101178/tatiana-salem-levy>. Acesso em:


9 out. 2019.

Um dos livros publicados por Tatiana Salem Levy é o romance A chave da


casa (2008), cuja protagonista perde a mãe e recebe, pelas mãos do avô, a chave
da casa em que havia morado na Turquia antes de vir para o Brasil. A partir de
então ela empreende uma jornada na qual tenta compreender e assimilar fatos
sobre sua família e sobre si própria. Ao reconstituir passos de seu passado, a
personagem tenta dar sentido ao presente.

Esse romance salienta os processos migratórios judeus, o exílio no


período da ditadura militar e o sentimento de não pertencimento
do estrangeiro em relação ao país de origem e ao país que escolheu
para se viver. Tem-se, em seu romance, uma dicotomia bastante
nítida: mobilidade/imobilidade. No primeiro caso, os movimentos
migratórios que compõem uma trajetória familiar: a diáspora dos
antepassados judeus; a vinda do seu avô da Turquia para o Brasil,
a ida de seus pais para o exílio em Portugal e o retorno deles para
o Rio de Janeiro; a viagem dela à Europa em busca de suas origens.
No segundo caso, vários personagens acometidos pela imobilidade:
doença que paralisa a autora, submissão da personagem ao amante, a
morte da mãe. É nesse sentido que a sua história é narrada, num duplo
de dúvidas e incertezas, mostrando a errância e a paralisia em corpos
de imigrantes (PENALVA, 2017, p. 374-375).

Veja, a seguir, alguns trechos do livro Paraíso (2015) e da análise feita por
Dutra (2016). Ao fazer a leitura, procure associá-la com os estudos sobre gênero
realizados na unidade anterior.

168
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

FIGURA 14 – PARAÍSO

FONTE: <https://www.cidadaocultura.com.br/wp-content/uploads/2019/05/CAPA_
Para%C3%ADso.jpg>. Acesso em: 13 jan. 2020.

“Demorou para Sérgio se tornar um homem em casa, outro na rua. Kelly


já existia, mas era ainda uma menina que não aprendera a ler. Rosa tinha a
sensação de que ele gastava todas as palavras na igreja, e para a família não
sobrava nenhuma. Começou a beber, a fumar, enquanto ela escondia dos
outros o que se passava dentro de casa. O pastor não podia descobrir que ele
tinha se entregue ao álcool. Também não podia saber muitas outras coisas que
Rosa guardava para si.
[...]
Ana tentou ser didática, disse que milhares de mulheres são vítimas de violência
doméstica, ela não era a única, e tinha que denunciá-lo. Então Rosa berrou não
foi ele. Eu já disse pra senhora, caí ontem à noite. Sérgio é um homem bom.
[...]
Os roxos impressionavam pela intensidade. Nenhum tombo faria aquilo, era
óbvio. Repousou o copo na pia e saiu, a passos muito lentos. No alpendre,
sentiu a raiva crescer, não só pela evidência do acontecimento, mas também
pelo que ela guardava consigo e agora subia pelo corpo, veloz, reativado. Uma
raiva ancestral, por ela, pela mãe, pelas mulheres do romance.
[...]
Sua voz saiu com ímpeto, firme, Sérgio é meu marido, pai de minha filha,
foi Deus quem escolheu, Ele que quis assim. E agradeço todos os dias a Ele –
apontava o dedo para cima enquanto falava – porque eu amo o meu marido e
amo a Kelly. Parou, respirou, engoliu o choro e, por último, antes de subir as
escadas rumo à sua casa, perguntou com que cara eu ia dizer pra minha filha
que o pai dela foi preso?” (LEVY, 2015).

“Na literatura brasileira contemporânea, [...] o romance da escritora Tatiana


Salem Levy traz para a cena literária brasileira, pela perspectiva feminina, as
várias formas de violência a que as mulheres estão sujeitas, o que justifica a
escolha deste romance para a análise que faremos a seguir. Em um cenário
ainda alarmante de violência, em que muitas vezes a violência contra a mulher
é banalizada e negligenciada como alguns estudos apontam, é importante que
uma reflexão sobre o tema seja estimulada.

169
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

[...]
O problema da violência doméstica é explorado por Levy através da
personagem Rosa, a empregada doméstica que trabalha no sítio de uma amiga,
em local afastado da cidade e cercado pela natureza, onde a narradora Ana
encontra o cenário ideal para escrever. Exceto por Carlos, o motorista, e Rosa, a
empregada doméstica, Ana estava sozinha com seu medo e suas memórias no
sítio ironicamente chamado Paraíso.
A ironia em torno da ideia de Paraíso, no entanto, desconstrói a imagem do
casamento como o ideal de realização da mulher. Casada com Sérgio, Rosa
abandona sua individualidade e se submete a várias formas de violência, por
julgar que aquele era o destino que lhe cabia. Os ciclos de violência, comuns
em relacionamentos abusivos, são representados no comportamento de Rosa
que, inicialmente triste por ter sido abandonada pelo marido, depois o aceita
de volta e sofre novamente com mais um episódio de agressões.
O arrependimento de Sérgio e o senso de responsabilidade pela manutenção da
família que ela possui – ainda que isso implique em sacrifícios, uma ideia que
fundamenta muito da estrutura patriarcal – impedem que Rosa denuncie seu
marido pelas agressões, levando-a a se calar diante da violência. A denúncia
não é feita, mesmo com a insistência de Ana, e um novo episódio de violência
volta a acontecer, de forma ainda mais trágica.
[...]
Por contemplar no romance as várias formas de violência sofrida pelas
mulheres, independentemente de qual seja sua idade, raça, classe social,
sexualidade etc., Tatiana Salem Levy traz para a narrativa contemporânea uma
questão fundamental e que precisa ser mais discutida, não apenas na literatura,
mas na sociedade atual.
[...]
A ironia do título do romance destaca que ainda não vivemos no paraíso da
igualdade de gênero, em que a violência já não aterroriza a vida das mulheres.
Ao mostrar que o paraíso ainda não é aqui, a autora abre espaço para uma
discussão importante sobre a violência contra a mulher e sobre a necessidade
de demonstrarmos que é possível combate-la e que o primeiro passo é quebrar
o silêncio que nos aprisiona” (DUTRA, 2016).

170
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

3.3.2 Milton Hatoum


FIGURA 15 – MILTON HATOUM

FONTE: <https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00217>.
Acesso: 9 out. 2019.

Milton Hatoum (Manaus, Amazonas, 1952). Romancista, contista,


professor e tradutor. Destaca-se por retratar conflitos pessoais e familiares no
contexto geográfico, histórico e sociocultural da Amazônia, inspirando-se em sua
vivência como descendente de libaneses e como migrante pelo Brasil. Muda-se
para Brasília em 1967 e lá permanece até 1970, quando vai para São Paulo. Diploma-
se arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (FAU/USP) e, ainda nesta cidade, trabalha como jornalista e professor. No
início da década de 1980, viaja para a Europa e estuda literatura comparada na
Sorbonne Université. De volta ao Brasil, leciona literatura francesa na Universidade
Federal do Amazonas (UFAM), entre 1984 e 1999. Hatoum cria textos ricos em
detalhes, apresentando lugares, pessoas e conjunturas extraídos de seu imaginário
enquanto manauara descendente de libaneses. [...] A imagem do imigrante abre
caminho para conceitos como identidade, entre lugar e memória. A temática se
define pela presença de quem migra, mas não apenas geograficamente – aquele
cuja condição primordial é o exílio, fomentado pela voz, presença e olhar do
outro. [...] A tendência a incluir acontecimentos históricos na ficção decorre do
fato de Hatoum ser um escritor de uma minoria (como os libaneses no Brasil), o
que o impele a registrar “a voz dos esquecidos: vozes do passado soterradas em
um espaço problemático marcado por tentativas de assimilação”.

FONTE: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa7721/milton-hatoum>. Acesso em: 9


out. 2019.

171
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

A obra Relato de um certo Oriente (1989), de Milton Hatoum, retrata o


movimento de imigração árabe para a região da Amazônia e a convivência
entre nativos e estrangeiros no mesmo local. O livro está estruturado em forma
de relatos, feitos com base das tradições orais que rememoram experiências
diversas. Desenvolvida em uma cidade que tem como uma de suas características
o hibridismo cultural, a história trata da diversidade no encontro de diferentes
culturas, costumes, línguas, religiões e percepções de mundo.

Ao trazer à tona os conflitos e tensões decorrentes dessa diversidade, o


autor “trabalha o imaginário das imigrações no norte do Brasil e as contradições
dos sujeitos migrantes, problematizando aspectos de suas vivências de tradução
cultural” (PENALVA, 2017, p. 376). Tal diversidade “metaforiza o que se vive na
contemporaneidade: a dissolução ou reformulação da noção de fronteira, pela
intensa mundialização de todos os níveis de relações nas sociedades” (PENALVA,
2017, p. 375). De acordo com Penalva (2017, p. 371-372),

[...] a ficção brasileira contemporânea apresenta, em grande


parte, a consciência de que as ideias etnocêntricas são limitadas e
essencializantes, e que uma variedade de outras vozes dissonantes
e até dissidentes (mulheres, colonizados, imigrantes, homossexuais),
que até então eram inaudíveis, precisam ser inseridas na história
para quebrar a linearidade de conceitos, tais como: identidade, nação,
tempo, espaço, história. Até mesmo porque as sociedades modernas
são construídas a partir de vozes múltiplas que destoam, muitas
vezes, das vozes hegemônicas: a dos sujeitos diaspóricos, as histórias
de migração pós-colonial, as poéticas do exílio, as de regiões e sujeitos
históricos silenciados.

Como você deve ter percebido na breve apresentação desses livros que
fazem parte da literatura de imigrantes, tais obras têm como principal característica
dar voz e visibilidade a sujeitos muitas vezes esquecidos e inferiorizados pela
sociedade, que nem sempre está aberta para compreender e respeitar aquele que
é diferente. Assim como fizemos com os autores anteriores, nesse momento você
terá oportunidade de ler alguns trechos da obra Dois Irmãos e da análise realizada
por Souza (2012).

FIGURA 16 – DOIS IRMÃOS

FONTE: <https://img.travessa.com.br/livro/BA/94/9496ebae-3681-486c-b6cb-b87119a29551.
jpg>. Acesso em: 13 jan. 2020.

172
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

“Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A
origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos
meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal de
origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até
que uma das margens a acolhe. Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era o
meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio
de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade.
[...]
Não morei no Líbano, seu Talib. A voz começou mansa e monótona, mas
prometia subir de tom. E subiu tanto que as palavras seguintes assustaram:
“Me mandaram para uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci. É
isso mesmo, já esqueci quase tudo: a aldeia, as pessoas, o nome da aldeia e o
nome dos parentes. Só não esqueci a língua...” [...] “Não pude esquecer outra
coisa”, Yaqub interrompeu o pai, exaltado. “Não pude esquecer...”, ele repetiu
reticente, e se calou. [...] Só Yaqub permaneceu em baixo da seringueira. Ele e
sua frase incompleta.
[...]
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem
esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em
estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo
de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer,
também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em
palavras mais verdadeiras.
[...]
Na primeira semana de janeiro de 64 Antenor Laval passou em casa para
conversar com Omar. O professor de francês estava afobado, me perguntou se
eu havia lido os livros que me emprestara [...] Minha mãe se assustou ao vê-lo
tão abatido, um morto-vivo, a expressão aflitiva de um homem encurralado.
[...] Os dois saíram apressados e Omar só voltou na madrugada do dia
seguinte, quando Zana estranhou a sobriedade do filho, alguma coisa que ele
escondia ou inquietava [...] Antes de almoçar pediu dinheiro à irmã. Era bem
mais do que costumava pedir, um dinheirão que Rânia se recusou a dar. [...]
Ele ainda insistiu, sem o cinismo habitual, sem os gestos de sedução que a
desmanchavam” (HATOUM, 2006).

“O romance Dois Irmãos tem como centro do enredo a conturbada relação


dos irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, e suas relações com a mãe (Zana), o pai
(Halim) e a irmã (Rânia). A história se passa na cidade de Manaus, na casa da
família em um bairro próximo ao porto. Nessa mesma casa, moram: Domingas,
a empregada dedicada [...] e seu filho Nael, cuja infância foi moldada pela
condição de filho da empregada. A história é narrada em primeira pessoa, por
Nael; é a partir do ponto de vista dele que o leitor entra em contato com os
acontecimentos. Aparentemente, a história gira em torno dos irmãos, mas, aos
poucos, percebe-se que isso é apenas um pretexto para que o autor descubra
a sua verdadeira identidade, pois sempre teve a sua vida marcada por um
passado incerto, e sua paternidade, que acreditava estar entre um dos gêmeos.
Portanto, a busca de sua origem, de sua identidade é primordial para Nael.

173
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

[...]
O ambiente que forma o pano de fundo da história é o de imigrantes que
se dedicam ao comércio. A narrativa apresenta avanços e recuos no tempo,
sem uma cronologia linear. Dessa forma, aos poucos, o leitor vai tomando
consciência de todos os problemas que envolvem a trama.
[...]
Toda a narrativa tem sua estrutura por meio de recordações que surgem da
memória do narrador personagem. A necessidade de Nael em descobrir o
passado, para, assim, compreender a sua existência, faz com que ele transforme
os pedaços de sua memória em palavras.
[...]
A literatura contemporânea, apresentada aqui por meio da obra de Hatoum,
leva o leitor à reflexão e à formação de seu próprio ponto de vista, de uma
leitura de mundo compatível com a experiência vivenciada. Não há, portanto,
um desfecho tradicional direcionado pelo narrador, mas sim, um fecho que
permite várias leituras, de acordo com as vivências do leitor. A obra de Milton
Hatoum abre ao leitor a possibilidade de participação no universo discursivo,
promovendo o diálogo entre a Literatura e a História, o que o permite extrapolar
todos os limites entre o que é real e o que é ficcional, buscando, dessa forma,
um olhar crítico do mundo” (SANTOS, 2012).

DICAS

Você teve a oportunidade de conhecer alguns autores e obras pertencentes


à literatura africana, indígena e de imigrantes, bem como algumas análises feitas por
pesquisadores de diversas universidades. Esperamos que a leitura desses excertos desperte
sua curiosidade para ler as obras completas, que estão disponíveis em livrarias, bibliotecas
e algumas até mesmo pela internet.

TUROS
ESTUDOS FU

Para complementar nossos estudos, leia o texto a seguir, do escritor indígena


Daniel Munduruku. Eles ajudam a desconstruir estereótipos acerca dos indígenas, muitas
vezes disseminados no ambiente escolar.

174
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

LEITURA COMPLEMENTAR

VAMOS BRINCAR DE ÍNDIO?

Daniel Munduruku

O mês de abril traz em seu bojo o fato de lembrar do “índio”, o folclórico


e legendário primeiro habitante do Brasil. Em muitas escolas os professores
irão dedicar boas horas letivas para inculcar nas crianças ideias preconcebidas a
respeito do nativo brasileiro. Talvez se encontre entre eles quem ainda acredite
ser o silvícola um ser fora de moda e longe dos padrões econômicos em que
vive. Este irá reproduzir antigas falas sobre o atraso tecnológico, a preguiça, o
canibalismo e a selvageria. Haverá quem tenha ultrapassado essa visão tacanha
e se preocupe em mostrar a outra face da moeda quem sabe até dando voz e vez
aos primeiros habitantes. Haverá de tudo, certamente.

Nos meus 25 anos de atuação dentro das escolas brasileiras eu já vi de


tudo. Vi crianças com medo “porque o índio canibal ia chegar”; vi professoras
perguntando “se índio come gente”; vi adolescentes – com verdadeiro interesse –
querendo saber sobre sexo na aldeia; presenciei pais e mães almejando caminhos
possíveis para a educação dos filhos indagando sobre o método de educar dos
povos indígenas, pois se sentem perdidos nos dias de hoje. 

Vi coisas boas também: escolas levando a sério o tema, não permitindo
que seus educandos se comportassem de maneira preconceituosa ou racista; vi
educadores levando a sério o ato de contar histórias tradicionais; vi quem usasse as
técnicas de luta corporal indígena para desenvolver habilidades físicas nas crianças;
vi grupos de teatro escolares produzindo lindas releituras dos saberes indígenas.

Como podem perceber diferentes concepções proporcionam diferentes


abordagens. O que está em jogo nesse caso é o fato de que o sistema escolar não está
conseguindo se atualizar – apesar da tão propalada tecnologia – para lidar de forma
mais humana com os novos tempos que vivemos. Infelizmente, no entanto, acontecem
ainda muitos equívocos que diminuem todos os povos indígenas brasileiros.

Já estive em escola, por exemplo, que para me recepcionar colocou todas


as crianças cantando a música “vamos brincar de índio?”, executada pela voz
esgarniçante da rainha dos baixinhos. Apesar da beleza plástica da execução e
da boa intenção de quem montou a coreografia, não pude deixar de dar minha
opinião sobre o tema. O pior é que em uma outra instituição fui recebido com a
também famosa canção one, two, three little indians... O menos ruim, eu diria,
é ver jovens batendo na boca o sempre lembrado uh, uh, uh muito conhecido
através dos filmes norte-americanos que retratam as comunidades indígenas
daquela região do mundo. Nessas horas fico sempre me perguntando qual tem
sido o papel da escola na formação da consciência crítica de nossas crianças e
jovens. Infelizmente quase incondicionalmente percebo que o caminho para a
liberdade crítica é longo e deve estar a muitas léguas de todos nós brasileiros.
175
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

O mês de abril traz muitas possibilidades de reflexão e é bom que assim


seja. Talvez a mais importante seja rever o conceito do “índio” que está introjetado
no coração do brasileiro. As escolas e seus profissionais precisam fazer uma
leitura crítica sobre como estão lidando com este conceito e, quem sabe, passar
a tratar o tema com a dignidade que merece. Precisa começar a se dar conta que
esta palavra traz consigo um fardo muito grande e pesado, pois se trata de um
apelido aplicado aos habitantes dessa terra. Pensar que a palavra é um engano
tão grande quanto considerar que estes grupos humanos podem ser reduzidos a
ela. Não podem. 

Isso seria continuar escondendo a diversidade cultural e linguística


que o país traz em seu bojo desde a chegada dos europeus conquistadores. É
colocar debaixo do tapete a existência, hoje, de 250 povos (e não tribos, como
fomos acostumados a chamar) espalhados por todos os estados brasileiros,
falando algo em torno de 180 línguas e dialetos (não apenas o tupi, como antes
se ensinava). É também não lembrar que há mais de 50 grupos nativos que estão
sem contato com isso que chamamos desenvolvimento; grupos que teimam em
viver uma vida sem tanto aparato tecnológico por considerarem que o seu jeito
de viver lhes é suficiente.

Além do mais é importante refletir qual o papel que estas populações


ocupam no Brasil de hoje; seus principais problemas e dificuldades para manterem
seu modo ancestral de viver; quais suas demandas principais e como interagem
com o mundo moderno, global e localmente. É provável que, ao fazer uma boa
pesquisa, encontre notícias muito alvissareiras com relação às respostas que estes
grupos estão dando aos problemas que enfrentam.

Enfim, é necessário que a escola se reposicione enquanto instituição para


assumir seu papel de formadora de opinião e de capacidades tão necessárias para
banir do mundo a desigualdade, o preconceito, a banalização do outro, a visão de
superioridade nacionalista, sentimentos que mancham a história da humanidade. 

O mês de abril tem que superar, portanto, o próprio mês de abril.

Tenho certeza que agindo assim, nunca mais teremos que dizer aos nossos
jovens e crianças: “vamos brincar de índio?”.

Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Na reflexão anterior falei sobre os equívocos que cercam a palavra


índio. Fiz uma provocação e tenho certeza que muitas pessoas, especialmente
professores, ficaram com a “pulga atrás da orelha”. Se assim aconteceu, alcancei
meu objetivo. A inquietação é já um princípio de mudança. Ficar incomodado
com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude
sábia de quem se percebe parte do todo.

176
TÓPICO 3 | LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES

É sabido que esta palavra tem, às vezes, um quê de inocência em quem


a usa. Tem quem a utiliza conscientemente também. Sabe que se trata de uma
atitude política e fica mais fácil para os interlocutores entenderem do que estão
falando. Aliás, esta palavra foi devidamente utilizada pelo movimento indígena
no início dos anos 1970. Foi uma forma de mostrar consciência étnica. Antes
disso não havia uma consciência pan-indígena por parte dos povos nativos. Eram
grupos isolados em suas demandas políticas e sociais. Cada grupo lutava por
suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram
a encontrar os outros grupos durante as famosas  assembleias indígenas  –
patrocinadas pela Igreja católica, através do recém-criado Conselho Indigenista
Missionário – CIMI – é que as lideranças passaram a ter clareza de que se tratavam
de problemas comuns a todos os grupos. A partir disso o termo índio passou a ter
uma ressignificação política interessante. Notem, no entanto, que foi um termo
usado na relação política com o estado brasileiro. Cada grupo continuou a se
chamar pela própria denominação tradicional. Isso não significou abrir mão do
jeito próprio de se chamar. Quando muito, chamavam para os outros grupos ou
pessoas indígenas utilizando o termo parente.

Aqui caberia outra reflexão que deverá vir brevemente. No entanto, devo
deixar claro que o termo parente é usado pelos indígenas para todos os seres (vivos
ou não-vivos). Chamar alguém de parente é colocá-lo numa rede de relações que
se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua
portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções
(par+ente) que denota um envolvimento que permite compreendermos que dois
ou mais seres se juntam numa rede consanguínea. Do ponto de vista indígena
isso vai além da consanguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca
todos os seres (entes) numa teia de relações. Somente neste contexto é possível
compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto,
assunto para outra conversa.

Até aqui tenho usado outra palavra para referir-me aos povos ancestrais.
Ora eu uso nativo, ora indígena. Qual seria a certa? Ambas estão corretas para
referir-se a uma pessoa pertencente ao um povo ancestral. Por incrível que
possa parecer não há relação direta entre as palavras índio e indígena, embora
o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta uma olhadela num
bom dicionário que logo se perceberá que há variações em uma e noutra palavra.
No duro mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão
o que seria o termo  índio. Quando muito dizem que é como foram chamados
os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição é um
apelido e apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter
alguma deficiência que achamos que não temos. Por este caminho veremos que
não há conceitos relativo ao termo índio, apenas preconceito: selvagem, atrasado,
preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles. E foram estas visões
equivocadas que chegaram aos nossos dias com a força da palavra.

177
UNIDADE 2 | RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA

Por outro lado, o termo indígena significa “aquele que pertence ao


lugar”, “originário”, “original do lugar”. Se pode notar, assim, que é muito mais
interessante reportar-se a alguém que vem de um povo ancestral pelo termo
indígena que índio. Neste sentido eu sou um indígena Munduruku e com isso
quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica com todo o lado
positivo e o negativo que essa tradição carrega e deixar claro que a generalização
é uma forma grotesca de chamar alguém, pois empobrece a experiência de
humanidade que o grupo fez e faz. É desqualificar o modus vivendis dos povos
indígenas e isso não é justo e saudável.

Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os


povos indígenas é tribo. É comum as pessoas me abordarem com a pergunta:
qual é sua tribo? Normalmente fico sem jeito e acabo respondendo da maneira
tradicional sem muita explicação. Sei que é um conceito entrevado na mente das
pessoas e que só vai sair mediante muita explicação por muito tempo.

Afinal, o que tem de errado com a palavra? A antiga ideia de que nossos povos
são dependentes de um Povo maior. A palavra tribo está inserida na compreensão de
que somos pequenos grupos incapazes de viver sem a intervenção do estado. Ser tribo
é estar sob o domínio de um senhor ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é
a lógica colonial, a lógica do poder, a lógica da dominação. É, portanto, um tratamento
jocoso para tão gloriosos povos que deveriam ser tratados com  status  de nações
uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do estado
brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que ao menos
fossem tratados com garbo.

Se não pode chamá-los de tribo, como chamá-los? Povo. É assim que se


deveria tratá-los. Um povo tem como característica sua independência política,
religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e ainda
que estejamos vivendo “à beira do abismo” trazido pelo contato, podemos afirmar
com convicção que somos povos íntegros em sua composição e queremos estar a
serviço do Brasil.

Uma última palavra: são os “índios”, brasileiros? Que tal desentortar


o pensamento e inverter a pergunta: serão os brasileiros, “índios”? Será que a
ordem dos fatores irá alterar o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é
que há um abismo entre o ser e o não-ser ou entre o não-ser e o ser. Nesse duelo,
os indígenas têm levado a pior.

FONTE: <http://danielmunduruku.blogspot.com/p/cronicas-e-opinioes.html>. Acesso em: 11 out. 2019.

178
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A África é um continente multicultural que possui, em sua literatura, vários


autores e obras que tematizam essa diversidade.

• A literatura indianista e a literatura indígena são distintas, sendo que esta


última é composta de forma multimodal.

• A literatura de imigrantes é aquela que dá voz a sujeitos até então marginalizados.

CHAMADA

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem


pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

179
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2014)

TEXTO 1:

TEXTO 2:

A própria produção literária atual encaminha-se na direção de uma fusão


com vários segmentos culturais, de que a chamada cultura de massa,
tradicionalmente discutida em sua diferença negativa, constitui tão somente
um dos aspectos de negociação em bases renovadas. A defesa exclusiva da
literatura clássica e da herança nacional, um casamento expresso e legitimado
pela construção e manutenção de repertórios recheados de um saber cultural
canônico, no entanto, parece tão problemática quanto a sua rejeição global.
Hoje circulam e prevalecem formas culturais mistas, e até os textos canônicos
são relidos como pontos de cruzamento de discursos amplos, que transcendem
as fronteiras tradicionais da esfera do literário e do horizonte de pertencimento
a espaços nacionais linguística e geograficamente circunscritos.

FONTE: Adaptado de OLINTO, H. K. Literatura/cultura/ficções reais. In: OLINTO, H. K.;


SCHØLLHAMMER, K. E. Literatura e Cultura. Rio de Janeiro: EPUC, 2008, p. 75.

Considerando-se a imagem e a citação, pode-se afirmar que a relação entre


manifestações literárias contemporâneas e cultura:

a) ( ) Reelabora os valores culturais. Assim, a diversidade é transformada em


unidade, à semelhança do que se observa na imagem.
b) ( ) Apresenta começo e fim determinados. Assim, a imagem aponta
diversidades culturais que existiram por um período preestabelecido.

180
c) ( ) Desenvolve a diversidade cultural, à semelhança do que aponta a imagem,
mas não transcende os valores canônicos tradicionais da esfera do literário.
d) ( ) Estabelece a fusão entre diversos valores culturais. Os elementos
apresentados na imagem são mais ou menos destacados, dependendo
da literatura em que são referenciados.
e) ( ) Torna a literatura contemporânea um modismo a partir dos cânones
exclusivos das literaturas clássicas. Assim, contrapõe-se à imagem que
aponta para diversos elementos culturais não canônicos.

FONTE: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2014/30_letras_
portugues_licenciatura.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2020.

2 Leia o poema a seguir e faça o que se pede.

Subpoesia

Subsarianos somos
sujeitos subentendidos
subespécies do submundo
subalimentados somos
surtos de subepidemias
sumariamente submortos
do subdólar somos
subdesenvolvidos assuntos
de um sul subserviente.

(José Luís Mendonça, Quero acordar a alva, 1997)

Com base nos estudos realizados acerca da crítica pós-colonial, faça uma
análise crítica do poema Subpoesia, do poeta angolano José Luís de Mendonça.

181
182
UNIDADE 3

LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE


NA CONTEMPORANEIDADE
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir dos estudos desta unidade, você deverá ser capaz de:

• analisar a importância da leitura no processo de formação e construção da


identidade;

• conhecer a história da leitura e dos diversos suportes de acomodação da


escrita ao longo do tempo;

• avaliar como a era digital tem incorporado novos hábitos às práticas


cotidianas dos indivíduos;

• reconhecer o papel da escola na formação de leitores da era digital;

• debater os conceitos de ciberliteratura, cultura digital e letramento digital;

• diferenciar autores da literatura brasileira contemporânea e respectivas obras.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

TÓPICO 2 – LITERATURA NA ERA DIGITAL

TÓPICO 3 – LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES, ESPAÇOS


E SUPORTES

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

183
184
UNIDADE 3
TÓPICO 1

LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

1 INTRODUÇÃO
Nas unidades anteriores, vimos que a literatura contribui no processo de
formação do sujeito à medida que o instiga a pensar criticamente a expor opiniões,
a realizar comparações entre o que foi lido e a realidade vivida, ou seja, por meio
dos textos literários é possível ampliar a capacidade de análise e reflexão, fazendo
emergir novos posicionamentos frente às questões sociais.

Essa transformação – que acontece por meio de um processo ativo de


interação, compreensão e interpretação do texto – só é possível quando esse sujeito
é capaz de atribuir sentido ao que leu, isto é, quando ele é capaz de reconstruir
seus pensamentos tendo em vista suas experiências pessoais (VYGOTSKY, 1999;
BAKHTIN, 2014).

Assim, a atribuição de significado àquilo que foi lido pressupõe um


movimento no qual o leitor confronta as informações contidas no texto,
percorrendo as marcas de autoria, faz associações com os conhecimentos
previamente adquiridos e constrói sentidos por meio de uma interação ativa com
o texto e respectivo autor.

A formação de leitores com essa competência é, sem dúvida, um desafio


aos educadores que trabalham diretamente com as obras literárias. Tal desafio
torna-se mais instigante na contemporaneidade, quando os suportes de escrita e
as formas de leitura foram diretamente influenciados pelos recursos tecnológicos
da era digital.

Assim, a proposta deste tópico intitulado Leitura, educação e cultura digital


é tecer algumas reflexões acerca da leitura no processo de constituição do sujeito,
além de abordar aspectos da literatura e letramento digital e os desafios inerentes
ao trabalho docente acerca da formação de leitores competentes no mundo
contemporâneo.

185
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

2 UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA LEITURA


Antes de adentramos no tema específico deste tópico, que é o processo
de leitura na era digital, ou seja, nesse período consolidado a partir do final
do século XX e que está intrinsecamente relacionado à otimização dos fluxos
informacionais (MOREIRA, 2018), é importante fazer uma retomada da história
da leitura ao longo do tempo, percebendo quanto ela influencia no processo de
formação do sujeito e tem significativa importância durante seu percurso de
construção da identidade.

Essa inter-relação entre leitura e constituição da identidade acontece


devido à subjetividade de cada sujeito que se faz presente no ato de ler, fazendo
com que as práticas de leitura exerçam impactos diferenciados nos sujeitos
leitores uma vez que, conforme Chartier (2003, p. 173), “[…] as modalidades do
ler são, elas próprias, múltiplas, diferentes e segundo as épocas, os lugares, os
ambientes”. Além disso, é importante considerar que as mudanças nos suportes
de acomodação da escrita também geraram mudanças nas formas de ler e na
relação dos leitores com os livros.

Na atualidade, uma das referências na área da história da leitura é Roger


Chartier, historiador francês que se especializou em história da cultura, com
destaque para a história do livro e da leitura na Europa.

E
IMPORTANT

Antes de continuar a leitura, vamos conhecer um pouco sobre Roger Chartier.

FIGURA - ROGER CHARTIER

FONTE: <https://www.fronteiras.com/conferencistas/roger-chartier>. Acesso em: 4 nov. 2019.

Francês de Lyon, é um dos mais importantes pensadores da história cultural,


especialmente da história do livro e da leitura. É professor titular da cadeira de Escrita e
Cultura da Europa Moderna no Collège de France desde 2007. Atua como professor
convidado em diversas universidades pelo mundo, incluindo a Universidade da Pensilvânia,

186
TÓPICO 1 | LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

e viaja pelo mundo ministrando palestras. É membro, entre outros, dos conselhos editoriais
da Revue de Synthèse (Paris) e da revista Mana: Estudos de Antropologia Social (Rio de
Janeiro). Diversos de seus livros estão publicados no Brasil.

FONTE: <https://grupoautentica.com.br/autentica/autor/roger-chartier/807>. Acesso em: 4


out. 2019.

“Roger Chartier faz parte da geração de intelectuais que seguem a linha historiográfica
atual com o propósito de compreender os aspectos sociais do homem no tempo pelo
viés cultural. Em suas obras, demonstra como a prática de leitura se desenvolveu dentro de
alguns períodos de tempo, sendo assim, um especialista renomado no assunto. Chartier é
um historiador preocupado com a evolução do livro, experiências de leitura e proliferação
do universo textual, temas que são relativamente novos na problemática histórica e que são
elencados porque a atualidade coloca em questão todo o universo do livro, desestabilizado
por causa do meio eletrônico. Suas obras seguem direcionadas por três segmentos
principais – representação, prática e apropriação, não é favor de uma definição puramente
semântica do texto por acreditar que a relação entre criação e consumo, entre produção e
recepção, são interdependentes. Isso significa que todo texto é produto de uma leitura, ou
seja, a construção do livro como um todo só pode existir com uma gama de interpretações
dos leitores. Além disso, considera que a leitura é uma prática que envolve gestos, espaços
e hábitos” (NASCIMENTO, 2018, p. 188-189).

Segundo Chartier (2000), a prática da leitura sofreu diversas transformações


ao longo do tempo, sendo que essas transformações – às quais Chartier
chama de revoluções – não estão necessariamente ligadas às invenções ou às
transformações da impressão. A propósito, o autor faz advertências quanto a
um posicionamento eurocêntrico que considera “a relação entre impressão,
publicação e leitura somente pelos padrões da invenção de Gutemberg, como
se ela fosse uma condição necessária para a criação de um grande conjunto
de leitores e para o desenvolvimento de uma atividade de publicação intensa”
(CHARTIER, 2000, p. 19).

NOTA

FIGURA – GUTENBERG

Antes de dar continuidade às ideias de


Roger Chartier, vamos recordar um pouco sobre
o invento de Gutenberg, a imprensa. Na imagem,
Gutenberg (à direita) manuseia um panfleto
impresso em tipos móveis.

FONTE: <http://twixar.me/xYpT>.
Acesso em: 4 nov. 2019.

187
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

A invenção da máquina de impressão em tipos móveis, mais conhecida como


imprensa, pelo alemão Johannes Gutenberg, no século XV, provocou uma enorme
revolução na modernidade: o processo de aceleração da produção de livros. Após a
invenção da imprensa, imprimir e compor livros deixaram de ser práticas manuais e
artesanais e tornaram-se uma produção em série mecanizada. Gutenberg desenvolveu o
seu invento por volta do ano de 1430. A máquina de imprensa de Gutenberg contava com
uma prancha onde eram dispostos os tipos, ou caracteres, móveis. Esses tipos móveis nada
mais eram que símbolos gráficos (letras, números, pontos etc.) moldados em chumbo.
Um só molde desses tipos, alimentado com tinta, poderia imprimir inúmeras cópias de
um mesmo texto em questão de horas. Se na elaboração manual dos livros (que eram
chamados de códex, ou códice), o tempo gasto era enorme; com a imprensa, esse tempo
foi amplamente reduzido. No início do século XVI, os efeitos provocados pela imprensa
de Gutenberg já eram perceptíveis nos principados alemães, sobretudo quando, por meio
da imprensa, houve a popularização dos panfletos críticos do reformista Martinho Lutero.
A Reforma Protestante deflagrada por Lutero em 1517 passou a ter uma grande recepção
entre a população letrada da Alemanha, em virtude da circulação das teses e dos panfletos
impressos. Posteriormente, uma contribuição ainda maior de Lutero para a história da
leitura estaria de “mãos dadas” com a imprensa de Gutenberg: a tradução da Bíblia do latim
para o alemão.

FONTE: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-moderna/invencao-imprensa.htm>.
Acesso em: 4 nov. 2019.

Ao fazer essa crítica em relação ao posicionamento eurocêntrico acerca


das práticas de leitura, Chartier (2000) não estava desmerecendo o invento
de Gutemberg, que possibilitou a reprodução de textos escritos em grandes
quantidades, transformando as condições de distribuição e acesso aos livros.
Entretanto, ele queria alertar para o fato de que “o tipo móvel foi inventado nas
civilizações asiáticas bem antes de sua descoberta no Ocidente” (CHARTIER,
2000, p. 20), ou seja, mesmo antes do invento de Gutemberg, já havia uma cultura
de impressão de grande escala em países não europeus.

Sobre as revoluções da leitura no Ocidente, Roger Chartier pontua que


a primeira delas está relacionada à mudança da prática de leitura, até então
necessariamente oral – indispensável para a compreensão do significado – para
uma leitura silenciosa. Para nós, hoje, habituados com a prática da leitura silenciosa,
causa estranhamento pensar que em seus primórdios a leitura só se concretizava se
fosse feita em voz alta. Entretanto, a leitura silenciosa só teve início na Idade Média,
quando os monges copistas necessitavam de um ambiente livre de ruídos para
fazerem as réplicas dos manuscritos. De acordo com Chartier (2000, p. 24), “[...] foi
durante a Idade Média que a habilidade de ler em silêncio foi conquistada pelos
leitores ocidentais. Restrita, a princípio, aos escribas monásticos, tal capacidade
chegou às universidades durante os séculos XII e XIII e tornou-se prática comum
entre cortesãos e aristocratas laicos a partir do século XIV”.

188
TÓPICO 1 | LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

Para Chartier, a possibilidade de ler silenciosamente foi um marco


de importância capital na história da leitura que alterou profundamente o
relacionamento das pessoas com o texto:

[…] A leitura silenciosa permitiu um relacionamento com a escrita que


era potencialmente mais livre, mais íntimo, mais reservado. Permitiu
uma leitura rápida, especializada, capaz de lidar com as complexas
relações estabelecidas na página do manuscrito entre o discurso e suas
interpretações, referências, comentários, índices. A leitura silenciosa
criou a possibilidade de ler mais rapidamente e, portanto, de ler mais
e de ler textos mais complexos (CHARTIER, 2000, p. 24).

Alberto Manguel, em seu livro História da Escrita, também tece algumas


considerações acerca da importância desse evento na vida do sujeito leitor:

Mas, com a leitura silenciosa, o leitor podia ao menos estabelecer


uma relação sem restrições com o livro e as palavras. As palavras não
precisavam mais ocupar o tempo exigido para pronunciá-las. Podiam
existir em um espaço interior, passando rapidamente ou apenas se
insinuando plenamente decifradas ou ditas pela metade, enquanto os
pensamentos do leitor as inspecionavam à vontade, retirando novas
noções delas, permitindo comparações de memória com outros livros
deixados abertos para consulta simultânea. O leitor tinha tempo
para considerar e reconsiderar as preciosas palavras cujos sons – ele
sabia agora – podiam ecoar tanto dentro como fora. E o próprio texto,
protegido de estranhos por suas capas, tornava-se posse do Leitor,
conhecimento íntimo do leitor, fosse na azáfama do scriptorium, no
mercado ou em casa (MANGUEL, 2004, p. 44).

A segunda revolução da leitura, conforme Chartier (2000), ocorreu


no século XVIII na Alemanha, Inglaterra, França e Suíça. Foi durante a era da
impressão, porém antes da industrialização da produção do livro, devido às
seguintes circunstâncias:

Crescimento na produção do livro, que triplicou ou quadriplicou


entre o início do século e os anos 80, a multiplicação e transformação
dos jornais, o triunfo dos livros de pequeno formato e a proliferação
de instituições (sociedades de leitura, clubes do livro, bibliotecas de
empréstimos), que tornaram possível ler livros e periódicos sem ter
que comprá-los (CHARTIER, 2000, p. 24).

Tais mudanças fizeram surgir um novo tipo de leitor que passou a


consumir obras em maior quantidade e variedade, ao contrário dos leitores
tradicionais que, por terem acesso a um número reduzido de obras, liam, reliam,
memorizavam e transmitiam seu conteúdo de uma geração a outra. A partir de
então, “uma relação comunal e respeitosa com a matéria escrita, feita de reverência
e obediência, deu lugar a um tipo de leitura mais irreverente e desprendida”
(CHARTIER, 2000, p. 25).

189
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Neste contexto, o surgimento do romantismo literário e a disseminação


do livro em feiras públicas fez com que a prática de leitura se popularizasse,
impactando, inclusive, nas relações sociais. Exemplo disso é o fato de que a
leitura de panfletos políticos e escritos filosóficos contribuiu, sobremaneira, para
a mobilização burguesa que culminou na Revolução Francesa em 1789.

Uma nova mudança na história da leitura se impõe no século XIX,


com o surgimento de novas categorias de leitores como mulheres, crianças
e trabalhadores. Além disso, a alfabetização quase universal disseminada
nas regiões mais desenvolvidas da Europa também contribuiu para ampliar
o universo de leitores. Conforme Chartier (2000, p. 26), muito embora “[...] as
disciplinas educacionais, impostas em todo lugar, tenderam a definir uma
norma única, controlada e codificada de leitura legítima”, havia uma “extrema
diversidade de práticas em várias comunidades de leitores, tanto aqueles já bem
familiarizados com a cultura escrita quanto os que tomaram contato recente com
ela” (CHARTIER, 2000, p. 26).

Assim, se até então existiram modelos de relação com a escrita que se


sucederam a partir da Idade Média, após o século XIX passou a existir, de forma
simultânea, uma ampla diversificação de práticas de leitura. De acordo com
Chartier (2000, p. 26), “com o século XIX a história da leitura entra na era da
sociologia das diferenças”.

Uma nova revolução na história da leitura surge em nossa época, com a


transmissão eletrônica de textos. Segundo Chartier (2000, p. 28),

[…] tal mudança no suporte físico da escrita força o leitor a ter novas
atitudes e aprender novas práticas intelectuais. A passagem dos textos
do livro impresso para a tela do computador é uma mudança tão
grande quanto a passagem do rolo para o códex durante os primeiros
séculos da Era cristã. Isso desafia a ordem dos livros familiares aos
leitores e dita novos caminhos de leitura que superam as limitações
tradicionais impostas pelos objetos impressos.

Para esse autor, o mundo dos textos eletrônicos afetou as formas de


produção, preservação e distribuição dos livros, já que tornou possível atribuir, a
um único indivíduo, as tarefas até então distintas de escrever, publicar e distribuir.
Além disso, essa nova relação com os textos retira a limitação até então existente
entre o sujeito leitor e a obra:

Não apenas os leitores podem submeter o texto a uma série de


operações (podem indexá-lo, mudá-lo de um lugar para outro,
decompô-lo e recompô-lo), mas podem também tornar-se coautores.
A distinção entre ler e escrever, entre o autor do texto e o leitor do
livro, que é imediatamente discernível na cultura impressa, dá lugar
agora a uma nova realidade: o leitor torna-se um dos possíveis autores
de um texto multiautoral ou, no mínimo, o criador de novos textos
compostos por fragmentos deslocados de outros textos (CHARTIER,
2000, p. 27-28).

190
TÓPICO 1 | LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

Ademais, Chartier também reflete sobre como a textualidade eletrônica


pode tornar possível a realização do sonho de uma biblioteca universal, que
poderá viabilizar o acesso ao patrimônio completo da escrita. Por conseguinte,
“o texto em sua representação eletrônica, dissociado da materialidade e da
localização convencionais, pode (em teoria) alcançar qualquer leitor em qualquer
lugar” (CHARTIER, 2000, p. 29).

Para além do fato de a textualidade eletrônica possuir uma significação


unívoca, Chartier supõe que durante um longo tempo as três formas de cultura
escrita – manuscrita, impressa e comunicação eletrônica – coexistirão e cada
leitor terá suas preferências conforme os gêneros e usos. Entretanto, ele chama
a atenção para o fato de que “somente preservando o entendimento da cultura
impressa poderemos saborear completamente a felicidade extravagante prometida
pelas inovações tecnológicas” (CHARTIER, 2000, p. 31).

Como você pôde perceber, a prática de leitura vem se transformando ao


longo da história, impactando as relações sociais bem como as subjetividades
do sujeito. A relação que temos hoje com a leitura está intimamente associada
às construções de hábitos sociais que vêm desde a Idade Média, passando pelos
manuscritos, pelos textos impressos e, finalmente, pelos textos eletrônicos, que
modificaram não somente as técnicas de reprodução do texto como também as
próprias estruturas e suportes, conforme veremos nos tópicos seguintes.

Além de Roger Chartier, outros importantes estudiosos têm se debruçado


sobre a história da produção do conhecimento, refletindo sobre seus impactos na
contemporaneidade. Peter Burke, por exemplo, historiador inglês especializado
em história cultural, apresenta importantes indagações sobre os modos de criação
do saber, especialmente no Ocidente, a partir da segunda metade do século XVIII
até os dias atuais. Para ele, é importante que a história social se preocupe com as
maneiras como os diferentes grupos adquirem, processam, difundem e utilizam
o conhecimento (BURKE, 2012). Em meio às discussões atuais acerca da chamada
sociedade do conhecimento, ele afirma que “[...] a informação, exata e inexata,
tem se disseminado a uma velocidade crescente. Os entusiastas podem dizer que
o conhecimento se difundiu mais amplamente, enquanto os críticos diriam que
ele se difundiu de modo demasiado superficial” (BURKE, 2012, p. 149).

Complementando esse pensamento de Burke é importante analisar as


ponderações do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) acerca do momento
histórico atual em que vivemos, designado por ele como modernidade líquida:

“Fluidez” é a qualidade de líquidos e gases [...]. Os fluidos se movem


facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”, “respingam”,
“transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”;
são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não são
facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e
invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos emergem

191
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos,


são alterados – ficam molhados ou encharcados. [...] Essas são razões
para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas
quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas
maneiras, na história da modernidade (BAUMAN, 2001, p. 7-8).

Contrapondo-se à fase da modernidade líquida, o autor apresenta o


conceito de modernidade sólida, período que antecede essa fase e que está
associado à ideia de comunidade e laços de identificação entre as pessoas, que
traduziam sensações de perenidade e segurança. A era sólida foi caracterizada
pela previsibilidade, pelas transformações lentas e pela sensação de controle
sobre o mundo e as relações sociais. Entretanto, fatores como a instabilidade
econômica mundial, a disseminação das novas tecnologias e o processo de
globalização contribuíram para a não adequação a esses novos padrões, fazendo
com que as instituições, as ideias e as relações estabelecidas entre as pessoas se
transformassem de maneira rápida e imprevisível (BAUMAN, 2001).

Todas essas mudanças sociais influenciaram diretamente com que as


pessoas se relacionam com o outro e com o mundo. Vejamos, nos próximos
tópicos, a influência disso nas relações sociais e educativas.

2.1 CULTURA, LEITURA E LETRAMENTO DIGITAL


O século XX destacou-se pela inserção das tecnologias da informação e
comunicação em diferentes setores sociais, potencializando, especialmente, as
formas de comunicação. O uso dessas tecnologias, que se intensificou no século
atual, fez surgir o conceito de cultura digital que, como o próprio nome indica,
trata-se da cultura da era digital, originária do ciberespaço e da linguagem da
internet e que integra a realidade com o mundo virtual (GAROFALO, 2018).

NOTA

Em 1998, Gilberto Gil lançava a música Pela Internet, na qual ele fazia uma
espécie de apologia à internet, utilizando termos que até então pouco conhecidos, mas
que foram se popularizando como websites, homepage, gigabytes e outros. Vinte anos
depois Gilberto Gil apresentou nova versão da música, refletindo sobre os impactos que a
internet vem causando na vida das pessoas. Confira!

192
TÓPICO 1 | LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

Pela Internet (1998) Pela Internet (2018)


Criar meu web site Criei meu website
Fazer minha homepage Lancei minha homepage
Com quantos gigabytes Com 5 gigabytes
Se faz uma jangada um barco que veleje Já dava pra fazer um barco que veleje
Criar meu web sit Meu novo website
Fazer minha homepage Minha nova fanpage
Com quantos gigabytes Agora é terabyte
Se faz uma jangada um barco que veleje Que não acaba mais por mais que se deseje
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré Que o desejo agora é garimpar
Que leve um oriki do meu velho orixá Nas terras das serras peladas virtuais
Ao porto de um disquete de um micro em As criptomoedas, bitcoins e tais
Taipé Novas economias, novos capitais
Um barco que veleje nesse infomar Se é música o desejo a se considerar
Que aproveite a vazante da infomaré É só clicar que a loja digital já tem
Que leve meu e-mail até Calcutá Anitta, Arnaldo Antunes, eu não sei mais quem
Depois de um hot-link Meu bem, o itunes tem
Num site de Helsinque, para abastecer De A a Z quem você possa imaginar
Eu quero entrar na rede
Promover um debate Estou preso na rede
Juntar via Internet Que nem peixe pescado
Um grupo de tietes de Connecticut É zap-zap, é like
Eu quero entrar na rede É Instagram, é tudo muito bem bolado
Promover um debate O pensamento é nuvem
Juntar via Internet O movimento é drone
Um grupo de tietes de Connecticut O monge no convento
De Connecticut acessar Aguarda o advento de Deus pelo iphone
O chefe da Macmilícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar Cada dia nova invenção
Um vírus pra atacar programas no Japão É tanto aplicativo que eu não sei mais não
Eu quero entrar na rede pra contactar Whatsapp, what's down, what's new
Os lares do Nepal, os bares do Gabão Mil pratos sugestivos num novo menu
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo É Facebook, é Facetime, é Google Maps
celular Um zigue-zague diferente, um beco, um Cep
Que lá na Praça Onze tem um videopôquer Que não consta na lista do velho correio
para se jogar De qualquer lugar
Jogar Waze é um nome feio, mas é o melhor meio
Jogar, jogar, jogar De você chegar, chegar.
Jogar
Eu quero entrar na rede FONTE: <http://twixar.me/XVpT>. Acesso em:
Promover um debate 5 nov. 2019.
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
De Connecticut acessar
O chefe da Macmilícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar
Um vírus pra atacar programas no Japão
Eu quero entrar na rede pra contactar
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo
celular
E lá na Praça Onze tem um videopôquer para
se jogar, jogar, jogar

FONTE: <http://twixar.me/5VpT>. Acesso em:


5 nov. 2019.

193
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Você deve ter notado, nas letras das duas músicas, a grande quantidade de
termos pertencentes à linguagem da internet que eram impensáveis há algumas
décadas. As transformações ocasionadas pela era digital não se restringem à linguagem
e ao setor da comunicação, chegando a ser difícil apreender todas as transformações
por ela ocasionadas. Conforme lembrado por Bortolazzo (2016, p. 10),

[...] computadores com acesso à internet se transformaram em


ferramentas indispensáveis a inúmeras atividades do cotidiano
– pagamento de contas, transferências bancárias, comunicações
instantâneas, compras, entretenimento e lazer, informação, estudo.
Nos supermercados, nos bancos, nos shoppings, nos elevadores, nos
escritórios, nas escolas, nas universidades, nas estradas e, muitas
vezes, nas ruas, somos monitorados digitalmente. Grande parte dos
meios pelos quais os governos e outras instituições e organizações
atuam, controlam, fiscalizam e punem contam e se apoiam também
nas tecnologias digitais.

Para corroborar as palavras de Bortolazzo, basta que você olhe a sua volta
e certifique-se de quantos artefatos digitais se encontram ao seu dispor nesse
momento. As relações mantidas com esses artefatos são elementos significativos
que configuram novos padrões de comportamentos sociais na contemporaneidade.
A propósito, o Ensino a Distância, modalidade de curso escolhida por você, só foi
possível devido a essa série de invenções tecnológicas que permite sua conexão
às redes de informações.

Retomando o conceito de cultura apresentado na unidade anterior,


que associava esse termo aos padrões de comportamentos criados pelos seres
humanos em determinada época e local, é possível afirmar que a cultura digital
incorpora novos hábitos às práticas cotidianas, gerados pelo uso dos recursos
tecnológicos. Veja, a seguir, a forma como Bortolazzo (2016) sistematiza o
conceito de cultura digital:

Cultura Digital

“A Cultura Digital envolveria, assim, a existência de interatividade,


interconexão e inter-relação entre homens, informações e máquinas. A
comunicação dominada pelas tecnologias digitais tornou possível a emergência
da expressão Cultura Digital porque se trata de algo que nos envolve como
a atmosfera, algo no qual participamos como produtores, consumidores,
disseminadores e que, por isso, tem integrado a vida cotidiana, invadido as
casas e interferido nas relações que estabelecemos com o mundo, tanto material
quanto simbólico, que nos rodeia. A Cultura Digital poderia ser pensada
como a própria representação de uma fase contemporânea das tecnologias de
comunicação, que segue a cultura impressa do século XIX e a cultura eletrônica
do final do século XX. Ao pensar em Cultura Digital, se reflete sobre uma forma
de produção, sobre os caminhos nos quais o digital tem sido filiado a certos

194
TÓPICO 1 | LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

significados culturais. Quer dizer, para que se possa pensar sobre o conjunto
de práticas que envolvem os sujeitos e as tecnologias digitais, é preciso dar a
elas significados […]. Deste modo, as Novas Tecnologias de Comunicação e
Informação não só incitam as formas pelas quais enxergamos e experimentamos
o mundo, mas produzem e são os próprios produtos da sociedade em que
vivemos” (BORTOLAZZO, 2016, p. 12).

A tecnologia digital, portanto, possui relevada importância na sociedade


contemporânea, estando imiscuída no cotidiano das pessoas ao proporcionar-lhes
outras formas de compreender e de se relacionar com o mundo. Nessa ambiência,
obviamente também mudou a forma do sujeito relacionar-se com a leitura, que
possui novas facetas na era digital. A leitura digital pode ser definida como sendo
aquela realizada em suportes tecnológicos diferenciados, com o auxílio da internet.
De maneira distinta da leitura tradicional, que acontece de forma individual e
é processada em suportes impressos, a leitura digital permite a interação com
outros textos e outros leitores, mesmo que esses estejam fisicamente distantes.
Nas palavras de Oliveira (2013, p. 25-26, grifos nossos),

[…] neste tipo de leitura não existe o contato físico com o papel. Os
livros ou textos são digitalizados ou já nascem em meio digital e são
disponibilizados de diversas maneiras, mas principalmente através da
internet, o que possibilita que mais de um leitor o acesse, estando em
qualquer lugar do planeta e a qualquer hora do dia, socializando a
informação. Para essa nova forma de leitura, são necessários mais requisitos
do que para a leitura convencional.

Os requisitos mencionados por Oliveira (2013) estão relacionados ao


letramento digital, que se refere à aquisição das habilidades necessárias para a
realização de atividades usando o meio digital. Veja, a seguir, o conceito de letramento
digital apresentado por Ana Elisa Ribeiro e Carla Viana Coscarelli no Glossário Ceale,
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais:

Letramento Digital

Letramento digital diz respeito às práticas sociais de leitura e produção de


textos em ambientes digitais, isto é, ao uso de textos em ambientes propiciados
pelo computador ou por dispositivos móveis, tais como celulares e tablets,
em plataformas como e-mails, redes sociais na web, entre outras. Ser letrado
digital implica saber se comunicar em diferentes situações, com propósitos
variados, nesses ambientes, para fins pessoais ou profissionais. Uma situação
seria a troca eletrônica de mensagens, via e-mail, sms, WhatsApp. A busca de
informações na internet também implica saber encontrar textos e compreendê-
los, o que pressupõe selecionar as informações pertinentes e avaliar sua
credibilidade. Um dos aspectos do letramento amplificado pelos ambientes
digitais é o acesso à informação. A internet é um espaço no qual todas as

195
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

pessoas conectadas podem postar conteúdos – em blogs, sites ou nas redes


sociais. Sendo assim, há muita informação disponível, e cabe ao leitor estar mais
atento do que nunca à autoria, à fonte da informação, além de ter senso crítico
para avaliar o que encontra. Outro aspecto saliente em ambientes digitais é a
multimodalidade, ou seja, as informações são apresentadas usando não apenas
elementos linguísticos como palavras, frases, mas também animações, vídeos,
sons, cores, ícones. Saber ler e produzir textos explorando essas linguagens
faz parte das competências dos digitalmente letrados, com exigências sociais
e motivações pessoais cada vez mais precoces. É difícil estabelecer um
parâmetro único para avaliar o letramento digital. Há inúmeras habilidades
que deveriam ser, se não dominadas, pelo menos familiares aos letrados
digitais, mas cada contexto pode demandar diferentes usos do computador. É
importante, no entanto, que os indivíduos tenham desenvolvido habilidades
básicas que lhes permitam aprimorar outras, sempre que isso for necessário.
O acesso aos ambientes digitais e às suas práticas não é uniforme em todos os
lugares, para todas as pessoas. Há diversos níveis de inserção de indivíduos e
comunidades, já que tudo depende de um intricado complexo de políticas de
infraestrutura, com altos investimentos, políticas de educação, informação e
cultura, além do consumo de dispositivos de variados preços, conforme o poder
aquisitivo das pessoas. A exclusão digital é um tema amplamente discutido
por pesquisadores, especialmente em países como o Brasil, com desigualdade
na distribuição de renda e no acesso à educação. No âmbito da educação, as
questões referentes ao letramento digital vêm sendo discutidas, inclusive na
tentativa de se pesquisarem e testarem práticas que ajudem na formação das
pessoas e em seu melhor aproveitamento das tecnologias digitais. Políticas de
acesso às redes e aos dispositivos são ensaiadas, assim como existem focos de
formação continuada de professores para essas questões.
FONTE: <http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/letramento-
digital>. Acesso em: 5 nov. 2019.

Tendo como base o conceito apresentado, é possível perceber que o


letramento digital – premissa para a inserção do sujeito nas práticas sociais –
é uma necessidade da era atual diretamente relacionada ao contexto escolar,
uma vez que é papel da escola promover a imersão cultural dos sujeitos nas
práticas sociais de maneira segura, crítica e autônoma (MURTA, 2016), conforme
apresentado no próximo subtópico.

196
TÓPICO 1 | LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

3 A ESCOLA NA ERA DIGITAL


A era digital apresenta novas exigências educacionais impostas pelo ritmo
frenético com que as informações são produzidas, distribuídas e, em grande
parte, abandonadas (LECLERC, 2015). A grande variedade de informações
disponibilizadas na era digital constitui “um mosaico de dados que, na maioria
das vezes, não produz formação e sim, perplexidade e desorientação” (LECLERC,
2015, p. 359). Nesse contexto, é urgente que a escola promova a cidadania digital,
que pressupõe o “uso responsável e apropriado da tecnologia” (RIBBLE, 2009
apud FURIA, 2013, p. 1).

Entretanto, de acordo com Murta (2016), a escola, ao promover a inclusão


digital, não deve visar somente os alunos, já que em muitos casos quem precisa
ser alfabetizado digitalmente é o próprio docente que, diferentemente da
maioria dos alunos, considerados nativos digitais, enquadra-se na categoria de
imigrante digital.

De acordo com Prensky (2001), os nativos digitais são aqueles que


cresceram inseridos e cercados pelas tecnologias de informação e comunicação,
especialmente as digitais, enquanto que os imigrantes digitais tiveram um acesso
tardio a essas tecnologias, devendo passar por um processo de adaptação cujo
engajamento dependerá do próprio interesse e da disponibilidade em aprender.

Veja, a seguir, um trecho do artigo escrito por Marc Prensky em 2001, no


qual ele apresenta algumas diferenças de comportamento entre os nativos e os
imigrantes digitais.

NTE
INTERESSA

Nativos digitais, imigrantes digitais

[…] É importante fazer esta distinção: como os Imigrantes Digitais aprendem – como todos
imigrantes, alguns mais do que os outros – a adaptar-se ao ambiente, eles sempre mantêm,
em certo grau, seu “sotaque”, que é, seu pé no passado. O “sotaque do imigrante digital”
pode ser percebido de diversos modos, como o acesso à internet para a obtenção de
informações, ou a leitura de uma manual para um programa ao invés de assumir que o
programa nos ensinará como utilizá-lo. Atualmente, os mais velhos foram “socializados”
de forma diferente das suas crianças, e estão em um processo de aprendizagem de uma
nova linguagem. E uma língua aprendida posteriormente na vida, os cientistas nos dizem,
vai para uma parte diferente do cérebro. Há centenas de exemplos de sotaque de imigrante
digital. Entre eles estão a impressão de seu e-mail (ou pedir a secretária que o imprima para
você – um sotaque ainda “mais marcante”); a necessidade de se imprimir um documento
escrito do computador para editá-lo (ao invés de editá-lo na tela; e trazer as pessoas
pessoalmente ao seu escritório para ver um web site interessante (ao invés de enviar a eles
a URL). Tenho certeza de que você consegue pensar em um ou dois exemplos sem muito

197
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

esforço. Meu exemplo favorito é “Você recebeu meu e-mail” pelo telefone. Aqueles de nós
que são Imigrantes Digitais podem, e devem, rir de nós mesmos e de nosso “sotaque”.
Mas esta não é apenas uma piada. É muito sério, porque o único e maior problema que
a educação enfrenta hoje é que os nossos instrutores Imigrantes Digitais, que usam uma
linguagem ultrapassada (da era pré-digital), estão lutando para ensinar uma população
que fala uma linguagem totalmente nova. Isto é óbvio aos Nativos Digitais – as escolas
frequentemente sentem como se nós tivéssemos criado uma população de sotaque forte,
estrangeiros incompreensíveis para ensiná-los. Eles geralmente não podem entender o que
os Imigrantes estão dizendo. O que “discar” um número significa mesmo? Para que esta
perspectiva não pareça radical, muito menos apenas descritiva, deixe-me elucidar alguns
pontos. Os Nativos Digitais estão acostumados a receber informações muito rapidamente.
Eles gostam de processar mais de uma coisa por vez e realizar múltiplas tarefas. Eles
preferem os seus gráficos antes do texto ao invés do oposto. Eles preferem acesso aleatório
(como hipertexto). Eles trabalham melhor quando ligados a uma rede de contatos. Eles têm
sucesso com gratificações instantâneas e recompensas frequentes. Eles preferem jogos
a trabalham “sério”. (Isto lhe parece familiar?) Mas os Imigrantes Digitais tipicamente têm
pouca apreciação por estas novas habilidades que os Nativos adquiriram e aperfeiçoaram
através de anos de interação e prática. Estas habilidades são quase totalmente estrangeiras
aos Imigrantes, que aprenderam – e escolhem ensinar – vagarosamente, passo-a-passo,
uma coisa de cada vez, individualmente, e acima de tudo, seriamente […].

FONTE: <http://www.colegiongeracao.com.br/novageracao/2_intencoes/nativos.pdf>. Acesso


em: 7 nov. 2019.

Considerando que o texto foi escrito há quase 20 anos, você acha que ele ainda pode
ser considerado atual? Escreva aqui suas impressões:

Essa divisão estabelecida por Prensky (2001) foi alvo de muitas críticas,
especialmente devido ao emprego do termo nativo digital, que sugere que os jovens
têm uma competência inata para utilizar os recurso digitais. Entretanto, conforme
lembrado por Coelho, Costa e Mattar Neto (2018), essa oposição foi importante
pois permitiu estabelecer uma reflexão acerca das diferenças comportamentais e
culturais entre gerações. Ademais, “se existem diferenças que distinguem um nativo
digital de um imigrante digital, dando-lhes identidade, também há similitudes que
possibilitam que essas duas noções sejam compreendidas em um contexto de ação
e atuação no mundo” (COELHO; COSTA; MATTAR NETO, 2018, p. 1087).

Cabe ressaltar que, posteriormente, ao repensar essa divisão, Prensky


(2012) propôs o conceito de sabedoria digital (digital wisdom), indicando que não
basta saber utilizar as tecnologias; faz-se necessário ter competência para avaliá-
las criticamente e utilizá-las da forma adequada. Além disso, Coelho, Costa e
Mattar Neto (2018, p. 1088) ponderam que “[…] embora reúna uma gama de
conhecimentos e habilidades próprios do eixo do inteligível […], o saber digital
não está fora do eixo do sensível […] porque, ao explorar a cultura digital, o
indivíduo se envolve sensivelmente com os conhecimentos que adquire”.

198
TÓPICO 1 | LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL

Nesse sentido, docentes e discentes não devem ser vistos de lados


opostos, pois ambos têm muito o que aprender e ensinar no universo digital.
Nesse contexto, cabe à escola estimular a reflexão e a análise, contribuindo para o
pensar e o fazer crítico em relação aos conteúdos que são diariamente produzidos
e consumidos por meio da internet.

Também é importante lembrar que o conhecimento envolve a aprendizagem


de conteúdos, mas também a aquisição de habilidades necessárias para a vida em
sociedade, sendo algumas delas próprias da era digital. Veja, a seguir, algumas
dessas habilidades que foram elencadas por Tony Bates (2017, p. 54-56):

Habilidades necessárias na era digital

a) Habilidades de comunicação: precisamos incluir habilidades de


comunicação em mídias sociais, assim como as habilidades de comunicação
tradicionais de ler, falar e escrever de forma coerente e clara, que podem
incluir a capacidade de criar um pequeno vídeo no YouTube para capturar a
demonstração de um processo ou fazer um discurso de vendas, a capacidade
de alcançar uma grande comunidade de pessoas por meio da internet com
suas ideias, receber e incorporar feedback, compartilhar informações de
forma adequada e identificar tendências e ideias de outros.
b) Capacidade de aprender de forma independente: isso significa assumir a
responsabilidade de planejar o que você precisa saber e onde encontrar esse
conhecimento. É um processo contínuo no trabalho baseado no conhecimento,
porque a base do conhecimento está em constante mutação […].
c) Ética e responsabilidade: necessárias para construir a confiança
(particularmente importante em redes sociais informais), mas também porque
geralmente é um positivo em um mundo onde há muitos jogadores diferentes,
e um maior grau de confiança nos outros para realizar os próprios objetivos.
d) Trabalho em equipe e flexibilidade: […] os trabalhadores do conhecimento
precisam saber como trabalhar de forma colaborativa, virtualmente e a
distância com colegas, clientes e parceiros […].
e) Habilidades de pensamento (pensamento crítico, resolução de problemas,
criatividade, originalidade e elaboração de estratégias): de todas as habilidades
necessárias em uma sociedade baseada no conhecimento, estas são algumas
das mais importantes. […] Qualquer pessoa que lida com o público precisa ser
capaz de identificar necessidades e encontrar soluções adequadas.
f) Competências digitais: a maioria das atividades baseadas no conhecimento
depende fortemente do uso de tecnologias. No entanto, a questão-chave é que
essas habilidades precisam ser incorporadas ao domínio do conhecimento
em que a atividade ocorre […]. Assim, o uso da tecnologia digital tem de ser
integrado e avaliado por meio da base de conhecimentos da área.
g) Gestão do conhecimento: esta é talvez a mais abrangente dentre todas as
habilidades. O conhecimento não só está mudando rapidamente com as
novas pesquisas, novos desenvolvimentos e rápida disseminação de ideias

199
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

e práticas por meio da internet, mas as fontes de informação também estão


aumentando, com uma grande variabilidade na confiabilidade ou validade
das informações […]. A habilidade fundamental em uma sociedade baseada
no conhecimento é a gestão do conhecimento: como encontrar, avaliar,
analisar, aplicar e divulgar informações em um contexto particular.

FONTE: <https://edisciplinas.usp.br/mod/folder/view.php?id=2370412>. Acesso em: 7 nov. 2019.

Como você pôde perceber, a educação na era digital requer que a escola
incorpore ao seu currículo as novas linguagens oriundas da Tecnologia da
Informação e Comunicação. De acordo com Garofalo (2018, p. 2), isso possibilitará
“que o aluno desvende possibilidades de comunicação e uma participação mais
consciente da cultura digital. Do lado do professor, é o início do caminho de
reinventar novos modelos de promover a aprendizagem, interagir e compartilhar
significados entre professores e alunos”.

200
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• A leitura é importante para o processo de formação e construção da identidade


do sujeito.

• A prática de leitura vem se transformando ao longo da história, sendo que


as mudanças nos suportes de acomodação da escrita também interferem na
relação do sujeito com a leitura.

• A cultura digital incorpora novos hábitos às práticas cotidianas, gerados pelo


uso dos recursos tecnológicos.

• A leitura digital é aquela realizada em suportes tecnológicos diferenciados,


com o auxílio da internet.

• Letramento digital diz respeito às práticas sociais de leitura e produção de


textos em ambientes digitais.

• Na era digital é importante que alunos e professores tenham competência para


utilizar os recursos tecnológicos de forma crítica e adequada.

201
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2008): Antes de compreender o que significam as inovações


tecnológicas, temos de refletir sobre o que são velhas e novas tecnologias. O
atributo do velho ou do novo não está no produto, no artefato em si mesmo,
ou na cronologia das invenções, mas depende da significação do humano,
do uso que fazemos dele.

FONTE: CÔRREA, J. Novas tecnologias da informação e da comunicação; novas estratégias


de ensino/aprendizagem. In: COSCARELLI, C. V. (Org.). Novas tecnologias, novos textos,
novas formas de pensar. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 44 (com adaptações).

Relacionando as ideias do fragmento de texto anterior à formação e à ação do


professor em sala de aula, conclui-se que:

a) ( ) A chegada das inovações tecnológicas à escola torna obsoletos os


saberes acumulados pelo professor.
b) ( ) As inovações tecnológicas no campo do ensino-aprendizagem não
garantem inovações pedagógicas.
c) ( ) A inclusão digital é assegurada quando as escolas são equipadas com
computadores e acesso à Internet.
d) ( ) Os novos modos de ler e escrever no computador devem ser transpostos
para a modalidade escrita da língua no espaço escolar.
e) ( ) O acervo impresso das bibliotecas escolares deve ser substituído por
acervos digitais, de maior circulação e funcionalidade.

2 (ENADE, 2017): Em meados da década de 1450, só era possível reproduzir


um texto copiando-o à mão, e, de repente, uma nova técnica, baseada nos
tipos móveis e na prensa, transfigurou a relação com a cultura escrita. O
custo do livro diminuiu, através da distribuição das despesas pela totalidade
da tiragem, muito modesta, aliás, entre mil e mil e quinhentos exemplares.
Analogamente, o tempo de reprodução do texto foi reduzido graças ao
trabalho da oficina tipográfica. Contudo, um livro manuscrito (sobretudo
nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro pós-Gutemberg baseavam-se
nas mesmas estruturas fundamentais – as do códex.

FONTE: CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador – conversações com Jean


Lebrun. São Paulo: Editora Unesp, 1998 (adaptado).

A partir do excerto de Roger Chartier e considerando as mudanças ocorridas


na cultura escrita europeia com a invenção da imprensa, avalie as asserções a
seguir e a relação proposta entre elas.

I- Embora a invenção da imprensa por Gutemberg, no século XV, tenha


transformado a forma como os livros eram produzidos, não se pode falar de
ruptura, mas de mudanças e continuidades entre a cultura do manuscrito e
a cultura do impresso.
202
PORQUE

II- Livros impressos e manuscritos mantiveram características do códex,


como, por exemplo, a forma como as folhas são dobradas, o que determina
o formato do livro e a sucessão dos cadernos, que, por sua vez, são
montados, costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernação.

A respeito dessas asserções, assinale a opção CORRETA.


a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa
correta da I.
b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma
justificativa correta da I.
c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.
d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.
e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas

3 O letramento digital significa o domínio de técnicas e habilidades para


acessar, interagir, processar e desenvolver multiplicidade de competências
na leitura das mais variadas mídias. Um indivíduo possuidor de letramento
digital necessita de habilidade para construir sentidos a partir de textos que
mesclam palavras que se conectam a outros textos, por meio de hipertextos,
links e hiperlinks; elementos pictóricos e sonoros numa mesma superfície
(textos multimodais). Ele precisa também ter capacidade para localizar,
filtrar e avaliar criticamente informação disponibilizada eletronicamente
e ter familiaridade com as normas que regem a comunicação com outras
pessoas através dos sistemas computacionais.

FONTE: <https://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2005/01/28/490613/usabilidade-
e-chave-aprendizado-em-ead.html>. Acesso em: 30 nov. 2019.

Sobre o letramento digital, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para


as falsas:

( ) O letramento digital é uma forma de inclusão social que permite que os


sujeitos exerçam um papel ativo e interativo na sociedade do conhecimento.
( ) O letramento digital promovido pela escola deve levar em conta que o
acesso aos ambientes digitais e às suas práticas deve ser uniforme para
todas as pessoas.
( ) O letramento digital diz respeito ao domínio de ferramentas como
animações, vídeos, sons, cores e ícones, desconsiderando os elementos
linguísticos que fazem parte do letramento tradicional.
( ) Saber avaliar as informações disponíveis na internet é uma das competências
de uma pessoa digitalmente letrada.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F – V.
b) ( ) V – F – F – V.
c) ( ) V – F – F – F.
d) ( ) F – F – F – V.
203
204
UNIDADE 3
TÓPICO 2

LITERATURA NA ERA DIGITAL

1 INTRODUÇÃO
Das paredes das cavernas até a tela de um computador foram vários
os suportes de escrita utilizados pelas pessoas para registrarem suas ideias,
informações e emoções. A evolução desses suportes acompanha a história da
evolução da humanidade, sendo que cada um deles alterou a forma de lidar com
a escrita e com a leitura.

Tais mudanças também afetaram a forma de produzir literatura, fazendo


emergir o conceito de ciberliteratura, que nada mais é que a literatura produzida
para mídias digitais. Nessa ambiência, surgem novos autores e obras que
demonstram que a literatura acompanha a história, refletindo a sociedade na qual
seus autores estão inseridos.

Cabe ressaltar, porém, que o surgimento da literatura digital não


significa a substituição do texto tradicional pelo digital. Ao contrário, ambos os
textos se complementam e, conforme observado por Santaella (2012, p. 238), “a
ciberliteratura não chegou para fazer operações de diminuição ou divisão, mas
para somar e multiplicar”.

Partindo desse pensamento, além de conhecer a evolução dos suportes de


escrita ao longo da história, você também terá a oportunidade, nesta unidade, de
conhecer autores e textos pertencentes ao universo da ciberliteratura que podem
se tornam importantes aliados dos professores na reflexão sobre o processo de
criação literária em sala de aula.

2 SUPORTES DE ESCRITA AO LONGO DA HISTÓRIA


Falar da literatura na era digital significa reconhecer, primeiramente,
os novos suportes de escrita que viabilizam o diálogo entre o texto, os sujeitos
autores e os sujeitos leitores. Mas o que vem a ser um suporte de escrita? Leia, a
seguir, a definição apresentada por Martha Lourenço Vieira no Glossário Ceale, da
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

205
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Suportes da Escrita

Suporte ou portador é o meio físico ou virtual que serve de base para


a materialização de um texto. Atualmente, existem vários tipos de suporte:
jornal, revista, outdoor, embalagem, livro, software, blog etc. Enviar um e-mail
ou postar uma carta no correio? Escrever um diário ou produzir um blog?
Essas são perguntas cujas respostas envolvem, necessariamente, a escolha de
um ou de outro tipo de suporte e de gênero textual. Isto porque texto e suporte
são inseparáveis – não existe texto sem suporte. Este define a formatação, a
composição e os modos de leitura de um dado gênero textual. Assim, uma
modificação no suporte material de um texto pode modificar o próprio gênero
textual que nele se veicula.

O suporte tem relação direta com os propósitos comunicativos que se


deseja alcançar. Tomemos como exemplo uma empresa que quisesse veicular
uma campanha publicitária para um público maior e mais heterogêneo e
decidisse utilizar, como suporte de seus anúncios publicitários, os vidros
traseiros de ônibus ou sacos que embalam os pães nas padarias. Nesse caso,
temos dois suportes que, a princípio, foram incidentais, ou seja, não foram
criados para serem portadores de qualquer gênero textual, mas tornaram-se
uma alternativa criativa para permitir a circulação de uma campanha por vários
locais da cidade, possibilidade não oferecida por um outdoor, que permanece
fixo em um mesmo local.

No processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, não


basta, portanto, trabalhar diferentes gêneros textuais; é necessário explorar
também os diversos suportes em que tais gêneros são veiculados. O texto
a ser lido foi veiculado em um outdoor ou em uma revista voltada para o
público adolescente? O leitor de um texto deve conhecer o suporte em que o
texto foi veiculado e, com ele, o contexto em que aquele texto está inserido. Da
mesma forma, o aluno, ao escrever um texto, deve ter em mente onde ele será
veiculado. Isto porque o sentido não é intrínseco ao texto, sua relação com o
contexto que o circunda e com o suporte em que é veiculado é determinante no
processamento textual, quer na leitura, quer na produção.

A interação verbal só é possível por meio de algum gênero que se


materializa em textos, que assumem formas variadas para atender a propósitos
diversos, e essas formas e propósitos somente são acessíveis por meio dos
suportes, pois neles é que estão gravadas e registradas (física ou virtualmente)
as marcas dessa interação que se estabelece.

FONTE: <http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/suportes-da-
escrita>. Acesso em: 8 nov. 2019.

206
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

Ao longo da história, foram vários os suportes utilizados pelo ser humano


para a materialização de um texto, tornando possível exprimir, registrar e
transmitir ideias. Antes da invenção do papel foram utilizados diferentes suportes
de escrita, como, por exemplo, ossos, conchas, marfim, folhas de palmeira,
bambu, metal, cascas de árvores, placas de argila, paredes e pedras, dentre outros
(LABARRE, 1981). Sobre a tecnologia para fixação da escrita em um meio físico,
Zilberman (1999, p. 45) esclarece:

[…] tendo sido originalmente o barro, como ocorreu aos sumérios,


que guardaram suas anotações, para o que se valeram da escrita
cuneiforme, em tabuletas de argila; mas depois apareceram
instrumentos mais práticos: o papiro, um tanto frágil, o pergaminho,
resistente e duradouro, o papel, de baixo custo, embora perecível.
Essas alterações supuseram interferências de novas técnicas para
exploração dos recursos naturais, de que resultou a expansão dos
meios para fixação da escrita, bem como o barateamento da produção
e as facilidades de circulação. Modificaram-se igualmente as formas do
objeto que transportava a escrita – dos rolos de pergaminho ao formato
retangular do livro impresso em papel, até, nesse final de milênio, o
quadrado de plástico que identifica os disquetes ou os círculos de
alumínio dos CD, a que se tem acesso por intermédio de programas
em linguagem eletrônica, decifradas por um editor de texto. 

Conforme citado por Zilberman (1999), um dos mais antigos sistemas de


escrita que se tem registro é a escrita cuneiforme, cuja invenção é atribuída aos
sumérios. Trata-se de uma escrita produzida em placas de barro com o auxílio de
objetos em forma de cunha (ferramenta de entalhe).

FIGURA 1 – ESCRITA CUNEIFORME

FONTE: <https://www.estudopratico.com.br/wp-content/uploads/2015/11/escrita-
cuneiforme.jpg>. Acesso em: 8 nov. 2019.

Os sumérios utilizavam a argila para escrever, e quando queriam que


seus registros fossem permanentes, as tabuletas cuneiformes eram colocadas
em um forno, ou poderiam ser reaproveitadas quando seus registros não fossem
tão importantes que precisariam ser lembrados sempre. A escrita cuneiforme
foi uma forma de se expressar muito difícil de ser decifrada, pois possuía mais

207
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

de 2000 sinais e seu uso era de uma dificuldade enorme [...]. Somente no século
XX foram encontrados documentos que esclareciam em partes a complexidade
de entendimento desta escrita, sua tradução foi uma tarefa muito árdua. Para
conseguir decifrar os documentos encontrados, era necessário que os estudiosos
dominassem outras línguas como o hebreu e o árabe, para que pudessem
encontrar dentro do vocabulário dessas duas línguas alguma semelhança que
leve a tradução da escrita cuneiforme.

Era quase que impossível se estudar a escrita cuneiforme sem conhecer


a cultura e quase toda a história das civilizações que as utilizavam, e a cada
nova descoberta na escrita cuneiforme, uma parte da História desses povos
desvendada.
FONTE: <https://www.infoescola.com/civilizacoes-antigas/escrita-cuneiforme/>. Acesso em:
8 nov. 2019.

Além das placas de barro dos sumérios, as paredes das pirâmides,


túmulos e templos também serviram de suportes para que os egípcios
registrassem sua escrita por meio dos hieróglifos. É interessante notar que o
estudo destes suportes de escrita remete à história da própria escrita, conforme
observado a seguir, que trata dos hieróglifos egípcios.

FIGURA 2 – HIERÓGLIFOS NAS PAREDES DE UM TEMPLO EM KARNAK, NO EGITO

FONTE: <https://cdn.britannica.com/s:575x450/18/153418-004-D84DE409.jpg>.
Acesso em: 11 nov. 2019.

A escrita hieroglífica é um sistema que usa figuras e símbolos chamados


hieróglifos em vez de letras e palavras. Quando falamos em hieróglifos, quase
sempre nos lembramos dos  antigos egípcios. Contudo, outros povos, como
os  maias, usaram sistemas de  escrita  semelhantes a esse. Cada símbolo da
escrita hieroglífica é chamado de hieróglifo. A palavra “hieróglifo” significa
“entalhe sagrado”. Os egípcios inscreviam os hieróglifos nas paredes de seus
templos e monumentos públicos, entalhando-os na pedra ou pintando-os na
madeira e em outras superfícies lisas. Os hieróglifos foram usados de muitos
modos. Alguns eram representações diretas. Por exemplo, o sol podia ser

208
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

representado por um círculo grande com um círculo menor no centro. Outros


hieróglifos representavam ideias associadas à figura. O sinal para “sol” podia
servir também para “dia”. Os hieróglifos eram capazes de simbolizar ainda
sons ou grupos de sons específicos. A escrita hieroglífica nasceu há milhares
de anos. Por volta de 2900 a.C., os egípcios já a usavam. Ela continuou a ser
utilizada por mais de 3 mil anos.

FONTE: <https://escola.britannica.com.br/artigo/hier%C3%B3glifo/481495>. Acesso em: 11


nov. 2019.

Posteriormente, a utilização do papiro facilitou o processo de registro por


tratar-se de um material leve e flexível em relação aos demais objetos até então
utilizados. Originário de uma planta do mesmo nome, o papiro como suporte de
escrita foi criado no Egito por volta de 2.500 a.C. Veja, a seguir, como ele era utilizado.

FIGURA 3 – PAPIRO

FONTE: <http://museuegipcioerosacruz.org.br/wp-content/uploads/2017/12/Papiro.jpg>.
Acesso em: 11 nov. 2019.

O talo da planta era cortado em tiras longas e estreitas e posto para secar.
Depois de secas, as tiras ficavam de molho em água e vinagre por alguns dias.
Após um novo período de secagem, as tiras eram coladas umas sobre as outras,
em sentido horizontal e vertical, formando retângulos ou quadrados. Eram,
a seguir, prensadas durante mais alguns dias e depois marteladas e alisadas.
Para aumentar a resistência do material, várias dessas folhas prensadas eram
coladas umas sobre as outras. Por fim, eram emendadas e presas a um suporte
de madeira ou marfim, formando um rolo. A escrita era feita em sentido paralelo
às fibras [...]. Muitas das informações hoje conhecidas sobre a civilização egípcia
chegaram até nossos dias por meio de papiros. São famosos, entre outros, o
Papiro de Ahmes (ou de Rhind), coletânea de ensinamentos matemáticos datada
de 1650 a.C., e o Livro dos mortos, que era colocado nos sarcófagos, pois se
acreditava que ajudava o falecido a encontrar o caminho da luz.

FONTE: <https://escola.britannica.com.br/artigo/papiro/483432>. Acesso em: 11 nov. 2019.

209
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

O papiro, entretanto, tinha como inconveniente o fato de ser frágil, pouco


resistente à umidade e queimar-se com facilidade (SANTIAGO, 2019).   Surge,
então, o pergaminho, feito de pele de animais. Veja, a seguir, como ele foi
produzido e utilizado como suporte de escrita.

FIGURA 4 – PERGAMINHO

FONTE: <https://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2012/10/pergaminho.jpg>.
Acesso em: 11 nov. 2019.

A substituição do papiro pelo pergaminho teve lugar quando os fenícios


deixaram de exportar as folhas de papiro para a Ásia. Foi então que o Rei de
Pérgamo ordenou aos seus sábios que estudassem um tipo de material que
pudesse substituir o papiro. Do trabalho destes nasceu o pergaminho, assim
denominado em nome da cidade de Pérgamo, que o viu nascer. O pergaminho
era obtido a partir das peles de animais (como as ovelhas e as cabras), depois
de esticadas, secas e polidas, após um banho em cal, por forma a evitar o mau
cheiro. Já secas, as peles eram esfregadas dos dois lados com ajuda de argila
e pedra-pomes. Este novo processo de obtenção de material para escrita tinha
a vantagem de ser mais duradouro e de permitir a reunião das várias folhas
em formato de livro. Comparativamente ao anterior suporte era, de fato, uma
evolução. Todavia, era um processo que ficava bem mais caro. Desde o reinado
de Pérgamo até ao surgimento do papel, em 1800 d. C., não se registraram
inovações significativas ao nível do processo de fabrico do pergaminho.

FONTE: <https://www.passeiweb.com/estudos/sala_de_aula/historia/surgimento_da_escrita_
egito>. Acesso em: 11 nov. 2019.

Posteriormente, a invenção do papel pelos chineses fez surgir um novo


suporte de escrita que se disseminou através dos tempos. De acordo com Martins
(2002, p. 242), sua introdução e vulgarização na Europa “decidiu os destinos da
nossa civilização porque ele vinha responder às necessidades que todos sentiam
de um material barato, praticamente inesgotável, capaz de substituir com infinitas
vantagens o nosso precioso pergaminho”.

210
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

Além disso, conforme afirmado por Soares (2002, p. 149), “o espaço de


escrita condiciona, sobretudo, as relações entre escritor e leitor, entre escritor
e texto, entre leitor e texto”. Assim, enquanto o papiro e o pergaminho – cujas
superfícies eram extensas e contínuas – dificultavam retornos e retomadas na
escrita e na leitura, o texto escrito em papel, conforme Soares (2002, p. 50),

[...] tem limites claramente definidos, tanto a escrita quanto a leitura


podem ser controladas por autor e leitor, permitindo releituras,
retomadas, avanços, fácil localização de trechos ou partes; além
disso, o códice torna evidente, materializando-a, a delimitação do
texto, seu começo, sua progressão, seu fim, e cria a possibilidade de
protocolos de leitura como a divisão do texto em partes, em capítulos,
a apresentação de índice, sumário.

Finalmente, os ambientes digitais fizeram surgir novos suportes que são


as telas dos computadores, tablets e celulares. A escrita e a leitura de textos na tela
propiciam experiências bem diferentes daquelas realizadas no papel.

O texto no papel é escrito e é lido linearmente, sequencialmente – da


esquerda para a direita, de cima para baixo, uma página após a outra;
o texto na tela – o hipertexto – é escrito e é lido de forma multilinear,
multissequencial, acionando-se links ou nós que vão trazendo telas
numa multiplicidade de possibilidades, sem que haja uma ordem
predefinida. A dimensão do texto no papel é materialmente definida:
identifica-se claramente seu começo e seu fim, as páginas são
numeradas, o que lhes atribui uma determinada posição numa ordem
consecutiva – a página é uma unidade estrutural; o hipertexto, ao
contrário, tem a dimensão que o leitor lhe der: seu começo é ali onde o
leitor escolhe, com um clique, a primeira tela, termina quando o leitor
fecha, com um clique, uma tela, ao dar-se por satisfeito ou considerar-
se suficientemente informado – enquanto a página é uma unidade
estrutural, a tela é uma unidade temporal (SOARES, 2002, p. 150).

Além disso, o texto em formato digital adquiriu novos contornos com


a possibilidade de inclusão de imagens em movimento, sonoridade e outros
recursos. Ele também propiciou a possibilidade de publicação em novos espaços
como blogs e rede sociais. A literatura, por sua vez, não poderia ficar alheia a
essas novidades e, conforme Silva (2017, p. 212), nas últimas décadas ela tem se
modificado uma vez que:

[…] aparece em novos suportes, que vão além do livro impresso. Com
isso surgem novas ferramentas de construção do texto e novos papéis
para autor e leitor. A literatura incorporou sistemas semióticos que
vão além do verbal: visual, cinético, sonoro, digital, entre outros, que
realizam de maneira inovadora, velhas experiências e descobertas.
Abre-se um leque de possibilidades de criação inventiva sob o viés da
literatura contemporânea que mantêm uma relação com a tradição,
mas que soa como novidade.

211
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Como consequência, surge um novo perfil de sujeito autor, mas também de


sujeito leitor. Na perspectiva de Silva (2017, p., 211), “pulverizam-se as fronteiras
e barreiras, há uma implosão dos limites de modo que ocorre uma aproximação
até então, não imaginada entre autor, texto e leitor, por meio das facilidades
de acesso, interatividade, múltiplas linguagens e da liberdade de escolhas em
relação à condução da leitura”. Essa nova forma de produzir literatura na era
digital recebeu no nome de ciberliteratura, como veremos a seguir.

3 CIBERLITERATURA, A LITERATURA NA ERA DIGITAL


Conforme visto nos tópicos anteriores, a ascensão das tecnologias da
informação e comunicação, além de provocar o surgimento de novos espaços de
interação e comunicação, também conseguiu transformar radicalmente o modo
de vida das pessoas em suas práticas cotidianas, até então relacionadas às mídias
analógicas. Nesta ambiência, modificou-se a prática de escrita e leitura das obras
literárias, sendo que as mídias digitais afetaram também suas diversas formas de
produção, manipulação, armazenamento e distribuição (KIRCHOF, 2016).

A partir de então surgem termos como ciberespaço, cibercultura e


ciberliteratura, todos com o prefixo cyber que, conforme Lins (2013, p. 40), “é
relacionado comumente a algo tecnológico, e é adaptado para várias palavras”.
Segundo Tofts (2002) apud Lins (2013, p. 40), “o prefixo cyber tem denotação mais
especializada e específica para fazer o controle e uso da informação, ou para ser
mais específico novamente, informações como unidade comum ou elementos de
organização dentro de sistemas orgânicos e inorgânicos”.

Dessa forma, os termos ciberespaço, cibercultura e ciberliteratura estão


interligados sendo que, de acordo com Pierre Lévy, filósofo que é considerado
uma referência no assunto,

[...] o ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio de


comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O
termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação
digital, mas também o universo oceânico de informação que ela
abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam
esse universo. Quanto ao neologismo ‘cibercultura’, especifica aqui o
conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes,
de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente
com o crescimento do ciberespaço (LÉVY, 1999, p. 17).

A ciberliteratura, por seu turno, é a literatura que nasce no espaço digital:


trata-se de uma “produção artística criada em parceria com a máquina, para
ser vivenciada na máquina e inexistente fora da máquina; o que significa dizer,
inteiramente virtual” (FERREIRA, 2013, p. 146). A propósito, a literatura produzida
no ciberespaço tem recebido diversas denominações como “literatura gerada
por computador, literatura informática, infoliteratura, literatura algorítmica,

212
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

literatura potencial, ciberliteratura, literatura generativa, hiperficções, texto


virtual, geração automática de texto, poesia animada por computador, poesia
multimídia” (SANTAELLA, 2012, p. 230).

Trata-se de uma literatura que tem sido objeto de estudo de diversas


pesquisas acadêmicas. Veja, a seguir, a definição de ciberliteratura apresentada
pelos organizadores do I Colóquio Internacional de Ciberliteratura promovido
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O que é ciberliteratura

Também denominada literatura algorítmica, generativa ou virtual, a


ciberliteratura designa aqueles textos literários cuja construção baseia-se em
procedimentos informáticos: combinatórios, multimidiáticos ou interativos.
Fazendo uso das potencialidades do computador como máquina criativa que
permite o desenvolvimento de estruturas textuais, em estado virtual, atualizando-
as até ao infinito, a ciberliteratura utiliza o computador de forma criativa, como
manipulador de signos verbais e não apenas como simples armazenador e
transmissor de informação. Deste modo, a ciberliteratura distingue-se da literatura
digital(izada), constituindo uma hipertextualização de estratégias textuais pré-
existentes, em que se verifica uma transição do papel para o pixel em termos
meramente técnicos, e ficando aquela dependente de uma construção cibernética
ou hipermediática que promove novos modos de escrita e de leitura. Neste
sentido, interessa ao ciberautor promover as potencialidades gerativas de um
algoritmo, que pode ter uma base combinatória, aleatória, estrutural, interativa
ou mista, e permitindo assim o funcionamento do computador como “máquina
aberta” […]. A ciberliteratura, através da literatura gerada por computador
ou da poesia animada interativa, promove, portanto, a experimentação e o
jogo, recriando profundamente conceitos de texto e interpretação, e laborando
na senda das vanguardas históricas e dentro do espaço inaugurado pelo
experimentalismo universal e intemporal da escrita, da imagem e do som. O
meio digital apresenta-se assim como um campo vasto de possibilidades para
a interligação dinâmica de elementos previamente dispersos, onde esse tecido
de citações e espaço de dimensões múltiplas se materializa, engendrando-se
ao nível do experimentalismo literário como uma ferramenta de ampliação de
espaços e reconfigurações do pensamento, da ação e do sentimento.

FONTE: <https://www.pucsp.br/ciberliteratura/oqueeciberliteratura.html>. Acesso em: 12 nov. 2019.

213
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Cabe ressaltar que a ciberliteratura refere-se a livros não somente


disponibilizados, mas também criados em ambiente digital. Isso quer dizer que
a compilação de livros do formato impresso para o formato digital não significa
produção de ciberliteratura, apenas digitalização de arquivos que não precisam,
necessariamente, de aparato tecnológico para serem lidos. De acordo com
Santaella (2012, p. 230),

[…] há que se fazer a diferença entre a literatura eletrônica que nasce


da transposição do impresso para o digital e a literatura que nasce no
digital (digital-born). Há também uma outra diferença a ser observada
entre esta última e a literatura que é performatizada no computador
e, então, impressa em papel. Ainda é preciso lembrar que o contexto
da literatura digital não pertence à galáxia de Gutenberg, mas sim
ao mundo das redes e das mídias programáveis, quais sejam: games,
animações, artes digitais, design digital, todos eles pertencentes à
cultura visual eletrônica.

Além disso, também é importante observar a abrangência do termo


ciberliteratura pois, de acordo com Viires (2006) apud Santaella (2012, p. 231), ao
utilizá-lo é necessário considerar:

(a) Todos os textos literários disponíveis nas redes, cobrindo tanto


a prosa quanto a poesia que aparecem em sites e blogs de escritores
profissionais, em antologias digitais e em revistas literárias online. (b)
Textos literários não profissionais disponíveis na internet, cuja inclusão
na análise literária expande as fronteiras da literatura tradicional.
Aqui a rede funciona, antes de tudo, como um espaço independente
de publicação, abraçando os sites de escritores amadores, portais de
grupos de jovens autores ainda não reconhecidos. Também se incluem
aqui as periferias da literatura, como a ficção fanzine, textos baseados
em games e narrativas coletivas online. (c) Literatura hipertextual e
cibertextos que incluem textos literários de estrutura mais complexa,
explorando várias soluções possíveis de hipertextos e intricados
cibertextos multimídia que fazem a literatura misturar-se com as artes
visuais, vídeo e música.

As diversas nuances da ciberliteratura apontadas por Viiris (2006)


permitem concluir que ainda existe certa dificuldade em delimitar esse conceito.
De acordo com Santaella (2012, p. 231), “não há uma visão única sobre a
ciberliteratura uma vez que ela envolve um conjunto de questões complicadas
que transgridem as bordas estabelecidas da teoria literária e que resultam em
construções teóricas refinadas tanto pró quanto contra esse campo emergente”.

Para Espen Aarseth (1997) apud Santaella (2012, p. 234), “cibertexto é


sinônimo da literatura ergódica realizada no espaço virtual”. Considerando
a etimologia da palavra ergódica que, vinda do grego, significa trabalho e
passagem, a autora esclarece tratar-se de uma literatura em que “ao ler, o leitor
faz movimentos, esforços, toma decisões”. Mesmo considerando que ao realizar
a leitura do texto impresso “há o movimento dos olhos de uma linha a outra
e a virada das páginas”, Santaella explica que, “no caso da literatura gerada
computacionalmente, a ciberliteratura, os esforços envolvidos são menos triviais
e multilineares” (SANTAELLA, 2012, p. 235).
214
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

4 NARRATIVAS E POESIAS DIGITAIS


De acordo com Marcuschi (2002), todo texto configura-se como um
fenômeno social e histórico, ou seja, ele é produzido por um sujeito historicamente
situado e sua apropriação pelo leitor dá-se da mesma forma. Considerando,
portanto, as tecnologias digitais presentes na contemporaneidade, não é de se
estranhar o surgimento de formas textuais produzidas com recursos multimídia.
Sobre esse assunto, Santaella (2012) explica que é possível distinguir, na
ciberliteratura, uma pluralidade de gêneros cujas fronteiras são fluidas.
Recorrendo a Torres (2004), Santarella (2012, p. 236) nos coloca diante de:

[...] três posturas possíveis na aproximação da criatividade literária ao


meio digital: o hipertexto e a hiperficção, o texto animado, interativo
e multimídia e o texto gerado por computador. O hipertexto, para o
autor, “interessa aos estudos literários e culturais no sentido em que
ele nos leva a identificar, no tipo de escrita não linear e sequencial
que o caracteriza, a própria noção de literariedade que foi muito
estudada no início do século passado (principalmente pelas escolas
formalista e estruturalista) como fator constituinte do sistema
literário”. A hiperficção, por sua vez, permite-nos rearticular os
conceitos de dialogismo (Bakhtin) e de intertextualidade (Kristeva),
pois na internet, o hipertexto amplia e torna visível a percepção dos
textos enquanto conjunto de outros textos. O texto animado permite
formas de cocriação coletiva de que são exemplos a interatividade e
a intermídia. Já a literatura gerada por computador usa algoritmos
para levar o computador a combinar palavras e, dessa forma, criar
múltiplas possibilidades de execução e significação.

Ainda sobre a estética dos textos digitais, Hayles (2009) apud Spalding
(2010) atenta para a emergência de diversas formas literárias, por exemplo, a ficção
em hipertexto, ficção na rede interligada, ficção interativa, narrativas locativas,
instalações, arte generativa e poemas em Flash, entre outras. Com relação ao
conto, Spalding (2010) destaca o miniconto e o hiperconto como possibilidades
literárias já adaptadas ao meio digital. De acordo com Silva (2017, p. 213), “a
publicação de romances online continua sendo um fenômeno minoritário e
marginal”, havendo uma “popularidade das formas ultracurtas de minicontos e
mininarrativas on-line”.

Com relação à hiperficção, Schlindwein (2014, p. 130) esclarece que o


americano Michael Joyce foi um dos precursores da hiperficção sendo que no
Brasil essa modalidade “ganhou corpo com produções como Tristessa (1998),
de Marco Antonio Pajola, Baile de Máscaras (1998), de Vera Mayra, A Dama de
Espadas (1998), de Marcos Palacios, entre outros”.

Veja, a seguir, algumas obras pertencentes ao universo da literatura digital.

215
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

4.1 TRISTESSA, DE MARCO ANTONIO PAJOLA


FIGURA 5 – CAPTURA DE TELA DO LIVRO DIGITAL TRISTESSA

FONTE: <http://www.quattro.com.br/tristessa/nave_main.htm>. Acesso em: 12 nov. 2019.

Trata-se de uma obra disponível na internet que, conforme Neitzel et


al. (2014, p. 838), “introduz o leitor, por meio de links, a um texto que remete
a outras histórias, todas encadeadas, permitindo a leitura de vários textos
simultaneamente, pois a narrativa vai se estrelando, uma surge dentro da outra,
formando um conjunto de muitas e diferentes narrativas. Pela presença dos links,
a leitura dá-se por rupturas”.

Ao acessar o livro o leitor terá a seguinte informação:

“Tristessa está estruturada em três atos lineares, denominados Corpo,


Fragmento e Todo, e 5 planos aleatórios, chamados de Vida, Vultos, Ensaio,
Matéria e Insight. Dentre desses atos e planos você pode interagir com a
história na sequência em que bem entender. Você atravessa o tempo na medida
em que caminha pelos três atos e viaja pelas dimensões do pensamento na
medida em que salta pelos planos. O ato em que você se encontra é omitido. A
ausência do referencial de tempo faz parte da narrativa. O mapa abaixo serve
apenas para checar os fragmentos já lidos. No fim desta página você encontra
um navegador que poderá lhe ajudar a seguir por alguns dos caminhos
possíveis a percorrer na história. Tristessa não é um jogo onde você brinca de
mudar a história e descobre múltiplos e infinitos finais. A história é uma só, os
diferentes caminhos é que o levarão por diferentes estradas e durante a viagem
as paisagens montarão diferentes estórias em sua cabeça. Boa viagem!”

FONTE: <http://www.quattro.com.br/tristessa/nave_main.htm>. Acesso em: 12 nov. 2019.

216
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

4.2 INANIMATE ALICE, DE KATE PULLINGER


FIGURA 6 – CAPTURA DE TELA DO LIVRO DIGITAL INANIMATE ALICE

FONTE: <https://inanimatealice.com/>. Acesso em: 13 nov. 2019.

Conforme apresentado por Ferreira (2013, p. 145-146), trata-se de

uma premiada produção narrativa para a internet, inteiramente


concebida em meio digital, para ser fruída em meio digital. Ao
contrário de um e-book – que não passa de um livro nos moldes
tradicionais, digitalizado e veiculado no suporte mecânico do PC,
IPad, Tablet, Kindle ou outro através de uma tela – essa produção não
pode ser escaneada nem impressa sem perder as suas características
fundamentais. Parece um jogo – dirão alguns, mas não é um jogo.
Lembra um filme – mas também não é um filme. Com certeza não é um
livro – dirão os intelectuais, e não estarão muito longe da verdade;
pois o fundamento do que hoje se intitula Literatura eletrônica […]
é o fato de ser digital born: uma produção artística criada em parceria
com a máquina, para ser vivenciada na máquina e inexistente fora da
máquina; o que significa dizer, inteiramente virtual.

Ainda sobre a obra, Ferreira (2013, p. 150-151) esclarece que ela

foi concebida numa sequência de dez episódios que buscam acompanhar


o crescimento e a formação de uma criança de nacionalidade não
identificada, dos oito aos dezoito anos, que vive uma existência
nômade com seus pais, empregados de uma companhia de petróleo,
em constantes viagens pelo mundo. Exposta a uma diversidade de
culturas, idiomas e referências rapidamente superpostos, e a longos
períodos de isolamento, a menina encontra no seu smartphone um
espaço seguro de expressão, comunicação e conforto.

217
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

4.3 UM ESTUDO EM VERMELHO, DE MARCELO SPALDING


FIGURA 7 – CAPTURA DE TELA DO LIVRO DIGITAL UM ESTUDO EM VERMELHO

FONTE: <http://www.hiperconto.com.br/>. Acesso em: 13 nov. 2019.

Trata-se de “uma narrativa produzida num contexto hipertextual


baseada no romance policial Estudo em Vermelho, escrito por Sir Arthur
Conan Doyle, publicado originalmente pela revista Beeton's Christmas Annual
em novembro de 1887. É um hiperconto que narra a história de um rapaz, cuja
irmã desapareceu. Ambos são herdeiros de uma grande fortuna. Seus pais
faleceram no recente acidente da Air France na costa do Nordeste. Os motivos
do desaparecimento da irmã, que podem ser um sequestro, uma trama de
amor e ambição, fuga, dão o tom da narrativa. Há 8 possibilidades de terminar
a história, dependendo das combinações de escolhas que o leitor faz. O
interessante aqui é que os personagens se cambiam de acordo com as escolhas
que o leitor empreende. Há mudanças de comportamento, consequentemente,
de caráter, entre outros. Na verdade, nesse caso, temos várias narrativas
possíveis a partir de um começo. Para realizar suas escolhas, o leitor deve, à
medida que avança a sua leitura, clicar em links com as mensagens Enviar e
Responder, pois a estrutura narrativa do hiperconto é elaborada utilizando-
se o gênero digital e-mail. Ou seja, um personagem recebe um e-mail e deve
respondê-lo. São apresentadas na tela duas possíveis respostas ao e-mail inicial
e cabe ao leitor decidir qual das duas versões mais lhe agrada e, em seguida,
clicar Responder” (CARVALHO; CORREIO, 2018, p. 188).

218
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

4.4 DOIS PALITOS, DE SAMIR MESQUITA


FIGURA 8 – CAPTURA DE TELA DA OBRA DOIS PALITOS

FONTE: <http://www.samirmesquita.com.br/doispalitos.html>. Acesso em 13 nov. 2019.

Neste livro on-line,

o leitor é confrontado com uma caixa de fósforos localizada na


centralidade de uma página branca – posição que poderá variar, já
que é possível arrastá-la pela tela –, tendo que selecionar um palito
através do clique, o que trará à tona um dos cinquenta microcontos
armazenados na página – ou seria na caixa? Enquanto o palito
escolhido é riscado e se queima, o tempo de leitura se acaba e o texto
desaparece, assim como o palito que o ocultava. Somente com novos
cliques, outros palitos serão riscados e novos textos aparecerão, até
se esgotarem todos os contos, o que, automaticamente, eliminará
também todos os palitos, restando apenas uma caixinha vazia que se
abre e se fecha ao receber cliques (MARTINS; RAMOS, 2014, p. 72).

4.5 MINICONTOS COLORIDOS, DE MARCELO SPALDING


FIGURA 9 – CAPTURA DE TELA DE MINICONTOS COLORIDOS

FONTE: http://www.literaturadigital.com.br/minicontoscoloridos/. Acesso em: 13 nov. 2019.

219
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

De acordo com Martins e Ramos, “o texto de Marcelo Spalding é mais


uma obra feita especialmente para as mídias digitais. Trata-se de um projeto
experimental de caráter colaborativo, lançado em janeiro de 2013. Nele há
informações sobre o autor e sobre literatura digital, além dos minicontos e um link
para contato. Entretanto, o que certamente mais se destaca, é o link denominado
participe, por meio do qual o leitor poderá enviar seu miniconto para ser lido,
avaliado pelo editor, Marcelo Spalding, e, encaixando-se na proposta do projeto,
ser publicado. Mais um site em que o leitor extrapola os limites de sua função
tradicional para atuar também de coautor, enquanto que o autor propriamente
dito passa a revisor e editor do material enviado pelo leitor [...]. Em Minicontos
Coloridos é dada ao leitor a tarefa de escolher cores para a visualização do texto,
o que, nesse caso, significa que o leitor/navegador poderá optar entre vermelho,
verde e azul – ou sua mistura – e, a cada cor, um miniconto diferente. Mais que
isso, cada cor está correlacionada com o conteúdo do miniconto, assim, “pela
extrema concisão e ausência de título, cabe ao leitor buscar nas entrelinhas o
desfecho, devendo usar também a cor para dar completude ao sentido das
histórias”, como esclarece Marcelo Spalding na apresentação do site. Também
nas orientações passadas para o envio de minicontos, é informado que os textos
deverão ser produzidos de acordo com a cor que está sendo indicada, de modo
a cumprir com o principal objetivo do projeto: “[...] fazer com que o leitor tenha
uma nova experiência de leitura de ficção, precisando intervir para ler o maior
número de textos possíveis”, como também é indicado no site que veicula os
Minicontos (MARTINS; RAMOS, 2014, p. 74-75).

DICAS

Antes de continuar a leitura, que tal visitar a página do livro digital Minicontos
Coloridos? Nela, você poderá fazer sua própria mistura de cores e ler o miniconto
referente à cor produzida. Além disso, o projeto tem um caráter colaborativo, ou seja,
você também pode deixar se inspirar pelas cores e enviar seus próprios minicontos, que
poderão ser publicados. O livro está disponível em: http://www.literaturadigital.com.br/
minicontoscoloridos/.

Não há dúvida de que os recursos tecnológicos permitiram inovações no


processo literário, tornando possível a produção da poesia digital que, conforme
Aranha e Borborema (2016, p. 50) distingue-se “pelo uso da palavra, do som e da
imagem animada, formatada pela linguagem de programação do computador”.
De acordo com Cezar (2018, p. 17), a poesia contida no texto digital pode ser
analisada “na presença e na ausência da própria palavra, na sua legibilidade ou
ilegibilidade, na sua relação com a imagem infográfica, no produto resultante
da junção intencional da palavra e da imagem, no predomínio tanto da imagem
como da palavra”.

220
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

A seguir, serão apresentadas algumas poesias digitais. Em concordância


com Aranha e Borborema (2016, p. 47), cabe lembrar que “muito se perde ao analisar
a poesia digital sem poder explorar a sua performance na tela de um computador
conectado em rede, quando a limitamos num espaço gráfico”. Assim, não será
possível “explorar/demonstrar, aqui, a dinamicidade do som e dos movimentos
aliados à palavra e à imagem, que só é construída no ambiente virtual, através do
uso de softwares como o macromedia flash, por exemplo”. Por esse motivo, fica o
convite para que você visite os sites indicados e explore os recursos disponíveis,
produzindo assim novos significados para cada poema apresentado.

Os poemas aqui apresentadas foram classificadas por Aranha e Borborema


(2016) de acordo com o grau de interatividade com o sujeito leitor, que varia
conforme sua participação, que pode ser mais ou menos ativa e colaborativa.

4.6 POESIA MULTIMÍDIA


• Forma

FIGURA 10 – POESIA DIGITAL

FONTE: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/10998/9808>.
Acesso em: 14 nov. 2019.

De acordo com Aranha e Borborema (2016, p. 55), trata-se de um poema


em que

os aspectos visual e sonoro assumem grande importância na


construção de sentidos. Observada em um ambiente virtual, essa
poesia destaca-se pelo efeito rítmico que é sugerido pela repetição da
palavra forma, revelando um movimento de constante transformação
de tal palavra no desenrolar do poema [...]. No que diz respeito

221
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

à interatividade, é possível afirmar que essa poesia se constitui


de grau “um”, as palavras vão mudando o prefixo de quadro em
quadro automaticamente, movimentam-se, automaticamente, em
uma sequência animada, com interferências de pequenas ilustrações
que surgem para revelar o sentido desvendado pouco a pouco, mas
o leitor não precisa mover os quadros, cabendo apenas a ele a função
de “assistir’, passivamente, o desenrolar do texto.

• Cliptocardiograma

FIGURA 11 – POESIA DIGITAL

FONTE: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/10998/9808>.
Acesso em: 14 nov. 2019.

Conforme Aranha e Borborema (2016, p. 59), “o texto se forma, na tela, a


partir de duas partes. Ao acessarmos o poema visualizamos letras, à esquerda da tela,
sob um retângulo vermelho. Na outra parte da tela, à direita, encontramos a forma
de um coração, preenchido, no seu interior, por pequenos símbolos: corações, dados,
punhais, flores, mãos, canetas etc. O formato do coração é sugerido pela disposição
espacial desses símbolos, todos vermelhos representando a cor tradicionalmente
dada ao amor. O título do poema nos remete à pictografia, um tipo de escrita pela
qual as ideias são transmitidas através de desenhos. Assim, o objetivo do poema é
conduzir o leitor a desvendar o enigma, o texto cifrado, que se encontra criptografado
na tela. Para tanto, mediante a utilização do mouse, ele pode clicar e arrastar todas as
letras – uma a uma – que correspondem a cada símbolo que está ao lado. À medida
que o leitor consegue descobrir a letra correta, todos os símbolos semelhantes são
substituídos por essa letra e, dessa maneira, surgem as palavras. Quando o texto
for desvendado, por completo, os recursos tecnológicos reconfiguram o poema e a
imagem do coração começa a se movimentar, simulando o pulsar de um coração.
Assim, podemos notar que a poesia é revelada, obrigatoriamente, pela intervenção
do leitor no texto. O leitor assume uma participação mais ativa e é admitida uma
exploração direta no poema. Vale salientar que cada vez que o leitor clica sobre os
símbolos e acerta a palavra, surgem efeitos sonoros e de animação, que destacam
a presença de uma interatividade na tela. Essa interatividade que antes era restrita
ao plano mental do leitor, no que se refere à interpretação, adquire, agora, um grau
maior, pela concreta oportunidade de interação e manuseio do poema, deixando o
leitor mais próximo da obra de arte”.

222
TÓPICO 2 | LITERATURA NA ERA DIGITAL

• Crescer

FIGURA 12 – POESIA DIGITAL

FONTE: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/10998/9808>.
Acesso em: 14 nov. 2019.

De acordo com a análise empreendida por Aranha e Borborema (2016, p.


60), trata-se de uma poesia que,

observada em um ambiente virtual, organiza-se a partir de um


emaranhado de letras, na cor lilás, e convida o leitor para interagir no
texto, através de uma participação ativa e inventiva. O jogo interativo
se dá a partir da formação do verbo crescer e de outras palavras que
podem ser criadas através das suas sílabas e letras. No canto esquerdo
da tela, surge a palavra arraste para que o leitor possa movimentar,
arrastar ou sobrepor as letras, com o mouse, formando palavras
da maneira que achar conveniente. Dessa maneira, essa poesia
promove liberdade ao leitor, e ao unir criatividade com tecnologia,
enriquece a criação poética que o suporte virtual confere à obra um
caráter essencialmente lúdico. A interferência do leitor permite-lhe
que se transforme em coautor, visto que pode manusear as letras
conforme o seu desejo. Na poesia em análise, a interatividade é mais
alta e centra-se na participação do leitor, o que corresponde a uma
interação de grau três.

223
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

E
IMPORTANT

MANIFESTO DA LITERATURA DIGITAL

1- A Literatura Digital é aquela obra literária feita especialmente para mídias digitais,
impossível de ser publicada em papel.
2- A Literatura Digital busca criar uma nova experiência de leitura para o usuário.
3- A Literatura Digital requer um novo tipo de texto e de autor.
4- Por literatura entende-se a arte da palavra; portanto, um projeto de literatura digital
deve conter texto. Não ser um projeto de literatura digital não é ser melhor ou pior,
apenas outra coisa, como videoarte.
5- A Literatura Digital é um novo gênero literário, não substituindo os gêneros da literatura
tradicional em papel ou e-book.
6- A Literatura Digital pode ser multimídia, hipertextual, colaborativa etc., mas não é
necessário que todos os recursos sejam usados simultaneamente.
7- A Literatura Digital pode ser encarada como uma ferramenta para incentivar a leitura
em ambientes digitais. Não queremos que um usuário largue um livro para ler literatura
digital, e sim que ele largue por 10 minutos seus joguinhos ou redes sociais e leia um
projeto de literatura digital.
8- Livro digital não é livro digitalizado – confundi-los seria o mesmo que filmar uma peça
de teatro e chamar isso de cinema.
9- A Literatura Digital é uma atividade lúdica, mas não é um jogo, pois num jogo o
“objetivo principal é antes de mais nada e principalmente a vitória” (vide Homo Ludens,
de Huizinga).
10- Substitui-se aqui o conceito de livro pelo conceito de obra, entendido como “um objeto
dotado de propriedades estruturais definidas, que permitam, mas coordenando-os, o
revezamento das interpretações, o deslocar-se das perspectivas” (vide Obra Aberta, de
Umberto Eco).

FONTE: <http://www.literaturadigital.com.br/?pg=25012>. Acesso em: 12 nov. 2019.

224
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Os suportes de escrita, que são a base de materialização de um texto, passaram


por diversas transformações ao longo da história, desde as paredes das cavernas
até as telas dos computadores atuais.

• A experiência do leitor com o texto pode variar conforme o tipo de suporte de


escrita utilizado.

• As mídias digitais afetaram as formas de produzir, manipular, armazenar e


distribuir as obras literárias.

• O meio digital fez surgir o conceito de ciberliteratura, que é a literatura


produzida com o auxílio de suportes tecnológicos e que permitem a interação
do leitor com o texto.

225
AUTOATIVIDADE

1 Leia os textos a seguir e faça o que se pede:

TEXTO 1:
“O ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio de
comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo
especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas
também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como
os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao
neologismo “cibercultura”, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais
e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores
que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (LEVY,
1999, p. 17).

TEXTO 2:
“O desenvolvimento da cibercultura se dá com o surgimento da microinformática
nos anos 70, com a convergência tecnológica e o estabelecimento do personal
computer (PC). Nos anos 80-90, assistimos à popularização da internet e a
transformação do PC em um “computador coletivo”, conectado ao ciberespaço,
a substituição do PC pelo CC. Aqui, a rede é o computador e o computador uma
máquina de conexão. Agora, em pleno século XXI, com o desenvolvimento
da computação móvel e das novas tecnologias nômades (laptops, palms,
celulares), o que está em marcha é a fase da computação ubíqua, pervasiva
e senciente, insistindo na mobilidade. Estamos na era da conexão. Ela não
é apenas a era da expansão dos contatos sobre forma de relação telemática.
Isso caracterizou a primeira fase da internet, a dos “computadores coletivos”
(CC). Agora temos os “computadores coletivos móveis (CCm)”. Trata-se da
ampliação de formas de conexão entre homens e homens, máquinas e homens,
e máquinas e máquinas motivadas pelo nomadismo tecnológico da cultura
contemporânea e pelo desenvolvimento da computação ubíqua (3G, Wi-Fi),
da computação senciente (RFID, bluetooth) e da computação pervasiva, além
da continuação natural de processos de emissão generalizada e de trabalho
cooperativos da primeira fase dos CC (blogs, fóruns, chats, softwares livres,
peer to peer etc.). Na era da conexão, do CCm, a rede transforma-se em
um “ambiente” generalizado de conexão, envolvendo o usuário em plena
mobilidade” (LEMOS, 2004, p. 1).

Tendo como base os estudos realizados nesta unidade, elabore um texto


estabelecendo a relação entre o que foi dito por Lévy (Texto 1) e Lemos (Texto 2).

226
2 (ENADE, 2014) Com relação ao uso das Tecnologias da Informação e da
Comunicação (TIC) na leitura e na escrita, assinale a opção CORRETA:

a) ( ) Os leitores da atual idade descartaram os materiais impressos em prol


das facilidades dos repositórios digitais, como os tablets, que dinamizam
os processos da leitura e da escrita.
b) ( ) A leitura e a escrita tornaram-se mais acessíveis devido às tecnologias
digitais, as quais provocaram distanciamento de textos impressos e
instauraram o “internetês” como linguagem oficial.
c) ( ) A diminuição das distâncias espaciais e temporais intensificou e
diversificou os modos de comunicação e informação, flexibilizando a
formação de leitores de modo mais abrangente e superficial.
d) ( ) Os avanços tecnológicos promoveram mudanças significativas nos modos
de ler e escrever, favorecendo, principalmente no ato da leitura, a capacidade
de unir diferentes linguagens para a construção da significação.
e) ( ) As mudanças proporcionadas pela tecnologia nas maneiras de ler, de
produzir e de fazer circular textos nas sociedades desconsideram não só
outras formas de ler e escrever, mas também outros suportes de circulação.

227
228
UNIDADE 3
TÓPICO 3

LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,


ESPAÇOS E SUPORTES

1 INTRODUÇÃO
Neste último tópico, que tem como tema a literatura contemporânea, faz-
se necessário, primeiramente, explicitar o sentido dado ao termo contemporâneo.
Conforme salientam Vieira e Rodrigues (2014), a priori, toda definição apresentada
para esse termo pode ser problemática, podendo ocasionar exclusões e falhas.

De acordo com o dicionário on-line Michaelis (2017, p. 219), contemporâneo


tem como significado aquilo “1- Que é do mesmo tempo; que existiu ou viveu na
mesma época; coetâneo, coevo, temporâneo. 2- Que é do tempo atual”. Entretanto,
a noção de contemporaneidade para leitores dos anos 1970 não é a mesma para
leitores do século XXI.

De forma geral, a literatura contemporânea é aquela produzida em um tempo


histórico próximo; trata-se da literatura dos dias atuais. Os manuais que apresentam a
periodização da literatura consideram como contemporâneas as produções do final do
século XX e da primeira metade do século XXI. Entretanto, não existe uma convenção
quanto à data de início e, diferentemente das escolas literárias, não há uma obra
inaugural que demarca esse tipo de literatura.

Para além de uma definição cronológica, Schollhamer (2011, p. 9-10)


define o contemporâneo como:

[...] aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou


anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo. Por não se
identificar, por sentir-se em desconexão com o presente, cria um ângulo
do qual é possível expressá-lo. Assim a literatura contemporânea não
será necessariamente aquela que representa a atualidade, a não ser por
inadequação, uma estranheza histórica que a faz perceber as zonas
marginais e obscuras do presente, que se afastam de sua lógica.

Em consonância com Schollhamer, Vieira e Rodrigues (2014, p. 4) explicam


a literatura contemporânea como “uma espécie de olhar sob o obscuro da
realidade atual, ou melhor, realidades. Há a necessidade de lidar com o presente,
mas a dificuldade de capturá-lo leva a um distanciamento”.

229
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Nesse quesito, também são oportunas as contribuições de Andrade


(2018, p. 299), que pontua que “para falar de literatura brasileira contemporânea
é preciso fazer um recorte em certa medida arbitrário, isso porque a literatura,
assim como o nosso tempo, está em constante evolução”. Ainda segundo essa
autora, “[...] a literatura faz o diálogo não apenas entre autor e seu leitor, mas
também com o seu passado e seu presente. Assim, contemporâneo será o modo
de ler a obra e perceber tudo o que ela presentifica em nosso tempo, sem se
esquecer das vanguardas”.

Partindo dessas reflexões, esse breve estudo da literatura contemporânea


contemplará a multiplicidade de vozes que caracterizam a literatura de nosso
tempo, que tem como característica principal a diversidade.

2 CARACTERÍSTICAS DA LITERATURA BRASILEIRA


CONTEMPORÂNEA
Multiplicidade, diversidade e heterogeneidade são palavras chaves para
compreensão da literatura brasileira contemporânea. Essa heterogeneidade
pode ser vista, por exemplo, na variedade de tendências estéticas que, segundo
Brandileone e Santos (2019, p. 72), revelam “a presença de recursos literários
como a intertextualidade e a metalinguagem, temas urbanos e/ou regionalistas,
prosa histórica, social e/ou urbana, formas reduzidas ou não, técnicas de escrita
inovadoras ou que têm a marca da tradição”.

Além disso, essa heterogeneidade também está presente “na relação e/


ou no contato estabelecido com o leitor, que se manifesta nos mais diferentes
suportes, os quais oferecem novos caminhos para a publicação das obras”
(BRANDILEONE; SANTOS, 2019, p. 72). Nesse caso, as autoras estão fazendo
referência aos diferentes suportes de escrita como blogs e redes sociais que quebram
barreiras entre o sujeito autor e o sujeito leitor, facilitando a difusão de obras
que antes ficavam restritas ao livro impresso. Na percepção de Schollhammer
(2011, p. 13), “[...] com essas novas plataformas de visibilidade da escrita surgiu
um inédito espaço democrático e foram criadas condições para um debate mais
inédito em torno de novas propostas de escritas”.

Exemplo disso são as produções Máquina de pinball e Vida de gato, de


Clara Averbuck, narrativas que surgiram a partir do blog da autora denominado
Brasileira!Preta. De acordo com Vieira (2017, p. 5612), “examinando-se o caso de
Averbuck, podemos observar que o blog, Brazileira!Preta, indo além da função de
diário virtual, acabou sendo utilizado para a divulgação de sua escrita, de seus
livros, de sua figura autoral”. Além disso, Vieira (2017, p. 5617) conclui afirmando
que “[...] a internet não resulta apenas em novas formas de produção, divulgação,
circulação de literatura, mas novas possibilidades e formas de leitura”.

230
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

Finalmente, a heterogeneidade também pode ser percebida nas diversas


vozes que surgem no âmbito literário, no qual é possível notar a presença de
representatividades pertencentes a grupos até então marginalizados. Conforme
Andrade (2018, p. 305), “[...] a literatura aparece como representação dos interesses
e se preocupa com os problemas ligados ao acesso à voz e à representação dos
vários grupos sociais, isto é, os estudos e a produção literária se tornam mais
conscientes do lugar de fala”. Trata-se, portanto, de uma literatura que extrapola
o cânone tradicional ao apresentar “mais autoras, autores negros, LBGT, e grupos
marginalizados que também buscam seu espaço” (ANDRADE, 2018, p. 298).

A literatura contemporânea, portanto, está ligada ao conceito de literatura


marginal, movimento que surgiu no final dos anos 1970, no contexto da ditadura
militar, e que visava, a princípio, substituir as formas tradicionais de divulgação
e circulação das obras literárias por meios alternativos. Com o passar do tempo,
esse movimento foi ganhando novas vertentes, com a inclusão de novas vozes
até então não representadas na literatura. De acordo com Andrade (2018, p.
75), uma vez que “o discurso literário contemporâneo é produto da cultura e
de demais instâncias – política, econômica, social e histórica –, pode-se afirmar
que hoje as minorias ocupam posições e/ou lugares que antes eram reservadas a
determinados grupos hegemônicos”.

Schollhammer (2011, p. 98), por sua vez, afirma que a literatura marginal
é um fenômeno que, “coloca o contato com a realidade atual brasileira como foco
principal. Trata-se, aqui, de uma literatura que, sem abrir mão da verve comercial,
procura refletir os aspectos mais inumanos e marginalizados da realidade social
brasileira”. Como marco desse tipo de literatura no Brasil, Schollhammer cita
Estação Carandiru, de Dráuzio Varella.

E
IMPORTANT

Você já conhece a obra Estação Carandiru, de Dráuzio Varella? Veja, a seguir,


um breve resumo escrito por Luíza Cipriani.

FIGURA – ESTAÇÃO CARANDIRU

FONTE: <https://www.custojusto.pt/porto/livros/estacao-carandiru-de-drauzio-
varella-29781842>. Acesso em: 15 nov. 2019.

231
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

“Um dos mais icônicos livros da literatura brasileira e o mais famoso de Dráuzio Varella,
Estação Carandiru nos mostra uma realidade que tendemos a ignorar. Publicado em 1999, o
livro registra experiências do autor durante o período em que fez um trabalho voluntário de
prevenção à AIDS na Casa de Detenção de São Paulo — o maior presídio da América Latina
à época. Dráuzio mostra todo o funcionamento do presídio com linguagem jornalística e
expositiva, começando com uma descrição física do local tão exemplar que nos faz sentir
como se estivéssemos passeando pelos pavilhões durante todo o livro, tão familiarizados
ficamos com o ambiente. Em seguida, descreve a rotina dos presos, incluindo refeições,
faxinas, visitas, trabalhos e outros aspectos da organização e da vida dentro da cadeia. Na
sequência, o autor nos conta, em curtos capítulos e adquirindo um tom machadiano de
contar os “causos”, histórias de vida dos presos. Essas histórias nos fazem lembrar o que
muitas vezes se faz esquecer: os presos também são pessoas, com esposas, filhos, mães,
sentimentos, angústias e necessidades. São pessoas como nós, não inferiores, e que ainda
possuem direitos”.

FONTE: <https://medium.com/@luizacipriani/esta%C3%A7%C3%A3o-carandiru-
dr%C3%A1uzio-varella-resenha-edb83ac4f96d>. Acesso em: 16 nov. 2019.

De acordo com Schollhammer (2011), a obra de Varella foi sucedida por


“uma onda de romances, biografias e relatos diversos sobre a realidade marginal
brasileira do crime, das prisões e das periferias mais atrozes, como o romance
autobiográfico Memórias de um sobrevivente (2001), bestseller de Luiz Alberto
Mendes”. Schollhammer ainda cita outros títulos como Sobrevivente Andre do Rap
(organizado por Bruno Zeni), Diário de um detento (Jocenir), Pavilhão 9 – Paixão
e morte no Carandiru (Hosmany Ramos), a coletânea de escritos debutantes de
presos, Letras de liberdade, organizada por Fernando Bonassi e a coletânea
Literatura marginal – Talentos da escrita periférica, organizada por Ferrez, como obras
representativas da literatura marginal por “revelarem um fascínio em torno das
vozes marginais, de uma realidade excluída que agora exige seu espaço também
na ficção” (SCHOLLHAMMER, 2011, p. 98-99).

A despeito da heterogeneidade que caracteriza a literatura contemporânea,


Resende (2008) assevera que ela possui três linhas de forças dominantes, a saber, a
presentificação, o retorno ao trágico e a violência. Vejamos, a seguir, o significado de
cada uma delas. Para explicar a presentificação, Resende (2008, p. 27) afirma que:

Há, na maioria dos textos, a manifestação de uma urgência, de uma


presentificação radical, preocupação obsessiva com o presente que
contrasta com um momento anterior, de valorização da história e do
passado, quer pela força com que vigeu o romance histórico, quer por
manifestações de ufanismo em relação a momentos de construção da
identidade nacional.

Para Brandileone e Santos (2019, p. 72), essa presentificação refere-se a um


“sentido de urgência em retratar o momento presente, espaço e tempo de hoje,
por isso predomínio do olhar sobre o agora, em detrimento do passado ou do
futuro”. Ainda sobre essa temática, Silva (2013, p. 321) assevera que:

232
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

Essa urgência em lidar com o presente evidencia-se tanto por atitudes


– como a entrada no universo da produção literária de escritores
moradores das periferias ou segregados da sociedade como os
encarcerados que substituem a mediação pela presentificação de suas
próprias vozes – quanto por aspectos formais – como a importância
crescente dos contos curtos ou curtíssimos.

Em consonância, com esse pensamento, Schollhammer (2011, p. 10)


reflete que o escritor da contemporaneidade “[...] parece estar motivado por
uma grande urgência em se relacionar com a realidade histórica, estando
consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua especificidade
atual, em seu presente”.

A outra linha de pensamento que perpassa a literatura contemporânea


refere-se ao retorno ao trágico que, conforme Resende (2008, p. 29) “[...] estabelece
um efeito peculiar com o indivíduo, supera-o e traça uma relação direta com o
destino. Trágico e tragédia são termos que se incorporaram aos comentários sobre
nossa vida cotidiana [...]”. A esse respeito, Silva (2013, p. 321), inclusive, lembra
que o trágico não é algo exclusivo da literatura, já que “encontra-se presente em
diversos aspectos do nosso cotidiano, tão marcado pela exposição das tragédias
públicas e particulares na mídia, principalmente, televisiva”.

A tragédia vivenciada pelas personagens literárias, portanto, está


relacionada à tragédia social, às condições de vida às quais o sujeito é exposto
cotidianamente. Ainda recorrendo a Resende (2008, p. 30), é importante
observar que “[...] a manifestação de forte sentimento trágico que aparece
na prosa pode se reunir ao sentido de presente de que já falei, já que nas
narrativas fortemente marcadas por um páthos trágico a força recai sobre
momento presente imediato, presente”.

Como exemplo de obra que se utiliza do trágico na composição da


narrativa, Assis (2013) cita Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato (2009),
que traz Serginho como personagem principal:

A narrativa tem apenas dois capítulos: um intitulado “Como parei de


fumar” e o outro “Como voltei a fumar”, e é na passagem de uma ação
para outra que Ruffato nos conta, através de uma escrita que tenta ao
máximo aproximar-se da fala coloquial e de um relato verdadeiro , como
um morador do interior de Minas Gerais segue para Portugal buscando
fazer fortuna em terras estrangeiras. O relato, após mostrar todas as
privações e sofrimentos, bem como um caso amoroso entre Serginho e
uma prostituta, termina com a descrição do mesmo sem emprego, sem ter
onde morar e o pior, sem documentos, passando a viver de forma ilegal e
não tendo como voltar para o Brasil (ASSIS, 2013, p. 7).

Por fim, a terceira e mais significativa constante presente na literatura


contemporânea brasileira é a temática da violência nas grandes cidades. A
propósito, ao refletir sobre o tema Resende (2008, p. 34) apresenta o seguinte
questionamento: “é possível, hoje, discutir a situação política do atual estado do
mundo sem passar pelo debate da violência, sua produção, sua narrativa?”

233
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

De fato, nota-se que a violência está bastante entrelaçada à produção


literária atual e, como exemplo, é possível citar a obra Cidade de Deus, de Paulo
Lins, que “[...] volta-se para o local em toda a sua violência, talvez nele estejam as
cenas mais violentas da literatura brasileira. É a subcultura do crime, do arbítrio,
do mundo organizado não mais pelo trabalho, mas principalmente pelo universo
infrator do narcotráfico” (RESENDE, 2008, p. 36).

Schollhammer (2009, p. 27), inclusive, também faz referência a essa


violência presente nas narrativas literárias reportando ao termo brutalismo, que se
caracteriza “[...] pelas descrições e recriações da violência social entre bandidos,
prostitutas, policiais corruptos e mendigos. Seu universo preferencial era o da
realidade marginal, por onde perambulava o delinquente da grande cidade”.

O excesso de realismo presente na literatura, entretanto, tende a igualá-la


à mídia, em sua sede de superexposição à realidade (BRANDILEONE; SILVA,
2019). Sobre esse aspecto Resende (2008, p. 38) chama atenção para o fato de que
“[...] quando esse realismo ocupa de forma tão radical a literatura, excesso de
realidade pode se tornar banal, perder o impacto, começar a produzir indiferença
em vez de impacto”.

Embora muitos críticos enxerguem essa temática como extensão da


realidade social, caracterizada pela violência, faz-se necessário, conforme
pontuado por Andrade (2018, p. 300), “analisar as obras de acordo com seu
universo ficcional, sem deixar de levar em conta as realidades contextuais
nas quais tais obras estão inseridas”. Fazendo referência à filósofa Marilena
Chauí, Andrade (2018, p. 300) lembra que “[...] a violência é um tema histórico
enraizado no imaginário nacional. A própria sociedade brasileira é marcada,
desde sua fundação, por uma estrutura hierárquica verticalizada, numa relação
de dominantes e dominados, que reforça as desigualdades”. Nesse sentido, é
importante lembrar que:

Fatos como a colonização, a escravização, o imperialismo, as lutas pela


independência, o processo de industrialização, a formação das cidades, as
ditaduras e as manifestações de rua também são exemplos que apontam
as diversas matizes de violência na história. Desse modo, a linguagem
e o discurso literário incorporam essa questão ao mundo ficcional, seja
de forma expressa ou incidental, física ou psicológica, de acordo com as
experiências vividas pelas personagens (ANDRADE, 2018, p. 300).

Além dos três pontos de convergência apresentados, Brandileone e Silva


(2019, p. 74) apresentam outro aspecto da literatura contemporânea, que é a
aproximação com a vida ordinária, uma vez que os autores “inspiram-se também
em histórias do dia a dia, que trazem à tona universos íntimos e não apenas o
retrato dos problemas sociais dos excluídos socialmente. Sobre esse aspecto são
pertinentes as considerações de Schollhammer (2011, p. 16) ao afirmar que: “[...]
a ficção contemporânea não pode ser entendida de modo satisfatório na clave da
volta ao engajamento realista com os problemas sociais, nem na clave do retorno
da intimidade do autobiográfico, pois, nos melhores casos, os dois caminhos
convivem e se entrelaçam de modo paradoxal e fértil”.

234
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

Uma outra característica das narrativas contemporâneas, na perspectiva


de Assis (2013), é trazer à tona a questão dos conflitos familiares. De acordo com
o autor,

[...] o romance de temática familiar há muito povoa o universo literário,


o que queremos deixar evidente com a nossa proposta é que, mais do
que nunca, o contexto familiar e seus conflitos vêm à tona e são matéria
prima para a construção das narrativas literárias. Não podemos negar
que é o próprio período temporal e cultural que alimenta e serve de
reflexo para a narrativa recente. A literatura contemporânea brasileira
retrata e, acima de tudo, recria o retrato da nossa atual sociedade, onde
cada vez mais famílias se desfazem e se refazem, se odeiam e se amam,
se unem e se separam, mas, acima de tudo, nunca deixam de existir
(ASSIS, 2013, p. 19).

Para exemplificar, Assis (2013) apresenta uma série de romances


contemporâneos que tem como pano de fundo a temática dos conflitos familiares:
Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum, O filho eterno (2007), de Cristóvão Tezza,
Heranças (2008), de Silviano Santiago, O livro dos nomes, de Maria Esther Maciel,
O gato diz adeus (2009), de Michel Laub e Espelhos quebrados (2009), de Edna Uip.

3 CONHECENDO ALGUNS AUTORES DA LITERATURA


BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
No subtópico anterior foram apresentadas algumas características
da literatura brasileira contemporânea, cuja marca principal é a diversidade.
Entretanto, mesmo sendo criadas sob o signo da heterogeneidade, as obras,
na maioria das vezes, possuem pontos convergentes, que é justamente o fato
de os autores terem a preocupação de documentar problemas específicos dos
grandes centros urbanos. Tais problemas são apresentados, especialmente,
sob a perspectiva de vozes que até então não tinham visibilidade na literatura
tradicional: negros, mulheres, homossexuais, moradores de rua e outras minorias
religiosas e étnicas.

Nessa ambiência são discutidas questões como identidade, exílio e


diáspora, por exemplo, como no caso das narrativas de Milton Hatoum, já
mencionado na unidade anterior. Os romances de autoria feminina abordados
na primeira unidade deste livro didático também ganham destaque na literatura
brasileira contemporânea ao discutirem questões como a violência contra a
mulher, o casamento, a maternidade, o mundo do trabalho, entre outros temas.

Vamos, agora, apresentar alguns desses autores e respectivas obras,


acompanhadas de análises produzidas no espaço acadêmico para que você possa
compreender, em termos práticos, as características da literatura contemporânea.

235
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

3.1 RUBEM FONSECA


Rubem Fonseca (1925) é um escritor
brasileiro,  considerado um dos maiores
ficcionistas em atividade no Brasil. Ganhou vários
prêmios, entre eles a Coruja de Ouro, o Kikito do
Festival de Gramado, o Prêmio Jabuti e o Prêmio
Camões. Rubem Fonseca (1925) nasceu em Juiz
de Fora, Minas Gerais, no dia 11 de maio de 1925.
Estudou Direito na Universidade do Brasil, hoje
Universidade do Rio de Janeiro. Entrou para a
polícia como comissário do Distrito Policial de
São Cristóvão. Trabalhou pouco tempo nas ruas.
Era um policial de gabinete, cuidava dos serviços
de relações públicas da corporação. Em 1953, foi escolhido para se aperfeiçoar
nos Estados Unidos. Durante esse período fez mestrado em Administração na
New York University. Regressou ao Brasil em 1954. Argumentista e roteirista de
filmes, exerceu essas atividades paralelamente ao trabalho na Light do Rio de
Janeiro. Em 1958 foi exonerado da polícia e se dedicou integralmente à literatura.

Estreou na literatura com o livro de contos Os Prisioneiros, em 1963. É


considerado um dos maiores ficcionistas em atividades no Brasil. Retrata em
seus livros o mundo violento das cidades. Seu livro de contos "Feliz Ano Novo",
publicado em 1975, foi recolhido pela censura no ano seguinte. Só foi liberado
em 1989, depois de longa batalha judicial. Recebeu o prêmio Coruja de Ouro,
pelo roteiro de Relatório de um Homem Casado. Recebeu o prêmio Kikito, do
festival de Gramado, pelo roteiro de Stelinha. Recebeu o Prêmio da Associação
Paulista de Críticos de Arte, pelo roteiro de A Grande Arte. Recebeu o Prêmio
Jabuti e o Prêmio Camões.

FONTE: <https://www.ebiografia.com/rubem_fonseca/>. Acesso em: 16 nov. 2019.

Rubem Fonseca é um marco da literatura brasileira contemporânea,


sendo que suas narrativas retratam o drama da vida e os acontecimentos urbanos,
trazendo à tona sujeitos quase sempre postos à margem da sociedade. O tema da
violência é evidente em suas obras e, de acordo com Paz e Heineck (2016, p. 253),
trata-se de uma violência que

[...] não é somente física (agressões, estupros, assassinatos etc.), mas,


principalmente, verbal: seus personagens dizem palavrões, chocam
pelos seus pensamentos e, sobretudo, pela linguagem utilizada pelo
autor, que é objetiva, direta e seca. Essa linguagem transforma toda
a violência em algo verbal, de modo que a narração da violência nos
choca mais do que as ações propriamente ditas.

236
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

Rubem Fonseca publicou diversas obras, dentre elas: Os Prisioneiros,


contos (1963); A Coleira do Cão, contos (1965); Lúcia McCartner, contos (1667); O
Caso Morel, romance (1973); O Homem de Fevereiro ou Março, antologia (1973);
Feliz Ano Novo, contos (1975); A Grande Arte, romance (1983); Vastas Emoções e
Pensamentos Imperfeitos, romance (1988); Agosto, romance (1990); Romance Negro e
Outras Histórias, contos (1992); O Selvagem da Ópera, romance (1994); O Buraco na
Parede, contos (1995); História de Amor, contos (1997); A Confraria dos Espadas, contos
(1998); O Doente Moliére, romance (2000); Pequenas Criaturas, contos (2002); Ela e
Outras Mulheres, contos (2006); Axilas e Outras Histórias Indecorosas, contos (2011);
Amálgama, contos  (2013); Histórias Curtas, contos (2015); Calibre 22, contos  (2017);
Carne Crua, contos (2018).

Veja, a seguir, um trecho de Feliz Ano Novo, uma de suas obras mais
conhecidas, seguido de comentários sobre ela.

FELIZ ANO NOVO

“Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado


roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas
de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque. Pereba,
vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos
macumbeiros. Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor. Vai mijar noutro
lugar, tô sem água. Pereba saiu e foi mijar na escada. Onde você afanou a TV?
Pereba perguntou. Afanei porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima
dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada
no meu cafofo? Tô morrendo de fome, disse Pereba. De manhã a gente enche a
barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem. Não conte
comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui
na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá
ele aí, fudidão, andando de muleta. Pereba sempre foi supersticioso. Eu não.
Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que
quiser. Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos
de canal, prum bangue-bangue. Outra bosta” (FONSECA, 2012, p. 6).

FIGURA 13 – FELIZ ANO NOVO

FONTE: <https://www.estantevirtual.com.br/livros/rubem-fonseca/feliz-ano-
novo/4076603867>. Acesso em: 16 nov. 2019.

237
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Considerado um dos principais livros de Rubem Fonseca,  Feliz Ano


Novo, lançado em 1975, teve sua publicação e circulação proibidas em todo
o território nacional um ano mais tarde, sendo recolhido pelo Departamento
de Polícia Federal, sob a alegação de conter “matéria contrária à moral e aos
bons costumes”. Foi proibido pela censura do regime militar, acusado de fazer
apologia da violência. O regime autoritário, que tentava à força encobrir os
problemas que compunham a face negra do país, não suportou a linguagem
precisa e contundente dessa coleção de contos que traduzem ficcionalmente a
verdadeira fratura exposta do corpo social. A atualidade artística de histórias
como a que dá nome ao volume colabora para lastrear a reputação de um dos
maiores escritores brasileiros vivos.

FONTE: <https://marijane.com.br/feliz-ano-novo/>. Acesso em: 16 nov. 2019.

3.2 FERNANDO BONASSI


Fernando Bonassi  é um escritor,
roteirista, dramaturgo  e  cineasta brasileiro.
Nasceu em 1962 na cidade de São Paulo, no
bairro da Mooca. Formado em  cinema  pela
USP, tem se destacado pela narrativa versátil,
transitando pela literatura e pelo audiovisual
com a mesma fluidez. Sua primeira peça é
de 1989, As Coisas Ruins da Nossa Cabeça, ainda
inédita no palco, mas que ganha adaptação
para o cinema, por Di Moretti e  Toni Venturi, intitulada  Latitude Zero, filme
protagonizado por Débora Duboc, em 2001. Estreia no teatro com Preso Entre
Ferragens, em 1990, espetáculo dirigido por Eliana Fonseca.

Em 1996, transpõe para o palco seu romance Um Céu de Estrelas, dirigido


por Lígia Cortez. No mesmo ano, o romance ganha versão cinematográfica
nas mão da diretora  Tata Amaral, tendo Leona Cavalli como atriz principal.
A adaptação foi assinada por Jean Claude Bernardet e Roberto Moreira. Seu
romance  Subúrbio  também  foi adaptado para o teatro no mesmo ano. Na
Alemanha, em 2000 foi lançado seu livro infanto-juvenil Uma Carta Para Deus.
Em dramaturgia, uma de suas criações cênicas mais notáveis até o momento,
foi  Apocalipse 1,11, espetáculo de  2000  inspirado no Apocalipse, de São João,
último episódio do livro bíblico, junto ao  Teatro da Vertigem  de  Antônio
Araújo. Também merece destaque o texto Woyzeck desmembrado, desenvolvido
em parceria com o ator Matheus Nachtergaele. Em cinema, merecem destaques
suas coautorias dos roteiros de Cazuza – O Tempo Não Para e Carandiru.

FONTE: <http://empilhandopalavras.blogspot.com/2011/01/biografia-fernando-bonassi.html>.
Acesso em: 16 nov. 2019.

238
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

Conforme visto na biografia apresentada, a produção literária de Fernando


Bonassi é bastante diversificada, pois ele transita do roteiro cinematográfico à
literatura. Além disso, escreveu livros para o público adulto e infantojuvenil,
sendo notórios os seus minicontos, tendência recente na literatura contemporânea.

Suas obras também retratam as tensões das ruas das grandes cidades
marcadas pela violência. Dentre as obras produzidas, temos Prova Contrária, 2003;
São Paulo/Brasil, 2002; Passaporte, 2001; O Amor é uma Dor Feliz, 1997; 100 histórias
colhidas na rua, 1996; Subúrbio, 1994; Crimes Conjugais, 1994; Um céu do mundo,
1991; O Amor em chamas, 1989; Diário da Guerra de São Paulo, 2007, entre outros.

Veja, a seguir, um pouco da obra 100 histórias colhidas na rua, na qual o autor
reúne cem histórias urbanas, em forma de minicontos, que revelam aspectos do
mundo contemporâneo. A seguir também serão apresentados alguns minicontos
presentes na obra.

FIGURA 14 – 100 HISTÓRIAS COLHIDAS NA RUA

FONTE: <https://livralivro.com.br/books/show/421446>. Acesso em: 16 nov. 2019.

“Em 100 histórias colhidas na rua, o autor registra, em textos curtos e


curtíssimos, fatos bastante verossímeis, que carregam uma representação que
choca e provoca, pois traz à tona o escondido da realidade dominante. Além
disso, o livro tenta revelar aspectos da vida que os jornais omitem, fazendo
frente direta a um dos discursos mais embasadores do cotidiano vigente, um
dos que mais constrói realidades, ou melhor, modelos de hiper-realidades, que
é o jornalístico, o da mídia [...]. As cem histórias do livro não têm relação direta
umas com as outras, no sentido convencional, mas a coesão do conjunto é dada
pelo eixo temático condensado no título, onde “rua” passa a ser símbolo de
cidade e de sua cotidianidade [...]. O tamanho do texto acaba colaborando para
o seu aparente caráter simplista e superficial, que providencialmente pode ser
adensado pelo leitor, dentro das possibilidades oferecidas pelo próprio texto.
Aparentemente 100 histórias colhidas na rua é apenas mais uma ficção realista, que
pretende substituir ou fazer o papel da mídia; porém, muito mais do que isso,

239
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

tal texto questiona o próprio discurso midiático, no momento em que constrói


representações semelhantes às dos jornais, utilizando uma linguagem poética, a
qual não é nada unívoca. O livro não possui uma ordem rígida, portanto tanto
faz com que o leitor inicie sua leitura, a ele caberá ter um papel ativo e fazer
relações entre as histórias” (FERNANDES; CARMO, 2010, p. 8; 11; 12-13).

Veja, a seguir, dois minicontos extraídos da obra 100 histórias colhidas na rua.

“Decidiu. Antigamente esperava que algo esbarrasse nele, então


começava a andar. Agora vai atrás de tudo o que chama sua atenção: certas
cores de roupas; caminhões de lixo; cães pequineses; sequências numéricas
aleatórias; sons; o andar de algumas mulheres; policiais em ronda; faixas
intermitentes; faixas contínuas; nomes de rua começando com determinadas
letras ou nomes inteiros com determinadas letras ou nomes inteiros com
determinadas combinações – isso entre outras modalidades da espécie de
gincana que estabeleceu consigo mesmo. Percorre vários quilômetros/horas/
dias inteiros. Às vezes muda de bairro, às vezes nem. Decidiu. Faz três meses
e não fez diferença alguma. Tudo indica que deve continuar assim: apenas
carregando o seu corpo de um lado para outro” (BONASSI, 1996, p. 55).

“Sete crianças moradoras da favela Zaki Narchi (Zona Norte), foram


internadas após comerem doces (sonhos) estragados. Elas teriam ganho os sonhos
do dono de uma lanchonete, ainda não identificado. As crianças foram internadas
no pronto-socorro de Santana e não correm riscos” (BONASSI, 1996, p. 185).

3.3 ADRIANA LUNARDI


FIGURA 15 – ADRIANA LUNARDI

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Adriana_Lunardi>. Acesso em: 16 nov. 2019

240
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

Adriana Lunardi estreou na literatura com  As meninas da Torre


Helsinque  (Mercado Aberto/PMPA, 1996), livro pelo qual recebeu o prêmio
Açorianos (1997) em duas categorias: melhor livro de contos e autor estreante.
Em 2002, lançou  Vésperas  (Rocco), livro de contos agraciado com a bolsa para
escritores da Fundação Biblioteca Nacional e indicado ao prêmio Jabuti. Vésperas
também foi publicado na França, Argentina, Portugal e Croácia. Corpo estranho,
seu primeiro romance (Rocco, 2006), foi finalista do prêmio Zaffari/Bourbon. Seu
livro mais recente, A vendedora de fósforos (romance, Rocco, 2011), é finalista do
Prêmio São Paulo. Quando não escreve livros, Adriana redige roteiros para a TV,
especialmente documentários. Ministra cursos de leitura para futuros escritores e
já realizou uma oficina de texto para moradores de rua, que resultou na publicação
do livro Letras na Rua (PMPA, 1993). Adriana tem formação acadêmica  em
Comunicação Social  e mestrado  em Literatura Brasileira. Nasceu  em Santa
Catarina, morou em Porto Alegre e vive no Rio de Janeiro.

FONTE: <http://www.agenciariff.com.br/site/AutorCliente/Autor/92>. Acesso em: 16 nov. 2019.

Adriana Lunardi é um importante nome da literatura brasileira


contemporânea cujas obras, além de terem sido reconhecidas por meio de diversas
premiações, também foram bem aceitas pela crítica e pelo público. Veja, a seguir,
alguns trechos da obra A vendedora de fósforos bem como alguns trechos de sua
análise, feita por Amaral (2016).

FIGURA 16 – FÓSFOROS

FONTE: <https://www.amazon.com.br/vendedora-f%C3%B3sforos-Adriana-Lunardi-ebook/dp/
B00A3D97HG>. Acesso em: 17 nov. 2019.

241
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

“A vontade de explorar em detalhes, de registrar tudo, foi tão forte que não
pude manter meus dedos longe do teclado, nem no hospital, onde estou
sentada agora, junto a uma tomada de energia, de frente para um crucifixo
para onde olho de vez em quando tentando lembrar por que razão mesmo eles
são pendurados nas paredes” (LUNARDI, 2011, p. 128).
[...]
“No visor do telefone encontro cinco chamadas perdidas, todas de Max.
Quando nos conhecemos, eles já não estavam juntos havia mais de dois anos.
O que não quis dizer nada. O tempo não contava, não conta, para ela. E eu não
podia pedir perdão por aquilo, nunca pedi. A nossa desgraça, mana era querer
o mesmo. Um mal da nossa descendência. Não importava quem chegasse
primeiro, eu tinha a vantagem de ser mais velha. Fiquei com o que era meu
e também com o que planejei para a minha irmã. Sendo as duas, não sobrou
quase nada para ela” (LUNARDI, 2011, p. 182-183).

“A obra A Vendedora de Fósforos, de Adriana Lunardi, é um romance brasileiro


contemporâneo escrito a partir de duas narrativas, sob o ponto de vista da
mesma personagem. No entanto, em uma o narrador é a protagonista adulta e
na outra o narrador é a protagonista em sua infância. Nesta última narrativa,
a composição dá-se a partir de flashes de memórias de infância da narradora/
protagonista. Publicado em 2011, o romance A Vendedora de Fósforos possui
vários aspectos que permitem encaixá-lo na fase do romance contemporâneo,
tanto quanto à forma quanto ao conteúdo. O dinamismo da forma, subversão
na pontuação, ironia e intertextualidade são pontos que diferenciam essa obra
de um romance moderno, por exemplo, em que há um rigor estético e formal
na apresentação da obra. O próprio título é uma referência intertextual do conto
dinamarquês de Andersen, em que uma pobre menina vende fósforos, em uma
fria véspera de ano novo. Cada fósforo que ela acende revigora uma lembrança
[...]. A conclusão a que cheguei é que as representações (principalmente
alicerçadas nas memórias) em A Vendedora de Fósforos ajudam o entendimento
do mundo, tópico que os estudos contemporâneos da literatura propõem.
Grosso modo, a literatura é vista apenas como arte do uso das palavras ou no
máximo forma de comunicação focada na mensagem. No entanto, a literatura
também pode ser vista como uma ciência em que podemos aprender sobre o
viver [...]. Na obra de Lunardi (2011), esse propósito é claro. Pode-se notar desde
o prefácio, e ao longo da narrativa, que são utilizados rastros de memórias para
obter autoconhecimento e, consequentemente, ter um entendimento maior das
vivências em comunidade e relações humanas. Ao representar as memórias
em esse texto literário, há uma reivindicação de uma pertinência da literatura
relacionada ao estudo da vida” (AMARAL, 2016, p. 144-145;154-155).

242
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

4 A ESCOLA E A FORMAÇÃO DE LEITORES NA


CONTEMPORANEIDADE
A leitura é considerada um instrumento essencial na formação do sujeito,
pois ela fornece importantes aportes de inserção e participação social. O ato de
ler teve seu significado ampliado à medida que as sociedades foram evoluindo,
conforme observado por Fischer (2006, p. 39): “A sede de conhecimento da
humanidade e o amor pela aprendizagem eram a centelha da leitura principiante.
Talvez esta necessidade, não só de saber, mas de saber mais, tenha estimulado
desde muito cedo a paixão e o respeito pela leitura que viria, com o tempo, a
ocupar todos os cantos do mundo”.

A leitura, “atividade interativa altamente complexa de produção de


sentidos” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 11), é uma prática que se estende ao longo da
vida, mas que se inicia, na maioria das vezes, na escola. A escola desempenha um
papel importante nesse processo ao possibilitar que seus alunos assumam uma
posição de leitores ativos na busca dos significados que o texto apresenta.

Entretanto, conforme visto no decorrer desta unidade, nos últimos


tempos houve uma mudança no perfil do leitor devido à popularização das novas
tecnologias da informação e comunicação. De acordo com Souza e Schlindwein
(2018, p. 85),

[...] o leitor de hoje usa o seu smartphone ou tablet como suporte de


diferentes tipos de textos, algo muito comum principalmente entre os
leitores mais jovens. Por uma série de diversos fatores, o leitor de hoje
normalmente não consegue mais permanecer horas numa biblioteca
lendo um livro, no silêncio esperado nesse ambiente. O leitor atual é
mais dinâmico, que lê de formas múltiplas, em diferentes suportes, em
movimento e no mundo virtual.

Neste sentido, são pertinentes as considerações de Machado e Lopes


(2016, p. 160):

[...] num contexto de mundo contemporâneo – na complexidade da vida


real, numa sociedade em que as tecnologias digitais e de hipermídia
dividem o espaço com aspectos formais da cultura escrita – não cabe
mais um conceito de escola pensado, planejado e reproduzido por
gerações arraigadas nos paradigmas mais tradicionais de formação de
leitores e produtores de escrita. Caminha-se, então para uma maneira
distinta de se pensar tal formação.

Esse novo perfil do leitor contemporâneo apresenta novos desafios à educação,


dentre os quais destacam-se o desenvolvimento da capacidade de compreender os
diferentes tipos de produção que existem no mundo digital e a função social de cada um
deles, bem como a capacidade de perceber a confiabilidade do material lido (SOUZA;
SCHLINDWEIN, 2018).

243
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Nesse contexto, também é importante ter em mente que a literatura digital se


configura como “uma das vertentes da literatura geral”, devendo ser vista “não
como uma alternativa melhor, mas como uma possibilidade de ampliação do
hábito de leitura por parte do aluno e de formação do leitor literário” (SOUZA;
SCHLINDWEIN, 2018, p. 86), ou seja, conforme pontuado por esses autores, a
literatura digital não é uma concorrente da literatura impressa tradicional, mas
uma aliada na formação do leitor contemporâneo. De qualquer forma, Fischer
(2006, p. 7) alerta que:

[...] a leitura envolve muito mais que trabalho e navegação na rede. A


leitura é par a mente o que a música é para o espírito. A leitura desafia,
capacita, encanta e enriquece. Pequenas marcas pretas sobre a folha
branca ou caracteres na tela do computador pessoal são capazes de
nos levar ao pranto, abrir nossa mente a novas ideias e entendimentos,
inspirar, organizar nossa existência e nos conectar ao universo
(FISCHER, 2006, p. 7).

Sobre a preocupação de muitos educadores acerca da substituição do livro


pela tecnologia, Duarte (2011, p. 3) alerta que “a literatura virtual é uma realidade
e tem formado costumes, sendo assim merecedora de atenção e pesquisa”, ou
seja, compete à escola descobrir as melhores formas apropriar-se dessa realidade
para formar leitores competentes.

Assim, é necessário que a escola reavalie a forma como tem trabalhado a
literatura em sala de aula, para que os alunos se sintam motivados e percebam
a literatura como um fenômeno artístico articulado às transformações históricas
e culturais da sociedade. Também é necessário que o ensino de literatura esteja
articulado aos desafios da cultura digital, já que a interação autor-texto-leitor tem
apresentado significativas mudanças em função das inovações tecnológicas.

TUROS
ESTUDOS FU

Para complementar o que foi visto na unidade, leia o artigo a seguir, escrito
por Alberto Hércules dos Santos Coelho Barbosa, no qual ele apresenta reflexões teóricas e
sugestões práticas sobre o ensino de literatura e o uso de recursos tecnológicos no Ensino
Médio. Boa leitura!

244
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

LEITURA COMPLEMENTAR

O ENSINO DE LITERATURA E O USO DE RECURSOS TECNOLÓGICOS


NO ENSINO MÉDIO

Alberto Hércules dos Santos Coelho Barbosa


Mestrando em Letras (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), professor
da rede estadual do Rio de Janeiro

Introdução

O ensino de Literatura atual enfrenta pelo menos duas crises no que


tange aos seus aspectos prático e pedagógico. No primeiro, ouve-se a pergunta
de alunos e professores: “para que estudamos isso?”. No segundo, mesmo que
não se tenha chegado a uma resposta satisfatória para o primeiro, ouvem-se as
dúvidas dos docentes: “Como trabalhar? Por movimentos literários, com o texto?
E o contexto histórico, tão necessário?”.

As duas crises representam questões profundas da educação, desde


o currículo prescritivo, hierarquia de disciplinas e saberes, orientações legais
que nem sempre se coadunam com a prática, dentre outros. Dessbesell e Fruet
afirmam que, “mediante o avanço das tecnologias, o ensino da Literatura nas
escolas vem passando por uma crise, ocasionada não só pelas formas de ensino
inadequadas, mas também pela proliferação da cultura de massa. Essa crise pode
apresentar dois polos antagônicos: o do perigo e o das oportunidades”.

Cumpre ressaltar que este trabalho não se aprofundará nas questões


apresentadas, mas buscará traçar respostas para as duas crises descritas: a prática
e a pedagógica. Tais respostas perpassam a questão da tecnologia em sala de aula
em cada viés apresentado: as tecnologias de informação e comunicação podem
influenciar a parte prática, transformando o cotidiano dos alunos, podendo ser
fortes aliadas no aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem. A esse
respeito, as autoras citadas destacam o fato de que “o próprio ensino da Literatura
pode se tornar muito mais prazeroso e de fácil entendimento para os alunos se
trabalhado com textos digitais oferecidos pela internet, pois através dessa prática
eles vão estar relacionando e contextualizando os conteúdos trabalhados em sala
de aula com o mundo externo” (2012, p. 51).

O objetivo principal deste trabalho é contribuir para novas formas


de ensino de Literatura no Ensino Médio, aproximando o aluno da leitura e
inserindo-o no contexto dos recursos tecnológicos para a aprendizagem. [...] Esta
pesquisa busca atender a anseios teóricos e práticos dos professores de Literatura
do Ensino Médio, conscientizá-los de que o texto literário também pode servir
de base para estudos interdisciplinares e circular no meio tecnológico, assim
como ser apresentado em diversos suportes e ser recriado, discutido, debatido,
adequando-se às demandas culturais, tecnológicas e práticas dos estudantes.

245
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

A UTILIZAÇÃO DE RECURSOS TECNOLÓGICOS NA PRÁTICA DOCENTE

O século XXI se iniciou, no Brasil, assistindo a uma verdadeira revolução


educacional, quando a informação resolveu pular os muros da escola e começou
a se espalhar no mundo digital. Um mundo que, hoje, já é intrínseco ao mundo
escolar e ao universo do conhecimento.

Essa revolução não se deu por partido político ou teorias pedagógicas;


aconteceu de forma natural, em sociedade, em todos nós. De repente, novas
habilidades são necessárias e o professor passa a enfrentar novos desafios, os alunos
descobrem outros meios e, por fim, a sala de aula também passa a ser virtual.

Vieira Pinto (2005) apresenta quatro conceitos para tecnologia. A


tecnologia como primeira acepção, como  logos  da técnica, teoria, abrange um
significado pouco usual na sociedade contemporânea. Essa primeira acepção trata
da tecnologia como ciência, ou seja, estudo da técnica, numa concepção de técnica
como “um produto da percepção humana que retorna ao mundo em forma de
ação, materializado em instrumentos e máquinas" (p. 221). Esse conceito abarca
desde profissões a manifestações artísticas.

O senso comum da tecnologia atualmente é a segunda acepção, identificada


pelo autor como a própria técnica. O produto final daquele logos inicial é o que é
identificado como tecnologia pelo senso geral, ou seja, a tecnologia é representada
pelo resultado, pelo objeto e pela materialização. O computador, como um
moderno instrumento, é tecnologia dentro dessa acepção.

É importante salientar, no entanto, que

os computadores constituem uma síntese de conhecimentos


científicos e técnicos, sendo produtos do estudo sistemático
de dispositivos físicos e a aplicação de uma série de inovações
tecnológicas. Nesse sentido, os computadores, entendidos como a
interação entre hardware e software, não se reduzem ao significado
instrumental que frequentemente se atribui ao termo "tecnologia"
(SPRITZER; BITTENCOURT, 2009, p. 123).

O terceiro significado de tecnologia é um conjunto de técnicas de um grupo


em um dado tempo. É também um significado mais popularizado, sobretudo
para a revolução tecnológica que vivemos no século XXI e que se reflete em
todas as áreas da vida. Numa exemplificação atual, perfazendo a segmentação
de tempo ou de grupo necessária para essa acepção, a internet, a digitalização,
os celulares e  tablets  com crescentes recursos de interação configuram hoje o
terceiro significado dessa tecnologia, contribuindo também para o quarto, para o
narcisismo tecnológico vivenciado na sociedade pós-moderna.

O quarto significado, talvez o mais complexo, trata da ideologia criada


por usos e significados da tecnologia. Mais complexo porque opera dentro do
homem, em sua consciência. Parte do  logos, da teoria, para a experiência da

246
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

ação, modificando-o e modificando as pessoas e as coisas à sua volta e dentro


de si. Como assinala o autor, “a prática da técnica conduz a uma modificação
das ideias, podendo alterar as existentes, anulá-las ou introduzir outras, novas”
(2005, p. 321); provocando, portanto, efeito não apenas externo ao homem, mas
também interno, em suas ideias, em sua imagem pessoal.

Partindo de tal definição, podemos citar como exemplo duas pessoas


diante de um espelho de proporções enormes – por representar o homem olhando
para si mesmo, externando não só o produto de sua tecnologia, mas o narcisismo
e a ampliação de sua imagem externa por sua própria visão, que emprestam à
tecnologia a acepção ideológica, perpassando o primeiro e o segundo significados.

Essa acepção ideológica está presente na tecnologia do terceiro significado,


contemporânea. Nunca o possuir determinado produto com determinadas
funções logrou tanto a ampliação da autoimagem do homem para si e para os
outros. O espelho em grandes proporções reflete a si mesmo, mas também a
pessoa que está ao seu lado, faz dela expectadora da grande mudança que opera
em sua consciência individual e coletiva.

Nesse sentido, como afirmam Spritzer e Bittencourt, “o problema das


novas tecnologias na sociedade e na educação não pode se basear unicamente
sobre os problemas técnicos (vantagens e desvantagens em seu uso). O debate
deve se centralizar também nos problemas ideológicos, políticos e éticos que
tragam consigo” (2009, p. 126).

Tais recursos, as tecnologias, por si só, não são promotoras de


aprendizagem. Spritzer e Bittencourt (2009) observam que “A qualidade educativa
desses meios de ensino depende, mais do que de suas características técnicas,
do uso ou exploração didática que realize o docente e do contexto em que se
desenvolve” (p. 132). Assim, por melhor que seja um computador com acesso à
internet na sala de aula ou uma plataforma educacional online, o fator humano
ainda é imprescindível.

Como observa Demo (1998, p. 61), “o fator central da qualidade da


aprendizagem do aluno na escola é o professor, ao lado do esforço reconstrutivo
pessoal de cada aluno”, ou seja, a interatividade entre professor e o aluno no
processo de construção do conhecimento.

Aí reside a desvantagem desse processo de revolução educacional: a crença


de que os recursos tecnológicos resolverão todos os problemas. Há que se fazer
um questionamento preliminar à escolha de qualquer equipamento tecnológico:
qual a sua finalidade, que formação exigirá da parte do docente, quais serão
os possíveis impactos de uso. Por isso, é possível afirmar que “as tecnologias
não são neutras, e é preciso fazer uma leitura crítica a respeito delas, saber a
quem servem em primeiro lugar e para que servem. Esse deve ser o caminho a
ser seguido quando optamos por introduzir as NTIC nos projetos educacionais”
(PROVENZANO; WALDHELM, 2009, p. 111).

247
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

A inserção dessas tecnologias que, não por acaso, levam comunicação


em sua nomenclatura automaticamente nos direciona para a chamada
interdisciplinaridade. Em nosso contexto social e cultural já há pouco espaço para
uma concepção positivista de educação, baseada na observação de fenômenos
externos ao homem, na fragmentação e na independência dos saberes. É preciso,
nas palavras de Japiassu (1976, p. 66), um “esforço de reconstituição da unidade
do objeto que a fragmentação dos métodos indevidamente pulveriza”.

Assim, a análise do objeto de aprendizagem se dá numa perspectiva


contextual, não mais isolada. Essa perspectiva implica um leque de observação
mais amplo e conexões entre diferentes linguagens e métodos, que são propostas do
trabalho interdisciplinar. É importante ressaltar que essa perspectiva interdisciplinar
e interativa pode acontecer nas modalidades presencial e a distância.

Se a função da escola é “reconstruir conhecimento, considerando que


o conhecimento se difunde no mundo atual em grande parte a partir da forte
presença dos meios de comunicação” (Spritzer; Bittencourt, 2009, p. 155), cabe ao
professor determinar as formas de reconstrução do conhecimento, selecionando
os meios mais adequados ao seu contexto de atuação. A atuação do professor é
essencial. Ainda segundo Spritzer e Bittencourt (2009, p. 142), “é o docente quem
transforma um texto de divulgação em um texto didático. É o docente quem
recorta capítulos, sugere enfoques, seleciona conteúdos, mesmo quando exista
um plano institucional e normas que determinem sua tarefa”.

Os recursos tecnológicos, nessa perspectiva, servirão de mediação entre


o conhecimento e o aluno, oferecendo novas oportunidades de percepção e
apreensão, possibilitando uma conexão entre o entendimento dos especialistas e
a compreensão que se desenvolve dos estudantes.

Ao traçar um objetivo, o professor pode abrir diversas estradas para o ponto


de chegada pretendido. “Um professor habilidoso é aquele que pode abrir múltiplos
canais de entradas para o mesmo conceito” (Spritzer; Bittencourt, 2009, p. 156).

Essa interação propicia, portanto, novos posicionamentos, novos


conceitos. A partir das diferentes leituras de um mesmo fato, uma aprendizagem
crítica acontece na medida em que não há imposição de verdade absoluta ou
conceito imutável. Esse deve ser um eixo norteador da educação no contexto das
novas tecnologias; “não poderia ser o reforço à didática obsoleta em uso, mas sua
superação definitiva dentro de uma sociedade que se define como sociedade do
conhecimento, não da mera reprodução” (Demo, 2000, p. 153).

Alocar alunos na frente de um computador não garante aprendizagem.


Isso é tecnicismo, que se constitui de uma prática pedagógica rígida, ligando o
aluno a uma técnica sem uma razão, planejamento, ou criação de significado para
aquela atividade. Como afirma Libâneo (2001, p. 67), “o valor da aprendizagem
está precisamente em introduzir os alunos nos significados da cultura e da ciência
por meio de mediações cognitivas e interacionais”. Spritzer e Bittencourt (2009, p.

248
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

147) afirmam que “o desafio consiste em criar situações que permitam ao estudante
utilizar ao máximo suas capacidades cognitivas”. Dentro dessa perspectiva, as
tecnologias de informação e comunicação são ferramentas poderosas.

Não se trata, portanto, de uso irresponsável dessas tecnologias, mas de


adequar as demandas sociais e culturais, que abarcam a tecnologia e seus recursos,
ao processo educativo formal, lançando mão de novas formas de ensinar e de
aprender, reinventando conceitos e teorias com bases sólidas na razão de existir
da sociedade e da educação: as relações humanas.

Nesse novo paradigma, o professor deve assumir postura diferente.


Como afirmam Provenzano & Waldhelm (2009, p. 24), “estudos realizados
com professores alfabetizadores de classes populares, Kramer e André (1984)
constataram que o sucesso na atividade docente não depende diretamente do
método utilizado, mas do modo como se estabelece a relação entre o conteúdo, a
disciplina, o afeto e o processo de aprender”.

Assim, mediante às novas demandas de aprendizagem e de contexto


educacional, o professor precisa aprender a utilizar os recursos tecnológicos, mas
seguindo um planejamento que considere seus alunos e suas mais particulares
necessidades, seus saberes anteriores ao processo escolar, a comunidade onde a
escola está inserida e as demandas sociais que se impõem ao aprendiz. Porque
“tudo o que o aluno traz para a escola como ‘conhecimento prévio’ se estruturou
em sua relação com o seu meio [...], do qual os meios de comunicação fazem
parte” (SPRITZER; BITTENCOURT, 2009, p. 161).

Nessa perspectiva, o maior desafio para a escola não é apenas incorporar


recursos tecnológicos à prática docente, mas identificar o que crianças e
adolescentes em escolarização concebem sobre o que é tecnologia e informação
para, a partir dessas concepções, construir, avaliar e reconstruir práticas
pedagógicas condizentes com “os usos tecnológicos oriundos de uma matriz
social que gerou o atual progresso tecnológico” para “criar boas práticas de
ensino para a escola de hoje” (Spritzer; Bittencourt, 2009, p. 159).

O ENSINO DE LITERATURA COM A UTILIZAÇÃO DAS TIC: PARA UMA


FORMAÇÃO CRÍTICA

O trabalho com o texto literário em sala de aula aborda não apenas aspectos
estéticos, ou seja, relativos aos recursos de criação literária, do texto como objeto
de arte: a leitura pode proporcionar a análise de elementos políticos, culturais,
linguísticos... Nesse sentido, ensinar Literatura significa também formar uma
visão crítica acerca da história, do homem e do mundo.

Essa proposta de ensino está de acordo também com as Orientações


Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), que justificam o ensino de Literatura
como o cumprimento do Inciso III do Art. 35 da Lei nº 9.394/96, de Diretrizes e

249
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Bases da Educação Nacional, que trata dos objetivos a serem alcançados pelo
Ensino Médio: “III) aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo
a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico” (MEC, 2008, p. 53).

Lopes (2011), descrevendo a teoria bakhtiniana da literatura, salienta


que o conceito de discurso é concebido como um mecanismo dinâmico, ou seja,
depende do contexto em que está inserido para ter seu significado construído.
Assim, nenhum vocábulo pode ser compreendido em si mesmo, isoladamente,
pois pode estar inserido em diferentes contextos históricos e culturais.

Por isso a proposta da centralidade do texto literário é tão importante,


o que não significa ignorar suas condições de produção. A proposta das OCEM
(MEC, 2006) é justamente essa:

Quando propomos a centralidade da obra literária, não estamos


descartando a importância do contexto histórico-social e cultural em
que ela foi produzida ou as particularidades de quem a produziu
(até porque tudo isso faz parte da própria tessitura da linguagem),
mas tomando – para o ensino da Literatura – o caminho inverso: o
estudo das condições de produção estaria subordinado à apreensão do
discurso literário. Estamos, assim, privilegiando o contato direto com a
obra, a experiência literária, e considerando a história da Literatura uma
espécie de aprofundamento do estudo literário (MEC, 2008, p. 76-77).

Nessa perspectiva, o professor precisa compreender que seu trabalho


abrange não apenas um objeto estético ao colocar o texto em cena na aula de
Literatura, mas algo que proporciona novas possibilidades de abertura para
outros objetos estéticos, como músicas, pinturas, filmes; e os contextos em
que foram produzidos e consumidos. Nos dizeres de Carvalho e Domingo, “a
literatura apresenta essa particularidade de abertura, ao promover a intersecção
com outras formas de arte ou conhecimento, abrindo-se para outras formas de
experiência humana” (2012, p. 2).

Essas “outras formas de experiência” são fundamentais para a formação


integral e crítica do educando. No que tange ao universo do trabalho na escola,
uma das formas de realizar outras experiências é a inclusão de tecnologias de
informação e comunicação no ensino de Literatura.

Santos e Silva registram:

O mundo atual caracteriza-se pela pluralidade de formas de


compreender a realidade, exigindo o surgimento de novas narrativas
no processo de produção do conhecimento. Este fato sugere a
necessidade de reavaliarmos as condições atuais de produção do
saber e os efeitos da diversidade de experiências sócio-político-
econômicas e das novas tecnologias nas práticas culturais de leitura
e escrita (2011, p. 365).

250
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

Concebidas como práticas culturais, leitura e escrita também sofrem


influências e mudanças no universo das TIC, proporcionando uma interação cada
vez maior entre leitor e o texto, e estão cada vez mais presentes no cotidiano de
nossos alunos e na dinâmica de trabalho da escola [...].

A inserção de recursos tecnológicos na leitura literária cria novas


possibilidades na produção e no consumo dos textos, segundo define Silva:

Com efeito, a literatura gerada por computador (LGC), infoliteratura


ou ciberliteratura são termos que designam um procedimento criativo
novo, nascido com a tecnologia informática, em que o computador é
utilizado, de forma criativa, como manipulador de signos verbais e
não apenas como simples armazenador e transmissor de informação
(2011, p. 5).

Assim, temos um novo cenário de produção e divulgação da arte literária.


É importante que o professor, não mais preso à classificação e à metaleitura,
possa mostrar e trabalhar esses recursos com os alunos: novas formas de ler e de
produzir. O discurso literário que permanece e se reinventa, se adapta às novas
demandas culturais [...].

A FORMAÇÃO DE LEITORES E AS TIC NO ENSINO DE LITERATURA

Ao falar de leitura, já não podemos nos ater a um processo contínuo, ou


seja, a um processo linear de uma única fonte, sem referências externas e sem
interferências.

Na seção anterior tratamos da hipermédia, que é uma fusão de mídias


com o hipertexto, este definido por Santos e Silva (2011), baseado em leitura de
Pierre Lévy, como "a exteriorização da atividade mental que nós fazemos ao ler"
(p. 369). Uma definição que aponta para os diversos links que fazemos enquanto
lemos, seja uma referência a outro texto ou outra obra de arte, com a inclusão de
recursos de informática como imagens, vídeos e texto em movimento real.

Essa concepção abarca não apenas a leitura que se faz na internet. O


mesmo Lévy (1996, apud SANTOS; SILVA, 2011) aponta que uma pesquisa na
biblioteca, onde uma fonte faz referência para consulta a outra, também é uma
leitura hipertextual, ou seja, o movimento na leitura existe desde sempre; com os
recursos tecnológicos, ele se potencializa e adquire novos formatos.

Santos e Silva (2011) salientam: "a forma contemporânea de empreender a


leitura rompe com a narrativa contínua e sequencial das imagens e textos escritos
e se apresenta como fenômeno descontínuo, dada a sua velocidade" (p. 365).

Dentro dessa perspectiva, aliar ao trabalho de leitura o hipertexto da


internet, com suas referências a imagens, vídeos e áudios, além dos novos meios
de divulgação através de sites e blogs, pode gerar resultados satisfatórios ao ensino
de Literatura em sala de aula [...].

251
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Santos e Silva (2011) apontam alguns caminhos para que o professor


possa escolher a melhor forma de atuar nas aulas de Literatura.

• Internet  – a criação de uma página da turma em redes sociais ou mesmo


um  blog  ou  e-mail  coletivo para troca de materiais já proporciona uma
interação diferente e a possibilidade de troca e divulgação de arquivos digitais
relacionados às aulas de Literatura. O professor pode pedir ao representante
da turma que crie a página da turma no Facebook, por exemplo, ou uma conta
de  e-mail  para compartilhamento de vídeos,  sites, imagens etc. No decorrer
das aulas, fotos ou conteúdos podem ser postados em tempo real pelos alunos,
fazendo o uso útil dos celulares e tablets com acesso à internet e utilizando as
redes sociais como ferramenta para a aprendizagem.
• Lista eletrônica/Fóruns literários/grupos  – são algumas sugestões para
interação via  web  da turma, além de possibilitar a troca de arquivos já
mencionada. O professor pode sugerir um clube de leitura online, por exemplo,
em que os alunos dividirão com outros leitores impressões sobre as leituras
realizadas, sugestões de livros ou sites, filmes etc. Os fóruns também são uma
fonte interessante de pesquisa, onde o professor pode dividir a turma em
grupos com determinado tema para pesquisa e discussão.
• Blogs literários  – meio eficiente de divulgação dos trabalhos dos alunos,
de vídeos relacionados aos temas, além de permitir a participação ativa dos
alunos, que podem fazer comentários e sugerir publicações. Ao publicar
textos e imagens produzidos pelos alunos, o professor dá visibilidade ao que
é produzido, incentivando e motivando uma maior produção por parte deles.
O próprio professor ou um aluno pode ficar responsável pela administração
do  blog, mantendo-o atualizado e aberto à visitação. É uma boa estratégia
também para divulgar outros trabalhos da escola.
• Realizar e publicar vídeos – ao produzir vídeos sobre alguma obra literária,
desde dramatizações a comentários ou debates, os alunos se sentem motivados
e mais ativos nas aulas de Literatura, levando para a web e para outras mídias
o conteúdo da aula. O próprio blog da turma, a página no Facebook ou um
canal no Youtube são meios de divulgação desses vídeos, que podem ser:
uma dramatização de determinado livro; uma dramatização adaptada ou
parodiada; gravação de debates e comentários etc.
• E-portfólio – sites de armazenamento de arquivos e documentos que podem
ser consultados e trocados pelos alunos. É uma boa sugestão para  e-books,
resenhas, pequenos vídeos ou mesmo músicas relacionados às obras literárias.
Por esse canal o professor pode compartilhar e-books para leitura no tablet ou
celular (muitos clássicos da Literatura Brasileira já são considerados de
Domínio Público e podem ser acessados e baixados gratuitamente) – além de
uma música que será trabalhada em sala de aula etc.
• Ferramentas de construção colaborativa/Aulas-pesquisas  – Apesar de
constarem em tópicos separados, são dois recursos que podem se unir.
Ao  incentivar o aluno a pesquisar, o professor também pode fomentar a
construção do conceito pelos alunos, ao registrar os resultados de suas pesquisas
em diferentes fontes (inclusive nos livros). Uma estratégia interessante nesse

252
TÓPICO 3 | LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES,

sentido é a utilização dos fóruns de discussão para uma posterior produção


de um texto coletivo sobre o tema, que poderá ser publicado na página do
Facebook ou no blog da turma.
• Vídeo  – sem se ater à concepção de que vídeo na sala de aula significa um
momento de lazer, o professor pode incentivar que os alunos assistam a eles
no laboratório de informática em sites da internet como parte do conteúdo, não
se detendo somente a filmes e documentários, mas também a vídeos curtos
no Youtube, por exemplo. Existem muitos vídeos com dramatizações, debates,
paródias ou mesmo de aulas sobre conteúdos de Literatura, oferecendo
alternativa para a questão do tempo e proporcionando atratividade para o
aluno, que não ficará duas horas diante de um documentário que muitas vezes
desmotiva pela linguagem ou pelo ritmo.

Outro ponto que pode ser destacado é a questão da pesquisa orientada


via celulares com acesso à internet na própria sala de aula. Além de enriquecer o
conteúdo trabalhado, é uma oportunidade de mostrar ao aluno que os recursos
tecnológicos também servem aos propósitos educacionais.

As ferramentas são inúmeras e os resultados são promissores. Não


cabe ao professor a solução de todos os problemas educacionais. No entanto,
novas práticas podem ser adotadas, como selecionar o material conforme as
possibilidades que seu ambiente de trabalho permite, utilizar variados recursos
tecnológicos com um objetivo principal: a aprendizagem de seu aluno, com
incentivo às diversas leituras e uma visão crítica, considerando o texto literário
como mais que um objeto estético, como fonte de cultura, história e ideologia, que
possibilita múltiplas abordagens e enfoques.

Considerações finais

Como objeto estético, o texto literário, dependendo de como é trabalhado


pelo professor, pode proporcionar diversas possibilidades de leitura e
interpretação. As novas tecnologias de informação e comunicação são ferramentas
importantes para ampliar essas possibilidades de trabalho, na medida em que
proporcionam diversos modos de ler e recriar o texto literário.

A utilização dos recursos tecnológicos na prática docente deve ser um


caminho, uma estratégia, uma possibilidade – e não uma solução para todos os
problemas e crises do ensino de Literatura.

Diversificar os meios pelos quais o aluno tem acesso ao conhecimento é


um caminho possível dentro dessa proposta. Spritzer e Bittencourt (2009, p. 158)
afirmam que “novas formas de ensino deveriam ser resgatadas pelos docentes
relacionadas aos modos como o interlocutor recebe e compreende as mensagens
dos diferentes meios”.

253
UNIDADE 3 | LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Sendo assim, esses novos meios constituem os recursos tecnológicos, ainda


segundo a visão de Spritzer e Bittencourt, que salientam que “a incorporação
da tecnologia não deveria estar focalizada na resolução da motivação, mas na
necessidade de repensar estratégias de ensino e estratégias de aprendizagem”
(2009, p. 159).

E esses novos meios visam à formação crítica do indivíduo, transformando-o


num leitor eficiente e questionador do que está lendo. Para tanto, ganha espaço
central o texto literário, segundo as Orientações Curriculares Nacionais para
o Ensino Médio (MEC, 2008), fazendo dele fonte para conexões intertextuais e
contextuais, privilegiando o espaço do leitor como ente ativo no processo de
leitura e construção de sentidos.

Assim, ensinar Literatura via recursos tecnológicos não quer meramente


colocar o aluno na frente do computador, mas criar sentidos e estratégias para
que ele reconheça a relação que há entre Literatura e modernidade, entre leitura
e movimento, entre o texto, a imagem e o som.

São essas possibilidades que se abrem quando o professor cria conexões


entre o texto literário não mais preso somente aos livros, mas recriado e
disseminado na internet; entre as possibilidades que os próprios alunos têm de
recriá-lo e divulgar esse trabalho de recriação.

Cabe ao professor o papel de promover e incentivar essa transformação


no ensino de Literatura. Como destacado, ele ainda tem papel preponderante
no processo de ensino-aprendizagem de seus alunos, é ele que pode abrir as
fronteiras da sala de aula para as possibilidades que os recursos tecnológicos
oferecem para a resolução da crise no ensino.

FONTE: <https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/17/15/o-ensino-de-literatura-e-o-uso-de-
recursos-tecnolgicos-no-ensino-mdio>. Acesso em: 30 nov. 2019.

254
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura contemporânea é aquela produzida em um tempo histórico


próximo, podendo ser entendida como a literatura dos dias atuais.

• As principais características da literatura contemporânea são a multiplicidade,


a diversidade e a heterogeneidade.

• As principais características das temáticas da literatura contemporânea são a


presentificação, o retorno ao trágico e a violência.

• Rubem Fonseca, Fernando Bonassi e Adriana Lunardi são autores


representativos da literatura contemporânea.

• O novo perfil do leitor contemporâneo apresenta novos desafios à educação


em seu processo de formação.

• A literatura digital é uma das vertentes da literatura, ou seja, é uma aliada na


formação do leitor contemporâneo, e não uma concorrente.

CHAMADA

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255
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2017)

Com base nos textos 1 e 2, avalie as afirmações a seguir:

I- O texto 1 exemplifica uma forma literária poética de origem japonesa, o


Haicai, que ganhou destaque nas obras de escritores brasileiros e cujas
principais características são a concisão e a objetividade.
II- Tanto o texto 1 quanto o texto 2 seguem a recomendação de serem construídos
com um máximo de 140 caracteres, o que demostra que o estabelecimento de
limites formais não interfere no processo de produção literária.
III- O texto 2 representa um tipo de construção e publicação literária realizada
na internet, a twitteratura, e estabelece uma relação entre a literatura
publicada por meio de um suporte impresso e a experiência estética que
surge com a utilização do Twitter, uma das redes sociais da atualidade.

É CORRETO o que se afirma em


a) ( ) I, apenas.
b) ( ) II, apenas.
c) ( ) I e III, apenas.
d) ( ) II e III, apenas.
e) ( ) I, II e III.

256
2 (ENADE, 2017)

TEXTO 1

O processo de canonização não pode ser isolado dos interesses dos grupos
que foram responsáveis por sua constituição, e, no fundo, o cânon reflete estes
valores e interesses de classe.
O cânon é um evento histórico, visto ser possível rastrear a sua construção e
a sua disseminação. Não é suficiente repensá-lo ou revisá-lo, lendo outros e
novos textos, não canônicos e não canonizados, substituindo os ‘maiores’ pelos
‘menores’, os escritores pelas escritoras e assim por diante. Tampouco basta –
ainda que seja extremamente necessário – dilatar o cânon e nele incorporar outras
formações discursivas, como a telenovela, o cinema, o cordel, a propaganda, a
música popular, os livros didáticos ou infantis, a ficção científica, buscando
uma maior representatividade dos discursos culturais. O que é problemático,
em síntese, é a própria existência de um cânon, de uma canonização que
reduplica as relações injustas que compartimentam a sociedade.

FONTE: REIS, R. C. In: JOBIM, J. L. (Org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992 (adaptado).

TEXTO 2

Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.

FONTE: MOSCOVICH, C. Uma vida inteira pela frente. In: FREIRE, M. (Org.). Os cem menores
contos brasileiros do século. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 (adaptado).

Considerando a discussão sobre o cânon literário apresentada no Texto 1 e o


gênero do miniconto, exemplificado no Texto 2, avalie as asserções a seguir e a
relação proposta entre elas.

I- A forma literária do miniconto, por ser semelhante à da crônica, deve ser


considerada expressão literária de valor para que a seleção de obras que
integram o cânon seja democrática.

PORQUE

II- A formação do cânon é derivada de valores estéticos e políticos, e a sua existência


promove a valorização justa de obras e a manutenção da divisão social.

A respeito dessas asserções, assinale a opção CORRETA.


a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa
correta da I.
b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma
justificativa correta da I.
c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.
d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.
e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas.

257
3 “[...] reconhecer a especificidade das formas literárias nas novas mídias
não significa, de modo algum, abandonar o rico manancial dos modos
tradicionais de compreensão da linguagem, da significação e da interação
corporificada com os textos. Não é difícil concluir a partir disso que a
ciberliteratura não chegou para fazer operações de diminuição ou divisão,
mas para somar e multiplicar” (SANTAELLA, 2012, p. 238).

Com base nesse trecho do artigo de Lúcia Santaella e nos estudos realizados
nesta unidade, apresente um texto expressando sua opinião acerca da literatura
na era digital.

258
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