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FRADE, Isabela.

A pedagogia do artesanato

A PEDAGOGIA DO ARTESANATO

Isabela Frade

O presente texto levanta algumas questões sobre os valores do


artesanato para o ensino de arte. Não se trata aqui da separa-
ção entre artesanato e arte; na verdade, estarei defendendo a
idéia de que artesanato é arte ou, ainda, que o artesanato é
uma forma de arte. Busco penetrar a fissura aberta por uma
concepção racionalista da arte que o projeta como uma forma
menor de arte ou o situa em oposição a uma “Bela Arte”. Nes-
se sentido, lanço o conceito de intra-estética para a aprecia-
ção dos modelos estéticos artesanais, focando especialmente a
cestaria guarani.

Palavras-chave
ARTE, ARTESANATO, CESTARIA GUARANI, ENSINO DE ARTE,
CONSUMO ESTÉTICO.

FRADE, Isabela. A pedagogia do artesanato.


Textos escolhidos de cultura e arte populares,
Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p.41 -9, 2006.

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Textos escolhidos de cultura e arte populares, v. 3, n. 1, 2006.

O artesanato não pode ser definido Essa separação reduziu todo o conjunto
apenas pela forma manual de execução, de produção artesanal a um único pla-
embora essa seja sua primeira caracte- no, subalterno e distante, com mínima
rística (aquilo que lhe dá caráter), seu identificação com as obras de arte. Sem
fundamental fato definidor.1 Se é o fa- seu modelo e extrato – a arte – o artesa-
zer manual o que primeiramente conce- nato perde seu vínculo com os meios de
de a identidade artesanal, é aí também depuração e desenvolvimento estético.
que reside a primeira fissão que o sepa- Perde a força do vínculo com o meio es-
ra da arte, especialmente se esta for de- pecializado que o avaliava e o distin-
finida pelo modelo privilegiado do guia.3
aporte conceitual. Segundo seus princí- Nesse projeto de autonomia, o cará-
pios, o primeiro, o artesanato, nasce do ter manual é motivo de rejeição e pro-
fazer e a segunda, a arte, do pensar.2 Tal voca seu isolamento na esfera social. A
posicionamento deixa ambos incomple- partir dele se constrói a dicotomia arte e
tos, forçando uma mirada parcial dos fe- artesanato, a arte trazendo consigo um
nômenos, pois nem a arte se desune da fazer que se distingue como excepcio-
execução, nem o artesanato do pensa- nal e seus produtores, os artistas, como
mento. intelectuais, vanguarda; aos artesãos,
Devemos lembrar que a distinção ausentes, isolados, resta operar uma es-
entre arte e artesanato é relativamente tética considerada de menor importân-
recente: ela constitui suas bases no Re- cia a partir de uma tecnologia rudimen-
nascimento, quando a arte se propõe tar – projetados no passado, perdem o
“cosa mentale”como Da Vinci dizia a estatuto de contemporaneidade. É im-
respeito da pintura. Até então a arte era portante observar que é apenas em nos-
um desígnio ao artesanato de excelên- sa cultura, num campo estreito de seu
cia, uma forma depurada em um con- interior, porém hegemônico, que isso
junto de práticas estéticas, todas elas ocorre.4
artesanais. Era um adjetivo: uma qua- O advento da industrialização tam-
lificação máxima (a definição de obra- bém constitui força modeladora do con-
prima é o antecedente da obra de arte). ceito de artesanato, desprestigiando-o
Quando a arte adquire autonomia alude como modo de produção, separando-o
a uma existência particular, única, trans- da esfera macroeconômica, pois supe-
cendental. Essa singularidade surge exa- rado tecnicamente, e relegando-o tam-
tamente por sua oposição ao artesanato. bém a estrato inferior. Desconsiderado
Ao ser designado menor, o artesana- seu valor econômico até as mais recen-
to perde sua relação com a arte e, pouco tes décadas, o artesanato volta à cena
a pouco, começa a ser entendido como por sua função social de conter o grau
coisa à parte. No passado, ao se revelar de desemprego nas regiões menos de-
como algo de extremo valor-arte, toda senvolvidas, pensado ainda, como nos
uma série de práticas era referenciada. caso das políticas públicas no anos 70,

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com o Programa de Desenvolvimento do não está totalmente subjugado pela men-


Artesanato – PNDA, como passível de te, ou melhor, de outra mente, mais li-
“evolução”, especialmente com o apoio gada ao corpo. Na verdade, é um corpo
de maquinário e de estrutura adminis- que fala. Esse é um modelo de aprendi-
trativa, e progressivo desenvolvimento zagem que prepara o corpo para um sa-
em microempresa, considerada tipo ide- ber, um saber que é do próprio corpo. O
al de modelo produtivo para a geração conhecimento que o artesão realiza em
de divisas em áreas críticas.5 seu trabalho traduz uma sabedoria do
É a separação do meio que aliena um corpo que não pode ser reduzida à raci-
(o artista) do outro (o artesão). Em ou- onalização. Ela precisa ser incorpora-
tras culturas, teremos a eleição de um da.
artista que se fortalece a partir do seu Não defendo um único modelo de ar-
meio, o artesanal. Agora, na tecnocivi- tesanato nem de arte. O tocar essa dico-
lização, as artesanias adquiriram esta- tomia como eixo de uma estratégia
tuto simbólico de alto poder. A própria argumentativa, que trata a arte e o arte-
indústria foi superada. Hoje o artesana- sanato qual dois objetos fechados em si
to é tratado prioritariamente como pro- mesmos, se fez meramente como modo
duto de valor cultural. Sua significação de atingir o cerne de uma questão pri-
para o consumo se baseia num campo mordial na diferenciação entre uma ca-
fortemente afetivo. Baudrillard (2000) tegoria e outra. Campear a fresta ditada
vai dizer que “o artesanato é o animal pela dicotomia presente nos discursos
doméstico preferido”, ao pensar o siste- que os identificam em isolamento. En-
ma dos objetos na sociedade contempo- tre um e outro fenômeno existem múlti-
rânea. As políticas públicas voltam a plos graus de diferença, mas também de
atenção para seu potencial estímulo à afinidade: o artesanato é parte do uni-
indústria do Turismo, setor econômico verso da arte, uma forma de arte.7
de maior crescimento, ou procuram tra- Foco um modelo artesanal específi-
balhar sua preservação como patrimônio co: o processo tradicional da cestaria
nacional. guarani – trabalho que acompanhei em
Mas por que e como a Pedagogia do uma das oficinas da VIII Semana de Cul-
Artesanato se deve exercer? É claro que tura Popular, promovida anualmente
ela importa sobretudo porque fala de pelo Núcleo de Cultura Popular do Ins-
uma forma de ensino-aprendizagem di- tituto de Artes da Uerj.
versa daquela exercida nas academias de No ato de trançar, o gesto é unifor-
Arte:6 fala de uma arte popular, cujo me, repetitivo. É a regência do corpo em
consumo estético é um valor a ser depu- sua precisão e força – fechando ponto
rado, pensado e qualificado como expe- por ponto, trama por trama, aprisionan-
riência humana. do cada talo em um desenho em cadeia,
Ela pode apresentar um modelo de cuja beleza se faz pela regularidade. Seu
ação construtiva em que o corpo ainda princípio é o da presença absoluta desse

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corpo que age. Cada passo leva a outro panha. É essa sabedoria – o saber de uma
imediatamente unido e decorrente de seu ação superpresente – que devemos tra-
antecedente, todos interligados na ação zer para nossa reflexão.
que vai construindo uma cadência de A Pedagogia do Artesanato não deve
gestos, um ritmo que nos leva à suspen- ser um treino, um adestramento, mas
são do pensar. Mas nessa ausência do uma entrega ao corpo, doce e suave ou
pensamento, numa reflexão primária, forte e enérgica. Cada fazer artesanal
melhor dizendo – o controle do corpo encerra em si uma sabedoria só sua. Al-
exige do sujeito estar totalmente presente guns, como a cestaria, nos falarão de um
nessa atenção – nesse vácuo existe o modelo em que a repetição é primordi-
gesto. Tudo é gestualidade. al, outros, como nos fala a cerâmica de
Seria errado falarmos em mecânica Vitalino, uma modelagem delicada das
dos gestos, porque o corpo permanece massas, com detalhes que nos fazem
sentindo, sentindo intensamente cada olhar cada parte das figuras, ancoran-
grau de força – força aqui de puxar o do-as firmemente em um chão de barro.
talo e de amarrá-lo a outro, garantindo Um espaço maior para a invenção, coi-
firmeza e precisão. Esse automatismo sa de figuras, campo fértil ao imaginá-
não é mecânico, ele é orgânico. É como rio da fabulação. Um cotidiano que se
se o corpo cantasse. Ao tramar ele está faz extraordinário em sua afirmação de
fazendo um refrão, um texto ritmado que certos modelos: o boi, a caçada, o va-
só aparece quando o processo termina. queiro.
O cesto é um poema visual. Poesia que A Pedagogia do Artesanato é um es-
traz consigo não uma individualidade paço em que o corpo pode aprender se-
inquieta, carregando experiências gundo outro corpo: a técnica como a ex-
enraizadas no tempo mítico. periência passada pela observação. Se-
O que a intencionalidade preenche é guimos outro corpo, experiência em que
a ausência do puro gesto. A mão tam- a repetição é significativa, acumulação
bém não trabalha sozinha. A mão faz e de gestos que se seguem. Esta pode ser
refaz, senhora de todo acontecimento. uma outra forma de abordar a distância
Não há surpresa, mas repetição. A repe- entre a arte e o artesanato – a repetição.
tição torna-se o elo de todos os instan- Sabemos que a separação arte/arte-
tes. O vácuo intelectivo do gesto que se sanato é uma falsa dicotomia: a mão está
reproduz seqüencialmente é a presença viva e vive a serviço da inteligência. Para
absoluta no fazer. Em alguns momentos Aristóteles, a inteligência é o ato que
o corpo está totalmente livre em si mes- move a mão. A mão do artesão é anima-
mo – ele atinge esse estado pela ritmici- da – mão que opera, mão sensível e in-
dade, cadência que embala os sentidos e teligente. A inteligência, na verdade,
libera a mente de sua operosidade ana- nasce com a mão, é constituída pela
lítica, trazendo sua força contemplati- manipulação das coisas do mundo. Cito
va. A mente observa o corpo, ela o acom- Piaget:

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A inteligência verbal ou refleti- por isso que a dicotomia arte e artesa-


da baseia-se numa inteligência nato também é falsa: ela está a serviço
prática ou sensório-motora, a da desvalorização do corpo, nega uma
qual se apóia, por seu turno, nos inteligência artística primordial,
hábitos e associações adquiridos
corporificada, organicizada e organici-
para combiná-los. Por outra par-
zante. Mesmo que puramente conceitu-
te, esses mesmos hábitos e asso-
ciações pressupõem a existência al, um fato artístico acontece no mundo
do sistema de reflexos, cuja co- das coisas; as coisas virtuais também são
nexão com a estrutura anatômica constituídas a partir das relações con-
e morfológica do organismo é cretas.
evidente. Existe, portanto, certa Então voltemos aos Guarani e ressal-
continuidade entre a inteligência temos sua visualidade vigorosa: enrai-
e os processos puramente bioló- zada no gesto de sobreposição das fibras,
gicos de morfogênese e adapta- jogo geometrizante de construção de for-
ção ao meio (Piaget, 1987: 13). mas. Seu trançado é todo calcado numa
Agir sobre as coisas é pensar sobre matemática complexa geradora de su-
elas, é percebê-las, senti-las, descobrin- perfícies homogêneas. São conjuntos
do suas qualidades. Segundo a concep- numéricos que se invertem a cada fieira,
ção piagetiana, veremos que a fase ope- que o olho reconhece de relance. O ces-
ratória se segue até a abstração, quando to supõe outra matemática, calcada em
se opera não mais sobre os objetos con- subunidades que se alternam em deter-
cretos, mas sobre os signos. E talvez es- minados ciclos.
teja aqui a real oposição – que não pode A identificação rápida dos subconjun-
se dar entre mente e corpo, mas entre tos advém da prática constante, dedica-
concretude e abstração. da. Só se aprende fazendo e refazendo.
O que permanece recalcado e negati- No exercício dessa trama, vamos desco-
vizado é o pensamento concreto. E isso brindo os padrões, o modo como eles são
se dá com o advento da idealidade pura gerados a partir de delicados filetes de
– projeto platônico para um mundo ou- taboa. Passamos da linha à superfície e
tro, imaterial. A crença na superiorida- desta ao volume. Os filetes são delica-
de da razão desconhece suas origens. damente dobrados, e novos planos são
Trata os objetos como simulacros, quer gerados. Quando estes se fecham, temos
ver o mundo físico como simples proje- o objeto. É preciso se deixar acostumar
ção. Mas esquece que é justamente o jogo ao brilho do talo tingido da taquara para
de corpo-mente-mundo que nos possi- descobrir infinitas tonalidades em cada
bilita a formação de um mundo de idéi- feixe. Cada elemento ou ponto se une
as, de uma cultura. com intensidade ao todo da forma tam-
O pensamento em arte também nas- bém nesse refulgir.
ce dessa operosidade, um fazer que se Esse é um exercício feminino, ainda
estetiza, que age e pensa na forma. E é que os homens hoje também façam seus

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cestos. A aldeia Sapukai reverencia Se- aqueles que o fazem, não se pode des-
bastiana, considerada a melhor cesteira. cartar o valor simbólico e estético de seu
Há um vínculo simbólico entre útero e trabalho. Uma função não anula a ou-
cesto? Será que a delicada força que a tra, ainda que, para alguns, a compro-
cestaria exige é um atributo da femini- meta – como a pura transcendência que
lidade? Lucas, intérprete, afirma: “Nin- certos estetas exigem para a categoriza-
guém faz cestos como Sebastiana. Mes- ção da arte.
mo os homens fazendo cestos, não con- Outro fator, o de reprodutibilidade,
seguem fazer igual às mulheres. Elas são também me parece não ser central. A
melhores”. repetição se dá pela afirmação, pela elei-
Cada família tem seu desenho. É ção de determinado modelo. Isso não
magnífica a mitologia que envolve esse quer dizer que a forma reproduzida seja
trabalho: o povo guarani nasce do ces- alienada, mas, muito ao contrário, sua
to. Essa imagem de um conjunto de fei- repetição a declara muito significativa.
xes me faz pensar que seriam como in- Os modelos são textos ainda em aberto,
divíduos reunidos e que se unem em um se prestam à continuidade e à perpetui-
desenho, em uma forma, em um objeto dade de determinados sentidos. E eles
– imagem belíssima para pensar as re- se oferecem como padrões a inúmeras
lações humanas. Pois é por nossos en- variantes: geram famílias, classes, no-
trelaçamentos que nos constituímos, so- vas ordens de imagens. E produzem ain-
mos coletividade enquanto nos unimos da, como no caso da cestaria guarani, a
e entre dobras, sobreposições e enlaces construção de uma maestria, de um sa-
estabelecemos uma forma comunitária. ber cesteiro, de uma excelência no fa-
O cesto, como uma comunidade, é tam- zer. Uma Pedagogia do Artesanato de-
bém um continente, forma que pode tra- veria também mergulhar nessas ques-
zer algo em si, um objeto para transpor- tões. Pensar esses fazeres, contextualizá-
tar, guardar e proteger.7 los e problematizá-los, penetrando seus
Apesar de estar aqui a tocar a dicoto- sentidos.
mia arte e artesanato, na verdade me Deveríamos reforçar a trama entre
esforço para quebrar essa dicotomia, mente e corpo, revitalizar esse vínculo
invalidá-la. Explicito por que apenas dis- partido, fissura acentuada no modelo
sertei sobre o aspecto manual. Outros cartesiano. Não temos um corpo, somos
aspectos que envolvem essa questão não um corpo. Um corpo que é a nossa vida.
foram colocados, como os sentidos de A argumentação anterior, ainda não
praticidade e de utilidade que não fo- bem explorada, refere-se à relação entre
ram citados aqui. Esses outros fatores cognição e motricidade. Reporto-me es-
são importantes, mas não exatamente pecialmente ao fato de que a maior par-
centrais, como o caráter manual. Até te dos conceitos qualitativos diz respei-
porque muitos artesãos não estão pro- to a relações corporais depuradas pela
duzindo objetos de uso prático, e, entre reflexão. Retorno a Piaget:

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as principais “categorias” de que a das coisas e do mundo. Mas não


inteligência faz uso para adaptar-se nos deve instigar aos instrumen-
ao mundo exterior – o espaço e o tos dos que apenas vêem na mão
tempo, a causalidade e a substância, uma portadora de utensílios.
a classificação e o número, etc. –
Se pensar é um trabalho da mão,
correspondem, cada uma delas, a
não é porque a mão trabalhe no
uma aspecto da realidade, tal como
lugar do espírito, mas porque
os órgãos do corpo são relativos, um
pensar é, ao mesmo tempo, fazer
por um, a uma característica espe-
trabalhar a mão e trabalhar a pró-
cial do meio; mas, além de sua adap-
pria mão. Uma cultura é uma
tação às coisas, essas categorias
cultura da mão, não porque seja
também estão implicadas umas nas
feita pela mão, que agiria, por
outras a tal ponto que é impossível
assim dizer, completamente só,
isolá-las logicamente. A “concor-
mas porque é, acima de tudo,
dância do pensamento com as coi-
uma educação da mão feita pelo
sas” e a “concordância do pensa-
homem (Brum, 1991).
mento consigo mesmo” exprimem
essa dupla invariante funcional da A natureza manipulatória da cognição
adaptação e da organização. Ora, es- é o correlato pretendido por esses auto-
ses dois aspectos do pensamento são res, que entendem a mão como um ór-
indissociáveis: é adaptando-se às gão da reflexão. Estimular a prática ar-
coisas que o pensamento se organi- tesanal é estimular novos processos
za e é organizando-se que estrutura cognitivos.
as coisas (Piaget,1987: 19). Outro fator de qualificação educativa
do artesanato é ser este uma manifesta-
No pensamento filosófico de Brun, a
ção local. Seus recursos são profunda-
questão se aprofunda ainda mais:
mente vinculados ao meio, microesfera
À pergunta “que quer dizer pen- produtiva de indivíduos ou de pequenos
sar?” Heidegger responde que grupos, revelando-o em suas formas e
“pensar talvez seja simplesmen-
materiais. O princípio de sua força
te da mesma ordem que trabalhar
um cofre. É em todo o caso, um comunicacional na contemporaneidade
trabalho da mão.” Eis uma afir- é este: a busca pela sensibilidade locali-
mação que não deve surpreender, zada e única, particular.
vinda de um filósofo que era fi- Quando Geertz (2000) defende o sis-
lho de tanoeiro e cresceu perto tema de arte como uma produção local,
da Floresta Negra, entre os que ele quebra a hegemonia acadêmica cir-
trabalham com a madeira. Pode cunscrevendo cada manifestação em sua
incitar-nos à humildade, na me- própria realidade social. Essa atitude é
dida em que procura lembrar-nos equalizadora, pois dispensa o uso das
que pensar é pesar e que a gravi- mesmas categorias de análise, liberan-
dade dos homens deve nascer da
do o objeto para um espaço reflexivo
aprendizagem que fazem do peso

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único, específico, datado. Ele aponta artesanato existiria em outra esfera que
para a necessária fuga de uma intra-es- não a artística.
tética – que ele apresenta como o
2 Em O Barato da Arte (1994) propus uma
formalismo europeu. Geertz peca quan-
revisão dos conceitos sobre o artesanato,
do, ao considerar que cada uma dessas
apontando a presença de um novo artesa-
manifestações apresenta uma estética nato, o neo-artesanato ou o artesanato ur-
própria, não as coloca também como bano pós-moderno. Destaquei o erro mais
promotoras de “intra-estéticas”, cada grave dos estudos sobre artesanato: o tra-
uma delas produzindo seus modelos de tamento generalizante que reúne todas as
significação e sua linguagem plástica práticas artesanais como uma coisa só.
própria – o que ele, contraditoriamente, Elas têm diferenças marcantes, pois são
já afirmara quando dizia que a melhor primordialmente expressões locais. Mes-
mo marcando identidades entre elas, não
ferramenta para entender uma prática ar-
as devemos equalizar.
tística é feita na mesma fábrica que a
produz. Postula-se aqui uma estética-de- 3 Esse é um devaneio meu sobre a arte
campo, um estudo enraizado na experi- cesteira guarani.
ência empírica, mergulhado no contex-
to na descrição de uma linguagem plás- 4 É imprescindível lembrar que muitos de-
tica. Denomina-la-ei intra-estética , nominados artesãos não conhecem o ter-
transformando o conceito geertziano, mo artesanato: alguns denominam o que
abrindo-o para a tradução das diferen- fazem arte, outros não distinguem sua pro-
dução de outras atividades como as reli-
ças.
giosas ou lúdicas. Aprendem a utilizar o
Se cada prática artística apresenta sua
termo a partir de influências externas ao
própria intra-estética, precisamos abrir meio. O termo é introduzido de fora, sig-
o ensino de arte para seus diferentes su- nificando já o julgamento entre relações
jeitos e códigos, compondo-os com mui- de diferença com a estética exógena e es-
to mais que o modelo acadêmico. Quan- tabelecendo uma identidade genérica – a
do se ampliar essa necessária abertura da artesania – que passa a ser utilizada
para a alteridade no trabalho educacio- pelo sujeito então auto-reconhecido arte-
nal – o que vem já sendo feito por inú- são.
meros arte-educadores brasileiros e es-
5 Em alguns períodos históricos surgiram
trangeiros –, a formação artística, assim
propostas divergentes para se pensar a re-
desobstruída, apresentará um conteúdo lação arte, artesanato e indústria, como o
muitas vezes mais rico e significativo. Movimento Arts and Crafts, a Bauhaus e
o Movimento Hippie ou Contracultural.
NOTAS Foram progressivamente absorvidos e di-
luídos, reputados como utópicos e
1 O artesanato seria uma não-arte – rejeita- regressistas.
do até pelos que apreciam uma antiarte.
Para além de uma oposição ou inversão, o 6 Um modelo de alteridade para se pensar o

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ensino de arte oficial, calcado na tradu-


ção epistemológica do padrão acadêmico, Isabela Frade é arte-educadora, doutora em
vigente ainda como modelar. Comunicação e professora do Instituto de
Artes da Uerj, no qual integra o Núcleo de
7 Ao contrario de Mukarovsky (1979), que Cultura Popular.
defendia sua presença como forma estéti-
ca mas não artística, percebo a potência
artística como além da inovação. Minha
posição deriva de uma corrente contem-
porânea que valoriza o processo e retoma
a poética do fazer em seus mais ínfimos
movimentos. Penso a partir da notória pre-
sença de artistas populares/artesãos – di-
reta ou indiretamente – nas mostras atu-
ais de arte ou ainda nas muitas
apropropriações da arte popular que os
artistas contemporâneos realizam.

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAUDRILLARD, J. O Sistema dos Objetos.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

BRUN, J. A Mão e o Espírito. Lisboa: Edi-


ções 70, 1991.

FRADE, I. O Barato da Arte – o artesanato


na feira Hippie de Ipanema . Tese de
mestrado. ECA/USP. São Paulo, 1994.

GEERTZ, C. O Saber Local. Petrópolis:


Editora Vozes, 2000.

MUKAROVSKY, J. Escritos sobre estética


e semiótica da arte. Lisboa: Editorial Es-
tampa, 1978.
PIAGET, J. O Nascimento da Inteligência.
Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1987.

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