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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ANA CAROLINA CAVALHEIRO DO CARMO

AS TÓPICAS HORACIANAS NO POEMA “SEGUE O TEU DESTINO” DE


RICARDO REIS

São Paulo

2020
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ANA CAROLINA CAVALHEIRO DO CARMO

10804603

AS TÓPICAS HORACIANAS NO POEMA “SEGUE O TEU DESTINO” DE


RICARDO REIS

Trabalho apresentado como


requisito para obtenção de nota na
disciplina Literatura Portuguesa III,
associada ao Departamento de
Letras Clássicas Vernáculas, e
ministrada pela Professora Drª
Marlise Vaz Bridi.

São Paulo

2020
INTRODUÇÃO

Este trabalho visa analisar o poema “Segue o teu destino” de Ricardo Reis, a fim de
levantar aspectos formais e buscar ecos da poesia horaciana da composição poética.

Ricardo Reis, heterônimo neoclássico de Fernando Pessoa, foi construído como um


intelectual formado por jesuítas através da educação clássica, o que fizera dele um grande
latinista. É conhecido pelos poemas de temática pagã, pela métrica perfeita e pela da
consciência da fugacidade da vida. Nascera (segundo a biografia criada por Fernando Pessoa)
no dia 3 de junho de 1888, em Lisboa, mas o seu criador decide posteriormente mudar essa
informação, pois desejava que Reis fosse um homem do Norte, nascido no Porto (PAZ, 1972,
p. 216). Por ser um árduo defensor do regime monárquico, expatriou-se espontaneamente
desde 1919, indo viver no Brasil. Por profissão, era médico, mas seu criador encarregou-o
também de ser professor de latim em um importante colégio americano. Aplicou-se ao verso e
a prosa, e colaborou nas revistas modernistas Athena e Orpheu, não só com obras próprias, mas
também com traduções, como Prometeu Acorrentado de Ésquilo. Octávio Paz, em seu estudo
sobre os heterônimos de Fernando Pessoa, cita uma carta do poeta a Adolfo Casais Monteiro,
membro do Presença, em que Pessoa relata o momento em que Reis teria “surgido”:

“Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me a ideia de
escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular
(não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e
abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um
vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu
o soubesse, o Ricardo Reis” (PAZ, 1972, p.216)

Reis era considerado por Fernando Pessoa um purista no uso da Língua Portuguesa. Sua
poética era precisa e simples, considerada por Paz (1972, p.215) uma mistura do neoclassicismo
lusitano e da Antologia grega que o próprio traduzira para o inglês. Fernando Pessoa se referia
e ele como “Horácio Grego que escreve em português” (PESSOA, 2010, p. 181). De acordo
com Paz (1972, p.215), a forma de suas composições eram “o epigrama, a ode e a elegia dos
poetas greco-latinos”. Seus poemas carregam muitos traços da tradição árcade, por isso, o poeta
é chamado por seu criador de “árcade-moderno” (PAZ, 1972, p.215). Tendo sido o arcadismo
desenvolvido através de tópicas e estruturas originárias da tradição literária clássica, deu
continuidade à tradição greco-latina, que das origens estendeu-se para o renascimento, e
encontrou um receptáculo no mundo moderno. Uma das formas poéticas que percorreu estes
três períodos e que foi amplamente utilizada por Reis é a ode, que é definido como um poema
de forma fixa, com três versos longos e um curto, e que foi praticado com excelência pelo poeta
latino Horácio, autor o qual Ricardo Reis tornaria um modelo para a composição de alguns
aspectos de sua própria obra. Conforme afirma Germano (2011, p. 2) “ no que concerne à forma
da poesia de Ricardo Reis, podemos enquadra-la como sendo profundamente marcada pela
influência do seu modelo latino Horácio”. Será também em Horácio que Pessoa encontrará a
teoria epicurista e a filosofia dos estoicos, que deixarão grandes reminiscências em sua obra.

Reis adota o modelo da ode para entalhar os seus versos, inspirando-se nas convenções próprias
a esta forma lírica. Como coroação para o seu apreço e vasto conhecimento acerca da poética
clássica, o poeta português publicou um conjunto de poemas intitulado “Odes”, o qual abarca
o poema “ Segue o teu destino” a ser analisado neste trabalho. Nesta reunião de poemas, Reis
aborda o prazer, a fuga do tempo, as rosas de Lídia, a liberdade ilusória do homem e a vaidade
dos deuses (PAZ,1972, p.13). Mafra (1980, p.139) afirma em seu estudo que as odes de Reis
trazem ecos da poesia latina tanto no que diz respeito à temática quanto no que toca à forma
dos versos.

ANÁLISE DO POEMA

O poema “Segue o teu destino”, possui um tom coloquial e moralista. É permeado de figuras
recorrentes da literatura greco-latina, tais como a tópica estoica-hedonista do carpe diem, base
do repertório filosófico de Horácio. O uso de tal tópica alude ao caráter simposiástico presente
nos poemas de Horácio sobre a efemeridade da vida, que deliberavam sobre a necessidade de
viver o momento presente, assim como afirma Achcar (1994, p.99): “O timbre filosófico da
lírica horaciana se deve a uma característica genérica da poesia do simpósio, a lírica do tu. É
poesia deliberativa de teor deliberativo, de injunção ponderada a um curso de ação dirigido ao
simpósio, a celebração do momento”. Do poeta latino, Reis também retoma a tópica do renuntia
amoris, a renúncia ao amor, uma vez que este seria capaz de levar o homem ao sofrimento.
Nesta temática, o eu lírico nega as paixões e o amor exacerbado, aproximando-se da ataraxia,
termo grego que de acordo com o Dicionário de Filosofia moral e Política corresponde à
“tranquilidade de espírito e do ânimo, literalmente traduzível como “imperturbabilidade”. A
felicidade proveniente da serenidade de espírito buscada pelo ideal da ataraxia seria alcançada
através da não cedência às paixões. Este ideal se faz presente na obra de Ricardo Reis, assim como
afirma Gabardo (2002, p.87): “Ricardo Reis, não só nega todas as paixões que “afastam do ideal
ataráxico, como demonstra um desapego a tudo que não conduz a ele, o que é peculiar ao
paganismo estoico. Um outro elemento horaciano que aparece no poema do poeta português é
a simulação de um diálogo entre o eu lírico e um receptor, que segundo Achcar (1994, p.99) é
um dado fundamental da poesia do simpósio e de seu ambiente convivial. Também se faz
presente no poema a temática da incerteza do futuro, também horaciana, bem como o uso de
elementos da natureza para representar fenômenos e ideias.

É notável que, embora alguns aspectos materiais não sejam completamente homogêneos, que
Reis busca uma certa simetria na versificação, uma vez que a moldura métrica é quase
inteiramente composta através de pentassílabos (ou redondilha menor). O ritmo ascendente
também indica a busca por uma certa padronização, já que o acento tônico recai sempre sobre
a última sílaba poética de cada verso. A ascendência do ritmo também é reforçada através do
uso do enjambement, que traz aos versos um caráter vivo e enérgico, próprio de um discurso
deliberativo. No que diz respeito ao desenho estrófico, o poema organiza-se em cinco
quintilhas. As figuras de linguagem que predominam na obra são as metáforas, anáfases,
aliterações e assonâncias. Os versos podem ser, em geral, classificados como brancos, pois as
poucas rimas existentes no poema são delicadas e quase irreconhecíveis. Analisemos a seguir
os aspectos citados em cada uma das estrofes. A primeira estrofe é composta por versos
brancos heterométricos, três pentassílabos e dois hexassílabos, considerando as sinalefas
presentes nos versos. É notável o uso de verbos no imperativo associados a objetos precedidos
pelo pronome “teu”, que indicam referência a um interlocutor. A figura de linguagem que salta
aos olhos do leitor já nessa primeira estrofe é a metáfora, construída através de elementos
pertencentes à natureza: as plantas e rosas, que representam os dons do momento presente, e a
sombra das árvores, que aparece como um símile a tudo o que não diz respeito a vida do próprio
interlocutor. Também são notáveis as aliterações com fonemas fricativos (s e z), e em menor
escala a repetição de sons nasais, bem como assonâncias com a vogal a.

A segunda estrofe é composta por versos isométricos pentassílabos. Possui uma parelha
formada pelas últimas palavras do segundo e terceiro verso (menos e queremos). A rima é,
portanto, externa, já que ocorre a partir da última palavra dos dois versos. Pode ser classificada
como rica (rima feita entre adjetivo e verbo), toante (paridade de sons vocálicos), e grave (duas
palavras paroxítonas). Aqui encontram-se novamente as aliterações com fonemas fricativos e
a repetição de sons nasais. O vocábulo “nós” aparece na maioria dos versos da estrofe,
caracterizando um paralelismo. Esta repetição pode sugerir um auto endereçamento do
discurso, além do endereçamento a um interlocutor externo, como se o eu lírico reconhecesse
nele mesmo uma necessidade de receber a exortação proferida.

A terceira estrofe é também composta por versos isométricos pentassílabos. Aparecem


novamente as aliterações em fonemas fricativos e a singela repetição de sons nasais. Possui uma
rima toante (sempre e simplesmente) organizada em uma parelha, que pode ser classificada
como rima pobre, uma vez que é construída entre dois advérbios. O poeta faz uso também do
enjambement entre o segundo e terceiro verso e entre o quarto e o quinto verso. Nesta estrofe,
é introduzida a tópica horaciana da renuntia amoris no verso “Suave é viver só”, que insinua a
negação da paixão em prol da busca pela ataraxia. Também ocorre aqui a primeira citação de
elementos do paganismo greco-romano: “Deixa a dor nas aras/Como ex-voto aos deuses”. O ex
voto era uma tradição da antiguidade que consistia em oferecer um quadro, pintura ou objeto
com intenção votiva a um deus, de forma a pagar uma promessa ou agradecer por uma graça
alcançada. Quando um deus atendia a um pedido, o devoto o oferecia tais objetos para livrar-se
do fardo imposto pelo dever do cumprimento de uma promessa. Assim, neste verso do poema
de Reis, a tradição do ex voto é utilizada como um símile para a atitude de livrar-se ou esquecer-
se do fardo dos sofrimentos, a fim de aproveitar as belezas do presente.

A quarta estrofe é composta por versos heterométricos. Todos os versos são pentassílabos,
exceto o segundo, que é tetrassílabo. Há a presença de uma rima toante entre os vocábulos
“interrogues” e pode). O enjambement ocorre entre o terceiro e quarto verso e entre o quarto e
o quinto verso. Nesta quintilha, as aliterações são feitas a partir de fonemas oclusivos
alveolares. Há também um uso notável de pontos finais nesta parte do poema, que não se faz
presente nas demais estrofes, o que proporciona uma mudança discreta no ritmo. Quanto as
figuras de linguagem, é introduzida no poema a personificação do elemento “vida”: “ Vê de
longe a vida/Nunca a interrogues/Ela nada pode dizer-te”). Ricardo Reis, neste mesmo verso,
faz uma alusão à ode 11 de Horácio, poema representativo do carpe diem. Nos primeiros versos
da ode 11, o eu lírico recomenda ao interlocutor Leuconoé que não procure questionar o destino:
“Tu não indagues (é ímpio saber) qual o fim que a mim e a ti os deuses/ Tenham dado,
Leuconoé, nem recorras aos números babilônicos” (ACHCAR, 1994). Assim também o faz o
eu lírico de “Segue o teu destino”, sugerindo que as respostas para os mistérios da vida estão
“além dos deuses”, portanto, não se deve desperdiçar tempo tentando encontrá-las.
A última estrofe é construída em versos heterométricos, com exceção do segundo e terceiro
versos que são tetrassílabos, todos os outros são pentassílabos. As aliterações são
marcadamente feitas através da fricativa s ao longo da estrofe inteira, e em menor escala em
sons nasais. Na conclusão do poema, o eu lírico recomenda que o interlocutor não se preocupe
em desvendar os mistérios do ser e da vida, para que assim possa viver serenamente como os
deuses, que com tais questões, não se ocupam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme os aspectos levantados nesta breve análise, foi possível constatar que Fernando
Pessoa fez de Ricardo Reis um neoclassicista por excelência, criando, através do surgimento
do heterônimo, um receptáculo para a tradição- greco-latina, bem como um veículo para o seu
próprio conhecimento sobre a antiguidade, pintando no heterônimo sua face latinista. Também
se faz notar que Reis reutilizou as tópicas horacianas de modo a transmitir uma filosofia que
lhe era de particular apreço, tais como o estoicismo e o epicurismo, que são representados
respectivamente pela ataraxia e pelo carpe diem. É relevante dar especial atenção a um aspecto
da aplicação da tópica do carpe diem no poema analisado: o eu lírico anuncia uma urgência em
colher as belezas e prazeres do momento presente, no entanto, não parece certo de tal proposta,
uma vez que ao longo do poema demonstra receio a ceder as paixões, ou seja, ao hedonismo
particular ao carpe diem. Deste modo, o heterônimo parece analisar se vale ou não a pena ceder
às paixões e aos questionamentos pertinentes a vida, o que demonstra que, embora defenda a
filosofia do “colher o dia”, não se permite entregar-se ao extremo às concepções pertencentes
a este gênero.
REFERÊNCIAS

ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar comum: Alguns Temas de Horácio e sua Presença
em Português. In: Ensaios de Cultura, São Paulo, n. 4, 1994.

GABARDO, Maristella. A Abordagem Pessoana dos temas greco-latinos


Clássicos em Ricardo Reis. In: Revista Vernáculo, Paraná, n.5, p.80-90, 2002.

GERMANO, Ricardo; SOUZA, Ronaldo. Ricardo Reis: forma, temas e filosofia. In: Littera Online,
Maranhão, n. 4, 2011.
,
PAZ, Octavio. O desconhecido de si mesmo. In: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva,
1972.

PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Lisboa: Ática, 1946

MAFRA, Johnny José Maria. Os motivos da Lírica horaciana e a poesia de Ricardo Reis.
In:Ensaios de Literatura e Filosofia, Minas Gerais, p. 140 -152, 1980

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