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PLURALISMO E LIBERTAÇÃO

Por uma Teología Latino-Americana Pluralista


a partir da Fé Cristã
I.ui/.a L. Tomila, Marcelo Bait o s
(.’ Jcjsc' Maria V'i” il (or^s.J

P luralism o e Libertação
’o r urna Teologia Latino-Americana Pluralista
a partir cia Pó Cristã

ASETT
EATWOT Ediçócs l o y d a
Sumário

T radução: Luiza E. Tomita


R evisão: Ir. Jovanir Poleze, Luiza E. Tomita e Rita Lopes
D iagramação : Maurélio Barbosa P ró lo g o ........................................................................................... 7
B ispo Federico J. Pagura

A p resen tação ................................................................................. 13


Luiza E. Tom ita, M a rc e lo B a rro s e José M a ría V icil
ASETT C om issão T e o ló g ic a d a ASETT
Rua Tapes, 193 A ssociação de T eólogos (as) d o T erceiro M undo — R egião A mérica Latina
01527-050
São Paulo, SP
Homepage: <http://www.eatwot.org> Muitos pobres, muitas religiões................................................ 17
e-mail: asett-la@ajato.com.br A opção pelos pobres: lugar privilegiado
para o diálogo entre as religiões
Edições Loyola J osé M aría V igil
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Jorge P ixley
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A teologia das religiões a partir da América L atina.............. 47
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Macroecumenismo: teologia latino-americana das religiões .. 71
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Religiões, misticismo e libertação ............................................ 89
Um diálogo entre a teologia da libertação
ISBN: 85-15-02993-6
e a teologia das religiões
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2005 P aul F. K nitter
Crista na ciranda de Asherah, Isis e Sofia:
propondo novas metáforas divinas para um debate
Prólogo
feminista do pluralismo religioso........................................ 107
B ispo Federico J. Pagura
Luiza E. T om ita

O absoluto nos fragm entos......................................................... 125


A universalidade da revelação nas religiões
Luiz C a r lo s Susin

Muitas falas e uma única palavra: a m o r ................................. 145


A Bíblia e o pluralismo religioso
M arcelo Barros

Nunca tive a experiência de escrever um prólogo “sobre a mar­


Cristologia da libertação e pluralismo religioso................... 161 cha” e isto é mais significativo em meio a um tempo tão crítico e de­
José M arIa V icil
cisivo como este em que nós, argentinos, atravessamos nestes dias.
Cristologia afro-latíndia: discussão com D e u s ....................... 171 Nosso presidente da República, “fora de série”, após tirar da parede do
M arcelo Barros Colégio Militar os retratos de dois generais “genocidas” e transferir os
edifícios da Escola de Mecânica do Exército para os organismos de
Uma revelação índia de Deus M ã e .......................................... 185 Direitos Humanos, transformou em Museu da Memória o que fora um
M ario P érez P érez centro de desaparecimento, tortura e morte. Em seguida, em nome do
Estado Nacional, ele pediu perdão a todos “pela vergonha de ter se
Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus.... 193
calado durante 20 anos de democracia, por tantas atrocidades”.
Tópicos de uma eclesiologia macroecumênica da libertação
Francisco de A q uino J únior Assim, afirma um de nossos mais lúcidos jornalistas e ensaístas,
José Pablo Feinman: “Um governo, unindo-se às reinvindicações da
A maldição de M alaquias............................................................. 215 sociedade que aposta na vida, desmantelou um templo poderoso do
Eclesiologia negra e pluralismo religioso ‘oficialismo argentino’, (...) esse Estado, filho da violência extrema,
P e. Paulo Botas que arrasou com as resistências federais, com as economias do inte­
rior, com os negros e com os índios”. E muito do que realizou o fez
Epílogo.............................................................................................. 225 com a bênção ou o silêncio de sucessivas hierarquias da religião oficial
Rotas abertas e fechadas em direção a Deus
D iego IrarrAzaval
e a sacrificada resistência de minorias proféticas ou “abraâmicas”,
como as denominava Dom Helder Câmara.
Os autores/a 231 Precisamente aqui, os capítulos deste livro do qual me pediram
para escrever o Prólogo incorporam-se como resposta ao parágrafo
final do prólogo com o qual nosso admirável amigo Dom Pedro
Casaldáliga apresenta o primeiro volume desta série:

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Pluralismo e libertação Prólogo

Pelos muitos caminhos de Deus, nos quais Ele se cruza com a huma­ Quanto ao mundo ecumênico, pode-se dizer que, a partir da Con­
nidade, criando-a, protegendo-a, buscando-a, avançamos religiosamente ferência Missionária de Edinburgo (1910) abre-se um longo período
plurais, filhos e filhas do Deus único, irmãos e irmãs na sua família de estudo, reflexão e discussão sobre a aproximação, compreensão e
humana. Sejamos cada vez mais conscientes desta unidade fundamen­ relação com outras tradições religiosas. Dentro destas reflexões, desta-
tal e da enriquecedora pluralidade com que podemos e devemos vivé- ca-se o pensamento de J. N. Farquhar em sua obra ri Coroa do Hinduís-
la, no caminho à casa comum paterno-maternal. mo, que relaciona o Cristo com as profundas aspirações do Hinduísmo.
Além disso, temos os trabalhos da Conferência Missionária de Jerusalém
Haviam-nos antecipado que este segundo livro constituiría urna (1928) que encara simultaneamente o pensamento sincretista a partir
tentativa de oferecer respostas concretas às perguntas e desafíos “do das religiões asiáticas e o nascente secularismo que sacode as igrejas
pluralismo religioso à teologia da libertação”. E, com maior razão, tanto do Oriente quanto do Ocidente. Aqui começam a brilhar o pensa­
acrescentaria, às teologias mais tradicionais e ortodoxas que predo­ mento do arcebispo W. Temple, de W. E. Hocking, e sobretudo do ho­
minam no amplo cenário religioso de nosso continente e do mundo landês H. Kraemer (próximo a Karl Barth), cujo livro preparatório para
inteiro. E Dom Pedro encarrega-se de lembrar de alguns dos pioneiros a Conferência Missionária de Tambaram, Madras, índia (1938), cons­
que, particularmente no mundo católico romano, se atreveram a levar titui um marco histórico ao diálogo e à discussão aberta no mundo
à frente o diálogo inter-religioso, o macroecumenismo ou o pluralismo ecumênico até nossos dias. Mais adiante, nas diversas conferências
religioso, “perturbando todos os esquemas tradicionais”, sendo às convocadas em Amsterdã (1948), Nova Delhi (1961), México (1963),
vezes incompreendidos e até censurados pelas “instâncias oficiais”, Bancoc (1964) e Kandy — Sri Lanka (1967 — com a participação,
não muito dadas à liberdade e ao novo. pela primeira vez, de consultores do Vaticano), após inumeráveis en­
No mundo evangélico, protestante e/ou ecumênico, a preocupação contros, culmina em 1979, com a aprovação em Chiang Mai (Tailândia)
não ficou ausente. Na minha própria tradição metodista, durante meus das “Diretrizes para o diálogo com outras religiões e ideologias do
anos de juventude, brilhou a figura ilustre de E. Stanley Jones, um nosso tempo”, cuja versão revisada e ampliada pelos consultores da
missionário evangélico norte- americano, que fincou raízes nas imen­ Igreja católico-romana foi aprovada e difundida pelo Papa João Paulo II,
sas e fecundas terras da índia, cultivou, junto com uma extraordinária em 1984. Por outro lado, o Conselho Mundial de Igrejas foi acrescido
pacifista inglesa e anglicana, Muriel Lester, uma profunda amizade da presença e participação de convidados das maiores confissões reli­
com Gandhi (com quem costumava solidarizar-se em seus longos giosas do mundo, que já em Vancouver (1938) chegaram a um total de
jejuns) e de quem escrevia no seu conhecido livro: Cristo na Mesa- 15, com ativa participação numa sessão plenária, sobre o tema “Teste­
Redonda, baseado na rica experiência dos “ashrams”, conferências munhas num mundo dividido”.
inter-religiosas sobre temas fundamentais): . Nesta síntese incompleta, detive-me no que está acontecendo no
mundo ecumênico a respeito do diálogo e encontro inter-religioso que
Semana após semana ele descobre o mais íntimo de sua alma e discute continua abrindo passos, porque considero que o valioso e variado
francamente a sua atitude diante do cristianismo e de outras religiões, material que temos o privilégio de aqui publicar neste livro tem uma
dando os seus motivos para decidir-se a favor da vida religiosa que hoje contribuição informativa e enriquecedora, além de inquietante e desafia­
pouco se pratica. A porta para a discussão franca está, pois, aberta, e dora para oferecer. Só posso enumerá-la. Os títulos dos capítulos já
tem sido pela mão de um hindu. constituem em si um convite à aventura: como os que têm a ver com

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Pluralismo e libertação Prólogo

“A teologia das religiões a partir da América Latina” ou a “Cristologia de Deus Mãe”. Além disso, a partir do lugar dos pobres, tanto no
da libertação e o pluralismo religioso” ou o “Macroecumenismo: teolo­ mundo da Bíblia como na história, ensaios como os intitulados “Mui­
gia latino-americana das religiões”. Confrontando a evolução da tos pobres, muitas religiões — A opção pelos pobres: lugar privile­
teologia da América Latina com a teologia do Primeiro Mundo “que é giado para o diálogo entre as religiões”, “Memórias de lutas popula­
tuna teologia circunstancial, local, parcial, particular, porque é urna res: um unificador potencial?” e “Igreja dos pobres: sacramento do
teologia da cristandade ocidental”, temos a descrição de um dos escri­ povo universal de Deus” adquirem uma tremenda atualidade para o
tores sobre a teologia que brota no nosso continente: tempo em que vivemos nesta América e no Caribe.
Finalmente, três ensaios, cada um com seu estilo particular, nos
Na América Latina se fez dentro do clero e dentro da teologia o obrigam a aprofundar a temática dominante que motiva a peregrina­
redescobrimento dos pobres e do verdadeiro sentido da boa nova, do ção à qual nos incorporamos: “Religiões, misticismo, libertação —
evangelho que se dirige aos pobres e não sensivelmente a todos os Um diálogo entre a teologia da libertação e a teologia das religiões”;
seres humanos como se fossem todos iguais. A Biblia diz, justamente, “O absoluto nos fragmentos — A universalidade da revelação nas
que não são iguais. Na historia há ricos e pobres, dominados e domi­ religiões”, e “Muitas falas e uma única palavra: amor — A Bíblia e
nadores... e o Evangelho tem o seu sentido na denúncia desta situação, o pluralismo religioso”.
afirmada até a morte pelos profetas de todos os tempos. Sem dúvida, estas páginas nos sacodem fortemente e nos despo­
jam de muitas falsas seguranças que entorpecem o caminho e preju­
A teologia latino-americana não adaptou a teologia cristã a uma cir­ dicam o testemunho dos cristãos no nosso tempo. Entretanto, elas
cunstância: descobriu a verdadeira teologia oculta durante séculos pela conseguem abrir em nossa vida e em nossas comunidades novos ru­
estrutura de cristandade e seu quadro intelectual. Redescobriu o essen­ mos de humildade, espiritualidade e diálogo autêntico. Além disso,
cial do cristianismo, a sua mensagem central. Como pôde fazê-lp? acendem luzes de esperança nos tempos tão incertos e sombrios como
Rompeu com a cristandade, com o sistema colonial e eclesiástico. Seus estes que atravessamos. Isto nos é comprovado pela veracidade da
colaboradores/as foram perseguidos/as inclusive pela hierarquia, mas afirmação de Gustavo Gutiérrez, citado num destes capítulos: “Todas
não cederam porque sabiam que haviam descoberto uma verdade que as reflexões teológicas não valem mais do que um ato de caridade
ficou oculta durante séculos. concreto”, afirmação que adquire uma dimensão incalculável no tes­
temunho de dois grandes profetas de nossa geração: Nelson Mandela
Levando muito a sério a presença religiosa dos povos indígenas, e Ignacio Ellacuria. O primeiro, na oitava Assembléia do Conselho
os de origem africana e a presença forte da mulher, crescente prota­ Mundial de Igrejas (Harare, 1998), afirmou:
gonista de nossa história e cada dia mais consciente de sua identidade
e de seu gênero, os autores abordam a “Cristologia affo-latíndia: dis­ Era preciso ter conhecido as prisões do apartheid da África do Sul para
cussão com Deus” e “A maldição de Malaquias — Eclesiologia negra compreender até que ponto foi importante a Igreja naqueles dias. Tra­
e pluralismo religioso” como solene advertência à nossa geração; a taram de nos isolar totalmente do exterior. Só podíamos ver os nossos
partir de uma original perspectiva de gênero, “Crista na ciranda de familiares duas vezes por ano. Nosso vinculo com o exterior eram as
Asherah, Isis e Sofia: propondo novas metáforas divinas para um organizações religiosas, de cristãos, muçulmanos, hindus e membros
debate feminista do pluralismo religioso”; e “Uma revelação índia da religião judaica. Eles foram os fiéis que nos inspiraram. O apoio do

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Pluralismo e libertação

CMI (Conselho Mundial de Igrejas) foi o exemplo mais concreto do


que a religião fez pela nossa libertação, desde aqueles dias em que as
Apresentação
instituições religiosas assumiram a responsabilidade da educação dos
oprimidos que nossos governantes nos negavam, até mesmo o apoio de
nossa luta pela libertação.

Ignacio Ellacuría, sj, mártir vasco-salvadorenho, pronunciándo­


se com toda firmeza sobre a vocação histórica da família abraámica
(judeus, cristãos e islâmicos), afirmou:

Não é Deus quem destrói a vida sobre a terra. Os homens, auto-converti­


dos em deuses estão já preparados para fazê-lo... As religiões da vida, as Este livro da ASETT — Associação Ecumênica de Teólogos e
religiões de promessas utópicas, as religiões monoteístas e monossalvíficas Teólogas do Terceiro Mundo — região América Latina — propõe-se
podem e devem impedir esta loucura coletiva, e o farão, se instaurarem o a dar os primeiros passos para a construção de uma “nova” teologia
Reino de Deus como o Reino do povo inteiro da humanidade. cristã latino-americana do pluralismo religioso. Foi precedido por
outro livro1, também da ASETT, que pretendeu assinalar os desafios
que esse pluralismo suscita para a teologia da libertação latino-ame­
ricana. Este segundo livro trata de dar pistas ou caminhos que nos
levem — como esclarece o subtítulo — em direção a uma “mais
profunda " teologia cristã latino-americana do pluralismo religioso.
Dizemos “em direção a” porque este não é mais que um início do
caminho e disso estamos conscientes. Há muitas experiências entre nós,
há muitas reflexões aqui e ali. Mas sentimos a necessidade de um esforço
explícito eformal de ordená-las em uma “reflexão teológica sistemática ”
que se construa a partir delas. Este é o objetivo do presente livro.
Dizemos “cristã” porque a teologia do pluralismo religioso —
chamada também, classicamente, “teologia das religiões” — pode
ser também muçulmana, hindu, budista... Entretanto, este livro fica
decididamente no âmbito da teologia cristã.

1. Edição em português: Pelos muitos caminhos de Deus. Desafios do plura­


lismo religioso à Teologia da Libertação, Goiás, Editora Rede, 2003. Edição em
castelhano: Por los muchos caminos de Dios. Desafios del pluralismo religioso a
la teología de la liberación, Quito, Verbo Divino, 2003. Edição em italiano: I volti
del Dio liberatore. Le sfiide del pluralismo religioso, Bolonha (Itália), EMI, 2004.

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Pluralismo e libertação Apresentação

Dizemos “latino-americana” porque não nos referimos a uma teo­ 3. O terceiro livro, que já está em preparação, quer ser um ensaio
logia abstratamente universal, senão concretamente latino-americana, de uma Teologia latino-americana pluralista da libertação.
querendo referir-nos com este adjetivo não a runa mera materialidade 4. O quarto livro continuará na mesma linha da teologia pluralis­
de localização geográfica, mas sim a urna referencia de “geografía ta da libertação, mas a partir de um âmbito intercontinental,
espiritual”. Esta se refere ao “Continente espiritual” de onde emerge a com a participação de todas as regiões da ASETT.
terra firme das grandes opções conhecidas tradicionalmente como “la­ 5. O último livro pretende saltar a fronteira cristã na tentativa de
tino-americanas”, isto é, as Grandes Causas da Pátria Grande, entre as ser um livro de teologia da libertação multirreligiosa mundial
quais a teologia da libertação aparece como uma espinha dorsal. do pluralismo religioso.
Dizemos “do pluralismo religioso” como novo nome da teologia A gradação do processo é facilmente perceptível porque:
das religiões, da teologia sobre a pluralidade religiosa. Mas também o - o primeiro limita-se a assinalar os desafios; os quatro seguintes
dizemos — num segundo sentido — referindo-nos ao “pluralismo” tratam de construir uma nova teologia;
não como simples pluralidade, senão como novo paradigma teológico. - os dois primeiros estão na busca do “paradigma pluralista”,
Dizemos estar “a caminho”, conscientes de não haver cruzado enquanto os três últimos já o assumem conscientemente.
ainda o rubicão, pelo envolvimento no discernimento teológico que - os três primeiros são “latino-americanos”, os dois últimos são
este livro tão expressivamente representa. intercontinentais ou mundiais.
À maneira de capítulos, os artigos dos diferentes autores cen­ - os quatro primeiros são de teologia cristã, o quinto é de teologia
tram este discernimento em cada um dos ramos principais da teolo­ multireligiosa;
gia, além de contextualizá-lo na história e no espírito dos desafios - os cinco livros se propõem a somar com todo o conjunto que
que, queiramos ou não, transcendem nosso continente. Por essa cen­ constitui os ramos e as diversas expressões da(s) teologia(s)
tralização em um ramo teológico ou em uma contextualização con­ da libertação.
creta, a leitura deste livro poderá ser igualmente proveitosa se seguir Não podemos terminar sem expressar nosso agradecimento sin­
outra ordem, segundo a preferência do(a) leitor(a). cero a todos os(as) autores(as) que, aceitando o desafio, tomaram
O Bispo Federico Pagura (Igreja Metodista da Argentina) brin­ possível esta obra coletiva e renunciaram a todo direito de autor para
da-nos com o prólogo desta obra coletiva, por meio de sua palavra fazer este livro mais acessível ao público. Também agradecemos à
abalizada e comprometida. Misereor, por seu apoio na publicação deste livro, no mesmo espírito
Diego Irarrázaval, presidente mundial da ASETT, oferece-nos ecumênico e solidário.
como epílogo do livro um balanço teológico, digno fecho como refe­ Resta-nos, agora, convidar o(a) leitor(a) a acompanhar-nos nesta
rendo da ASETT mundial a este livro coordenado por sua Comissão aventura teológica, num compromisso com o Deus de todos os povos e
Teológica, região América Latina. com seus pobres, buscando o diálogo e a cooperação de todas as religiões.
Permitam-nos recordar o esquema do conteúdo dos cinco livros Luiza E. Tom ita
que formam esta série sob o título geral de Pelos muitos caminhos de M arcelo Barros
Deus com diferentes subtítulos especificadores: José M aría V igil
1. O primeiro, publicado em 2003, teve o subtítulo Desafios do C om issão Teológica da ASETT
pluralismo religioso à Teologia da Libertação. A ssociação de Teólogos(as) do Terceiro M undo —
2. O segundo é este livro que o(a) leitor(a) tem em mãos. Região América Latina

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Muitos pobres, muitas religiões
A opção pelos pobres: lugar privilegiado
para o diálogo entre as religiões

José M aría V igil

I. Os pobres precisam do diálogo das religiões


“Entre os muitos ‘sinais dos tempos’ que desafiam hoje as reli­
giões, existem dois que apresentam aos cristãos exigências particular­
mente urgentes: a experiência de que existem muitos pobres e a expe­
riência de que existem muitas religiões.” Esta constatação que Paul
Knitter fazia já em 1986 tem, na atual fase de mundialização, uma
evidência ainda mais acessível. De um lado, o imenso número de po­
bres no mundo, e, de outro, a pluralidade de religiões — com seu
desconhecimento mútuo, sua falta de diálogo, a autarquia c o autocen-
trismo de cada uma delas, sua falta de responsabilização mundial coorde­
nada — e a inspiração religiosa à qual alguns terrorismos se remetem
seriam dois dos principais pontos de atenção a ser levados em conta
por um ser humano consciente à altura destes tempos.
Só no Primeiro Mundo secularizado é que a religião poderia ser
desprezada, por alguns, pelo papel que pode assumir a favor dos po­
bres. Certamente, a história tem freqüentemente testemunhado a alian­
ça que a religião tem estabelecido secularmente com as classes domi­
nantes, até ser catalogada classicamente como uma das “superestrutu-
ras” que serviram para dominar — através do adormecimento e das
promessas ultraterrenas — as classes oprimidas. Mas uma análise mais
detida da história — e logicamente da história latino-americana da
segunda metade do século passado — demonstra que a religião é bem
capaz também do contrário. Pode ser fermento de libertação e até de

17
Pluralismo e libertação Muitos pobres, muitas religiões

revolução, assim como pode ser o opio ideológico. Houve na historia depressiva” da última década do século passado4. Como herança da
alguma revolução que tenha triunfado sem o apoio da religião, fosse história de sempre, um abismo infranqueável de distâncias não somen­
esta oficial ou popular, alternativa à religião oficial destronada? te geográficas e idiomáticas, mas sobretudo culturais, os separa. E neste
Só se é capaz de fazer o próprio dom a favor da utopia quando mundo de hoje, já “globalizado” estruturalmente, não há caminho de
uma faísca de “mística”, de paixão pela utopia libertadora, se acende no libertação senão numa estratégia “globalizada”. Afortunadamente, “o
coração humano. E essa paixão pela utopia libertadora é precisamen­ começo do século XXI está marcado pela emergência de um novo sujeito
te o melhor da religião quando esta não é desperdiçada e traída em emancipatório: os movimentos sociais pela justiça global”5: um novo
uma aliança contra os pobres. caminho de esperança começa a se desenhar no horizonte dos pobres
Como conseguem sobreviver “com menos de um dólar por dia” do mundo. Centenas ou milhares de entidades da sociedade civil estão
as multidões na índia, os povos abandonados desse “barco à deriva” configurando este novo sujeito mundial que começa a se opor à globa­
que é a África, ou os moradores dessas “selvas sem lei”, que são lização neoliberal, seguro de que “outro mundo é possível”. E dentro
algumas favelas latino-americanas? Não com o escasso “dólar diá­ dessa sociedade civil são também as religiões as que se fazem cada vez
rio”, mas com outros recursos que lhes dão sentido, visão, auto-esti- mais presentes. De fato, nos mesmos Fóruns Sociais Mundiais até agora
ma, projeto, força... Aí está a religião. celebrados, há uma crescente presença das religiões, não oficial ou
O mundo dos pobres é um pulular de religiões. A cada três dias institucionalmente, mas a cargo dos grupos mais conscientes sobre a
são fundadas duas novas igrejas no Terceiro Mundo cristão, e já são contribuição insubstituível das religiões em face desse novo caminho
mais de 25 mil as igrejas cristãs1. de libertação mundial.
A índia é um imenso acúmulo de pobreza e religiosidade. Na As religiões, pela sua proximidade com o povo, pela sua localiza­
África a secularização não tem nenhuma força perante o animismo. ção supranacional e até supracontinental, e sobretudo por sua própria
O “revival” religioso se dá no mundo todo. Pareceu a alguns desaper­ capacidade de dar poder6 ao povo, devem participar. É imprescindível
cebidos que a religião retrocedia e desaparecia; mas, na realidade,
que participem. Para isso é necessária, antes de tudo, a “conversão” das
simplesmente estava se transformando, sujeita talvez a uma mutação
religiões. Precisamos que as religiões resgatem o melhor de suas tradi­
que ainda estamos por identificar devidamente.
ções espirituais, entre as quais figuram sempre, indefectível mente, a
Pode-se pensar na libertação dos pobres, sem a religião?2 Have­
misericórdia, a justiça, a esperança, para a transformação do mundo.
rá num futuro uma revolução “secular” não-religiosa? Ou teremos de
As religiões que chamamos “mundiais” têm tido até agora uma relação
pensar que “a revolução, a libertação dos pobres neste mundo globa-
com a mundialidade na linha da “conquista espiritual”: não tem havido
lizadamente neoliberal, será religiosa ou não será”?3
nelas, de mundial, outra coisa que sua vontade de conquistar missio-
Os pobres, em boa paite, ainda não são um sujeito histórico. Estão
dispersos, desunidos, incomunicados, sumidos ainda na “síndrome 4. J. M. V igil, Aunque es de noche. Hipótesis psicoteológícas sobre la hora espi­
ritual de América Latina en los 90, Manágua, Envio, 1996; Bogotá, Verbo Divino,
1. Dados de Franz D amen , Sectas, em Mysterium Liberationis, San Salvador, 1996; Madrid, Acción Cultural, 2000; Embora seja noite, São Paulo, Paulinas. I‘1 0 7 .
UCA Editores, 1991, II, 423-445. 5. Rafael D iaz-S alazar começa assim sua introdução ao livro Justicia global.
2. José Maria V igil, El papel de la religión en la liberación mundial, Alterna­ Las alternativas dei Foro de Porto Alegre, Icaria-Intermón-O.xfam, Barcelona 2002,
tivas, 10/25 (junho 2003) 77-90, Manágua. livro que apresenta os resultados do FSM de Porto Alegre de 2003.
3. Com o concurso decisivo da religião, queremos dizer. 6. “Empoderar”, diz um anglicismo crescentemente freqüente na América Latina.

18
Pluralismo e libertação Muitos pobres, muitas religiões

neiramente o mundo, de “converter” as demais religiões e de absorvê- II. As religiões precisam dos pobres para dialogar
las. Hoje, afortunadamente, esse sentido da “missão missioneira” está Só recentemente as religiões começaram a levar a sério a pluralidade
começando a ser abandonado. As religiões sabem que seu compro­ das religiões. Na realidade, cada religião tem vivido sua própria história
misso pode continuar tendo dimensão mundial, dessa vez não em isoladamente, não só em um sentido geográfico e cultural, mas sobretu­
vista de uma conquista missioneira, mas por uma responsabilidade do religioso ou teológico. Todas as religiões viveram no que hoje é conhe­
ética mundial. Vivemos em um único e mesmo mundo e “ou nos cido como “exclusivismo”, isto é, essa posição teológica da religião que
salvamos todos, ou juntos fracassamos”. Sobretudo hoje em dia, pensa que “somente ela é verdadeira”. Aquilo de “fora da igreja não há
quando as estruturas de opressão chegaram a abranger o mundo todo salvação”, não é, de maneira alguma, uma atitude exclusiva do cristianis­
mo; tem sido a pauta comum de, praticamente, todas as religiões.
em um mesmo e único sistema globalizado, a transformação do mundo
Somente na atualidade está-se dando um intenso contato entre
só pode ser feita com a participação articulada de todos os povos
as religiões. Por obra das novas circunstâncias (as comunicações, a
oprimidos. Se estes povos têm muitas religiões, os muitos pobres só multiplicação das viagens internacionais, as migrações) o mundo
participarão articuladamente se suas religiões dialogam e se articu­ tornou-se pequeno e as religiões não podem continuar se ignorando
lam entre si. mutuamente. A sociedade moderna é, cada vez mais, religiosamen­
Por isso, “um movimento mundial de libertação precisa de um te plural. As outras “grandes religiões” diferentes da nossa já não
diálogo inter-religioso mundial7”. Esse diálogo mundial ou o diálogo moram mais em continentes remotos, mas na nossa mesma cidade.
das religiões é uma das maiores urgências do presente e do futuro, No trabalho e nos meios de comunicação ou até no mesmo bloco de
inclusive como criação de uma das condições de possibilidades básicas moradias, os cidadãos se encontram hoje confrontados com a pre­
sença das grandes religiões em qualquer sociedade. “Os Estados
da libertação mundial. O maior serviço que hoje devem fazer as reli­
Unidos se transformaram no país mais religiosamente variado den­
giões ao mundo e aos pobres, concretamente, é dialogar e encontrar
tre todos os do mundo.”8
o caminho da colaboração positiva para a transformação da sociedade. Na Inglaterra, hoje em dia, há mais muçulmanos praticantes que
Talvez elas — sem menosprezar todas as demais instâncias e forças anglicanos praticantes e está próxima a data em que os muçulmanos
e iniciativas — darão um impulso definitivo e uma aceleração inédita serão mais do que os anglicanos em números absolutos9. A influên­
à revolução mundial. Parafraseando a conhecida sentença de Gandhi cia das religiões orientais no Ocidente é um fato conhecido e de lon­
retomada por Küng, me atreveria a dizer: ga data. A presença crescente do Islã em todo o Terceiro Mundo —
também no ocidental, na América Latina — é um dado evidente.
Só haverá libertação dos pobres se as religiões se fizerem libertadoras Vivendo como vivemos todos já em um único mundo globalizado; as
e só haverá união dos pobres se as religiões dialogarem. Não haverá religiões não podem se subtrair dessa convivência com as demais.
paz no mundo sem a libertação dos pobres e não haverá libertação Dita convivência obrigatória leva a um dos desafios que o crente
mundial dos pobres sem o diálogo entre as religiões. Pobres e religiões comum não pode deixar de se questionar: O que significa a existência
do mundo: unam-se! de outras religiões? São religiões verdadeiras, válidas, salvadoras? O

7. P. K nitter , Toward a Liberation Theology o f Religions, em H ick -K nitter 8. D. Eck, A New Religious America, New York, Harper San Francisco, 2001. 4.
(eds.), The Myth o f Christian Uniqueness, Maryknoll, Orbis Books, 1987, 180. 9. Dados do Sunday Times, 11 de maio de 1997.

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Pluralismo e libertação Muitos pobres, muitas religiões

que há no caráter absoluto que cada religião tinha pretendido para si Por sua vez, as religiões sabem que lhes é difícil o diálogo no
mesma até agora? Pode-se seguir pensando em termos exclusivistas campo da doutrina e da fé, e que lhes é mais fácil no campo da ética
(“Fora de nós não há salvação”) ou nem sequer inclusivistas (“A ver­ e da vida. Tudo o que é diálogo teórico teológico pode ser bem-vindo
dade que há fora de nós é a participação na única verdade, a nossa”)? se acontecer, mas também pode esperar. Não precisamos do acordo
Então, “aceitar sinceramente”10 o pluralismo religioso não é urna dos especialistas em um texto conjunto, num consenso de décadas;
simples decisão ética, mas a entrada em urna etapa radicalmente nova. para poder nos colocar em marcha e começar o “diálogo da vida” no
Isso porque todo o patrimonio simbólico de cada religião foi elaborado nível da base. Tudo o que seja esclarecimento teórico da ortodoxia
com base no pressuposto daquela unicidade e absolutismo da própria pode esperar: somos capazes de suportar dúvidas teóricas, mas sen­
religião. Aceitar sinceramente o pluralismo religioso leva a reformular, timos a urgência inadiável da convivência na paz e no amor. Não se
reler, re-elaborar todo esse patrimônio. Isso quer dizer reformular a pró­ trata de discutir teologia, nem de tratar de nos convencer mutuamen­
pria religião. O cristianismo do Concilio de Florença (1442) que afirmou te, nem muito menos de “converter” os outros. O diálogo urgente é o
“firmemente erer. professai- e ensinar que nenhum daqueles que se en­ diálogo da vida, que produz e multiplica a vida, como corresponde às
contram fora da Igreja Católica — não somente os pagãos, mas também religiões que crêem em um Deus da vida.
os judeus, os hereges e os cismáticos — poderão participar na vida eter­ Hoje também as mesmas religiões se vêem desafiadas por esse sinal
na. Estes irão ao fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos dos tempos de “os muitos pobres e as muitas religiões”, e se dão conta
(Mt 25,4), a menos que antes do término da sua vida sejam incorporados crescentemente de sua responsabilidade mundial. A “Sociedade Dois
à igreja...” É o mesmo cristianismo daqueles que hoje se colocam nas Terços”, o Primeiro e o Terceiro Mundos, as massas excluídas e os seto­
posições do pluralismo religioso e consideram que o cristianismo é uma res privilegiados excludentes, todos têm sua herança religiosa, seja qual
a mais entre as religiões e Jesus é mais um entre os mediadores da sal­ for. As religiões não podem negar sua responsabilidade neste único mundo.
vação? Pode-se pensar que as duas posições cabem dentro do mesmo É certo que cada uma delas tenha recorrido à sua própria história inde­
conceito de religião? A aceitação conseqüente do pluralismo religioso é pendentemente, mas hoje vivemos todos em “um só mundo”, em um
uma “mudança de paradigma” mais profunda do que parece: as religiões sistema mundial que nos co-responsabiliza globalmente por todos. As
estão desafiadas a recriar sua autocompreensão e a refazer sua interpre­ religiões estão se dando conta de que não podem deixar de assumir uma
tação da realidade, a se converter, a morrer e voltar a nascer. responsabilidade mundial. É a “ética mundial”, que consegue ir abrindo
O diálogo inter-religioso exige, antes de mais nada, um “intradiá- passo na consciência dos setores religiosos cada vez mais amplos. Se as
logo religioso”11. Antes que dialogar com outras religiões, cada religião religiões dialogassem e se pusessem de acordo em promover uma ética
deve realizar um diálogo anterior consigo mesma, para pôr em questão mundial mínima aceita por todos, encontraríamos com a única força capaz:
suas próprias convicções e verificar a posteriori as afirmações que se de desafiar o egoísmo estrutural do capital financeiro e do poder militar
davam por supostas apriori sobre sua unicidade e absolutismo, e para imperial12, que são, hoje em dia, o inimigo público número um dos po­
mudai-, se necessário. Sem esse “intradiálogo” prévio, o diálogo não bres13. Por onde começar? Como fazer?
passará de um “diálogo entre surdos”.
12. Antonio Comín, La mundialización: aspectos políticos, em V a rio s, M un-
10. AGENDA LATINOAMERICANA’2004, Aceptar sinceramente el pluralis­ dialización o conquista?, Santander, Sal Terrae, 1999, 87ss.
mo religioso, 45-47. 13. Richard H orsley , Jesús y el imperio. E l Reino de Dios y el nuevo desorden
11. Raimundo Panikkar, II dialogo intmreligioso, Asissi, Citadella Editrice, 2001. mundial, Estella, Verbo Divino, 2003.

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Pluralismo e libertação Muitos pobres, muitas religiões

É um principio básico de todo diálogo “começar por tudo aquilo terra, que as religiões são solicitadas com mais urgência para começar
que nos une, não pelo que nos separa”. Pôr em comum o “capital ético” seu diálogo, um diálogo não de teologías nem ortodoxias» mas um “diálo­
de cada religião, para fortalecê-lo, enriquecê-lo e assumi-lo coletivamen­ go da vida” e da convivência, da transformação do mundo, precisamente
te como base da convivência e da transformação do mundo. E o que há a partir dos pobres como sujeitos “empoderados” por suas religiões.
em comum, de “mínimo ético comum”, nas diversas religiões? Na atual teologia das religiões é aceito comumehte que o esque­
De uns tempos para cá está se tomando famosa a chamada “regra ma da evolução dos diferentes paradigmas no mundo cristão tem sido:
de ouro” que aparece recolhida em todas as religiões com quase idênti­
cas palavras, que também aparecem no evangelho (Mt 7,12; Lc 6,31): • exclusivismo (ou eclesiocentrismo), quase 20 séculos;
“Assim como queréis que os outros vos façam, do mesmo modo lhes • inclusivismo (ou cristocentrismo), apenas há 40 anos; e
fazei vós também”. Pela sua própria natureza trata-se de um “mínimo • pluralismo (ou teocentrismo) na atualidade de um modo inicial e
ético”, comparável ao “imperativo categórico” de Kant: um princípio crescente.
ético que por si mesmo seja evidente e básico, sobre o qual pode ser
edificado depois o restante do edifício moral. Esta regra básica é, na Esse “teocentrismo” em linguagem cristã logo cedeu o passo a
realidade, supra-religiosa ou pré-religiosa, de ética natural, de evidên­ um teologicamente equivalente: o “reinocentrismo”, e digo que e
cia lógica primária. Pode ser efetivamente considerada uma base apta equivalente porque para o cristão Deus não pode ser outro que o “Deus
para começar um diálogo “a partir daquilo que nos une”. Nela todas do Reino”. Mas últimamente a palavra “reinocentrismo” também tem
as religiões podem estar de acordo. A “regra de ouro” pode, por isso, cedido seu lugar a outra: “soteriocentrismo”, tratando de evitar pala­
ser um bom começo do diálogo, uma vez que isso significaria come­ vras cristãs que possam apresentar dificuldade no diálogo inter-reli-
çai- “pelo que nos une”. gioso (por exemplo com o hinduísmo, no qual é algo controvertido õ
A “regra de ouro”, na realidade, pelo seu próprio caráter de ética conceito de um “deus” pessoal e é desconhecido o conceito de “Rei­
mínima básica, serve de fundamento a todo princípio moral, e é por no”). A proposta mais atual, em todo caso, na teologia das religiões
isso também fundamento da “opção pelos pobres”. A opção pelos pobres é a do soteriocentrismo: a “soteria” está no centro. Ou seja, as reli­
é opção pelos empobrecidos, pelos “injustiçados”14, em geral, seja qual giões procuram a salvação para os seres humanos. Por obra de algu­
for o campo em que acontece essa “injustiça”. Não faça aos outros o ma maneira de Deus — ou da “realidade última”, em linguagem
que você não quer que lhe façam: isto é, não cometa injustiças que universal — têm surgido no mundo diferentes religiões, caminhos dc
você não gostaria de sofrer. A regra de ouro, comum às religiões, lhes salvação contextualizados cada um em sua geografia, em sua histó­
impõe olhar aos pobres como principal e mais urgente ponto de refe­ ria, em sua cultura, mas todas são ou devem ser “caminhos de salva­
rência. Não há maior drama no mundo atual do que estes “dois terços” ção”, meios de realização em plenitude para os seres humanos. Esta
da humanidade excluída e oprimida. Não há nada no mundo onde grite é sua missão, e sua razão de ser. Já não é verdade que “fora da Igreja
não há salvação” — dito por qualquer religião — mas que “fora da
mais clamorosamente essa “regra de ouro” do que na humanidade sen­
salvação não há Igreja (verdadeira)” — dito também de qualquer Igreja
sível dos pobres e injustiçados. É aí então, no serviço aos pobres da
ou religião. Se a religião não produz “soteria”, ou seja, se não trans­
14. J. M . Vigil, La opción por los pobres como opción p o r la justicia. Reencua- forma o ser humano e o mundo em favor da justiça, se não opta pelos
dramiento teológico-sistemático de la opción por los pobres, no prelo. pobres, se não se une às demais religiões no diálogo e na cooperação

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para a transformação do mundo, é porque é uma religião “falsa”, ou com o neocolonialismo, o convencimento missioneiro de estar
falsificada, ou inútil. chamada a ser a única religião do mundo “para a dispensa da pleni­
O critério de verificação da verdade de cada religião está na soteria tude dos tempos, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, tanto
que comunica e que põe (ou não) em seu centro. Se a religião quer as que estão nos céus como as que estão na terra” (Ef 1,10)... E não
dar “gloria a Deus” deve mostrar que faz viver o ser humano, espe­ se deve falar só do passado: ainda no presente, a declaração Dominus
cialmente o pobre, o injustiçado, segundo as palavras de Santo Irineu Iesus, do ano 2000, não aceita falar de Igrejas “irmãs”, pechincha o
(“a gloria de Deus é que o ser humano viva”) matizado hodiernamente mesmo nome de “Igrejas” dentro do mundo ecumênico (cristão). Além
por São Romero da América (“a gloria de Deus é que viva o pobre”). disso, afirma que fora da Igreja, não é que não haja em absoluto
A “ação em favor da justiça e da transformação do mundo” é o melhor salvação, mas acrescenta que, de fato, os seres humanos se encon­
campo de verificação de toda religião. Por isso, em urna época de ine­ tram “em uma situação salvífica gravemente deficitária” (n2 22). À
vitável convivência e diálogo inter-religioso, as religiões estão dedica­ Igreja católica apresenta-se a necessidade de uma profunda conver­
das a se fazer conscientes de que esta é a principal urgência e a pôr são se quiser entrar no caminho do diálogo religioso e na aceitação
mãos à obra com todo empenho. sincera do pluralismo.
Porém, se finalmente aceita o pluralismo e entra no diálogo inter-
religioso, o cristianismo terá muito a aportar. No seu próprio patrimô­
III. A opção pelos pobres, aporte principal das religiões abraâmicas
nio simbólico, nas suas Escrituras e em sua tradição, e sobretudo na
ao diálogo inter-religioso
base da sua mesma origem histórica, o cristianismo tem uma imagem
O pluralismo religioso, a aceitação da pluralidade, é um desafio de Deus e uma concepção da religião que coincidem com o “mínimo
particularmente difícil para o cristianismo, porque é amplamente ético básico” do qual falamos anteriormente. Neste sentido seu aporte
conhecida sua pretensão de unicidade e de absolutismo. Citamos in ­ ao diálogo religioso mundial pode ser decisivo. Vejamos.
teriormente o Concilio de Florença, que é um ponto culminante nes­ Historicamente falando (além dos mitos de origem, que são
sa atitude de exclusivismo, e essa'..consciência do cristianismo de ser criações posteriores), as origens dó judeu-cristianismosremontam aò
“a única religião verdadeira”, perante a qual todas as demais reli­ século XIII a.C., àquela revolução agrária camponesa protagonizada
giões e deuses seriam “obras de mãos humanas” (Salmo 113b), é pelos ‘Apiras15. O Deus original do judeu-cristianismo foi invocado,
conhecida no mundo todo. A historia do cristianismo está cheia de foi experimentado pela primeira vez na história! daquela revolução.
atitudes prepotentes: a aceitação de sua entronização como religião Não sabemos se houve alguma revolução atéia na história, mas aquela
oficial do império romano até a perseguição de qualquer outra reli­ foi, em todo caso, religiosa.
gião, a configuração de si mesma como regime de cristandade na Os ‘Apiras rebelaram-se contra osfeis das cidades-estado e con­
qual a Igreja se põe acima do poder civil como poder absoluto tra o Faraó em nome de um Deus “El” (que figura no nome teofórico
inapelável, as cruzadas como guerras “em nome de Deus contra os de Isra-El), que foi experimentado na indignação ética dos pobres.
infiéis”, a justificativa teológica da conquista da América (é de se Os ‘Apiras (os marginalizados e excluídos da época) experimentaram
lembrar o texto do “Requerimento”, e a repartição das “terras por uma vivência religiosa, uma experiência de Deus, de um Deus “El”,
descobrir” feita pelos papas aos reis cristãos), a Inquisição pela qual
se torturou e executou tantos “hereges”, a legitimação ou conivência 15. Norman G ottw ald , The Tribes ofYahweh, N ew York, Orbis Books, 1979.

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Pluralismo e libertação Muitos pobres, muitas religiões

em cujo nome puderam se levantar contra a experiência religiosa da risma” do judeu-cristianismo, e este pode ser seu grande aporte ao
sociedade hegemônica e dos seus estamentos de dominação (faraó, diálogo inter-religioso. E assim, como todo outro elemento no judeu-
rei local, exércitos locais, clero) ao redor do Deus “Baal”. Os pobres, cristianismo pode ser tido como adicional, acidental, derivado ou
os injustiçados tiveram uma experiência religiosa nova, a partir de inclusive prescindível, em comparação com este núcleo essencial,
uma “indignação ética” ante a realidade da injustiça radical em que assim também o judeu-cristianismo pode comungar com todas as
viviam, uma sublimada convicção de que o Deus da justiça e da so­ religiões que aceitem acolher com reverência essa vivência da opção
lidariedade, chamado “El”, “lutaria com eles” (isso significa o nome pela Justiça maior, a opção pelos pobres. Em contrapartida, o judeu-
de Isra-El) para poder emancipar-se desse mundo de opressão e para cristianismo pode e deve abrir-se para ser enriquecido com outras
construir uma nova sociedade. Essa experiência religiosa que aconte­ visões e enfoques, perspectivas e/ou enriquecimentos à base dos “ca­
ceu nas montanhas de Canaã coincidiu com a experiência religiosa rismas” das outras religiões.
igualmente libertadora que experimentou outro grupo de ‘apiras que A grande contribuição do judeu-cristianismo ao diálogo das re­
conseguiu escapar da opressão do império da época, Egito (o grupo ligiões seria a visão de que a essência mesma da religião é essa pai­
do êxodo). As experiências de uns e de outros grupos se fundiram e xão pela justiça e fraternidade. Se esse “mínimo básico religioso”
os nomes de Deus (El, Jeová) também se identificaram. fosse aceito, o mundo entraria em uma transformação radical.
O mais genuíno e original da religião judaico-cristã é essa pai­ A principal e mais urgente tarefa que o cristianismo tem pela fren­
xão pela justiça, esse imperativo de construção de uma sociedade te não é talvez sua renovação interna (mesmo sendo tão urgente que, na
sem opressores nem oprimidos. Tudo mais são enriquecimentos, ou realidade arrisca sua sobrevivência), mas assumir sua responsabilidade
derivações — e até desvios — da religião original. No mais nuclear global sobre o mundo e sobre a história (como tem feito inúmeras
do patrimônio simbólico do judeu-cristianismo perdura a opção dos vezes na sua história recente), e apoiar o diálogo das religiões ao redor
pobres por Deus e de Deus pelos pobres, esta aliança entre Deus e os do mais nuclear da experiência religiosa: a opção pelos pobres como
pobres. Do ponto de vista do judeu-cristianismo, a religião, ou a opção pela justiça e pela construção de um Novo Mundo. E, para tra­
“experiência religiosa” fundamental, é essa vivência que faz o sujeito balhar nesta linha, o cristianismo não tem de fazer nenhum esforço
capaz de superar o egoísmo (inclusive em suas formas mais crassas impróprio; pelo contrário, basta deixar-se levai-pelo seu próprio impul­
de conformismo, resignação) e sair de si mesmo para centrar-se na so “natural” e deixar correr livremente seu próprio carisma fundador:
justiça e no amor, uma vivência capaz de se apoderar da pessoa até o melhor das suas Escrituras e de sua tradição, a voz mais nítida de
“apaixoná-la”, em prol de uma utopia de transformação do mundo e seus profetas e de Jesus coincidem paladinamente no mesmo enfoque.
de construção de uma Nova Sociedade, a Sociedade democrática, A teologia da libertação latino-americana, em seu ramo de “teolo­
fraterna e participativa que Deus pode querer, o “Reinado de Deus” gia das religiões” — como “macroecumenismo” — já entrou por essa
mesmo, como será dito em linguagem posterior. linha (falamos dos anos 1970 e 1980). Não deu então uma importância
A opção pelos pobres, teologicamente radiografada, é essencial­ teórica ao diálogo das religiões porque ainda não acontecia na América
mente “opção pela justiça”, ou, dito de forma pessoal: “opção pelos Latina a experiência do pluralismo que hoje acontece em nosso mundo.
injustiçados”. E o Deus que é experimentado nessa opção é o genuíno Mas, precisamente, o macroecumenismo latino-americano praticou de
Deus bíblico. Se nos distanciamos dessa experiência religiosa, distan- fato um “diálogo de religiões” que abrangeu até a ausência de religião,
ciamo-nos inevitavelmente do Deus bíblico original. Este seria o “ca- o ateísmo. A teologia da libertação se deu muito bem com os ateus.

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Pluralismo e libertação Muitos pobres, muitas religiões

com o bom samaritano (Le 10,25), a quem sempre lhe reconheceu que desde a atalaia privilegiada da Ásia tem outra perspectiva mais ampla
“não estás longe do Reino de Deus” (Me 12,34). Nunca “discutiu re­ para nos dizer que nossa teologia da libertação latino-americana seria
ligião” com os ateus, nem debateu a respeito de “a religião verdadeira” “um luxo para uma minoria cristã”...
com as religiões indígenas e afro. Pelo contrário, aceitou convicta a Nas décadas de 1970 e 1990 talvez não pôde ser de outra maneira,
sacralidade destas, e adorou fervorosamente com elas ao “Deus de todos e, mesmo não deixando de existir experiências de diálogo intercon­
os nomes”16. Diríamos que nesses aspectos foi “pluralista avant la lettre”. tinental terceiro-mundista, o conjunto da experiência latino-americana
Reconheceu que o diálogo religioso mais eficaz consiste em construir ficou à margem dessas investigações. Não deverá ser assim agora. Es­
juntos um novo mundo “onde o pobre viva”, e que esse seria o melhor tamos em outra hora da história, hora de globalização e de mundializa-
culto “em espírito e verdade” (Jn 4,24). ção. A teologia da libertação do futuro imediato já não pode ser “lati­
Mas isso não significa que não tenha ainda muito caminho para no-americana” somente, no sentido que tem de ser uma teologia da
percorrer. Efetivamente, estamos em “outra época” e há novos desafios. libertação que fale ao mundo, que seja teologia “da libertação mun­
Concluiremos destacando aquele que nos parece o principal de todos dial”. Ainda mais, na nova etapa da teologia da libertação, junto a
eles. De acordo com Pieris: uma teologia (cristã) da libertação mundial, temos de nos focar a
A irrupção do Terceiro Mundo, com suas demandas de libertação, é criar uma “teologia inter-religiosa da libertação mundial”, uma teolo­
também a irrupção do mundo no cristão. A maior parte dos pobres de gia que não esteja construída sobre bases estritamente cristãs e com
Deus simboliza sua luta pela libertação no idioma das religiões e cul­ ferramentas e categorias somente cristãs. Antes, deverá ser uma teolo­
turas não-cristãs. Portanto uma teologia (da libertação) que não seja gia que, ao dirigir-se à libertação mundial como seu objetivo, fale ao
dirigida para e por meio desta humanidade não-cristã (e suas religiões) sujeito dessa libertação mundial, que são os “muitos pobres”, pobres
•é um luxo da minoria cristã17. ? esses que também são sujeitos de “muitas religiões”. Precisamos de
I uma teologia inter-religiosa da libertação, que talvez terá de se sujeitar
A teologia da libertação latino-americana influenciou muito além a uma teologia de mínimos éticos e mínimos religiosos, mas que sendo
de seu continente, mas nunca pretendeu fazê-lo de modo direto. Sua “mínima” nesse sentido desfrutará da máxima universalidade, ao po­
fonte e seu interlocutor era o povo latino-americano, um povo de der ser transversal a todas as religiões. A construção desta nova teolo­
tradição cristã e de cosmovisão ocidental imposta sobre matrizes in­ gia da libertação é uma das grandes urgências do fazer teológico com­
dígenas, afro-americanas e camponesas. Não esteve preocupada em prometido com os pobres. A teologia da libertação demorou em des­
dialogar com as “grandes religiões”. As circunstâncias daquela hora cobrir outros campos além do econômico (o cultural, de gênero, de
não permitiram uma perspectiva maior. É verdade que, finalmente, etnia). O último campo que tem descoberto é o do pluralismo religioso,
ficou fechada em seus próprios marcos cristãos, ocidentais e latino- só que este é transversal (não setorial): essa perspectiva afeta todo o
americanos não por má vontade, mas por falta de outras oportunida­ universo teológico e sob sua luz deve ser tudo reformulado. É o desafio
des. Nesse sentido, acolhemos fraternalmente a crítica de Pieris, que do pluralismo religioso à teologia da libertação.

16. P. C asaldáliga, Missa dos Quilombos, introito.


17. P ieris, The Place o f Non-Christian Religions and Cultures in the Evolution
of, Third World Theology, em Irruption o f third World: Challenge to Theology, Virginia
F abela and Sergio T orres (eds.), Maryknoll, Nueva York, Orbis, 1983, 113-114.

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Memórias de lutas populares
— Um unificador potencial?
Jorge Pixley

As culturas de todos os povos do mundo se encontram hoje amea­


çadas pela globalização capitalista. Os tecidos que antes eram feitos
foram substituídos por tecidos sintéticos produzidos em fábricas com
custos muito menores. Os grãos básicos que antigamente se cultivavam
vão sendo substituídos por grãos produzidos em grandes extensões
capitalistas a preços extremamente baixos. As sementes estão a caminho
de serem patenteadas e controladas por grandes transnacionais. A roupa
e a comida são a base material da cultura. Na situação atual de pene­
tração e controle capitalista da base material, toda a cultura se desfaz.
A música de grandes bandas reproduzida com alta fidelidade em cd’s
substitui a música viva de músicos locais. A conversa familiar teve de
ceder seu lugar a programas internacionais de televisão que tiram o
espaço à conversação. Até as organizações religiosas vão se transnacio­
nalizando e sendo controladas de Roma, Nova Iorque ou Dallas. A
cultura, a identidade dos povos, se encontra ameaçada.
Neste mundo globalizado afirmar a própria cultura é um ato de
resistência. Não é impossível, mas requer a organização das pessoas
para restringir a invasão de brinquedos, árvores de natal, cd’s, progra­
mas de televisão e esportes de outras latitudes, e até evangelistas de
renome internacional que chegam mesmo a oferecer soluções reli­
giosas. Manter a própria religião requer, primeiro, consciência do
problema, e em segundo lugar organização e vigilância perpétua. Falar
em pluralismo de religiões ou de diálogo inter-religioso sem criar os

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Pluralismo e libertação Memórias de lutas populares — Um unificador potencial?

mecanismos que permitam o desenvolvimento destas lutas de culturas (Ex 20,3), que está na segunda pessoa do singular masculino, como tam­
por sua própria sobrevivência é ocultar a realidade perversa atrás de bém nas outras leis. O decálogo deve ser entendido então como as con­
um biombo bonito. dições que Deus impõe a quem ficou livre da escravidão.
Quero neste ensaio explorar as raízes da resistência que encontra­ A centralização do Êxodo como libertação é bastante ampla na
mos em nossa tradição crista, concretamente na Biblia hebraica. Cada Bíblia hebraica, o Antigo Testamento dos cristãos. Diz assim, por
cultura, cada religião têm de procurar em suas próprias tradições os exemplo, logo após o Shemá em Dt 6,20-21:
elementos que as motivem na luta contra a aniquilação da cultura. Mas
Quando amanhã teu filho te perguntar “o que são estes preceitos e estas
a causa de todas as culturas tem um elemento comum que é a ameaça
normas que Jeová nosso Deus nos prescreveu?”, tu dirás ao teu filho,
sob a qual vivemos todos. Um auténtico diálogo inter-religioso será
“Éramos escravos do faraó do Egito, e Jeová nos tirou do Egito com
aquele que promova alianças nesta luta comum que levamos todos.
mão forte.
Este ensaio quer contribuir à unificação para esse fim.
Tem sido utilizada a idéia de que o mundo está submerso num Isso significa que uma geração deve à seguinte a memória de
conflito de civilizações (Samuel Huntington). É importante que nós, uma escravidão superada pela forte ação do seu Deus. Assim saberão
que procuramos o resgate das culturas e religiões dos povos, tenhamos o que fazem quando confessam, como faz todo judeu com freqüên­
conhecimento de que esta é a linguagem da dominação. Para quem cia, “Ouve, Israel, Jeová nosso Deus é o único Deus” (Dt 6,14). Mas
pretende controlar o mundo, a existência de culturas resistentes, como não é unicamente nos textos fundamentais da Lei que se afirma a
a árabe-muçulmana ou a da índia com suas tradições religiosas mi­ centralização da memória da libertação. Múltiplos textos proféticos
lenares, representa um desafio a ser apagado. Para nós não é assim. lembram o êxodo da servidão, entre os quais Am 3,1; Mq 6,4; Jf
As comunidades cristãs da América Latina têm mais em comum com 11,3-4. A mesma história oficial que os estudiosos nomeiam de His­
a resistência árabe ou hindu do que com a globalização que nos inva­ tória Deuteronomística, que é uma história dos reis, preserva esta
de com sua cultura plástica desenhada para gerar lucros para as trans- memória em textos como o discurso de despedida de Samuel (ISm
nacionais. Para nós, a diversidade apresenta desafios para uma alian­ 12,6-8) e a dedicação do templo pelo rei Salomão (lRs 8,16).
ça, de forma que não podemos permitir que nos coloquem a nós, Na Torá legal e na pregação profética é preservada a memória do
vítimas da globalização, a lutar entre nós mesmos e, assim, prestar­ Êxodo como libertação da escravidão. Tentaremos, adiante, esclare­
nos aos esforços dos imperialistas de se impor sobre nossas culturas. cer o sentido dessa memória que é, sem dúvida, popular. Convém
lembrar que os textos bíblicos não são, em sua forma atual, textos
O Deus de Israel e o Deus do Êxodo populares, mas obras de escribas conectados com círculos dominan­
tes de um ou outro tipo. Nosso livro do Êxodo reflete então as relei-
Pesquisemos nas raízes culturais da Bíblia hebraica procurando por turas que fizeram as elites do evento fundador. Para os escribas da
elementos de resistência. Um texto central da Bíblia hebraica diz “Eu monarquia isto se transforma numa história de libertação nacional
Jeová, sou teu Deus e tirei você do país do Egito da casa da servidão” (Ex como, por exemplo, em Ex 1,8-9,
20,2). Esta é a introdução ao decálogo, peça fundamental da Lei do Sinai.
Isso quer dizer que o decálogo não está dirigido a toda a humanidade. Subiu ao trono do Egito um novo rei, que nada sabia de José; e que
Quem fala aqui é o Deus que libertou o israelita da servidão ao homem disse ao seu povo: “Olhai, os israelitas são um povo maior e mais forte
israelita a \u e m libertou: “Não terás outros deuses diante de mim” que nós”.

34 35
Pluralismo e libertação Memórias de lutas populares — Um unificador potencial?

Nesse texto e em muitos outros, trata-se de uma questão dos A palavra “hebreu” está, de fato, concentrada nos primeiros capítu­
egípcios versus israelitas. E tem mais. Alguns textos fazem da luta da los do Êxodo (14 das 34 vezes que aparece a palavra na Bíblia hebraica).
libertação um esforço por conseguir a liberdade de fazer culto con­ Nas cartas diplomáticas da chancelaria egípcia situada emTel-el-Amarna
forme as normas do Deus de Israel, como quando Moisés disse ao do século XIV consta uma palavra jabirú ou ‘apiru, que parece ser a
Faraó: “Deixa ir meu povo para que me sirva” (Ex 8,17; 9,13 e outros). mesma palavra. Estes ‘apiru aparecem em cartas de diferentes reis da
Ou seja, mesmo dentro da Bíblia, muito antes do capitalismo terra de Canaã e sempre como gente ameaçadora não integrada às suas
globalizado, a cultura popular foi suscetível de ser suprimida. Sem­ sociedades. Não parece ser um povo, mas uma categoria de “outros”,
pre a subsistência de culturas próprias que dão identidade foi tão pessoas rebeldes e questionadoras. Mesmo que estudiosos não tenham
somente possível por meio da resistência à oposição das elites. chegado a um consenso sobre estes ‘apiru, parece coerente com nossos
Acreditamos, como no cristianismo popular da América Latina, que textos pensar que na memória popular é lembrado um movimento cam­
a nua original da libertação foi uma luta popular contra a escravidão ponês no Egito daqueles que optaram por se afastar das regras da obe­
que antes existira no povo de Israel. O povo de Israel organizou-se diência social e procurai- novos horizontes para sua vida. Veremos logo
mais tarde. Assim, o texto não está em sua forma mais antiga nem na mais que todos os egípcios eram “escravos” de acordo com as idéias
luta pela libertação nacional ou na luta por render culto à sua própria israelitas. Uma parte deles respondeu ao chamado de Moisés para se
maneira. Antes, são releituras, importantes no seu momento e no texto levantar e fugir. Estes, depois, integraram-se a Israel na Palestina.
atual. O fato de que fosse preciso, para as elites, reler o relato oral Se isso for verdade, teríamos de supor que alguns destes “he­
popular é já um indicador do papel crítico e fundamental que cumpriu breus” ou ‘“ apiru” chegaram aos montes de Canaã e se assentaram
este relato. Passemos a vê-lo no seu contexto original. ali entre grupos que estavam abrindo estes lugares para moradia hu­
mana. A arqueologia comprovou que ao redor do século XII a.C. houve
0 Êxodo como levantamento popular um dramático aumento da população nas serras palestinas. Por outra
parte, a cultura material, principalmente panelas e outros artigos e
A proposta feita pela teologia da libertação é que o Êxodo pre­ figuras de barro, não difere da cultura já existente nas cidades das
serva a memória popular de um levantamento camponês no Egito, pro­ planícies do país. Isso quer dizer que, na hipótese mais provávelique
vavelmente no século XIII a.C. Mesmo que no texto atual o sujeito do vem sendo aceita pela maioria dos historiadores hoje, houve impos­
Êxodo é designado como “os filhos de Israel” (Ex 1,1), são chamados tantes movimentos da população ao interior da terra da Palestina
também de “hebreus” (Ex 1,15-16.19; 2,6-7.11.13; 3,18; 5,3 etc.), ex­ nos séculos XIII, XII e XI a.C. Estes novos serranos seriam os israe­
pressão que discutiremos em breve. E lembra no texto do Êxodo que na litas a quem se incorporaram os hebreus que fugiram do Egito para
noite da fuga do Egito saiu “uma multidão heterogênea” (Ex 12,38, escapar ao submetimento dos camponeses naquela terra.
“‘erev rav"). Deve ser entendido por isso que o grupo que saiu se De fato existe um monumento do rei egípcio Mernepta de fim do
recorda não como uma família ou um clã não-egípcio, mas sim parte século XIII que diz ter derrotado Israel, entre outros povos, em uma
dos camponeses oprimidos do Egito que se dispuseram a se rebelar e excursão militar à Ásia. Não parece apropriado juntar esses dados para
fugir do país à procura da liberdade. Na mesma linha, um relato de propor que Israel foi o nome que receberam os camponeses que povoa­
rebelião no deserto lembra que entre o povo ia “uma gentalha” ( ‘asafsuj). ram as serras da Palestina a partir do século XIII, e também pensar que
Finalmente, lembra que os rebeldes não eram ainda “Israel” (Nm 11,4). eles receberam em dado momento o grupo de hebreus fugitivos do Egito

36
Pluralismo e libertação Memórias de lutas populares — Um unlficador potencial?

e adaptaram deles o Deus Jeová que os hebreus conheceram no monte presente do narrador. Em outras palavras, um texto histórico entra no
Sinai, no deserto entre Egito e Palestina. Tem dado muito que pensar que mundo onde existem conflitos de poder, no mundo da política. Não será
o nome de uma nação cujo Deus é Jeová inclua o nome de outro Deus, compreendido o texto se simplesmente se faz um parêntese deste mun­
“EL”: ISRA-EL. Isso seria explicável se o povo de Israel já existisse do. Daí a legitimidade de um comentário sobre um relato histórico de
antes da chegada dos hebreus ao Egito e este povo já tivesse abraçado um levantar a hipótese acerca de qual foi o evento que deu origem ao relato.
Deus que tinha se revelado no deserto aos hebreus, provavelmente por­ Se nos for concedida, aos biblistas da teologia da libertação, a
que eles também se sentiam ameaçados por reis, no caso deles, os reis legitimidade em princípio de reconstruir o que aconteceu no Egito,
das cidades, das planícies e dos vales da Palestina. Este é o quadro que coisa que Levenson não concede, para depois entender as mudanças
vimos desenvolvendo na teologia da libertação, tanto no movimento que levaram à produção do texto como mudanças derivadas de novas
de leitura popular da Bíblia representado na revista RIBLA (Revista de situações políticas, poderemos então discutir qual das reconstruções
Interpretação Bíblica Latino-Americana) como em alguns estudiosos do históricas explica melhor os restos textuais e arqueológicos. Toda re­
hemisfério norte, entre os quais se destaca Norman K. Gottwald. construção histórica é por necessidade hipotética, em alguma medida.
De maneira que sempre existirão debates entre os historiadores em
Críticas à teoria de um levantamento camponês relação a qual reconstrução explica melhor os fatos. Os biblistas da
Na medida em que foi dada a conhecer a teoria que acabamos de teologia da libertação não podemos escapar deste debate, um debate
expor em círculos universitários no hemisfério norte, choveram críticas, que jamais se concluirá porque a ciência está sempre aberta. Nossa
como era de se esperar. Gostaria de abordar dois tipos de críticas. Em proposta tem de se justificar perante as outras.
primeiro lugar, o professor judeu ortodoxo de Harvard, Jon Levenson Uma segunda frente de críticas vem daqueles historiadores que
tem tomado o comentário de Jorge Pixley, autor do presente ensaio, com sustentam que a evidência para a existência de uma liga tribal anterior
a intenção de atacar a toda a teologia da libertação sobre este ponto1. à monarquia não é suficiente para que suponhamos que jamais tenha
Além de Levenson pensar que se trata de outra forma cristã de tirar sua existido. É totalmente um movimento importante na academia, mas
Bíblia aos judeus, sua objeção exegética seria que, em lugar de ler o texto talvez o melhor representante seja o dinamarquês Niels Peters Lem-
do Êxodo (ele critica um comentário sobre o Êxodo) é lida uma história che2. A importância deste argumento é que, se não houve liga tribal,
hipotética do que pode ter sido o acontecimento que está por detrás do também não houve movimento libertador “hebreu” que rejeitou a mo­
relato do Êxodo. O argumento tem certa força uma vez que, sem dúvida, narquia em princípio. A base sociológica para essa rejeição é justa­
é um texto da Bíblia que é nossa autoridade como crentes. Porém, o livro mente a existência de um grupo de camponeses que tomaram distância
do Êxodo em seus primeiros capítulos pretende narrar um evento histó­ dos monarcas tanto no Egito como em Canaã3.
rico. Também em casos de relatos históricos é importante interpretar o
que.o texto diz que aconteceu. Este é o argumento de Levenson e até aqui 2. N iels Peter L emche , Early Israel: Anthropological and Historícal Stndies on
the Israelite Society befare the Monarchy, Leiden, E. J. Brill, 1985.
é irrefiitável. Mas a história é sempre narrada para afirmar um projeto no
3. A base sociológica encontra-se amplamente exposta em Norman K.
G ottwald, The Tribes ofYahweh: A Sociology o f the Religión o f Liberated Israel,
1. O debate entre Levenson e Pixley encontra-se num livro editado por Alice 1250-1050 B.C.E, Maryknoll, Orbis, 1979. Existem versões em castelhano (editada
O. B ellis e Joel K aminsky , Jews, Christians, and the Theology o f the Hebrew em Barranquilla, Colômbia) e em português (pela Editora Paulinas, São Paulo,
Scriptures, Atlanta, Society o f Biblical Literature, 2000. Brasil, 1986).

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Pluralismo e libertação Memórias de lutas populares — Um unificador potencial?

Na lei sinaítica encontramos uma ausência de normas para a antimonárquico que pudesse se apresentar. Daí o lema do livro. “Por
monarquia excetuando a estranha “lei” em Dt 17,14-20 — que é uma aqueles tempos não havia rei em Israel e cada qual fazia o que bem
reação a Salomão — e em troco uma série de leis que parecem favo­ entendia” (Jz 17,6; 21,23). É uma objeção muito séria que não pode­
recer os camponeses “livres” de controles monárquicos. Tanto os bi- mos aceitar assim sem mais, mesmo porque não há nada provado.
blistas acadêmicos clássicos como os alemães Albert Alt e Martin Noth Como ficaria a teoria da insurreição camponesa se nunca houve
e os norte-americanos William F. Allbright e John Bright deram por uma liga de tribos? Penso que se Israel toma consciência nacional em
certo que o livro dos Juizes na Bíblia assegura que teve um período na tempos de Samuel e Saul, isto é, com os inícios da monarquia, não se
vida nacional de Israel no qual não houve monarquia4. De modo que os exclui a presença em Israel da memória de uma libertação no Egito de
novos historiadores como Lemche, Ahlstrom e Thompson estão aba­ alguns dos seus ancestrais. Teria de se pensar que foi preservada esta
lando o prédio todo, e não somente a teologia da libertação. Tomando memória popular entre algumas famílias, famílias estas de suficiente
a Lemche, seus argumentos são de dois tipos, antropológicos e arqueo­ importância para que seu Deus, Jeová, tenha sido assumido por Sa­
lógicos. O segundo é rápido. Não há evidências de santuários que pos­ muel e Saul em seu projeto de nação, várias gerações após o evento. De
samos confirmar como israelitas nos séculos XII e XI a.C. o suposto maneira que a teoria da teologia da libertação não tem sido desmentida,
período das tribos, nem se faz menção a Israel nos (escassos) docu­ mesmo sendo aceita a proposta de Lemche pela ciência acadêmica.
mentos da época. Isso é um argumento de silêncio, e, sendo assim,
fraco. Mais forte é o resultado de várias investigações antropológicas
Preservação da memória popular como fonte de resistência aos reis
modernas entre tribos do Irã, Síria, Líbia e Turquia. Por um lado não há
evidência de que as tribos de pastores tenham interesse algum em se Parte essencial da libertação dos servos no Egito era o repúdio aos
converter em camponeses. O pastoreio oferece maior segurança eco­ reis, não reis específicos, mas à monarquia como instituição. Isto se
nômica do que a agricultura camponesa. Unicamente se assentam quan­ explica pela natureza da escravidão no antigo Oriente Próximo. Está
do são obrigados por estados fortes que buscam recrutar jovens para era uma escravidão generalizada. O rei era dono titular de todo o pais,
seus exércitos e cobrar impostos das suas atividades produtivas. Por com terras, gado e povo. Era o que Karl Marx chamou modo de pro­
outra parte, as alianças entre tribos se mostram frágeis e transitórias. O dução (MP) asiático, por tê-lo estudado na índia. Mas propriamente
modelo que utilizara Martin Noth para sustentar a liga foram as deveríamos chamá-lo MP tributário. No Egito a unidade produtiva era
anfictionias gregas, que não eram ligas de tribos mas de cidades. Final­ a aldeia. A aldeia tinha sua própria organização, dirigida pelos seus
mente, pensa Lemche que as histórias das tribos nos livros dos Juizes anciãos, como pode ser visto no relato do Êxodo (Ex 3,16.18). Estava
são de composição monárquica para desacreditar qualquer movimento obrigada a aldeia como tal a entregar uma parte da sua produção ao rei
(segundo Gn 47,24, a quinta parte). E também estava exposta a aldeia
4. Entre estes biblistas “clássicos” pensava-se que era um tempo pré-monárquico a prover operários para as empresas estaduais, de maneira que todos os
antes da fundação das estruturas da monarquia. Já em 1933 o judeu Martin Buber egípcios eram tecnicamente escravos (Gn 47,20-21; Ex 1,11).
(Kõnigtum Gottes) havia colocado a idéia de que houve em Israel um repúdio da
A população do país estava dividida em três setores: o rei, os
monarquia no período tribal, refletido na rejeição de Gedeão em ser rei em Israel
(Jz 8,22-23). Para Buber era uma rejeição (religiosa) por considerar a Jeová único servos e o povo (Ex 8,25.27; 9,14). O rei, deus e senhor de todo o
rei. Não tentou encontrar uma base sociológica para esta rejeição, como tem feito país, governava por meio de seus servos, oficiais da corte e militares,
a teologia da libertação. sobre um povo composto de pessoas da aldeia. Somente o rei não

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Pluralismo e libertação Memórias de lutas populares — Um uniflcador potencial?

estava sujeito à vontade arbitrária do outro, não era então um escravo. Aías nem Eliseu se opuseram à instituição monárquica, mas expressa­
A consciência disso se expressa nitidamente na ameaça colocada na ram o repúdio popular de reis percebidos como opressores. O relato do
boca de Samuel perante os anciãos que pedem que proclame um rei: conflito entre o rei Acab e o vinhateiro Nabot (lRs 21,1-26) apresenta
Tomará vossos filhos... Tomará vossos campos... tomará vossos cria­ o profeta Elias como defensor dos direitos à terra de Nabot como “her­
dos e criadas... vossos melhores bois e mulas... e vós mesmos sereis dada dos seus pais” defendido por Jeová Deus e é, portanto, um ques­
escravos deles” (ISm 8,11-17). tionamento ao “direito do rei”.
Persiste nos textos proféticos a memória dos profetas do século
Além desse texto, a Bíblia narra a fábula de Joatão (Jz 9,7-15). As VIII a.C. que em nome de Deus se opuseram à instituição monárquica,
árvores, disse, procuraram um rei. A oliveira, a figueira, a vinha se Oséias e Miquéias. O fundamento no Êxodo está presente em Os 2,17,
negaram a ser reis por estar ocupadas em produzir frutos. Quando foi “ela responderá como nos dias de sua juventude, como no dia em que
pedido à sarça, esta aceitou. Assim são acusados os reis de ociosos, subia ao país de Egito”. E em Os 11,5 há uma ameaça, “Voltará ao país
aproveitando-se do trabalho dos demais, e comprovamos a existência do Egito”. O repúdio à monarquia está em uma série de alusões a even­
em Israel de uma corrente de pensamento sistematicamente oposta à tos nos quais a monarquia se estabeleceu, como a coroação de Saul em
da monarquia. Esse pensamento está consagrado na legislação sinaítica Gabaá, “Desde os dias de Gabaá tens pecado, Israel” (Os 10,9). Alude
que se encontra no Pentateuco. As datas da composição de todos estes Oséias também à coroação de Saúl em Guilgal, “Toda a sua malícia se
textos estão sob uma forte discussão nestes últimos anos, e desmoronou acha em Guilgal” (Os 9,15). E no capitulo 13, a partir do versículo 4,
o consenso em tomo à proposta de Julio Wellhausen de fim do século
Todavia, eu sou o Senhor teu Deus desde a terra do Egito; portanto não
XIX5. Mas sejam estes textos da época que for, refletem a existência de
conhecerás outro Deus além de mim, porque não há salvador senão
uma consciência da natureza subjugante da monarquia nessas socieda­
eu... Destruir-te-ei, ó Israel; quem te pode socorrer? Onde está agora o
des. Isso é fruto da memória popular.
teu rei, para que te salve em todas as tuas cidades? e os teus juizes, dos
Como é natural supor, a memória popular está praticamente apa­
quais disseste: Dá-me rei e príncipes? Dei-te um rei na minha ira, é
gada dos textos bíblicos, textos que foram produzidos por escribas que
tirei-o no meu furor.
viviam de vender seus serviços aos reis e aos templos. Porém, estes
textos ainda preservam a memória dos profetas, alguns dos quais se No caso de Miquéias o texto tem sofrido evidente censura, à qual
opuseram aos reis das suas épocas. Nós, biblistas da teologia da liber­ alude 2,6, “Não profetizeis — assim profetizam eles — não se deve
tação, acreditamos que estes homens de Deus foram defensores e re­ profetizar tais coisas”. Em 3,12 o profeta anuncia a destruição da cidade
presentantes da memória popular que subsistiu apesar dos esforços das de Jerusalém — em forma passiva, sem dizer qual será seu agente. Se
elites por apagá-la e se apropriar de suas criações. A primeira aparição o chamado em 2,10 está dirigido como parece a “meu povo” que levan­
de um profeta enfrentando o rei é Aías de Silo, de quem se diz que tou-se como inimigo (2,8) sugere que o profeta fãz parte de um movi­
ungiu a Jeroboão, um servo do rei, como rei em lugar de Salomão mento que se levanta contra a capital com tudo, inclusive com a corte.
(lRs 11,26-39). Um século mais tarde é relatado um episódio pareci­ Diz, “Levantai-vos, e ide, pois este não é lugar de descanso”6.
do, protagonizado por Eliseu com o capitão Jeú (2Rs 9,1-10). Nem
6. Este argumento é desenvolvido em Jorge Píxley, Miquéias 2:6-11. ¿Qué quiso
5. Julius W ellhausen , Prolegomena zur Geschichte Israels, Berlín, 1878. silenciar la casa de Jacob?, em Revista Bíblica (Buenos Aires) 51 (1989), 143-163.

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Pluralismo e libertação Memórias de lutas populares — Um unificador potencial?

O que interessa para nossos fins é mostrar que em Israel foi man­ de ambição, acreditamos que devemos explorar juntos maneiras de
tida viva a memoria popular do levantamento contra o rei do Egito e cooperar em nossa luta comum por um mundo diferente.
que continuou inspirando ações posteriores, tenham sido estas de denun­ Acreditamos que não somente cristãos e muçulmanos, mas todas
cia como em Oséias ou de ação de massas como no caso de Miquéias. as tradições religiosas têm correntes populares que animam a resis­
A opção pelos pobres que hoje se reconhece como parte da teologia tência ao sistema dominante de hoje. Com este ensaio sobre nossa
cristã está fundamentada nesta memoria, assim como na vida e obra de memória popular na Bíblia hebraica, que facilmente poderia ser
Jesus tal como é preservado nos evangelhos, que não temos revisado complementado com uma análise das escrituras apostólicas cristãs,
neste ensaio. Este é um potencial muito importante para a resistência queremos abrir o convite ao diálogo entre aquelas pessoas de fé que
nestes tempos de globalização. sofrem o sistema global como uma imposição alheia e injusta. Con­
fiamos que poderia produzir resultados interessantes e fortalecedores
Desafio às tradições religiosas do mundo da resistência e da luta dos povos.
Não seria correto afirmar que as igrejas cristãs são uma base de
resistência à dominação capitalista do neoliberalismo hoje. As gran­
des igrejas instaladas comodamente no sistema do Mercado Total que
é a forma que o capitalismo toma em nossos dias não têm a menor
intenção de questionar as bases de um sistema que coloca a ganância
antes que a vida. Isso não quer dizer que não existam grandes obras
cristãs que procuram atender às necessidades dos pobres. Mas não é
questionado o sistema que produz a pobreza e de cujos ganhos se
nutrem também as igrejas. A nossa proposta por parte da teologia da
libertação é de dinamizar um movimento popular cristão a partir das
fontes da Bíblia e da tradição, para que se anime a resistir e confron­
tar uma ordem que, como tal, está nos matando.
É nossa convicção que tanto Israel nas suas origens como o
movimento de Jesus questionaram não somente os sofrimentos injus­
tos dos pobres, mas os sistemas que produziam esses sofrimentos. E
evidente que os povos árabes têm achado, em sua cultura religiosa
muçulmana, recursos para resistir à globalização. Gostaríamos de saber
como tomam base no Corão e na lei islâmica, a Sharia. Seria possível
enriquecer mutuamente e juntos aprendermos a evitar ações violadoras
da vida e politicamente contraproducentes como nossas guerrilhas e
atos violentos contra gente inocente, que alimentam a repressão?
Então, na confiança de que o perigo comum dos povos cristãos e
muçulmanos é um capitalismo que não reconhece limites em sua sede

44 45
A teologia das religiões
a partir da América Latina
José C om b lin

Introdução
Desde o princípio é necessário dizer que não se pretende aqui
oferecer uma teologia a partir da América Latina, como se fosse um
ponto de vista particular, um entre outros, e todos seriam equivalentes
e aceitáveis, O que sucedeu na teologia latino-americana ñas últimas
décadas não é um fenómeno particular. Não nasceu uma teologia par­
ticular, uma teologia circunstancial, local, parcial. Assim a vêem os
europeus e nisto se equivocam totalmente. Eles crêem que se localizam
em um ponto de vista universal, crêem que representam a universali­
dade e podem julgar todos os demais como se fossem teologías parti­
culares que não afetam a teologia universal. É a teologia do Primeiro
Mundo, que é uma teologia circunstancial, local, parcial, particular,
porque é uma teologia da cristandade ocidental. Entretanto, não cortaram
os laços com a cristandade, assim como as Igrejas históricas permane­
cem fiéis à cristandade: não assimilaram e, sobretudo, não prolongaram
o Vaticano II, Tiveram medo e voltaram ao antigo, apesar de todas as
pretensões contrárias. Explicaremos isso mais adiante.
O que aconteceu na América Latina? Justamente o contrário:
prolongaram a teologia do Vaticano II em uma forma radical e abando­
naram o esquema de cristandade. Tomaram a sério o que dizia o Vati­
cano II e romperam com a sociedade de cristandade, buscando o povo
de Deus em meio aos pobres, coisa que as Igrejas do Primeiro Mundo
não se atreveram a fazer e que a burocracia romana conseguiu impedir.

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

ao defender sua política de aliança com os poderes na sociedade tra. Na América Latina, também desde os tempos da colônia, houve
ocidental, herdeira da cristandade. e há multidões de pobres que entendem e vivem o evangelho e sabem
A cristandade era uma sociedade unida, integrada, unificada, na muito bem que a verdadeira Igreja é a dos pobres, ainda que não se
qual as classes e categorias sociais tinham de se integrar e desaparecer atrevam a dizê-lo porque a estrutura era, e ainda é, até certo ponto,
como tais. Não havia lugar privilegiado para os pobres. A palavra-cha­ forte. Poucos se atrevem a julgar a um sacerdote publ icamente, ainda
ve sempre foi e ainda é “unidade”. Por isso a teologia da cristandade é que o façam em suas conversas particulares.
uma teologia da unidade. Inevitavelmente se destaca o aparato institu­ Na América Latina, fez-se dentro do clero mesmo e dentro da
cional que é o símbolo, o instrumento e a figura da cristandade, quan­ teologia, o redescobrimento dos pobres e do verdadeiro sentido da
do não é pensada como se fora o próprio cristianismo. boa nova, do evangelho que se dirige aos pobres e não simples­
Dessa forma, as Igrejas do Primeiro Mundo, aquelas que con­ mente a todos os seres humanos como se fossem todos iguais. O
quistaram*© mundo, tendem a confundir-se com urna figura histórica. que há na Bíblia é justamente que não são iguais, que na história
Não representam o evangelho, mas uma figura histórica que se legi­ há ricos e pobres, dominados e dominadores, exploradores e ex­
timou pelo evangelho e na realidade era uma religião com inspiração plorados, opressores e oprimidos e o evangelho tem seu sentido
crista, porém não o cristianismo. A teologia do Primeiro Mundo julga nessa situação denunciada, afirmada até a morte pelos profetas de
a partir das Igrejas institucionalizadas como se estas fossem o cristia­ todos os tempos.
nismo, quando são construções históricas, localizadas no espaço e no A teologia latino-americana não adaptou a teologia cristã a uma
tempo, mas radicalmente distintas do cristianismo. Todos os elemen­ circunstância. Descobriu a verdadeira teologia oculta durante séculos
tos do cristianismo foram revisados e mudados para proporcionar a pela estrutura de cristandade e seu quadro intelectual. Redescobriu o
ideologia da cristandade. Ainda em meio à secularização, seguem essencial do cristianismo, sua mensagem central. Como pôde fazê-
defendendo e mantendo as estruturas de cristandade: o modelo de lo? Porque rompeu com a cristandade, rompeu com o sistema colo­
doutrina, de sacramentos e de organização de cristandade. nial, rompeu com o sistema eclesiástico. Foram perseguidos inclusi­
É verdade que desde o final do século XIX certos teólogos do ve pela hierarquia, mas não cederam porque sabiam que haviam des­
Primeiro Mundo se esforçaram para emancipar-se da teologia oficial. coberto uma verdade que ficou oculta durante séculos.
Por etapas chegaram ao Concilio Vaticano II. Desde então, alguns Por isso essa teologia não passará. Poderá ser eliminada pela
tratam de ir mais longe. Os que o fizeram com mais audácia foram força na mesma América Latina que lhe deu nascimento, mas passará
condenados. Os que o fizeram e foram respeitados, como K. Rahner, para outros continentes e, melhor ainda, conseguirá abrir os olhos de
escreveram num estilo tão hermético que só alguns puderam entendê- alguns teólogos do Primeiro Mundo. Descobriu-se que a Igreja ver­
los. Não eram ameaça para o público católico em geral. De todos os dadeira é a Igreja dos pobres, a que não é reconhecida nem aceita
modos, suas contribuições constituem aproximações úteis em vista pelo sistema. Romperam com o sistema: cardeais, bispos, sacerdotes,
de uma teologia de diálogo. religiosos, líderes leigos e por isso conheceram a verdadeira Igreja.
É claro que dentro da cristandade houve multidões de cristãos Com os pobres, descobriram que a verdadeira unidade é escatológi-
pobres que entenderam o evangelho e o viveram: eram o povo de ca, orienta-se ao final, mas que neste momento estamos numa histó­
Deus, mas entre eles e a estrutura de cristandade havia um abismo ria de luta, luta dos pobres por sua libertação, que é isto que Jesus
quase sem comunicação. O povo pensava uma coisa e o sistema ou- anunciou a seu povo, opondo-se a todas as autoridades de Israel: cle-

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

ro, doutores, anciãos-chefes das grandes famílias. Descobriram que a te. Embora menos institucionalizadas que as igrejas cristãs, históricas
mensagem de Jesus é a esperança de uma libertação total. e, sobretudo, a Igreja católica, têm seu clero e suas ortodoxias.
Colocando-se em meio aos pobres, entenderam que essa liber­ Nesta fase da história, a situação é pior. Há um catolicismo oficial
tação não se refere só à vida futura, que não se condensa em urna que é sempre mais burocrático. O século XX assistiu ao surgimento da
cristandade idealizada, mas que está presente na luta constante e per­ burocracia vaticana que se fez independente e manipula o Papa, atribuin­
severante dos pobres iluminados pela promessa divina até sua plena do-se os poderes de Pedro. Este poder de Pedro se despersonaliza e se
libertação. Isso não quer dizer que os outros sejam excluídos. Jesus orienta em uma burocracia que o põe a serviço de seus interesses corpo­
lhes dá um meio de salvação: abandonar sua riqueza e juntar-se ao rativos. Mas sua razão de ser, como a de todas as burocracias, é aumentar
povo dos pobres. seu poder e por isso dificilmente pode transparecer algo cristão em meio
Este é o ponto de vista que nos permite julgar e apreciar o signi­ a toda essa imensa produção de papel impresso. Vejamos o documento
ficado do diálogo inter-religioso. Diálogo e Anúncio do Pontificio Conselho para o Diálogo Inter-religio­
so (19 de maio de 1991). É um documento tipicamente burocrático em
1*. Parte: Quem está dialogando? que se escondem todos os problemas e coloca-se o diálogo em um mun­
do extraterrestre no qual se fala de entidades que não existem e nunca se
7. Quem dialoga com quem?
alude ao que existe, o que é a Igreja cristã e o que são as outras religiões.
A questão é: se os que dialogam em nome do cristianismo são Fala-se de um diálogo fictício entre entes fictícios: estamos em um mundo
membros da estrutura de cristandade — clero, religiosos — convém de entidades virtuais e não no mundo da humanidade real.
desconfiar muito. Eles não representam o cristianismo. Antes, estariam A partir disso, não há nada a fazer senão repetir um “blablablá”
sempre preocupados, temendo sair da ortodoxia. O que vão apresentar sem fim com a maior complacência e a satisfação de haver cumprido
como cristianismo será a ortodoxia, isto é, o sistema institucional de com um ato de caridade e de evangelização.
cristandade. No diálogo, não haverá comunicação de hindu ou muçul­ O diálogo entre burocracias dará uma razão de ser às burocra­
mano ou budista com um cristão, senão com um representante do sis­ cias, mas não levará a nada. Necessita-se de um diálogo entre pessoas
tema de cristandade. Ao cristianismo só descobrirão se forem viver em reais que vivem uma vida real neste mundo real e colaboram com
povoados pequeninos ou em favelas. Ali poderão saber do que se trata. outros seres reais e uma história real. Com seus critérios rigorosos,
O que é provável é que o que se chama diálogo no mundo religioso não na prática, a burocracia nada teme mais que o diálogo verdadeiro e
se refere a isso. Por isso, perde toda relevância. por isso fará todo o possível para que nunca haja diálogo verdadeiro.
Agora, esse sistema foi o que se apresentou como cristão durante Produzir-se-ão documentos numerosos não para que haja diálogo,
16 séculos a todos os outros povos. Daí podemos inferir que não lhes senão para que não haja diálogo, porque este pode pôr em perigo a
apresentaram o cristianismo, senão uma versão encarnada num sistema prioridade da política de poder da burocracia.
cultural, social, político. Entretanto, hoje a maioria dos membros do Um diálogo verdadeiro é um diálogo entre os povos, quando estes
sistema está impregnada por ele e não consegue sequer entender que começam a conviver, comparando suas religiões e influenciando-se
está dentro de um sistema. Crê que o que dizem é o cristianismo por­ mutuamente, de forma inevitável. Será que com isso vão corromper
que é o que aprendeu em sua teologia e é o que o sistema pratica. E o cristianismo? Não é provável, porque as heresias sempre foram
podemos presumir que, para as outras religiões, sucede algo semelhan- feitas pelos clérigos e não pelos leigos. A saída é imprevisível, mas

50 51
A teologia das religiões a partir da América Latina
Pluralismo e libertação

Os movimentos pentecostais ou carismáticos separam-se de sua intui­


não há diálogo se previamente já se quer saber aonde se vai chegar.
Todo diálogo é um risco porque questiona, desequilibra todas as par­ ção original, desinteressam-se da política temporal e dão, de fato, um
tes e as obriga a reformular seu modo de viver e pensar. reforço ao fundamentalismo. Foram recuperados pelo sistema.
No protestantismo, o fundamentalismo americano cresce sem cessar.
2. A finalidade do diálogo Tem importância muito grande no atual governo republicano dos Estados
Unidos. O fundamentalismo islâmico agora conseguiu uma divulgação
Há uma suspeita. No mundo atual todas as religiões sofrem o
mundial. Está crescendo no mundo muçulmano sempre mais desde suas
impacto do secularismo da civilização ocidental, científica e tecnológica.
origens nos anos 1920. Há um fundamentalismo judaico, budista, hin-
Todas se sentem ameaçadas. Sentem que são sempre mais rechaçadas
duísta em plena expansão. Todos se defendem contra a modernidade
da vida pública em suas distintas nações. A suspeita é a seguinte: os
encarnada na potência científica, econômica e financeira do Ocidente.
representantes das grandes instituições poderiam pensar em uma liga
Poderíamos pensar que os fundamentalistas não têm nenhum
de defesa de seus interesses específicos como religiões. Seria algo como
interesse num diálogo que ameaça suas certezas. Claro está que não
um sindicato mundial das religiões. Algo semelhante já existe no âm­
têm nenhum interesse religioso, mas podem ter um interesse político
bito das Nações Unidas onde o Vaticano já buscou e encontrou nos
que já tem se manifestado. O diálogo poderia ser a máquina de uma
Estados muçulmanos apoio à sua política em matéria de sexo,
aliança mundial dos fundamentalismos para promover a importância
demografía ou defesa da vida. O mesmo fundamentalismo não impede
política, social e cultural da religião. Seria um diálogo das lideranças
essa forma de cooperação. Neste momento estamos em uma fase de
das diferentes religiões sem nenhuma participação popular. Com esta
desenvolvimento crescente dos fundamentalismos. O fundamentalis­
aliança dos fundamentalistas, os pobres seriam as vítimas de uma
mo quer fixar a doutrina, os costumes, os rituais, ao adotar como indis­
inquisição da qual seriam os primeiros visados.
cutíveis certas expressões históricas supostamente fundamentais. Por
O diálogo pode ser, também, uma astúcia para conquistar adeptos
este meio quer dar runa fonna definitiva, imutável, sacralizada à insti­
de outras religiões. Quando os dialogantes pertencem a um clero ou
tuição religiosa. Defende sua ortodoxia com suma intolerância. Repri­
a uma liderança religiosa, convém ter a suspeita para evitar que essa
me qualquer tentação de modernidade ou modernização, qualquer
tendência ao proselitismo possa predominar. Secretamente ou publi­
penetração do espírito crítico ou da racionalidade científica na religião.
camente, muitas religiões têm o projeto de converter a humanidade
Na Igreja católica o fundamentalismo cresceu imensamente durante
inteira à sua religião. Inclusive, na teologia católica oficial o diálogo
o presente pontificado. A Opus Dei chegou a ser a potência dominante
apresenta-se como etapa prévia ao anúncio, ou seja, ao convite à con­
no Vaticano, pois controla setores importantes como as finanças ou a
versão. Não se toma como um bem em si mesmo, senão como etapa
comunicação, controla boa parte dos cardeais e prelados da Cúria e vai
prévia à conversão. Que o diálogo possa desembocar em uma conver­
colocando seus sacerdotes como bispos de dioceses importantes. Tem
são, está claro. Mas á conversão não pode ser diretamente a finalidade
mna grande penetração no mundo político da América Latina, e tam­
do diálogo, do contrário se perde a gratuidade do diálogo, a gratuidade
bém da Espanha. Ao lado da Opus Dei, os Legionarios de Cristo já
entraram em uma fase de conquista rápida do poder. Outras associa­ da relação entre pessoas.
Parece óbvio que todos os interlocutores possam ter a mesma
ções como o Sodalitium do Peru estão na mesma tendência. Na prática,
intenção, sobretudo se pertencem ao clero e que todos tratam de es­
nota-se que a disciplina católica se fez sempre mais rígida e irracional
conder essa intenção. Alguém leva a sério esse jogo? É óbvio que tal
durante este pontificado. A Igreja católica toma-se fundamentalista.

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

diálogo é pura manobra, pina aparência. Se se quer converter, é melhor os que vão descobri-la. Eles revelarão aos cristãos tradicionais o que é
fazê-lo diretamente sem tomar o diálogo como pretexto. Mais since­ realmente o evangelho.
ro é o diálogo entre pessoas que não têm nenhum posto importante
em uma hierarquia religiosa. 3. O que é a religião?
A finalidade do diálogo é a busca comum da verdade última Uma vez que se fala de religiões no plural, identifica-se religião
sobre a vida, o homem, a realidade. Com efeito, a experiência mostra com sistema definido, sistema de crenças, símbolos, ritos, expressões
que todas as religiões deformam suas origens, corrompem sua men­ sociais, organização de comunidades. Nesse sentido, falar-se-á do cris­
sagem original, transformam-se em sistemas fixos de crenças, ritos tianismo como para apontar à Igreja católica, as outras Igrejas cristãs,
ou organização e, portanto, em forças de poder na sociedade. Nesse como se elas representassem o evangelho, o verdadeiro cristianismo.
momento, as religiões servem como meio de alcançar o poder, como Mas o cristianismo está mais além de todas essas formas exteriores
se viu durante milênios, quando os Estados e Impérios foram domi­ simbólicas que foram acrescentadas pela história à simplicidade do
nados por funcionários da religião. Durante milênios, ensinou-se que evangelho. O cristianismo verdadeiro está na ação dos cristãos seguindo
Deus é o que dá vitória na guerra e por isso os sacerdotes se consi­ a ação de Jesus. Tudo o mais é símbolo, que ajuda ou impede a busca
deravam os mais importantes da sociedade porque o êxito da guerra da verdade, segundo os casos. A verdade da religião é o que está mais
dependia deles. Isso, contudo, foi ensinado na teologia católica até o além da religião: a busca de Jesus Cristo, de Deus, não por meio de
Vaticano II. Foi o que sustentou a cristandade e a posição do clero símbolos e atos simbólicos, senão na realidade da vida.
como primeira Ordem na sociedade. Foi o que legitimou a conquista Que vantagem haveria em comparar sistemas de símbolos? Seria
da América. Deus havia dado a vitória aos exércitos espanhóis e este impedir justamente o essencial, a busca comum da verdade que está
era o fundamento ideológico da dominação espanhola. mais além de tudo isso. Do contrário, o diálogo poderia resumir-se em
Uma religião não é capaz de corrigir-se por si mesma. Precisa uma exibição de sistemas simbólicos, uma grande feira internacional de
receber a crítica e a provocação de outras pessoas, de fora. Ou seja, de sistemas simbólicos na qual cada um poderia escolher o que prefere, do
outras religiões. Por isso, alguns diziam que as heresias são necessárias que gosta mais. Os cristãos têm feito isso constantemente, justamente
porque permitem buscar a verdade, desprendendo-se de fórmulas con­ porque Jesus não lhes havia dado sistemas de símbolos. Creram que
vencionais e fixas. Para o cristianismo este trabalho é particularmente necessitavam deles e os roubaram das religiões agrárias do Oriente Médio
necessário porque há um abismo entre o comportamento histórico das e do Mediterrâneo para construir todo o seu edifício próprio. Vejam as
igrejas e o evangelho de Jesus Cristo. O diálogo vai permitir corrigir roupas do bispo: é uma combinação de símbolos que vêm de religiões da
toda a corrupção de uma religião, porque a comparação com as demais Pérsia, Egito, dos povos germânicos e outros. Tudo foi comprado no
revelará suas deficiências. Todos juntos buscarão a verdade. Para os mercado das religiões. Os missionários da América foram buscar sistemas
cristãos a verdade é Jesus Cristo. Mas os cristãos não conhecem a Jesus de símbolos na índia, muito rica de símbolos, ou na China e os levaram
Cristo, que foi substituído por teologías ou mitologias. Com a crítica de aos indígenas americanos, que ficaram encantados. Como todos os mer­
outras religiões terão que buscar o caminho para conhecê-lo tal como cados, o mercado das religiões é desigual: os mais fortes levam tudo e os
quis ser conhecido. A dinâmica de Romanos 9-11, entretanto, vale para mais pobres ficam sem nada porque lhes foi tirada toda sua herança
nós. Os que se crêem os herdeiros do reino, depositários da verdade, tradicional. Na América fazemos o mesmo, hoje, usando os símbolos
são os que não a conhecem e a traem. São os outros, de fora, os pagãos. das religiões indígenas ou africanas. Imperialismo religioso!

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

A verdade da religião é o que está mais além da religião. Esse é sem parar, movido pelos mecanismos da cultura, mas sem poder para
o problema do diálogo religioso. Todos juntos são chamados a aju- pensar, porque o pensamento faz descobrir o vazio. Então a religião
dar-se a passar mais além de seus limites, de suas fixações, de suas é indispensável como mostra o exemplo dos povos atuais que já não
idolatrias porque a idolatria é considerar a religião mn fim em si têm religião: condenam-se a desaparecer porque já não têm razões
mesmo. É fazer da religião o fim e não o meio que deve deixar o para viver ou transmitir a vida.
passo ao mais além.

2a. Parte. O objeto do diálogo 2. O drama dos monoteísmos


No mundo atual a maior crise religiosa afeta os monoteísmos.
1. O discernimento das religiões
Os que subsistem até agora são o cristianismo, o islamismo e o ju­
A religião pode ser a melhor ou a pior das coisas. Tudo depende daísmo. Estão em crise. No cristianismo, muitos se afastaram da prá­
do uso que se faz dela. Na América, essa oposição se manifestou de tica tradicional e se esquecem dos dogmas tradicionais. No mundo
forma trágica. A religião justificou, provocou, incentivou a destruição ocidental, a maioria, entretanto, diz-se cristã sem saber muito bem o
das culturas dos povos indígenas e dos escravos africanos. Legitimou que é, mas porque sente que é uma referência necessária na vida ter
e consolidou a conquista, o extermínio e a quase escravidão dos povos uma religião e o cristianismo é a única religião que conhece. A crise
indígenas. Justificou a importação de milhões de escravos da África do cristianismo manifesta-se, por exemplo, pela diminuição do clero
e todo o sistema de escravidão que durou séculos. Tudo com a bênção e das vocações religiosas.
da religião oficial, de, seus ministros e representantes. Todas as reli­ No judaísmo, a crise é imensa e a grande maioria não o pratica-
giões são culpadas por horrores semelhantes, embora, talvez, não com nem sequer mantém a fé em suas crenças. Muitos se dizem judeus mais
tanta extensão. por motivos raciais, culturais e políticos que religiosos. O Islã defende-
As religiões são conservadoras na medida em que se identificam se de um trauma tremendo pelo caminho do fundamentalismo. Esté vai
com um sistema de símbolos. Por isso se opõem a mudanças cultu­ entrar em crise, inevitavelmente, porque o contato com a nova cultura
rais, sociais ou políticas que poderiam ameaçar seu status. Querem ocidental é inevitável e é ela que provoca a crise. O que mantém o
defender o que têm. Quando se produz uma crise cultural de maior islamismo distante da crise, por meio do fundamentalismo, é a política
intensidade, as religiões caem no fundamentalismo. Com isso conti­ do Primeiro Mundo, que mantém no poder os elementos mais corruptos
nuam apoiando as injustiças tradicionais, as formas mais primitivas das sociedades muçulmanas para que não se modernizem e não se trans­
de vida humana, as formas de opressão que estão estabelecidas na formem em rivais econômicos e políticos. Um islã fundamentalista
sociedade. Nessas circunstâncias, as religiões se opõem a reformas não é realmente perigoso para o Ocidente, porque nunca irá amèaçar
sociais ou políticas no sentido de uma maior emancipação pessoal e sua economia. Inútil reunir a todos os monoteístas para corhpartilhar
de melhores condições de vida. suas angústias e suas derrotas. Não solucionarão nada.
Por outro lado, a religião é indispensável para dar sentido à vida. É necessário ver o que significa o monoteísmo. É um sistema
Sem religião a vida humana não tem rumo, não tem linha, é uma religioso que surge em todo o mundo, principalmente nos últimos
sucessão de fatos sem significado. Pode-se subsistir sem religião séculos antes de Cristo, sobretudo nos séculos VI e V Surge um
durante um tempo porque se pode passai- de uma atividade para outra monoteísmo no Egito com Akenaton. Um Deus mais importante le-

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

vanta-se nas monarquias e Impérios da Mesopotâmia, como criador forte sempre, salvo no budismo. Neste, a figura do deus de poder se
ou organizador do mundo. O budismo põe em crise o politeísmo in­ apaga ou quase se apaga e a figura da compaixão é a principal, mas
diano tradicional, é um monoteísmo disfarçado porque prefere não é quase a única exceção no universo das religiões urbanas.
dar nenhum nome ao deus único que está por trás do sistema. Na Os monoteísmos podem ter vários comportamentos. Em princípio,
Grécia, os filósofos lançam um monoteísmo racional, metafísico, que são conquistadores. Os povos monoteístas têm sido e, contudo, são im­
vai desacreditar as antigas religiões agrárias. Em Israel, define-se perialistas, conquistadores, dominadores. Seu deus é um deus poderoso
depois do exílio uma ortodoxia rigorosa que elimina os restos de poli­ que quer conquistar toda a humanidade e submetê-la a seu domínio. Esse
teísmo da terra de Israel. Na América, a evolução se fez mais tarde pela imperialismo pode levar ao fanatismo. Quando a religião monoteísta se
falta de contato com outros continentes. Nasceram os quase monoteís­ sente atacada, reage na forma de fundamentalismo, esperando um mila­
mos dos Incas e dos Astecas, para legitimar seu império. gre de deus para recuperar a dianteira. Neste momento os monoteísmos
O monoteísmo nasce como resposta a uma mudança antropoló­ estão em crise: o fundamentalismo é a resposta a essa crise. O atual êxito
gica. Nascem as cidades, os Estados, o comércio, as indústrias, um do fundamentalismo na Igreja católica é sinal de uma crise profunda.
mundo muito complexo e diversificado, diferente do mundo agrário O monoteísmo pode também ser fator de imobilismo. Pode chegar
anterior no qual os homens viviam em pequenas comunidades auto- a ser conformista. Tudo o que sucede é vontade de Deus. Inútil querer
suficientes. Nos pequenos povoados, seus deuses lhes davam vida, mudar as coisas porque tudo já está determinado. O monoteísmo pode
chuva, sol, colheita, animais, remédios contra as enfermidades. Na engendrar o fatalismo, a inércia, a fuga ante os desafios globais ou
nova situação, necessita-se organizar a sociedade complexa do mundo pessoais. É a outra saída, o oposto ao imperialismo conquistador.
urbano. A família e o clã que funcionam automaticamente no campo Aqui temos de nos perguntar a respeito do cristianismo. Este é um
já não funcionam na cidade. Necessita-se de um princípio de unidade. monoteísmo especial. Sobretudo se tomado no sentido evangélico. O
Esta unidade se impõe pela força, muito mais que por submissão es­ monoteísmo de uma parte significativa da hierarquia, sobretudo da Cúria
pontânea. Necessita-se concentrar o poder divino numa pessoa que Romana, é claramente o monoteísmo político no qual todo o cristão é
terá o poder como delegação de deus. O atributo principal do deus reinterpretado em termos de monoteísmo político. Se Deus é o Deus
monoteísta é o poder: é o todo-poderoso que legitima o poder todo­ do poder e o que busca é o poder, é a doutrina real dos movimentos
poderoso do rei, do governante da cidade ou do Império sobre muitas como Opus Dei, que têm influência dominante na Igreja romana. En­
cidades. O monoteísmo é fundamentalmente político porque responde tretanto, não ocupam todo o poder. Há algumas instituições que man­
ao objetivo de uma sociedade complexa e seu princípio é a unidade. têm, contudo, uma certa abertura ao mundo. Por exemplo, o Conselho
A unicidade do Deus faz a unidade do povo. para o Diálogo Inter-religioso é mais aberto ao mundo das religiões
É verdade que se completa essa doutrina por um chamado à que a Congregação pela Defesa da Fé ou a Congregação pela Evange-
solidariedade ou a compaixão porque a solidariedade já não é espontâ­ lização dos Povos. O Papa tem mostrado em alguns gestos significati­
nea, como na família. Necessita-se de um preceito: todos os monoteís­ vos que queria dar alguns passos em direção ao diálogo. Entretanto, ao
mos pregam o amor ao próximo, ou seja, ao membro da comunidade mesmo tempo, seus funcionários condenam ao Pe. Jacques Dupuis que
e a compaixão pelos mais débeis. Necessita-se enunciar um manda­ trata de abrir a teologia ao diálogo.
mento porque a solidariedade já não é evidente. Por outro lado, esse Se olharmos para Jesus, o Jesus histórico e os documentos de
princípio compaixão é secundário e o princípio obediência é o mais seu movimento, a impressão é diferente. Primeiro, o Deus único não

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

tem como atributo principal o poder, senão uma combinação de com­ importância. Esse capítulo dá o juízo final de Deus, sua última palavra
paixão, indignação e vontade de atuar. Isso se reforça na figura de que determina a realidade última da mensagem bíblica, a forma como
Jesus que, longe de aparecer como um deus poderoso, é um deus o verdadeiro Deus se interessa pela religião, o que entende por religião.
débil, impotente, reduzido aos limites de um ser humano, dominado, Por isso, a assistência aos pobres não é um apêndice, um corolário,
explorado, excluido. uma parte da compaixão humana ou da solidariedade. Não é uma
Em segundo lugar, depois da morte de Jesus, a figura de Deus parte da virtude de justiça. A dominação, a exploração, a exclusão
que toma a dianteira é o Espirito, que é uma força imánente, que dos pobres é o drama da criação. O Deus verdadeiro está implicado
introduz no cristianismo a outra figura tradicional da religião, o deus na libertação dos pobres e não está implicado na religião. Deus detes­
imánente. O Deus cristão é, por sua vez, transcendente e imánente, ta os templos, os sacerdotes, os sacrifícios. A verdadeira religião é o
mas sempre débil, sem manifestação de poder de imposição e coer- amor ativo aos pobres e oprimidos para que se libertem da opressão.
ção. Voltaremos a isso. A verdadeira religião, se é que se necessita usar essa palavra ambí­
Em terceiro lugar, Jesus se põe à frente da luta dos pobres e domi­ gua, é a luta dos pobres por sua libertação. Por isso não importa o
nados. O Deus cristão não é um Deus cósmico, representando a imo­ nome que dão a esse Deus. Ele não tem nome. Os que se interessam
bilidade do universo, senão que entra na história não para justificar o pela religião são os homens, não o Deus da Bíblia. Esta inversão da
poder, mas para contrariar o poder. É um monoteísmo que se levanta religião, totalmente deformada pela cristandade e pelas Igrejas insti­
contra a sociedade estabelecida, contra os poderosos, desmente a men­ tucionais, constitui a báse de um diálogo. Se não se fala disso, não se
tira do monoteísmo político. É um monoteísmo diferente. Foi exata­ fala do cristianismo, mas de uma idolatria que usa as palavras cristãs
mente a teologia latino-americana que libertou o cristianismo de seu para montar uma máquina de dominação.
monoteísmo político tradicional. Até agora as Igrejas dominadas pela A libertação dos pobres não é somente um problema político, ain­
Igreja romana, que foi e ainda é a encarnação do monoteísmo político, da que tenha de ser a essência da política. Ademais, no concreto da
não se haviam atrevido a tomar as posições de Jesus ao lado dos opri­ história, o mais comum é que os políticos não se interessem pelos pobres,
midos. O Deus que luta ao lado dos pobres é um Deus diferente, único salvo na retórica. Os que assumem a causa dos pobres o fazem porque
na história das religiões e constrói um grande desafio ao cristianismo ouviram a palavra do evangelho: Não sc trata de pura compaixão, se­
monoteísta tradicional e a todas as demais religiões. não de luta. A compaixão supõe uma sociedade unida e solidária. O
O diálogo deve ter por tema a questão da dominação e a opressão reconhecimento da pobreza mostra que a unidade que se supõe que
dos pobres, ou seja, não da pobreza que resulta dos limites da espécie, está na sociedade é uma mentira: os pobres necessitam de uma liberta­
mas da pobreza criada e mantida pela sociedade e por poderes huma­ ção e não somente de compaixão. A questão é: Quem falará em
nos. Nisto o cristianismo de Jesus tem uma palavra radical para dizer nome do Deus cristão no diálogo? O interlocutor cristão falará do
à humanidade, pois, no cristianismo de Jesus, a pobreza não é simples­ Deus de Jesus ou do Deus dos imperadores romanos, incluindo-se
mente um problema “social” ou “político”, como se fosse um proble­ neles todos seus herdeiros? Quem irá dialogar com os índios e os
ma de técnica, solúvel por meios humanos racionais, científicos, tec­ negros da América? Quem lhes falará do cristianismo? Da resposta
nológicos. Sempre se ressaltou na teologia da libertação que a fome do depende a natureza do diálogo: pois o cristianismo de que se falará
outro não é um problema técnico, senão um problema religioso, por­ poderá ser o mesmo monoteísmo dos conquistadores ou a mensa­
que ali se encontra Deus. Por isso, o capítulo 25 de Mateus tem tanta gem de Jesus Cristo.

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

3. A grande crise atual da religião ciedades financeiras); 2) as técnicas da comunicação que permitem
divulgar milhões de mensagens a milhões de pessoas e fabricar as
Crise não quer dizer decadência, nem perigo, mas mudança, trans­
opiniões e as reações das massas humanas.
formação radical. Não há perigo para a religião que tem seu futuro
O poder não desapareceu, é mais forte que nunca, concentrou-se,
garantido hoje em dia como o tinha no passado. Não há decadência da
mas em instituições anônimas e, por isso, tem pouca visibilidade. O poder
religião, senão apenas decadência de determinados tipos de religião e
está em mãos de sociedades financeiras, como Merril Lynch e Morgan
determinadas instituições religiosas. A mesma Igreja católica entrou Stanley, que controlam os bancos e as multinacionais e estas se impõem
nessa crise apesar dos esforços de todo um pontificado para evitá-la. aos Estados nacionais cujo poder é simbólico. As grandes potências fi­
Estamos, de fato, entrando em uma mudança semelhante à que nanceiras, direta ou indiretamente, controlam os meios de comunicação
sucedeu ao surgimento do monoteísmo no primeiro milênio antes de e divulgam sua ideologia. A vida social e política foi despersonalizada.
Cristo, sobretudo nos séculos VI e V Essa crise se prepara há tempo, Grupos escondidos e anônimos tomam todas as decisões e fabricam tudo,
mas se fez visível na grande revolução cultural do Ocidente dos anos inclusive o consenso das populações, os aplausos da opinião pública e a
1960 e 1970. satisfação dos consumidores. Não há mais cidadãos, há consumidores
A grande crise alcança os monoteísmos. As religiões orientais que consomem o que lhes é dito para consumir. Tudo está planejado em
resistem melhor porque se adaptam mais facilmente à mudança cultu­ forma anônima. As pessoas estão imersas em um conjunto, uma rede
ral atual. Sofreram nos tempos dos monoteísmos quando as religiões imensa, ¡mensamente complexa onde sua personalidade se perde.
monoteístas conquistaram o mundo. Típica foi a conquista da índia, Esta sociedade necessita de uma religião nova que parece já es­
lugar de origem de tantas religiões orientais, pelo Islã que a governou tar nascendo em muitos lugares do mundo. Será uma religião de fi­
durante 800 anos. gura muito distinta das religiões primitivas pré-monoteístas e tam­
Os monoteísmos, como se falou, nasceram na época da forma­ bém muito distinta dos monoteísmos. Já estão presentes muitos fenô­
ção das cidades e da cultura urbana. Nasceram para dar um funda­ menos que permitem vislumbrar o que poderá ser a religião amanhã.
mento religioso ao novo tipo de sociedade que estava nascendo. Essa O novo Deus não é personalizado. Como sempre, a religião es­
cultura permaneceu igual ou quase igual até o final do século XX. taria a serviço dos poderes, pois a nova sociedade globalizada não
Foram 25 séculos de triunfo das religiões monoteístas no mundo. quer aparecer como poder. Não quer mostrar os poderes que a diri­
Mas, recentemente, as coisas começam a mudar. gem. Nega que ainda haja poderes. Afirma que tudo segue leis natu­
Estamos entrando no mundo globalizado. Suas características rais e que o que manda é o mercado, ou seja, uma lei presente em
pelo que nos interessa, são as seguintes: Apagam-se os Estados na­ todos os indivíduos, uma lei que não é lei no sentido de poder, porque
cionais com seu poder personalizado. Só subsiste um único império, seria a expressão dos desejos de todos, mas, ainda assim, obriga.
ainda assim muito despersonalizado. A vida política e a chamada de­ O que a nova sociedade pede é um Deus que seja uma energia
mocracia são sempre mais uma farsa, uma pina comédia cuja finali­ imensa que envolve a totalidade do universo, uma força que move
dade é divertir os cidadãos, para que não vejam a realidade. Os jovens tudo. É uma força de simpatia, felicidade, harmonia, porque a so­
participam sempre menos, porque sentem mais a realidade. ciedade atual não suporta o sofrimento; o mercado só quer a felici­
Dois fenômenos apareceram: 1) a crítica ao poder personaliza­ dade. Engendra o sofrimento, mas o não-reconhcce. Nesta religião
do, institucionalizado (mas não ao poder impessoal das grandes so- encontra-se uma infinidade de receitas de felicidade, bem-estar, paz,

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Pluralismo e libertação A teologia das religiões a partir da América Latina

harmonia, alegria. É uma religião sem crenças estáveis, porque tudo marketing, praticando sempre mais a manipulação dos sentimentos
o que crê muda sem cessar, mas não sem ritos. Isso porque os ritos religiosos e, na prática, reforçando a instituição.
são todos os métodos que dão felicidade, equilíbrio, alegria. Não há Estas duas alternativas estão ativas na Igreja católica de hoje. Há
organização necessária porque os meios de comunicação são sufi­ uma terceira alternativa, mas ela não tem o apoio das hierarquias
cientes para dirigir a humanidade. Não se necessita da ordem, por­ porque põe em perigo as estruturas estabelecidas. Consiste em retomar
que basta convencer e a mídia se encarrega disso. Os homens e o tema do Deus libertador dos oprimidos dentro do contexto atual.
mulheres se submetem voluntariamente, porque não querem estar Hoje em dia os opressores não são pessoas, donos da terra, presidentes,
excluídos da marcha do universo e a mídia lhes diz a maneira de partidos políticos. O opressor é o sistema completo que constitui uma
permanecer no conjunto. só força que domina o mundo inteiro. A resposta é contestar o siste­
É uma religião experimental porque dá a experiência de Deus, ma global como tal, enfrentar a estrutura completa, assim como os
do Deus imánente ao universo, de múltiplas maneiras. Todos podem primeiros cristãos enfrentaram o império romano durante 250 anos,
fazer essa experiência de Deus ou dos poderes divinos. mesmo sem ter êxito.
Muitos elementos mostram semelhança com as religiões anti­ Os oprimidos não são somente os que têm fome. E muito possível
gas, por exemplo, as religiões da índia ou do Oriente em geral, ou que as políticas assistencialistas solucionem o problema da fome. Os
também com as religiões africanas ou indo-americanas, pré-mono- oprimidos são os que não têm nenhuma voz, os anônimos que têm de
teístas. Por isso, em uma primeira fase produz-se como que uma volta aceitar o papel que a sociedade lhes dá, ou ficar sem papel algum.
do Ocidente ao Oriente ou às religiões ditas primitivas. Sem dúvida, Entretanto, não podem intervir em nada, são despojados de sua digni­
as antigas religiões terão de se adaptar às novas tecnologias da saúde dade humana, ainda que seu poder aquisitivo possa crescer para poder
e da felicidade, terão de levar em conta o mundo da comunicação e sobreviver fisicamente. Poderão ser consumidores mais favorecidos,
aprender seu manejo. De fato, essas religiões não terão a impressão segundo as regiões do mundo, mas são os indivíduos, os empregados,
de um corte tão grande como a têm os monoteísmos. que não contam, os que são utilizados quando necessitados e são rejei­
Neste contexto, como será o diálogo? Será diálogo com quem? tados quando deixam de ser úteis. A nova sociedade manipula todos os
Quem representará as novas religiões ou as antigas modernizadas? seres humanos. A contestação consiste em lutar contra o sistema. O cris­
Para as Igrejas cristãs, há três alternativas. Ou as Igrejas se en­ tianismo primitivo defendeu os pobres camponeses contemporâneos
cerram em um fundamentalismo, definem sua identidade em termos de Jesus porque naquele tempo os oprimidos eram os camponeses.
de sistemas de símbolos e se apegam à sua teologia, seu catecismo, Atualmente os oprimidos são todos os inativos, reais ou virtuais, os
seus ritos, sua organização, seu clero. É uma solução, ao final, deses­ que buscam como um favor um emprego na sociedade, os que nunca
perada, porque, a longo prazo, não pode vencer, ou bem as Igrejas se terão a possibilidade de participar.
adaptam e oferecem um programa religioso que responda às expec­ Em todas as religiões há minorias que têm as mesmas aspirações e,
tativas. Este foi o programa inicial das Igrejas pentecostais e os novos portanto, são os autênticos interlocutores de um diálogo inter-religioso.
movimentos carismáticos católicos. Eles queriam ser uma religião O sistema pode melhorar o estado de fome que há na América
para os pobres, que expressasse as experiências religiosas mais au­ Latina, mas não pode restituir a dignidade à imensa maioria de uma
tênticas dos pobres em um ambiente de liberdade. Sem dúvida, a população que sabe que é joguete nas mãos de forças anônimas. Ali
experiência atual mostra que esses movimentos se deixam atrair pelo está o lugar dos cristãos, mas é custoso, porque queriam uma vitória

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mais imediata. Todos queriam uma mudança rápida, mas o exame do cristianismo já era uma religião. A religião é uma necessidade vital e,
mundo mostra que é inútil esperar o impossível. Será uma luta longa, portanto, tem de ser preservada, mas sem a ilusão de que a religião
na qual as comunidades cristãs terão de apresentar ao mundo outra possa dar a última palavra sobre a vida humana. Por exemplo, ela não
maneira de viver, até que ao final o sistema reconheça que fracassou. liberta. Por isso, o diálogo inter-religioso serve para falar do que está
Então, com quem vamos dialogar? Com todos aqueles que tam­ mais além da religião, para buscar a vida mais além da religião.
pouco aceitam o sistema e estão decididos a lutar contra ele, não É possível que um dia o evangelho de Jesus se instale em outra
só em palavras e símbolos, senão em sua vida, em sua maneira de religião, diferente da atual, ou invente outra religião, em outro contexto.
viver em conjunto, como ilhas em meio de um mundo que não enten­ Não está ligado à religião do império romano. E claro que, atualmente,
de por que um ser humano não pode estar feliz sendo simplesmente não se vislumbra tal futuro, mas ele não está excluído. A teologia da
consumidor. O diálogo com outros grupos religiosos não terá muito libertação não terá muita dificuldade com as posições de Knitter ou de
efeito. Dialogar com os fundamentalismos monoteístas não leva a John Hick. Só que tende a relativizar a importância dessas considerações
nenhuma parte. Com as outras religiões se faz o diálogo se aceitam sobre a religião. Jesus não tem discurso sobre as outras religiões. Sobre
entrar em luta contra esse sistema que está ali. Do contrário, não vale estas não há muito o que aprender na Bíblia. Se Jesus estivesse interessa­
a pena dialogar e falta assunto para conversar. do nesse problema, o teria abordado. Nunca evocou a questão da religião
Estamos muito conscientes de que a história é muito mais ampla grega que estava nas cidades gregas da Palestina a poucos quilômetros
que a área de extensão do cristianismo, mas todos estão chamados a de Nazaré. Nunca se interessou em saber o que sucedia com essa reli­
entrar na mesma história. Deus não pergunta se uma pessoa é cristã gião. Portanto, não encontraremos argumentos apodíticos nas fontes
ou muçulmana ou hinduísta ou confucionista, tudo isso não lhe inte­ da mensagem de Jesus. Podemos dedicar-nos a especulações, mas es­
ressa. Deus quer saber quem está implicado no nascimento e no cres­ tas nunca poderão dar juízos definitivos.
cimento de seu povo dos pobres. Por outro lado, às outras religiões não lhes interessa saber se nós
Acontece que os homens têm religiões e têm necessidade de lhes concedemos ou não a salvação. Inútil prometer a ressurreição
religiões para viver. Hoje em dia nascem milhares de novas religiões, aos que esperam a reencamação. Nossa salvação não lhes interessa.
porque as antigas parecem um pouco antiquadas. Os seres humanos Não lhes importa. Eles têm outras mensagens de sabedoria humana
necessitam das religiões para sua segurança pessoal, para seu equilíbrio que podem compartilhar com os demais seres humanos de todas as
mental e emocional em meio a um mundo absurdo. Necessitam das religiões. A religião é uma necessidade comum. Nós temos e podemos
religiões para manter a unidade e a solidariedade entre eles. Sem re­ intercambiar idéias entre todos os que têm uma religião. Mas não
ligião cada qual está só no mundo, só diante de seu destino e não cremos que muita coisa possa nascer desse intercâmbio. Não é um
pode contar com a ajuda de ninguém. diálogo sobre o último, pois o último fica mais além da religião na
A religião está no centro da cultura e faz a unidade da cultura. A história do povo de Deus.
religião é também o centro da política e da vida social. Por isso, não se O escândalo do cristianismo é que afirma uma verdade válida
pode tirar a religião dos povos sem destruí-los. O mesmo cristianismo para todos os seres humanos, mas não é uma verdade “religiosa”. De
se fez uma religião que os protestantes mudaram um pouco, mas deixa­ fato, aqui há uma diferença com as demais religiões não-monoteís-
ram o essencial. Essa religião a tomaram do império romano, do neopla­ tas. Historicamente, o cristianismo foi a religião mais infiel às suas
tonismo e da religião popular do Mediterrâneo. No fim do século II, o origens a ponto de exigir o contrário do que diz o evangelho. Se fosse

66 67
A teologia das religiões a partir da América Latina
Pluralismo e libertação

tomado tal qual, como está no Novo Testamento, seria a religião menos história há uma luta permanente entre o verdadeiro Deus e os ídolos,
religiosa de todas. Na prática, talvez se haja transformado na mais entre o falso e o verdadeiro. Jesus dirá: entre o Pai e o dinheiro. Por
religiosa. Mas necessitamos determinar bem o que é universal, o que isso, a palavra “Deus” não nos parece muito conveniente e, hoje, leva
é válido para todos. Em termos secularizados, dir-se-ia que há direi­ a muitas confusões. Esta palavra é cultural e não primordial. Na Bí­
tos humanos válidos para todos, há uma dignidade humana válida blia, Deus não tem nome, nem sequer o nome “Deus”. Deus é “El”
para todos. Sem dúvida, isso não impede que, na prática, esses direi­ (Yahweh), o que não tem nome porque acima de todas as culturas,
tos não sejam respeitados. Isto não lhes tira seu valor. Dentro da representa o universal. Que é esse “El”? É a voz que chama a todos
mensagem de Cristo, a oposição entre o ideal de direitos humanos e à liberdade, uma voz que é interior, claro, mas que os incidentes da
a realidade atualmente vivida é o espaço no qual se localiza a verdade vida atualizam permanentemente. Esse “Deus” não é um deus no
humana. Porque há essa distância, há uma marcha, um caminho de sentido de uma figura, mas é puro chamado, pura interpelação ao ser
reconstituição, de transformação global que está existindo atualmen­ humano para construir sua humanidade redimida do pecado, ou seja,
te e durante toda a história da humanidade. das forças de destruição. Este “El” está acima de todas as represen­
A teologia da pluralidade das religiões insiste na diferença. A tações porque todas tendem a limitá-lo, a colocá-lo dentro de um
teologia da libertação insiste no único comum a todos. À teologia das sistema de símbolos, dentro de uma mitologia. Por isso os judeus se
religiões podemos propor dois temas básicos. O primeiro é o tema da negaram a dar-lhe um nome. “El” é o que não tem nome, porque não
história. Em geral, as religiões não se interessam pela história. Mas, pode ser contido em nenhuma representação parcial. É a liberdade
na Bíblia, o importante é a história, o caminho real, material, seguido pura que chama à liberdade.
e criado pela humanidade chamada por Yahweh à liberdade. Esta Desde o momento em que existe esta história única que é luta
história envolve todos os homens, de todas as religiões. Todos são única, todas as religiões estão interpeladas, porque todas estão dentro
chamados a colocar suas forças a serviço desta imensa marcha da da luta, todas atravessadas pela dualidade: participam do bem e do
humanidade à sua libertação de um pecado imenso que é a domina­ mal e todas estão chamadas a libertar-se. Para a religião cristã, o
ção do homem sobre o homem. desafio é grande, porque a distância entre a mensagem de Jesus e a
Em segundo lugar, há o tema da idolatria que é também básico realidade é grande. A prática diária da religião cristã está tão distante
na Bíblia. A idolatria não são as religiões, mas o uso da religião para da voz de “El” que uma conversão permanente se faz indispensável,
o serviço do poder, da riqueza, da dominação. Os deuses que os pro­ uma conversão sempre mais necessária à medida que se descobre o
fetas atacaram com tanta força eram os deuses dominadores dos tamanho do abismo entre a realidade e a meta final. Todas as reli­
impérios, os deuses exploradores dos pobres, mantenedores dos reis giões podem ajudar-se mutuamente para que cada qual se liberte de
e dominadores dos pobres, os deuses da riqueza e do poder. Era a seu pecado e se converta.
religião a serviço do pecado. Isto era denunciado pelos profetas no Há certas expressões que provocam susto: por exemplo, quando
mesmo povo de Israel, que abandonava sua vocação para adorar ído­ se diz que todas as religiões são caminhos de salvação. Na realidade,
los. Jesus chega a definir muito exatamente a idolatria quando a iden­ todas podem ser caminho de salvação ou caminho de perdição, como
tifica com a submissão ao dinheiro. Jesus denunciou nas elites religiosas de Israel, em sua época. A reli­
Na visão cristã, há um dualismo profundo, ainda que não seja gião dos sacerdotes de Jerusalém, dos doutores ou dos anciãos foi um
definitivo, porque, ao final, se realiza a unidade, mas só ao final. Na caminho de perdição. O importante é justamente o discernimento

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Pluralismo e libertação

entre o bom e o mau, para que todas as religiões possam converter­


se e ajudar-se urnas às outras a mudar seu rumo.
Macroecumenismo:
Por isso, ao lado do diálogo com as religiões, é essencial manter teologia latino-americana das religiões
o diálogo com os ateus, porque esse diálogo nos ajudará e a todas as
religiões a se preservarem da idolatria. Na realidade, temos de man­ José M aría Vigíl
ter as portas abertas para o diálogo com os ateus. Os primeiros cris­
tãos foram condenados como ateus. O diálogo com os ateus é tão
importante para nós quanto o diálogo com as religiões. Há que se
manter o equilibrio entre os dois, porque a verdade está no meio dos
dois, ou melhor, em um nivel superior onde já não se nota a diferença
entre religião e ateísmo.
1. Introdução
Nunca se ouviu falar de uma “teologia latino-americana das re­
ligiões”. Nunca houve uma teologia que fosse conhecida com esse
nome em nosso continente. Tampouco a teologia da libertação (TL)
teve tempo de elaborar tal disciplina entre as muitas que desenvolveu
em seus primeiros 25 anos. Mas, ainda sem esse nome, será verdade
que não houve na TL algum equivalente ao que hoje chamamos “teo­
logia das religiões”? Houve sim, e foi o “macroecumenismo latino-
americano”, que fez então, avant la letíre, o papel do que hoje se
chama “teologia das religiões” (TR).
Na hora de responder — como pretende este livro — aos desa­
fios que a teologia pluralista das religiões apresenta à teologia latino-
americana da libertação, queremos mostrar que, do seu jeito, o
macroecumenismo latino-americano da TL foi uma verdadeira TR
dentro da TL e que a resposta aos desafios atuais da teologia plura­
lista das religiões virá de um aprofundamento e prolongação do mesmo
macroecumenismo clássico na conjuntura atual do continente e do
mundo, e em uma continuidade serena e sem retrocessos.

Origem
O termo “macroecumenismo” como um significante característico
dentro da TL tem uma data de nascimento registrada, que é a de setem-

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Pluralismo e libertação Macroecumenismo: teologia latino-americana das religiões

bro de 1992, no curso da celebração da Primeira Assembléia do Povo de Interlocutor


Deus (APD), em Quito, Equador. Ali, em suas várias intervenções, Pe­
O interlocutor do MEL — o referente que aTL latino-americana
dro Casàldáliga proclamou e fundou esse conceito, que vinha apresenta­
tem em mente e diante de si em matéria de TR — não são as chama­
do detalhadamente no livro Espiritualidade da libertação, de sua auto­
das “grandes religiões mundiais” (islamismo, judaísmo, hinduísmo,
ria1, o qual também foi apresentado e estreado durante aquela Assem­
budismo), mas as religiões indígenas e as religiões afro do continen­
bléia12. Foi, com efeito, naquele evento, que o termo “macroecumênico”
te, assim como os militantes “ateus ou não crentes” dos movimentos
adquiriu direito de cidadania, convertendo-se em uma “marca registra­
populares latino-americanos da época. Isso explica — como veremos
da” da teologia e da espiritualidade latino-americanas, cuja pista pode — que muitos temas e conceitos hoje em moda no “diálogo inter­
ser perfeitamente seguida nas publicações escritas a partir daquela data3. religioso” estiveram então ausentes no MEL.

Conteúdo
II. Princípios fundamentais do MEL clássico comoTR
Por “macroecumenismo” os autores entendem “um jeito, um
espírito” que caracteriza a TL, descrito no citado livro como um “ecu­ • Um dado fundamental que vai condicionar positivamente todo o
menismo integral”, presente em Deus mesmo e na missão cristã. Desse desenvolvimento do MEL é a conceituação tão humana e tão
macroecumenismo deriva-se uma série de atitudes fundamentais que “des-eclesiastizada” que a TLfaz da espiritualidade. Esta, com
se fazem patentes sobretudo nas relações do cristianismo latino-ame­ efeito, não é entendida a partir das categorias necessariamente
ricano com as religiões indígenas, as religiões afro e os militantes eclesiásticas5, nem sequer como algo explícitamente religioso, mas
latino-americanos “não crentes” que participam nas lutas populares como algo muito humano, profundamente humano, como a profun­
então em curso no continente. O macroecumenismo latino-america­ didade mesma do ser humano, de maneira que, axiomáticamente,
no (MEL) é, primariamente, um espírito, uma forma de atuar e uma todo ser humano tem espiritualidade: é, por natureza, espiritual.
prática de vida, mas por trás dele também há uma teologia4, mais ou Por isso se distingue uma “espiritualidade 1” (El), cuja mística e
menos conscientemente desenvolvida, mesmo que naqueles primeiros utopia estão na vida diária e simples dos seres humanos que podem
tempos os nomes não estivessem explícitos da forma como estão hoje, se reconhecer fora das religiões, ou que podem, inclusive, consi­
para designar aqueles mesmos conteúdos. É nessa reflexão teológica derar-se ateus: é uma espiritualidade que acontece mesmo num
que podemos encontrar as características que evidenciam que o MEL suposto ateísmo. A presença do Espírito não está vinculada ne­
se transformou na TR latino-americana. cessariamente com, nem monopolizada pelos gestos explícitamente
religiosos ou eclesiásticos. O profano, o simplesmente humano, a
1. Em colaboração çom José Maria Vigil, o livro foi publicado na maioria dos países vida diária são veículos adequados do espírito e da espiritualidade.
do continente. Vide lista de edições em http://servicioskoinonia.org/pedro/obras.htm E, por outra parte, o mesmo que significa o que foi um famoso
2. Ao macroecumenismo dedica o livro todo um capítulo da terceira parte, adágio daquela época: “Não há duas histórias”, uma profana e
intitulado: “Macro-ecumenismo”.
outra sagrada. A história profana é o corpo da alma religiosa da
3. F. T eixeira, Teologia das religiões, São Paulo, Paulinas, 1995, 194.
4. Estamos falando da teologia da libertação, em que a reflexão teológica é sempre
um “ato segundo”, posterior à vida e à prática. “Todas as reflexões teológicas eqüiva­ 5. Classicamente, a “teologia espiritual” era concebida como a ciência da vida
lem a um ato de caridade concreto”, diz Gustavo Gutiérrez. sobrenatural, da perfeição cristã, da ascética e da mística.

72 . 73
Pluralismo e libertação Macroecumenismo: teologia latino-americana das religiões

história. A historia é urna, única, simultânea, mesmo tendo níveis É evidente que este princípio da universal elevação à ordem da
e aspectos susceptíveis de atenção diferenciada. salvação tem uma relevância direta e decisiva para uma possí­
• Esta idéia possibilita um princípio teológico e espiritual da TL que vel TR. Ainda mais: é já em si mesma TR. Esta elevação co­
resulta capital para a TR: a elevação universal de todos os seres hu­ mum à ordem da salvação ainda não diz por si mesma nada
manos à ordem da salvação. Hoje pode nos parecer uma afirmação sobre o estatuto teológico das religiões (o MEL não chegou a
mais ou menos evidente e pacificamente entendida, mas em seu tematizar explícitamente esse ponto), mas supõe uma igualda­
momento o MEL teve de sustentá-la contra toda uma tradição secu­ de básica fundamental de todos os seres humanos, seja qual
lar que pensava que só os cristãos estavam “elevados à ordem sobre­ for sua religião. Nesse sentido, graças à intuição primeira que
natural”. Vozes autorizadas, como a de Santo Tomás, exerciam um assentou como princípio básico, o MEL estava se situando em
tremendo peso na tradição: “As virtudes cristãs são infusas e essen­ uma posição muito mais avançada a respeito do que várias dé­
cialmente diferentes, pelo seu objeto formal, das mais excelsas vir­ cadas depois produziu um retrocesso, ao afirmar que enormes
tudes morais adquiridas que descrevem os mais famosos filóso­ massas humanas estão em uma “situação salvífica gravemente
fos... Há uma diferença infinita entre a temperança aristotélica, re­ deficitária”. Para o MEL não há ninguém no mundo numa si­
gulada somente pela reta razão e a temperança cristã, regulada pela tuação salvífica que estruturalmente seja gravemente deficitá­
fé divina e pela prudência sobrenatural”6. Contra essa tradição oni­ ria, porque Deus não abandona ninguém nem o põe fora do
presente na teologia clássica do continente (tão romanizado), a TL caminho (ou do plano) da salvação10.
atreveu-se a fazer a afirmação vanguardista da universal elevação
Segundo este princípio, cada religião não-cristã vem a ser “um
de todos os seres humanos ao plano da salvação7. Nessa mesma
povo de Deus” formado pelo coletivo dos seus seguidores, pois
tradição tomista estiveram ancorados globalmente os evangeliza-
dores dos séculos XVI e seguintes, pensando que, como missioná­ todos eles estão elevados à ordem da salvação, o qual não pode
rios, levavam a salvação a um continente carente dela8 e, por isso, deixar de ter um valor salvífico, mesmo que supostamente não
sua TR foi, de fato, uma “demonologia das religiões9”. o tivesse sua religião. Isto é, então, uma premissa da TR que,
sem este nome, estava já presente no MEL.
6 . Santo Tomás, citado por G arrigou -L agrange, Perfection chrétienne et • Outro grande princípio fundamental, de importância decisiva a
contemplation, Paris, 1923,64. Cf. também D anielou, Le mystère du salut des nations, partir do ponto de vista da TR, foi a distinção teológica entre a
Paris, Seuil, 1946, 75. ordem da salvação e a ordem do conhecimento da salvação. Essa
7. Isto está desenvolvido amplamente no capítulo primeiro do livro Espiritualidad
de Ia liberación, já citado. distinção foi uma ferramenta teológica muito útil que introduziu
8. O primeiro catecismo que se escreveu na América (entre 1510 e 1521), o de uma luz inusitada até então, e que faria possíveis inimagináveis
Pedro de Córdoba, começa com a revelação de “um grande segredo que vós nunca
soubestes nem ouvistes”: que Deus fez o céu e o inferno. N o céu estão todos os que desenvolvimentos posteriores.
se converteram à fé cristã e viveram bem; no inferno estão “todos os que dentre vós
morreram, todos vossos antepassados: pais, mães, avós, parentes e quantos existiram
aos sábios e sacerdotes astecas sobreviventes à invasão espanhola. Monumento...
e passaram por esta vida; e lá iréis também vós se não vos fizerdes amigos de Deus
e não vos batizardes e tornardes cristãos, porque todos os que não são cristãos são ibid., 187.
inimigos de Deus”. Cf. Los coloquios de los doce apóstoles, em Monumento cate- 10. “Não está o não-cristão em inferioridade de condições substanciais para rea­
chetica hispanoamericana, Buenos Aires, Facultad de Teología de la Universidad lizar a grande missão do ser humano. Seria justo Deus colocar a imensa maioria
Católica Argentina, 1984, v. I, 215. dos seus filhos e filhas em circunstâncias desfavoráveis ou precárias de salvação?
9. “Saibam e tenham por certo que nenhum dos deuses que adorais é Deus nem Não quer na verdade a salvação de todos?”: Espiritualidad de la liberación,
doador de vida; todos são diabos infernais”, diziam os “doce apóstoles de M éxico” Managua, Envío, 1992, 220.

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Pluralismo e libertação Macroecumenismo: teologia latino-americana das religiões

Durante séculos — quase diríamos que durante a maior parte dos explícitos da TR13. O MEL era inclusivista no seu ponto de par­
500 anos de teologia e de presença cristã européias na América tida conciliar, mas não o era conscientemente, e tinha em seu
Latina — tal distinção não existia. De fato, a ordem da salvação seio opções e virtudes que o iriam fazer capaz de ir muito além,
se confundia com a ordem do seu conhecimento. Quem não “co­ como mais adiante veremos.
nhecia” a salvação trazida por Jesus Cristo (e sua Igreja) era con­ • O MEL e a TL em geral se caracterizaram por uma reafirma­
siderado “sentado nas trevas e sombras da morte”11. Espontanea­ ção decidida da primazia da salvação sobre o conhecimento
mente, e com toda ingenuidade, eram considerados coincidentes da salvação. De novo: pode parecer hoje em dia uma afirma­
o círculo de quem participava do conhecimento da salvação (os ção evidente que não poderia ser de outra maneira, mas é bem
evangelizados e membros da Igreja) e o círculo da salvação, sem sabido que a tradição clássica ia por outros caminhos: o que
mais. Não se concebia que houvesse salvação que não fosse me­ importava sobretudo era “morrer como filho fiel da Igreja”,
diada pelo conhecimento explícito da mensagem cristã. A falta estar no círculo do conhecimento da salvação, que era a maior
dessa distinção é o que colocava estruturalmente a teologia e a garantia, sem a qual se caía fora do círculo da salvação. A tra­
evangelização dentro de um paradigma exclusivista, que tinha sua dição valorizava sobretudo a necessidade da ortodoxia (conhe­
expressão simbólica, mas característica, no conhecido adágio “fora cimento da salvação), a prática dos sacramentos e o estar livre
da Igreja não há salvação”, e que teve talvez seu auge de reconhe­ de erros e heresias. Tudo isso, pois, na ordem do conhecimento
cimento oficial no tempo precisamente da primeira evangeliza­ da salvação.
ção da América12. A TL e o MEL — e nisto são filhos do pensamento moderno ilus­
O MEL, filho do Vaticano II — momento eclesial que marca a trado — reafirmam a primazia da prática da salvação, isto é, a pri­
ruptura e a descontinuidade com 19 séculos de exclusivismo —, mazia da importância de estar coerentemente no âmbito da salva­
desconheceu logo de início esse exclusivismo, e começou o seu ção acima do significado salvífico do conhecimento da salvação.
vôo a partir da pista do inclusivismo do Vaticano II. É sabido Esta não é uma afirmação abstrata, mas está carregada de conse­
que a TR começou a existir formalmente perto das mesmas datas qüências práticas. O que dizem a TL e o MEL é que o que salva
realmente é a salvação e que desta se apropria o ser humano pela
da celebração do Vaticano II. É por esse motivo que o Concilio
prática moral do amor e da justiça14*. Esse critério é capital, pelo
não reflete em seus textos o nome nem os conceitos reflexos e
seu ecumenismo e macroecumenismo: está à disposição de todo
11. Para dizer com o Salmo 106,10 que durante tantos séculos foi aplicado
ser humano, em qualquer hemisfério da Terra e sob o signo de
tradicionalmente aos “pagãos” e “infiéis”. qualquer religião. Por outro lado, o conhecimento da salvação só
12. Com efeito, 50 anos antes, em 1442, o concilio de Florença chegou àquela
formulação lapidária de tons trovoantes pela qual confessava “firmemente crer, 13. Em toda a teologia da libertação, em suas três primeiras décadas, será
professar e ensinar que nenhum daqueles que se encontram fora da Igreja católica, praticamente impossível encontrar explícitamente os conceitos de “teologia das
não só os pagãos, senão também os judeus, os hereges e os cismáticos, poderão religiões”, ou de inclusivismo, pluralismo de princípio etc.
participar da vida eterna. Irão ao fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus 14. “A fé explícita conscientiza a salvação/perdição objetiva que se realizam
anjos (Mt 25,41), a menos que antes do termo da sua vida sejam incorporados à também sem essa consciência. A salvação/perdição se apropriam mediante a
igreja... ninguém, por grandes que sejam suas esmolas, ou mesmo que derrame o prática moral (boa ou má), mesmo quando não se tenha consciência de estar
sangue por Cristo, poderá se salvar se não permanece no seio e na unidade da ordenada à salvação ou à perdição. C. y L. B o ff , Libertad y liberación. Salaman­
Igreja católica” (DS 1351). ca, Sígueme, 1979.

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Pluralismo e libertação Macroecumenismo: teologia latino-americana das religiões

pode se estender e se comunicar e ser adquirido mediante os len­ escatológica, pós-mortal ou é uma salvação já presente e atoante? É
tos e complexos processos epistemológicos (e físicos) da comu­ uma salvação nebulosa ou é visualizável, de alguma maneira, em
nicação humana. O conhecimento da salvação precisa de séculos sinais e em valores também humanos e históricos? A TL tem em
ou milênios para chegar a novos grupos humanos, enquanto a mente e perante seus olhos uma salvação também presente e históri­
salvação já está com eles desde sempre e à sua disposição perma­ ca, não só escatológica, que está à disposição do ser humano — como
nentemente15. vimos dizendo — pela prática moral da justiça e do amor, e que
A disparidade entre as duas ordens (da salvação e do seu conheci­ muitas vezes se traduz historicamente no passo de condições menos
mento) não é simétrica, senão que se inclina com um saldo enor­ humanas a condições mais humanas17. A glória de Deus — e a sal­
memente favorável para a ordem da salvação. Esta é a que importa, vação humana — é também que o ser humano viva18.
a decisiva, a que dirime a salvação. A outra ordem tem seu sentido, De outro lado acontece um deslizamento vertical, na linha da cor-
mas é um sentido quase arcano, submergido no mistério de Deus: poreidade ou materialidade, que responde a estas outras pergun­
O que Deus quer ao dispor o estado atual da ordem da salvação? tas: A salvação cristã é só “espiritual” ou é integralmente huma­
Por que Deus não criou o mundo e os seres humanos de outra na? E, em contrapartida, o pecado é só “espiritual” ou se reflete
maneira, com outro tipo de revelação e de comunicação do seu também na opressão, no egoísmo social, na exploração do ser
conhecimento salvífico? Esses mistérios ficam para ser resolvidos, humano pelo ser humano, em estruturas sociais, econômicas e
talvez, no além. Entretanto, o que nos servem de referência são a políticas? A graça pode se visibilizar na história e se cristalizar
ordem da salvação, tão ubíqua, e a disposição universal. também em estruturas sociais?
• Dissemos, no começo, que um elemento básico que influi em todo É conhecido o caráter positivo da resposta que a TL e o MEL dão
a essas perguntas. E é essa conceituação da salvação em uma
o edifício da TL é a conceituação “tão humana e tão des-eclesias-
maneira tão concreta e realista o que os fez capazes de dar a volta
tizada” que faz da espiritualidade. Algo paralelo, podemos dizer,
ao princípio clássico de exclusivismo: se se havia dito que “fora
da sua conceituação da salvação. Esta não é compreendida como
da Igreja não há salvação”, a TL chegou a dizer algo que ia muito
algo meramente espiritual, ou meramente escatológico, nem como além de uma aparente contradição meramente verbal: “Fora da
algo nebuloso do que nunca poderíamos dizer nada, algo em de­ salvação não há Igreja”19.
finitivo críptico ou esotérico. Na TL podemos dizer que se dá um O que se queria dizer era que fora do compromisso pela
duplo deslizamento16 na conceituação da salvação, a respeito da libertação20, fora do amor feito história, fora do compromisso pelos
conceituação clássica. direitos humanos, pela luta pela Justiça e pela proclamação inte­
De um lado se dá um deslizamento horizontal, na linha do tempo, gral do Evangelho... não há Igreja, isto é, não há verdadeira “Igre-
que responde às perguntas: A salvação cristã é uma salvação somente
17. Medellín, Introdução, 6.
15. “O missionário sempre chega com atraso: antes dele chegou o Deus-Trin- 18. Santo Hilário e Mons. Romero. Trata-se de uma teologia e uma espiritua­
dade, que sempre se está revelando na consciência, na história, nas sociedades, nos lidade “reinocêntrica” e “soteriocêntrica”.
fatos e no destino dos povos.” L. B off , Nova evangelização, Petrópolis, Vozes, 19. Pedro C asajldáuga, Yo creo en la justicia y la esperanza, Bilbao, Desclée,
1990, 80-81. Daí também a famosa sentença de que o missionário nunca chega a 31977, 160; J. M. V igil , Espiritualidad de la liberación, Managua, Envío, 1992,
um lugar que seja um “vazio soteriológico” ... 238 (capítulo “Nueva eclesialidad”).
16. J. M. Vigil, La política de la Iglesia apolítica. Una aportación a la teología 20. Não é demasiado — evidentemente — que matizemos tratar-se de urna
política desde la historia. Valencia, Edicep, 1975, 219-221. libertação integral, não de uma libertação reducionista.

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Pluralismo e libertação Macroecumenlsmo: teologia latino-americana das religiões

ja de Jesus”, mesmo que talvez exista Igreja institucional em urna salvação, e a Igreja é a ordem do conhecimento (cristão) da sal­
situação de incoerência ou de pecado com respeito ao Evangelho. vação. A relação clássica de igualdade ou equivalência entre as
A atual teologia pluralista anglo-saxônica das religiões ainda tem duas ordens é o que causava de fato o eclesiocentrismo, enquanto
que se confrontar com este novo principio e lhe designar um pos­ a Igreja resultava equiparada ao Reino. A relação nova é o
to entre os paradigmas globais da moderna teologia das religiões. reinocentrismo, isto é, a primazia absoluta da ordem da salvação
Dizer que “fora da Salvação não há Igreja” é uma profissão de sobre a ordem do conhecimento.
soteriocentrismo21*,um soteriocentrismo que, conhecidamente, no ❖ Isso quer dizer que para os cristãos — desde o ponto de vista da
espírito de quem o proclamava, era reinocentrismo, e — por ex­ TL e do MEL — o mais importante não é a ordem do conheci­
trema abundância de evidência — nada eclesiocêntrico. mento da salvação, senão a salvação mesma, ou — dito em lin­
Isso nos introduziu no campo da teologização que a T L e o MEL guagem concreta — não é a Igreja, mas o Reino. E, aplicado às
fizeram da “ordem do conhecimento da salvação’': Como a TL e religiões não-cristãs, o mais importante para os cristãos não é levar
o MEL elaboraram sua reflexão teológica sobre esta ordem? aos outros povos nosso conhecimento (cristão) da salvação, mas
Em primeiro lugar, como já dissemos, a ordem do conhecimento nos colocarmos a serviço da salvação mesma, que já estará sem
da salvação no seu conjunto foi qualificado soteriologicamente dúvida presente nesses povos, em vez de centrar todas as nossas
como de inferior importância que a ordem da salvação mesma. energias em colocarmos a serviço da extensão do conhecimento
Esta é a ordem que realiza e dirime a salvação, enquanto a ordem cristão em direção a outros povos, como se estes estivessem ca­
do conhecimento da salvação é só instrumental ou mediadora para rentes de todo o conhecimento válido da salvação.
a primeira; se está presente e ajuda, muito bem; se estiver ausen­ Que validade salvífica poderia ter o conhecimento da salvação
te, a salvação não se ausentará por isso. desses outros povos é algo que a TL e o MEL não elaboraram
Dito isso, temos de agregar que, olhando a partir do nosso ponto certamente. A respeito tiveram apenas algumas intuições, que mais
de vista cristão, a ordem do conhecimento da salvação tem dois tarde se mostrariam em perfeita consonância com a evolução da
posterior TR.
campos fundamentais: o conhecimento cristão da salvação e os
• Neste tema da valorização teológica da ordem do conhecimento
conhecimentos não-cristãos da salvação. Como foram conceitua-
da salvação há um ponto importante: o caso dos militantes ateus.
lizados teologicamente na TL e no MEL?
Temos dito que eles constituíram um dos interlocutores-tipo da
Com respeito ao primeiro, ao conhecimento cristão da salvação,
TL e do MEL. Eles se professavam ateus em muitos casos, mas se
identificado nas Igrejas cristãs, a TL e o MEL disseram em sín­
sentiam e eram sentidos como “companheiros de luta e de espe­
tese o seguinte:
rança” dos militantes cristãos, lutando na prática pelas mesmas
❖ Trata-se, aqui também, certamente, de uma ordem soteriológica
“causas” e com utopias compatíveis. Como a TL e o MEL valo­
de importância menor que a ordem da salvação mesma.
rizaram teologicamente esse ateísmo?
❖ Essa inferioridade de importância reflete a relação mesma
Teologicamente, ter-se-á de situar esse ateísmo no nível da ordem
entre Reino e Igreja: o Reino é a cifra simbólica da ordem da
do conhecimento da salvação. Trata-se, aparentemente, de uma
“ausência de conhecimento”. Esses militantes têm dificuldade para
21. P. K nitter - J. Hick (eds.), Toward a Liberation Theology o f Religions, em
The Myth o f Christian Uniqueness. Toward a Pluralistic Theology o f Religions, falar de “salvação” e dos demais conceitos explicitamente cris­
Maryknoll, Orbis, 1987, 187ss. tãos, mas não têm nenhuma dificuldade para falar e de aceitar a

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Pluralismo e libertação Macroecumenlsmo: teología latino-americana das religiões

tradução em conceitos realistas do que nós cristãos chamamos mesmo que, logicamente, não tenha sido chamada ou considerada
salvação, isto é, a vida, a verdade, a justiça, a paz, o amor... esse assim, na época. Hoje, a partir da perspectiva atual da TR, não nos
conjunto de bens salvíficos que nós designamos como Reino. cabe dúvida alguma.
Diríamos que traduzida a salvação nestas categorias de bens mais • Como elaboraram a TL e o MEL sua reflexão teológica sobre a
concretos, esses militantes sentem-se perfeitamente à vontade na ordem do conhecimento não-cristão da salvação, isto é, que valo­
ordem da salvação. É na ordem do conhecimento da salvação que rização fizeram das religiões não-cristãsl
se sentem incapazes de aceitar esse conhecimento, a maior parte É bem sabido que em nosso continente as chamadas “grandes reli­
das vezes por dificuldades filosóficas, mesmo que também às giões” não tinham, há décadas atrás (talvez hoje comecem a tê-la),
vezes por escândalos vindos dos profissionais da religião. uma presença significativa que permitisse tomá-las como
A TL e o MEL aplicaram aqui os mesmos princípios teológicos fun­ interlocutoras da TL e do MEL. Estes estavam mais preocupados
damentais citados: o verdadeiramente importante é a salvação, com pelas religiões presentes no continente: as indígenas e as afro-ame­
ou sem esse nome. Não temos problemas, os cristãos, em trocar de ricanas. E mais de uma vez foi dito: o cristianismo deve dialogar
nome, nem em prescindir provisoriamente (fazer um epoché) de nosso não só com as “grandes” religiões, mas também com as “peque­
conhecimento e de nosso vocabulário da salvação, para nos relacio­ nas”. Quando as Hermanitas de Jesús chegaram há pouco mais de
narmos com qualquer um que utiliza outros nomes e outras referên­ 50 anos ao território dos índios tapirapé, estes eram um povo dimi­
cias. Não fazemos questão de nomes, senão de realidades. Sentimo- nuído, reduzido a umas 50 pessoas. A partir de então iniciaram um
nos em comunhão com todos aqueles que lutam pelas mesmas cau­ caminho de recuperação. Será que, por ser pequena e ter sido des­
sas que medeiam o que nós chamamos— com linguagem mais trans­ prezada, essa religião é menos digna de consideração e de diálogo?
cendente — “salvação”, e compartilhamos com eles as lutas e os A dignidade e o estatuto salvífico de uma religião não estão em
trabalhos, como verdadeiros “companheiros de esperança”. função do número dos seus aderentes: isto é claro, e já se tem cons­
Ainda mais, a TL e o MEL chegaram a sentir neste ponto e a ex­ ciência disso há décadas, na América Latina.
pressar uma vivência que estranhou e escandalizou não poucos dos Chamei várias vezes a atenção de que é de 1982 o livro-emblema
extratos oficiais eclesiásticos (ancorados no eclesiocentrismo): “sen­ da teologia pluralista anglo-saxônica, de John Hick, God Has Many
timo-nos mais perto daqueles que sem referência a Jesus Cristo Ñames11, na América do Norte, e é também do mesmo ano de
lutam pela libertação do povo e convergem conosco na luta pela 1982 a Missa dos Quilombos24, de Pedro Casaldáliga e Milton
causa de Jesus, que com aqueles outros que inclusive, em nome de
Nascimento, na América Latina. Essa missa começa com o verso
Jesus, se opõem a essa libertação e são obstáculo para essa causa”.
que diz: “Em nome do Deus de todos os nomes”. Uma coincidên­
Pode parecer muito duro — e de fato é, tão duro como real e
cia quase literal! Por caminhos diferentes e sem mútuo conheci­
lógico —, mas não é mais do que a aplicação dos princípios teoló­
mento, a intuição apareceu em dois ramos de teologia que esta­
gicos, e é perfeitamente ortodoxo em uma ortodoxia reinocêntrica.
vam caminhando na mesma direção, por caminhos diferentes.234*
Essa maneira de compreender a relação entre o cristianismo e
essa “religião” que seria o ateísmo militante latino-americano da­
23. Philadelphia, The Westminster Press, 1982, 140. Britain’s N ew Religious
quelas décadas22, é verdadeiramente “teologia das religiões”,
Pluralism, London, Macmillan, 1980.
24. Quilombos eram as aldeias que os negros escravos fugitivos formavam em
22. Pode-se ver um exemplo em: Dios y los revolucionarios, con Cuba al lugares inacessíveis aos brancos, para poder viver em liberdade. Em castelhano se
fondo, em El Vuelo del Quetzal, Panamá, Maíz Nuestro, 1988, 87-100. chamariam “palenques”, mas a palavra tem se hispanizado.

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Pluralismo e libertação Macroecumenismo: teologia latino-americana das religiões

Um Deus reconhecido com muitos nomes é um conhecimento mediações. Como se sabe, esse jogo de distinções foi bastante
diferente daquele conhecimento que denomina Deus com um único desenvolvido nos anos seguintes.
nome. Quando se reconhece que tem muitos nomes — não só o Podia-se chegar além de onde chegaram a TL e o MEL no tocante
nome cristão que desde sempre temos lhe dado — muda o próprio à teologia das religiões? Vamos tentar expressar quais foram seus
conhecimento de Deus. Agora reconhecemos que há outros co­ limites reconhecidos.
nhecimentos de Deus, e que é um mesmo o Deus para o qual
convergem esses conhecimentos plurais. Na concentração de um III. Limites daTL e o MEL como "teologia das religiões"
título ou de um primeiro verso, está colocada uma síntese da “teo­ Á T L e o MEL não elaboraram uma “teologia das religiões ” com
logia das religiões”, de forma consciente, no livro de Hick, e,
esse nome. É certo: não há publicações com esse nome, nem se uti­
implicitamente, na Missa dos Quilombos.
liza esse conceito. Esse conceito está apenas surgindo no mundo teo­
Que valorização das religiões indígena e afro fazia a TL e o MEL?
lógico universal, assim, não há nada de estranho a TL e o MEL não
Tal valorização pode ser exemplificada pela distinção muito uti­
o terem utilizado. Além disso, estavam ocupados demais e absorvi­
lizada naqueles anos, distinguindo entre religião e fé. Sublinhou-
se muito que a fé, como relação profunda com Deus, necessitava dos por outros temas e outras preocupações urgentes, como para ela­
ser distinguida de religião, como conjunto de práticas, ritos, ri­ borar uma teologia teórica sobre as religiões.
tuais, crenças. A religião é, em boa parte, uma expressão cultural, A TL e o MEL já intuíram o pluralismo de princípio, mas não
elaborada segundo as categorias próprias da cultura de cada povo. chegaram aformulá-lo, nem o elaboraram. A valorização das religiões
O cristianismo não teria que impor sua “religião” a outros povos, que se reflete nos escritos daqueles anos evidencia uma valorização
porque, ao filial, isso é antinatural: cada povo só pode praticar muito positiva dessas religiões. O espírito que se respira nelas é já
com sentido uma religião que lhe seja inteligível desde sua cultu­ “pluralista”. Não se pretende nem converter nem batizar as outras re­
ra. O cristianismo não teria que desprezar a religião dos outros ligiões. São consideradas um dom de Deus que tem de ser contempla­
povos: em lugar disso deveria inculturar-se em sua cultura, e “in- do com respeito e admiração. Estamos a um passo do que poderia ter
religionar-se” em sua religião. O cristianismo deveria ficar feliz sido a formulação de um “pluralismo de princípio” que declarasse que
por levar a boa notícia do Evangelho a outros povos, mas não todas as religiões são reveladas e verdadeiras e queridas por Deus, mas
deveria impor nem sequer propor “culturas forasteiras”25. Essa
— não podemos negá-lo — não se chegou a formular nem elaborar.
distinção não implica em si mesma uma posição inclusivista nem
Em linhas gerais seguiu-se no âmbito do inclusivismo, um inclu-
pluralista, mas simplesmente um avanço notável na compreensão
sivismo moderado, e às vezes cheio de pudores, inseguro, que parecia
da natureza da religião. Teríamos chegado a ser capazes de distin­
guir o que é o sistema de símbolos, categorias e mediações por intuir sua insuficência, mas inclusivismo no final. Apelava-se sempre
meio das quais se expressa o religioso, como diferente do núcleo à consideração do cristianismo como uma “luz superior”26que nós os
mesmo da vivência religiosa, fazendo abstração de todas essas cristãos tínhamos para entender o sentido da vida e da história. Sabía-

25. “Infiéis ao Evangelho/do Verbo Encarnado/te demos por mensagem/cultura 26. Na citada obra Espiritualidad de la liberación, temos de reconhecer que
forasteira”: Memória penitencial da Missa da terra sem males, Bilbao, Desclée de aparecem por aqui e por ali afirmações que se referem à luz da fé ou à revelação
Brower, 1980, 43. Cultura forasteira foi, para os povos indígenas ou afro-ame­ cristãs como uma “luz superior” (ibid, 30-31), ou à Igreja como “necessária para
ricanos, a religiosidade latina ocidental. a plenitude do conhecimento da salvação neste mundo” (238).

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Pluralismo e libertação Macroecumenismo: teologia latino-americana das religiões

mos que em todos os povos e religiões e em todos os homens e mulhe­ temos de dizer que precisamos de um macroecumenismo inter-religioso
res, atuava o espírito e podia lhes fazer intuir os grandes valores da de perspectiva mundializada.
existência, desde a voz da sua consciência; mas não nos atrevíamos a
nos desprender da ancestral convicção de que a visão das outras reli­ Desafios atuais
giões ficava pequena perante a revelação explícita do plano de Deus, Como já foi dito, a TL clássica não concebeu a necessidade de
com seu nome próprio, o Reino, expressado no Evangelho de Jesus. uma TR, e hoje é um fato que a maior parte dos teólogos e teólogas da
Não obstante, acho que se pode dizer que, de todos os inclusivis- libertação estão, mesmo em silêncio, ocupados e preocupados pelo tema
mos da época, o mais respeitoso e menos chauvinista — sem nenhu­ da TR ou teologia do pluralismo. Estamos fazendo balanços do
ma dúvida — foi o da TL e o do MEL. macroecumenismo latino-americano e todos damos por certo que essa
Continuou em pé, não questionado, o cristocentrismo. Era um tarefa tem pela frente um grande futuro. Quais seriam as tarefas ime­
cristocentrismo muito influenciado pelo reinocentrismo, mas sempre diatas que estão pendentes? Vamos enumerar algumas.
cristocentrismo. Não foi possível imaginar naqueles anos a possibili­ Entrar de cabeça e explícitamente no campo da TR. Aqui temos
dade de que, algumas décadas mais tarde, poderiam ser questionados tentado resgatar o que da TR havia na TL e no MEL. Mas é chegada
os grandes temas cristológicos (encarnação, filiação divina, unicidade, a hora em que esses ramos e conteúdos da TL têm de ser explícitos,
redenção). De fato é possível interpretar que a acentuação da cristolo- com plena consciência e pleno desenvolvimento. É hora de afrontar
gia da libertação fez sobre o Jesus histórico tem servido como atenua­ e responder em termos de TL às perguntas mais elementares, pergun­
ção das dificuldades que em outras latitudes representavam aquelas tas que na América Latina o povo não se faz, pelo fato de a sociedade
grandes afirmações dogmáticas. não ser ainda marcadamente pluralista, mas perguntas que logo se
Vista de uma perspectiva mundial, não deixava de ser — como fará. As perguntas são, por exemplo: Por quê há uma pluralidade de
Pieris nos lembrou depois -— “um luxo de uma minoria cristã’’21. O religiões? Se Deus é só um, não deveria ser só uma a religião? A
continente e as projeções de solidariedade estendidas literalmente sobre quem Deus se revelou realmente? São todas as religiões verdadeiras?
todo o planeta, nos pareciam então um mundo distante e inalcançável. São todas a mesma?28
Mas as palavras de Pieris nos acordam ante essa ilusão. UmaTL para a Re-conceituar a missão ad extra, a missão dirigida a outras reli­
América Latina (500 milhões de habitantes) nos parecia uma aventura giões. A missão clássica foi superada na práxis da Igreja da liberta­
muito grande. Porém, vista de uma perspectiva mundial, a perspectiva ção, mas é necessário aprofundar e elaborar a nova teologia da mis­
dos pobres (que em sua maioria estão na Ásia e na África e não são são ad gentes29.
cristãos) não deixa de ser, verdadeiramente, um “luxo de uma minoria A TR da TL tem de entrar no espinhoso campo das questões cris-
cristã”. O limite aqui foi não descobrir a perspectiva da mundialização e tológicas já citadas, atualmente sendo debatidas. Um cristólogo latino-
a necessidade de uma TL — agora não latino-americana (e cristã) —- americano nos dizia: “Esse tema é um ninho de vespas”. O é, de fato,
mas uma “teologia inter-religiosa da libertação mundial”. Paralelamente porque por uma parte se adivinha que a reinterpretação que se aproxi-

27. P ieris, The Place o f Non-Christían Religions and Cultures in the Evolution o f 28. Paul K n i t t e r , N o Other Ñame?, New York, Orbis Books, 1985, 1.
Third World Theology, em lrruption o f third World: Challenge to Theology, Virginia 29. Os Congressos missionários oficiais não entram neste tema; limitam-se a
F abela and Sergio T orres (eds.), Maryknoll, New York, Orbis, 1983, 113-114. repetir intempestivamente a teologia do mandado missioneiro universal de Cristo.

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Pluralismo e libertação

ma é realmente profunda, e por outra, dada a essencialidade dos temas


cristológicos, as questões que estão em jogo são de máxima gravidade
Religiões, misticismo e libertação
imaginável — pelo menos segundo os parâmetros clássicos, aos quais Um diálogo entre a teologia da libertação
estamos acostumados. Sem dúvida, a construção de uma nova cristo- e a teologia das religiões
logia, não absolutista30, é, neste momento, a questão mais difícil.
A TL, nesta nova etapa de mundialização, deve colocar a necessida­ Paul F. K nitter
de e a urgência de reformular-se a si mesma como teologia inter-reli-
giosa, e como uma teologia da “libertação mundializada”. O primeiro
para não ser já “um luxo de uma minoria cristã”, e o segundo para se
adequar- aos tempos que vivemos, de mundialização, época de uma
libertação necessariamente mundializada. Tudo o que a teologia está
propondo em relação à “World Theology” ou teologia inter-religiosa, O que espero oferecer nesse ensaio é um exemplo do que pode
que fale a uma sociedade religiosamente pluralista, como são as socieda­ acontecer quando a “teologia da libertação” e a “teologia das religiões”
des de hoje, tem de ser considerado na futura elaboração daTL atual. conversam uma com a outra. Trarei um determinado estudo de caso
Precisamos abordar e aprofundar o tema da natureza mesma da que mostra como os dois lados podem ajudar um ao outro quando
religião desde a antropologia, as ciências da religião e a filosofia; e dialo­ decidem se ouvir e se desafiar. Partindo de uma questão controvertida
gar também com o agnosticismo. É preciso reconsiderar os pressupostos e concreta dentro da teologia/filosofia do pluralismo religioso —
ingênuos e acríticos — inclusive pré-ilustrados — sobre os quais a re­ “Existe um âmago místico comum a todas as religiões?” — , tentarei
ligião está classicamente instalada em escala popular. A TR precisa mostrar como as perspectivas da teologia da libertação podem escla­
elaborar esses fundamentos. E a TL ainda não elaborou esses funda­ recer essa questão, se não puderem resolvê-la; mas, ao fazê-lo, os
mentos para construir sua própria TR. próprios teólogos da libertação serão desafiados e ganharão novos
discernimentos dos teólogos envolvidos no diálogo inter-religioso.
Esse processo não é novo: ao conversarmos com os outros, descobri­
mos nossa própria voz.

A controvérsia
Uma grande quantidade de teólogos e filósofos do pluralismo
religioso, bem como de praticantes da religião, afirma que o misti­
cismo nos ajuda a compreender a “religião” tanto em sua forma
singular quanto plural. Perceber e sentir a relação entre “religião” e
“misticismo” permite à pessoa compreender de forma mais clara e
comprometida sua própria identidade religiosa e a dos outros. Essa
30. Cf. neste mesmo volume o trabalho de Marcelo Barros sobre “uma cristo- afirmação sustenta que ser profundamente religioso é o mesmo que
logia afro-indígena latino-americana, uma discussão com Deus”. ser amplamente religioso. Quanto mais eu mergulho na fonte mís-

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

tica de minha própria religião, mais aprecio a fonte da sua religião. da sensação de estarmos fundamentados naquilo que traz sentido à
Explico melhor. nossa vida individual dentro do todo. E a compaixão nasce da sensa­
ção de existirmos junto com outros seres que fazem parte do todo
tanto quanto nós mesmos; seu bem-estar é parte do bem-estar do
Ser profundamente religioso = ser amplamente religioso
todo e, portanto, parte do nosso próprio bem-estar.
Creio que podemos dizer que ser profundamente religioso — Além disso, Aquilo que sentimos como fundamento e fator de
isto é, ser verdadeira, autêntica e realmente religioso — é ser um união pode ser sentido e retratado de maneiras as mais variadas, pois
místico. Ser uma pessoa religiosa é ser uma pessoa mística, pois os é sentido como real, além de suplantar todas as imagens, ou ser mais
místicos são aqueles que têm experiências religiosas. Os místicos que todas elas. Assim, alguns místicos sentirão mais de suas qualida­
não apenas pertencem a uma tradição religiosa; eles entram nas ex­ des pessoais e o chamarão de Pai, Mãe ou Salvador; outros sentirão
periências pessoais e transformadoras que deram origem a essas tra­ que ele está além de todas as imagens pessoais e preferirão identificá-
dições e as mantêm vivas. Os místicos são pessoas que fizeram da lo como Espírito, Darma ou Nada/Vazio.
experiência de Jesus, Buda ou Lao-Tsé a sua própria experiência. Agora, ser profundamente religioso e entrar na experiência Da­
Aquilo em que acreditam não é algo que ouviram ou leram, mas algo quilo que nos fundamenta e une é ser também amplamente religioso.
que sentem. Nós poderíamos dizer que os místicos são religiosamen­ É perceber, ou pelo menos suspeitar, que Aquilo que provoca e anima
te adultos: eles amadureceram em suas próprias crenças religiosas; minha experiência religiosa é a mesma Realidade que anima todas as
eles crêem não porque outras pessoas lhes disseram para crer, mas outras. Por que digo isso? Simplesmente porque é isso que encontra­
porque sua própria experiência lhes diz isso. mos na literatura mística de todas as religiões. E isso que os místicos
Mas do que estamos tratando quando falamos de misticismo ou de nos dizem — digo místicos como Ibn al-Arabi, Rumi, Mestre Eckhart,
experiência mística ou de ser profundamente religioso? Certamente, Juliana de Norwich, Nicolau de Cusa, e mais recentemente Mahatma
toda tradição religiosa oferece descrições diferentes da experiência que Gandhi, Thomas Merton, o Dalai Lama, Thich Nhat Hanh. Eles reco­
está no centro de sua identidade. Mas, analisando os escritos místicos nhecem que o Divino, ou Deus, ou a Verdade que encontraram em
de diferentes tradições e seguindo a orientação de estudiosos do mis­ suas tradições está vivo e também presente em outras tradições.
ticismo, arrisco a seguinte descrição: ser um místico ou ter uma expe­ Isso é um fato; é o que se ouve os místicos dizerem. Mas por que
riência religiosa é sentir ou tomar-se consciente Daquilo (note bem, eles dizem isso? Creio que por duas razões: uma pessoal e outra in­
com “D” maiúsculo) que nos fundamenta e une. É nos sentir parte terpessoal. Pessoalmente, como já sugerido, o Divino ou a Verdade
Daquilo que dá fundamento ou sentido à nossa própria vida e Daquilo que os místicos experimentam não é apenas absolutamente real, mas
que, ao mesmo tempo, nos une a outros seres vivos ou a tudo que também absolutamente mais do que o que estão experimentando. A
existe. Na experiência mística nós nos sentimos parte de um quadro realidade da qual os místicos tomam conhecimento é tão transcen­
maior e parte de todos os outros fragmentos que O compõem. E esse dente quanto imánente — é mais do que experimentaram tanto quan­
quadro maior, a despeito de todos os seus contornos, seus altos e bai­ to o que verdadeiramente experimentaram. E esse mais que os mís­
xos, suas dificuldades e sofrimentos — é um quadro maravilhoso! ticos também sentem é ativo, comunicativo, disponível além das
Portanto, a experiência mística ou religiosa é, para nós, uma fonte maneiras que tocou a eles e à sua vida. O Divino, para os místicos, é
tanto de paz interior quanto de compaixão pelos outros. A paz vem incapaz de ser contido em uma única expressão e ao mesmo tempo

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

tem necessidade de muitas expressões. Isto, eu sugiro, é o que os humanos e divinos — ou, com mais exatidão, eles ameaçam o modo
místicos sentem pessoalmente em sua própria experiência religiosa. como compreendemos a nós mesmos e o modo como compreende­
E interpessoalmente — isto é, quando encontram místicos de mos o Divino. E os falsos entendimentos geralmente conduzem —
outros caminhos religiosos eles sabem que isso é assim. Talvez pos­ sabemos — a ações prejudiciais.
samos chamar a isso de natureza da amizade mística. Quando os Primeiro, os perigos ao nosso entendimento uns dos outros. Ao
místicos se encontram, quando eles ficam se conhecendo, eles natu­ realçar a unidade de todas as experiências místicas, nós facilmente
ralmente se tornam amigos. E o que permite essa amizade é o mesmo — se não inevitavelmente — minimizamos as diferenças entre as
que permite todas as outras amizades — eles sentem que têm algo em religiões. E ao enfatizar a unidade de todos os místicos nos esquece­
comum, algo com que já estão preocupados e comprometidos. Sen­ mos de que as diferenças entre eles são: reais, inerradicáveis e im­
tem que há algo naquilo que todos eles têm descoberto ou estão pro­ portantes. Explicarei rapidamente essas três qualidades das diferen­
curando que os torna irmãos e irmãs ou companheiros de viagem. ças místicas.
Isso foi poderosamente demonstrado no encontro entre o Dalai • Ao afirmar que as diferenças entre um místico cristão e um
Lama e Thomas Merton, como ambos descreveram. Merton se deu místico budista são reais, estou sugerindo que essas diferenças
conta de que tinha finalmente descoberto “o acordo verdadeiro”, não são como as roupas que usamos, mas como a pele que
enquanto Sua Santidade comentou que “Esta foi a primeira vez que temos. Nós podemos trocar de roupa à vontade. Hoje, em Cin-
fui tocado por um tal sentimento de espiritualidade em alguém que cinnati, estou usando camisa e gravata. Na Indonésia, no mês
professava o cristianismo”1. Como Merton refletiu em outro momen­ passado, usei um sarongue. Mas em ambos os lugares eu tinha
to, ambos sentiram uma comunhão entre si que precedeu e facilitou a mesma pele. Não podia mudar isso. Minha pele é parte de
sua comunicação12. Eles estavam fundamentados e unidos na mesma quem sou; não posso removê-la. As diferenças entre os místi­
Realidade antes mesmo que abrissem a boca. cos são algo parecido. É isso que ouvimos dos assim chama­
dos filósofos pós-modemos, mas em vez de falarem sobre a
pele, eles refletem sobre a linguagem. Nós não simplesmente
Objeção: as diferenças reais estão perdidas
temos uma linguagem; de certo modò nós somos linguagem.
Mas se tudo o que ponderamos até agora sobre o âmago místico Nosso idioma e nossa cultura constituem o modo como enxer­
no centro de toda religião for verdadeiro, os críticos advertem, tam­ gamos o mundo, como nos sentimos em relação a nós mesmos
bém é perigoso. Falar sobre uma única experiência mística dentro de e como retratamos o Divino.
todas as tradições religiosas, afirmar que existe uma única Realidade Mais precisamente, os teólogos pós-modemos (ou pós-liberais),
Divina por trás ou dentro das muitas experiências místicas pode causar como George Lindbeck, nos fazem lembrar que nós não temos pri­
problemas. Poderíamos dizer que tais perigos são, ao mesmo tempo, meiro uma experiência para depois tentarmos expressá-la em pala­
vras. Antes, as palavras que nos são dadas por nossa cultura afetam
1. Patrick H art & Jonathan M ontaldo (eds.), The intímate Merton: his Ufe profundamente, até determinam, e, portanto, limitam o tipo de ex­
from his joum als, San Francisco, Harper, 1999, 347-348; Freedom in exile : the
periência que temos. Isso significa que não temos primeiro uma
autobiography o f the Dalai Lama, San Francisco, Harper Perennial, 1990, 189.
2. The Asian journal o f Thomas Merton, N ew York, N ew Directions, 1973, experiência mística para depois buscar uma voz para expressá-la. Nós
311, 315. partimos da voz — uma voz cristã, budista ou judaica — e isso deter-

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

minará o tipo de experiência mística que temos ou podemos ter. Vo­ porque essa palavra não existe em nosso vocabulário cristão e,
zes diferentes, experiências diferentes. E isso significa que as dife­ portanto, em nossa experiência cristã.
renças não são simplesmente “acrescentadas” nem são secundárias Assim, as diferenças têm importância. E devemos reconhecê-las
às nossas experiências. As diferentes vozes são tão reais quanto o e respeitá-las não apenas para evitar o imperialismo religioso, mas
misticismo único. também para tornar interessante nosso diálogo inter-religioso e mís­
• Isso significa que essas diferenças não deixarão de existir tico; para torná-lo realmente possível. Sem as diferenças reais entre
pelo fato de que não é possível acabar com elas. São inerradi- os místicos não pode haver um diálogo real entre eles. Nós aprende­
cáveis. Estão aqui para ficar. Portanto, não pense que um dia mos uns com os outros muito mais pelas nossas diferenças do que
poderemos alcançar ou dar voz a um único misticismo por pelas semelhanças. Nossas diferentes vozes estão nos dizendo que
trás de todas as diferentes vozes místicas. Assim como não existem diferenças reais no misticismo único. Isso nos traz ao que
há um idioma único por trás de todos os nossos diferentes chamo de perigo divino.
idiomas, não há um misticismo único, identificável, além de O perigo de compreendermos o Divino pela ênfase exagerada
todas as nossas diferentes experiências místicas. Sim, todos do misticismo único está em superenfatizar o Deus único. Isso pode
nós podemos estar tentando dizer a mesma coisa em nossas ser de difícil compreensão para os cristãos e judeus, e principal­
diferentes línguas, ou em nossas diferentes experiências reli­ mente para os muçulmanos. E algo que as religiões asiáticas podem
giosas, mas jamais encontraremos uma língua única para fazê- mais facilmente reconhecer e até insistir: que o Divino é não apenas
lo. Para nos expressar, temos de falar espanhol, inglês ou ja ­ um, mas também muitos. O Brahma não apenas se expressa em,
ponês. Para termos uma experiência mística, temos de vivê- mas é os muitos deuses. O Tao flui através de “dez mil coisas”. Se
la segundo uma determinada linguagem religiosa. Jamais po- todas as formas são Vazio, nos dizem os budistas, o Vazio é também
. derá haver um esperanto místico. as muitas formas. O que significa que a Divindade inclui a diversi­
• Tudo isso significa que as diferentes vozes místicas são não dade. Até os cristãos percebem isso quando insistem que Deus não
apenas reais e permanentes; são também importantes. Se hoje é apenas uno, mas trino. E podem os muçulmanos compartilhar a
nós estamos conscientes da importância do multiculturalismo mesma percepção quando falam dos 99 nomes de Alá? Reconhecer
e dos perigos do imperialismo, precisamos estar igualmente apenas a unicidade do Divino é suprimir, ou não compreender, a
conscientes da importância da diversidade religiosa e dos pe­ plena realidade do Divino.
rigos do absolutismo religioso. Se insistirmos muito simples­ Isso significa que há muitas vozes para o misticismo único não apenas
mente que há um único misticismo, podemos nos esquecer de em virtude das limitações humanas — isto é, porque só podemos falar
que estamos sempre falando desse único misticismo com uma uma língua de cada vez —, mas também pela riqueza divina — isto é,
voz religiosa ou cultural particular. E assim podemos acabar o Divino contém e transborda diversidade. Portanto, não é que cada mís­
impondo, inconsciente e não-intencionalmente, nossa voz às tico esteja limitado por sua própria linguagem; mas o Divino também
outras vozes, ou tornando-a superior a elas. Ao usarmos uma necessita, por assim dizer, dessas limitações de modo a encontrar expres­
voz ou linguagem cristã, por exemplo, para descrever o “mis­ são para as diversas diferenças que ele contém. O Transcendente nunca
ticismo cristão” podemos omitir ou suprimir a experiência pode ser concentrado numa unidade simples ou regular. O Deus único é
budista de Anatta ou não-eu. E podemos fazê-lo simplesmente muitos (ou, para os cristãos, pelo menos três). E assim, como defende-

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

ram recentemente o teólogo cristão S. Mark Heim e o teólogo judeu da libertação têm algo a dizer aos teólogos das religiões e do diálogo. A
Jonathan Sacks, a própria natureza de Deus exige ou necessita das mui­ partir de sua própria práxis e reflexão teológica, os teólogos da libertação
tas religiões e misticismos3. Se Deus não pode ser um, igualmente não lembram que existem duas formas diferentes de misticismo. Além do
podem sê-lo o misticismo ou a religião. (Ou, como afirma Heim, se os conhecido “misticismo de silêncio”, que é o que geralmente os especia­
cristãos crêem na Trindade, devem crer também na necessidade de plu­ listas têm em mente quando falam de experiência mística, há também o
ralismo religioso)4. Uma das mais desafiadoras afirmações do valor e “misticismo de serviço”. É justamente esse misticismo de serviço que
necessidade dos muitos misticismos dentro do misticismo único foi feita nos capacitará a permanecer conscientes e desafiados pela unidade mís­
por Raimon Panikkar, muitos anos atrás: tica e pelas diferenças místicas entre as religiões. Primeiramente vou
esclarecer o que estou falando.
Não é que existam, simplesmente, diferentes caminhos que conduzem ao
pico, mas que o próprio cume desmoronaria se todos os caminhos desa­
O misticismo de silêncio
parecessem. O cume é, num certo sentido, o resultado dos muitos aclives
que levam a ele... Não é que essa realidade [o Divino Mistério] tenha É isso que geralmente associamos ao misticismo— silêncio, afas­
muitos nomes, como se houvesse uma realidade exterior aos nomes. Essa tamento do mundo, retiro para os recessos do coração, contemplação.
realidade é os muitos nomes e cada nome é um novo aspecto5. Essa é a convicção que encontramos em todos os místicos — que a
Realidade que estão experimentando ou buscando pode ser encontra­
da somente no silêncio; embora nossa experiência com ela comece
A teologia da libertação: dois tipos de misticismo pela linguagem, o Divino está além de toda linguagem.
E assim temos as muitas práticas místicas que nos instigam a
Portanto, como podemos afirmar e buscar o misticismo único den­
parar de falar, sim, até mesmo a parar de pensar: zazen, oração con­
tro das muitas vozes místicas de um modo tal que possamos respeitar as
centrada, raja yoga, contagem da respiração, concentração, o Pai-
verdadeiras diferenças entre as vozes e as verdadeiras diferenças dentro
nosso, a Namu Amida Butsu, o rodopiar do dervixe. Todos esses
do Divino? Certamente é necessário o reconhecimento intelectual de que
exercícios buscam desligar, por assim dizer, o fluxo constante de
nossas diferenças não vão desaparecer e que temos muito a aprender
palavras e pensamentos que enchem nossas bocas e mentes; eles ten­
com elas. Mas como colocar em prática essa afirmação intelectual? Ou
tam nos levar para além do pensamento discursivo até aquele reino
como podemos manter um diálogo entre os místicos de diferentes reli­
onde apenas “somos” e onde podemos sentir o que é simplesmente
giões de modo que a unidade que sentimos entre nós nunca absorva nem
ser. Pois é nesse silêncio que podemos ouvir a voz silenciosa do
minimize nossas reais diferenças? É aqui que eu acredito que os teólogos
Mistério, o que o ibn-Arabi chama de “o verdadeiramente Real”.
Mesmo quando tais práticas místicas ou contemplativas fazem
3. S. Mark H eim , The Depth ofRiches: a Trinitarian theology o f religious ends,
Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 2001. Part Three. Jonathan uso de palavras, é para chegar além delas. Esse é o caso dos koans
S a c k s , The dignity o f difference: how to avoid the clash o f civilizations, New York, Zen, jogos de palavras que pretendem, qual pequenas peças de dina­
Continuum, 2002, cap. 3. mite, explodir e desmantelar nosso modo usual de pensar. Mas o
4. The Depth o f Riches, 167.
5. Raimon P anikkar , The unknown Christ ofHinduism, Maryknoll, Orbis Books,
mesmo se aplica aos mantras, ou à “palavra sagrada” na oração de
1981, rev. ed. 24, 19. concentração, ou às repetições do Pai Nosso — nós repetimos as

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

palavras de modo a alcançar um ponto no qual já não pensamos no Muitas das pessoas que correm para salvar as milhões de crianças
seu significado, mas sentimos ou somos o que elas significam. Em que estão a ponto de cair no poço não identificam, necessariamente,
todas essas práticas nós buscamos ouvir os “sons do silêncio”. essa voz do Divino; elas simplesmente a sentem e agem. Mas quando
Por meio de tão diferentes práticas do misticismo de silêncio nos tomamos conscientes dela e tentamos nomeá-la, estamos em contato,
somos capacitados a sentir ou nos conscientizar do primeiro ingre­ sugiro, com o “misticismo único” nas muitas “vozes dos sofredores”.
diente da experiência mística de que falei antes: sentimo-nos unidos Falando pela teologia da libertação, Edward Schillebeeckx con­
a, parte de, ou unos com a Realidade que nos fundamenta, que nos dá cordaria, creio eu, com Mencius. Também ele descreve a experiência
sentido, que nos revela o quadro maior de que fazemos parte. E por mística contida no serviço. O que Mencius chama de “mente que não
meio de tais experiências do “fundamento do nosso ser” (que os pode suportar o sofrimento alheio”, Schillebeeckx descreve como “ex­
budistas, em sua linguagem realmente diferente, chamam de “infun- periências negativas de contraste”. Com essa expressão um tanto desa­
damentação de nosso inter-ser”), nós tocamos e somos tocados por jeitada, ele identifica aquilo que considera uma experiência universal­
urna Paz interior, sólida, que pode nos sustentar em meio à mais vio­ mente verificável em todas as culturas: diante do espectro do sofri­
lenta ou ameaçadora tempestade da vida. mento causado pela negligência, malícia e exploração humanas— como
se pode ver no rosto de uma criança faminta ou em um rio poluído —
O misticismo de serviço a maioria dos seres humanos reage a tais experiências negativas com
Para explicai* o que os teólogos da libertação entendem por “misti­ uma resposta de contraste: gritam “Não!”. É a sensação espontânea,
cismo de serviço”6, deixem-me beber de urna fonte antiga e de outra explosiva, inegável de que se está sendo chamado a resistir, a fazer
contemporânea— uma confuciana e outra cristã. A conhecida ilustração algo. No sofrimento dos outros somos chamados por algo maior que
do filósofo confuciano Mencius nos pede que imaginemos uma criança nossa própria vida e preocupações. Pois, como continua a descrever
sentada à beira de um poço. No momento em que estamos passando, Schillebeeckx, o “não” que nos sacode em seguida nos leva a um tipo
vemos que a criança perdeu o equilíbrio e está a ponto de cair dentro do de “sim” à ação ou esforço necessário para aliviar tal sofrimento. Não
poço. Imediatamente, espontaneamente, sem pensar, corremos até ela e somos apenas tocados, somos chamados a agir — mesmo quando não
a agarramos; tudo dentro de nós se agita e se volta para salvá-la. O que sabemos o que fazer, mesmo quando a situação parece sem esperança.
sentimos, diz Mencius, é o que todos os seres humanos sentiriam — ou Mais uma vez, existe uma força, uma voz, uma presença compartilha­
pelo menos a grande maioria da humanidade sentiria. Quando encontra­ da que nos fala ou nos toca em tais chamados a servir, tão certo como
mos um outro ser humano sofrendo ou a ponto de morrer, algo nos cha­ o faz nos momentos de meditação silenciosa.
ma, nos solicita, age por meio de nós para ajudar. Mencius chama a isso Mas observem: nesse misticismo de serviço, nós não estamos
de “mente que não pode suportar sofrimento alheio”7. Eu chamo de voz apenas engajados em ações que resultam da contemplação; não esta­
do Divino, ou Espírito ou Fonte que nos une a todos e fala, silenciosa mos apenas “repassando os frutos da contemplação” (contemplata
mas vigorosamente, nos sofrimentos e necessidades dos outros. tradere, como dizem os dominicanos). Antes, estamos engajados na
contemplação no momento exato em que agimos e respondemos às
6. Tirei essa expressão do recente livro de Aloysius P ieris, The mysticism o f
vítimas sofredoras desta terra. Estamos contemplando em nossas ações
senáce, Tulana, Sri Lanka, Tulana Jubilee Publications, 2000. de serviço e através delas (contemplado in actione, como dizem os
7. M encius 2A, 6. jesuítas). Essa ação é contemplação.

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

E quanto mais agimos, ou quanto mais servimos, mais profunda é silêncio e a do serviço ■— não são apenas duas maneiras diferentes de
nossa contemplação, mais rica é nossa percepção do Divino. Dois au­ fazer a mesma coisa. Não são apenas duas práticas distintas que dão os
tores (e amigos) que me ajudaram a compreender isso são, interessan­ mesmos frutos, a mesma consciência e conhecimento do Divino. An­
temente, os jesuítas Aloysius Pieris, do Sri Lanka, e Jon Sobrino, de El tes, essas duas práticas místicas diferentes nos colocam em contato
Salvador. Ambos são ativistas, teólogos e, devo acrescentar, místicos. com diferenças reais dentro do Divino, meios verdadeiramente distin­
Eles descrevem como a opção pelos marginalizados, lutando com os tos pelos quais o Divino “é” e “age”; meios verdadeiramente distintos
pobres, aprendendo e sofrendo com eles, pode se tomar o contexto, ou pelos quais o Divino se encontra com nossa realidade humana; modos
“a sala de meditação” na qual sentimos a presença e o poder do Espí­ de agir verdadeiramente distintos aos quais o Divino nos chama.
rito. Testemunhar a coragem e a esperança de pessoas que não têm Isso significa que se adotarmos apenas uma dessas práticas,
motivo para esperar; encontrar os horrores da morte e do martírio e correremos o risco de perder algo importante, algo essencial, na ex­
depois sentir o poder da vida que pode resultar de tal morte; achar-se periência e na consciência místicas. Creio que as diferenças de que
“esgotado” e sem energia e capacidade para prosseguir e ver-se estou falando correspondem aos meios pelos quais o Divino Mistério
revitalizado num ritual religioso ou numa festa onde as pessoas cantam nos fundamenta individual e pessoalmente e nos une social e politi­
e dançam em meio à opressão e a morte; sentir-se chamado e energizado camente; ou os meios pelos quais o Divino nos chama ao deserto ou
pelas “perigosas lembranças” de amigos que morreram na luta e cuja ao mercado. A mesma Presença nos fala distintamente no silêncio
memória não nos permite desistir — tudo isso são meios pelos quais a tranqüilo da meditação e oração, de um lado, e no complexo e muitas
presença e a realidade de Algo Maior toma-se real em nossa vida. vezes sangrento serviço às pessoas e à terra sofredoras, de outro. Os
Portanto, se no misticismo de silêncio nós ganhamos consciên­ místicos tanto precisam de silêncio quanto precisam servir. Se per­
cia Daquilo que nos fundamenta e nos dá paz interior e pessoal, no manecerem apenas “sentados” ou se apenas “servirem”, não estarão
misticismo de serviço temos a oportunidade de sentir e conhecer verdadeiramente abertos à única Origem de todo misticismo.
Aquilo que nos une e chama a cuidar dos outros e amá-los. No mis­ Portanto, os teólogos da libertação incitam seus colegas envolvi­
ticismo de silêncio eu sinto que sou um com o Divino; no misticismo dos no diálogo inter-religioso a equilibrar o amplo diálogo de silên­
de serviço sinto que sou um com você, no Divino. cio e oração com um diálogo igualmente amplo de serviço. Nesse
diálogo de serviço, pessoas de diferentes tradições não apenas se
Os frutos deste diálogo sentam juntas em meditação; elas agem juntas. Essa ação começa
primeiro pela identificação das formas de sofrimento — humano e
Para concluir, vou ressaltar quais são alguns dos ñutos que cada também ecológico — que estão clamando a todos nós. Quem é ou
lado pode colher desse diálogo sobre o misticismo feito por teólogos onde está, em nosso próprio contexto ou em nosso próprio mundo, a
das religiões e teólogos da libertação. criança que está a ponto de cair no poço? Ao ouvirmos juntos o cha­
mado das vítimas do mundo, todos nós, de nossas diferentes tradi­
O que os teólogos das religiões podem aprender ções religiosas, deliberaremos juntos sobre o que pode ou deve ser
Ao apontar para o misticismo de serviço, os teólogos da libertação feito. Em seguida, arregaçaremos as mangas e agiremos juntos, luta­
fazem lembrar aos teólogos das religiões um modo realmente diferente remos juntos enquanto tentamos ouvir e trabalhar com os que estão
de encontrar e conhecer o Divino. Essas duas práticas místicas — a do sofrendo por causa da injustiça. Nessa ação e luta conjuntas, nos

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

tomaremos conscientes dos laços que nos unem como irmãos e ir­ aprender sobre o Reino de Deus com os budistas e os hindus8. A
mãs; ouviremos a Voz que nos chama pelas vozes das muitas vítimas. práxis e a teologia da libertação devem ser uma práxis e teologia
Mas, nesse diálogo inter-religioso de serviço, também nos toma­ inter-religiosas.
remos conscientes de nossas diferenças. É justamente no serviço, ao Em relação ao foco desse ensaio, os teólogos do pluralismo re­
tentar atender às vozes das vítimas, que nos depararemos com as ligioso lembrarão a seus irmãos e irmãs liberacionistas que se o mis­
reais diferenças em nossas tradições religiosas. Pois embora haja uma ticismo de silêncio deve sempre deixar espaço para o misticismo de
única Voz nos chamando a servir, cada um de nós — budistas, cris­ serviço, é igualmente verdadeiro que o nosso serviço deve deixar
tãos, muçulmanos, hindus, judeus — terá opiniões diferentes sobre amplo espaço para o silêncio. Ele nos alimenta e nos conecta com o
como responder ao sofrimento, como confrontar a injustiça, como Divino de uma maneira importante e diferente do que o serviço o faz.
lidar com o ódio e a violência, como mudar a sociedade e o mundo. Enquanto o serviço nos permite sentir a presença de Deus no alcance
Mas, conforme minha limitada experiência, essas diferenças reais ao nosso próximo, o silêncio fornece o espaço para que sintamos a
entre nós geralmente tomam-se mais complementares que contradi­ Deus como o que fundamenta e sustenta tanto o nosso ser como o
tórias. Nós aprendemos com nossas diferenças. Por quê? Porque o nosso fazer. E, como já se disse muitas vezes, os ativistas necessitam
que nos anima e guia nesse diálogo inter-religioso de serviço não é o dessa fundamentação e sustento para que possam perseverar no ár­
desejo de provar que nossa opinião é mais verdadeira ou melhor que duo, doloroso e muitas vezes infrutífero trabalho de transformação
a do outro, mas como todos nós podemos ajudar as vítimas que nos desse mundo e de suas estruturas.
uniram — como podemos ajudar as crianças que estão a ponto de Mas há uma outra razão pela qual os ativistas envolvidos na práxis
cair no poço. Por isso, quanto mais servimos juntos, mais nos toma­ do serviço de libertação também necessitam da práxis do silêncio
mos conscientes de nossas diferenças, e mais aprendemos com elas. solitário. Se o serviço deve ser verdadeiramente libertador e transfor­
Pois as diferenças não apenas têm uma origem comum no “Misticis­ mador de todos — vítimas e opressores — ele precisa ser alimentado
mo único” que nos anima a todos; elas também têm um propósito pelo silêncio. O ponto aonde quero chegar está contido numa adver­
comum nas muitas vozes das vítimas que estamos tentando alcançar tência de Thich Nhat Hanh, um praticante do silêncio, aos teólogos
em amor e compaixão. da libertação cristãos:

Na América Latina, os teólogos da libertação falam da preferência ou


O que os teólogos da libertação podem aprender da “opção” de Deus pelos pobres, os oprimidos, os marginalizados.
Mas não creio que Deus queira que tomemos partido, mesmo dos po­
Mas o diálogo, e seus benefícios, tem dois lados: se os teólogos
bres... Deus aceita tanto o rico quanto o pobre, e deseja que eles se
da libertação podem desafiar seus colegas envolvidos no diálogo inter-
entendam um ao outro, que compartilhem seu sofrimento e felicidade
religioso a não negligenciar o misticismo de serviço, também eles,
um com o outro, e trabalhem juntos pela paz e justiça social.
por sua vez, serão desafiados. Em um outro ensaio tentei expor um
dos mais urgentes desses desafios: que os teólogos da libertação e os
8. Paul F. K n it ter , Un diálogo necesario: entre la teología d e la liberación y
ativistas cristãos se lembrem de que o trabalho de libertação é grande la teologia d e i pluralismo, em Por los muchos caminos de Dios: desafíos del
demais para uma única religião, que é uma tarefa que exige a coope­ pluralismo religioso a la teología de la liberación, Quito, Centro Bíblico Verbo
ração de muitas tradições, e que há muito que os cristãos precisam Divino, 2003, 92-111.

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Pluralismo e libertação Religiões, misticismo e libertação

Nós não precisamos tomar partido. Quando agimos assim nós interpre­ Hanh quer dizer por “olhar profundamente”. Essa unidade tanto com
tamos mal a vontade de Deus. Sei que é possível que algumas pessoas as vítimas como com os opressores é “vista” ou sentida em silêncio e
usem essas palavras para prolongar a injustiça social, mas isso será um oração; ao sentirmos essa unidade nós certamente alcançaremos e apoi­
abuso do que estou dizendo. Nós temos de encontrar as verdadeiras aremos as vítimas, mas o faremos com amor e compaixão por todos,
causas da injustiça social, e, quando encontrarmos, não devemos con­ sem a raiva nascida do ódio — sem violência.
denar certos tipos de pessoas. Devemos perguntar: “Por que a situação Não posso dizer que compreendo profundamente o que tudo isso
dessas pessoas permaneceu assim?” Todos nós temos o poder do amor significa. Mas estou certo de que há muito a ser aprendido com essa
e da compreensão. Essas são nossas melhores armas. Qualquer reação junção do misticismo de silêncio com o misticismo de serviço, que
dualista, qualquer reação motivada pela raiva, só irá piorar a situação. faz parte de um diálogo maior entre a teologia da libertação e a teo­
logia das religiões. Que esse diálogo continue.
A não-violência não significa ausência de ação. Não-violência signi­
fica que agimos com amor e compaixão9.

Thich Nhat Hanli acrescenta: “Quando observamos em profundi­


dade e fazemos disso uma prática, encontramos discernimento sobre o
que fazer e o que não fazer para que a situação mude. Tudo depende do
modo como olhamos”101. Essa “prática de olhar com profundidade” é o
misticismo de silêncio, a prática que deixa claro para nós — profunda­
mente — que estamos todos fundamentados e enraizados no Divino,
que “Deus aceita tanto o rico quanto o pobre”11 e que, portanto, esta­
mos unidos ou ligados aos opressores tanto quanto às vítimas. O fato
de sabermos disso, de sentirmos isso, afetará o modo como cuidamos
do nosso misticismo de serviço. Paradoxalmente, nos chamará à opo­
sição, mas não a tomar partido; a resistir aos opressores, mas também
a aceitá-los. Ou, como me disse um Mestre Zen, em 1987: “Você só
poderá deter os esquadrões da morte em El Salvador quando se der
conta de sua unidade com eles”12. “Dar-se conta da unidade” é o que

9. Living Buddha Living Christ, N ew York, Riverhead Books, 1995, 79-81.


10. Ibid., 80.
11. Loc. cit.
12. Em um retiro com o Mestre Zen B em ie Glassman, 1987. Tentei refletir
mais sobre as conexões entre a sessão Zen e a ação libertadora em El Salvador
numa conversa com o Mestre Zen e estudioso Masao Abe, em: “Spirituality and
Liberation: A Buddhist-Christian Conversation”, Horizons 15/2 (1988) 347-364.

104 105
Crista na ciranda de Asherah, Isis e
Sofia: propondo novas metáforas
divinas para um debate feminista
do pluralismo religioso
Lu iza E. T o m ita

Introduzindo o debate

O debate sobre o pluralismo religioso na América Latina parece-


me extremamente relevante, tendo em vista o fato de vivemos num
continente multicultural e multirreligioso. Em nivel mundial, percebe-
se que a intolerância religiosa, ao lado dos interesses econômicos e
políticos, é um dos grandes motores que geram a violência, causando
a morte de milhares de inocentes, principalmente no Terceiro Mundo.
John Hick (2000) afirma que a discussão sobre um cristianismo capaz
de dar respostas para crentes e não-crentes num mundo conturbado por
guerras, violência e injustiça social centraliza-se na discussão sobre o
significado de Jesus Cristo hoje e a doutrina da encarnação. As teólo­
gas feministas da libertação, entretanto, têm ido além: elas não só dis­
cutem o tema da Cristologia, mas estão discutindo sobre o problema do
monoteísmo e sobre as metáforas patriarcais utilizadas na construção
da imagem de Deus. Estes são temas cujo debate é extremamente ur­
gente se queremos transformar a teologia e as estruturas injustas que
geram a exclusão, a miséria e a violência, impossibilitando a vinda do
Reino entre nós.
Entre as teólogas feministas a discussão sobre o pluralismo con-
centra-se menos ao redor das diferenças entre as religiões, mas ao
redor dos dogmas que têm excluído as mulheres das instâncias de
decisão e poder nas igrejas cristãs. Além disso, alguns desses dogmas

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Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

também têm marginalizado homens e mulheres de diferentes raças e importante escrito que fez uma ampla crítica ao sexismo no cristianis­
culturas, em nome de um Cristo branco, de traços europeus. Os limi­ mo foi elaborado por Mary Daly e publicado em 1968 com o título The
tes definidos pelas religiões não são demarcadores de águas para as Church and the Second Sex3. Este livro marcou o início de uma grande
mulheres, uma vez que nosso debate teológico encontra-se exatamente discussão acadêmica sobre o sexismo na religião. Assim, as teólogas
no seio dos dogmas patriarcais androcêntricos e sexistas. Assim, os cristãs perceberam que sua luta era comum: lutar contra as estruturas
dogmas estão sendo analisados e criticados e novas formulações es­ patriarcais da tradição judaico-cristã. Essa consciência fez com que, des­
tão sendo propostas. Este debate tem irmanado as teólogas feministas de o início, se unissem as teólogas cristãs — católicas e protestantes —
cristãs e não cristãs que consideram o sexismo nas religiões uma causa e, mais tarde, as teólogas judias, nessa odisséia teológica.
comum contra a qual devemos nos lançar, coletivamente. O pressuposto da Teologia Feminista é que os dogmas e a sistema-
Na América Latina, o diálogo inter-religioso já é assumido e vivido tização cristã foram estabelecidos por varões ocidentais, brancos, que
pelas mulheres, especialmente por aquelas que fazem uma reflexão refletiram e articularam o sentido e o valor de suas experiências como
com base em uma orientação feminista1. Neste particular, Ivone Gebara experiências de todos os homens e todas as mulheres. Não levaram
(2003) afirma que as mulheres latino-americanas têm vivido um proces­ em conta que as experiências das mulheres e das pessoas de outras
so diferente, original e bastante rico2. Porém, ela acredita que esse pro­ cores e raças não estavam aí contempladas.
cesso ainda carece de divulgação oficial no mundo acadêmico teológico.
As teólogas, incluindo aqui as biblistas, descobriram a dimensão A Cristologia no debate feminista
patriarcal, sexista, da Tradição Cristã há já bastante tempo, porém
uma obra do final do século XIX merece destaque, por ser hoje con­ A Cristologia é um dos tratados teológicos que mais tem desper­
siderada um marco na luta das teólogas feministas, em todo o mundo. tado o interesse das teólogas feministas. Centralizando a salvação na
Em meio às lutas sufragistas nos Estados Unidos, Elisabeth Gady figura de um varão, as cristologias da reconciliação4*têm se apresenta­
Stanton percebeu que textos bíblicos eram utilizados como arma do como sério problema para a emancipação das mulheres. Mas não é
política para subjugar as mulheres. Reuniu um determinado número apenas para as mulheres que a centralização da liderança, da redenção,
de teólogas biblistas e, juntas, fizeram uma leitura feminista da Bíblia. num homem, branco, representa um obstáculo. Muitos povos foram
O livro foi publicado em 1895 e chamou-se The Woman ’s Bible, cujo colonizados, humilhados, feridos, dizimados, em nome de um cristia­
segundo volume foi publicado em 1898. O fato foi inédito e gerou nismo fundamentado numa cristologia da reconciliação. Essa cristolo­
muita crítica, mesmo por parte das mulheres sufragistas, pois essa gia não representa um problema apenas pelo fato de postular a reden­
era ainda uma época em que os textos bíblicos dificilmente podiam ção por meio de um varão, mas também porque implica uma teologia
ser interpretados e/ou criticados. da cruz. Ao justificar o sofrimento humano nesta terra, na esperança de
Logo após o término do Concilio Vaticano II, as teólogas do hemis­ uma recompensa após a morte, prega um cristianismo de passividade,
fério norte encheram-se de esperança por mudanças em relação ao papel de resignação, de submetimento, de autonegação. Cárter Heyward
que desempenhavam, principalmente na Igreja católica. O primeiro
3. O título é uma alusão à antológica obra de Simone de Beauvoir, O Segundo
1. Sobre este assunto, conferir meu artigo no livro Pelos muitos caminhos de Sexo, publicada em 1949.
Deus — Desafios do pluralismo religioso à Teologia da Libertação, 2003. 4. Trata-se da Cristologia que afirma a encarnação de Deus na figura de um
2. Cf. o mesmo artigo no livro citado. varão para nos salvar com sua morte reparadora.

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Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

(1981) afirma que esta é uma teoria manipulada pelos privilegiados repressão deste símbolo feminino ocorreu mediante uma patriarcali-
— os que estão acima, os representantes dos homens brancos e ricos — zação desses temas, primeiro no judaísmo e depois no cristianismo,
para simbolizar o império de tudo o que está estabelecido. Assim, jus­ durante os cinco séculos em que o movimento cristão se transforma
tifica e bendiz as estruturas desiguais do capitalismo, assim como o na religião imperial do império romano. Duas cristologias alternati­
racismo, o sexismo, o heterossexismo, o anti-semitismo. vas teriam se desenvolvido à margem da Cristologia clássica: a
A desconstrução desta Cristologia tem sido feita por teólogas andrógina6 e a do espírito7. Estas tampouco deram respostas adequa­
feministas já há mais de trinta anos, na proposta de oferecer fórmulas das para o descobrimento de novas possibilidades, em especial de
cristológicas que contribuam para uma teologia libertadora. possibilidades para as mulheres. Em vista disso, Ruether (1993, 101-
A Teologia Feminista percebe um desequilíbrio na tradição cris­ 118) propõe o reencontro com o Jesus dos evangelhos sinóticos, com
tã, resultante de uma construção hierárquica sexuada que se manifes­ sua mensagem e práxis, para a busca de uma nova humanidade, mulher
ta tanto na doutrina de Deus Pai como patriarca divino, como tam­ e homem. Neste sentido, o importante, para ela, é o relacionamento
bém na noção de Jesus como o único filho de Deus. Para Mary Daly, dinâmico, entre redentor e redimido, cuja comunidade cristã conti­
urna grande parte da doutrina cristã sobre Jesus tem sido docética, nua a identidade de Cristo, como videira e ramos, a pessoalidade
significando que a humanidade de Jesus nunca foi levada a sério, crística se revelando em nossas irmãs e irmãos. Nesse sentido, Cristo,
como pessoa livre, de extraordinário caráter e missão, que desafiou a humanidade libertada, não está confinado a uma perfeição estáti­
as crenças e as leis convencionais. Assim, as fórmulas cristológicas ca de uma pessoa há dois mil anos. Pelo contrário, a humanidade
que estão próximas de um tipo de idolatria sobre a pessoa do Cristo redentora vai à nossa frente, conclamando-nos para dimensões ain­
(cristolatria) devem ser rejeitadas. Daly (1973) acredita que a idéia da não completadas da libertação humana.
da encarnação divina em um único ser humano e do sexo masculino Rita Nakashima Brock (1992), avançando além de uma compreen­
dificulta, na consciência religiosa, uma compreensão mais ampla da são unilateral do poder, desenvolve também uma cristologia não mais
presença divina em todos os seres humanos. centrada em Jesus, mas na relação da comunidade como o centro do
Outras críticas procuram resgatar a mensagem do anúncio mes­ cristianismo que se faz pleno e tem poder de cura. Neste sentido, Cristo
siânico de Jesus de Nazaré e suas concepções sobre o reino. Rosemary é o que ela chama Crista/Comunidade8*.A Crista/Comunidade é uma
Radford Ruether (1993)5 parte do princípio que a Cristologia afirma­
6 . As cristologias andróginas vêem o Cristo como representante da nova huma­
da no Concilio de Calcedonia não é o resultado de uma evolução nidade que unifica homem e mulher. Baseadas na tradição mística, elas vêem a
consistente a partir da compreensão hebraica de Messias, mas repre­ cisão entre masculinidade e feminilidade superada num plano espiritual na huma­
senta um repúdio aos elementos-chave da esperança messiânica ju ­ nidade redimida.
7. As cristologias do espírito sustentam que o Cristo ressurreto continua sendo
daica. Ela lembra que esta reunia duas idéias: a do rei messiânico de
revelado através de pessoas possuídas pelo espírito, que podem ser homens ou mulheres.
uma nova era de redenção e a da sabedoria divina que fundamenta e 8. A autora utiliza o termo “Crista”, recordando que pela primeira vez ouviu
revela o cosmo, unindo o humano ao divino. E é surpreendente que, esse termo referido a um crucifixo na Catedral de São João, o Divino, em Nova
York. O Cristo do crucifixo, etiquetado “Crista”, era feminino. Ao usar Crista em
em suas origens remotas, pré-hebraicas, essas duas idéias apresenta­
vez de Cristo, quer impedir que haja uma só identificação de Cristo com Jesus. Ao
vam uma figura feminina como protagonista central. Entretanto, a combiná-lo com comunidade, quer desviar o foco de salvação de indivíduos heróicos,
homens ou mulheres, afirmando sua convicção sobre a santidade da comunidade
5. Editado em inglês sob o título Sexisrn and God-Talk, em 1984. (Brock: 1992, 52).

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Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

realidade vivida, expressa em imagens relacionais, onde o heart9 se gioso, como nos mostra o trabalho que teólogas latino-americanas
manifesta. Heart— o ser em estado de graça original — é o nosso guia estão realizando com e nas comunidades afro-americanas e indígenas101*.
aos territórios do poder erótico. Esta realidade dentro do ser conectado Nesse sentido, não apenas recupera a visão das mulheres, mas também
significa que este não pode ser localizado em um único indivíduo. a de povos e raças oprimidos, tanto do ponto de vista económico-
Portanto, o cristológico é aquele que verdadeiramente revela a social como étnico, racial. A inter-relacionalidade entre as pessoas na
encarnação divina e o poder salvífico na vida humana e deve residir no comunidade é colocada em destaque; a comunidade é salvífica, nas
estar conectado, em comunidade, e não em indivíduos únicos, isola­ religiões afro-americanas. O poder é mais partilhado e um grande
dos. Assim, ela repudia a idéia do salvador-herói que desafia as auto­ respeito aos velhos, às crianças e a toda a natureza é observado.
ridades estabelecidas e obedece ao Pai (Brock: 1992, 52-53). Hoje o debate sobre o pluralismo teológico abre-se ainda para duas
Para evitar o eristocentrismo e propor uma leitura feminista da questões importantes: o conceito de salvação e a questão do monoteísmo.
Cristologia, Ivone Gebara (1994) propõe Maria como Salvadora, ao lado
de Jesus, afirmando a possibilidade de mulheres salvadoras, ao lado de
homens salvadores. Nesse sentido, a pessoa do salvador(a) se identifi­ A salvação como cura e doação de vida
caria por valores e qualidades buscados nos diferentes contextos e épo­ A Teologia da Salvação, por meio de uma Cristologia da Recon­
cas. Como uma realidade dinâmica, estaria sempre em mutação, em­ ciliação, transformou Jesus de Nazaré, o profeta escatológico dos es­
bora conserve as características de alguém de certa forma “superior”, critos neotestamentários, em Deus que se fez homem para salvar-nos
capaz de responder às diferentes necessidades históricas dos fiéis. por sua morte reparadora. Em tomo desse tema desenvolveu-se uma
O escândalo da Cristologia, para a maioria das feministas, con­ série de mitos sobre o pecado e a culpa que estariam nas origens da
siste no fato de se promover uma figura masculina de Deus, tendo as humanidade. E grande parte dessa culpa foi atribuída à mulher, Eva, a
mulheres de se confrontar com a figura de um homem como pessoa grande tentadora. Mas a releitura bíblica e a antropologia têm nos mos­
paradigmática. A simples superação da masculinidade do Jesus his­ trado, mediante uma hermenêutica da suspeita e uma leitura sociológi­
tórico como um fato contingencial, a relativização da linguagem e a ca, que o mito da Queda, nos capítulos 2 e 3 do livro do Gênesis, pode
ênfase na mensagem de Jesus como mensagem revolucionária pare­ estar na passagem de uma sociedade tribal para uma sociedade monár­
cem não ser suficientes para superar as cristologias tradicionais. Todos quica” , tributária e eminentemente patriarcal. Se acrescentarmos a essa
os suportes simbólicos da Cristologia precisam ser reinterpretados releitura a perspectiva de gênero, é fácil perceber que, no sistema pa­
(Ruether: 1998, 85). O repúdio às figuras de heróis e heroínas deve triarcal, as mulheres estão no nível mais baixo da escala hierárquica. E
ser implementado. Esse repúdio, concentrando a idéia salvífica na é por isso que o mito mostra a primeira mulher, Hawah (Eva), como a
relacionalidade, na comunidade, pode afastar-nos de governos do tipo primeira culpada pela desobediência e, assim, a mais castigada por
autoritário, que concentram a idéia de salvação em uma figura única. Javé: além de partilhar do sofrimento de seu companheiro, Adam (Adão),
Além disso, está mais próximo de um diálogo com o pluralismo reli-
10. Conferir no meu artigo publicado pela ASETT-AL, já referido.
9. Heart, em inglês, significa coração. A autora explica que se trata de uma 11. Os capítulos 2 e 3 de Gênesis são de autoria do Javista, isto é, da época
metáfora para o se lf humano e sua capacidade para a intimidade, que envolve a do rei Salomão, portanto, se situa no início do período monárquico, em Israel, onde
união do corpo, do espírito, da razão e da paixão através do conhecimento pelo o sistema tributário passa a vigorar com mais ênfase, penalizando os camponeses
coração, que é o saber mais profundo e completo (Brock: 1992, XIV). com pesados tributos.

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Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

deverá sofrer em sua gravidez (isto é, em sua maternidade — conside­ salvador(a), porque não aceitamos mais a teoria de Agostinho sobre
rada pela cultura patriarcal sua mais sagrada missão) e ser dominada o pecado original13. Este mito tem sido desconstruído pela herme­
pelo homem (Gn 3,16). Dessa forma, conclui-se que a subordinação nêutica feminista como sexista, classista, patriarcal e militarista. En­
das mulheres na sociedade patriarcal judaica é legitimada pela culpa- tretanto, o pecado adquire outra face não mais “original”, mas social,
bilização da primeira mulher. Outros mitos de criação nos mostram sistêmica, segundo algumas teólogas como Ruether (1993), visto que
que não é somente na cultura judaica que as mulheres foram culpabili- desfigura e destrói as relações humanas. Esse pecado tem a ver com
zadas, para melhor ser dominadas. Na cultura grega, o mito de Pandora a preocupação exacerbada na centralização de poder e prestígio trans­
também culpabiliza as mulheres pela entrada do mal na humanidade. formando o outro (ser, grupos, povos) em mero objeto. Dessa forma,
Existem mitos de origem africana e indígena que também culpabilizam o pecado não é um ato ocasional, isolado, mas perpassa tudo o que o
as mulheres por algum tipo de mal feito à humanidade e onde elas ser humano faz. O pecado sistêmico, assim, tem a ver não apenas
são mortas para que o poder possa ser assumido pelos homens das com a exploração econômica, social e política, mas também com o
tribos. Exatamente como no mito babilónico de Tiamat e Marduc, sexismo. O sexismo é, pois, um problema sistêmico, centrado numa
que passa de guerreiro a monarca e, portanto, deus, ao eliminar Tiamat. relacionalidade distorcida que condiciona nossas identidades, antes
As inversões também não são raras: os elementos de poder e criação mesmo de nosso nascimento (Ruether: 1993). A maioria das teólogas
das mulheres freqüentemente tomam-se elementos de morte e des­ feministas, entre elas M. Daly, C. Christ, N. Goldenberg, acreditam
truição nos mitos, sejam eles da tradição grega, judaico-cristã, indí­ que o sexismo é a mais devastadora forma de opressão, a mais antiga
gena ou africana. Exemplifico com o mito de origem dos índios Kulina. e a mais profundamente enraizada na história humana. O pecado sis­
Nele, os homens (Tamaco e Quira) perseguem a mulher ancestral têmico mostra a interação de vários tipos de opressão, como a econô­
(Massosso), após terem matado seu filho. O leite da mulher transfor- mica, a racial, a de gênero, a heterossexual14, de uma forma que seus
ma-se, em sua vingança, em elemento de morte. Os homens a agar­ efeitos são interativos, com terríveis conseqüências.
ram e a matam, esmagam-na sob os pés e transformam seu corpo Assim, a salvação ou soteria adquire outro sentido para nós,
numa substância. Esta é injetada em seu próprio corpo que os faz mulheres. Não mais ligada a uma Cristologia da Reconciliação, mas
agora contra o pecado estrutural, pode ser um elemento de cura, de
adquirir extraordinário poder12. No mito bíblico, também há várias
elevação da auto-estima, de doação de vida, de acolhida no seio da
inversões: a mais escandalosa é aquela em que Adão dá a luz a Eva,
comunidade, enfim, um elemento relevante para a elaboração teoló­
a partir de um osso de seu corpo. O que é símbolo de poder e criação
gica. Aqui, a maioria das teólogas colocam ênfase no poder curativo
nas culturas ancestrais —■a gravidez/matemidade — torna-se símbo­
e doador de vida da comunidade. Brock (1992) acredita que a visão
lo de opressão, sofrimento e submissão para as mulheres, nas socie­
dades patriarcais. Na inversão relatada nos mitos, o homem adquire 13. Este pecado teria sido introduzido pela primeira mulher, Eva. Sobre o mito
o poder que, antes, era da mulher. da Queda e a teoria do pecado original, ler Elaine P agels, Adão, Eva e a Serpente,
A Teologia da Salvação tradicional não tem mais sentido para as Rio de Janeiro, Rocco, 1992.
14. Teólogas feministas como Mary Hunt, Cárter Heyward, Lisa Isherwood,
mulheres. Teólogas feministas afirmam que não precisamos de
Melissa Raphael e muitas outras estão apontando para o problema que a defesa da
heterossexualidade significa para a orientação homossexual de muitos homens e
12. Cf. Uma interpretação do mito kulina de Tamaco e Quira — monografia de mulheres que hoje estão reivindicando seus direitos, como homossexuais, na socie­
Lori Altmann para a disciplina de Hermenêutica — Univ. S. Leopoldo, RS, 2002. dade e nas igrejas.

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Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

feminista de cura, plenitude e espiritualidade deve salvar o cristianis­ a respeito do poder de fertilidade de Javé. Na vizinha Mesopotâmia,
mo de suas estruturas patriarcais, se a teologia cristã permanecer fiel no Egito e em Canaã, as deusas tinham vários nomes e grande prestígio
a seus princípios de igualdade de todos os seres humanos, em que a no meio do povo: Inana, Ishtar, Isis, Asherah. As mulheres eram reve­
comunidade se fundamente na justiça e na paz e o poder divino repre­ renciadas pelo poder divino representado pelo potencial reprodutivo
sente o amor em sua plenitude. de seu corpo. O surgimento do monoteísmo baniu para sempre as
A idéia da transformação da sociedade, da busca de justiça so­ deusas. Além disso, fez com que os detentores do poder religioso —
cial, está no cerne das teorias da maioria das teólogas feministas. os sacerdotes — começassem inevitavelmente a converter-se em uma
Ivone Gebara, por exemplo, afirma que, dentro do debate cristológico: elite. As mulheres foram totalmente alijadas do poder.
Para nós, mulheres, a identificação da divindade com o homem,
O importante é viver o pluralismo de nossas experiências salvíficas leia-se macho do ser humano, rejeita qualquer possibilidade de nossa
no cotidiano de nossa vida e resgatar os valores que nos ajudam de participação no sagrado, e foi isso que Mary Daly (1973) quis dizer,
fato a lutar por uma sociedade mais justa. Assim, o importante é res­ ao afirmar: “Se Deus é homem, o homem é Deus”. O monoteísmo
gatar o sentido da vida e dos valores hoje para nós, pois o grande masculino reforça a hierarquia social do domínio patriarcal por meio
desafio nos vem do presente e da necessidade de encontrar caminhos de seu sistema religioso de um modo que não ocorria com as imagens
viáveis para vivê-lo15. emparelhadas de Deus e Deusa. Deus é simbolizado de acordo com
a classe dominante patriarcal, acreditando-se que ele dirige diretamente
O monoteísmo: um golpe contra o poder divino das mulheres a essa classe de homens, adotando-os como seus “filhos”16.
A linguagem e o sistema simbólico têm sido importantes veículos
Outro tema relevante para o debate do pluralismo religioso é o
para a imposição da ideologia patriarcal mediante imagens masculi­
monoteísmo canalizado para uma imagem masculina de Deus. Este
nas de Deus. Sallie McFague (1982) já nos advertia que não se trata
parece ter sido o grande golpe contra o poder das mulheres, represen­
apenas do fato de a expressão “Deus pai” ser freqüentemente utilizada
tado pela crença nas divindades femininas de culturas ancestrais. O
para designar o divino, mas de toda a estrutura das relações divino-
aparecimento do monoteísmo no mundo hebraico coincide com a
humano e humano-humano ser entendida conforme um modelo
época do fortalecimento da monarquia, do militarismo e da cobrança
patriarcal. Carol Christ afirma que os símbolos não atuam apenas no
de pesados tributos. Em Israel, o monoteísmo foi representado pela
nível da racionalidade, mas em níveis da psique distintos daquela. Os
supremacia de Javé, que combateu deuses e deusas canaanitas para se
símbolos associados com importantes ritos, como o da morte, do
impor ao povo hebreu. Norman Gottwald (1986) chama esse mono­
matrimônio, não podem deixar de afetar as estruturas profundas ou
teísmo de monojavismo, Javé era a deidade que representava o poder
inconscientes das pessoas, mesmo que estes símbolos sejam rejeita­
do metal, abundante na região do Sinai. Ruether (1993) afirma que
dos em um nível consciente. Isso ocorreria especialmente em um
quando os hebreus vindos do Egito se estabeleceram em Canaã, Javé
momento crítico. Os sistemas simbólicos não podem ser rejeitados,
teve que combater Baal — e sua esposa Ashtoreth ou Astarte — , a
mas têm de ser substituídos. Se não houver substituição, a mente
deidade dos camponeses canaanitas. Essa luta entre deuses parece ter
voltará em momentos de crise, frustração ou derrota às estruturas
durado centenas de anos, pois os camponeses não se sentiam seguros

16. Ibid.
15. Entrevista: fevereiro 2003.

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Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

mentais habituais. As religiões centradas na adoração de um Deus tualidade centrada na Deusa é que as mulheres possam refletir a divin­
masculino criam “disposições de ânimo” e “motivações” que man­ dade na realidade corporificada de sua vida diária, incluindo as mu­
têm as mulheres em um estado de dependência psicológica dos ho­ danças e os processos do corpo com os quais a religião patriarcal tem
mens e da autoridade masculina que, ao mesmo tempo, legitimam a achado tão difícil lidar: a menstruação, o nascimento, a atividade se­
autoridade política e social dos pais e filhos nas instituições sociais xual, a menopausa, o envelhecimento, a morte. A Deusa é geralmente
(Christ: 1979). representada em um ciclo, sob várias formas, representando as três
A recuperação de imagens femininas da divindade na Bíblia teve fases do ser mulher: como jovem, como mulher madura/mãe, e como
repercussão, no fim dos anos 1970, com Phyllis Trible17, por meio de mulher velha/sábia. Essa concepção cíclica permite repensar a morte
uma interessante pesquisa, em que revelou o “útero de Deus” ou a como conseqüência da vida, em que as estações se sucedem. A morte
“compaixão que vem desde as entranhas” (rahamim), entre outras ima­ não é mais uma tragédia, quando se respeitam as várias fases da vida:
gens. A busca de Sofia/Sabedoria18, intensificada pelo trabalho teoló­ o nascer, o dar à luz, o morrer.
gico de Elisabeth Schüssler Fiorenza (1992; 1995), deu um grande Embora muitos grupos compreendam a espiritualidade centrada
impulso ao processo de se pensar a divindade a partir de figuras femi­ na Deusa como busca de sentido para sua vida pessoal e sua auto-
ninas. Sofia é a presença amorosa que inspira o Criador na aurora da afirmação, a espiritualidade feminista está geralmente conectada a um
criação (Pr 8,22-31) (Eclo 24,3-5). Ela brinca e se deleita com o povo compromisso social e ativismo político, de acordo com Ursula King.
(Pr 8,31), arma sua tenda no meio dele (Eclo 24,8) e o convida a amar As feministas espirituais acreditam que essa espiritualidade é impor­
e a viver a justiça (Sb 1,1). Ela tem um vínculo orgânico com a criação, tante não apenas para elas próprias, mas ainda mais para a derrubada
na imagem de árvores, pedras preciosas e perfumes (Eclo 24,12-19). da velha ordem social e a construção de uma nova. Trata-se de uma
Outras teólogas, como Merlin Stone (1976), Sarah Pomeroy (1976), perspectiva verdadeiramente revolucionária, ao menos na intenção
Charlene Spretnak (1981) buscaram recuperar a figura da Deusa nas (King, 1993,116). Mary Grey (2001) acredita que a figura o Espírito-
tradições antigas, seja no período neolítico, seja na antiguidade clássi­ Sofia, Deus-Sofia, leva a teologia feminista a apresentar um desafio
ca ou no período pré-helenístico da Grécia antiga. A recuperação da profético à idolatria do poder e do dinheiro praticada pela cultura, como
imagem de Deus como Mãe perpassa a maioria das religiões, inspiran­ sabedoria dos pobres. Recupera para nós a antiga sabedoria que brota
do espiritualidades ligadas à ecologia, enraizadas na terra. Ela tem da terra, as cosmologías sapienciais rejeitadas, na busca pela justiça e
inspirado as mulheres a uma identificação com o sagrado, afirmando pela transformação da sociedade.
seus direitos e uma espiritualidade centrada na sua realidade como mu­ Teólogas asiáticas estão tentando resgatar imagens divinas femini­
lheres. A figura da Deusa-Mãe Terra é universal: ela representa a inter- nas a partir de imagens, linguagem e símbolos de suas antigas culturas
conexão de todas as coisas, numa interdependência de todos os seres e das experiências sofridas das mulheres do continente asiático. Kwok
uns com os outros e com a natureza. A reivindicação básica na espiri- Pui Lan (1986), teóloga chinesa, nos indica uma imagem da divinda­
de que “chora com nossa dor”, ao descrever a experiência do corpo
17. Cf. God and the Rhetoric o f Sexuality, 1978. comercializado das mulheres da Tailândia e das Filipinas. Chung Hyun
18. Sophia é a palavra grega para Sabedoria, que, em hebraico, é Hokmah.
Portanto, toda a tradição de Deus no livro da Sabedoria veicula a idéia de uma
Kyung (1990: 30), teóloga coreana, diz que a dor e o sofrimento mar­
divindade feminina, cujas atribuições vão desde a arte de criar, de ensinar, de estar cam a experiência do corpo das mulheres de seu país, constituindo-
presente, como de ser amante, sacerdotisa, mãe, amiga ou companheira. se numa “epistemología do corpo partido”. São corpos que buscam

118 119
Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

cura e integralidade. Suas imagens mostram uma divindade que so­ Concluindo
fre, que se aflige, que se compadece, que chora pela dor das mulhe­
Os debates cristológicos e as propostas para se rever as metáforas
res. Um(a) Deus(a) que se identifica com a dor das mulheres, que é
de Deus vão certamente de encontro ao atual debate sobre o pluralismo
fonte de força para as mulheres sofredoras.
na religião e nas culturas. O problema do androcentrismo, do sexismo
O monoteísmo parece ter introduzido na história religiosa da no cristianismo, como religião patriarcal, tem trazido inúmeros pro­
humanidade questões conflitivas que afetaram profundamente a vida blemas não apenas para as mulheres, mas para outros grupos, margina­
das mulheres:
lizados pelo racismo, pelo homossexualismo. As conseqüências so-
- Acabou com o politeísmo, isto é , com o caráter bissexual da divin­ cioculturais das imagens divinas patriarcais e elitistas ficam geral­
dade, afastando inexoravelmente as mulheres da natureza divina. mente ocultas ou mascaradas. O caráter autoritário e militarista das
- Introduziu um grande dualismo entre o corpo e o espírito, a imagens patriarcais pode ser detectado em países sob ditaduras mili­
humanidade e a natureza. Deus e o mundo. tares. O caráter sexista é identificado pela predominância da violência
- A criação dos seres deixou de ter um caráter sexuado, um ato de gênero. Entretanto, trata-se de um fenômeno universal: as estatís­
de fertilidade, para transformar-se em ato de vontade, isto é, de ticas nos mostram que o abuso de mulheres e crianças e a violência
empreendimento biológico, transformou-se em empreendimen­ sexual existem em todas as classes sociais, em todo o mundo. Em
to mental, racional. mais de 60% dos casos, é o próprio pai quem abusa das crianças.
- Ressaltou a idéia do renascimento, em lugar do nascimento, Justificar a autoridade do pai por meio da imagem de um Deus Pai
pois renascer era a metáfora usada para a entrada numa nova todo-poderoso tem trazido graves conseqüências para os cristãos, cujas
vida social e religiosa. mulheres e crianças são ensinadas a obedecer cegamente a autoridade
- A concepção hierárquica de domínio do espírito sobre o corpo, paterna. Teólogas feministas se perguntam se chamar a Deus “Pai”,
para manter sob seu controle tudo o que podia dificultar o de­ longe de ser o Deus de Jesus, não seria uma distorção, uma projeção
senvolvimento das mulheres, da sexualidade, da natureza. ou caricatura em sociedades que justificam a dominação e o poder
masculinos (cf. Grey: 2001).
Poderíamos dizer que, quando a idéia da supremacia do espírito A busca de imagens femininas de Deus, na Teologia Feminista
dominou o corpo, rejeitando tudo que se referia ao sexo e à corporali- da Libertação, remete-nos a uma divindade preocupada com os cor­
dade, ao poder erótico da mulher, como criadora e doadora de vida, o pos feridos das mulheres em diversos contextos de opressão: uma
sistema patriarcal se instaurou, legitimado pelo monoteísmo. É por isso divindade que promove a cura, valoriza o corpo e a sexualidade das
que hoje as teólogas feministas da libertação fazem tanto empenho em mulheres violentadas. O cuidado e a proteção à natureza remete a
afirmar seu corpo, seu poder erótico19, seu poder criativo de dai- vida e uma responsabilidade ética pela criação. A tendência em enfatizar
imagens divinas femininas pode também ser uma forma de compen­
cura, constituindo-se estes itens em um tema de debate que certamente
sar sua ausência no interior do cristianismo. Além disso, a busca dessas
contribuirá para desconstruir as estruturas sexistas do patriarcado.
imagens estabelece conexões com as religiões indígenas e africanas
19. Algumas teólogas têm escrito específicamente sobre o poder erótico, como
ligadas à Mãe terra e à natureza. Essas culturas, que têm imagens
Audre Lorde, Uses o f the Erotic: The Erotic as Power, Santa Cruz, CA, The Crossing divinas menos autoritárias, mas que habitam ou se revelam no meio
Press, 1984. da comunidade, ensinam-nos uma inter-relacionalidade, uma solida-

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Pluralismo e libertação Crista na ciranda de Asherah, ísis e Sofia...

riedade, um maior respeito às pessoas — sejam elas velhas ou crian­ caminho de uma sociedade mais justa, mais solidária, em que todas as
ças, mulheres ou homens, hetero ou homossexuais — e à natureza. culturas e povos (e religiões) sejam reconhecidos em sua autonomia.
Certamente, são culturas muito mais pacíficas e amistosas, democrá­
ticas e fraternas. Bibliografia
A rejeição de uma Cristologia centrada na figura de um herói/ B e a u v o ir, Simone de. O Segundo Sexo. São Paulo: Difusão Européia do
heroína, mas a busca de runa Cristologia centrada na comunidade, Livro, 2 vols. Trad. do original em francês: Le Deuxième Sexe. Paris,
como Crista talvez, em relações de interconexão, de inter-relacionali- Gallimard, 1949.
dade, mostra que a Teologia Feminista da Libertação tem uma profunda B r o c k , Rita N. Journeys by Heart: A Christology of Erotic Power. 2. ed.

preocupação com a transformação da sociedade e da busca de justiça. New York, Crossroad, 1992.
C h r j s t , Carol. Why Women need the Goddess re-emerging. In: C i i r i s t , Carol
As propostas feministas de libertação partem do interior mesmo da
& P l a s k o w , Judith (eds.). Women Spirit Rising. A Feminist Reader in
crença de vinda do Reino anunciado por Jesus de Nazaré e se identi­
Religión. New York, 1979.
ficam com sua mensagem de tolerância, de sabedoria, de solidariedade, _____ . Rebirth o f the Goddess: Finding meaning in Feminist Spirituality.
de amor agápico. Neste Reino, muitas imagens femininas podem dan­ New York: Addison-Wesley Publishing, 1997.
çar sua ciranda, despretensiosamente. Não importa se identificadas D a l y , Mary. The Church and the Second Sex. Boston, Beacon Press, 1968

com nomes como Asherah, Isis, Kwan-In20 ou Sofia: o importante é _____ . Beyond God the Father: Toward a Philosoply o f Women 's Liberation.
que propõem novas imagens divinas — não autoritárias nem defini­ Boston, Beacon Press, 1973.
G e b a r a , Ivone. Teologia em Ritmo de Mulher. São Paulo, Paulinas, 1994.
tivas — que ampliam o nosso horizonte religioso, enriquecendo nosso
G o t t w a l d , Norman. As Tribos de Iahweh. Uma Sociologia da Religião do
sistema simbólico de forma libertadora.
Israel Libertado. São Paulo, Paulinas, 1986.
Temos claro que substituir a imagem da divindade masculina pela Grey, Mary. Uma paixão pela vida e pela justiça: Gênero e experiência de
metáfora da imagem(ns) feminina(s) da divindade não vai resolver o Deus. In: CONCILIUM 289, 2001/1, p. 16-25.
problema de um monoteísmo autoritário nem terminar com as desi­ H e y w a r d , Cárter. Reimagining Jesus: Moving Beyond Sexism, Anti-Semitism

gualdades estruturais em que vivemos. Minha argumentação procurou and Other Structures ofEvil in Christian Theology. New York, 1981.
mostrar novas possibilidades de se pensar a divindade mediante a con­ Hick, John. A Metáfora do Deus Encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000.
tribuição de teólogas feministas que estão repensando a divindade a K ing, Ursula. Women and Spirituality. Voices of Protest and Promise. 2. ed.
partir da realidade da experiência de mulheres de várias culturas e de The Pennsylvania S. Univ. Press, 1993.
K yung, Chung Hyun. Struggle to be the Sun Again. Introducing Asian
vários contextos. Essa é uma forma de desconstruir a imagem unívoca
Women ’s Theology. Maryknoll, New York, Orbis Books, 1990.
da divindade conforme ela tem sido proposta por uma teologia L o r d e , Audre. Uses o f the Erotic: The Erotic as Power. Santa Cruz, CA, The
androcêntrica, sexista e autoritária. Além de ser uma proposta feminis­ Crossing Press, 1984.
ta para a emancipação das mulheres é, também, uma forma de se afir­ M c F a g u e , Sallie. Metaphorical Theology: Models o f God in Religious Lan-

mar a necessidade do diálogo inter-religioso para nos colocarmos a guage. Philadelphia, Fortress, 1982.
P o m e r y , Sarah. Goddesses, Whores, Wives and Slaves: Women in Classical

20. Kwan-In é uma imagem feminina de Buda. Não se trata exatamente de uma
Antiquity. London, Robert Hale, 1976.
deusa, mas de uma bodisatwa, um ser iluminado que se recusa a ir para o Reino Pui L a n , Kwok. God Weeps with o u r Pain. In: P o b e e , X e W a r t e n b e r g - p o t t e r ,
da Iluminação, preferindo ficar na terra até que o último ser possa ser orientado B. (eds.). New eyes for Reading: Biblical and Theological Reflections by
para o caminho da iluminação. Women from the Third-World. Genève, WCC, 1986, p. 90-95.

122 123
P lu ra lis m o e lib e rta ç ã o

R u e th e r, Rosemary Radford. To change the World: Christology and Cultu­


ral Criticism. London, SCM Press, 1981. O absoluto nos fragmentos
_____ . Sexismo e Religião. Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1993.
_____ . Introducing Redemption in Christian Feminism. Sheffield Academic A universalidade da revelação nas religiões
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S c h ü s s l e r F i o r e n z a , Elisabeth. As Origens Cristas a partir da Mulher. Uma Luiz C arlos Susin
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_____ .Jesus, Miriam’s Child, Sophia's Prophet. New York, Crossroad, 1995.
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hellinic Myths. Boston, Beacon Press, 1981.


S t o n e , Merlin. When God was a Woman, 1976.

T r í e l e , Phyllis. God and the Rhetoric o f Sexuality. Overtures to Biblical

Theology. Philadelphia, Fortress, 1978.


“Tesouro em vasos de barro” (2Cor 4,7) talvez pudesse ser o me­
lhor título bíblico deste capítulo. Urs Von Balthasar cunhou a expres­
são “totalidade no fragmento”, que se afina bem com o conceito de
realidade da nova física. Mas evito o peso e a ambigüidade da palavra
“totalidade”, embora introduza outro complicador, a meu ver menos
ardiloso, o “absoluto”. Penso, assim, já estar introduzindo ao tema que
vai nos ocupar aqui: orientar a nossa compreensão para a universalida­
de da revelação em cada religião.
O assunto, de extrema atualidade, já tem seu percurso em refle­
xões teológicas ao longo de todo o século XX. Os teólogos protestantes
da “Revelação como História”, de modo especial Pannenberg, torna-
ram-se um marco de referência. Em âmbito católico, quase todos os
teólogos da Nouvelle Théologie e da Revista Concilium se colocaram
diante do desafio da universalidade da revelação, que acontece na
realidade ampla, criacional e histórica, antes de se codificar em tra­
dições e cânones1. Mas, nesses últimos anos, o desafio não é o da
história em geral, que foi buscar a superação do dualismo de história
da salvação/revelação, por um lado e, de outro, a história profana/
secular. Trata-se, agora, do sentido das religiões num mundo em que
a planetarização e a interação mais intensa das religiões podem con-

1. Este percurso pode ser revisitado com a síntese e a aguda análise de André
A revelação de Deus na realização humana, São Paulo, Paulus,
T orres Q ueiruga ,
1995, 273-353.

124 125
Pluralismo e libertação O absoluto nos fragmentos

duzir a confrontos fundamentalistas ou, no outro extremo, a uma bem elaboradas, vamos nos orientar para a universalidade da revela­
relativização e diluição de toda expressão religiosa. Em ambos os ção nas religiões3.
extremismos perde-se a possibilidade de as religiões ser realmente Este capítulo contém três itens: 1. Uma revisitação desconstrutiva
sal e luz para essa nova era da humanidade. Damos por resolvido que das categorias universalistas na tradição cristã desde duas vertentes
a revelação não se encerra no texto, no cânone, mas na amplitude da culturais e espirituais, a judaica e a helénica. 2. Um novo começo
história, na vida vivida e experimentada historicamente em toda con­ referindo-se à alteridade: o outro, não totalizável e não englobável
dição humana. Ser humano é ser capaz de acolher e de expressar a num horizonte comum, se torna experiência e categoria de uma reve­
revelação divina2. lação que provoca revolução em todos os âmbitos. 3. Desde a hospi­
Para não falsear o caminho da reflexão, é necessário, desde o talidade para com a visitação do outro, e desde a afecção criada pelo
início, tomar alguns cuidados metodológicos. O primeiro deles é o de outro, pode se constituir uma nova sensibilidade e um novo pensamento
situar desde qual tradição e qual experiência religiosa estou escre­ que se abre universalmente.
vendo, e que — suponho — seja a da maioria dos leitores, a tradição
cristã. Confessar o lugar desde onde se reflete e se fala sobre a uni­ 1. Unum est totum? — Do universo ao multiverso
versalidade da revelação nas religiões evita cair na tentação de um Para tratarmos criticamente do uno, do todo, do universo, do abso­
universalismo abstrato, por cima das realidades das diferentes reli­ luto e, inclusive, das hierarquias que decorrem de tais categorias, hie­
giões. Evita, assim, um falso saber a respeito de outras religiões. rarquizações com mais ou menos absolutizações e empoderamentos,
Somente colocando-se desde o início numa disposição à interdisci- convém fazer abordagens de diferentes ângulos.
plinaridade e à interação com sujeitos e vozes de diferentes religiões
é possível ser realista nesse assunto. O que aqui posso fazer, além de 7.7. Desconstrução política
falar desde a minha tradição, é indicar para possíveis condições O uno, o todo, e a hierarquia entre o uno e o múltiplo no todo
antropológicas de acolhimento da universalidade da revelação que têm, antes do viés filosófico e talvez religioso, o chão político com
acontece em cada religião vivida. seus interesses de domínio e de conquista. Peterson, em seu clássi­
O segundo cuidado, decorrente do primeiro, é o de começar co tratado sobre o monoteísmo como problema político, lembra que
examinando a própria tradição com a necessária honestidade crítica,
Aristóteles aplicou, para a ontologia, a convicção de Homero, na
desconstrutiva, quando se trata de categorias como “absoluto”, “uni­
Ilíada, colocada na boca do chefe grego Agamenón antes de os gregos
versal”, “revelação”, e mesmo “religião”, que são o tema deste ca­
partirem para a conquista de Tróia: “Não é bom que muitos coman­
pítulo. Tais categorias têm uma longa tradição na história do cris­
dem. Que um seja o mandante/”4. Conforme a interpretação de
tianismo. Antes de servirem para uma nova compreensão, precisam
ser desconstruídos e libertos de compreensões esclerosadas. Só de­
3. Ghislain Lafont e Emmanuel Lévinas, de diferentes ângulos, podem nos
pois, de forma bastante humilde, invocando intuições ainda a ser mais ajudar tanto no trabalho desconstrutivo como na reorientação dessas categorias. Cf.
Ghislain L afont, História teológica da Igreja Católica — Itinerário e form as da
2. N essa nova etapa da reflexão teológica, buscando mais concretamente dar teologia, São Paulo, Paulinas, 2000; Emmanuel L évinas, Totalité et Infini. Essai
nome às experiências de revelação nas religiões, encontramos Raimond Pannikhar, sur l 'extériorité, La Haye, Nijhoff, 1961.
Michael Amadaloss, Aloysius Pieris, Jacques Dupuis, David Tracy, Claude Geffré, 4. Erik P eterson , II monoteísmo come problema político, Brescia, Queriníana,
entre outros. 1883, 31.

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O absoluto nos fragmentos
Pluralismo e libertação

Moltmann, aqui se expressa o monismo político e clerical do Ocidente, irradia, o “todo-poderoso” do qual tudo é emanada hierarquicamente.
com uma teologia política de mútua implicação entre a configuração Sob o uno se gradua o múltiplo. E também se “degrada”: quanto mais
do divino e do social e suas conseqüências como também contradi­ múltiplo, mais inferior, mais ínfimo. A natureza mesma perde poder e se
ções5. Mas isso pode ser dito também de todo imperialismo e sua jus­ degrada na multiplicidade.
tificação religiosa, como o Império Egípcio com o faraó no topo, ou o É importante anotar, no entanto, que os mesmos filósofos,
Império Chinês de Gengis Khan. Em Homero, a ilustração segue com defrontados com a pluralidade da realidade, pensaram o uno cada
a epopéia de Ulisses, o navegador, que, retomando para sua pátria e sua vez mais metafísico, a ponto de ser indizível e impensável, inefá­
fiel Penélope, vence e reúne todas as diferenças com seu poder e inte­ vel. É ab-soluto, no sentido etimológico da palavra: absolvido de
ligência, e para sua glória. É a identidade do uno, firme e perseverante, qualquer laço ontológico, absolutamente metafísico, totalmente
fundada em si mesma, inconvertível e impenitente, absorvendo ou além. Mas isso não retira, pelo contrário incrementa as hierar­
aniquilando toda diferença6. Seguindo a crítica de Lafont, esta reunião quias, que participam gradualmente do seu poder sobre a totalida­
do todo sob o uno tem na hierarquização a sua estratégia mais vito­ de da realidade desde a sua absolutidade. Na hierarquia, quanto
riosa7. Os exércitos e as legiões, o chão político e militar, mais do que mais alto mais se está localizado próximo ao absoluto e, portanto,
Platão ou Plotino, são o lugar mais realista da hierarquia funcional. mais participante do poder absoluto. O que decorre em conse­
A democracia moderna, o parlamento, o contrato social, o pacto, qüências para a condição política e clerical. É nisso que se apóia
ajusta relação de maioria e minorias vêm criando um terreno político o conceito absolutista princeps legibus solutos est, e o “duplo corpo
cada vez mais apto para recusar tudo isso. Vale aqui a preciosa pérola do rei” — um de carne e osso mas o outro coincidindo metafisi-
de Hannah Arendt sobre o poder que não se impõe e se diferencia da camente com o todo do reino e dos súditos, e — ainda a verificar
violência, o poder real, que cria possibilidades novas: “capacidade de melhor — a sua infalibilidade9.
ação em conjunto”.
1.3. Desconstrução científica
1.2. Desconstrução filosófica A unidade do conhecimento, no coração da universidade nas­
É famosa a expressão de Heráclito, que resume bem a saga cultural cente, foi tentada por meio dos universais e da hierarquização do
e filosófica do Ocidente: “O uno é o todo. O todo é uno. Uno unindo o saber sob a metafísica e a teologia. Bem cedo, no entanto, o nomina­
todo”8. O uno platônico, como sabemos, é o bem, sol do qual tudo se lismo golpeou tal pretensão: nomina nuda tenemus! A observação
empírica, a relação de sujeito-objeto, a objetivação como sujeição,
5. Cf. Jürgen M oltmann , Trinità e regno di Dio. La dottrina su Dio, Brescia, seguindo a metodologia política do poder — divide et impera — le­
Queriniana, 1983, 204ss. vou ao mesmo tempo à especialização e à dispersão de saberes. A
6. Cf. Emmanuel L évinas, E h dêcouvrent l 'existance avec Husserl et Heide-
cosmología, uma ciência necessariamente conjuntural, é o sintoma
gger, 3. ed.. Paris, Vrin, 1974, 167ss.
7. Cf. Ghislain L afont, op. cit., 3 i5 ss. da progressão da passagem de um universo geocéntrico e antropo-
8. E também de Heráclito a trágica afirmação de que “a guerra é a verdade do cêntrico para saltos de conhecimento científico cada vez mais comple­
ser”. Pelizzoli confronta com a ecologia e com o festejado holismo atual, que tende xos, deixando-nos cada vez mais incapazes de uma visão de con-
a conservar a biodiversidade sob a unidade. Aqui nos interessa a biodiversidade das
religiões. Cf. Marcelo P elizzoli, A emergência do paradigma ecológico. Reflexões
ético-filosóficas para o século XXI, Petrópolis, Vozes, 1999. 9. Cf. Jürgen M oltmann, op. cit., 210.

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Pluralismo e libertação O absoluto nos fragmentos

junto. A cosmología, por um tempo longo, ficou sendo relegada Tudo indica que novos universos no multiverso estão sendo criados per­
tanto pelas ciências modernas como pelo saber antigo da teologia e manentemente (...), as novas descobertas da ciência têm provocado um
da filosofía. enorme impacto em virtude do seu caráter quase sobrenatural. Tais idéias
O livro de Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao universo estão permitindo um novo diálogo entre os teólogos e os cientistas, o que
aberto, descreve bem os primeiros passos da revolução científica que era quase impossível alguns anos atrás12.
se acelera até hoje101. Assim, do geocentrismo, passando pelo heliocen-
trismo, chega-se à compreensão do universo estranhamente sem cen­ A vida segue a mesma complexificação e pluralização: da for­
tro e sem bordas, onde há mais vazios do que matéria, apesar da mação das espécies e da evolução, passou-se à compreensão da vida
velha afirmação de que “a natureza tem horror ao vácuo” . Pelo con­ como auto-organização — autopoiesis — que pode ser resumida em
trário, a física quântica constata, em seu estágio atual, o vácuo quântico duas expressões-chaves: autonomia criativa e relações equilibradas.
como interioridade e fonte criacional, algo muito próximo da “cria­ Com isso se desenha a biodiversidade ou o biopluralismo —- quanto
ção do nada” de forma contínua e talvez perpétua. Por outro lado, a mais plural, mais rica é a vida.
nova física repõe o centro virtual do universo: todo lugar é virtual­
mente centro enquanto é lugar que observa, interpreta e, assim, recria 1.4. Desconstrução religiosa
continuamente todo o universo. Esse lugar é o humano, um “antropo- Para o nosso tema, a desconstrução religiosa é a mais importante
centrismo hermenêutico”, tecido de responsabilidade científica e co- das desconstruções. Comecemos com uma defmito terminorum, já
criação cosmológica11. que a palavra “religião”, como as outras que estamos tratando, é muito
A palavra “universo”, no entanto, já não daria mais conta da ampla e polissêmica. Ao menos três momentos da história do Oci­
cosmología atual. Nos meios científicos, pode-se hoje fundamen­ dente precisam ser demarcados:
tar, com sólidos conhecimentos, diversos modelos de universos, a) Entre os gregos, a religião se opôs à superstição. A navega­
sendo o mais provável a existência de múltiplos universos com ção e o contato com povos mais distantes foram ocasião de
conexões “generacionais” : desde um provável “universo-mãe”, cuja observação das diferentes religiões, das “religiões dos ou­
matéria inicial jamais será conhecida pelas leis físicas e pelo co­ tros”. De certa forma, no mesmo esforço de abstração do
nhecimento que regula o nosso universo e o nosso saber. E, por logos filosófico, os gregos são os primeiros de que se tem
isso, os múltiplos universos têm a mesma condição das “singula­ notícia a fazer um estudo comparado de religiões. Assim, o
ridades” de nosso universo: não podem ser conhecidos diretamen­ que encontraram em comum, nas distintas formas de culto
te, embora sejam exigidos e constatados pela lógica que conduz o
à divindade, ligando tudo o que tinham de semelhante, cha­
nosso universo.
maram de religião. E o que não se acomodava a uma iden­
tificação, que não se integrava a um todo abstrato, ou seja,
10. Alexandre K oiré , From the closed world to the infinite universe, Baltimore,
John Hopkins, 1957. o que era único e irredutível, acabava sobrando, chamado
11. Cf. Danah Z ohar , O ser quântico. Uma visão revolucionária da natureza
humana e da consciência baseada na nova física, São Paulo, Best Seller, 1990. 12. Ronaldo Rogério de Freitas M o u rã o , Do universo ao multiverso. Uma nova
David R u e ll e , Acaso e caos, São Paulo, Unesp, 1993. Ervin L aszlo, Macrotransição. visão do cosmos, Petrópolis, Vozes, 2001, 199. Cf. William R. S t o e g e r , A s leis da
O desafio para o terceiro milênio, São Paulo, Axis Mundi, 2001. natureza. Conhecimento humano e ação divina, São Paulo, Paulinas, 2002.

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Pluralismo e libertação O absoluto nos fragmentos

de superstição. O conceito de religião em oposição ao de subjetiva, em vez de ter um caráter místico de tipo xamanís-
superstição equivaleu, de certa forma, ao universal abstrato tico, é um domínio da racionalidade e da liberdade. A religião
em oposição ao múltiplo concreto13. O estudo das religiões pública deve coincidir com os interesses do Estado. E a demar­
comparadas não avançou muito em relação aos gregos. cação e classificação das religiões passa por religiões supe­
Continua buscando uma abstração que deixa na incompreen­ riores — os três monoteísmos saídos do Oriente Médio — e,
são e sem valor exatamente o que pode haver de mais origi­ portanto, religiões inferiores ou primitivas — as dos outros!
nal e precioso em cada religião. Esse conceito de religião, como já acenamos, permitiu o espa­
b) Na Idade Média, a categoria Igreja é, de certa forma, mais ço social secularizado, no qual não se fala de religião, e pos­
abrangente do que religião. A Igreja coincidia com a totalidade sibilitou o surgimento do ateísmo. Permitiu uma visão mais
“aceitável”, com a sociedade, a política, a cultura, como bem pluralista, mas, ao hierarquizar as religiões, elegendo as mono­
sabemos. Fora da Igreja está o estranho, o não-integrável, que teístas como superioras, ficou refém da tradição grega sobre
é basicamente o herético, o apóstata, o idólatra, o deformador o uno e o múltiplo, a identidade e o poder centrados no uno
do religioso, algo como o ápeiron da filosofía helénica, o excluí­ e no topo da hierarquia.
do da esfera da realidade. E dentro da Igreja estão os que “entram O monoteísmo hebraico precisa ser mais matizado. Não provém
em religião”, ou seja, em Ordens de monges, de frades ou de do monoteísmo do faraó mas das vítimas do faraó. Contraria as con­
penitentes, homens e mulheres que, não se contentando em ser clusões iniciais das religiões comparadas, porque não se trata de uma
Igreja-sociedade, abraçam o ser Igreja-religião numa das Ordens continuidade nem de uma dialética dos oprimidos. Nesse último caso
disponíveis. Religião diz respeito a uma determinada profissão deveria ter assumido o poder no topo da pirâmide social do Egito. Ao
da fé cristã no interior da Igreja. Mais do que a religião, é a sair e inaugurar um espaço novo de possibilidades, os hebreus con­
Igreja a portadora de mediações salvíficas e reveladoras. Nesta fessam que só o Deus que os libertou e os acompanha é Deus, e que
inversão, as “religiões” são formas concretas de profissão evan­ o verdadeiro poder é o de libertação. Esta unicidade se conecta com
gélica no interior da Igreja. toda a criação: “O meu socorro vem de Javé, que fez o céu e a terra”
c) Um terceiro grande conceito se elabora mais modernamente, (SI 121,2)14. Esta identidade entre a experiência do Deus libertador e
a começar pelo Iluminismo. O distanciamento em relação à o único Senhor de todo o universo e de todos os povos, em si mesma
Igreja, em primeiro lugar em confronto com a Igreja católica irrepreensível, pode, depois, involuir ou escorregar na ambigüidade,
romana, mas também em relação à Reforma, permitiu um levando Israel e depois o cristianismo para um monoteísmo de poder
certo retorno aos gregos, agora com novos conteúdos. A reli­ com todos os vícios da hierarquização sob o uno, por mais metafísico
gião passa a ser vista formalmente como um sistema de crença e transcendente que o uno seja concebido e respeitado.
com quatro subsistemas: os rituais, as doutrinas, os códigos de O caso de Elias, no Monte Carmelo, ilustra bem essa condição
comportamento moral, as hierarquias sacerdotais. A dimensão ambígua. Ele desafia os sacerdotes de Baal apoiando-se em Javé,
mais forte do que Baal, para que todos reconheçam o poder de Javé e
13. Tal redução ao universal abstrato retoma pela porta dos fundos da moderna
antropologia religiosa, até mesmo da antropologia cultural, no esforço de conhecer 14. Afirmações dessa ordem são recorrentes na profissão de fé, na oração, na
o que é o homem quando a metafísica clássica está decadente. liturgia. Cf. SI 18,3; 95,3; 113,4; 124,8.

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Pluralismo e libertação O absoluto nos fragmentos

também do seu profeta (cf. IRs 18). Essa maneira de entender a Deus da pericorese, é uma experiência surpreendente: quando a fé se dirige
num jogo de força resultou num fracasso, e Elias precisou aprender não só para o Cristo como centro, mas para o centro de Cristo, encontra
a buscar a Deus no lugar da fragilidade e da compaixão. alguém descentrado, ex-cêntrico, pro-existente, uma encruzilhada de
No Credo cristão, a confissão do Único Deus, Pai Todo-podero­ muitos caminhos: para o Espírito, para o Pai, para as criaturas, o estran­
so, mesmo compreendendo as boas razões do contexto gnóstico e geiro, o pequeno, os outros. De tal forma que poderíamos perguntar se
marcionita, também não consegue evitar a ambigüidade da figura do a fé cristã, mais do que constituir uma religião, não constitui antes e mais
Deus Pai. É o segundo artigo do Credo, sobre o Filho em condição profundamente, um profetismo que abre toda religião, que inquieta e
humana, crucificado e elevado, que aclara o tipo de onipotência de transcende toda religião, remetendo não para um além metafísico mas
Deus. Mas a luta pela afirmação da divindade de Jesus tornou-o para tudo e todos — para os outros como universalidade sempre plural
pantocrator, e a Igreja hierárquica sua única e poderosa mediação. e aberta. Quanto disso se possa dizer de outras “religiões” ou espiritua­
A universalidade circunscrita ao horizonte do uno, como numa lidades, evidentemente não me cabe ensinar. Mas lembro um lama bu­
totalidade que, em última análise, se quer fechada, mesmo elevada à dista afirmando que o ideal do budismo é a superação do budismo.
metafísica, se torna um despotismo devastador. O exemplo de um
protesto contra essa tendência é encontrada, surpreendentemente, en­
2. O outro não totalizável
tre os guaranis do Paraguai, do norte da Argentina e do sul do Brasil:
“As coisas em sua totalidade são uma. E, para nós, que não havíamos Nesse ponto nos ajuda decisivamente Emmanuel Lévinas: a ca­
desejado isso, elas são más”15. tegoria de alteridade, extraída sempre inadequadamente da experiên­
Desde diversas abordagens percorremos os caminhos sem saída da cia de encontro com a alteridade real, de carne e osso, de face e
universalidade sob o signo do Unum est Totum, o múltiplo referido e palavra, é a curvatura a partir da qual a experiência e o pensamento
submetido ao uno. Hoje tal macroparadigma é insustentável. Estamos ganham uma torção revolucionária. É uma categoria de certa forma
numa fase em que o universo se abre em multiverso, em que o plural, o incontrolável, pois nela não se pode pretender distinguir inteiramente
múltiplo, a biodiversidade, a diferença, se tomam categorias paradigmá­ entre outros, sobretudo entre algum “Grande Outro” ou “totalmente
ticas. Do ponto de vista cristão, este é o tempo da grande chance da Outro” e os simples “outros”, entre Deus e as criaturas. A categoria
teologia dapericorese trinitária, considerada com o máximo rigor e em de alteridade, assumida com rigor, é a cumplicidade, a aliança não
toda a sua amplitude16. O próprio cristocentrismo da fé cristã, no âmbito inteiramente desvelável e explicável de todo outro. Por isso também
nunca é inteiramente englobável. Desde a alteridade mais espiritual
15. Pierre C lastres, A fala sagrada. Mitos e cantos sagrados dos índios Guarani,
e abismal até suas expressões físicas, sexuais, culturais, políticas, e,
Campinas, Papirus, 1990. O antropólogo francês acrescenta: “É porque a totalidade
das coisas que compõem o mundo pode-se dizer segundo o Um e não segundo o sublinhando para o nosso caso, alteridades religiosas. É a experiência
múltiplo que o mal está inscrito na superfície do mundo (...) Não é esse mundo que da alteridade que configura a experiência do absoluto em seu misté­
desejávamos, não somos culpados, sofremos o destino do peso do Um: p mal é o rio indesvendável e em sua presença frágil.
Um; nossa existência está doente (...), por se desenrolar sob o signo do Um. (...)
Os sábios pré-socráticos diziam que o Bem é o Um, enquanto os pensadores
Guarani afirmam que o Um é o Mal” (14-15 e 135). 2.1. O outro como absoluto e como revelação
16. Este é o grande esforço de Jacques Dupuis. Cf. sua reação ao documento da
Congregação para a Doutrina da Fé, Christus Dominus, em i a rencontre du christianisme Conforme o ensinamento de Lévinas, convém primeiro lembrar
et des religions. De l ‘affivntement au dialogue. Paris, Cerf, 2002, 399-401. o que o outro não é, abstraindo-o dos laços e armadilhas da identidade

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que tenta agarrar toda alteridade para domesticá-la e submetê-la ao na franqueza sem contornos e incontomável da face despojada. É a sua
“mesmo”, ou seja, a mim, ao meu mundo, ao meu conhecimento, à nudez, a sua agudeza, de face sem disfarces, que atravessa a espessura
minha religião. O reconhecimento e a justiça para com o outro é um já ontológica da economia, da cultura, do gênero, da religião.
acontecimento metafísico. Esta abstração é que refere todo outro a
uma condição de “ab-soluto”, de além de todo ser, em si mesmo in­ 2.2. O outro como afecção e revolução
tocável e indesvendável, insondável e invisível. Coloquemos, num primeiro momento, a religião como sistema
Num primeiro momento, todo outro parece ser o que para Platão entre paréntesis para nos entregar à experiência religiosa da face, da
é a idéia do bem, para Parmênides o uno, metafisicamente fora da sua espiritualidade, tão pura como um “nada”, uma abstração ou um
totalidade, fora do círculo do mitón que busca integrar a si todo ab-soluto além, e no entanto presente. O primeiro momento desta
héteron. Mas Lévinas se apressa em voltar ao chão duro deste mun­ experiência é a deposição, o silenciamento, o desarmamento, no sen­
do: o outro está no mundo, embora não porte em si os verbos da tido mais amplo que se possa experimentar. E ser atingido, derruba­
ontologia: nem ser, nem ter, nem estar ou permanecer, nem poder, do, cegado por uma luz que provém de fora. Mas não é êxtase tre­
nem saber, nem valer. O outro é apenas uma face que visita, uma mendo e fascinante do numinoso. É ser afetado por um olhar, por
palavra ou gemido que se revela, um “eis-me”, pura apresentação. uma palavra ou gemido. É ser convocado a um “face a face”, a uma
Em termos mais bíblicos e concretos, é o pobre, o órfão, o estrangei­ relação em que a luz da face que se revela, ou seja, sua palavra, revela
ro, a viúva. Todos têm em comum a falta de referência ao ser, a im­ também seu corpo despojado, pobre, doente, feio, faminto, ou o cor­
potência, a estranheza, a fragilidade, o despoj amento, a peregrina­ po estranho, recoberto de outra cultura, centrado em outra economia,
ção. São face desnudada, palavra pura, visita intempestiva, que supli­ inquietante por promessas eróticas ou pela obscenidade e enormidade
ca reconhecimento e acolhimento, marginalidade ou santidade — de sua presença irradiante ou feia.
etimológicamente é o mesmo lugar — que investe com dom de si, O outro, ao se revelar, revoluciona o desejo, a relação com o
criando obrigação puramente ética. É também o “anjo do Senhor”, a mundo, o projeto da identidade que se estende soberana, o sistema
voz de fino silêncio do divino. que totaliza a realidade. Agora, o mundo pode ser dom, recurso
Enrique Dussel, desde a América Latina, interpretou a alteridade de hospitalidade e de socorro, promessa de fecundidade e de saúde, de
do pobre, órfão, estrangeiro e viúva na condição política, cultural, eco­ salvação. O mundo se torna obra ética diante do outro, a economia e
o trabalho se tornam diaconia para o outro. Mesmo sem ser culpado,
nômica e erótica dos índios, negros, pobres e mulheres latino-america­
se é, então, responsável pelo que está-aí e pelo seu amanhã.
nas17. Aqui nos interessa a revelação de alteridade na sua expressão
Essa experiência é testemunhada de inúmeras formas na tradi­
religiosa. Não é a realidade ritual, o conhecimento da doutrina, a pre­
ção bíblica e cristã como narrativa e ensinamento — a aproximação
sença e a atuação da hierarquia sacerdotal ou o cumprimento do código
e a cumplicidade ou quase identificação entre toda alteridade c a
moral que garantem a presença da transcendência, a revelação e a ex­
divindade lá onde, ao invés de hierarquizações, há o avesso, a expe­
periência do divino, mas o acolhimento de toda alteridade que se revela
riência de des-hierarquização. Devemos perguntar a outras tradições
religiosas como elas mesmas narram e ensinam esta experiência.
17. Cf. Enrique D ussel, Para uma ética da libertação latino-americana, 5 vols.
São Paulo, Loyola/Unimer. Ética comunitária, Petrópolis, Vozes, 1986. Ética da Tomemos, por enquanto, o caso exemplar do [evangelho de Lucas 10,
libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Vozes, 2000. 25-37, a parábola do Bom Samaritano. É uma narrativa que Jesus

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Pluralismo e libertação O absoluto n o s fragmentos

conta ao judeu, doutor da Lei, que quer saber quem é o seu próximo, seu desígnio o próprio sistema. O antropólogo Víctor Turner, por outro
uma vez que o amor ao próximo é cumprimento da Lei na mesma caminho, nos conduz à mesma conclusão: em situações liminares,
altura do amor a Deus. N a parábola, o personagem que desce de Jeru­ fora das estruturas e até em oposição a elas, em antiestruturas que ele
salém para Jerico é, supostamente, um judeu. Vítima da violência de chamou de communitas, lá onde se rompem as barreiras e diferenças
assaltantes, jaz ferido no caminho. É, portanto, um judeu despojado de ordem social, econômica, sexual, acontece a experiência mística18.
e exposto, gemendo por socorro. Passam pelo caminho um sacerdote O tempo é risco de novo fechamento, mas é também tempo de vigi­
e depois um levita, ministros do sistema religioso, que o vêem caído lância à visitação que irrompe e rompe mais uma vez. Por isso, para
mas passam ao largo. Em seguida, viajando por aí, em terras de judeus, Tiago, o apóstolo das “obras”, a religião pura consiste em socorrer o
um samaritano o vê, chega até ele e sente compaixão. Aproxima-se, pobre, o órfão e a viúva (cf. Tg 1,27).
trata suas feridas, carrega-o com cuidados em sua própria montaria Em última análise, a revelação não é posse da religião, das tra­
até a hospedaria, paga o hospedeiro para cuidar dele até que volte, dições e dos sistemas religiosos. É um encontro que supera sempre
quando saldaria tudo. A pergunta de Jesus, para um judeu, doutor da surpreendentemente, pelo caminho menos traçado, menos nomeado
Lei, inverte a pergunta inicial. O judeu perguntou quem seria o seu ou imaginado — sem nome e sem imagens. E faz parte da lógica da
próximo para que ele pudesse amar e socorrer o próximo. Jesus per­ revelação, da sua surpresa, essa constante em que não há alteridade
gunta quem foi, na parábola, o próximo do judeu caído. Claro, o de Deus e do primeiro mandamento, a adoração do Deus vivo, sem a
samaritano que teve compaixão e se aproximou do judeu. Os sama- alteridade do segundo, a proximidade que toca todo outro. Mesmo no
ritanos, no entanto, eram considerados endemoninhados pelos judeus eremitério mais solitário, não há uma presença sem a outra. Daqui
(cf. Jo 8,48). E, no entanto, o judeu precisa estar caído e aprender do nasce uma nova sensibilidade para a universalidade.
samaritano errante o que é se aproximar.
Antes de encerrar a parábola com seu ensinamento final, é bom
voltar à sua estrutura. De certa forma, ambos os personagens, o judeu 3. Uma nova sensibilidade à universalidade da revelação
caído e o samaritano em viagem, estão fora do seu lugar, à margem Dado o acontecimento que procurei ilustrar acima — despoja-
dos seus sistemas. Os homens da hierarquia e da Lei, o sacerdote e o mento, abertura e afecção — é claro que a sensibilidade precede o
levita, estão dentro do seu sistema, e, mesmo vendo, não conseguem pensamento, e o pensamento surge como recurso sagrado, socorro,
ser afetados, não têm compaixão, não são próximos do judeu caído. organização e até sistema de fundo religioso.
A proximidade humana, experiência elevada ao mesmo lugar da proxi­
midade divina e transcendental, só é possível à margem dos sistemas. 3.1 O núcleo ético: o corpo e a vida
No nosso exemplo, como caído e forasteiro, vulneráveis um ao outro, Até onde alcançamos no conhecimento das religiões, para a res­
proximidade “desontologizada”, nua e crua, sensibilidade afetável. ponsabilidade do socorro não há lei, nem limites, não há impureza. O
Só então aquilo que é do sistema — o óleo e o dinheiro do samaritano corpo, e a vida desde o corpo, vem em primeiro lugar, rompendo
viajante, por exemplo — transforma-se em recurso de acolhimento e ideologias religiosas.
hospitalidade. Pode-se voltar ao sistema, mas a experiência fora dele,
na margem, no despoj amento, que é rara e efêmera, mas é uma 18. Cf. Víctor T urner , O processo ritual. Estrutura e antiestrutura, Petrópolis,
efeméride, é acontecimento suficiente para marcar com seu selo e Vozes, 1975.

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Pluralismo e libertação O absoluto nos fragmentos

O amor ao próximo se radicaliza e se prova no amor ao inimigo, Voltemos brevemente à figura de Abraão: Paulo, judeu e fariseu,
o outro mais estranho, mais distante e ameaçador ao mesmo tempo. retoma a fé abraâmica para exemplificar a universalidade da salvação
Socorrer o inimigo, pacificar-se com ele, é abrir-se à universalidade da e da revelação para além de qualquer sistema religioso. Pela sua aber­
revelação. Este é o anúncio de Isaías: “Paz, paz ao próximo e ao dis­ tura de fé anterior a qualqueríprática, a qualquer sinal, Abraão tor­
tante” (Is 57,19). De certa forma o próximo, mesmo o mais doméstico, nou-se “pai de muitos povos” (Rm 4,18). Tomou-se mediação de sal­
sempre tem algo do inimigo: irrompe, frustra, despoja, pesa, torna refém, vação independente de sistemas religiosos e até contra determinados
responsável mesmo sem ser culpado. Há um núcleo duro, uma centra­ sistemas religiosos, transgredindo em favor de quem o sistema reli­
lização num universo sem centro prévio: é o corpo do outro. Há uma gioso teria condenado à morte. Ora, exemplos “abraâmicos” são en­
universalização ordenada a partir do corpo e da vida do outro. contrados em diferentes tradições. É um cânone que mede “valências
Novamente é útil um exemplo palpitante dentro da tradição bí­ universalistas presentes em cada revelação concreta”1?.
blica, a figura de Abraão. A fé abraâmica é a saga de um religioso Talvez seja útil recorrermos ainda à distinção, elaborada por Karl
errante, que hospeda desconhecidos, que coloca sua tenda à disposi­ Rahner, entre revelação transcendental e revelação categorial. Como ca­
ção dos peregrinos, que intercede pelas cidades pecadoras, que rom­ tegorias noéticas, a linguagem e o cânone têm uma função maiêutica,
pe com a lei religiosa do sacrifício do primogênito, carrega um nexo suscitando a abertura e o encontro sem autoritarismo da revelação como
e um segredo de fundo: a vida está acima de todo sistema religioso. acontecimento. A maiêutica socrática é lembrada também por
De fato, em todas as situações, Abraão dá prioridade à vida do outro Rosenzweig quando afirma que “a Bíblia e o coração do homem dizem
correndo o risco de sua própria vida por transgredir os limites da sua a mesma coisa”. É possível conhecer a revelação por dois caminhos:
religião. Abraão pratica a “religião do outro”, no sentido de que o sondando as tradições e sondando os corações. Mas são os corações
outro é que está no centro de sua atitude e responsabilidade religiosa. que, em última instância, decidem reconhecer e hospedar a revelação das
Torna-se assim uma fonte de bênçãos para todos os povos da terra, tradições. Pois nas tradições não encontramos apenas revelação. En­
um universalista peregrino, aberto a encontros sempre novos, perigo­ contramos também “as tradições dos homens”, os erros humanos, todo
sos e surpreendentes. o séquito de violências e perversidades de que os humanos são ca­
pazes. De certa forma, também isso serve de ensinamento. Mas isso
3.2. As tradições religiosas como "inspirações criativas" não é portador de novidade positiva, de revelação e conteúdo divino.
Em Abraão, em sua hospitalidade e responsabilidade, encontramos um
Os textos, os dogmas, a doutrina tiveram e ainda têm uma função “amigo de Deus” e um “pai divino”, uma cunha de revelação indubitá-
reguladora e aglutinadora nas religiões. Cânones servem para medir, vel do que seja o divino e o humano nos caminhos tortuosos das tradições
para discernir, para verificar. Exigem resposta, responsabilidade. Mas humanas do seu tempo. As tradições são um corpo misto de revelação
tomam-se fonte de mal-entendido e de aprisionamento na injustiça viva e de tradições transmitidas pela inércia decadente. Por isso, toda
quando são assumidos em detrimento dos outros. Para ir ao coração religião é “relativamente absoluta e absolutamente relativa”1920.
das tradições, é necessário deixar-se conduzir pela pergunta: “O que Seria necessário escutar o quanto em Buda, em Gandhi ou em
há de criativo, o que se revela como novo ao praticar esta tradição?” qualquer outro místico ou referência de tradições religiosas também
Em outras palavras, mais do que ser reguladoras, as tradições são
fontes de inspiração, de criatividade. Uma tradição religiosa é viva 19. Andrés T orres Q ueiruga, op. cit., 345.
quando é criativa, ou seja, quando cria vida. 20. Ibidem, 343.

140 141
Pluralismo e libertação O absoluto nos fragmentos

porte valências revelatórias e universalistas. Porém, dentro do dito de virtualmente ao infinito. A universalidade acontece no diálogo, no desejo
Jesus, sob o horizonte aberto do Reino de Deus, de que “quem não está aberto e na “paz como unidade na multiplicidade”22. A diferença, in­
contra nós, está conosco” (Me 9,40), sabendo que hoje “de fato, está se clusive a diferença religiosa, não alcança paz apenas no respeito, mas
produzindo uma expansão real das valências universalistas presentes na “não-indiferença”, no desejo de partilhar da riqueza e da biodiver­
em cada revelação concreta”21, graças a um pluralismo cada vez mais sidade religiosa, fina flor da biodiversidade da criação. Talvez se possa
interativo e intenso, podemos dar mais um passo, que não é só de plu­ entender assim o que Jesus quis dizer com o “desejo ardente” de comer
ralismo inclusivo, mas de inclusão pluralista. Trata-se de hospedar e partilhar a Páscoa antes de sofrer, como sinal da comensalidade que
também a inclusão que os outros fazem de nós em suas cosmovisões aconteceria no Reino de Deus. O Reino de Deus é um horizonte escato-
religiosas. Permito-me exemplificar com uma memória doméstica o lógico, aberto, universalizante, segundo a melhor concepção cristã, mas
testemunho de uma freira. Com sua idade já bastante avançada e com tem seu sinal no acolhimento mútuo e na partilha de vida, de mesa e de
seu carisma maternal, se ocupava inteiramente com visitas a doentes religião, em fragmentos de pão e fragmentos de religiões, fragmentos
no hospital em que ela vivia. Entre os visitados, ela encontrava espíri­ de Reino de Deus — segundo a tradição cristã — onde se realiza e se
tas kardecistas. Um dia contou, com certo humor e simplicidade, que revela o que há de mais santo e absoluto: o amor que salva e que é
um kardecista lhe havia confidenciado a sua convicção de que ela, a divino, o outro divino com todo outro, em despojamento, e, então,
freira que diariamente se debruçava sobre a sua cama para oferecer o conosco — comigo — também.
consolo de sua companhia, era um “espírito de luz”, já livre das reen-
camações, decidido a permanecer mais tempo sobre a terra para con­
solai- os aflitos. O seu sorriso, ao contar tal confidência, revelava uma
aceitação sem julgamento do simples fato em que algo de positivo
acontecia nessa inclusão na “religião do outro”.

Conclusão: o absoluto em fragmentos


A revelação e a universalidade da revelação acontecem desde o
outro, que é plural, são muitos outros. É, portanto, uma universalidade
aberta, complexa, em muitas direções. Nesse sentido, a unicidade e a
universalidade — a de Cristo para o cristão, a de Abraão para quem
participa da fé abraâmica etc. — são ao mesmo tempo acontecimentos
únicos, irrepetíveis, e, no entanto, abertos, provocadores de abertura
aos outros, à vida e à religião dos outros — ao que há de divino junto
ao outro. A universalidade não pode ser a circunscrição de uma totali­
dade panorâmica e já dominadora. É, ao contrário, abertura, e abertura
22. Emmanuel L évinas, Autrement qu'étre ou au-délà de 1’essence, La Haye,
21. Ibidem, 345. Nijhoff, 1974, 200.

142 143
Muitas falas e uma única palavra: amor
A Bíblia e o pluralismo religioso

M arcelo B arros

Na América Latina, um dos instrumentos importantes da inser­


ção das Igrejas junto aos empobrecidos tem sido a Bíblia. A leitura
bíblica se tornou referência para o compromisso social dos cristãos.
Nesse processo de engajamento, os cristãos têm descoberto crentes
de outras religiões como companheiros(as) valiosos(as) e têm perce­
bido a importância de outras religiões, como as tradições indígenas e
negras, no caminho de resistência e libertação dos empobrecidos.
Agentes de pastoral e pessoas da base têm se aberto ao diálogo inter­
cultural e inter-religioso. Por causa do compromisso social, cristãos
de várias Igrejas aderem ao que, a partir do IoEncontro da Assembléia
do Povo de Deus, em Quito (1992), chama-se de “macroecumenismo”1.
Movimentos populares e a teologia latino-americana assumiram um
olhar positivo sobre o pluralismo cultural e religioso. Mas daí não se
seguiu uma leitura bíblica que fundamentasse essa abertura. A Bíblia
tem ajudado no caminho da unidade entre as Igrejas. Mas não ajudou
ainda suficientemente as Igrejas a crescer em uma visão positiva do

1. O termo “macroecumenismo” tornou-se referência de um “ecumenismo das


religiões” baseado em uma “espiritualidade do diálogo” e um compromisso co­
mum na defesa dos excluídos e na resistência ao neoliberalismo. Certamente o
termo “macro” é impróprio, uma vez que não existe um “microecumenismo”, mas,
em termos históricos, tem sido importante sublinhar este caminho ecumênico de
amor e solidariedade, principalmente na relação com as religiões dos povos indí­
genas e comunidades negras.

145
Pluralismo e libertação Multas falas e uma única palavra: amor

pluralismo religioso. Desde os anos 1970, grupos de base interpretam limitada. “Não se ocupa de outras religiões.2” Entretanto, mesmo se
a Bíblia não apenas como mensagem religiosa, mas como revelação não é sempre um farol que ilumina tudo, é uma “lampadazinha que
de um projeto de Deus que quer vida, justiça e comunhão para todos. brilha no escuro até que o dia clareie e o astro da manhã, o Cristo,
Lida assim, a Biblia valoriza os mitos e religiões dos povos amerindios brilhe em nossos corações” (2Pd 1,19). Este estudo precisa ser com­
e provoca um olhar positivo sobre o pluralismo religioso, mas não pletado com outras fontes literárias da época, mas aqui me proponho
conseguiu aprofundar o que Deus diz às comunidades judaicas e cristãs a desfazer uma interpretação sectária da Bíblia e ver como, a partir
a partir do atual pluralismo cultural e religioso. dos textos bíblicos, podemos construir uma teologia cristã do plura­
lismo cultural e religioso.
1. A Bíblia lida em perspectiva exclusivista
Durante séculos, a Biblia foi usada para combater outras reli­ 2. Uma leitura do Primeiro Testamento a partir do pluralismo
giões. Mesmo pastores è grupos abertos ao ecumenismo cristão não 2.1. "O Deus de Abraão, Isaac e Jacó"
aceitam contatos com outras religiões. Associam seus cultos aos que
Conforme os Evangelhos, para dizer que crê na ressurreição dos
a Bíblia condena como idólatras. O texto bíblico diz: “Eu sou o Se­
mortos, Jesus diz que o Pai é o mesmo Deus que apareceu a Moisés na
nhor, teu Deus... Não terás outros deuses diante de mim. Não farás
sarça ardente e é o mesmo Deus de Abraão, Isaac e Jacó (cf. Mt 22,23-
para ti imagem, nem figura alguma do que há no céu, nem na terra,
33; Mc 12,18-27 e Lc 20,27 ss). Ora, a Moisés, Deus diz: “Eu sou o
nem nas águas...” (Ex 20,1-6). Os profetas condenaram a idolatria
Senhor que apareci a Abraão como El Shaddai, o Deus das alturas, pois
dos adeptos de outras religiões ou de Israel (cf. a ação de Elias —
não quis revelar a ele este meu nome” (Ex 6,2). Basta ler a Bíblia ê se
lRs 17-21 e Os 2,13-15; 4,7-9; Am 8,11-14; Is 21,9; etc.).
verá que os patriarcas não só deram a Deus nomes como “El Shaddai”,
Muitos cristãos aceitam que, em qualquer religião, há pessoas
“El Olam”, “El Shabbaot” (o deus das alturas, o deus do tempo ou deus
sinceras que buscam a Deus, mas pensam: “O que as demais reli­
eterno e o deus dos exércitos), como tinham imagens diferentes e his­
giões buscam, o cristianismo já encontrou na revelação bíblica e no
tórias diversas. Abraão adorava El Berit no centro do país, Isaac a El
cume desta: Jesus Cristo, Filho único de Deus. Ele disse: ‘Eu sou o
Shaddai no sul e Jacó a El Betei no norte. Podíamos dizer qúè eram
caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai a não ser por mim’
deuses diferentes. Seria como se Jesus assumisse, hoje, como se fos­
(Jo 14,6)”. “Não há, debaixo do céu, outro nome dado aos humanos,
sem o seu Deus, Oloram, ouTupã, ou Maíra. A fé judaica é fruto de um
pelo qual possam ser salvos” (At 4,11-12).
processo de longo sincretismo. Sincretizou no Senhor (JHVH) os cul­
Estes argumentos se repetem tanto que não preciso retomá-los
tos de deuses cananeus, enquanto rejeitou outros. Aceitou que o Se­
aqui. Infelizmente, esta leitura legitimou a colonização e a domina­
nhor (JHVH) é o mesmo El Shabbaot, ou o Déüs dòspais. Entretanto,
ção do Ocidente dito cristão sobre os povos indígenas e africanos e, nunca aceitou que o seu Deus (JHVH) fosse o mesmo Baal, deus dos
hoje, tem responsabilidade na cultura de “guerra justa” e até “preven­ cananeus e fenicios. Será que esta rejeição era pelo fato de que o culto
tiva” que o governo americano inventou. É urgente ler a Bíblia com a Baal legitimava uma sociedade que ameaçava a vida e a independên-
base no pluralismo cultural e religioso. Não para fazer a Bíblia dizer
o que ela não diz. Querer justificar nossas ações ou opções com a 2. Wesley A r i a r a j a h , La Biblia y las g e n t e s de otras religiones. Santander, Ed.
Bíblia seria outro tipo de fundamentalismo. Sabemos que a Bíblia é Sal Terrae, 1998, 17.

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Pluralismo e libertação Muitas falas e uma única palavra: amor

cia de Israel? Naquela cultura, religião e política estavam tão entrela­ logo com qualquer outra religião. Não se dão conta de que a própria fé
çadas que era impossível separá-las. bíblica foi fruto de um longo sincretismo. Mas, nesta aceitação de re­
Quando a Bíblia aceita chamar Israel de povo de JHVH, implici­ ligiões e cultos de povos e tribos vizinhas, se fèz rigorosa seleção. Os
tamente está reconhecendo que Moab é o povo do deus Camos (cf. Nm profetas bíblicos aceitaram elementos religiosos, imagens ou cultos
21,29) como se cada povo pertencesse a um deus e tivesse direito de de outros clãs ou povos que não ferissem o cerne da aliança do Deus dò
adorá-lo. A literatura deuteronômica, a qual pertence o livro dos Jui­ Sinai, o Senhor (JHVH). A Serpente de Bronze era uma imagem de deus
zes, foi redigida em uma época de imposição do culto j avista em Jeru­ cananeu, mas foi aceita quando este culto ajudaria o povo, no deserto,
salém (reforma de Josias) e de pouca tolerância com as outras reli­ a curar suas feridas (cf. Nm 21). Depois de escrever que Deus proibiu
giões. Entretanto, conta que quando as tribos de Israel foram invadidas qualquer imagem ou figura, conforme o Êxodo, Deus manda que Moi­
pelos amonitas, o juiz Jefté mandou dizer ao rei: “O nosso Deus nos sés faça esculpir duas imagens de querubins (de ouro) e ponha uma de
deu esta terra do mesmo modo como o deus Camos deu a vocês a terra cada lado da arca da aliança (Ex 25,18-20). Ora, na cultura da época,
de Amon. Não basta possuíres o que teu deus Camos te legou? O que essas imagens de querubins eram deuses babilónicos e persas repre­
o Senhor, nosso Deus, nos legou, é nossa propriedade” (Jz 11,24). Mais sentados por animais alados. Até hoje, a concepção popular de anjos é
tarde, a tradição dirá que a estrangeira Rute disse a Noemi: “Para onde que eles têm asas. Alguém pode dizer quê isso não é exemplo de plu­
você for, eu irei também... O seu povo será o meu povo. O seu Deus ralismo ou de respeito a outra cultura. Os deuses persas foram postos
será o meu Deus” (Rt 1,16). Aí existe certo pluralismo de princípio. Ao sobre a arca da aliança como submissos ao nosso Deus. Serviam como
povo com o qual fez aliança no Sinai, Deus falou por meio de Amós: soldados inclinados e de guarda, tomando conta da arca do Senhor,
“Vocês são para mim como os Cuchitas. Eu não fiz sair Israel do Egito, considerado Deus dos deuses. Mas, mesmo sob essa forma de ego­
os filisteus de Caftor e os arameus de Kir?” (Am 9,7). centrismo religioso, o texto bíblico assume deuses de outros povos e
A Bíblia assume uma atitude mais ou menos pluralista, de acor­ não como demônios ou inimigos.
do com as situações. Em uma época, os profetas aceitaram que o Na Bíblia, as denúncias dos profetas contra a idolatria são unidas
povo adorasse a Serpente de Bronze, divindade cananéia, como ima­ à condenação da injustiça social (ver, por exemplo, Amós e Oséias).
gem do Senhor. No deserto, Moisés teria levantado a serpente (cf. Elias condena à morte o rei Acab por “ter cometido a idolatria”, mas
Nm 21,4-9). Em outro momento da história, os profetas condenaram o contexto é o de o rei ter mandado matar o lavrador Nabot (cf. 1Rs
esta mesma imagem da Serpente, adorada no templo de Jerusalém 21). Eliseu combate profetas de Baal e denuncia as injustiças sociais.
(2Rs 18,4). Outra imagem de El, o Bezerro de Ouro, sempre foi con­ Recebe o sírio Naaman e, mandando que ele se banhe sete vezes no
denada, embora, no norte, havia uma estátua do bezerro de ouro no rio Jordão, o cura da lepra. O homem curado agradece e diz ao pro­
templo da Samaría e de Dan (lR s 12,29-30 e Os 6) e eram templos feta: “A partir de agora, vou oferecer culto ao Deus de Israel. Mas,
do Senhor que os profetas do norte freqüentavam. sou oficial do rei. Quando o rei, meu amo, entrar no templo do deus
Ramón para adorá-lo e se apoiar na minha mão, eu também terei de
me prostrar diante do deus Ramom. Isso, o Senhor perdoe o seu ser­
2.2. A luta javista contra a idolatria
vo” . Eliseu lhe responde: “Vá em paz” (2Rs 5,17-19).
O combate à idolatria percorre toda a Bíblia e influencia muitos O profeta, em geral, radical e rígido quanto â fé javista. neste
cristãos atuais que, com medo de ídolos, condenam ou rejeitam o diá- caso tem uma atitude tolerante e aberta. Normalmente, as profecias

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Pluralismo e libertação Muitas falas e uma única palavra: amor

contra os cultos a outros deuses foram proferidas como discursos sobre Todo o Pentateuco, com suas diversas narrativas e teologías, man­
o juízo de Deus e a exigência de fraternidade e justiça, própria da fé tém para com as outras religiões uma postura dupla (não dúbia). De um
bíblica. São denúncias contra a religião que não se preocupa com a lado, tem uma atitude contrária às outras religiões porque deve ajudar
justiça, seja estrangeira, seja a própria religião judaica (cf. Is 42,14-17; o povo israelita a libertar-se da escravidão do medo das forças cósmi­
46,1-13; 48,1-17). cas, dos cultos de fertilidade e das potências estrangeiras a eles ligadas.
Podemos ligar estes oráculos contra outros deuses à palavra de Mas tem também outra postura: a de colher da experiência religiosa
Jesus à samaritana: “Chegou a hora em que, nem neste monte, nem em dos povos vizinhos elementos vistos como palavras de Deus para o seu
Jerusalém, deveis adorar. O Pai é espírito e verdade e os seus adoradores povo. A circuncisão, a instituição do sábado, a festa da Páscoa e muitos
o adorarão em espírito e verdade” (Jo 4,23 ss). Os Evangelhos mos­ outros elementos bíblicos vêm de povos vizinhos e, portanto, foram
tram Jesus mais crítico com a religião judaica como era vivida pelos assumidos positivamente do diálogo ou da influência de outras culturas
sacerdotes e fariseus do seu tempo do que com as outras religiões. e outras religiões sobre o povo da Bíblia. Assim quando o Gênesis diz
que, “por causa de Abraão, todos os povos da terra serão abençoados”
2.3. A síntese das primeiras histórias e que Moisés será “uma fonte de bênçãos para todos os povos” há uma
Parece que as primeiras páginas do Gênesis vêm de antigas tradi­ visão positiva da diversidade das culturas e das religiões. Entretanto,
ções orais, reunidas por escrito a partir do século VI a.C. Histórias sobre um dos textos bíblicos mais queridos das pessoas que aceitam o plura­
a criação do ser humano do barro da terra são comuns a muitos povos do lismo religioso é o relato da aliança que Deus fez com Noé e, por meio
Oriente, No Brasil, a tradição afro de origem Iorubá crê que Odudua dele, com todo o universo, após o dilúvio. Deus abençoa toda a huma­
criou o homem e a mulher do baixo da terra. Histórias como o dilúvio nidade. Repete que cada ser humano é imagem viva de Deus e, por
são comuns a diversas mitologias orientais e indígenas. Se estas histórias isso, ninguém pode derramar o sangue de outro ser humano (cf. Gn 9,5).
são anteriores ao Gênesis e foram assumidas pela Bíblia como palavra de E faz a promessa de uma aliança com todo ser vivo. O arco-íris no céu
Deus, então Deus fala através dos mitos dos diversos povos. O Deutero- é sinal desta aliança universal (Gn 9,12-17). Mais tarde, a aliança feita
nômio diz: “O Senhor deu a todos os povos os elementos da natureza, o com Israel (Ex 19-20) não só não substitui esta, mas se situa dentro
sol, a lua e as estrelas e eles se prostram e os adoram. Mas, a vós, o desta mais ampla.
Senhor tomou e vos fez sair para que sejais o povo da sua herança...” (Dt
4,19-20). Na língua original, “o texto reconhece uma certa legitimidade 2.4. A sabedoria de Deus e as outras culturas
das religiões feitas aos astros”3: Um exegeta norte-americano comenta:
“Conforme este texto, os corpos celestes foram dados aos povos como Desde os anos 1970, tem sido revalorizada nas Igrejas a corrente
objeto de adoração pelo próprio Deus”4. sapiencial e os diversos livros que, até hoje, as comunidades judaicas
chamam de Ketubin: “os outros escritos”5*.A sabedoria, comprcendi-
3. A. Penna, Deuteronômio (La Sacra Bibbia), Torino, 1976, 88. Ver também:
Giovanni O dasso, Bibbia e Religioni. Prospettive bibliche per la teologia delle 5. Um livro fundamental para isso foi o de G. von R\i>, Wehheit in Israel,
religioni, Vaticano, Urbaniana University Press, 1998, 173. Neukírchen, Vluyn, 1970. Este livro está traduzido em espanhol: La Sabiduría en
4. M. W einfeld , Deuteronomy 1-11. A New Translation with Introduction and Israel, Herder, em francês, italiano e assim por diante. Na América Latina, o
Commentary (The Anchor Bible), N ew York, 1991, citado por Giovanni O dasso, projeto “Tua Palavra é Vida”, que, após a intervenção .na CLAR, foi assumida pela
idem, 173. CRB-CNBB, tinha seu quarto volume sobre os livros sapienciais.

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Pluralismo e libertação Muitas falas e uma única palavra: amor

da como o projeto da criação de Deus, é o segredo da ordem do pastor Dietrich Bonhõeífer, preso em um cárcere nazista, escrevia: “Nos
mundo e aparece em diversas culturas antigas. A sabedoria bíblica últimos tempos tenho pensado e percebido mais as coisas de forma
tem raízes babilónicas, egípcias e gregas. O capítulo 28 do livro de Jó veterotestamentária. Tenho lido mais o Antigo do que o Novo Testamen­
saúda esta Sabedoria universal e não propriamente de Israel. O capí­ to. Somente quando se ama a vida e a terra a tal ponto que se pensa que
tulo 8 dos Provérbios fala da Sabedoria como de runa antiga deusa tudo está perdido se elas se acabam, só assim se pode crer na ressurrei­
egípcia (Maat, filha do deus sol) que dá cambalhotas diante do Senhor ção dos mortos e em um mundo novo. Só quando se aceita a validade
quando este cria o céu e a terra e se faz companheira (‘mn) e conse­ da lei de Deus acima de si mesmo se pode falar também da graça e só
lheira do Senhor (Pr 8,22 ss)6. quando se leva a sério a ira de Deus contra seus inimigos pode-se dei­
Em vários textos bíblicos, a Sabedoria assume uma imagem de xar tocar o coração pelo perdão e pelo amor. Quem quer viver e com­
mulher e fala como uma espécie de Orixá ou manifestação do poder preender rápido demais o modo neotestamentário não é cristão”7.
criador ou do amor de Deus (por exemplo, Eclo 24). Essa abertura De acordo com os Evangelhos e as cartas, Jesus não veio fundar
dos livros sapienciais a outras culturas de seu tempo nos ajuda na uma religião, mas pedir a conversão de todas ao Reino de Deus. Jesus
compreensão pluralista das ações de Deus hoje em nosso mundo. chamou o judaísmo a abrir-se a toda a humanidade e universalizar-se,
Aqui seria necessário abordar os textos apocalípticos e mostrar como já pediam os profetas do exílio. Jesus é, antes de tudo, profeta
como têm raízes no diálogo e na valorização de outras culturas. Tam­ judeu e, portanto, um personagem da religião judaica, mesmo se esta
bém o livro dos Salmos seria uma importante fonte de pesquisa para não o reconheceu e até hoje tem dificuldade de inseri-lo, talvez mais
uma visão mais pluralista da fé. Não sabemos quantos, mas certamente por tudo o que os cristãos dizem e fazem em nome de Jesus do que
muitos salmos bíblicos (sem dúvida, o 19, o 29, o 104 e outros) são propriamente por ele8.
praticamente transcrições de hinos e poemas de povos como o egípcio Jesus pede a outras religiões que se abram à universalidade e,
ou o babilónico ou mesmo o cananeu a seus deuses. A Bíblia os assu­ portanto, ao pluralismo cultural e religioso. Como, então, os próprios
me e os dedica à nossa relação com o Senhor. cristãos podem fechar-se a isso?

3. O Segundo Testamento e o pluralismo religioso 3.1. A universalidade da salvação nas cartas paulinas
Muitos cristãos têm preferido chamar a parte bíblica dos livros Paulo escreveu em meados do século I, quando os adeptos(as)
cristãos de “Segundo Testamento” e não de “Novo”, por uma visão do profeta Jesus de Nazaré ainda viviam dentro das sinagogas ju­
mais respeitosa do judaísmo e o cuidado de não pensarem que nós, daicas. Paulo insiste que todos pecaram, tanto judeus como pagãos
cristãos, cremos que a Bíblia judaica é uma parte velha ou superada da
Bíblia. Essa mudança de nomenclatura não nega a dimensão própria e 7. D. B onhoeffer , Resistenza e Resa, Milano, Bompiani, 1969, 153. Tradução
nova do evento Jesus Cristo, mas o situa no conjunto da revelação bíblica brasileira: Resistência e Submissão — Herder, 1971.
8. Cf. Beatrice B ruteau (org.), Jesus segundo o Judaísmo. Rabinos e estudio­
e não como algo isolado ou oposto à primeira aliança. Já em 1943, o sos dialogam em nova perspectiva a respeito de um antigo irmão, São Paulo,
Paulus, 2003.
6. R. E. M urphy , Who is Lady Wisdom?, em “Wisdom and Creation”, revista Ver também Elena B artolini e Chiara V asciaveo, Gesú ebreo per sempre,
JBL 104 (1985) 8. Bologna, EDB, 1991.

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Pluralismo e libertação M uitas falas e um a ú n ica palavra: a m o r

e todos são salvos pela graça de Deus (Cf. Gálatas e Romanos). Se peito, arrogância e o contrário do pluralismo. Eu conheço e quero
todos são salvos pela graça, pouco importa a lei religiosa que se­ anunciar o que vocês adoram sem conhecer. Mas é preciso levar em
guem. Paulo teve de se defender de acusações sobre isso. Ele retoma conta que Paulo comenta a inscrição que ele leu em um altar: “Ao
a linguagem apocalíptica para falar da ressurreição de Jesus, aconte­ Deus desconhecido”. São os próprios atenienses que adoram um deus
cimento escatológico pelo qual Deus recria o universo e se reconcilia desconhecido e Paulo parte daí. Aceita que eles adoram verdadeira­
com toda a humanidade e com cada ser humano, em sua cultura e mente e que o deus deles é Deus, embora eles mesmos digam que o
religião. “O importante é ser uma nova criatura. Mesmo quem co­ adoram sem conhecer. Ao anunciar este Deus, Paulo garante: “Ele
nheceu Jesus de forma humana, agora já não o conhecemos assim. não está longe de vocês... Nele, vivemos, nos movemos e existimos,
(...) Deus reconciliou o mundo consigo e nos confiou o ministério da como disse um de vossos poetas” (v. 28).
reconciliação” (cf. 2Cor 5,17-18). Pela ressurreição de Jesus, crentes
e não crentes, judeus e pagãos, são chamados a viver de forma nova. 3. 2. /4 palavra e a ação de Jesus conforme os Evangelhos
Vale a pena estudai-, pormenorizadamente, o capítulo 2 da carta aos
Os Evangelhos não são biografia de Jesus e sim testemunhos de
Romanos. O julgamento de Deus iguala todos os seres humanos, sejam
como a vida e as palavras de Jesus, sua morte e ressurreição, nos
judeus ou crentes de outras religiões. “Em Deus, não há preferência
trazem o Reino de Deus. Hoje, é comum se dizer: Jesus não anunciou
de pessoas” (Rm 2,11). Ele acolhe quem pratica o bem (v. 9-10).
a si mesmo e sim ao Reino9. Se isso é verdade, então, não é justo pôr
Paulo retoma, de Jeremias e do Deuteronômio, que a verdadeira cir­
como condição para o diálogo com outras religiões que os outros
cuncisão é do coração e não da carne (Rm 2,28). “O verdadeiro cren­
aceitem a pessoa de Jesus como salvador. O pensador judeu Martin
te (judeu) o é no interior, no segredo” (v. 29). Conforme Mateus,
Buber chama Jesus de “nosso irmão maior”101*.E chegou a dizer: “A
Jesus ensinou a mesma coisa no discurso da montanha: “na oração,
fé de Jesus une judeus e cristãos. A fé em Jesus nos separa”. Ele se
na relação consigo mesmo e com os outros, o importante é agir ‘cómo
referia à forma dogmática com a qual a Igreja sempre falou sobre
quem entra no segredo do seu quarto, sob o olhar do Pai’” (cf. Mt
Jesus. Certamente, ele faria algumas nuances se tivesse lido o que
6,1-6.16-18). Isso relativiza a importância de pertencer exteriormen­
José Maria Vigil escreveu: “Crer como Jesus para crer em Jesus”11.
te a tal Igreja ou religião. Paulo ou um de seus discípulos escreveu: Mediante os Evangelhos, podemos descobrir melhor esta fé de Jesus.
“Deus quer que todos os seres humanos sejam salvos e sejam condu­
Ele teria sido discípulo do profeta João Batista e, quando recebe o batis­
zidos à verdade” (lTm 2,4). Há quem interprete esta verdade como
mo, descobre o chamado de Deus para que ele se torne profeta e servi­
uma doutrina ou uma Igreja. De fato, a verdade de Deus se revela no
dor. Os evangelhos sinótieos sublinham sua ação na Galiléia. curando os
amor e na doação da vida. Foi o que Jesus nos revelou. doentes, reconciliando com Deus as pessoas que sé consideravam pe-
O livro dos Atos dos Apóstolos, provavelmente escrito pelos anos
80, revela: No dia de Pentecostés, Pedro anuncia a fé na ressurreição 9. Ver Roger H a ig h t , Jesus, Símbolo de Deus, São Paulo, Paulinas, 2003.
aos judeus (At 2). Mais tarde, Paulo a anuncia no areópago de Atenas Tradução de Jesus, Symbol o f God, Mariknoll, New York, ,1999.
aos filósofos e crentes dos diversos deuses greco-romanos (At 17). 10. “Desde minha juventude, descobri Jesus como meu grande irmão...” Martin
B u b e r, Zwei Glaubensweien (1950), citado por Sehalom B em - chorin , Fratèllo Gesü.
Ele tenta um diálogo com outra cultura e reconhece: “Vejo vocês Un punto di vista ebraico sul Nazareno, Brescia, Ed. Morcelliana, 1985, 27.
extremamente religiosos. Pois, eu quero anunciar o Deus que 11. José María V ig il , Crer como Jesus: a espiritualidade do Reino, REB 58/232
vocês adoram sem conhecer” (v. 23). À primeira vista, parece desres- (dezembro 1998) 943-950.

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Pluralismo e libertação Muitas falas e uma única palavra: amor

cadoras e testemunhando o amor de Deus a todas. A dificuldade que e Mateus contam que Jesus passa na região de Sidom, no estrangei­
Jesus teve não foi na relação com os não religiosos ou com gente de ro, e uma mulher siro-fenícia lhe pede para curar a sua filha. Ele
outras religiões e sim com os sacerdotes, professores da Bíblia e autori­ nega: “Só fui enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel”. Mas a
dades da sua própria religião. Os “Evangelhos da Infância” (Mt 1-2 e Lc fé dela o surpreende: “Nunca encontrei uma fé dessas em Israel”. E
1-2) são comentários midráxicos sobre textos do primeiro testamento cura a menina. Em nenhum momento, o texto diz que a mulher
sem preocupação histórica. Entretanto, é significativo o que Mateus diz: tinha fé judaica (Cf. Mc 7,24-30 e Mt 15,21-28). Um oficial roma­
“Quando Jesus nasce em Belém, são os sábios de outras religiões, vindos no lhe pede que cure o seu filho, empregado ou protegido (Mt 8,5-
do Oriente que o homenageiam, enquanto os professores da Bíblia e 13; Lc 7,1-10 e Jo 4,43-54), Jesus aceita ir à casa do pagão. Isso o
chefes do judaísmo o rejeitam” (Mt 2). Esta contradição se revela em tomaria impuro perante a lei judaica. O romano percebe que põe
todo o Evangelho: os que parecem longe de Deus o acolhem e os que se Jesus em situação difícil e, depois de ter pedido que ele fosse à sua
sentem mais próximos o rejeitam. Em seu relato, Lucas conta 18 casos casa, o convence a não ir: “Senhor, eu não sou digno de que entres
de cura. Destes, Jesus faz 14 na Galiléia, em benefício do povo mais em minha casa”. Jesus elogia a fé do pagão e acrescenta: “Muitos
pobre e mais afastado da religião oficial. virão do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa do reino com
De acordo com textos evangélicos, o título que Jesus mais usou Abraão, Isaac e Jacó, enquanto pessoas que se julgam filhas ficarão
para si (e só ele se chamou assim) foi “o Filho do Homem”. Na cultura de fora” (Mt 8,11-12).
judaica, significa simplesmente o “humano”. Mas, ao que parece, E provável que Lucas e João retratem experiências de um núcleo
Jesus o tomou da literatura apocalíptica judaica. O profeta Ezequiel samaritano em comunidades cristãs do seu tempo13. Isso explica pará­
já tinha sido chamado “filho do homem” (cf. Ez 2,1.6.8; 3,1.4 ss). bolas de Jesus e sua relação com os samaritanos, embora não o tenham
Mas é no livro de Daniel que esta figura assume um papel daquele recebido na Samaría, quando ele ia para Jerusalém (cf. Lc 9,53). Além
que vem julgar o mundo e entregá-lo a Deus (Dn 7). Esta figura vem da parábola chamada do “bom samaritano” (Lc 10,25-37), da cura dos
das religiões orientais mais antigas. “É um velho mito oriental, esbo­ dez leprosos (Lc 17,11-19), o relato mais conhecido é a conversa com
çado em muitas religiões e formulado nos temas de El-Baal em Ugarit. a samaritana (Jo 4). Jesus disse: “Chegou a hora em que não adorareis
O Deus ancião cede o seu lugar e transfere o seu poder a um novo mais nem neste monte (religião samaritana), nérn em Jerusalém. Deus
Deus que está perto de nossa história.12” O próprio Jesus se denomina é espírito e verdade e deve ser adorado em espírito e verdade” (v. 23).
com o nome de uma figura mítica, representante divino do deus Baal, Estas palavras contêm uma profunda crítica a toda religião e, ao mes­
uma espécie de Orixá dos cananeus que, por sua vez, já tem relações mo tempo, um apelo a que todas se convertam a este culto em espírito
com mitos assírios e persas. Será que ele não sabia da origem pagã e verdade, independentemente de a pessoa ser judia, samaritana, cristã,
dessa figura ou, justamente, os outros nunca o chamaram assim por­ budista ou de religião indígena.
que não era muito bem aceita pelo judaísmo oficial? Achavam Jesus
meio sincrético? Não sabemos. O fato é que isso parece coerente O quarto evangelho se condensa dentro de um mundo pluralista e não
com a forma como ele se relaciona com gente de outros credos. Marcos se compreende os escritos desta comunidade se não se leva em conta

12. Xabier P ik a za , Hermanos de Jesús y Servidores de los más pequeños (Mt 13. Cf. Hugo Z orrilla C., La fiesta de liberación de los oprimidos, San José,
25, 31- 46), Salamanca, Sígueme, 1984, 103-104. Costa Rica, SEBILA, 1981, 97-110.

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Pluralismo e libertação Muitas falas e uma única palavra: amor

este emaranhado sócio-religioso de heterodoxias judaicas, cristas e outros movimentos. Paul Beauchamp, exegeta francês, há pouco fale­
em debate com o farisaísmo e o gnosticismo14. cido, escreveu: “A leitura (da Bíblia) é o gesto de voltar incessantemen­
te sobre os antigos traços escritos, pará apagá-los, em proveito da
Conforme os Evangelhos, a morte de Jesus põe fim a um modo ‘viva voz’. Realizar as escrituras é, antes de mais nada, ler e aplicar
de os humanos relacionarem-se com Deus. Sinais como o véu do estas escrituras à vida”15.
templo rasgar-se ou a palavra de Jesus contra o templo e os sacrifí­ Nós, cristãos, podemos nos apoiar na Bíblia e no testemunho de
cios (cf. Jo 2,13-21) não decorrem de uma polêmica cristã contra o Jesus para valorizar mais a Palavra que Deus dá às outras culturas e
judaísmo. Eles sublinham que, como todos os profetas, Jesus pede religiões. Já vimos, em diversos textos (cf. Jr 34, At 17), que a Bíblia
uma superação da estrutura religiosa como necessária à salvação. Ele nos abre a outras revelações de Deus; nos ajuda a valorizar outras
nos abre a uma visão da fé mais universal e inclusiva. “Ele morreu palavras e não a desvalorizá-las ou a nos fechar sobre nossa própria
para reunir na unidade todos os filhos e filhas de Deus dispersos pelo cultura. A Palavra de Deus nos conduz sempre para fora de nós mes­
mundo” (Jo 11,52). Reunir não significa tomá-los cristãos e sim mos, ao encontro do outro.
colocá-los no caminho do Reino. Hoje, a credibilidade de uma religião depende do fato de ela ser
útil à humanidade e à vida. A leitura bíblica nos une aos outros crentes.
A própria Bíblia se construiu com mitos e histórias de muitos povos e
4. O que o Espírito pede hoje às Igrejas culturas. Somos convidados a fazer uma leitura pluralista da Bíblia. A
Depois de dois mil anos de história, as Igrejas enfrentam o desa­ atividade da leitura se dá em um corpo social. Emanuel Levinas em
fio de inserir-se nas mais diversas realidades culturais dos povos. De suas Leituras Talmúdicas expõe a súplica de cada versículo bíblico:
certo modo, as Igrejas têm de “desocidentalizar-se”. Para este traba­ “Interpreta-me/”. Sozinho, ele é incapaz de fazer sentido16. Podemos
lho, um aprofundamento bíblico pode ajudar. Hoje, existe uma her­ dizer isso mesmo da Bíblia inteira: sozinha e sem ser em uma atitude
menêutica índia e negra, como existe uma feminista e ecológica... Os de pluralismo e mesmo de diálogo com outras culturas e religiões, ela
mitos indígenas, afro-descendentes ou os relatos antigos do culto da não faz um sentido atual e completo porque negaria sua origem, não
deusa contém para nós uma palavra de Deus. respeitaria o contexto da imensa maioria de seus textos e não conse­
Para nós, cristãos, a Bíblia contém uma revelação de Deus que guiria transmitir a crentes e a pessoas de boa vontade o que, hoje, o
assumiu a cultura do povo de Israel e das primeiras comunidades Espírito diz, não apenas às Igrejas, mas à humanidade.
cristãs como unia amostra do seu projeto de amor e justiça para toda
a humanidade. A Bíblia não é, em si, a Palavra de Deus, mas a con­
tém, como uma partitura musical contém transcrita nela uma melodia
que sempre pode ser executada. A Bíblia contém uma palavra de Deus,
enquanto é humana e contextualizada, por isso, passível de perma­
nente reinterpretação. A própria Bíblia revela que a palavra de Deus
não se restringe só à Bíblia. Vem pelos fatos da vida e por meio de
15. P, B eauchamp, Liin et 1’autre testament, 2, Paris, Cerf, 1990, 66.
14. Hugo Z orrilla , op. cit., 110. 16. Emmanuel L evinas, Cahier de 1'Herne, Paris, L’Herme, 1991, 129.

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Cristologia da libertação
e pluralismo religioso
José M aría V igil

O objetivo do presente livro é tentar responder aos desafíos que


tanto a pluralidade mesma das religiões como a teologia “pluralista”
das religiões fazem à teologia da libertação. Este artigo concreta­
mente quer fazer referência a esses desafios no que corresponde ao
campo da cristologia.
Temos de começar dizendo que se trata de um tema difícil, peri­
goso e, em todo caso, sumamente sensível. “A confissão de Jesus de
Nazaré como Filho de Deus, Senhor e Cristo é hoje igual ao que tem
sido durante dois mil anos, o selo e a alma do cristianismo.”1Tocar,
reconsiderar, submeter a exame, revisar, reinterpretar... mesmo que seja
só um elemento do que constitui o núcleo do dogma cristológico, é
uma aventura muito arriscada, que inspira respeito e até temor, às vezes
gerando acaloradas censuras.
Foram vários os teólogos latino-americanos — aos que temos
solicitado reflexão sobre os “desafios do pluralismo” à cristologia da
teologia da libertação (TL) — que têm nos respondido negativamente.
Houve quem nos dissesse: “Esse assunto é um ninho de vespas”, com
o que talvez não estava só expressando a dificuldade que implica mas
o medo que inspira pelas represálias que pode acarretar ao teólogo
que toque nisto com criatividade ou simplesmente com sinceridade.

1. M cD ermott, Jesus Cristo na fé e na teologia atual, Concilium 173 (março


1982) 298.

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Pluralismo e libertação Cristologia da libertação e pluralismo religioso

Outros reconheceram que não têm estudado o tema dos desafios da Igreja, no século V, substituiu os quatro evangelhos por esses quatro
teologia do pluralismo e que precisam mais tempo para entrar nele. concilios ecumênicos3*.
Algum outro expressou sua confusão entre pluralismo e ecumenis­ • Vários dos conceitos que utiliza este núcleo cristológico chegaram
mo. Eis então um tema teológico que convém abordar com responsa­ a fazer parte do imaginário cristão de maneira tal que determinadas
bilidade e prudência. expressões ficaram “ocupadas” necessariamente por um sentido
É por isso que vamos abordá-lo advertindo desde o começo que cristológico dogmático. Quando são lidas ou escutadas, os ouvintes
não tentamos dar respostas feitas nem definitivas a esses desafios, as entendem nesse sentido, mesmo que, na realidade, o sentido li­
simplesmente porque talvez nem sequer existam tais respostas. Esta­ teral original nada tenha a ver com ele. Assim, por exemplo, sem­
mos em tempos de busca, de recepção dos desafios e de primeira pre que os cristãos lêem ou escutam o título de “filho de Deus” no
elaboração, de reelaboração das fórmulas tradicionais e apenas esta­ evangelho, de fato o que compreendem é “Deus Filho” (a segunda
mos começando esse período, mais ainda na teologia da libertação. É pessoa da Santíssima Trindade, que tem “ocupado” o sentido dessa
necessário que conste assim desde o começo, honradamente. expressão no imaginário cristão comum), que é um conteúdo es­
Por outra parte, como se tem falado certamente, o que é hoje pre­ sencialmente diferente ao que tem a expressão na maior parte dos
ciso não é elaborar novas respostas, adicionais às já existentes, mas textos evangélicos.
“reescrever sobre toda a teologia”2 (e a cristologia dentro dela). Como • Este núcleo dogmático cristológico veio a se constituir realmente
se vê, é uma tarefa gigantesca, que pode tomar o tempo de toda uma no núcleo central do cristianismo: nada é considerado tão central,
geração, ou mais. Não faria sentido querer neste curto artigo mais do tão essencial, tão identificado com a mesma essência do cristia­
que assinalai- sumariamente quais parecem ser os problemas e apontar nismo. De fato, a práxis, o amor, as bem-aventuranças, o evange­
humildemente os caminhos que possam nos levar às soluções. lho mesmo têm sido pospostos a este núcleo dogmático na cons­
ciência cristã habitual: durante séculos acreditar no dogma com
Um enclave de fundamentalismo cega e inquebrantável adesão foi considerado o mais importante
da vida e da fé cristãs.
O núcleo do dogma cristológico tem algumas peculiaridades real­
mente chamativas, das quais ffeqüentemente não somos conscientes: • O cristianismo submete a estudo comparado e histórico-crítico a
• Trata-se realmente de um núcleo “dogmático” e, portanto, de uma Bíblia, a instituição eclesiástica, o próprio evangelho, mas é con­
construção eclesiástica elaborada pelos quatro primeiros “concilios siderado tabu a simples possibilidade de submeter a estudo as
ecumênicos”, mas, na consciência majoritária dos cristãos, este fórmulas que expressam o dogma cristológico: isto pareceria a
núcleo dogmático cristológico é percebido como se formasse parte alguns um ato de falta de fé ou talvez a tomada de uma posição
da revelação, dos Evangelhos, do próprio Novo Testamento. Faz- contra a fé ou quase uma blasfêmia. É de se reconhecer que, em
nos pensar no que se diz de uma forma um tanto caricata: que a certo sentido, o dogma cristológico, entendido assim literalmen­
te, mantido como a doutrina oficial elevada praticameriie ã cate-
2. A expressão é de Paul T illich , na última conferência que pronunciara, pou­
cos dias antes da sua inesperada morte, expressando a percepção de que sentia o 3. De fato há uma base real: o papa Gregorio Magno ( f 604) não vacilava em
desejo de reescrever toda sua teologia, mas a partir da perspectiva da nova situação comparar os quatro concilios e os quatro evangelhos. Cf. Luis M. B ermejo, La
do diálogo com as religiões do mundo. supuesta infalibilidad de los concilios, Seleciones de teologia 69 (1979) 78.

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Pluralismo e libertação Cristologia da libertação e pluralismo religioso

goria de revelação e por cima de tantos outros elementos evangé­ de cristologia da TL e será possível ver que, mesmo que nunca se co­
licos tem um jeito de “enclave de fundamentalísimo” dentro do loque no paradigma exclusivista, em momento algum é questionado o
cristianismo. paradigma inclusivista. É verdade que aTL é muito generosa em reco­
É assim que a TL do fim do século XX foi construída sobre a nhecer a presença de Deus e da salvação fora dos limites dà Igreja, e
suposição desse núcleo dogmático, sem duvidar dele nem submetê- que neste sentido aproxima-se do que seria uma posição pluralista;
lo minimamente a alguma crítica. A teologia do pluralismo religioso, mas essa salvação é sempre considerada em definitivo como “cristã”,
por seu lado, pede uma reconsideração, um reexame deste núcleo. É conseguida por Cristo. Os membros de outras religiões salvam-se ne­
este o primeiro desafio que a teologia do pluralismo abre à cristolo- las, mas são salvos pela salvação de Cristo, salvador universal, que está
gia da TL. E é um desafio que está inteiramente por abraçar. por cima das igrejas cristãs. O que aqui está em jogo é a mediação
universal de Cristo, por uma parte, e sua unicidade, por outra. Ambas
têm sido pressupostas naTL clássica, sem dar maior importância a esta
A superação do inclusivismo
pressuposição e tampouco submetê-la à necessária crítica. Era, sim­
Como é sabido, a TL é filha da renovação eclesial desencadeada plesmente, uma herança do que não era criticamente consciente.
pelo Concilio Vaticano II. De fato, é fruto da aplicação do Concilio Pois bem, a teologia pluralista consiste precisamente nisto: na supera­
na América Latina, aplicação promovida pelas Conferências Gerais ção do inclusivismo, no passo a um paradigma substitutivo; que é o para­
do CELAM de Medellín (1986) e Puebla (1979). O Concilio Vatica­ digma do pluralismo, o qual reconhece a salvação como presente em ou­
no II significou a superação de 19 séculos de “exclusivismo” cristão, tras religiões: uma salvação sem dependência da salvação cristã, e, por­
expresso naquela frase simbólica de “extra Ecclesia nulla salus”: fora tanto sem considerar absoluta a necessidade da mediação universal de
da Igreja não há salvação. O exclusivismo é teologicamente equiva­ Jesus, reexaminando assim o sentido da unicidade do mistério de Cristo.
lente ao eclesiocentrismo: pretende-se que a salvação seja mediada Como se tem dito, o passo ao pluralismo é uma “revolução
exclusivamente pela Igreja. copémíca”5: é o passo da visão teologicamente ptolomaica (o inclusivis­
O paradigma que substituiu àquele exclusivismo/eclesiocentrismo mo/cristocentrismo) — na qual o centro do universo está ocupado por
multisseciilar foi o do inclusivismo. É considerado neste novo paradig­ Cristo e ao redor dele giram as religiões — a uma visão copérnica, cujo
ma que a salvação acontece também fora da Igreja, mas não fora de centro é ocupado por Deus, enquanto Cristo, junto com as outras reli­
Cristo, e mesmo atingindo àqueles seres humanos que estão além das giões, gira ao redor de Deus. Como é visível, na superação do inclu­
fronteiras da Igreja, essa salvação não deixa de ser aquela alcançada sivismo, a grande mudança teológica acontece precisamente no aspecto
por meio de Cristo, salvação que pode chegar até esses seres humanos cristológico. É o passo de uma cristologia inclusivista (e portanto cristo-
mais distanciados “pelos caminhos só por Deus conhecidos”4. Por isso eêntrica) a uma cristologia “pluralista” 6; é uma revolução copérnica na
se diz que o inclusivismo é teologicamente equivalente ao cristocen- cristologia. Então, esse é o outro grande desafio com o qual a cristologià
trismo: não sendo mais a igreja que está no centro, mas Cristo.
5. Hick, God and the Universe o f Faiths. Essays in the Philosophy o f Religión,
A TL latino-americana clássica tem sido construída sobre o para­
London, Macmillan, 1973, 131; Id, God has many ñames, Philadelphia, The
digma do inclusivismo/cristocentrismo. Recorra-se a qualquer tratado Westminster Press, 1982, 69ss.
6. Dizemos “pluralista” no sentido do “paradigma” teológico, por contrapo­
4. GS 22. sição a “inclusivista”.

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Pluralismo e libertação Cristologia da libertação e pluralismo religioso

da libertação tem que se defrontar. E é um desafio que, também, está Foi necessário o aparecimento da teologia anglo-saxônica do pluralis­
ainda por ser assimilado... mo para nos conscientizar de que, ao longo da história, o relato cristão
da encarnação tem sido utilizado propositadamente como instrumento
O "relato" da encarnação em exame de dominação10. De fato, alguns desses usos históricos têm tido lugar
O relato da encarnação, como encarnação da Segunda Pessoa da precisamente na história da América Latina, e mesmo se a TL é bem
Santíssima Trindade, é outro desses elementos que estão colocados no consciente desses “maus frutos que não podem vir de uma boa árvore”,
centro do núcleo cristão até se consolidarem, de fato, como o centro não submeteram a exame a doutrina que poderia ser a causa. É, sem
mesmo do cristianismo. Para a mentalidade cristã popular e para a dúvida alguma, um desafio encarado anteriormente pela teologia anglo-
opinião pública geral, mesmo a não crente, o relato da encarnação saxônica, mas um desafio que a cristologia latino-americana da liber­
constitui o próprio centro do cristianismo, o relato (ou megarrelato) tação latino-americana não pode deixar de assumir como uma respon­
essencial cristão, o axioma, ou o postulado básico. Como tal, tem pas­ sabilidade especial.
sado séculos e séculos sem ser questionado, sem revisão crítica nem A proposta do chamado “pluralismo hickeano” 11, de reexaminar
reexame em nível teológico, mesmo se tendo de reconhecer que a inin­ o relato da encarnação para redefinir seu caráter realmente metafísico
terrupta sucessão de “heresias” produzidas nas sucessivas tentativas de literal, ou melhor, seu símbolo metafórico, é um desafio não cuidado
explicar a encarnação não deixa de ser um questionamento crítico in­ pela TL até agora, mas que tampouco pode ignorar. Provavelmente
direto. Algo não funciona bem na proclamação de um mistério cujas tenha sido por falta de tempo e pela “prioridade de natureza” da qual
tentativas de explicação teológica, ao longo de um milênio e meio, estavam revestidas as urgências maiores da TL. Mas agora que o de­
resultam desqualificadas uma atrás da outra como heréticas7. safio está servido em bandeja por outra teologia e sobre a mesa, não
A cristologia da TL não é, de maneira alguma, ingênua a respeito é mais possível tardar o momento do confronto.
dos gêneros literários bíblicos nem, concretamente, a respeito dos evan­
gelhos da infancia8, mas parece nunca ter sido necessidade de revisão "Jesus Filho de Deus"
deste “relato” da encarnação. E mais: A TL ficou famosa por sua “her­
menêutica da suspeita”, ou seja, por sua capacidade de intuir critica­ A reavaliação da expressão “Filho de Deus”, ou o sentido profun­
mente os interesses ocultos por trás das teorias mais religiosas ou mais do dessa afirmação da divindade de Jesus, é outro dos desafios pen­
sublimes, porém a cristologia da libertação não aplicou esta atitude dentes da cristologia da libertação com o qual não houve confronto
critica ou essa “hermenêutica da suspeita” ao relato da encarnação9. até agora.
Também aqui deveríamos dizer, justificando esta cristologia da
7. Para Jon H ick essa é uma prova de inverossimilhança da encarnação tomada libertação, que ela é jovem demais para ter abordado, em apenas 25
no sentido literal, inverossimilhança que ficaria superada inteiramente ao ser toma­ anos úteis, todos os temas. Logicamente se concentrou em temas
da no sentido metafórico. Cf. The Metaphor o f God Incarnate. Christology in a
Pluralistic Age, Louisville, Westminster/John Knoex Press, 1993; traduzido para o
mais nucleares e urgentes, deixando para momentos mais sossega-
português como: A Metáfora do Deus Encarnado, Petrópolis, Vozes, 2000.
8. Cf. Leonardo B off , Jesucristo liberador, Santander, Sal Terrae, 1980, cap. 9. 10. Vide por exemplo John H ick , The Metaphor o f God Incarnate, cap. 8, 80ss.
(Em português, publicado como Jesus Cristo Libertador, Petrópolis, Vozes. Nota Tradução castelhana: La metáfora de Dios Encarnado, Quito, Abya Yala, 2004,
da revisão.) colección “Tiempo axial”.
9. Paul K n i t te r , N o Other Ñame?, Maryknoll, Orbis, 1985, 163. 11. Ibid.

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Pluralismo e libertação Cristologia da libertação e pluralismo religioso

dos a abordagem dos pontos mais discutidos ou sofisticados, mes­ nem podemos nos contentar com a reapropriação da reflexão que sobre
mo que não fossem menos decisivos. Este é o caso da filiação di­ elas fizeram os grandes clássicos medievais, É preciso dar uma nova
vina de Jesus. palavra, uma reinterpretação atualizada, e corajosa, que aceite definitiva­
Feita essa justificativa, devemos esclarecer que esse desafio não mente a relatividade do que é relativo para poder defender mais legitima­
é, na realidade, originário da teologia pluralista, pois não tem deixado mente a absoluticidade do que é realmente absoluto. Já acontecem ten­
de estar presente ao longo da história da teologia ocidental, mesmo tativas em outros âmbitos geográficos, como a de Robert Haight1?. Po­
que de maneira discreta e um tanto reservada aos especialistas. O rém, não tem havido ainda nenhuma tentativa explícita e sistemática no
número 173 da revista Conciliam, de março de 1982, está inteira­ campo da cristologia latino-americana da libertação. Este é o desafio,
mente dedicado a este tema, e evidencia que a problemática não é que não deveria ficar desatendido pelo fato de que — por obra e graça
latino-americana nem liberacionista. Porém, a teologia do pluralismo dos censores — o tema seja efetivamente um “ninho de vespas”1314.
religioso tem dado um impulso poderoso a essa questão, que se conver­ Concluamos. Só por antiintelectualismo ou por um marcado utili­
te no centro de uma série de questões-chave em torno do pluralismo tarismo pragmático poderá-se dizer que esses desafios são “questões
(unicidade de Jesus, mediação universal de Cristo, caráter absoluto teóricas abstratas”. A realidade é que estão carregadas de uma enorme
do cristianismo etc.). É por isso que podemos incluí-lo como um de­ repercussão prática. São pontos sensíveis cuja alteração ou reinterpre­
safio também da teologia do pluralismo. tação virá desencadear na prática uma verdadeira releitura total do
O trabalho a desenvolver na recepção e digestão desse desafio é cristianismo. Não há nada mais efetivo na prática do que uma trans­
múltiplo e interdisciplinar. formação teórica realmente lúcida e decisiva.
Existe, em primeiro lugar, um evidente substrato simplesmente Não cabe também dizer que estes temas nos dias de hoje não
histórico, pois se trata de reexaminar o processo de sua mesma cons­ preocupam nosso povo cristão... Esse “basismo” deveria ficar despres­
trução eclesial: o ambiente, o contexto, a legitimidade, a participação tigiado apelando-se simplesmente à capacidade antecipadora que os
dos atores nos “quatro concilios” que já assinalamos foram o marco teólogos(as) têm a respeito do povo de Deus, indo em frente, gerando
dessa elaboração dogmática. questões às quais aquele custa se abrir, sem temor de “escandalizá-
E necessária mesmo assim uma releitura do caráter mesmo dos lo”, mas confiando em um pedagógico espírito profético que lhe ajude
“dogmas” e da dimensão “hermenêutica” ou interpretativa de toda a abrir corações e mentes a estes novos horizontes.
teologia12, de maneira que seja superado o trauma fixista e a-históri- Como temos dito, a cristologia da libertação deve começar a en­
co de algumas visões teológicas clássicas que não deixam de estar carar estes desafios com seriedade, mas sem medo, apesar das ameaças
presentes na teologia latino-americana. dos censores assustadiços. As cristologias não são senão “construções
E, finalmente, necessário dar uma abordagem corajosa a este tema
no nível mesmo do núcleo da cristologia dogmática. Não pode ser con­ 13. Jesus, Symbol ofG od, Maryknoll, Orbis, 1999. Tradução brasileira: Jesus,
fundido o dogma cristológico com o conteúdo mesmo da revelação, nem símbolo de Deus, São Paulo, Paulinas, 2003. A idéia central é a da humanidade de
Jesus, que na opinião do autor constitui a chave para uma abertura do cristianismo
é lícito repetir fórmulas já muito antigas sem revisão nem atualização, às outras religiões; uma cristologia a partir da base, nascida da exigência de reco­
lher e afrontar as dúvidas de tantos católicos, sobretudo jovens, que a cada dia se
12. Claude G effré, E l cristianismo ante el riesgo de la interpretación, Madrid, confrontam com identidades culturais e religiosas diferentes da sua.
Cristiandad, 1984. J. J. T amayo, Nuevo paradigma teológico, Madrid, Trotta, 2003, 14. D e fato, o texto de Haight já está em estudo no ex-Santo Ofício, e lhe tem
cap. 5: Horizonte hermenêutico. sido proibido exercer a docência teológica.

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Pluralismo e libertação

transitórias que utilizam instrumentos conceituais contingentes”, diz


Christian Duquoc15. Não são construções eternas, nem dão respostas
Cristologia afro-latíndia:
às perguntas eternas que também não existem, porque quem as faz discussão com Deus
são sujeitos históricos. Em cada momento devemos nos esforçar por
aportar ao rio da história nossa resposta de fé, tradicional e ao mesmo M arcelo Barros
tempo original. É nosso dever histórico, hoje e aqui. Vamos cumpri-
lo. Amanhã outros terão a palavra e também deverão fazer a melhor
contribuição de que sejam capazes.
Evidentemente existem muitos outros desafios. Os poucos que
temos enumerado são, sem dúvida, os maiores, que levam outros em
seu próprio seio. São como cachos de desafios que se relacionam
mutuamente. O importante é começar a dar respostas já! “É a Ti que as pessoas chamam quando invocam a quem adoram.
Tu me ensinaste a conversar contigo através das criaturas e até das
coisas inaminadas. O espantoso não é que eu dirija a elas a palavra.
A maravilha é que até as coisas inanimadas me respondem e me fa­
lam do teu amor.” 1
A oração sempre tem algo de inefável. Publicar uma oração é
quase como devassar um gesto íntimo de amor. Mas queres que viva­
mos tua aliança de forma comunitária e, por isso, ouso partilhar com
meus irmãos e irmãs esta conversa contigo. Encarregaram-me de
escrever sobre Jesus Cristo, de forma que ele não continue sendo
causa de fechamento de seus discípulos aos outros crentes. E preciso
que, como sugeria o papa João XXIII, o seu mistério de vida e de
intimidade contigo seja explicado de forma que una e não que divida.
Como fazer isso, a não ser na oração? Então, dá a mim e aos irmãos
e irmãs que leiam estas linhas, o teu Espírito de amor maternal. Ilumi­
na-nos com o discernimento da verdade que procuramos e a qual só
atingiremos quando a descobrirmos no amor.

1. Uma confissão prévia


Na relação com o mundo moderno, o pastor Dietrich Bonhõeffer,
teu servo e mártir na Alemanha nazista, retomando uma expressão de
15. Mesianismo de Jesús y discreción de Dios. Ensayo sobre los límites de la
cristologia, Madrid, 1985, 11. 1. Tradução livre de uma oração de um místico sufi medieval.

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Pluralismo e libertação Cristologia afro-latíndia: discussão com Deus

Grotius, escreveu que era preciso viver contigo, etsi Deas non daretur, Jesus propõe e tomar-me, cada vez mais semelhante a ele, em quem
“como se não houvesse Deus”. Não posso aplicar isso diretamente à reconheço tua presença e ao qual quero seguir como discípulo.
relação com outros crentes ou com os ateus, mas, em certo sentido, Houve um tempo em que, na minha comunidade, tomávamos na
uma postura correspondente a essa pode ser útil neste desafio de como Missa o Credo de Nicéia. Eu orava com o maior fervor as fórmulas dos
viver a fé diante do pluralismo cultural e religioso. Peço-te, então, antigos Concilios. Desde os tempos em que estudei Teologia, sabia que
permissão para me colocar no lugar das pessoas que crêem em ti nas foram Concilios convocados pelo imperador e com interesses mais
mais diversas crenças e mesmo preciso me sentir na pele de um ateu2. políticos que religiosos. Percebia que suas fórmulas são mais gregas e
Sabes que, fazendo isso, não estou renunciando à minha fé. Ao contrá­ filosóficas do que bíblicas e respondiam a problemas daquela época.
rio, estou enriquecendo-a, como me ensinou o próprio Jesus que, con­ Entretanto, no fundo, as amava. Agora, vejo que devo revê-las. Por trás
forme os Evangelhos, tantas vezes, pôs pessoas de outra cultura ou das fórmulas cristológicas antigas, além desses problemas políticos, há
outra religião (a mulher siro-fenícia, o oficial romano e o samaritano) também uma questão religiosa. Nos tempos antigos, muitos bispos
como exemplos de fé. puseram-se do lado do imperador, não porque estavam convictos que
Para abrir-me aos outros no plano da fé, não devo reduzir a formu­ aquela formulação da fé era a mais justa, mas porque, unidos ao Impé­
lação da fé a algo aceitável por todos. Os sistemas culturais que ba­ rio, teriam maior autoridade e liberdade para a missão. Ajuda-me, ó
seiam as diversas tradições religiosas são profundamente diferentes um Deus, a discernir se estou julgando mal quando percebo que alguns
do outro e não se encontrarão em uma espécie de mínimo denomina­ ministros e autoridades eclesiásticas insistem na centralidade do Cristo
dor comum. Reconhecer o pluralismo como positivo para a fé é assu­ não tanto para seguir Jesus, mas para reforçar o seu poder religioso.
mir essa diversidade “irredutível” e não tentar “aprisionar” os outros,
julgando-os a partir do esquema próprio da nossa fé. Não se trata de 2. A partir de que realidade, te clamo?
repensar a Cristologia para ser aceita pelos judeus ou muçulmanos. O
Tu sabes, moro em uma cidade que, há três séculos, era morada de
desafio é reformular a Cristologia para nós, cristãos, para que nos aju­
um numeroso povo indígena. Para tomar o seu ouro e escravizar seus
de a abrir-nos ao outro e a perceber os teus muitos caminhos, ó Deus.
filhos, conquistadores o exterminaram, com armas de fogo e a cruz. O
Confesso-te que, nos últimos tempos, tenho enfrentado uma crise,
povo Goyá foi exterminado. Hoje, no centro da cidade, persiste o mo­
não de fé, mas na forma de expressar a fé. Desde a infância, habituei-
numento da Cruz do conquistador, como sinal de vitória da civilização.
me a orar com a liturgia e aprendi a amar o seu conteúdo cristocêntrico.
Permite-me recordar que, na conquista da América Latina, era
Hoje, o compromisso com a humanidade, o testemunho do teu Reino
costume os conquistadores espanhóis e portugueses lerem para os índios
e o próprio amor a Jesus me obrigam a rever o modo de orar e as
um documento (O Requerimento) que proclamava a superioridade do
fórmulas às quais me habituei. A fé vai além das expressões, como o
cristianismo, única religião fundada diretamente por Deus que, por meio
amor é maior do que seus gestos. Mas não posso aceitar que palavras
do papa, sucessor de São Pedro, tinha entregue aquelas terras aos reis
e gestos da fé sejam exclusivistas e arrogantes. Quero crer em ti como
de Portugal e Espanha. Se os índios não aceitassem aquela verdade
religiosa e política, poderiam ser legítimamente escravizados e mesmo
2. Um dos requisitos para o diálogo ecumênico e inter-religioso é que a pessoa
assuma a própria identidade e assuma a sua fé com clareza. Proponho-me a esta
mortos porque impediam a propagação da verdadeira religião.
“renúncia pedagógica” em vista da tarefa de reelaborar uma Cristologia aberta ao Será que todas as religiões não se tomam intolerantes e absolu­
pluralismo e não como método de diálogo ecumênico ou macroecumênico. tistas quando legitimam o poder político? É o que dizem, por exem-

172 173
Pluralismo e libertação Cristologia afro-latíndia: discussão com Deus

pío, os crentes da Fé Baha’i, perseguidos pelo governo islâmico xiita toral, não suficientemente desenvolvido em termos teológicos; desa­
dos ayatolás iranianos e, por outro lado, os muçulmanos, vítimas do fio que hoje procuramos completar.
governo que se diz budista em Mianmar (ex-Birmânia). No Ocidente Em toda a América Latina, a situação de tantas pessoas que pro­
e nos países colonizados pela Europa, o cristianismo viveu isso por fundamente se sentem cristãs e, ao mesmo tempo, pertencem a urna
mais de mil anos. Entretanto, muitas vezes, na historia, o instrumento religião afro-descendente ou indígena não cabe nos padrões do inclu­
usado para esta supremacia do poder político foi a imposição a todos sivismo e é um caso sui generis de diálogo “intrapessoal”4*,uma recon­
do dogma da divindade de Jesus Cristo3. ciliação de dois caminhos espirituais no próprio coração do crente. É
Hoje, neste mundo marcado pelo aumento descomunal da po­ uma convivência com um pluralismo profundo no coração da própria
breza e pelo pluralismo cultural e religioso, peço-te a graça de escu­ fé cristã. Conheço pessoas apaixonadas por Jesus e iniciadas no Can­
tar a tua palavra e a inspiração do teu Espírito nas outras religiões. domblé como filha de Iansã ou Nanã. Não vêem contradição nisso
Começarei especificamente pelas religiões autóctones dos nossos nem precisaram elaborar uma tese inclusivista para aceitar essa “dupla
povos latino-americanos. pertença”, termo impróprio que não descreve a integração que ocorre
no coração antes de acontecer na teologia.
3. Cristologias que não excluem os outros Irmãos e irmãs do Candomblé me dizem: “Nós não seguimos a
A teologia da libertação nasceu e se desenvolveu a partir do ser­ religião cristã, mas não temos dificuldade em crer em Jesus como Fi­
viço pastoral às comunidades e movimentos populares. Partiu das lho de Deus. E claro que Jesus é divino e temos por ele o maior amor”.
reflexões das comunidades cristãs que procuravam unir sua fé ao com­ Em Salvador, Bahia, o povo tem como celebração máxima a Festa
promisso de libertação. Não se colocava o problema de elaborar uma do Senhor do Bonfim. Muita gente une o culto prestado a Jesus à
Teologia ou Cristologia aberta ao pluralismo como hoje o desafio homenagem a Oxalá. Também as crenças indígenas e o catolicismo
aparece. Desde após a Conferência do Episcopado Latino-americano popular, com seus milhares de santos, vivem a fé como aliança de
em Medellín (1968), buscou-se um novo modelo de Pastoral Indi­ proximidade e não vêem contradição entre a fé em Jesus Cristo e as
genista. Esta denunciou o desrespeito às religiões e tradições indíge­ devoções populares mais autônomas. Falando aos monges em Goiás,
nas, defendeu o direito de os índios terem suas religiões próprias e um teólogo da libertação contou que no sertão do Nordeste brasileiro
nunca se colocou como serviço missionário para converter índios ao pessoas católicas crêem que o padre Cícero Romão Batista, padre
cristianismo. Para isso, foi obrigada a elaborar uma missiologia aber­ santo e líder regional no início do século XX, faz parte da Santíssima
ta ao pluralismo. Trindade. Perguntados por que acreditavam nisso, responderam: “É
O mesmo se deu com os agentes de pastoral consagrados aos que ele consagrou toda a vida para servir aos mais pobres”.
grupos e comunidades negras. Conviveram com o pluralismo e o seu Eles crêem que tal ser é divino por sua solidariedade aos mais
trabalho não cabe nos modelos ou etiquetas de exclusivismo ou pobres. É claro que qualquer pessoa que escuta estes testemunhos da
inclusivismo. Era, ao menos, um tipo de pluralismo espiritual e pas- espiritualidade afro-descendente, indígena e mesmo do catolicismo
popular latino-americano sabe que o sentido que eles dão à fé em
3. Cf. S ervicios K oinonia , Curso de Teologia Popular sobre Pluralismo Reli­
gioso, Aspectos dogmáticos cristológicos, Unidad didáctica 12, site da Internet 4. Cf. R. P anikkar , The Intrareligious Dialogue, New York, Paulist Press, 1978.
Servicios Koinonia. Tradução francesa: Dialogue intrareligieux, Paris, Aubier.

174
Pluralismo e libertação Crlstologia afro-latíndla: discussão com Deus

Jesus, como Filho de Deus não é o mesmo da tradição oficial da nhecem Jesus de Nazaré como profeta e se sentem tocados pelo seu
Igreja. Certamente, nenhuma dessas correntes latino-americanas es­ modo de se relacionar com o Deus da Aliança como o Abba, Paizinho.
tará de acordo com a visão exclusivista segundo a qual só Jesus é o Um rabino que conhece o Novo Testamento lembrou que, conforme a
salvador da humanidade e Filho Único do Pai. carta aos hebreus, a filiação divina é condição comum a todos. “Aquele
Em um encontro inter-religioso no Mosteiro de Goiás, em um por quem e para quem tudo existe quis conduzir à glória uma multidão
momento de celebração cristã, os monges proclamaram um Credo de filhos e filhas. Para isso, quis, através do sofrimento, levar o iniciador
ecumênico. No final da celebração, várias pessoas perguntaram por de sua salvação à plenitude. Porque o santificador e os santificados
que os monges disseram no tal Credo: “Creio em Jesus Cristo, filho têm todos a mesma origem. Assim ele não se envergonha de chamá-los
único de Deus”. Retrucavam: “Por que ‘único’? Não somos todos, filhos seus irmãos” (Hb 2,10).
e filhas de Deus?” Um monge deu a explicação tradicional: “Para a
nossa fé, ele é o filho único, no sentido de ‘único gerado por Deus’. 4. Pressupostos para uma cristologia aberta ao pluralismo
Nós todos somos filhos adotados”. Um fiel do Zen-budismo tibetano
Não posso aprofundar a doutrina sobre o Cristo sem verificar o
contestou: “Eu creio que o Dalai Lama é ‘a 14a reencamação do Buda
modo como falam de Ti, Deus Amor. Muitos teólogos já escreveram
da Compaixão’. E não tenho dificuldade em aceitar Jesus como grande
que a Cristologia depende da doutrina sobre a Trindade. Nestas pági­
bothisawa ou mesmo filho de Deus. Mas não compreendo o ‘único’.
nas, não quero e não posso enfrentar este desafio de como formular
Gerado em que sentido? Deus Espirito gerou o corpo humano de Jesus?
a teologia da Trindade de modo novo e aberto ao pluralismo. Mas,
Li esta mesma história em vários mitos gregos antigos. A atual exegese
quero tocar em alguns aspectos que, percebo, podem ser úteis como
já provou que as histórias dos Evangelhos sobre a anunciação e o nas­
fundamentos para uma Cristologia pluralista.
cimento de Jesus em Belém são parábolas ou, como dizem os judeus,
midrashes. Como vocês continuam a crer nisso ao pé da letra?”
4 .1. Uma cristologia de adoração ao Deus de Jesus
No âmbito do Judaísmo, o grande filósofo e espiritual Martin
Buber confessava: “Desde minha juventude, senti Jesus como meu Um importante pressuposto para uma Teologia e também uma
grande irmão. Que a cristandade o tenha considerado e o considere Cristologia aberta ao pluralismo é a aceitação humilde da inefabili-
como Deus e Redentor sempre me pareceu como um fato a ser toma­ dade do teu mistério. Mesmo se é verdadeira a fórmula de que a fé
do extremamente a sério e que eu devo procurar compreender por si busca a compreensão, é importante respeitar os limites. No século IV,
e para mim mesmo... Para mim, é mais certo do que nunca: que com­ Gregorio de Nissa já ensinava: “A simplicidade da fé verdadeira pre­
pete a ele um lugar importante na história da fé de Israel e que nenhu­ sume que Deus seja o que Ele é, a saber, incapaz de ser captado por
ma das categorias usuais a pode circunscrever”5. qualquer termo, qualquer idéia ou qualquer artifício de nossa apreen­
O judaísmo não pode aceitar Jesus como messias em nome mes­ são. Ele permanece além do alcance não só do humano, mas também
mo de sua missão ética. Reconhecer que o Messias já veio e é tal pessoa da inteligência angélica e supramundana. E impensável e impronun-
seria ocultar a situação de exílio da humanidade que durará até o fim. ciável, possuindo apenas um nome que pode representar sua natureza
Entretanto, cada vez mais, pessoas espirituais dentro do Judaísmo reco- apropriada. Este nome único é ‘acima de todo Nome”6.

5. M. B u b e r, D e u x ty p e s d e f o i (allem an d , 1 9 5 0 ), P aris, C erf, 1 9 9 1 , 3 3 . 6 . G regorio d e N issa, A g a in s t E u n o m iu s, livro 1, cap. 4 2 .

176
Pluralismo e libertação Cristologia afro-latíndla: discussão com Deus

Na Idade Média, Mestre Eckhart, um dos maiores místicos do templativa, são elementos fundamentais de uma Cristologia aberta ao
Ocidente, ensinava: “Tudo o que você faz e pensa sobre Deus é mais pluralismo cultural e religioso.
você do que ele. Se absolutiza isso, você blasfema porque o que real­
mente ele é nem todos os mestres de Paris conseguem dizer. Se eu
tivesse um Deus que pudesse ser compreendido por mim, não gostaria 4.2. Os diversos ícones de tua presença
nunca de reconhecê-lo como meu Deus. Por isso, cale-se e não espe­ Tu me chamaste, desde jovem, a dialogar e buscar comunhão com
cule sobre ele. Não lhe ponha roupas de atributos e propriedades, outras culturas e religiões. Até alguns anos, eu fazia isso como ato de
mas aceite-o ‘sem ser propriedade sua’, como um ser superior a tudo amor, mas estava tão convencido de ter a plenitude da tua revelação
e como um Não Ser superior a tudo”7. que pensava não precisar aprender nada dos outros. Olhava-os com
A Teologia Feminista também tem pedido esta volta da teologia a respeito, mas como se eles procurassem o que eu, gratuitamente, já
uma dimensão mais orante e respeitosa do mistério. Em um artigo na encontrara na Bíblia e na revelação de Jesus Cristo. O primeiro choque
KELAT, falando de “Cristologia no Feminino”, a teóloga uruguaia, Maria foi quando, em um momento de culto no Candomblé, testemunhei a
Tereza Porcile, que, infelizmente, nos deixou prematuramente, escre­ manifestação de Iansã sobre uma filha e, de repente, senti tua presença
veu: “O fruto mais maduro da busca de uma Cristologia aberta aos de tal forma clara e forte que chorei. Tive como uma espécie de inveja
problemas do mundo atual será uma teologia de contemplação e mis­ daquele êxtase que a mim, no meu caminho de fé, nunca me deste.
tério da Transcendência. Isso nos levará a uma cristologia apofática, Há anos, verifiquei que irmãos e irmãs das religiões populares
em perspectiva de adoração... (...) Esta teologia apofática resgatará a latino-americanas não gostam de dizer se são monoteístas ou politeís­
perspectiva simbólica da linguagem: uma perspectiva dinâmica, aber­
tas. Percebem estas categorias de julgamento como artificiais e inade­
ta, inclusiva. (...) Esta cristologia de inclusão do anthropos, do ser
quadas. Uma vez, perguntada se acreditava em um só Deus ou em
humano e não da exclusividade do masculino, será capaz de gerar a
muitos, uma mãe-de-santo respondeu: “A água é uma só ou são mui­
comunhão eclesial e um estilo de ser Igreja onde as relações sejam as
tas?” Responderam: “Depende. Químicamente a água é uma só: H20.
do discurso de despedida, atribuído a Jesus pelo Evangelho de João.
Mas suas expressões concretas são muitas e diferenciadas”. A mãe-
Ali, Jesus aparece como servo e chama os discípulos e discípulas de
de-santo concluiu: “Deus também é assim”.
amigos. O contexto é o do anúncio do envio do Espírito. Este fato
Uma concepção rígida diria que as religiões populares são “mono­
deveria ter gerado sempre uma relação entre a Cristologia e a Pneuma-
teístas” no sentido de crer em um só Deus, mas praticam a polilatria,
tologia. Sua integração é tarefa deste tempo próximo...”8.
adoram vários espíritos sagrados. Mediante o culto dos espíritos, todos
Quando escreveu isso no início dos anos 1990, a perspectiva de
querem adorar o mistério divino que é uno e, ao mesmo tempo, múltiplo.
Maria Tereza Porcile não era ainda uma Cristologia aberta ao plura­
Roger Haight nos recorda: “Hipostasiar é interpretar um conceito
lismo religioso. Entretanto, o que ela propõe: uma descontrução da
como um ser existente. E concretizar e materializar uma idéia. E con­
linguagem androcêntrica, a integração da Cristologia com a pneuma-
ceber o objeto de uma figura de retórica como se fosse uma realidade.
tologia e principalmente este pedido de uma Cristologia mais con-
Na Escritura há símbolos como Sabedoria, Logos, Espírito; não são
7 . C f. F. P fe iffe r, M e is te r E c k h a rt, A a le n , 1962, 183.
hipostatizações e sim personificações. A personificação é uma figura
8. M aria T eresa P o rc ile , C risto lo g ia en e l F em in in o, e m R E L A T 170, S e r v ic io s de retórica em que se trata ou se fala consciente ou deliberadamente do
K o io n o n ia n a Internet. símbolo como uma pessoa. Pr 8 contém uma personificação claramen-

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Pluralismo e libertação Cristologia afro-latíndia: discussão com Deus

te deliberada da inteligência ou da sabedoria de Deus como se fosse 4.3. Uma leitura nova dos textos bíblicos
uma pessoa e agente pré-existente de Deus. Os textos sapienciais usam Um primeiro elemento de uma nova leitura da Bíblia é uma nova
urna figura de retórica. Não tencionam transformar a sabedoria em um compreensão do projeto divino e do que significa salvação. A teologia
ser distinto ou individual. O problema é que, na continuidade dos tem­ da libertação nos fez compreender a salvação em termos históricos de
pos, símbolos que foram hipostasiados passaram a ser vistos como se libertação de todas as opressões. Hoje, caminhos espirituais ligam a cura
fossem seres autônomos. Muitos autores atuais se perguntam sobre se interior à cura da terra e a salvação à realização plena da vocação huma­
isso não aconteceu com o Logos, ou Verbo Divino. Vê-lo personifica­ na. Como o Jesus joanino dizia: “Eu vim para que todos tenham vida
do na pessoa histórica e humana de Jesus de Nazaré é correto e justo. e vida em plenitude” (Jo 10,10). Talvez devamos retomar Santo Irineu
Mas muitos estudiosos sérios se perguntam se foi correto deduzir daí de Lyon que pensava a salvação em um sentido de pleroma (plenificação)
uma nova natureza em Jesus e tudo o que decorre deste tipo de racio­ da vida e não apenas de livrar a pessoa ou a humanidade do inferno.
cínio”9. O que os afro-descendentes chamam de “Orixás”, ou “Inquices”, As primeiras comunidades cristãs, escandalizadas com a morte
e alguns grupos indígenas chamam de “espíritos da natureza” aparece de Jesus na cruz, tentaram compreendê-la, à luz das profecias do
na Bíblia como “anjos”, ou às vezes, toma o aspecto da “Glória do Servo Sofredor, como sacrifício querido por Deus. Jesus não inter­
Senhor”, ou mesmo da Palavra de Deus. O Novo Testamento chama pretou sua morte assim. Não pensou que morria para salvar o mundo.
Jesus de “Verbo” e “Filho saído de ti, expressão maior do teu amor”. “A atual pesquisa sobre o Novo Testamento pode dizer: Jesus não
O que os autores antigos querem dizer com isso não é exatamente o entendeu sua morte como sacrifício expiatório, nem como satisfação,
mesmo que depois foi definido nos Concilios do século IV Cristãos nem como resgate. Nem estava em sua intenção precisamente me­
que na Ásia vivem o diálogo com as grandes religiões asiáticas pedem diante sua morte redimir a humanidade. Na mente de Jesus, a reden­
um retorno da fé à realidade do Jesus histórico101. ção do gênero humano dependia da aceitação de seu Deus e do modo
Larry W. Hurtado investigou como os judeus cristãos primitivos de viver para os outros, como ele lhes pregava e mesmo vivia. Para
veneravam Jesus no culto e, ao mesmo tempo, não se sentiam desres­ Jesus, salvação e redenção não dependiam de sua futura morte, mas
peitando o monoteísmo judaico. Desde o primeiro século, Jesus foi do fato de eles se deixarem penetrar por Deus universalmente bom,
objeto de adoração por parte dos cristãos. Mas não o adoravam de revelado por Jesus. Isso deveria levar os humanos a um comporta­
forma independente, ou como se se tratasse de uma religião do mento correspondente ante o próximo, fazendo-os livres e libertados.
Deus Jesus. Adoravam-no como o Cristo de Deus, “para a glória A redenção viria mediante o amor que passa às obras e que nasce de
de Deus Pai” (F12,9-11). “A devoção a Jesus não acarretava confusão uma fé confiante em Deus (G1 5,6).”12*
entre ele e Deus, nem fazia de Jesus um segundo Deus”11. Já na década de 1970, Leonardo Boff escrevia: “A idéia do sacrifício
expiatório do justo, portanto de Jesus, surgiu em ambientes judeus da
9. R o g er H a i g h t ,Jesus, Símbolo de Deus, trad. S ã o P aulo, P aulin as, 2 0 0 3 , 30 1 . diáspora. (...) Na Palestina, os sacrifícios expiatórios no templo, onde
10. A . P ie r is , Une théologie asiatique de la libération, P aris, C en tu rión , eram oferecidos animais e era derramado sangue, impediam essa inter­
1 9 9 0 , 114 (trad d o in g lê s A n A s ia n T h e o lo g y o f L ib eration , E d in b u rgh , T & T
C lark, 1988.
pretação. A ninguém passaria pela cabeça que a morte e o sangue de
11 . Larry W. H u rta d o , One God: Early Christian Devotion and Ancient Jewish
Monotheism, P h ilad elp h ia, F ortress P ress, 1988, 121. C itado p or R og er H a ig h t, 12. H . R e s s l e r , Erlõsung ais Befreiung, D ü sseld o rf, 1 972, 2 5 , citad o por L.
Jesus, Símbolo de Deus, trad. S ão P au lo, P aulin as, 2 0 0 3 , 3 0 0 . Boff, Paixão do Cristo, paixão do mundo, P etrópolis, V o zes, 82.

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Pluralismo e libertação Cristologia afro-latíndia: discussão com Deus

um justo pudesse servir para expiação de pecados. Sangue humano Não será fácil pregar nas Igrejas e dizer aos cristãos que a redenção
jamais era tido como sangue sacrificial e expiatorio. Os judeus da acontece não mediante a morte sacrificial de Jesus na cruz (Tu não
Diáspora, porém, que não tinham templo, podiam usar semelhante ter­ precisas dela), mas mediante o amor que passa às obras e que nasce
minologia aplicada ao sangue humano, num sentido figurado. Eles de uma fé confiante em Ti (G1 5,6)14. Isso em nada diminui o valor
precisaram interpretar a morte dos justos e até de crianças inocentes salvífico da auto-entrega de Jesus em seu martírio e da força de exem­
durante as perseguições e lutas do Império. Disseram que Deus aceita plo que tem sua paixão. Mas abre a fé cristã a um reconhecimento de
sua morte como expiação pelo povo pecador que assim recebe o perdão. uma ação divina muito além do cristianismo. Quem salva (se quere­
Na morte dos inocentes, via-se a ação salvadora de Deus no mundo, de mos manter esta terminologia da salvação) és Tu, ó Deus, só Tu.
tal forma que, na verdade, a morte não era mais absurda. Estava a ser­ Podemos continuar dizendo que Jesus salva, por nos revelar a Ti e
viço do perdão de Deus. Deus não deixa que a morte violenta seja sem nos aproximar de Ti, Deus Amor. Aliás, o próprio nome de Jesus —
sentido. Transforma-a em instrumento de perdão, não dos perseguido­ Ieshu — significa “É Yahweh que salva”. Jesus sempre foi fiel a este
res, mas do povo pecador (2Mc 6,28; 17,20-22; 18,4; 1,11). (...) Por programa. Nunca pregou a si mesmo e sempre apontou para o teu
volta do ano 40, portanto uns dez anos após a morte e ressurreição de Reino como instância de salvação. É certo que muitos textos do Novo
Jesus, judeus cristãos aplicaram tais representações à morte de Jesus. Testamento, principalmente da comunidade do discípulo amado e
(...) Associou-se a morte de Jesus como expiação pelo sangue. Esta alguns atribuídos a Paulo, o colocam como único mediador da salva­
associação centrou-se principalmente na Ceia do Senhor, na qual se ção. “É o único nome no qual podemos ser salvos.” Só Ele é o cami­
recorda a morte do Senhor, com a inauguração da nova aliança. Essa nho, a verdade e a vida: “Ninguém vai ao Pai, a não ser por mim”. Do
aliança evocava o sacrifício da aliança de que fala Jeremias 31,31ss mesmo modo, como estes textos não podem ser entendidos ao pé da
(comparar com Ex 24,8): “Eis o sangue da aliança que o Senhor fez letra e não justificam fazermos uma leitura exclusivista da fé, tam­
conosco... Esse motivo de expiação e sacrifício da vida pelos outros bém não podem fundam entar uma interpretação na linha do
permitiu a releitura de Is 53 e aplicá-la ao mistério da morte do Cristo”13. inclusivismo. Seria também uma leitura fundamentalista nos apoiar
Quase trinta anos depois, esse tipo de reflexão ainda não foi assu­ nesses textos para fundamentar como vemos, hoje, a relação de Jesus
mido pelas Igrejas. Para elaborar uma cristologia aberta ao pluralismo, com as outras religiões e culturas. Jesus sempre revelou tua presença
é preciso retrabalhar, mesmo para os cristãos, uma nova forma de in­ no outro, no diferente e indicou a salvação acontecendo fora dos li­
terpretar a morte e a missão de Jesus; uma interpretação não sacrificial, mites da sua religião (o Judaísmo). Não faria, hoje, a mesma coisa
expiatória e portanto eficaz para a salvação de toda a humanidade, com o Cristianismo? Não está ele, hoje, nos repetindo que a graça e
mesmo dos(as) crentes das outras religiões. a salvação ocorrem onde existe amor e atuam em todas as comunida­
Como escreveu H. Kessler, para Jesus, salvação e redenção não des que te procuram, qualquer que seja a cultura e religião?
dependiam de sua morte, mas do fato de as pessoas, quaisquer que Em 1999, um documento da Federação dos Bispos da Ásia dizia:
sejam elas e a qualquer religião que pertençam, se deixarem penetrar “O fundamento da teologia do diálogo com as outras religiões é a
por Ti, ó Deus, como fonte de Amor e bondade, revelado por Jesus. certeza da universalidade da graça de Deus. Deus se dá. Sobre isso,

13. L eon ard o B o f f , P a ix ã o d e C risto , p a ix ã o d o m a n d o , P etróp olis, V ozes, 14. H . K e s s l e r , E rlõ su n g a is B efreiu n g , D ü sseld o rf, 1972, 2 5 , citad o por L.
1977; 5a ed . 2 0 0 3 , 9 6 -9 7 . B o f f , P a ix ã o d o C risto , p a ix ã o d o m a n d o , P etróp olis, V o zes, 82.

182
.Pluralismo e lib ertação

não podemos ter nenhum controle. (...) Por isso, devemos conhecer o
que Deus disse e continua a dizer de mil maneiras. Consagrar-se a
Uma revelação índia de Deus Mãe
isso com toda a atenção é uma forma de prestar homenagem à graÇa
M a rio P érez P érez
divina. Podemos compreender as religiões como respostas ao encon­
tro com o mistério divino ou com a realidade última”15.

4.4, Doxologia da oração


Agradeço-te, ó Pai de amor maternal, por me despojares de
minhas certezas e me empobreceres do que era para mim o privilégio
de ser cristão. Em comunhão com tantos irmãos e irmãs que te pro­
curam na escuridão, eu também me ponho nesta procura. Aceito co­
meçar tudo de novo. Paul Tillich propôs que se “reescreva toda a Deus se revelou aos povos indígenas. A presença e o acompa­
Teologia”. Parece que é a própria fé eclesial que deve ser reelaborada. nhamento de Jesus Cristo nas culturas dos povos originários, como
Sei que muitos se escandalizarão ao ler estas linhas. Sofro porque os “semente” no início, mas depois como “árvore”, dão-se em seus mitos
amo e não quero ser rejeitado, mas, se for preciso, aceito isso porque e seus ritos religiosos próprios. O pensamento sobre a presença divi­
confio em Ti e tu me consolas com a comunhão mais ampla de muitos na nas culturas já o expunha São Justino, quando explicava que “nas
que nem conheço e que me abrem a tuas revelações e tuas ações culturas se encontrava a palavra de Deus em forma de sementes”1.
salvadoras na pluralidade imensa das culturas e religiões da terra. Clemente de Alexandria estava certo de que, assim como há um Antigo
Dá-me a graça de viver isso procurando reaprender a crer como Jesus Testamento na tradição e na religião dos judeus, também existe um
e a contemplar a ação do teu Espírito no universo. Dá-me a luz e a Antigo Testamento para os gregos2 e com ele podemos dizer que os
força da tua sabedoria neste caminho de comunhão. Peço-te ainda e povos indígenas têm em seus Memoriais de fé, em sua Palavra Anti-
sempre em nome de Jesus, irmão e mestre neste caminho, na unidade gá, nos Códigos e Anais Ancestrais seu “Antigo Testamento”.
do Espírito Santo. Amém. Jesus Cristo não veio para abolir a lei e os profetas com quem
Deus acompanhou a nossos povos, senão para dar cumprimento e ple­
nitude às profecias que o Espírito Divino revelou a nossos avôs e avós3.
Isso é o que inspira a Igreja ao sustentar que “evangelização não é um
processo de destruição, mas de consolidação e fortalecimento de di­
tos valores, uma contribuição ao crescimento dos germens do Verbo
presentes nas culturas”4.

1. S ã o Ju stin o , A p o lo g é tic a , 8 1 3 , 13, 3.


15. F e d e ra ç ã o dos Bispos d a Á sia, O q u e o E s p ir ito d iz, h oje, à s Ig r e ja s, 2. C lem en te de A le x a n d ria , S tra la n versu s, V I, 8, 67.
D o c u m e n to d e estu d o para o S ín o d o A s iá tic o , m aio de 1999, cap . III, 1. C f. R ev ista 3. C f. M t 5 ,1 7 .
S E D O C , ju lh o 2 0 0 0 , p . 35. 4 . D o c u m e n to P u e b la , 4 0 1 ; G a u ã iu m e t S p es, 57.

184
Pluralismo e libertação Uma revelação índia de Deus Mãe

Deus sempre falou por meio de nossa cultura e nos pede que semente, que é a palavra de Deus, ao germinar em terra boa, regada
levemos a cabo seu projeto construindo-o em nossa história, porque com o orvalho celestial, absorve a seiva, a transforma e a assimila
Ele quer que todos nós nos salvemos e cheguemos ao conhecimento para dar, ao fim, fruto abundante10.
da Verdade, a Verdade que nos fará livres3. Deus se revela e realiza a Isto é o que nos faz ver com “olhos de fé” a vida e obra dos Toltecas,
salvação por meio dos seres humanos e em linguagem humana56, isto seguidores de Quetzalcóatl, que conseguiram inculcar aos demais ha­
é, sobre a base das categorias mentais, moldes culturais e estilos de bitantes da América Central sua cultura, sua cosmovisão e sua religião,
vida próprios de cada povo. Fica-nos a firme convicção de que Deus propondo a ToltecáyotP. Muitos testemunhos destes encontramos em
está presente e atuante na cultura de nossos povos, onde se configu­ Teotihuacan, Cholula, Tajin, Chechen-Itzá, Mitla e outros antigos luga­
ram seu rosto, seu coração e sua identidade própria7. res sagrados do México. O grande vigor que emanou das profundas
Nas Sagradas Escrituras encontramos que Deus se valeu das crenças religiosas pregadas por Quetzalcóatl sustentou a mobilização,
pessoas de cada povo para realizar sua obra de salvação. É por isso transformação, recriação e vida de nossos antepassados, mas o fizeram
que, ao longo da história da humanidade, surgiram homens e mulhe­ com tal vitalidade que sua influência nos chega até hoje.
res que, por sua entrega, seus conselhos, seus ensinamentos e sua Um dos grandes ensinamentos de Quetzalcóatl refere-se ao sim­
sabedoria, souberam orientar, governai-, realizar grandes façanhas, cul­ bolismo do náhui (quatro), que inspirará: os quatro sóis que antecede­
tivar as artes8. Cada povo deve e pode, com todo o direito, recordar ram ao sol no qual agora vivemos; os quatro rumos do mundo; as quatro
as pessoas que, por suas obras, louvaram a Deus e deram glória a seu árvores que sustentam a Casa do Mundo onde habitam os seres huma­
povo, como é o caso de Quetzalcóatl para os povos da Mesoamérica nos. Sobre essa base conceituai foram construídos os sistemas cogni­
(América Central). tivos, a sabedoria e todas as ciências, a arquitetura dos povos e suas
Temos contemplado na nossa história como a revelação de Deus cidades, a religião e a teologia. O quatro se “quetzalcoatlizou” e im­
por meio de Quetzalcóatl, profeta e homem de Deus, floresceu nos pregnou a vida toda12.
costumes e tradições de nossos povos, os quais sabemos, vieram de Em nosso povo o quatro significa a totalidade, significa estar
Deus e não simplesmente de “um homem”, porque se essas idéias ou completo. A seguir, enumero alguns exemplos que sustentam o que
obras tivessem sido inventadas somente pelo homem já teriam sido digo. Em termos matemáticos uma conta completa é conformada por
destruídas por si só. Por ter vindo de Deus, permanecem latentes até quatro-cincos (vinte) que corresponde ao emprego de todos os dedos
hoje9. Isso explica que esses costumes e tradições vêm dando vida a das mãos e dos pés (quatro membros); a essa conta chamamos sem-
nossos povos por centenas e ainda por milhares de anos, recriando e pohual, em náhuatl, e akgpuxum, em totonaco. Ainda existe, por
fazendo frutificar as “Sementes do Verbo”, que bem semeou Deus
exemplo, em nossos povos, um abraço cruzado13que se realiza entre
nas culturas de nossos povos. Elas não só permaneceram como se­
mentes, como também floresceram e deram muito fruto, porque a 10. A d Gentes Divinitus, 22.
11. Para com p reen d er o sen tid o da Toltecáyotl é interessante considerar o e s ­
5. C f. IT im 2 ,4; Jo 8 ,3 2 . tudo realizad o p or M ig u el L e ó n Portilla, e m sua obra Toltecáyotl, aspectos da
6. C f. Dei Verbum, 12; S. A g o stin h o , Civitas Dei, X V II 6. 2. cultural náhuatl, editada p e lo F und o d e Cultura E co n ô m ica , n o M éx ico .
7. C f. Documento Puebla, 4 0 3 . 12. Cf. Mário P e re z , Quetzalcóatl, em: Benjamín Bravo (compilador), Diccio­
8. C f. E c lo 4 4 ,1 -7 . nario de Religiosidad Popular, México, 225-227.
9. C f. A t 5 ,3 4 -3 9 . 13. A v o z náuatl para con vid ar ao abraço cru zad o é: xoconanahua.

186 187
Pluralismo e libertação Uma revelação índia de Deus Mãe

compadres para manifestar o respeito e o amor completos. Essa mes­ mais das quatro direções uma quinta, isto é, observam-se cinco par­
ma saudação aparecerá nas figuras divinas das cenas do Código que, tes ou rumos do universo. Vamos refletir sobre a Cruz que aparece no
a seguir, analisaremos. Náhuatl quer dizer quatro-água (¡nahui-átl). Código denominado pelos estudiosos como Fejérváry-Meyer, para
O nome faz referência à vinculação que, como povo, temos ao Pri­ conseguir entender o que nossos anciãos entenderam pela Cruz de
meiro Sol que existiu e que se denomina Náhui-Atl. Falar náhuatl Jesus Cristo e, ainda mais, a Jesus Cristo como Cruz, e desta maneira
quer dizer, então, “falar completo”. O tlanahuatilis significa fazer compreender como Jesus Cristo se quetzalcoatlizou.
quatro vezes algo para fazê-lo completo.
A conceitualização da Cruz Mesoamericana expressa-se no título
Jesus Cristo Totlaixpa15
divino In Nahuaque, que se refere a: 1) se: o que vai adiante de ti; 2)
orne: o que cuida de teus ombros e caminha atrás de ti; 3)yeyi: é quem Esta cena nos ajuda a entender Jesus Cristo, a partir de nossas
te acompanha em teu lado esquerdo; 4) nahui: é o que vai a teu lado categorias indígenas, como Sol que nasce do alto'6178.Atualmente nossos
direito. Ou também faz referência a: 1) quem está à frente de ti; povos o chamam a esta direção do mundo kane tlanezell, em náhuatl,
2) quem está acima; 3) quem está atrás; e 4) quem está abaixo de ti. E e xlipulhnin, em totonaco.
quem pode estar nesses quatro rumos ao mesmo tempo? Dizem os E muito significativo que o ritual que os dançarinos voadores, os
anciãos “só Deus” : Tehuatzin In Toteotzin timoyezticatzin nochin Kgosnin19, fazem sobre a árvore onde está o quadrado — a partir de
semanahuac yalhuatzin axatzin uan nochipa tonaltzintli'4. Só Deus, In onde se lançarão a voar — começa sempre se dirigindo a esse local;
Nahuaque, In Hoque, está com o amanhecer do sol e o anoitecer da também a esse local se dirigem as oferendas quando se vai aos mon­
lúa; Deus tem que ver com a luz do dia e a escuridão da noite; Deus tes para fazer o ritual da petição das chuvas. A seguir, transcrevo um
produz fogo, calor e frio, fecundidade e morte. Este discurso é seme­ texto que reflete a atitude orante dos povos náhuatl e totonaco da
lhante à onipresença divina a que se refere o louvor do Salmo 139: serra norte de Puebla:

Quando contemplo o amanhecer ali estás; quando vejo o anoitecer ali Neste rumo surge a vida de Deus, ali nasce a luz para a humanidade,
te encontro; e se vou às terras calorosas do sul também ali estás; e se onde aparece a vida para nossa boa comida, de onde vem a vida de
me encaminho até os ventos frios do norte ali estás; se subo estás ali nosso cultivo, Mãe-Milho, Pai-Milho. De onde vem a vida, nossa ale­
em cima; e se desço às entranhas da terra, ali embaixo estás. gria, de onde renasce a sabedoria de nossos povos, é por isso que não
devemos deixar-nos vencer pelas tristezas, pelas preocupações; que não
Nossos avós indígenas aplicaram o conceito de In Tloque In nos vençam os problemas, a dor e a enfermidade que vamos encontran­
Nahuaque a Jesus Cristo. Todas as cruzes elaboradas por indígenas do em nosso caminhar. Deixemos que nosso Pai Sol ilumine nossa vidas,
no século XVI são floreadas e em várias delas aparece só o rosto de
15. Jesu s C risto n o s sa fre n te .
Jesus Cristo no centro. Na Cruz mesoamericana encontramos, ade- 16. E xp ressão que s e u sa n o P refá cio da liturgia da V ig ília da P áscoa da
R essu rreição e, n e ss e c o n tex to , é m u ito em otiva.
14. P rece qu e, traduzida ao castelh a n o , afirm a: “V ocê N o s s o V enerad o D e u s 17. P o r o n d e a m an h ece.
d ig n a m en te se encontra em tod o o U n iv erso , n o resp eitável ontem ; n o d ig n ifica d o 18. P o r o n d e p r in c ip ia o u s e in icia .
h o je e e m to d o s o s sem p re d ig n o s d ia s” . 19. É o c o n c e ito to ton a co c o m o qual se d esig n a o s V oadores.

188 il®9.
Pluralismo e libertação Uma revelação índia de Deus Mãe

que sempre o tenhamos como guia de nossa vida e de nossa historia, que Convém ter em nossa mente o que ancestralmente significava o
no caminhar com nosso povo seja luz que nos encha de sabedoria para sacrifício humano. Acertadamente, um discurso que reflete o sentido
poder seguir dando vida a nosso povo20. do sacrifício humano nos é apresentado e analisado pelo P. Angel
Maria Garibay em sua História da Literatura NáhuatP4. Ali, na boca
Deste lugar nos fala de maneira teológica o texto do Código Fejervary de um Principal, expõe-se a razão do sacrifício, o qual se aplicava
Meyer. Como podemos ver, ali no primeiro plano temos o grifo do sobre o servidor de servidores, que em náhuatl se nomeia Tlatoani25
Tlachihualtépetl2123,ou seja, do monte feito pelo povo à semelhança dos e em totonaco o chamam Puxku26.
feitos na natureza por Ometeotzin. Os montes, segundo a sabedoria indí­ Entretanto, hoje nossos povos só outorgam o Topiltzin, Bastão
gena, são parte fundamental para o povo, pois na raiz do conceito povo do Mundo ao servidor principal que ganhou esta dignidade porque
está presente o termo monte. Povo, em náhuatl, se denomina altêpetl ~, tem prestado muitos serviços. É o mesmo discurso que encontramos
e, em totonaco, chuchutsipi23. Sobre esta elevação está colocado o grifo nos tabuleiros do ritual do movimento criacional, o Ulamaliztli, ou
do Pai Sol. Já sabemos a importância que existe em nossos povos indí­ como conmínente é nomeado o jogo de bola, que está em Tajin. No
genas referente ao sol como sacramento preeminente da presença divina denominado “jogo de bola sul” do Tajin, claramente aparece, nos
paternal. Se prestarmos atenção no grifo usado na cena do Código, em baixos relevos, que só participam neste ritual os Servidores Principais,
sua forma, em seus resplendores, em seu centro, em sua ornamentação, que conhecemos por deterem o Lixtokgo, a Vara de Comando, pelas
poderemos entender por que este mesmo sinal é atualmente identificado plumas que levam como toucados e que informam sobre os serviços
por nossos povos nas custódias onde se coloca o Santíssimo Sacramento prestados ao povo.
de Jesus Eucaristia. Ademais, atendendo a este discurso apresentado nesta Ao ir aprofundando na tradição e no costume próprios de nossos
cena podemos compreender como é que os povos indígenas lhe outor­ povos originários, encontramos nas orações uma maneira própria de
gam o título de “Nosso Pai Jesus” às imagens de Jesus Cristo. falar sobre Deus e esta é a expressão de Deus como Mãe. Na tradição
Desse lugar brota uma árvore que representa simbolicamente de nossos povos encontramos a conceitualização teológica de Deus
o povo. Entretanto, hoje temos discursos tradicionais que desenvolvem o como Ometeotzin, o título divino que expressa o mistério da Duali­
simbolismo da árvore como povo; neles se fala que os anciãos são a dade Divina, Aquele por quem se vive, Mãe-Pai. Atualmente nossos
raiz, os ramos são as famílias e as folhas são as filhas ou os filhos e o povos seguem entendendo a Deus como Mãe e Pai. Uma expressão
tronco é o conjunto do povo com suas instituições. Essa árvore está muito significativa no-la dão os povos mayas que, em suas orações,
sendo saudada de modo cruzado reverenciai pelos dois personagens nomeiam a Deus Coração do Céu (Pai) e Coração da Terra (Mãe).
divinos. A esquerda temos a Tonatiuh, o “Sol Caminhante", apresen­ Mas também aqui na Serra Norte de Puebla as filhas e os filhos dos
tado com a cor divina vermelho-solar, e à direita temos a Itzpantzin, em
cuja cabeça encontramos o pedernal que nos fala do sacrifício. 24. Angel Maria G arib ay , H is tó r ia d a L ite ra tu ra N á h u a tl, México, Ed. Porrúa,
1987, 393.
20. Cf. Kintakanalakan, em: T eologia ín d ia II. Memória do segundo encontro 25. Este termo se traduz ao castelhano como “quem fala”, também se traduz
oficina latino-americana, Panamá, Ed. Abya Yala — Cenami 1994, 219-224. como “aquele que tem a palavra”. E que desde a concepção e dinâmica indígenas
21. O termo náhuatl design o “monte feito”. só pode falar nas assembléias aquele que já tem servido, só tem a palavra ante o
22. A lt = água; té p e tl = monte. povo aquele que tem prestado serviços.
23. C h u ch u t = água; s ip i = monte. 26. O p r in c ip a l.

190 191
Pluralismo e libertação

povos náhuatl e totonaco mantemos este conceito teológico de Deus Igreja dos pobres: sacramentó do
como Mãe e Pai. Pode-se constatar esta afirmação nas orações. Por
exemplo, em náhuatl se reza a Deus, dizendo: “ Tehuatzin, Teotzin, povo universal de Deus
Toíatzin, Tonantzin...”, e, em totonaco: “Puchina, Tse, Tlat..!\ E já
Tópicos de urna eclesiologia
sabemos todos que lex orandi, lex credendi, isto é, o que se ora é o
que se crê, e é sobre o que eremos profundamente, os povos indígenas,
macroecumênica da libertação
que oramos. Deste lugar, de que nos fala a cena do Código que apre­
F ran cisco de A q u in o Jú n io r1
sentamos a seguir, nestas serranias, manifesta-se a oração e a prece:

Porque sabemos que aí chega Nosso Pai Sol, a Yohualichan27, ali é onde
se oculta, ali é onde se guarda, ali onde se prova a morte, é neste lugar
onde se nos mostra o sentido do descanso, aqui na escuridão, aqui só Introdução
ilumina a Luz da Lua. Aqui a humanidade também experimenta a morte
com o descanso da noite. Que a noite não nos faça perder o sentido da O pluralismo religioso é hoje, sem dúvida nenhuma, uma das
vida, mas que seja um verdadeiro descanso, que também o seja para realidades mais evidentes, mais complexas e mais desafiantes para as
nosso cultivo e para toda a criação28. religiões.
Não há como negar. No mundo existem muitas religiões e, conse­
qüentemente, muitas experiências religiosas, mais ou menos institu­
cionalizadas. Há uma diversidade de discursos e símbolos religiosos. E
isso, cada vez mais, em um mesmo espaço geográfico-cultural. Não
apenas sabemos que existem muitas tradições ou grupos religiosos em
nosso mundo, como também nos deparamos com o fato da co-exis-
tência desses diversos grupos ou tradições em um mesmo espaço.
Essa coexistência tem conseqüências diretas e imediatas na vida
de cada grupo ou tradição religiosa. Em primeiro lugar, pelo que o
pluralismo, em si mesmo, implica. Há uma diversidade de experiências
religiosas. A Deus, se pode chegar por muitos caminhos. Deus é maior
que qualquer religião. Nenhuma experiência esgota o seu Mistério...
Em segundo lugar, porque ela pode significar uma quebra de hegemonia
religiosa. De repente, em um mesmo espaço, começam a surgir novas

1. Mestre em Teologia pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de


Jesus em Belo Horizonte-MG; professor de teologia no Instituto Teológico Pastoral
27. Este conceito se traduz como a “Casa da Escuridão ou da Noite”. do Ceará; presbítero e membro da Comissão Pastoral da Terra da Diocese de
28. Cf. Memorias de Teologia índia II e III, op. cit. Limoeiro do Norte-CE.

192 193
Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

tradições ou grupos religiosos. Aos poucos vão crescendo, ganhando realidade já bastante consolidada, no nível da teoria, de sua reflexão e
novos adeptos, conquistando espaço na sociedade e rompendo com a intelecção mais elaboradas, teologia é ainda uma realidade muito inci­
hegemonia do grupo ou tradição dominante. Em terceiro lugar, pelo piente. Só recentemente a Teologia da Libertação tem demonstrado um
que a co-existência e a convivência têm de provocadoras, de questiona- interesse mais explícito e direto pela questão. O desafio de uma Teolo­
doras e de recriadoras da própria identidade de cada grupo ou tradição. gia da Libertação das Religiões é cada vez mais evidente e urgente.
O encontro provoca crise e a crise é criativa. Para o bem ou para o mal, E é nesse contexto que se situa nossa reflexão. Uma modesta
o encontro sempre mexe conosco, com a nossa identidade. Jamais se­ contribuição a “uma teologia cristã e latino-americana do pluralismo
remos os mesmos depois de um encontro. E, por fim, pela responsabi­ religioso”. E uma contribuição muito pontual, embora fundamental.
lidade, agora compartilhada, no que diz respeito aos valores, às práticas Pontual porque trata apenas de uma “área” da teologia: a eclesiologia.
e à orientação de vida comum que compete, de modo especial (não Fundamental porque se trata de uma “área” que perpassa toda teologia.
exclusivo), às tradições e aos grupos religiosos. E aí, especialmente, Afinal, se é verdade que a eclesiologia não é toda a teologia (há muitas
que se cultiva a proximidade, ainda que na distância, do grande Horizon­ outras “áreas” na teologia), também é verdade que toda teologia é
te que configura nossa práxis histórica, ao mesmo tempo que a relativiza, eclesial (e não só por ser um “produto” eclesial, mas, sobretudo, por
mantendo-a sempre aberta. tratar da fé da comunidade eclesial). De modo que trataremos, aqui,
Seja por sua existência factual, seja, sobretudo, por suas conseqüên­ de uma “área” (eclesiologia) e de uma “dimensão” (eclesialidade)
cias, o pluralismo religioso é, hoje, um dos maiores desafios para os fundamentais da teologia cristã.
vários grupos e tradições religiosos. Esse desafio se toma maior e mais Neste artigo procuraremos ver em que sentido o ser Igreja de Jesus
urgente, ainda, dada a real situação de miséria, exclusão, opressão e Cristo nos abre e nos põe em diálogo humilde e fraterno com as diver­
violência a que está submetida a maior parte da humanidade. Se a exis­ sas tradições e grupos religiosos. Noutras palavras, veremos que a iden­
tência das tradições ou grupos religiosos supõe a existência da humani­ tidade mesma da Igreja cristã extrapola seus limites e suas fronteiras,
dade, a destruição da humanidade é, em última instância, a destruição que a Igreja cristã é macroecumênica por sua própria natureza. Para
das próprias tradições ou grupos religiosos. Mas não só. Se as tradições isto abordaremos aqueles aspectos ou características da Igreja que nos
ou grupos religiosos são portadores de valores, costumes e práticas parecem mais fundamentais na constituição e explicitação de sua iden­
humanizantes, não podem assistir passivamente, menos ainda colaborar tidade. E aí, parece-nos, que sua abertura para e sua relação com o
positivamente (com), a morte de tantos filhos e filhas de Deus. E a pluralismo religioso deve fincar raízes. O caráter macroecumênico da
identidade mesma de cada tradição ou grupo religioso, sua razão última Igreja não pode prescindir do seu ser cristão. Muito pelo contrário: É
de ser, que está em jogo no destino da humanidade que se materializa sendo cristã que a Igreja será, real e verdadeiramente, macroecumênica.
no destino dos pobres deste mimdo.
Por tudo isso, o pluralismo e o diálogo inter-religioso cada vez
mais ganham espaço nas diversas tradições ou grupos religiosos. Entre I. Igreja: Comunidade dos seguidores de jesús Cristo e pro-seguidores
os cristãos de tradição romana, foi com o Concilio Vaticano II que essa de sua missão
realidade foi “oficialmente” assumida pela Igreja. Na América Latina, A primeira.e mais fundamental característica da Igreja cristã é sua
na Igreja dos pobres, embora no nível da práxis o diálogo entre as referência e ligação histórico-teológica a Jesus Cristo. É precisamente
igrejas cristãs e mesmo entre tradições religiosas diferentes seja uma por sua vinculação a Jesus Cristo que ela é cristã. Trata-se de uma

1?4 195
Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

vinculação simultaneamente histórica e teológica. Histórica porque pertença: a Jesus Cristo que nela “toma corpo” e a história material
remete a Jesus de Nazaré e ao movimento por ele suscitado. Teológica dos homens na qual, por meio dela, Jesus Cristo é “incorporado”. Ela
porque nasce da confissão de que esse Jesus de Nazaré, “que passou é a “presença visível e operante” de Jesus Cristo na história. Nas
fazendo o bem” (At 10,38), é o Cristo de Deus e porque se alimenta da palavras de Dom Oscar Romero, ela é “a carne em que Cristo torna
fé de Jesus Cristo e, nela, vai se configurando historicamente. presente através dos séculos sua própria vida e sua missão pessoal
Esta vinculação radical da Igreja a Jesus Cristo foi, por muito (...) A Igreja só pode ser Igreja à medida que continua sendo o Corpo
tempo, silenciada e ofuscada pela concepção da Igreja como “socie­ de Cristo. Sua missão só será autêntica à medida que for a missão de
dade perfeita”, predominante até as primeiras décadas do século XX. Jesus nas situações novas, nas circunstâncias novas da história”5.
Um passo importante na superação desta eclesiologia (jurisdicista, Compreendida assim, a Igreja como “Corpo de Cristo” é, na for­
societária, organizacional e hierárquica) foi, sem dúvida nenhuma, a mulação tão comum à Teologia da Libertação, a comunidade dos segui­
redescoberta e a retomada da teologia bíblica e patrística da Igreja dores de Jesus Cristo (onde ele “toma corpo”) e pro-seguidores de
como “Corpo de Cristo” que culminou com a publicação da Encíclica sua vida e missão (por meio da qual ele continua se “incorporando”
Mystici Corporis de Pio XII, em 19432. à história humana).
Não obstante as ambigüidades e os limites desta “nova” eclesio­ É no seguimento e pro-seguimento de Jesus Cristo e de sua missão
logia e embora a teologia ainda não tenha tirado todas as conseqüên­ no mundo que a Igreja se faz Igreja. Essa é sua realidade mais funda­
cias dessa imagem paulina da Igreja como “Corpo de Cristo”, cre­ mental. Fora do seguimento e pro-seguimento de Jesus Cristo e de sua
mos que ela é muito importante para a explicitação da identidade da missão não existe Igreja cristã. Embora tudo isso pareça muito óbvio
Igreja. E tanto no que se refere ao seu ser “corpo” quanto no que se e até dispensável no contexto da reflexão que aqui nos ocupa, cremos
refere ao seu ser “de Cristo”. que sua explicitação seja de fundamental importância. Afinal, se existe
Ser Corpo de Cristo implica, segundo Ellacuría, “que nela [ha alguma abertura nas Igrejas Cristãs para com as outras tradições ou
Igreja] a realidade e a ação de Jesus Cristo ‘tome corpo’ para que ela grupos religiosos e alguma exigência de acolhida, diálogo e comunhão
[a Igreja] realize uma ‘incorporação’ de Jesus Cristo na realidade da para com eles, isso não pode se dar à custa do ser cristão da eclesiolo­
história”34.O tomar corpo tem a ver com o “fazer-se carne” do Verbo gia. Pelo contrário. É sendo cristã que a eclesiologia poderá ser macro-
de Deus na história humana, condição fundamental para que ele “possa ecumênica. E é isso que tentaremos mostrar agora pelas características
intervir de uma maneira plenamente histórica na ação dos homens”. mais fundamentais da eclesiologia cristã.
A incorporação tem a ver com a ativação do “tomar corpo” na his­
tória material dos homens, com o ser fermento e sal no mundo. “A ?. A central idade do reinado de Deus
incorporação pressupõe, assim, o tomar corpo, mas acrescenta o
aderir-se ao corpo único da historiad” Como “Corpo de Cristo”, a Se tem algo que é cada vez mais consenso entre os exegetas e os
identidade da Igreja se define, portanto, pela sua dupla referência e teólogos cristãos é a centralidade do reinado de Deus na vida e na
missão de Jesus Cristo. “É incontestável que o ponto central da prega-
2. Cf. J. Combun, O Povo de Deus, São Paulo, Paulus, 2002, 52-87.
3 .1. E llacuría, La Iglesia de los Pobres, sacramento histórico de liberación, em 5. Oscar R omero, A Igreja, corpo de Cristo na história: Segunda Carta Pastoral,
Escritos Teológicos II, San Salvador, UCA, 2000, 453-485, aqui 456. em J. S obrino et al.. Voz dos sem voz : A palavra profética de D. Oscar Romero, São
4. Ibidem, 457. Paulo, Paulinas, 1987, 105.

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Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

ção de Jesus foi a dominação de Deus ou o reinado de Deus (paatX eta tanto que a Igreja cristã não pode ser “eclesiocêntrica”, isto é, centra­
t o d 0£Ot)) (...) O domínio de Deus pode literalmente ser considerado da em si mesma. Nem mesmo “cristocêntrica”, isto é, centrada em
o centro de sua atividade. Pois é o ponto central em tomo do qual tudo Cristo — pelo menos se a ênfase é posta em Jesus Cristo, prescindin­
mais se organiza não só a sua mensagem, como também sua atividade do ou ofuscando aquilo em função do qual ele viveu e agiu: o reinado
de curar enfermos e de operar milagres, e seu imperativo ético”6. Nas de Deus11; ou “teocêntrica”, isto é, centrada em um deus abstrato que
palavras de Rinaldo Fabris, “o núcleo em volta do qual gravitam o nada tem a ver com a história humana ou uma realidade absoluta
ensinamento e a atividade histórica de Jesus consiste no reino de Deus”7. desprovida de historicidade. Se quiser ser cristã — “Corpo de Cristo”
“Reinado de Deus” é, portanto, o conceito e a realidade mais central e na história — , terá de, assim como Jesus Cristo, estar centrada no
mais fundamental da vida e da missão de Jesus. E a tal ponto que reinado de Deus na história. Terá de ser “reinocêntrica”12.
“quem se entrega a Jesus, entrega-se ao remado de Deus. Isto é inevi­ É, precisamente, na centralidade do reinado de Deus que a Igreja
tável, pois ‘a causa de Jesus’ foi e é o ‘reino de Deus’”8. cristã encontra sua identidade. Seja pela sua referência e relação com
Ora, se Jesus não fez de si o centro de sua vida e missão; se ele Jesus Cristo (que nela “toma corpo”), seja pela sua missão e relação
nunca se pregou a si mesmo; se no centro de sua vida e missão estava para com o mundo (“incorporação” de Jesus Cristo na história). De
o reinado de Deus; se ele viveu radical e plenamente em função desse modo que o “reinocentrismo”, tal como o entendemos e o propomos,
nem silencia Jesus Cristo nem marginaliza ou desvaloriza a Igreja,
reinado de Deus9 a ponto de sua existência ser vivida como uma pre­
como teme a Carta Encíclica Redemptoris Missio do papa João Paulo
existência, isto é, uma existência em prol do reinado de Deus10, a Igreja,
II (RM 17-19). Simplesmente, e por honestidade e fidelidade, fala de
como seu “corpo”, como sua “presença visível e operante” na história,
Jesus Cristo a partir de onde ele se entendeu e em função do que ele
também terá de estar centrada e viver em função do reinado de Deus se
viveu e, conseqüentemente, fala da Igreja a partir da realidade que a
quiser ser Igreja de Jesus Cristo — “Corpo de Cristo” na história.
fundamenta e a constitui como tal. Afinal, como reconhece a própria
Esta é a primeira e mais fundamental característica da Igreja cristã:
Encíclica, a Igreja “não é fim em si mesma, uma vez que se ordena
seu radical descentramento. Ela não pode viver em função de si mesma.
ao Reino de Deus” (RM 18).
Não pode agir a partir de si mesma. Tem de estar, toda ela, em função
Esse descentramento da Igreja aponta, negativamente, para o fato
e a serviço do reinado de Deus — sua razão última de ser, seu critério
de que a Igreja não é, sem mais, igual ao Reino de Deus. Qualquer
último de discernimento e de legitimidade. Por isso se tem insistido
pessoa, em sã consciência, sabe que há, de fato, muitas coisas, situações,
relações e estruturas na Igreja que são contrárias ao reinado de Deus.
6. J. G nilka , Jesus de Nazaré: Mensagem e história, Petrópolis, Vozes, 2000, 83.
7. R. F abris , Jesus de Nazaré : História e interpretação, São Paulo, Loyola,
1988, 104. 11. N o segundo volume de sua cristologia, Jon Sobrino mostra como a cristo-
8. J. M oltmann, Quem è Jesus Cristo para nós hoje, Petrópolis, Vozes, 1997, logia dos primeiros séculos do cristianismo foi se constituindo como “radicalización
11. Algumas das principais características do reinado de Deus podem ser encon­ dei mediador, Jesucristo, y debilitamiento de la mediación, el Reino de Dios” e
tradas, ainda que de forma resumida, em I. E llacuría, Recuperar el reino de Dios: adverte sobre as conseqüências negativas deste fato no conjunto da teologia cristã
desmundanización e historización de la Iglesia, em Escritos Teológicos II, op. cit., posterior (J. S obrino , La f é en Jesucristo : Ensayo desde las víctimas, Madrid,
307-316, aqui 313-316. Tratta, 1999, 317-464).
9 . C f . J. S o b r i n o , Jesus, o libertador. A h i s t ó r i a d e J e s u s de N a z a r é , Petrópolis, 12. Um bom resumo do debate atual sobre a teologia das religiões pode ser encon­
V o z e s , 1996, 106-110. trado em J. D upuis, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, São Paulo,
10. I. E llacuría , op. cit., 311. Paulinas, 1999, 251-282. Mais específicamente sobre o reinocentrismo, 453-488.

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Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

Sabe que ela não é, de fato, o Reino de Deus. Mas, aponta também, Segundo ele, a Encíclica Redemptoris Missio (1990) “é o primeiro
positivamente, para a necessidade de “um centro fora de si mesma, documento do magistério romano que distingue claramente, embora
de um horizonte além de suas fronteiras institucionais para orientar mantendo-os unidos, a Igreja e o Reino de Deus em sua peregrinação
sua missão e mesmo para dirigir sua configuração estrutural”13. Nou­ no curso da historia; o Reino presente no mundo é uma realidade mais
tras palavras, é preciso “separar Igreja e reino de Deus para que aque­ ampla do que a Igreja; ele se estende para além das fronteiras da Igreja
la possa ficar configurada por este, para que a Igreja possa se vet­ e inclui (...) não só os membros da Igreja, mas também os ‘outros’”18.
eada vez mais livre de sua versão ao mundo por uma autêntica con­ Embora ressaltando e insistindo na unidade indissolúvel entre a Igreja,
versão ao reino”14. Jesus Cristo e o Reino, a encíclica afirma claramente, ainda que com
Ignacio Ellacuría chama a atenção para a existência de “uma cautela e receio, que a Igreja é “distinta de Cristo e do Reino” (RM 18),
larga tradição teológica, que ganha maior relevo em Santo Agosti­ que “está efetiva e concretamente a serviço do Reino” (RM 20) e reco­
nho, propensa a identificar Igreja e reino de Deus”, fruto, segundo nhece que “a realidade incipiente do Reino pode encontrar-se também
ele, “tanto de uma leitura defeituosa do Novo Testamento como de fora dos confins da Igreja, em toda humanidade, na medida em que ela
determinadas exigências históricas” 15 — cujas conseqüências são viva os ‘valores evangélicos’ e se abra à ação do Espírito que sopra
terríveis para o reino de Deus e para a própria Igreja. onde e como quer” (RM 20).
Jacques Dupuis, por sua vez, afirma que nem mesmo o Concilio Mas, antes dessa encíclica, um documento da Federação das
Vaticano II conseguiu se livrar dessa identificação entre a Igreja e o Conferências dos Bispos Asiáticos (FABC), publicado em 1985, afir­
reino de Deus: “na constituição dogmática Lumen Gentium a Igreja mou: “O Reino de Deus é a própria razão de ser da Igreja. A Igreja
e o Reino de Deus continuam identificados, tanto em realização existe no Reino e para o Reino. O Reino, dom e iniciativa de Deus,
histórica como na consumação escatológica dos mesmos”16, embora, já começou e está em constante via de realização e se faz presente por
ressalte, a constituição pastoral Gaudium et Spes dá a impressão de meio do Espírito. Onde Deus é acolhido, onde os valores do evangelho
ter superado essa identificação. O número 39, de fato, “fala do cres­ são vividos, onde o ser humano é respeitado (...) aí está presente o
cimento do Reino de Cristo e de Deus na história e de sua consuma­ reino de Deus. Ele é muito mais amplo do que as fronteiras da Igreja.
ção escatológica, sem se referir à Igreja, mas incluindo toda a huma­ Essa realidade já presente está ordenada para a manifestação final e
nidade (...). Além disso, a Gaudium et Spes afirma que ‘a Igreja ca­ para a perfeição plena do Reino de Deus”19.
minha para um único fim: a vinda do Reino de Deus e a salvação de Em um documento mais recente, da mesma federação, de novem­
todo o gênero humano’ (GS 45)”17. bro de 1991, explicita-se mais e melhor ainda tanto a distinção entre a
Igreja e o Reino quanto a universalidade deste: “O Reino de Deus está
13. I. E llacuría , op. cit., 312. (...) umversalmente presente e atuante. Onde quer que homens e mu­
14. Ibidem.
lheres se abram para o mistério da transcendência divina que paira
15. Ibidem, 311. “Se convierte el reino de D ios en un ámbito ‘separado’ del
reino de Satanás y se establece la existencia de una civitas sancta al lado de una sobre eles e saiam de si mesmos para amar e servir aos homens, aí o
civitas mundana, a la par que se concibe aquélla como sociedad perfecta y Estado
(sic); con el agravante político de que se acabará sometiendo el ámbito civil y 18. Ibidem , 467.
político al ámbito eclesial” (Ibidem, 3 lis ) . 19. Declaração final do Segundo Instituto dos bispos para os assuntos inter­
16. I D upuis, op. cit., 461. religiosos, sobre a teologia do diálogo (Pattaya, Tailândia, 17 a 22 de novembro de
1 7 . Ibidem, nota 18. 1985), apud., J. D upuis, op. cit., 467.

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Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

Reino de Deus está atuante (...). ‘Onde Deus é acolhido, onde os valo­ 2. A formação do Povo de Deus
res do evangelho são vividos, onde o ser humano é respeitado (...), ai
Muito próximo e relativo (relacionado) ao conceito e à realidade
está presente o Reino de Deus Em todos esses casos, os homens
do reinado de Deus é o conceito e a realidade do povo de Deus: “são
respondem à oferta que Deus faz da sua graça em Jesus Cristo no
conceitos e realidades que se movem absolutamente no mesmo plano.
Espirito e entram no Reino de Deus por um ato de fé (...) (n. 29). Isso
Haverá reino de Deus quando houver povo de Deus e na medida em
demonstra que o Reino de Deus é uma realidade universal, estendida
que haja”21. Segundo Ellacuría “Reino (de Deus) e Povo (de Deus)
para além dos confins da Igreja. É a realidade da salvação em Jesus
fazem referência imediata à historicidade total da relação de Deus
Cristo, da qual participam juntos os cristãos e os outros. É o ‘mistério
com o homem e do homem com Deus”22.
da unidade’ fundamental que nos une mais profundamente do que as
Antes de tudo, é preciso destacar a relação entre Deus e o povo.
diferenças religiosas que nos separam” (n. 30)20.
Eles estão tão unidos que um não pode ser pensado sem o outro. O povo
Poderíamos ir muito longe nessa discussão. Mas, por hora, bas­
é sempre de Deus e Deus é sempre do povo. Normalmente se insiste
ta-nos a constatação desse radical descentramento da Igreja. Basta-
mais no “sentido eclesial” do povo de Deus (o ser povo, as condições
nos a constatação de que a Igreja não existe para si mesma, não pode
para ser povo de Deus...) que no seu “sentido teologal” (Deus referido
configurar-se em função de si mesma. Ela existe em função de algo
a um povo, sua história com este povo...). No entanto, ambos os aspectos
que a extrapola e que é, inclusive, critério de sua legitimidade ou
estão intimamente relacionados: Há povo de Deus porque há um Deus
falsidade. Ela existe em função de algo que está presente, também,
do povo e há um Deus do povo porque há um povo de Deus.
nas outras religiões e, mesmo, nas pessoas e nos grupos que não se
Bastaria um estudo comparativo das religiões para se ver que “cada
professam religiosos, mas que defendem e promovem a vida. Trata-
povo busca seu próprio Deus como elemento essencial constitutivo de
se da presença, da ação, da intervenção, da realeza, do governo de
sua própria condição de povo, de tal maneira que na consciência mes­
Deus na história a partir e em favor dos pobres, dos excluídos,
ma de cada um, sobretudo do povo primitivo, está a integração de um
dos oprimidos e marginalizados da nossa sociedade — para além dos
Deus ou de uns deuses particulares que explicam e ao mesmo tempo
limites e das fronteiras das igrejas cristãs, das outras tradições e gru­
refletem a peculiaridade do Deus e do povo em questão”23. No caso
pos religiosos. É enquanto e na medida em que está a serviço dessa
específico do povo de Israel essa relação é explicitada na afirmação
ação de Deus, em que procura historicizá-la/encarná-la que ela se faz
fundamental: “vocês são meu povo e eu sou seu Deus”. O ser “de Deus”
Igreja. E nesta tarefa está em comunhão com todas as religiões, com
é constitutivo da identidade do “povo” de Israel e o ser “do povo” é
todas as pessoas e todos os grupos que, de uma forma ou de outra,
constitutivo da identidade do “Deus” que se revela, que é experimen­
estão a serviço desse reinado, lutam por sua realização histórica,
tado e conhecido por Israel.
gastam-se por ele. E é aí, no núcleo mais fundamental de sua identi­
Mas não basta afirmar que o povo é povo de Deus e que Deus é
dade, que a Igreja se manifesta como macroecumênica e que o en­
Deus do povo. É preciso ver como se dá historicamente a relação
contro, o diálogo e a comunhão com as diversas religiões e os diver­
sos grupos se impõem como imperativo evangélico.
2 1 .1 . E llacuría, Iglesia com o p ueblo de Dios, em Escritos Teológicos II, 317-
342, aqui, 321.
20. Conclusões finais de uma consulta teológica organizada pelo Ofício para 22. Ibidem, 322.
a evangelizaçâo da FABC. “Evangelização na Ásia”, ibidem, 468. 23. Ibidem, 319.

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Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

entre ambos. A relação entre Deus e o povo e, sobretudo, entre o povo Por fim, é preciso dizer e insistir que assim como o reinado de
e Deus é uma relação histórica, que se dá na historia e que faz historia. Deus não é igual à Igreja cristã de tradição romana e, nem mesmo, ao
No caso de Israel esta relação está diretamente vinculada à libertação conjunto das igrejas cristãs, também o povo de Deus não é, sem mais,
do povo hebreu: “Eu sou o Senhor. Eu tirarei de cima de vós as cargas igual à Igreja cristã de tradição romana e, nem mesmo, ao conjunto
dos egípcios, vos livrarei de vossa escravidão, vos resgatarei com das igrejas cristãs. E por uma dupla razão: negativamente porque as
braço estendido e fazendo justiça solene. Eu vos adotarei como meu igrejas cristãs não vivem, sem mais, de acordo com os desígnios de
povo e serei vosso Deus” (Ex 6,6-7a). Deus, não fazem sempre a sua vontade nem vivem sempre em função
A historicidade da relação entre Deus e o povo implica “um pro­ de seu reinado. E não raras vezes (a história que o diga) rejeitam e
jeto histórico de vida para o povo que há de ser povo de Deus (...). negam esse reinado, seja por omissão (por ingenuidade ou má fé),
Deus tem projetos e desígnios na história dos homens, cuja realiza­ seja por cumplicidade (com as estruturas, com os valores, com os
ção plena não seria outra coisa que o reino de Deus na terra”24. É aqui grupos do poder...); positivamente porque na medida em que o reina­
que se dá e se explicita a relação estreita entre o povo de Deus e o do de Deus vai se fazendo presente, de muitas formas e por muitos
reinado de Deus. O povo de Deus é o povo sobre quem Deus reina e caminhos (com intensidade diversa), nos muitos povos, nas muitas
o povo que está a serviço do remado de Deus e luta pela sua realiza­ religiões..., o povo de Deus também vai se constituindo nos muitos
ção histórica. Na formulação de Ignácio Ellacuría, “o reino de Deus povos, nas muitas religiões... como um POVO de muitos POVOS.
é para o povo e só quando se houver constituído o povo de Deus che­ Tomando emprestada uma polêmica e fecunda expressão conciliar,
gará a plenitude do reino”25. Duas proposições distintas, mas comple­ diríamos que o povo de Deus subsiste nos vários povos e nas diversas
mentares. Por um lado se destaca o ser povo. O reinado de Deus não religiões na medida em que e à proporção que, aí, o reinado de Deus
se reduz à dimensão pessoal e subjetiva da relação do ser humano vai se tornando realidade.
com Deus. Tem sempre (e em Israel prioritariamente) uma dimensão O Concilio Vaticano II deu passos importantes nessa direção.
comunitária, coletiva. Por outro lado se destaca o reinado de Deus Embora a Constituição Lumen Gentium trate o povo de Deus a partir
sobre esse povo, cuja plenitude não se dará “até que toda humanidade da Igreja — como povo crente em Jesus Cristo, a forma como o trata
se converta em algo como um só povo, salvas as diferenças e respei­ extrapola os limites da própria Igreja. O Povo de Deus tem por condi­
tadas as peculiaridades enriquecedoras”26. ção “a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus”, sua lei é “o
mandamento novo do amor” e sua meta é “o Reino de Deus” (LG 9).
24. Ibidem, 322s. “N o quiere esto decir que el reino de Dios sea sin más un Além do mais, é “para todo gênero humano germe firmíssimo de
reino de este mundo (...); ni tampoco quiere esto decir que el reino de D ios debe unidade, esperança e salvação” (LG 9). A este povo pertencem ou se
quedar reducido a un reino limitado en el espacio y en el tiempo (...); y todavía
ordenam, de diversos modos, “todos os homens” (LG 13).
menos quiere decir que sean necesarias formas obsoletas de teocracia y de hierocracia
para que D ios se historice entre los hombres. Pero si quiere decir que, aunque el Um passo importante foi, sem dúvida nenhuma, “o reconheci­
reino de D ios transcienda la historia, esa transcendencia no supone un mento do valor cristão e eclesial das outras comunidades ou Igrejas
desentendimiento del reino e del destino histórico de los hombres; ao contrario, que se reclamam de Cristo”27. Isso aparece, sobretudo, na polêmica
pasa por ellos de modo necesario para que la fé no quede reducida a un sueño
e muito discutida afirmação de que a Igreja de Jesus Cristo subsiste
evanescente sin comprobación alguna” (ibidem, 323).
25. Ibidem, 325.
26. Ibidem, 326. 27. J. C om b lin , op. cit., 34.

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Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

na Igreja Católica28. Ao invés de afirmar que a Igreja de Jesus Cristo Outro passo importante diz respeito ao ecumenismo no sensu
est a Igreja católica romana, como fazia comumente a teologia e os lato ou ao que na teologia da libertação temos chamado macroecu-
primeiros esquemas do documento sobre a Igreja, o Concilio afirma menismo, isto é, o diálogo entre todas as religiões. Sobre este ponto
que cía subsistit in e, ademais, reconhece que “fora de sua visível o Concilio foi ainda mais tímido e receoso. No entanto, deu passos
estrutura se encontram vários elementos de santificação e verdade” importantes. A declaração Nostra Aetate, sobre as relações da Igreja
(LG 8). Essa expressão rendeu e ainda rende muita discussão29. Acres­ com as religiões não-cristãs, partindo do princípio de que todos os
cente-se a isso o fato de que a Lumen Gentium (LG), sobre a Igreja, povos “constituem uma só comunidade”, que “têm uma origem co­
e o Unitatis Redintegratio (UR), sobre o ecumenismo, foram publi­ mum” e “um único fim comum. Deus” e que “por meio de religiões
cados no mesmo dia, 21 de novembro de 1964, e que, segundo Paulo diversas procuram os homens uma resposta aos profundos enigmas
VI, a doutrina sobre a Igreja (LG) deve ser interpretada à luz do para a condição humana” (NA 1), declara: “A Igreja católica nada
ecumenismo (UR)30. Em todo caso, como afirma Sullivan, “o único rejeita do que há de verdadeiro e santo nestas religiões” (NA 2).
fato que é absolutamente certo é que a decisão de não mais dizer ‘é’ Reconhece que elas “refletem lampejos daquela Verdade que ilumina
(...) é uma decisão de não mais afirmar aquela absoluta e exclusiva a todos os homens” e “exorta por isso seus filhos a que (...) reconhe­
identidade entre a Igreja de Cristo e a Igreja católica que estava sus­ çam, mantenham e desenvolvam os bens espirituais e morais, como
tentada nos esquemas precedentes”31. A tal ponto que, continua, “ne­
também os valores socioculturais que entre eles se encontram” (NA
nhuma interpretação posterior pode ser uma interpretação correta do
2). Enfim, reconhece que “não podemos, na verdade, invocar a Deus
pensamento do Concilio se implica um retorno à reivindicação ex­
como Pai de todos, se recusamos o tratamento fraterno a certos ho­
clusiva (...) segundo a qual só a [Igreja] católica romana tem o direito
mens, criados à imagem de Deus” (NA 5).
de chamar-se Igreja”32.
Mas, como afirma profeticamente Dom Pedro Casaldáliga, “o
Vaticano II foi um salto inicial”. Entretanto, continua, “também a Igreja
28. A propósito da discussão sobre o significado dessa expressão conciliar, cf.
F. A. S ullivan, “In Che senso la Chiesa di Cristo ‘sussiste’ nella Chiesa Cattolica ultrapassa a si mesma, e o Vaticano II não é a última palavra”33. De
Romana?, em R. L atourelle (org.), Vaticano II: Bilancio & prospettive venticinque modo que mais que se prender à letra (texto) do Concilio, sem prescin­
anni dopo (1962-1987), Assisi, Cittadella, 1988, 811-824. di-la, evidentemente, é preciso deixar-se conduzir pelo seu espírito que,
29. Basta ver a notificação da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o livro
de Leonardo Boff, a propósito desta expressão e de suas conseqüências para a passando pela letra, conduz-nos ao mistério do reinado de Deus neste
eclesiologia e para o ecumenismo em geral (L. B off , Igreja, carisma e poder, São mundo e da constituição histórica do seu povo — o que extrapola os
Paulo, Ática, 1994, 121-155 [ver especialmente os documentos da polêmica com limites e as fronteiras da Igreja cristã de tradição romana e mesmo do
o Cardeal Ratzinger, 269-367]). A mesma polêmica volta na Declaração Dominas
lesus da referida congregação no capítulo que trata da “unicidade e unidade da
conjunto das igrejas cristãs.
Igreja” (n. 16), fazendo, inclusive, referência explícita à notificação sobre o livro Tudo isso nos leva a afirmar com Comblin que “o povo de Deus
de B off (nota 56). Em um artigo que se junta a tantos outros (de autores diversos) subsiste (‘subsistit’) na Igreja, mas não é idêntico à Igreja (...). É um
B off reage à interpretação do Card. Ratzinger na Dominas lesas (cf. I dem , Respos­
povo entre os povos”34, de muitas religiões... Falando das características
ta ao Card. J. Ratzinger: A propósito da Dominus Jesus, via Internet Revista Ele­
trônica Latino-Americana de Teologia, em http://servicios koinonia.org/relat).
30. Cf. apud. F. A. S ullivan, op. cit., 814. 33. P. C asaldáliga , Na procura do Reino: Antologia de textos (1968/1988),
31. Ibidem, 813. São Paulo, FTD, 1988, 139.
32. Ibidem, 824. 34. J. C omblin , op. cit., 283.

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Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

do verdadeiro povo de Deus (opção preferencial pelos pobres, luta pela América Latina: “Em face aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apre­
justiça e pela liberdade, a perseguição por causa do reino de Deus35), senta como é e como quer ser: a Igreja de todos e particularmente a
Ellacuría afirma que uma das “maneiras”, uma das “formas”, um dos ‘Igreja dos pobres’”38. Durante o próprio Concilio algumas vozes profé­
“modos”... de historicizar estas características (de pô-las em prática) é ticas fizeram eco ao apelo de João XXIII. O cardeal Lercaro, em uma
o que foi promovido “por Jesus, através de sua vida, de sua palavra e intervenção que se tomou famosa e provocou uma referência, ainda que
de sua graça ao anunciar e realizar o reino de Deus”36 e que pro-segue tímida, do mistério da Igreja aos pobres (LG 8), denunciava profeti­
na história através de sua Igreja. Embora não sendo, sem mais, o povo camente: “O mistério de Cristo nos pobres não aparece na doutrina da
de Deus, a Igreja, na medida em que e à proporção que está a serviço Igreja sobre si mesma, e no entanto essa verdade é essencial e primordial
do reinado de Deus, é povo de Deus e, como tal, é, para toda humani­ na revelação (...). É nosso dever colocar no centro deste Concilio o mis­
dade, “germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação”, “instru­ tério de Cristo nos pobres e a evangelização dos pobres”39. O bispo de
mento de redenção”, e, ademais, é enviada “ao mundo inteiro como luz Toumai, Charles-Marie Himmer, na aula conciliar de 4 de outubro de
do mundo e sal da terra” (LG 9). E, aqui, mais uma vez a identidade da 1963, afirmou: “primus locus in Ecclesia pauperibus resevandus est”40
Igreja se manifesta como aberta e em comunhão com as diversas reli­ (o primeiro lugar na Igreja é reservado aos pobres). Durante o Concilio
giões e com os diversos grupos religiosos. aconteceram várias reuniões de um grupo de bispos (entre eles, nosso
Enfim, como diz Ellacuría, a “conjunção de povo e reino de Deus querido Dom Helder Câmara) que desejava que a Igreja se tomasse a
não se realiza na Igreja de modo pleno e total, (...) a Igreja é um Igreja dos pobres. Isso infelizmente não aconteceu e, certamente, aqui
instrumento excepcional cuja missão consiste em instaurar o reino de reside a maior lacuna do Concilio. No fundo, diz Ellacuría, “O Vaticano
Deus entre os homens, de modo que, nessa instauração, o que antes II foi um concilio universal, mas a partir da perspectiva dos países ricos
não era nem sequer um povo possa constituir-se em povo de Deus, do e da chamada cultura ocidental”41.
qual com toda propriedade pode dizer-se ‘eu serei seu Deus e vocês Não podemos, aqui, fazer um aprofundamento do que seja a Igreja
serão meu povo”37. dos pobres: suas características, sua concretização histórica42... Simples-

38. Jo ã o XXIII, E c c le sia C h rísti, apud. P. C. Cipolini, Povo de Deus e Corpo de


II. A Igreja de Jesus Cristo como Igreja dos pobres Cristo: Imagens complementares na abordagem do mistério da Igreja, em J. T ra s fe re tti
e L. G o n salv es (orgs.), Teologia n a p ó s - m o d e m id a d e : Abordagens epistemológica,
O papa João XXIII, em sua mensagem ao mundo em 11 de setem­ sistemática e teórico-prática, São Paulo, Paulinas, 2003, 217-249, aqui 247, nota 84
bro de 1962, às vésperas do Concilio Vaticano II, fez uma afirmação que 39. L ercaro , apud. ibidem , 235, n o ta 49.
40. C. M. H immer , apud. I. E llacuría, E l verdadero pueblo de Dios, según
embora não tendo encontrado muita ressonância no Concilio, apontava monseñor Romero, op. cit., 361.
para uma verdade fundamental da Igreja e antecipava profeticamente o 41. I. E ll a c u r í a , Pobres, em E sc rito s T eológicos II, op. cit., 171-192, aqui 173.
que aconteceria, sob a ação do Espírito de Jesus Cristo, sobretudo na 42. Cf. I. E ll a c u r í a , Las bienaventuranzas, carta fundacional de la Iglesia de los
pobres, em ibidem, 417-437; Idem, El auténtico lugar social de la Iglesia”, em
ibidem, 439-451; Idem, La Iglesia de los pobres, sacramento histórico de liberación,
3 5 .1. E ll a c u r í a , Iglesia como pueblo de Dios, op. cít., 327-337. Cf. também
em ibidem, 453-485; Idem, Notas teológicas sobre religiosidad popular, em ibidem,
Idem, El verdadero pueblo de Dios, según monseñor Romero, em E s c r ito s T eoló­ 487-498; J. S o brino, A Igreja dos pobres como verdadeira Igreja, em R essu rreiçã o
g ic o s II, op. cit., 357-396. d a verd a d eira I g r e ja : Os pobres, lugar teológico da eclesíologia, São Paulo, Loyola,
36. I dem , Iglesia com o pueblo de D ios, op. cit., 332. 1982, 93-133; L. B o ff, E a Ig reja s e f e z p o v o : Eclesiogênese: a igreja que nasce da
37. I. E llacuría, op. cit., 326s. fé do povo, Petrópolis, Vozes, 1991; J. C om blin, op. cit., 88-114.

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Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

mente queremos afirmar que o ser “dos pobres” é urna das caracte­ aos pobres — vítimas do anti-reino — , a constituição do povo de Deus
rísticas fundamentais da Igreja de Jesus Cristo. Não se trata apenas de começa e passa, sempre e necessariamente, pelos pobres. Se é nos pobres
um problema pastoral, mas que no fundo não atinge o núcleo funda­ que o desígnio de Deus é rejeitado, negado... é nos pobres que seu
mental da fé. O ser “dos pobres” é um dado de fé. É uma questão de desígnio poderá ser acolhido e realizar-se historicamente.
ortopráxis eclesial e de ortodoxia teológica. Afinal, se a Igreja é o “Corpo De modo que a Igreja de Jesus Cristo é a Igreja dos pobres. E
de Cristo” na historia; se Mt 25 não é, como afirma o papa João Paulo como tal está aberta e é convocada, evangélicamente, ao diálogo e à
II na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte 29, “um mero convite comunhão com todas as tradições e grupos religiosos — mas sempre
à caridade, mas uma página de cristologia que projeta um feixe de luz a partir e em vista dos pobres.
sobre o mistério de Cristo” — e a tal ponto que “nesta página, não Dizíamos desde o início de nossa reflexão que é sendo cristã
menos do que o faz com a vertente da ortodoxia, a Igreja mede sua (estando a serviço do reinado de Deus e, conseqüentemente, sendo
fidelidade de Esposa de Cristo”; o ser “dos pobres” é constitutivo da povo de Deus) que a Igreja é macroecumênica. Noutras palavras, que
Igreja de Jesus Cristo. É claro que o ser “dos pobres” não esgota a a Igreja é aberta e está, evangélicamente, convocada ao diálogo e à
identidade da Igreja. Mas é uma de suas características fundamentais comunhão com todas as tradições e grupos religiosos a partir daquilo
— sem ela, a Igreja não é Igreja. De modo que a Igreja de Jesus Cristo mesmo que a faz cristã: a centralidade do remado de Deus e a forma­
é a Igreja dos pobres: A Igreja que se faz a partir dos pobres e que ção do povo de Deus. Agora insistimos no fato de que neste mundo
encontra neles seu princípio de estruturação, organização e missão. de “Lázaros” e “ricos opulentos” a Igreja de Jesus Cristo se configu­
“Quando os pobres se tomam o centro da Igreja, eles dão direção e ra e se historiciza como “Igreja dos pobres”.
sentido a tudo o que legitimamente (...) e necessariamente (...) constitui 1. A Igreja dos pobres é lugar e fermento do reinado de Deus. Na
a realidade concreta da Igreja: sua pregação e ação, suas estruturas medida em que no centro de suas preocupações, de sua organização, de
administrativas, culturais, dogmáticas, teológicas etc. Os pobres não sãb sua vida e missão está a vida dos pobres — vítimas dos interesses e das
de modo alguna causa de ‘redução’ da realidade eclesial; pelo contrá­ forças anti-reino; na medida em que denuncia a maldade e a pecamino-
rio, são fonte de ‘concretização’ cristã de toda realidade eclesial”43. sidade que é a situação de miséria e exclusão em que vivem tantos
Mas além de ser uma das características fundamentais da Igreja de irmãos — e ao denunciai- se confronta com as forças do anti-reino; na
Jesus Cristo, o ser “dos pobres” constitui-se em lugar privilegiado para medida em que se coloca completamente do lado e a serviço dos pobres,
o encontro e o diálogo entre as religiões. E por uma dupla razão: negati­ assumindo suas causas e suas lutas históricas (não obstante as ambigüi­
vamente, os pobres são a expressão mais radical do pecado deste mundo dades e contradições que comportam)... a “Igreja dos pobres” se torna
e de sua rejeição a Deus, são as maiores vítimas das forças do anti- “lugar” privilegiado de instauração do remado de Deus e, conseqüen­
reino ou do reino do mal e são, em sua mera existência, sua denúncia temente, seu “fermento” histórico no mundo. E, como tal, constitui-se
mais real e profética; positivamente, eles são o apelo mais radical de con­ como “lugar” e “fermento” históricos privilegiados do encontro, do
versão ao reinado de Deus e são o lugar e o germe primários da instaura­ diálogo e da comunhão com as várias tradições e grupos religiosos.
ção do reinado de Deus e da restauração do povo de Deus neste mundo. Um diálogo inter-religioso que se faça à margem dos desígnios de
Sé o reinado de Deus é dirigido fundamentalmente e em primeiro lugar Deus para este mundo (a realização histórica do seu reinado) não passa
de mais uma artimanha das forças do anti-reino para manter e perpetuar
4 3 . J. S o b r in o , o p . c it., 1 0 3 . sua dominação neste mundo. Ora, se a negação das condições mate-

211
Pluralismo e libertação Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus

riais básicas de sobrevivência, como negação da vida no seu nível mais ra as religiões e, mais ainda, o que define a condição de povo de Deus
primário e fundamental, é a expressão mais radical da negação da obra de cada grupo ou tradição religiosa.
e do desígnio de Deus neste mundo (pecado), conseqüentemente a Definitivamente, o reinado de Deus e formação do povo de Deus
satisfação dessas condições materiais básicas, como afirmação da vida neste mundo passam pela vida e pelo destino dos pobres deste mun­
no seu nível mais primário e fundamental, é a expressão mais radical do. E disso a Igreja dos pobres é um sacramento: testemunho profé­
da conservação da obra de Deus e da fidelidade ao seu desígnio neste tico, fermento eficaz. Conseqüentemente, o diálogo inter-religioso,
mundo (graça). Logo, é em torno e em função da vida dos pobres, a se realizado e pensado a partir e em vista da realização do reinado de
começar do seu nível mais básico e mais fundamental, a materialidade Deus e da formação do povo de Deus, passa pela vida e pelo destino
da vida, que o diálogo inter-religioso deverá se realizar. E neste sentido dos pobres deste mundo e encontra na Igreja dos pobres um lugar
a “Igreja dos pobres” constitui-se como “lugar” e “fermento” reais (não privilegiado de sua real efetivação.
apenas ideais) do diálogo inter-religioso.
2. A Igreja dos pobres é sacramento do povo universal de Deus. Conclusão
Na mesma medida e proporção em que o reinado de Deus neste mundo
está ligado (rejeição/negação x acolhida/afirmação) à vida dos pobres, Nossa pretensão neste artigo era mostrar que a Igreja de Jesus
também a formação do seu povo está ligada à vida e ao destino dos Cristo, em seu núcleo mais central e mais fundamental, não é uma
pobres. Se o reinado de Deus é dos pobres (Lc 6,20; Mt 5,3)44, também realidade fechada, autocentrada e auto-suficiente. Pelo contrário. Ela
o povo de Deus é dos pobres: “O povo de Deus é preferencialmente um se caracteriza pela centralidade do reino de Deus — por viver, lutar
povo de pobres, um povo constituído em favor dos pobres, um povo e gastar-se pela realização do reinado de Deus neste mundo. E, na
cuja opção preferencial é a libertação dos pobres”45. E isto se realiza medida em que e à proporção que o faz, vai se constituindo como
povo de Deus neste mundo: o povo sobre o qual Deus reina e o povo
historicamente de uma maneira privilegiada na Igreja dos pobres. Por
que trabalha pelo reino de Deus. A Igreja existe em função de algo
isso podemos dizer com toda propriedade que a Igreja dos pobres é
povo de Deus e, como tal, é sacramento do povo universal de Deus: ela (reinado de Deus) e vai se constituindo como algo (povo de Deus)
que, embora lhe seja muito próprio, não se identifica, sem mais, com
é como germe e feimento do povo de Deus, nela se antecipa, ainda que
sua configuração histórica e que, ademais, ganha outras configura­
parcialmente e até ambiguamente, aquilo a que todo povo é chamado
ções históricas para além de suas fronteiras. Isso faz da Igreja não
a ser: povo de Deus, povo sobre o qual Deus reina.
apenas uma realidade descentrada, aberta, mas uma realidade em
E como sacramento (sinal visível, antecipação escatológica) do
comunhão com outras tradições e grupos religiosos.
povo universal de Deus, a igreja dos pobres se apresenta como lugar
Comunhão que se realiza a partir de e em vista do reinado de Deus
privilegiado de encontro e diálogo entre as religiões. E a vida dos
e que faz das muitas igrejas, das muitas religiões, dos muitos grupos
pobres, sua libertação, em última instância, o que neste nosso mundo
religiosos e, mesmo, não religiosos (na medida em que e à proporção
dividido entre ricos e pobres, opressores e oprimidos, reúne ou sepa-
que são fiéis ao reinado de Deus) o povo de Deus neste mundo: povo
de muitos povos, de muitas religiões... Isso oferece um critério para o
4 4 .1. E llacuría, “Las bienaventuranzas, carta fundacional de la Iglesia de los
pobres, em E sc rito s T eo ló g ico s II, 417-437. próprio diálogo inter-religioso. Afinal, como, lúcida e profeticamente,
45. I dem , Ig le sia co m o p u e b lo d e D io s , op. cit., 327. afirma Dom Pedro Casaldáliga, no diálogo inter-religioso “não se trata

212 213
P!ur,il ¡'•-ni i tt libe-dí Jo­

de colocar as religiocs nyrm reunifio para que discutam pacificamente


sobre rcligiao, ao redor de si mesmus. narcisicamcntc. O verdadeiro
A maldigáo de Malaquias
diálogo intcr-rcligioM>de\«tercoino conteúdoe cojno objetivo b causa Edesiologitt negra e pluralismo religioso
de Deu*. que é a própria humunidade e o univciwi. Na humanidade a
causa prioritária é a grande massu empobrecida e excluida; e no uni­ Pe. P alio Botas
verso, a térra, a agua e o ar profanados {...) Eate diálogo sera inútil,
hipócrita e até blasfemo se nao está volcado para a vida e para os po­ Pañi Vfcrr BeJém o ívú Stella de Oxáxsi.
bres, sobre os dúeitos humanos, que ¡sio divinos tambem'’*. máes d«í quari rae oqpilho de *er filhn.
Assim, a reaJizBcao do reinado do Dcus e a foima<;fio do povo de "L'm grande hornero é nquele que sabe
ífeus fazem da Jgreja urna realídade descentrada c em comunhSo coinprccodzr a sua época" (Pire Lacordeircj.
comas outras reí igióes macroceumén ica em sua própria naturezQ.
E, ademáis, constitucm-se como lugar c criterio do própíio diálogo É assustador c herético aos olhos do Concilio Vaticano TI aatitude
imcr-rcligioso. Ambas as realidades ia Igreja e o diálogo inier-religjo- de cerceamento da liberdade religiosa assumida pela Secretaria de
so) encontram na lureju dos pobres ym lugar«ulequado e un» fermen­ Educagao do Rio de janeiro. O ensillo religioso, ñus escolas públicas,
to eficaz de sua configurado histórica. dcixará de ser urna historia das rchgiócs. c será confitsriomd, c, pas­
man. juduco-cristfio. Os prot'essores seráo credenciados pela CNBB
para os católico», pela Orden» dos Ministros Evangélicos pura as denomi­
n a re s evangélicas e pelo Rabinatopara o judaismo. Segundo a própria
secretaria, “tifio houve interesse dos alunos por outras religióes”.
Caso fízcsscmo5 uma invcreSn de papéis dcscohririiimas como é
ofensivo se nós toásemos definidos como “nao-budistas'', “náo-hinduis-
las“, :‘nfio-candombleeisUis”. Devemos, e é o que nos exige o Espirito
Santo, inspirador do Vaticano TI, considerar as pessoas a partir de sua
própria compreensfio e tifio a partir de urna compreens3opr«»nceituosa.
O dcsafi o e a graca do diálogo consiste nesta tteolhida du diferen­
te do nutro c sermos pcnncávcis á acolhida dos outros.
Ubi curdas t! umur. Dtrux ibi etí nos revela que é o amor que nos
salva. Jesús de Nararé, o Cristo. Cestcmunhou que a Hulva^fio para liv
dos os povos vera da única realidade comum a todos eles: o amor. hxta
é a grande Boa Nova reafirmada pelos documentos conciliares: a grata
divina está disponívcl para todos OS hnmens c mulhere» e este amor
salvlfico tifio pode ser inancido dentro de quaisquer limites, pois cm
4d P. Cvv-iwi n;«. JVOIogo. cmASETT (ots >. M tu nxuüvs uuninbr* ¿v tic.its: cada tradigao religiosa do mundo existan "elementos de verdade c de
JJíwfx* do pluralismo rtl¡B¡c*o álcolagiB da Llberbi^íLci. (ioiá>. Rede. 2003. ?. gra(á" cuja plcnitudc se cnconua no Verbo Encamado ( Ad Gentes. 9).

214 215
A maldição de Malaquias
Pluralismo e libertação

O Concilio Vaticano II quis que os antigos preconceitos e os Para o Papa João Paulo II, o Espírito Santo está presente e ativo
julgamentos negativos fossem eliminados e, para tanto, chamou a no mundo, nos membros das outras religiões e nas suas próprias tradi­
atenção para os valores positivos e os dons divinos nas outras reli­ ções religiosas. A oração autêntica, mesmo a dirigida a um Deus
giões. “Como Cristo morreu por todos (Rm 8,32), todos são chama­ desconhecido, os valores e virtudes humanas, os tesouros da sabedo­
dos a participar da mesma vida divina. Deve-se, pois, admitir que o ria escondidos nas tradições religiosas devem nos conduzir a um diá­
Espirito Santo oferece absolutamente a todos os seres humanos a logo verdadeiro e ao reencontro autêntico entre os seus membros,
possibilidade de se associarem ao mistério pascal, de maneira conhe­ pois tudo isso é fruto da presença ativa do Espírito.
cida somente por Deus” (grifo nosso). Após a Jornada Mundial de Oração para a Paz, em Assis, reali­
O papa João Paulo II, na sua encíclica Redemptoris Hominis, ao zado em 27 de outubro de 1986, o papa discursou para a Cúria Ro­
reafirmar o seu compromisso com o diálogo inter-religioso, escreve: mana falando de “um mistério da unidade”, fundado sobre a unidade
do gênero humano na criação e redenção, que une “todos os povos,
Embora de m odo diverso e com as devidas diferenças, importa aplicar quaisquer que sejam as circunstâncias de suas vidas”. Para o Papa, as
isto que acabamos de dizer agora à atividade que busca a aproximação diferenças são o elemento menos importante em relação à unidade,
com os representantes das religiões não-cristãs e que exprime também que ao contrário, é o elemento radical, fundamental e determinante.
ela por m eio do diálogo, dos contatos, da oração em comum e da busca Na carta encíclica Redemptoris Missio, de dezembro de 1990, o
dos tesouros da espiritualidade humana, os quais, como bem sabemos, Papa escreve:
não faltam também aos membros desta religiões (grifo nosso).
O Espírito manifesta-se particularmente na Igreja e em seus membros,
O papa reconhece ainda a ação do Espírito nas religiões e ainda mas sua presença e ação são universais, sem lim ites de espaço nem de

dá um puxão de orelhas nos católicos: tem po (...) O Espírito está, portanto, na própria origem da questão
existencial e religiosa do homem, que surge não só de situações contin­
N ão acontece, porventura, algum as vezes, que a crença firm e dos gentes, mas, sobretudo, da estrutura própria de seu ser. A presença e
sequazes das religiões não-cristãs — crença que é feita tam bém ela ação do Espírito não atingem apenas os indivíduos, mas também a
do Espírito da verdade operante para além das fronteiras v isív eis do sociedade e a História, os povos, as culturas e as religiões (RM , 28).
Corpo M ístico — deixa confundidos os cristãos, não raro tão dis­
postos, p o r sua vez, a duvidar quanto às verdades reveladas por Temos de superar as nossas ignorancias e preconceitos contra as
Deus e anunciadas pela Igreja, e tão propensos ao relaxamento dos outras religiões para não sermos heréticos confrontando o que o
princípios da moral e a abrir o caminho ao permissivismo ético?” Espírito Santo inspirou à Igreja. O Pontifício Conselho para o Diálo­
(grifo n osso). go Inter-Religioso, no seu documento Diálogo e Anúncio, 29 postula
que “é por meio da prática daquilo que é bom nas suas próprias tra­
Em outras palavras, significa que o mistério da salvação os atin­ dições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência, que os
ge não só por uma simples ação invisível do Ressuscitado, mas de membros das outras religiões respondem afirmativamente ao convite
uma maneira misteriosa pela ação mediadora da tradição religiosa a de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, mesmo se não o re­
que pertencem. conhecem como o seu Salvador” (cf. AG 3, 9, 11).

216 217
Pluralismo e libertação A maldição de Malaqulas

O teólogo católico Raymond Pannikar, que estabeleceu um den­ recorre nos momentos mais solenes e críticos da vida, quando a inter-
so e fecundo diálogo com o hinduísmo, distingue entre Fé e Crença. cessão de qualquer outro intermediário se julga inútil. Quase sempre
Para ele, a Fé é uma experiência religiosa fundamental e constitutiva posto de lado o temor da onipotência, Deus é invocado como Pai. As
do ser humano. A crença é uma expressão particular adotada por orações a ele dirigidas, individuais ou coletivas, são espontâneas e, por
esta atitude humana fundamental em cada tradição religiosa. O con­ vezes, comoventes. E entre as formas de sacrifício sobressai, pela pu­
teúdo da fé — o mistério — é comum em todas as religiões; o conteúdo reza de significado, o sacrifício das primicias (...) A participação na
da crença — os mitos religiosos — exprimem, de uma maneira diver­ vida da comunidade, quer esta seja no âmbito da parentela quer no da
sa e plural, a fé. vida pública, é considerada como um dever preciso e como um direito
Para Pannikar, o cristianismo dá ao mistério o nome de Cristo, de todos. Mas, ao exercício desse direito, se chega somente depois de
mas o mistério pode assumir outros nomes. As tradições religiosas uma preparação amadurecida, por meio de uma série de iniciações com
diferem sob a ótica das crenças, mas todas coincidem sobre a ótica da o objetivo de formar o caráter dos jovens candidatos e instruí-los sobre
fé. O diálogo inter-religioso não pode pedir que a fé seja colocada as tradições e normas consuetudinárias da sociedade (...) Eis por que o
entre parênteses, mas pode fazê-lo em relação às crenças e, mesmo, africano quando se toma cristão não se renega a si mesmo, mas retoma
transcendê-las. os antigos valores da tradição “em espírito e em verdade”.

Somos negros demais no coração No Brasil, nestes anos pós-conciliares, a aproximação com as
religiões africanas foi um elemento renovador no diálogo religioso.
O Papa Paulo YI, abriu um caminho ao escrever na sua declara­
Não seria demais lembrar as posições de diálogo do Cardeal da Bahia,
ção Africae Terrarum:
Brandão Vilela, e as atitudes fraternas de Dom Timóteo de Amoroso
A vida espiritual é o fundamento constante e geral da tradição africana. Lima, Abade do Mosteiro de São Bento, para com todo o “Povo de
Não se trata simplesmente da assim chamada concepção “animista”, Santo” da Bahia
no sentido emprestado a esse termo na história das religiões, no fim do Devemos reter a experiência exemplar do Padre François de
século passado. Trata-se, antes, de uma concepção mais profunda, mais 1’Espinay que em 1963 foi enviado para a América Latina e, em se­
ampla e universal, segundo a qual todos os seres e a mesma natureza guida, para Salvador, onde foi pároco em Itapuã. Trabalhou com os
visível se acham ligados ao mundo do invisível e do espírito. O ho­ negros baianos e descobriu, como ele mesmo escreve, “traços de Jesus
mem, em particular, nunca é concebido, como apenas matéria, limitado Cristo” em sua religião. Acometido de um câncer fatal, aproveitou
à vida terrena, mas reconhece-se nele a presença e a eficácia de outro para escrever e explicar “o mais claramente possível as questões que
elemento espiritual que faz a vida humana ser sempre posta em relação nos chegam das religiões diferentes da nossa”.
com a vida do além. Desta concepção espiritual, elemento comum im­ CEspinay, como tantos outros, descobriria um Deus monoteísta,
portantíssimo é a idéia de Deus, como causa primeira e última de todas criador e Pai de tudo o que existe, que se revela por sua palavra e amor.
as coisas. Esse conceito, percebido mais do que analisado, vivido mais Impactante para um cristão quando, no seu cotidiano, as religiões estão,
do que pensado, exprime-se de modo bastante diverso de cultura para aparentemente, “misturadas”. Para os negros, o Deus do cristianismo
cultura. Na realidade, a presença de Deus penetra na vida africana, serviu de bom pretexto aos brancos para reduzi-los à escravidão e isso
como a presença de um ser superior, pessoal e misterioso. A ele se está cicatrizado, de geração em geração, nos seus corações, mentes e

218 219
Pluralismo e libertação A maldição de Malaquias

corpos. Se o Ocidente encerrou Deus numa única mensagem, confun­ n ó s, c r is tã o s , c o m o q u a n d o r e c e b e m o s , n o s s a c r a m e n to s , a v id a d iv in a

dindo unidade e exclusividade, a África deu a Deus uma dimensão mais e a v id a h u m a n a ,

larga, mais ciúdadosa de cada filho seu e mais respeitosa de cada povo.
O teólogo africano Gabriel Setiolane afirma que “o Ocidente empobreceu Tudo é de muito difícil compreensão para nós. Como falava Pe.
o conceito de Deus”. Pannikar também nos lembrava que um hindu ja­ François: “Se eu me coloco a explicar muito, eu vou trair os negros.
mais poderia admitir nem compreender esta exclusividade do cristianis­ Eles não são nós”.
mo como foi interpretada pelo catolicismo romano. E, lucidamente, descobrira:
Outra descoberta fundamental do Pe. UEspinay foi que o candom­
blé tinha uma noção mais humana e mais viva da morte. Quatro sécu­ Jesus Cristo histórico é ainda muito branco para os negros. Há milênios.
los de escravidão, a desaparição das famílias e das etnias não destruiu Deus fala de outra maneira, no seu corpo e na natureza, pelos espíritos
a ligação profunda e solidária entre os ancestrais e seus descendentes, dos seus ancestrais. Como nós, a Igreja, pudemos rasurar tudo isto du­
rante 400 anos com a boa consciência de possuir a verdade? Temos de
nem o laço indissolúvel entre o visível e o invisível, e mais específica­
ser prudentes quando escrevemos ou falamos destas coisas na Igreja.
mente entre os mortos, os espíritos e os vivos. A morte, para o africano,
Mas, na minha alma e na minha consciência, conquistei agora a certeza
não é uma ruptura, mas um outro modo de presença. Os mortos e os
de que Deus é maior do que podemos imaginar. Ele utiliza para se revelar
ancestrais ocupam um lugar insubstituível no culto.
a seu povo outras mediações do que aquelas que conhecemos.
O padre François descobria que Jesus Cristo nunca foi negado,
nem rejeitado nem desprezado pelo “povo dos Orixá”. Concretamen­
Desta maneira, servindo de testemunha à dor de Deus, foi que a
te eles dirão: “Jesus Cristo é a maneira de os cristãos falarem de um
sua própria dor, espiritual e física, se transformou em luz. Retornou ao
de nossos orixás”. Que o digam os séculos de festa religiosa na Igreja
Pai, exatamente à meia-noite do dia 12 de dezembro de 1985, na festa
do Senhor do Bonfim.
de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina, revela­
Urge rompemos o princípio de superioridade ocidental de que
da ao índio João Diogo, canonizado pelo papa João Paulo II, em 2002.
possuímos a única verdade e devemos anunciá-la/impô-la. Estamos
E o dia era 12, como 12 são os Ohás de Xangô, e ele era um deles.
vivendo tempos de escutar a verdade do outro. O melhor seria conse­
Minha experiência e vivência seguem o caminho aberto pelo Pe.
guimos viver como Pannikar viveu na sua relação com o hinduísmo:
François. Depois de viver na comunidade do Opó Afonjá, e descobrir
toda a sua hospitalidade, fui confirmado como um Ogan, padrinho do
Tu tens um pensamento que está mudo de um lado pelo princípio da
orixá Ogum, o Senhor dos Caminhos. Fui acolhido totalmente, na
contradição e, por outro, pelo princípio de identidade.
minha fé cristã, pela ialorixá Stella de Oxóssi e por todos os filhos e
filhas da casa. Aprendi, mais do que nunca, que qualquer um que
A maior descoberta estava por vir. Depois de anos de convivên­
cia com o candomblé, depois de ser sido confirmado como Obá de entrar pela porteira do I l ê torna-se filho da casa e deve ser servido
Xangô, um conselheiro, escrevia: nas suas necessidades.
Nunca fui pressionado para mudar de religião e tenho podido, nes­
Eu não reneguei nem o cristianismo nem o sacerdócio. E me dei conta tes anos todos, desde 1996, viver a minha identidade de cristão e de padre
de que não havia nada que fosse contrário ao cristianismo. Era para católico. Escrevi dois livros sobre a espiritualidade dos Orixás que estão

220 221
Pluralismo e libertação A maldição de Malaquias

indicados, oficialmente, para o ensino religioso. Tenho dado testemu­ Foi preciso que os irmãos vindos de longe e reunidos nessa velha Sé
nho que não há nenhuma pertença religiosa esquizofrênica. Em Deus caissem em si. Precisavam se encontrar e se olhar nos olhos, para se dar
Uno e Trino não há divisões, mas uma realidade de amor e ternura co­ conta do que realmente estava ocorrendo. Foi preciso compartilhar
mungada na identidade de cada um deles. O mais difícil é que, na reli­ experiências pessoais quanto à significação que pudessem ter as mui­
gião africana, a experiência religiosa é uma vivência e não uma soma­ tas coisas e pessoas dos mais diversos lugares.
tória de conceitos, teorias, teologías como no cristianismo ocidental.
Para mim, a maior revelação foi a de que, finalmente, pude com­ Neste terceiro milênio, temos de banir a maldição, denunciada
preender e vivenciar a passagem de Atos 10, no encontro de Pedro e pelo profeta Malaquias, ou nos destruiremos todos:
Cornélio: “O que Deus declara puro, não o tenhas por impuro” e
Pedro não terminara o seu discurso quando o Espírito Santo desce Acaso não temos um mesmo Pai para todos nós? Não nos criou um
sobre todos os ouvintes e todos ficaram assombrados ao ver que “o mesmo Deus? Por que trabalhamos tão pérfidamente uns contra os
dom do Espírito Santo era concedido aos pagãos também”. outros? (Ml 2,10)
Uma nova eclesiologia desponta neste diálogo inter-religioso.
Uma igreja aberta para escutar, compreender, aprender esta revela­ Amém e Axé!
ção de Deus a todos os povos que O exaltam em línguas diversas.
Uma igreja, como a querida pelo Papa João XXIII, no seu dis­
curso de abertura do Vaticano II:

A Igreja, no passado, sempre se opôs aos erros e os condenou com


grande severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere recorrer
ao remédio da misericórdia a usar as armas do castigo. Em face das
necessidades atuais, julga mais conveniente elucidar melhor a sua dou­
trina do que condenar os que dela se afastam.

Mais do que nunca, é preciso seguir o postulado pelo Papa Paulo


VI, no seu discurso de abertura na segunda fase do Vaticano II:
“Uma tentativa de melhor respeitar a tradição, despindo-a de for­
mas caducas e mentirosas, em favor de modos mais genuínos e fe­
cundos de vivê-la”.
Os padres conciliares nos deixaram e nos deram régua e com­
passo. Só o diálogo verdadeiro poderá criar vínculos de amor nas
nossas plurais diversidades. E devemos fazer, entre nós e com os
outros diferentes de nós, o esforço para que tenhamos, definitiva­
mente, a Paz.

222 223
Epílogo
Rotas abertas e fechadas em direção a Deus

D iego Irarrázaval

A cristandade latino-americana tem sido substituida por urna


pluralidade de culturas e espiritualidades. Cada religião arrogante que
desqualifica as demais foi desmoronando. No mercado global, tro-
cam-se bens materiais, diversões, tecnologias e também objetos e
símbolos religiosos. Todo esse novo cenário provoca em nós profun­
dos questionamentos. Aparecem rotas inéditas. São assuntos que preo­
cupam tanto as ciências humanas como as leituras feitas a partir da fé
(e estas são alimentadas pelas primeiras).
O terreno das religiões é acidentado e desigual. Caminhamos
com dificuldade. No meio das ambivalências e obstáculos, existem
rotas abertas até Deus. O fecundo diálogo entre a fé crista e outras
religiões oferece novas compreensões da Presença amada por todas
as formas de crer. Também reapreciamos nossa Tradição judaico-cristã,
que dá imensas contribuições para o diálogo, não a partir de poderes
sociais, nem a partir do dogmático, mas a partir da humilde verdade
de Deus que opta pela humanidade pobre.
Por outro lado, existem obstáculos e caminhos intransitáveis; a
condição humana e o meio ambiente estão afetados por forças destrui­
doras e por falsos deuses. José Comblin destacou o idolátrico no inte­
rior das religiões. Algumas rotas religiosas não conduzem a Deus, mas,
ao contrário, se desviam em direção às idolatrias do poder e do unila­
teral ego moderno e pós-modemo. Certas categorias teológicas — que
pretendem ser doutrinas imutáveis — acabam sendo caminhos fecha-

225
Pluralismo e libertação Epílogo

dos. Por isso devem-se abrir novas pistas teológicas (isto aparece mais lhar as responsabilidades pela libertação humana e, também, entretecer
nas contribuições de Luiz Carlos Susin, Mario Pérez, Luiza Tomita, místicas do silêncio e do serviço (que foram recalcadas por Paul Knitter).
José María Vigil e Marcelo Barros). Por isso, é preciso olhar critica­ Vamos também clareando o sentido e a finalidade da reflexão
mente tanto as religiões quanto nossas formas de fazer teologia, já que teológica sobre as formas religiosas que cultivamos como povos. Le­
elas com freqüência desfiguram e ocultam as fontes da Vida. vando em conta a globalização que assedia as culturas/religiões lo­
Durante os últimos quarenta anos, a teologia latino-americana cais, estas têm de ser reconstruídas. A isso contribui a hermenêutica
tem dialogado com a humanidade empobrecida e tem respondido a bíblica atenta ao pluralismo social e religioso (como aparece nos tex­
seus clamores em favor da vida. Brotaram e cresceram a reflexão tos de Jorge Pixley e Marcelo Barros). Em termos teológicos, a meta
indígena, a feminista, a afro-americana, a ecoteológica e outras cor­ não é as religiões ficarem dando volta sobre si mesmas, mas que cada
rentes. Hoje também se consolida o diálogo com as diversas buscas grupo humano seja fiel a Deus e ao próximo. Como propôs Dom
religiosas do sentido de viver. Diante dos fascinantes desafios do Pedro Casaldáliga ao fazer o Prólogo do primeiro volume desta série
pluralismo religioso na América Latina e no Caribe, a teologia da de publicações: o diálogo entre as religiões tem como objetivo “a
libertação vai traçando algumas linhas de interpretação. A isso se causa de Deus que é a própria humanidade e o universo”. Esta causa
dedica este segundo livro (que forma parte da série de cinco volumes de Deus compreende a libertação humana e cósmica.
programados pela ASETT). Então, não se trata de religiões que se olham umas às outras e
Ao desfrutar os densos capítulos deste livro, o(a) leitor(a) vai falam sobre os seus assuntos internos. Tal atividade seria narcisista!
encarando as questões sobre o acontecimento cristão e as religiões: Tampouco se poderia colocar de um lado a teologia das religiões e do
Com relação à comunidade e às pessoas, o que somos? De onde e outro as teologías da libertação e conversar entre sistemas concei­
como dialogamos? O Evangelho que opta pela vida não está repre­ tuais. O diálogo que nos interessa acontece entre as pessoas, comu­
sentado pelos funcionários de um cristianismo onipotente, mas sim nidades, processos humanos, entre espiritualidades/religiões, que vão
por aqueles que dão testemunho do Evangelho. Ao mesmo tempo orientadas para a libertação integral e mundial. Isso é sustentado pelos
estes se enriquecem ao dialogarem com as pessoas de outras tradi­ escritos de José Maria Vigil e pelos capítulos deste livro. Vale acres­
ções religiosas espirituais. Quanto ao terreno do diálogo, não se trata centar que não se trata somente de uma emancipação social, já que a
de comparar fórmulas e crenças, mas de contribuir (a partir de dife­ libertação supõe vínculos humanos, e orar e contemplar a Deus, o
rentes convicções e símbolos), para o bem-estar da humanidade que que acontece junto com a transformação histórica.
polifacéticamente invoca a Deus. Também se deve encarar modos de Assim, em nosso continente, que passos foram dados? De quais
caminhar juntos — metodologias do diálogo entre as religiões — , mananciais brotam vertentes de água teológica no diálogo com as
reconhecendo nossas diferenças, crescendo graças a elas e encarando religiões? São vários mananciais que aqui somente os enumero. Por
limitações e desvios em cada trajetória religiosa. um lado, contamos com lúcidos trabalhos sobre economia, religião,
A meu ver, não se trata de fazer uma leitura unilateral — desde teologia. Franz Hinkelammert, Jung Mo Sung (e outros) desentra­
princípios cristãos até ambivalentes religiões humanas, nem uma leitu­ nham o religioso dentro do mercado totalitário. A seus absolutos
ra dicotômica — na qual o teológico proviria da fé e o religioso seria contrapõem-se as propostas do cristianismo evangélico e o Deus da
um produto humano. Antes, trata-se mais de interpelações mútuas que Vida — sem excluir a ninguém nem a nada. Por outro lado, existe
fièfniitem aprofundar a fé de cada comunidade participante, comparti- uma grande e profunda reflexão teológica em torno da fé e da reli-

227
Pluralismo e libertação Epílogo

gião do povo (desde os anos 1980 até o presente). Isso inclui discer­ liguagem totonaco e nahuatl, e reconhece uma presença divina no
nir, graças ao Evangelho do Amor, os caminhos religiosos da povo tolteca e sua crença em Quetzalcóatl. Por sua parte, um presbí­
humanidade; como o faz Marcelo Barros em forma orante e interpe­ tero católico, Paulo Botas, participa da religião afro-brasileira onde
ladora: As muitas linguagens e uma única palavra: amor. No caso da se encontra a Deus.
América Latina, com sua gama de religiões cristãs e sincréticas, o Outra grande questão é o monoteísmo cristão. Esse monoteísmo
diálogo inter-religioso dá prioridade a tais realidades. não está circunscrito a uma religião; antes, afirma o verdadeiro Deus,
O renovador movimento bíblico não segue pautas sectárias e dog­ libertador do pobre — como anota José Comblin. Tal compreensão
máticas, e — entre outras coisas — está re-descobrindo o religioso e as de Deus é incompatível com o patriarcado e com pautas sexistas e
religiões. Aqui sobressai o trabalho das biblistas feministas. Em relação racistas — como adverte Luiza Tomita. Vários capítulos do livro le­
à historia, CEHILA e outras instâncias mudaram os seus enfoques. O vam à tona fatores políticos e filosóficos que condicionam o discurso
enfoque das igrejas é ampliado em direção à fé e às religiões na história monoteísta; e também a problemática fimdamentalista que costuma
de nossos povos. Outro grande fator tem sido a mística e a proposta acompanhá-lo. Por estes e outros motivos, o monoteísmo é exami­
macroecumênica, explicitada por Casaldáliga e por Vigil. No final das nado com um olhar crítico, e de modo positivo é reafirmada a Trin­
contas, o mais importante é cada uma das novas correntes teológicas do dade do amor libertador, segundo a tradição cristã.
continente: a indígena, a feminista, a afro-americana, a eco-teológica. Quanto à Teologia da Salvação, esta é histórica e também implica
Cada uma tem sua metodologia e seus conteúdos. Há pontos em comum cura pessoal, cuidado da Terra, e a plenitude da vocação humana (confor­
devido a relações com as fontes de Vida, da parte das comunidades crentes me comentário de Marcelo Barros). Unicamente somos salvos no Amor;
ao serviço da humanidade que re-descobre suas energias culturais e espi­ e não o somos por uma religião tradicional nem por absolutos e deuses
rituais. Portanto, de muitas maneiras, temos avançado na teologia do plu­ modernos. Quanto ao Cristianismo, este não oferece um bem-estar
ralismo religioso (aproveitando as descobertas da reflexão anglo-saxônica, sectário a seus integrantes, mas constitui um sinal eficaz da vida que
mas sem transplantá-las em nossos contextos). provém de Deus — como sublinhou José Comblin. Deve-se ter presen­
Graças a esse conjunto de mananciais, têm brotado e crescido te que a salvação não provém nem do cristianismo nem das religiões.
bons frutos e amáveis flores no meio de espinhos. Isso está sublinha­ Esta perspectiva permite reconsiderar a pessoa e obra de Cristo.
do e argumentado ao longo dos capítulos deste livro. Faz-se uma leitura Caminha-se para além do parâmetro inclusivista e cristocêntrico (em
teológica das religiões, que são em parte mediações de vínculos com função de algum poder religioso). Somos fiéis ao acontecimento de
o Sagrado. Elas também implicam fundamentalismos, intolerâncias, Cristo, vivido na Igreja, ao serviço da humanidade. A respeito disso,
idolatrias. alguns vêem a teologia latino-americana subordinada a fórmulas rígi­
Quero ainda sublinhar grandes questões abordadas neste livro: das e inadequadas. Não ocorre assim na reflexão feminista sublinhada
universalidade da revelação, o monoteísmo cristão, a teologia da sal­ por Luiza Tomita nem na orante e lúcida contribuição de Marcelo Barros
vação, a obra de Cristo, nossas leituras das religiões. (que carinhosamente diz que discute com Deus, quando de fato discute
A revelação cristã tem um significado universal reconhecível nas com aqueles que manipulam linguagens cristocêntricas).
religiões e mais precisamente na corporeidade e vida do “outro”, onde Quanto à teologia do pluralismo religioso, isso requer primeiro
Deus se manifesta a nós, como o indica Luiz Carlos Susin. Essa pers­ um diálogo intracristão, e na concretude da América Latina nos con­
pectiva é universal e concreta; por isso Mario Pérez fala de Deus em vém seguir considerando os muitos cristianismos existentes no nosso

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Pluralismo e libertação Os autores

Francisco de Âquino Júnior Maria Pérez Pérez


continente. Devemos prestar atenção à palavra e ao Espírito muito
Mestre em Teologia pelo Centro de Estudos Superiores Je­ E uma das novas figuras da teologia e da pastoral indígena
presentes nas outras religiões — como indica Marcelo Barros — suíta de Belo Horizonte. Professor de teologia no Instituto no México, autor da voz "Quetzalcóatí" no Diccionario de
desenvolvendo em termos teológicos o já vivido e compreendido nas Teológico Postoral do Ceará. Trabalho na Postoral Ordinária, religiosidad popular compilado por Benjamín Bravo, no Mé­
comunidades indígenas e afro-americanas e também na práxis femi­ na Pastoral de Rua e é membro da Comissão Pastoral da xico. Tem dedicado o maior parte do seu tampo ao acom­
Terra da Diocese de Limoeiro do Norte, Brasil, onde mora. panhamento dos povos indígenas, seu próprio povo, nos
nista. A tudo isso contribui o diálogo no interior das pessoas e comu­ Marcelo Barros serras mexicanas.
nidades que têm inculturado e dado formas religiosas à fé cristã. Além Monge beneditino do Mosteiro do Anunciação, em Goiás. Natu­ Jorge Pixley
disso, a leitura teológica das religiões ajuda-nos a discernir o idolátrico ral de Camaragibe, Recife (Pe). Trabalhou com Dom Helder Pastor batista, nascido em Chicago, foi criado em Manágua,
Caraira paro assuntos ecumênicos. Dedicou 14 anos ao Secre­ Nicarágua. Lecionou Sagrada Escrituro em Porto Rico, em
não na religiosidade mas quando uma religião passa a ser um fim em tando Nacional da Pastoral da Terra e até hoje ossessora gm- Buenos Aires, no México e no Seminário Batista de Maná­
si mesma (como tem advertido José Comblin). pos de lavradores. Sentase realizado ao trabalhar com negros gua. Obras principais: Êxodo, uma leitura evangélica e popu­
Outras grandes questões, somente esboçadas neste livro, são apneu- e indígenas; tem testemunhado a presença de Deus nos "ter­ lar (1983), História sagrada, história popular (Manágua,
reiros" de Candomblé, que freqüenta contemplativa e amoro­ 1989), Opção pelos pobres (com Clodovis Boff), (Madri -
matologia e as precisões cristológicas em termos do Espírito que afeta somente. Possui 25 livros publicados entre obras de teologia e São Paulo, 1986).
toda sociedade, cultura, religião humana. Outro eixo é a soteriologia e romances, assim como uma boa porção de artigos.
Luiz Carlos Susin
www.empriz.oia/niarc.conveis.htm wwwemoaz.ota. Faz parte
a ética, sublinhadas por J. M. Vigil. O diálogo entre religiões e espirituali­ da Comissão Teológico da ASETT, região América Latina. Tem formação teológico pela PUC do Rio Grande do Sul
dades vai dirigido até a responsabilidade ética mundial que está, segundo e pela Universidode Gregoriana de Roma. É professor da
Pablo Botas, mts Escola Superior de Teologia e da PUC de Porto Alegre.
a mística do Evangelho, em sintonia com a opção pelo pobre. Sacerdote católico, teólogo e escritor. Atualmente é cape­ Membro do Comitê Editoriol da Revista Concilium e da
Outra grande temática é a das linguagens da fé. Neste livro está lão do Convento de Contemplativas de Sião, em Curitiba. equipe de reflexão da Conferencio de Religiosos do Bra­
Hó muitos anos está comprometido com o movimento ecu­ sil. Obras recentes: A Criação de Deus, São Paulo, Paulinas,
sublinhada a relação com o outro, o testemunhai, a metáfora, o símbo­ mênico nas relaçães macroecumênicas, especialmente com 2003; Deus: Pai, Filho e Espírito Santo, São Paulo,
lo. Quanto ao dogmático, vale reafirmar a linguagem da Trindade as religiões afro-brasileiras. Seu livro mais recente é Xirê, a Paulinos, 2003.
que fundamenta o pluralismo. Também vale a linguagem apofática que Ciranda dos Encantodos, São Paulo, Ave Maria, 1996.
Luiza E. Tomila
José Comblin Leigo, natural de São Paulo, Brasil, tem doutorado em Teo-
segundo dizia M. T Porcile — “resgata a perspectiva simbólica”. I Acaba de ser homenageado por chegar aos 80 anos de vida logio Sistemática pela Universidade Metodista de São Pau­
Não há dúvida de que temos à frente maravilhosos e exigentes com mais de 50 dedicados ò teologia, em plenitude de forma lo e mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificio Faculdade
desafios. O volume seguinte reivindicará a libertação graças à plura­ e de criatividade intelectual. Autor de várias dezenas de li­
vros, fez parte do primeiro grupo de teólogos fundodores da de Teologia Nossa Senhora da Assunção, onde foi vice-dire­
lidade de formas de fé. Novos caminhos são transitados, na teologia Teologia da Libertação e participou de todas as grandes reu­ tora entre 1988-1991. É coordenadora da Comissão Teo­
latino-americana, quando a fé cristã avança de mãos dadas com as diver­ niões continentais que marcoram as balizas da história desta lógica da ASETT, região América Latina e professora de teo­
teologia. Comblin está na origem dos "Missionários do Cam­ logia em institutos teológicos de São Paulo.
sas religiões e espiritualidades humanas. Isso não é uma invenção nossa. po" (1981), das "Missionárias do Meio Popular" (1986), José Maria Vigil
Já que Deus esteve presente e continua caminhando com os povos da dos Missionários formados em Juazeiro do Bahia (1989), na Lecionou teologio no Universidad Pontificia de Salamanca,
Paraíba (1994) e em Tocantins (1997). unidade de CRETA e na UCA de Managua. Trabalhou em
terra (com sua gama de responsabilidades históricas, culturais, religio­
Paul Knitter Nicarágua, atualmente no Ponamó. Obras principais:
sas), assim também vão avançando as elaborações teológicas. Um dos maiores expoentes da Teologia das Religiões do atua­ Espiritualidad de la liberación, com Pedro Casaldáliga (19
lidade, é professor emérito (2002) da Universidade Xavier edições em 17 poises e 4 idiomas) e Aunque es de noche:
de Cincinnati, EUA. Católico, foi missionário do Verbo Divino. hipótesis psicoteológicos. Hó 13 anos publica anualmente
Doutorou-se no Departamento de Teologia Protestante do Uni­ a “Agenda Latino-americand' (em 6 idiomas: h ita ://
versidade de Marburg, Alemanha. 0 livro que o tornou conhe­ lotinoamericono.oro). faz parte da Comissão Teológica da
cido foi No Otber Nome? Seu recente livro, Introducing ASETT, região América Latina. Tem um site teológico,
íheologies of Religions (Orbis Books, 2002), apresenta umo "Servicios Koinonía" (http://sefvicioskoinonia.ora) bastan­
nova e original visão de conjunto dos diversos paradigmas da te concorrido. Está para lançar o livro Teología del pluralis­
teologia dos religiões. mo religioso.

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livro foi composto nas famílias tipográficas
Optima, Futura e Times New Román
e impresso em papel Offset 75g

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