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Dossiê Ficção Cientí ca (jul-ago/2017) _comciência

ARTIGO, _DOSSIÊ 190

OS ORÁCULOS DA PÓS-MODERNIDADE:
FICÇÃO CIENTÍFICA, CIÊNCIA E O FUTURO
9 DE JULHO DE 2017

Por Vitor Chiodi

N
a introdução do clássico A mão esquerda da escuridão, Ursula Le Guin (2014) diz que a cção ci-
entí ca é muito mais um comentário sobre o presente que uma forma de tentar prever o futu-
ro. Ainda assim, é muito comum que se avalie cções cientí cas do passado a partir da sua su-
posta capacidade de antecipar acontecimentos. Um sinal no presente que con rme alguma suspeita e,
quase instantaneamente, surge um novo oráculo que já estava ali,  a dizer os próximos passos, e o que e
a quem temer. A cção cientí ca conecta ciência e público em torno de imaginários tecnocientí cos. Em
certo sentido se torna uma forma de pensar a ciência e a tecnologia e especular para onde elas podem
nos levar. Narrar o futuro se torna uma ferramenta para pensar o presente, como tão bem descreveu Le
Guin.

Fora da cção cientí ca, no capitalismo informacional contemporâneo, acertar o futuro ganha uma força
política que até então não havia. Mais do que meramente acertar, o que está em questão é in uenciar os
tomadores de decisão, de modo a garantir que investimentos, pesquisas e outras formas de in uência
fortaleçam uma tecnociência cada dia mais integrada com o mercado. Descrever o futuro deixou de ser
papel exclusivo da cção cientí ca e passou a ser uma forma de narrativa fundamental nos centros do
capitalismo globalizado e informatizado. As startups são um dos grandes ícones desse tempo, onde uma
nova empresa passa a fazer apostas públicas em torno de ideias, em busca de investimentos de empre-
sas maiores e outras fontes de nanciamento. A ideia de uma startup nada mais é que uma narrativa fu-
turista, que visa in uenciar tomadores de decisões.

Algo de muito particular acontece no nosso tempo, que torna muito frágeis as barreiras que separam as
narrativas cientí cas das ccionais. No passado ainda era surpreendente que o termo inventado por um
escritor de cção cientí ca batizasse uma nova disciplina cientí ca. A literatura com Isaac Asimov
(2014) falou de robótica antes que cientistas falassem, tal como William Burroughs (2016) descreveu
uma sociedade de controle muito antes que o zesse o lósofo Gilles Deleuze (1992), in uenciado por
sua obra. O mercado e seus defensores aprenderam o que muitos movimentos populares e progressis-
tas ainda ignoram. A forma narrativa da cção cientí ca se tornou abertamente um instrumento de in-
uência nas tomadas de decisões tecnocientí cas, de modo que livros que se propõem a descrever o fu-
turo se tornam populares sem precisar serem cções.  A cção cientí ca já não tem, como no passado, a
exclusividade de narrar um futuro hipotético de modo a pensar o presente.

Um olhar atento a um dos principais centros econômicos da tecnociência contemporânea, o Vale do Silí-
cio, nos mostrará que nossas elites econômicas compreendem bem os impactos de controlar as narrati-
vas sobre o futuro. Um indício dessa atenção digna de nota pode ser encontrado na medida em que per-
sonagens e lugares da obra da escritora Ann Raynd são bastante populares como nomes de empresa na
baía de São Francicco. Um exemplo carismático das atentas elites do Vale do Silício vem dos transhuma-
nistas da singularidade: Ray Kurzweil é um inventor e cientista da computação, e um autor extremamen-
te popular. Seus trabalhos já foram traduzidos para dezenas de línguas e todos os seus livros recentes
foram best-sellers nos Estados Unidos.

Kurzweil faz parte de um grupo chamado de transhumanistas, pessoas que, de formas diversas, acredi-
tam que a espécie humana será em breve ultrapassada evolutivamente e que isso é desejável. No caso
do autor e dos demais defensores da singularidade, o pós-humano viria colocado na fusão de nitiva do
humano com a máquina, fazendo uso de uma super-inteligência-arti cial, muito mais capaz que a de
qualquer humano ou grupo de humanos. Esse momento que marca a passagem do humano, obsoleto e
atrasado evolutivamente, para um pós-humano, imortal e hibridizado com as máquinas, é chamado de
singularidade.  Essas ideias são inclusive compartilhadas em grandes produtos da cultura pop. Em dado
momento da popular sitcom americana Friends, Ross, o único cientista no elenco principal, conversa com
seu amigo sobre uma das especulações mais populares dos livros de Kurzweil: no futuro poderemos bai-
xar toda a informação de nossos cérebros para um computador!
Quando Kurzweil nos promete a imortalidade e a possibilidade de baixar nosso cérebro para um compu-
tador, a forma de seu livro parece indicar um tipo de cção cientí ca. Na prática, contudo, as previsões
colocadas por Kurzweil contam com a autoridade de um escritor que é um cientista e que não se propõe
escrever cção cientí ca. Nomeia seu trabalho como futurismo e a rma que, diferente das cções cien-
tí cas, faz especulações enquanto inventor, puramente baseadas em fatos cientí cos. Há razões para
estarmos preocupados?

Ainda que consideremos absolutamente implausíveis as previsões de Kurzweil, precisaremos olhar a


questão a partir de uma escala maior. Não importa tanto se suas “especulações cienti camente embasa-
das” são verossímeis ou não, mas que atores-chave do capitalismo informacional acreditam e apostam
nas previsões kurzweilianas.

Uma breve pesquisa acerca dos apoiadores da singularidade nos mostrará alguns dados que fazem a po-
pularidade de Kurzweil muito mais importante. O futurista fundou junto ao empresário Peter Diaman-
dis, em 2008, a Singularity University (SU). Tudo em torno da “universidade” é superlativo. Os textos o -
ciais descrevem a instituição como o “futuro das universidades”, onde a burocracia  dessas instituições
tradicionais seria substituída por um modelo mais moderno, completamente integrado ao mercado.
Uma curiosidade importante é sua localização: a SU ca em Mountain View, no coração do Vale do Silí-
cio, no campus da Nasa, mais particularmente na seção arrendada pela Nasa ao Google para  a constru-
ção de um centro de pesquisa espacial e de robótica.

O principal objetivo da SU é ser uma espécie de grande incubadora de startups e outros projetos que co-
loquem em prática os princípios singularistas da instituição. Aumentando ainda mais a escala, de modo
proporcional às ambições da SU, veremos que a instituição tem um plano ousado de expansão global
através das unidades que chamadas de chapters. Os chapters funcionam como pequenas incubadoras de
startups e projetos e já estão presentes em todos os continentes, fundados por ex-alunos da SU central
do Vale do Silício e nanciados por ela. No momento em que escrevo este texto, já existem chapters em
seis cidades brasileiras. Pegue um uber para visitar o chapter mais perto de você e verá que estamos
mais próximos do Vale do Silício e de seu futuro singularista que podíamos imaginar.

Tendo a Singularity University em perspectiva, ca mais fácil de entender porque a popularidade de


Kurzweil vai muito além de um texto com forma de cção cientí ca. Singularistas das ciências e do mer-
cado impulsionam sua agenda a partir de um conhecimento notável das possibilidades de se vender um
futuro verossímil. Se no mercado o dinheiro segue quem convence que produzirá mais dinheiro,
Kurzweil e seus seguidores criaram com sucesso uma narrativa de futuro que opera por dentro do siste-
ma, usando o futuro como política de modo exemplar.

Voltando a anedota de Ursula Le Guin que abre este texto, poderemos nos perguntar: o que querem
Kurzweil e outros anarco-capitalistas futuristas? Descrever o futuro para repensar o presente? Parece
que nesse caso conseguimos entender o que separa essas narrativas da cção cientí ca. O texto futuris-
ta, que parece cção cientí ca mas se entende como ciência, não pretende meramente descrever um fu-
turo hipotético de modo a nos fazer pensar no presente. Sua ambição, muito mais objetiva e alinhada à
tecnociência neoliberal contemporânea, é vender um futuro que não habita o âmbito da especulação
mas o da “verdade cientí ca”.
Com as credenciais de gênio visionário construída diariamente em seus livros, programas de TV, revistas
e vídeos no Youtube, Ray Kurzweil vende um futuro que interessa ao mercado comprar. Se a cção cien-
tí ca especula o futuro para pensar o presente, a narrativa futurista vende garantias de um futuro favo-
rável para in uenciar a tomada de decisões no presente, tal como a tomada de assalto do universo da
predição pelas soluções big data ou as apostas nas bolsas de valores. Não por acaso, parece haver uma
oposição diametral entre os futuros distópicos da cção cientí ca e a utopia tecnocentrada singularista.

Seja na forma de especulação cientí ca, cção cientí ca ou de futurismo, ca claro que as narrativas so-
bre o futuro passam a ter um papel particularmente importante na tecnociência da pós-modernidade –
para usar o termo do lósofo marxista Frederic Jameson (2015). Está travado em um debate silencioso
uma questão de representatividade que foge aos Estados e às formas convencionais de política.  Mesmo
sem saber, estamos em processo longo e decisivo para decidir quem serão nossos oráculos. Kurzweil é
apenas um dos milhares que se candidatam a essa posição. Tão importante quanto observar quem e de
que forma narra nosso futuro é estar atento a quem e de que forma consegue in uenciar os tomadores
de decisões. Tudo indica que já estamos perdendo o jogo. Se a diferença entre a realidade e a cção cien-
tí ca é uma ilusão de ótica como disse Donna Haraway (2009), chega um momento de urgência política
no qual precisaremos enxergar além da ilusão.

Vitor Chiodi é doutorando no Instituto de Filoso a e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Sua pesquisa de
mestrado “O singularismo como ideologia e a reconstrução da relação centro-periferia no capitalismo infor-
macional” abordou algumas das discussões presentes neste artigo.

1. Asimov, I. Eu, robô. São Paulo: Aleph. 2014.


2. Burroughs, W. Almoço nu. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
3. Deleuze, G. Post Scriptum sobre as sociedades de controle. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1992.
4. Haraway, D. “Manifesto ciborgue”. In: Antropologia do ciborgue, Belo Horizonte, Autêntica, 2009.
5. Jameson, F. “The aesthetics of singularity”. In: New Left Review 92, 2015. Disponível em < https://ne-
wleftreview.org/II/92/fredric-jameson-the-aesthetics-of-singularity > Último acesso: 20/06/2017.
6. Le Guin, U. A mão esquerda da escuridão.  São Paulo: Aleph, 2014

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