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DOSSIÊ AGENDA DE PESQUISA

EM POLÍTICAS PÚBLICAS*

Marta Arretche

Apresentação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais


(Anpocs) desde o início dos anos de 1980. Não há
É inegável o recente crescimento dos estu- dúvidas, portanto, quanto à institucionalização e
dos na área de políticas públicas no Brasil. Multi- expansão dessa subdisciplina no Brasil.
plicaram-se as dissertações e teses sobre temas re- O crescente interesse por essa temática está
lacionados às políticas governamentais; diretamente relacionado às mudanças recentes da
disciplinas de “políticas públicas” foram criadas sociedade brasileira. O intenso processo de ino-
ou inseridas nos programas de graduação; nos vação e experimentação em programas governa-
programas de pós-graduação, criaram-se linhas de mentais – resultado em grande parte da competi-
pesquisa especialmente voltadas para esse campo ção eleitoral, da autonomia dos governos locais,
do conhecimento; agências de fomento à pesqui- bem como dos programas de reforma do Estado
sa criaram linhas especiais de financiamento para –, assim como as oportunidades abertas à partici-
as investigações nessa área. Além disso, a área de pação nas mais diversas políticas setoriais – seja
políticas públicas é uma das seis áreas temáticas pelo acesso de segmentos tradicionalmente ex-
da Associação Brasileira de Ciência Política
cluídos a cargos eletivos, seja por inúmeras novas
(ABCP). E, finalmente, o Grupo de Trabalho (GT)
modalidades de representação de interesses –
de Políticas Públicas tem mantido, embora com
despertaram não apenas uma enorme curiosidade
intervalos, uma presença regular na Associação
sobre os “micro” mecanismos de funcionamento
do Estado brasileiro, como também revelaram o
* Dossiê recebido e aprovado em dezembro de 2002. grande desconhecimento sobre sua operação e

RBCS Vol. 18 nº. 51 fevereiro/2003


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impacto efetivo. Paradoxalmente, essas novas dições de emergência, seus mecanismos de ope-
questões da agenda política brasileira constituem ração e seus prováveis impactos sobre a ordem
também um problema para o desenvolvimento da social e econômica.
agenda de pesquisa em políticas públicas. No entanto, no que diz respeito à definição
Embora positivas e promissoras, a instituciona- por parte da nossa comunidade de pesquisadores
lização e a expansão são, contudo, insuficientes das questões legítimas de investigação, bem como
para que os trabalhos produzidos em uma determi- dos procedimentos e técnicas aceitáveis para a
nada área temática se constituam em efetiva contri- constituição do próprio objeto da investigação, te-
buição ao conhecimento. Em outras palavras, a pro- mos muito a fazer no Brasil. Embora vitais para o
liferação de trabalhos ou a “coleção de fatos” (Kuhn, desenvolvimento de um campo disciplinar e para
1976, p. 37) não são suficientes para o desenvolvi- os “procedimentos de limpeza” envolvidos em
mento de uma ciência ou campo disciplinar. sua atualização (Kuhn, 1976, pp. 43ss), as aborda-
Kuhn (1976, pp. 29ss) afirma que a aquisição gens teóricas e os métodos de investigação têm
de um paradigma – corpo de crenças metodológi- recebido escassa atenção no debate dessa área de
cas e teóricas comuns que orientem a seleção, pesquisa. Celina Souza, em texto que compõe
avaliação e crítica dos fatos relevantes a serem ob- este dossiê, adverte-nos para o fato de que a “área
servados – é condição para o desenvolvimento de ainda apresenta um uso excessivo de narrativas
um campo disciplinar. A definição das entidades pouco informadas por modelos ou tipologias de
(ou fatos) relevantes do universo, bem como das políticas públicas, por teorias próximas do objeto
questões legítimas de um campo de investigação, de análise e por um possível excesso de leveza
implica a exclusão de “fatos” e “crenças” (talvez metodológica”. Na mesma direção aponta Elisa
relevantes), mas permite a concentração na análi- Reis ao afirmar, também em artigo para este dos-
se e, em articulação com a teoria, a acumulação siê, que “o cientista social que se dedica à políti-
do conhecimento. Portanto, a pesquisa eficaz su- ca pública precisa ter clareza tanto em relação à
põe um relativo consenso entre a comunidade de perspectiva teórica em que está inserido seu tra-
pesquisadores quanto às fronteiras de um campo balho, como em relação às discussões que con-
de conhecimento, particularmente das entidades frontam essa perspectiva com outras, alternativas
relevantes do universo de análise, das questões le- a ela”. Isso porque, diferentemente da expectati-
gítimas a serem investigadas e das técnicas ade- va kuhniana da “vitória” de um paradigma parti-
quadas de investigação. Nesse sentido, fato e teo- cular, “há hoje uma Babel de abordagens, teoriza-
ria estão constitutivamente interligados. ções incipientes e vertentes analíticas que buscam
Na área de políticas públicas, temos muito a dar inteligibilidade à diversificação dos processos
fazer nessa direção. Em trabalho recente, realiza- de formação e gestão das políticas públicas”, con-
do no âmbito da Anpocs, Melo (1999) constatou forme demonstra o texto de Carlos Aurélio Faria,
que essa disciplina no Brasil se caracteriza por que também faz parte deste dossiê.
uma baixa capacidade de acumulação de conhe- É possivelmente devido ao caráter ainda in-
cimento, derivada da proliferação horizontal de cipiente de um programa de pesquisa comparti-
estudos de caso e da ausência de uma agenda de lhado pela comunidade de pesquisadores que os
pesquisa. O caráter recente e interdisciplinar des- temas de pesquisa na área têm estado fortemente
se campo explica em parte esses problemas. Mas, subordinados à agenda política do país. Isto é, o
evidentemente, não se trata apenas disto.1 conteúdo da produção acadêmica (teses, artigos e
Há poucas dúvidas quanto ao objeto de pesquisas) tem sido, em boa medida, a avaliação
análise da subdisciplina de políticas públicas. A dos resultados alcançados pelas políticas em voga
análise do “Estado em ação”, para repetir o títu- ou a atualização da informação existente sobre
lo do influente livro de Jobert e Müller (1987), programas já consolidados. Na verdade, a subor-
tem como objeto específico o estudo de progra- dinação da agenda de pesquisa à agenda política
mas governamentais, particularmente suas con- é potencialmente maior na área de políticas públi-
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cas do que em outras áreas do conhecimento, de- O artigo de Carlos Aurélio Pimenta de Faria
vido à “proximidade da disciplina com os órgãos analisa o estágio atual da subárea de políticas pú-
governamentais” (Melo, 1999), o que implica, blicas no Brasil a partir de sua trajetória na disci-
como afirmou Lowi (1994), o risco de “nos tornar- plina de ciência política. O autor sustenta que
mos aquilo que estudamos”. A constituição de convivem nessa subdisciplina diversas aborda-
uma agenda que articule a já extensa comunida- gens teóricas em estágios de desenvolvimento
de de pesquisadores da área é, portanto, um muito distintos. Considera ainda que, no Brasil, os
grande e necessário desafio a ser enfrentado. estudos sobre processo decisório dominam a pro-
Foram preocupações dessa ordem que moti- dução acadêmica em detrimento de estudos sobre
varam a organização da mesa-redonda Perspecti- implementação, assim como, no plano teórico, di-
vas da Agenda de Pesquisa em Políticas Públicas ferentemente da experiência internacional, as
realizada no III Encontro da Associação Brasileira abordagens associadas ao papel das idéias e do
de Ciência Política, em julho de 2002, em Niterói, conhecimento na produção de políticas públicas
cujas apresentações estão reunidas nos artigos têm sido praticamente ignoradas. Com base nesse
deste dossiê. diagnóstico, o autor defende a importância analí-
O artigo de Elisa Reis defende a necessidade tica dessa abordagem e apresenta suas diversas
de a comunidade de pesquisadores dessa área correntes interpretativas.
orientar-se no sentido de explicitar os pressupostos
teóricos que sustentam suas análises, “como condi-
ção básica para que o diálogo intelectual seja frutí- NOTA
fero”. E, vai além, sugerindo que na medida em que
1 O caráter problemático da disciplina de políticas pú-
as relações entre autoridade, mercado e solidarieda- blicas não é uma exclusividade brasileira, como o
de passam atualmente por mudanças profundas – revelam Muller (1990) e Lowi (1994), para os casos
não apenas no Brasil, como no mundo todo – isso da França e dos Estados Unidos, respectivamente.
poderia ser uma espécie de moldura para a defini-
ção de um conjunto de temas de análise em políti-
cas públicas. Com base nesses pressupostos, Elisa BIBLIOGRAFIA
Reis sugere um conjunto de temas de investigação
para a comunidade de pesquisadores da área. JOBERT, Bruno & MULLER, Pierre. (1987), L’état
O artigo de Celina Souza faz um balanço do en action. Paris, PUF.
estágio atual da disciplina no Brasil. Sustenta que, KUHN, Thomas. (1976), A estrutura das revolu-
embora o campo da política pública carregue ções científicas. São Paulo, Perspectiva.
uma história muito difusa de métodos, temas e
MELO, Marcus André. (1999), “Estado, governo e
teorias – o que implica uma reduzida acumulação
políticas públicas”, in Sergio Miceli
do conhecimento –, a institucionalização da área
(org.), O que ler na ciência social brasi-
oferece hoje muito mais meios e instrumentos
leira (1970-1995), São Paulo, Sumaré.
para superar essas limitações do que no passado
recente. A autora argumenta ainda que a discipli- MULLER, Pierre. (1990), Les politiques publiques.
na no Brasil já superou em grande parte um está- Paris, PUF.
gio de desenvolvimento no qual predominaram LOWI, Theodore. (1994), “O Estado e a ciência
as avaliações referentes ao sucesso ou fracasso política ou como nos convertemos na-
das políticas, em direção à análise dos condicio- quilo que estudamos”. Bib, 38: 3-14.
nantes que explicam tais resultados. Apesar disso,
ela indica diversas lacunas de nossa agenda de
pesquisa, sugerindo temas e perspectivas analíti-
cas no sentido de sua superação.
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 185

DOSSIÊ AGENDA DE RESEARCH AGENDA ON DOSSIER AGENDA DE


PESQUISAS EM POLÍTICAS PUBLIC POLICIES DOSSIER RECHERCHES EN
PÚBLICAS POLITIQUES PUBLIQUES

Marta Arretche Marta Arretche Marta Arretche

Palavras-chave Key words Mots-clés


Programa de pesquisa; Políticas Research program; Public policies. Programme de recherche; Politiques
públicas. publiques.

O artigo apresenta um dossiê sobre The paper presents a dossier about L’article présente un dossier à pro-
a agenda de pesquisa em políticas the research agenda on public poli- pos de l’agenda de recherches en
públicas, afirmando a necessidade cies, reaffirming the need of its de- politiques publiques, en affirmant
de desenvolvimento dessa disciplina velopment in Brazil. It argues that le besoin de développement de cet-
no Brasil, cujos principais obstácu- the main obstacles to such a deve- te discipline au Brésil. Les princi-
los se encontram nas dimensões lopment rely on the theoretical and paux obstacles à ce développement
teórica e metodológica, bem como methodological dimensions, as well se trouvent dans les dimensions
na subordinação da agenda de pes- as on the prominence of the coun- théorique et méthodologique, ainsi
quisa à agenda política do país. try’s political agenda over the re- que dans la subordination de
search one. l’agenda de recherche à l’agenda
politique du pays.

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