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HISTÓRIA DA QUÍMICA

Maria da Conceição Marinho Oki

No século XIX, a comunidade dos químicos enfrentou muitas divergências no campo teórico a respeito de
questões fundamentais para o avanço da Química como debates sobre o atomismo. Na busca de consenso
sobre tais questões, bem como de regras para o seu adequado funcionamento, os cientistas reuniram-se em
muitos congressos científicos, sendo o mais importante deles o Congresso de Karlsruhe; o primeiro Congresso
Internacional que aconteceu em 1860, discutindo definições de átomos, moléculas e equivalentes e buscando
trazer coerência para as disputas nesse campo.


História da Química, atomismo, Congresso de Karlsruhe

Recebido em 10/7/06; aceito em 14/5/07

24

U
ma das mais importantes ati- cidade de mesmo nome, Alemanha. zadas pelos químicos.
vidades dos cientistas consis- A idéia do encontro partiu do impor- Na circular que foi enviada aos
te em se reunir em congressos tante químico alemão August Kekulé participantes, foram delineados os
para discutir e divulgar seus traba- Von Stradonitz (1829-1896), que principais objetivos do encontro:
lhos, além de de- planejou trazer para o
O Congresso de Karlsruhe, O grande desenvolvimento
bater problemas teó- debate importantes
primeiro grande encontro que teve a Química nesses
ricos ou metodoló- aspectos da Química
da comunidade química na últimos anos e as divergências
gicos relativos a seu daquele período. Pa-
História da Ciência, tinha manifestadas nas opiniões
campo de pesquisa. ra ajudá-lo na orga-
por objetivo encontrar uma teóricas tornaram oportuno e
Os químicos não fo- nização do evento,
posição consensual em útil a realização de um congres-
gem a essa regra e ele contou com a
relação à linguagem e às so, tendo como objetivo a dis-
estão entre os pio- colaboração do quí-
representações utilizadas cussão de algumas questões
neiros na realização mico francês Charles
pelos químicos importantes do ponto de vista
de um evento de en- Adolphe Wurtz
dos progressos futuros da
vergadura interna- (1817-1884) e do ale-
Ciência.[...] Tal assembléia não
cional: o Congresso de Karlsruhe, mão Karl Weltzien (1813-1870), pro-
poderia tomar resoluções ou
considerado o primeiro grande en- fessor da Escola Politécnica de
deliberações obrigatórias para
contro da comunidade química na Karlsruhe.
todos, mas, através de uma
História da Ciência. Esse evento deu Para esse encontro, foram convi-
discussão livre e aprofundada,
visibilidade à Química, que buscava dados 140 importantes químicos dos
ela poderia acabar com certos
a definição de regras para o seu diferentes continentes, tendo o evento
mal-entendidos e facilitar um
adequado funcionamento. envolvido representantes de doze
entendimento comum, a res-
países. O principal objetivo dos con-
A organização do encontro peito de alguns dos seguintes
gressistas era encontrar uma posição
pontos:
O Congresso de Karlsruhe teve consensual, de uma comunidade
• Definição de noções quími-
uma duração de três dias e aconteceu científica em expansão, em relação à
cas importantes, como as que
no mês de setembro de 1860, na linguagem e às representações utili-
são exprimidas pelas palavras:
átomo, molécula, equivalente,
Esta seção contempla a história da Química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimento atômico, básico.
científico é construído. • Exame da questão dos

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equivalentes e das fórmulas dos fatos ou à ausência de evidências vicção de que a Química se
químicas. para a existência de átomos, mas perdeu aí, como sempre quan-
• Estabelecimento de uma envolvia múltiplos aspectos: ontoló- do abandonando a experiên-
notação e de uma nomencla- gicos, metodológicos e epistemoló- cia, quis caminhar sem guia
tura uniforme. (Nye, 1984, gicos que estavam subjacentes aos através das trevas. Com a
p. 633-634) debates: experiência à mão encontrareis
os equivalentes de Wenzel, os
O que muitas vezes tem sido
Percebe-se no conteúdo dessa equivalentes de Mitscherlich,
omitido nas análises sobre os
circular que os problemas teóricos da mas procurareis em vão os
ásperos debates (sobre o ato-
Química no século XIX eram significa- átomos tal como a vossa imagi-
mismo) é que a crise na comu-
tivos: dúvidas sobre a diferença en- nação os sonhou [...]. Se eu
nidade científica do século
tre os conceitos de átomo e molécula, fosse o mestre, apagaria a pa-
passado não dizia respeito
divergências sobre a nomenclatura lavra átomo da Ciência, per-
apenas à evidência e a interpre-
química mais adequada para ser usa- suadido que ele vai mais longe
tação, mas também, a metodo-
da por essa comunidade, entre que a experiência; e na Quími-
logia científica e a epistemolo-
outros. Entretanto, uma questão fun- ca nunca devemos ir mais
gia. Em questão não estava
damental estava subentendida nas longe que a experiência. (Du-
apenas a teoria atômica, mas
preocupações explicitadas: a utiliza- mas apud Bensaude-Vincent;
o objetivo e a estrutura da teoria
ção dos conceitos de peso atômico Stengers, 1992, p. 176)
física. (Nye, 1976, p. 246)
ou equivalente químico. Essa última
questão foi conseqüência da dificul- Durante o século XIX, a idéia de Entre 1808 e 1860, os químicos
dade enfrentada pela teoria atômica átomo foi considerada por grande utilizavam indiferentemente os termos
daltoniana para se fazer aceita na- parte da comunidade científica como átomos, equivalentes e proporções; a
quele século. uma hipótese fundamental para a basicidade e o conceito de radical
interpretação de resultados da quími- eram alguns dos assuntos discutidos,
As dificuldades para a consolidação ca quantitativa. As dúvidas e especu- além de questões metafísicas relati-
do atomismo no século XIX 25
lações sobre a realidade dos átomos vas à divisibilidade da matéria. Os de-
Embora livros e artigos tenham eram, em parte, de natureza filosófica bates envolvendo atomistas e equi-
sido escritos por historiadores abor- e não envolviam aspectos científicos valentistas estiveram presentes em
dando e discutindo vários aspectos da questão, justificando a alternância muitos países da Europa. Esse pe-
relacionados com as controvérsias entre o ceticismo e a confiança na ríodo é chamado por alguns historia-
acontecidas no século XIX entre ato- hipótese atômica. dores da Química, a exemplo de Papp
mistas e anti-atomistas, esse é um te- Muitas dúvidas eram comparti- e Prelat (1950), de “intervalo equiva-
ma desconhecido de grande parte lhadas por químicos conceituados e lentista”, caracterizado pelo uso do
dos estudantes e professores das influentes como o francês Jean peso equivalente como suporte na
Ciências Naturais. Uma evidência Baptiste André Du- interpretação quanti-
para essa afirmação pode ser encon- mas (1800-1884), Embora muito tenha sido tativa das reações
trada na ausência dessa questão na que teve um compor- escrito por historiadores químicas e na menor
maior parte dos livros didáticos de tamento controverti- discutindo vários aspectos valorização dos pe-
Química Geral, nos quais o atomismo do em relação à teo- relacionados com as sos atômicos. Se-
daltoniano é apresentado. ria atômica. Inicial- controvérsias acontecidas gundo Bensaude-
A abordagem da História da Ciên- mente ele aceitou as no século XIX entre Vincent e Stengers
cia na educação científica tradicional idéias de Dalton, atomistas e anti-atomistas, (1992), “o retrocesso
tem ocorrido geralmente de modo mas posteriormente esse é um tema sobre os equivalen-
dogmático, existindo pouco espaço passou a desconfiar desconhecido de grande tes foi acompanhado
para que controvérsias científicas da sua validade em parte dos estudantes e de uma desconfian-
sejam apresentadas ou discutidas. As função das dificul- professores ça em relação aos
controvérsias sobre o atomismo no dades para utilizá-las métodos físicos e de
século XIX desempenharam um im- na interpretação de seus resultados um abandono categórico das preten-
portante papel na consolidação do empíricos. No trecho a seguir, ele ma- sões realistas na Química” (p. 164).
conceito de átomo na Física e Quí- nifestou o seu ponto de vista sobre As divergências entre atomistas e
mica do século XX. A teoria atômica essa teoria: equivalentistas se agravaram com o
de John Dalton (1766-1844) teve mo- crescimento das investigações em
mentos de grande reconhecimento, O que nos resta da excursão Química Orgânica. As teorias usadas
entretanto, outras vezes foi muito ambiciosa que nos permitimos para explicar a formação de compos-
questionada. A oposição à teoria atô- na região dos átomos? Nada tos orgânicos admitiam uma arquite-
mica naquele período não estava ou pelo menos nada de neces- tura molecular fixa e a possibilidade
relacionada apenas à interpretação sário. O que nos resta é a con- de troca de um átomo por outro ou

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por um grupo de átomos (radical). necessidade de buscar uma conver- bates com outros químicos defenso-
Apesar das dúvidas sobre a realidade gência entre o atomismo químico e o res dessa teoria, a exemplo de Wurtz.
atômica, alguns químicos orgânicos físico. A interferência de fatores políticos e
tentavam fazer representações dos Embora a Química e a Física se- sociais nos rumos da Ciência é evi-
compostos, conferindo-lhes uma di- jam hoje campos de conhecimento dente nesse episódio. Berthelot se
mensão espacial e muito próximos, no destacou também como político, ten-
sugerindo sua reali- No encontro de Karlsruhe, século XIX, os inte- do ocupado importantes cargos
dade. predominaram rivalidades resses dessas duas públicos como senador da República,
Naquele período, entre os congressistas de ciências eram, de presidente da Academia de Ciências
parte da comunida- diferentes nacionalidades, certa forma, distintos e ministro da Instrução Pública. A pre-
de dos químicos, em dificultando o entendimento e mais específicos. sença no governo possibilitou sua
especial os orgâ- na busca de soluções para Essas diferenças po- ação no sentido de afastar atomistas
nicos, já utilizava a os problemas dem ser identifica- que ocupavam postos de destaque
notação baseada na das, por exemplo, no meio governamental e a adoção
hipótese de Avogadro, que admitia a pelo modo como a teoria atômica da notação equivalentista na França,
possibilidade de existirem moléculas clássica era usada naquele período mesmo quando os físicos já se ocu-
formadas por átomos iguais. Essa pelos físicos e químicos. A concep- pavam com a caracterização do elé-
possibilidade estava em desacordo ção de átomo que vigorava nas duas tron (Pigeard, 1997).
com a teoria dualista desenvolvida comunidades científicas não era úni- Em 1869, nas publicações da re-
por Jöns Jacob Berzelius (1779- ca. vista Le Bulletin, da Sociedade Quími-
1848), que só considerava a existên- Na Química, a idéia de átomo es- ca de Paris, registravam-se 25 estran-
cia de combinações químicas entre tava relacionada com a existência de geiros e 23 franceses que utilizavam
átomos ou grupos de átomos de car- elementos químicos, formados de a notação equivalentista contra 191
gas opostas. Nesse caso, os consti- partículas indivisíveis. Edificada sobre estrangeiros e 22 franceses partidá-
tuintes atômicos eram mantidos jun- bases empíricas (métodos químicos, rios da notação atomista, dos quais,
26 tos por forças de natureza elétrica, analogias químicas, lei dos calores a metade deles era constituída de
portanto, átomos idênticos não po- específicos, isomorfismo), a teoria alunos de Wurtz (Pigeard, 1997).
deriam se combinar para formar atômica tinha aceitação entre os quí- No encontro de Karlsruhe, predo-
moléculas. micos devido à sua utilidade opera- minaram rivalidades entre os con-
As divergências teóricas também cional na determinação de fórmulas gressistas de diferentes nacionali-
foram acompanhadas do uso de moleculares, possibilitando a repre- dades, dificultando o entendimento
diferentes valores de pesos atômicos1 sentação e quantificação das transfor- na busca de soluções para os pro-
e equivalentes químicos. As discre- mações químicas. O átomo era con- blemas. Os químicos franceses ado-
pâncias nos valores propostos eram cebido como a unidade mínima de taram uma atitude conservadora em
acompanhadas de divergências nas combinação da matéria. Entretanto, defesa do equivalentismo, enquanto
notações utilizadas para as fórmulas na Física, a idéia de átomo decorreu que os alemães mostraram-se mais
químicas e nas definições discordan- inicialmente da teoria dinâmica do abertos e progressistas. Bensaude-
tes de vários termos da linguagem calor, retomada e muito debatida na Vincent (1997) considera que o Con-
química. Um mesmo composto, primeira metade do século XIX. Os gresso de Karlsruhe marcou a “bifur-
como o ácido acético, podia ser átomos eram imaginados como par- cação” da Química alemã e da fran-
escrito utilizando-se dezenove fórmu- tículas inelásticas ou pontos inerciais, cesa, que optaram por percursos teó-
las químicas diferentes, o que não era submetidos a forças atrativas e ricos diferenciados. A opção dos
surpreendente no contexto da época repulsivas. O atomismo era conside- alemães pelo atomismo facilitou o de-
(Rocke, 1978). rado uma hipótese que despertava senvolvimento da Química Estrutural
No século XIX, a oposição da co- grande oposição em virtude de se e estudos de Estereoquímica, funda-
munidade química à hipótese atômica apoiar em suposições mecânicas so- mentais para uma expansão industrial
esteve também relacionada com a bre a natureza íntima das substâncias apoiada na exploração da arquitetura
dificuldade de diferenciar adequa- (Nye, 1996). molecular dos compostos orgânicos.
damente conceitos como o de átomo A participação do químico italiano
e molécula, inclusive pelo próprio
A influência de fatores sociais e Stanislao Cannizzarro (1826-1910) no
Dalton. Duas questões fundamentais políticos nos rumos da Ciência encontro de Karlsruhe foi decisiva
foram programadas para serem deba- Na França, químicos influentes para a superação de antigas dúvidas.
tidas no Congresso de Karlsruhe: a como Marcelin Pierre Eugène Ber- Ao final do Congresso, distribuiu-se
diferença entre os conceitos de átomo thelot (1827-1907), um dos primeiros entre os participantes um artigo de
e molécula, uma vez que o entendi- grandes especialistas em síntese sua autoria: Sunto di um Corso di Filo-
mento dessa questão poderia escla- orgânica, com investigações que sofia Chimica. Esse artigo trazia escla-
recer a possibilidade de as moléculas alcançaram a Termoquímica, comba- recimentos sobre a diferença entre os
se dividirem em reações químicas e a teu o atomismo, participando de de- conceitos de átomo e molécula,

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retomando idéias de Avogadro ne- transformação no conceito de equi- teriormente (Bensaude-Vincent, 1997).
cessárias para que essa distinção valente químico. A descoberta de que O posicionamento de Kekulé so-
acontecesse. Duas outras questões os átomos tinham definidas e limita- bre essa questão reflete o ponto de
contempladas foram a defesa da im- das capacidades de combinação su- vista de grande parte dos químicos
portância do peso atômico como geria que o poder de combinação es- naquele período:
propriedade fundamental para os tava de algum modo localizado em
Eu não hesito em dizer que,
cálculos estequiométricos e o uso do partes do átomo. Essa hipótese origi-
de um ponto de vista filosófico,
sistema de pesos atômicos de Char- nou especulações sobre a possibili-
eu não acredito na existência
les Frederic Gerhardt (1816-1856). dade de uma estrutura interna conten-
real de átomos, tomando a
Após o congresso, aconteceram do regiões onde se localizavam o
palavra no seu significado literal
várias tentativas para se chegar a um poder e a força do átomo. A hipótese
de partículas indivisíveis de
consenso sobre valores dos pesos de átomos contendo agregações de
matéria. Eu prefiro esperar que
atômicos e a sua subátomos possibili-
nós possamos algum dia en-
notação, embora Os químicos franceses tou uma maior com-
contrar, para o que nós agora
discussões ainda adotaram uma atitude preensão dos con-
chamamos átomos, uma expli-
continuassem ocor- conservadora em defesa ceitos de valência e
cação mecânico-matemática
rendo. Mesmo dian- do equivalentismo, equivalente. A valên-
para o peso atômico, a atomi-
te de evidências em enquanto que os alemães cia seria o número de
cidade e numerosas outras
favor da hipótese mostraram-se mais abertos subátomos em um
propriedades dos chamados
atômica, anti-atomis- e progressistas átomo, sua atomici-
átomos. Como químico, po-
tas como Berthelot dade; e o equivalente
rém, eu recomendo a suposi-
continuaram fazen- seria o peso de um
ção de átomos, não apenas
do uso de fórmulas obtidas com base subátomo (Rocke, 1984). A definição
como recomendável, mas co-
nos pesos equivalentes. Essa grande de equivalente passou a ser “o peso
mo absolutamente necessária
resistência foi responsável pela nota- atômico dividido pela valência”, forma
à Química. Eu irei até mais
ção atomista ter encontrado dificul- que os livros didáticos utilizaram para
longe, e declaro minha crença 27
dades em ser aceita na França e apresentar essa definição até as
de que átomos químicos exis-
incorporada ao Ensino de Química últimas décadas.
tem, de modo que o termo seja
naquele país. Outra importante conseqüência
compreendido para denotar
De acordo com Pigeard (1997), os do Congresso de Karlsruhe (1860) foi
aquelas partículas da matéria
átomos foram incorporados aos ma- a lei periódica dos elementos quími-
que não possam ser subme-
nuais escolares franceses a partir de cos. O próprio Dimitr Ivanovich Men-
tidas a divisões posteriores em
1894. Entretanto, até 1930, eles ainda deleev (1834-1907) reconheceu que
metamorfoses químicas. Deve-
usavam a designação hipótese atô- as definições de átomo e molécula,
rá o progresso da Ciência levar
mica e não teoria atômica. Muitos “votadas” no primeiro dia do Con-
a uma teoria da constituição de
livros apresentavam o átomo como gresso, foram as principais mensa-
átomos químicos, importante
um termo “cômodo”, que possibilita- gens do encontro que possibilitou a
tal como um conhecimento
va uma linguagem útil para exprimir sua inovadora proposta de tabela
poderia ser para a filosofia ge-
diversos resultados experimentais, periódica (Bensaude-Vincent, 1997).
ral da matéria, isto seria apenas
mas a existência dos átomos não era Em Karlsruhe, não se observou
uma pequena alteração na
consensualmente reconhecida (Cha- um enfrentamento entre equivalen-
própria Química. O átomo quí-
gas, 2003). tistas - que tinham uma postura mais
mico permanecerá sempre a
O atomismo continuou sendo uma idealista ou mais positivista - e os ato-
unidade química. (Kekulé apud
importante questão que mobilizou mistas - que admitiam a realidade
Mierzecki, 1991, p. 129)
outros importantes encontros, envol- atômica. Os congressistas não ti-
vendo as comunidades de químicos nham a intenção de se pronunciar
e físicos, como o da Chemical Soci- sobre a existência de átomos ou mo- Considerações finais
ety de Londres em 1869, o da Acade- léculas de imediato. Aceitava-se A recepção da teoria atômica dal-
mie des Sciences de Paris em 1889, consensualmente que os átomos e as toniana entre os cientistas do século
o de Genève em 1892 e a Conferência moléculas eram necessários à Quí- XIX foi bastante heterogênea. A maior
de Luebeck em 1895 (Bensaude- mica, mesmo os considerando como parte deles aceitava o seu valor heu-
Vincent, 1997; Nye, 1976). hipotéticos. Nessa ocasião, o objetivo rístico e utilitário, entretanto, duvidava
dos químicos era defender o seu pon- da existência real dos átomos. No
Algumas conseqüências do to de vista, que era diferente dos decorrer daquele século, a Química
Congresso de Karlsruhe físicos. A reação contra o realismo foi adquirindo uma identidade que a
Uma importante conseqüência do ingênuo de modelos mecânicos de distinguia de outros campos experi-
encontro de Karlsruhe foi a ascensão átomo, uma atitude nitidamente ‘anti- mentais, em parte devido à influência
da teoria da valência, que levou a uma realista’, passou a ser percebida pos- da teoria atômica de Dalton sobre as

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investigações e da maior atenção como de outra natureza, inclusive mento e Varredura. As imagens obti-
dada à Química Orgânica e seus metafísicos, no processo de constru- das por meio dessas técnicas eviden-
compostos. Conceitos químicos ção do conhecimento científico. A ciam a presença de átomos indivi-
específicos, que se diferenciavam de contundente aceitação da hipótese dualmente, legitimando a frase que é
conceitos usados em outras ciências no decorrer do século XX revela uma hoje comumente formulada, no meio
da natureza, foram formulados. posição de consenso entre os cientis- científico ou jornalístico especializado,
Os praticantes da Química e mem- tas em relação à sua continuidade na de que “é possível ‘ver’ os átomos”
bros dessa comunidade científica fo- Ciência. (Castilho, 2003).
ram submetidos a uma iniciação As evidências sobre a possível rea- As profundas modificações intro-
profissional e a uma educação co- lidade atômica foram lentamente se duzidas na Física influenciaram deci-
mum, absorvendo a mesma literatura acumulando. No início do século XX, sivamente os rumos do atomismo no
técnica e retirando dela muito conhe- mesmo sobre forte influência das século XX. Os novos conhecimentos
cimento. Entretanto, esse episódio escolas positivistas, os cientistas se gerados pelo desenvolvimento da
histórico ilustra a heterogeneidade curvaram ao atomismo. O avanço nas teoria cinética dos gases e pela nova
dos componentes dessa comuni- pesquisas com a utilização de novas Física Quântica foram fundamentais
dade, capazes de abordar um mes- técnicas e novos instrumentos de nesse processo e na consolidação
mo objeto científico a partir de pontos análise possibilitaram a identificação de dessa teoria. Nessa fase, novas teo-
de vista incompatíveis. Embora propriedades que apontavam para rias formuladas com sólida funda-
muitos ‘instrumentos’ fundamentais uma subestrutura eletrificada do mentação matemática e empírica
para essa comunidade, a exemplo átomo, direcionando físicos e químicos possibilitaram a ampla aceitação do
das leis de combinações químicas, para uma nova teoria atômica. A velha atomismo.
tenham sido assimilados em função hipótese atômica foi revigorada por
da teoria atômica de Dalton, foi pos- meio do resgate da sua credibilidade Nota
1
sível aos químicos fundamentar seus e representação mediante um único No século XIX, o peso atômico
trabalhos nesses instrumentos e dis- modelo aceito por físicos e químicos. era a expressão usada para o que
28 cordar, algumas vezes de forma con- A maior aproximação entre a Ciên- hoje se denomina massa atômica
tundente, da existência de átomos cia e técnica e a sofisticação de instru- relativa.
(Kuhn, 1996). mentos tecnológicos possibilitou o
Nos debates acontecidos no sé- desenvolvimento de três importantes Maria da Conceição Marinho Oki (marinhoc@
culo XIX, é possível perceber-se a técnicas de microscopia capazes de ufba.br), engenheira química pela Universidade Fe-
deral da Bahia (UFBA), mestre em Química
preocupação com a natureza e os fornecer resolução em escala atômi-
Inorgânica pelo IQ/UFBA e doutora em Educação
objetivos de uma investigação cientí- ca: a Microscopia Iônica de Campo, pela FACED/UFBA, é docente do Departamento de
fica, incluindo a necessidade de arti- a Microscopia Eletrônica de Alta Química Geral e Inorgânica da UFBA - campus de
culação de critérios empíricos, bem Resolução e a Microscopia de Tunela- Ondina.

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Abstract: The Karlsruhe Congress and the effort to reach consensus on the atomic issue in the XIX century. In the nineteenth-century the scientific community of chemistry faced many controversies
on fundamental theoretical questions related to the chemistry science and its development. One important debate was regarding to atomism. The Karlsruhe Congress in 1860 was the first
international scientific meeting that tried to reach a consensual base on this matter. Discussions at the meeting focused on the definitions of atoms, molecules and equivalents, in an attempt to bring
coherence and consistency into chemical disputes.
Keywords: History of Chemistry, atomism, The Karlsruhe Congress

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