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- Bases de pesquisa:
Mayumi, Lya - Taipa, canela preta e concreto: um estudo sobre a restauração de
casas bandeiristas em São Paulo
Ferreira, Joyce - O(s) uso(s) de documentos de arquivo na sala de aula: proposta de
sequência didática
Costa, Emília Viotti da. A Abolição. Editora Unesp. 2005
Quem vai à região para conhecer o espaço, se depara com a casinha de taipa de
pilão localizada no alto de uma pequena colina cercada por um parque e, ao seu
lado, uma estrutura antagônica a ela, de concreto armado que quase a esconde.
Nesse espaço funciona atualmente a Biblioteca Pública Municipal Paulo Duarte e o
Centro de Culturas Negras Mãe Sylvia de Oxalá. Ambos os equipamentos têm como
propósito o resgate e manutenção da história da população negra e essa causa
advém justamente dos relatos de que o Sítio da Ressaca poderia ter sido um
quilombo; ou que foi apenas uma passagem em direção ao Quilombo do Jabaquara
localizado na região da cidade de Santos; ou que era a senzala de uma casa ainda
maior, uma vez que os grilhões e pelourinhos ainda se encontram no espaço; ou
ainda que há uma relação direta com o movimento abolicionista Caifazes, no qual
fez parte o Advogado Luiz Gama. (Há quem diga que o próprio Luiz Gama morou na
casa).
Durante dois anos atuando como Educadora Patrimonial na edificação, me
encontrei cercada de histórias, memórias e afetos. A pesquisa que desenvolvi a
partir dessa experiência me permitiu desmistificar muitas delas, mas também me fez
perceber quão valiosa é a manutenção da tradição viva e a importância do território
como patrimônio para fortalecer o imaginário coletivo.
Essas histórias também preenchem as lacunas deixadas por um discurso oficial que
apaga sistematicamente as experiências humanas com e no espaço. Estima-se que
a casa tenha sida construída em 1719, data que está gravada no batente da porta
da frente da casa. Tombada em 1972, foi classificada como “arquitetura bandeirista”
e incluída em uma narrativa oficial de valorização e exaltação do Bandeirante, figura
controversa que por muitos anos - arrisco afirmar que até hoje - foi considerada o
símbolo da coragem, inovação e audácia que caracterizaria o estado de São Paulo,
que ao longo do século XX, se consolidou como o centro econômico do país.
Mas a memória tem suas próprias dinâmicas. Como disse Lélia Gonzalez, “seu jogo
de cintura”. Ela emerge nas brechas, na vida cotidiana, nas “mancadas” da
consciência que não é capaz - por mais que tente - de dar conta do todo. No caso
da Casa do Sítio da Ressaca, das rachaduras de uma narrativa oficial opaca,
transbordam histórias e lendas que nos deixam entrever uma “história não escrita”,
um conhecimento que escapa e se mantém na memória coletiva, atribuindo outros
significados para o espaço e sua história.
Não se trata, entretanto, de substituir uma verdade por outra. A História, como
muitas ciências modernas, expressa uma “vontade de verdade”, tomando
emprestadas as palavras de Foucault. Ela busca reconstruir o passado, ordenar
cronologicamente as experiências humanas a partir de vestígios deixados por
homens e mulheres ao longo do tempo. Tendo em vista a amplitude e a
complexidade da vida humana, seria muita presunção assumir que seríamos
capazes de reconstruir fielmente a vida dessas pessoas.
Na tradição africana e afro-brasileira, a memória e a história são perpassadas pela
oralidade, preservadas pelas relações cotidianas onde ocorre a transmissão de
bens simbólicos e culturais. A oralidade frequentemente é vista como um suporte
metodológico, uma alternativa para a reconstrução de histórias e personagens que,
por motivos diversos, não deixaram documentos escritos. Para os intelectuais
negros, entretanto, ela representa uma opção epistemológica, uma forma particular
de representação e concepção de mundo que nos permite recuperar e valorizar
diferentes modos de ser e viver no mundo.
Ou seja, a oralidade não é um "tapa buraco", não significa a ausência de uma
habilidade (no caso, a escrita), mas um valor, uma forma de perpetuação do
conhecimento ancestral. Na história africana, a tradição oral se relaciona com todos
os aspectos da vida material, espiritual e simbólica, dando significado para as
experiências vividas. É uma tradição cultural que persiste no Brasil como um espaço
de resistência, onde memórias subjugadas e violentamente apagadas podem
florescer, se propagar e resistir.
A vivência cotidiana no Sítio da Ressaca, a relação afetiva que inevitavelmente
desenvolvi com aquele espaço foi marcada por essa tradição oral. As histórias
contadas pelos visitantes e frequentadores da região me abriam um universo de
múltiplos pontos de vista, enriquecendo o conhecimento sobre a casa, o bairro, o
território e a história daqueles que ali viveram. A realidade tem muitas faces, e foi
através das histórias contadas que pude perceber e recriar essa multiplicidade de
pontos de vista. Não seria possível realizar o trabalho educativo sem considerar as
histórias que me cercavam, elas apareciam nas visitas, nas atividades abertas ao
público e nas pesquisas documentais. Insistentes, mágicas, tristes, orgulhosas, elas
persistiam apesar de todos os esforços para silenciá-las, revelando narrativas
distintas daquelas que eu encontrava na bibliografia e documentação consideradas
“legítimas”.
A história da colonização e da nação brasileira é, para os povos dominados, uma
história de violência, exploração e dominação. Nós conhecemos as atrocidades
cometidas no período escravocrata e a permanência das desigualdades raciais
mesmo após a abolição. Recentemente, estudos mais minuciosos sobre o
abolicionismo e a segunda metade do século XIX nos apresentaram a um passado
bem mais rico do que aquele que nos foi ensinado na escola, que nos permite ver
uma parte ainda pequena das experiências vividas por esses povos no território
brasileiro. Historiadores, pesquisadores, artistas, escritores e griôs negras e negros
tem se esforçado para revelar essas histórias subterrâneas, resgatando a trajetória
dos homens e mulheres africanos e seus descendentes com o objetivo de
ressignificar o papel da população negra na história e na sociedade brasileira.
Entretanto, a história e a memória da população afro-brasileira ainda é marcada
pelo silêncio. Reza a lenda que os africanos capturados e escravizados eram
obrigados a dar a volta na “árvore do esquecimento”, para esquecerem seus nomes,
família, história, comunidade e ancestrais. O ritual teria como objetivo evitar o
“banzo”, sentimento de tristeza e saudade profunda que atingia homens e mulheres
africanos violentamente retirados de seus lares. Os senhores acreditariam que, sem
lembranças de quem eram ou de seu passado, essas pessoas seriam mais
facilmentes submetidas à escravidão. Independente da existência real do ritual,
essa história guarda em si elementos da histórias dessas pessoas no Brasil,
destituídas de sua humanidade, cultura, língua, família e identidade.
Uma grande parte do meu trabalho como educadora e pesquisadora no Sítio da
Ressaca teve como norte esse resgate, dar a volta ao contrário, retomar e
reivindicar essa memória construindo novos significados para o território, o
patrimônio e as pessoas que ali circulam.
Mestre Caranguejo - griot
Alberto Aves Barbosa nasceu em Vitória da Conquista na década de 1950, ainda
adolescente se mudou para São Paulo, onde foi aluno do Mestre Silvestre,
personagem importante na história da capoeira. Foi Mestre Silvestre quem lhe deu o
nome “caranguejo” por causa de seu gingado diferente, enquanto a maioria das
pessoas gingavam de lado, Alberto gingava para trás.
Mestre Caranguejo é uma figura conhecida na região do Sítio da Ressaca, suas
histórias fazem questão de demarcar nomes, datas e lugares muitas vezes
considerados irrelevantes pela pesquisa e narrativa histórica. Mais do que um
simples jogo ou um esporte, a capoeira assume um papel de tradição, herança e
memória que o Mestre faz questão de ressaltar a todo momento. Seu papel como
guardião da tradição e cultura afro-brasileira remete aos griots, tradicionalistas
comuns nas culturas da savana do Sul da África.
Os griots são os guardiões da palavra, bibliotecas vivas responsáveis pela
manutenção e transmissão do conhecimento, valores e a filosofia daquelas
sociedades. No decorrer de sua trajetória, Mestre Caranguejo manteve firme seu
compromisso de transmitir através das histórias contadas e do corpo em
movimento, o compromisso com essa preservação. A capoeira foi escolhida como o
espaço privilegiado, uma vez que, em suas próprias palavras:
“... A capoeira é o voo, liberdade preservada na memória pelo corpo, pela voz
e é ela que nos informa de quem somos filhos e a quem devemos honrar por
existirmos.” Entrevista concedida ao Projeto o Educação com Arte: Oficinas
Culturais.
É impossível não lembrar das palavras de Maria Beatriz Nascimento. Para a
historiadora, a história do povo negro não pode ser entendida apenas em letras e
números, como desejam alguns círculos científicos, a história do povo negro é a
história vivida, experienciada, marcada no corpo e na mente dos africanos e
afrodescendentes. O corpo, frequentemente desconsiderado pelas Ciências
Humanas, ocupa um espaço central em sua obra: o corpo é território, pois é nele
que são inscritas as relações de poder e dominação. A cor da pele, o formato do
nariz e boca, a textura dos cabelos, o tamanha do crânio, os corpos negros foram
medidos e classificados em uma hierarquia racial dotada de historicidade. É,
também, o corpo-memória, que se movimenta, que dança, que luta, que joga. É
espaço de reconhecimento e pertencimento. É o corpo que nos permite pensar,
falar, criar, sentir e agir, no caso de pessoas negras, esses corpos são marcados
por signos que constroem uma raça social e política, uma identidade coletiva com a
qual essas pessoas podem se identificar e se reconhecer.Não é possível, portanto,
compreender o negro sem desconsiderar seu corpo e suas formas particulares de
se movimentar pelo mundo.
Composições
Dezengosado
Marinheiro
Beijo na Donzela
Itabaianinha