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Maria Carmem Jacob de Souza

Telenovela e
Representação Social
Benedito Ruy Barbosa e a Representação do
Popular na Telenovela Renascer

Rio de Janeiro, 2004.


Dedico

Aos meus filhos Júlia e Pedro, que partilham comigo


a esperança no presente do futuro.

Aos amigos Ivete e Otávio (in memoriam), cúmpli-


ces nas aventuras do conhecimento.

Ao Wilson, meu parceiro no amor e nos sonhos.

Às minhas avós, Violeta e Maria, que com ternura


me ensinaram a apreciar as telenovelas.
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Souza, Maria Carmem Jacob de.


Telenovela e Representação Social – Benedito Ruy Barbosa e a
Representação do Popular na Telenovela Renascer / Maria Carmem Jacob
de Souza.
Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2004.
290 p.
ISBN: 85-87922-90-4
1. Telenovela 2. Telenovela – Construção Social 3. Telenovela –
Representação do Popular 4. Telenovela – Renascer
I. Título
CDD 309.1
Agradecimentos

E ste trabalho traz as marcas de ter sido originalmente uma


tese de doutoramento. Foi apresentado no Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo, em abril de 1999.
Algumas pessoas foram muito caras no decorrer dos anos
dedicados ao doutorado. Eu gostaria de destacar que com elas
(re)descobri os instigantes caminhos do processo de constru-
ção do conhecimento. Marilou Manzini-Covre, a orientadora
que proporcionou o apreço intelectual pela reflexão que
sedimenta conquistas, sem contudo desviar o olhar dos desa-
fios postos pelos projetos voltados para a emancipação social
e subjetiva. Ivete Ribeiro, a primeira e constante referência
profissional, companheira da reflexividade acadêmica e pes-
soal. Wilson Gomes, que mostrou ser possível aliar o afeto pro-
fundo às curiosas aventuras que a busca do conhecimento
incita.
Há também outras pessoas com quem tive a chance de
conviver e que participaram de muitos modos na maturação
das reflexões presentes neste livro. Menciono com particular
apreço os diletos interlocutores da Compós – Associação Na-
cional de Programas de Pó-graduação em Comunicação, Ro-
gério Luz (na época, professor da Escola de Comunicação da
UFRJ) e Silvia Borelli, que encanta pela sua generosidade in-
telectual. O meu agradecimento especial ao escritor Benedito
Ruy Barbosa pelos canais que abriu entre suas histórias e as
minhas reflexões. O Centro de Documentação da TV Globo –
Cedoc – foi também um apoio indispensável no processo de
coleta de dados.
Agradeço as condições oferecidas pelas instituições que
permitiram a realização da pesquisa: O apoio financeiro da
Capes e a oportunidade proporcionada pela Escola de Serviço
Social da UFRJ. Mas, sobretudo, agradeço, àquelas pessoas
que me acompanham desde sempre, deixando suas marcas
de afeto, coragem e esperança: meus pais, Lindolpho e Maria
Esther.

Salvador, novembro de 2002


Índice

9 Prefácio
13 Introdução
25 Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas
33 Como Pensar a Representação do Popular nas Telenovelas Brasileiras?
36 Empresários Morais
38 Peritos Realizadores de Telenovelas
48 Profissionais da Produção Simbólica
54 Campo da Telenovela: uma proposta de análise
64 Representações do Popular nas Telenovelas: Principais Hipóteses de Trabalho
75 Representação do Popular nas Telenovelas
79 Melodrama
87 Melodrama e o Romance-folhetim
102 Romance-folhetim e Telenovela
111 Campo da Telenovela
116 O Estado na Formação e Regulação do Campo
129 O Mercado na Formação e Regulação do Campo
143 Os Telespectadores na Formação e Regulação do Campo
155 Campo Artístico e as “Regras da Arte” na História de Produção das Telenovelas
Brasileiras
171 Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do
Popular
180 O Realismo nas Telenovelas e a Consagração de Benedito Ruy Barbosa
197 Benedito Ruy Barbosa, Empresário Moral de Questões Sociais Representa o Popular
203 Personagens Populares de Benedito Ruy Barbosa
212 O Companheiro de Jornada, Luiz Fernando Carvalho, e a Representação do
Popular em Renascer
227 O Popular em Cena na Telenovela Renascer
234 Renascer Coloca em Primeiro Plano o Poder, a Família e o Trabalho
238 Primeiro Capítulo
245 Trabalho e Cultura Inundam Passagens
247 O Amor, a Ascensão Social e a Tragédia da Modernidade
251 Teca, as Crianças de Rua e a Família
257 Tião Galinha, o Trabalho e a Pobreza
265 Considerações Finais
273 Bibliografia
9

Prefácio

O livro de Maria Carmem Jacob de Souza, Telenovela e repre-


sentação do social: Benedito Ruy Barbosa e a representação
do popular na telenovela Renascer, constitui-se como significa-
tiva contribuição para o campo da reflexão sobre teledrama-
turgia no Brasil. A telenovela apresenta-se, aqui, como objeto
singular de análise e interpretação que permite conexões mais
amplas com o debate sobre cultura contemporânea: cultura
de características híbridas, altamente complexa, que se mol-
da nas fronteiras entre matrizes populares, tradições letradas
e produção massiva. Para além de uma leitura densa sobre a
trajetória de Benedito Ruy Barbosa – autor consagrado no
campo da teleficção no Brasil – e sobre a narrativa da teleno-
vela Renascer (Direção: Luiz Fernando de Carvalho, Rede Glo-
bo de Televisão, 1993), esse trabalho mergulha fundo em ques-
tões prioritárias para a compreensão da cultura brasileira e,
essencialmente, sobre o grande desafio que é o entendimento
sobre o popular no debate cultural da atualidade.
O popular tem sido usualmente concebido em torno de
alguns eixos fundamentais: como dimensão folclorizada;
como espaço de resistência ao erudito e ao massivo; e como
sobrevivência a uma composição que articula fragmentos da
cultura dominante e cacos esparsos das culturas tradicionais.
Pode assumir, ainda, um tom romantizado, em que povo e
pobreza se tornam protagonistas e em que mito e tragédia se
mesclam às clássicas matrizes do folhetim, dos contos de fada
e dos demais formatos inerentes a cultura popular: “a pobre-
za que traz em si a beleza, a sedução da força e da coragem, o
espírito do trabalho e do auto-sustento honrado e digno e que
não se submete aos poderosos. Uma trajetória que não só ti-
nha como mito de origem a tragédia do trabalhador rural,
10 Telenovela e Representação Social

mas que também preconizava o mito da Cinderela que encon-


trava o seu príncipe personificado num senhor de terras, num
latifundiário produtivo, o rei do gado” (p.11).
Disso resulta a complicada necessidade de territorializar
os objetos de análise e de isolar o popular em espaços geográ-
ficos particulares – como a periferia, por exemplo –, em uma
classe social específica – a subalterna – ou mesmo na consci-
ência desse ou daquele grupo, como se esta fosse a única al-
ternativa de lhe permitir a existência. Vale ressaltar que, auto-
res como A. Gramsci, G. Bollème, J. Martín-Barbero e N. G.
Canclini, entre outros, têm tematizado criticamente esta com-
preensão. Para Gramsci, por exemplo, concebe-se como po-
pular tudo aquilo que aciona uma massa significativa de sen-
timentos e que revela certa concepção de mundo, hegemonica-
mente construída. Nesta perspectiva, o popular não se afirma
apenas pelas origens, tradições, raízes, mas por uma posição
– construída de forma complexa e conflituosa – frente ao
hegemônico; não pode, portanto, ser encarado como um todo
homogêneo que se opõe, monoliticamente, a uma outra tota-
lidade, como o erudito ou mesmo o massivo.
É nessa fronteira e diante dessa perspectiva, de pensar a
cultura como campo de lutas, que este trabalho se insere. A
confirmação desse princípio pode ser detectada quando, por
exemplo, Carmem nos mostra, de forma singular, que uma das
lutas travadas por diferentes realizadores, dentro do campo de
produção de telenovelas, passa pela apropriação que fazem
dessa ou daquela forma de representação do popular (e aqui,
“representação” torna-se uma noção chave!), como se isso lhes
permitisse uma maior autonomia e, conseqüentemente, maior
legitimidade e distinção dentro do campo. Afinal de contas, tra-
zer para o contexto da indústria cultural e da cultura de mas-
sas, as tradições populares, significa estar em consonância com
as fortes tradições que informaram o debate sobre cultura bra-
sileira e formaram muitos dos intelectuais (realizadores, agen-
tes culturais e, principalmente, autores e diretores) que migra-
ram para o campo televisivo no decorrer dos anos 60.
Os referenciais teóricos que conectam a análise sobre o
popular com os demais objetivos que compõem o trabalho são
Prefácio 11

claros e o diálogo privilegia os conceitos de campo, trajetória


dos agentes culturais (concebidos como “realizadores” e, no
destaque, a figura dos escritores) e habitus que constam da re-
flexão de Bourdieu. Entretanto, com acuidade e sentido crítico,
Carmem identifica algumas limitações inerentes aos já citados
conceitos de campo e habitus; propõe, então, a ampliação do
quadro de referências teóricas dialogando com autores como
Giddens, Canclini e Featherstone; e argumenta, ainda, que opta
por isso, diante da “necessidade de incorporar proposições so-
bre aspectos não contemplados, ou até mesmo limitados, das
contribuições de Bourdieu: a questão da modernidade, o signi-
ficado social e subjetivo da telenovela, o processo coletivo de
realização de obras culturais massivas, o conceito de realiza-
dor de telenovela e a controvertida noção de habitus” (p.15). Ao
promover este movimento, Carmem se afasta do risco de uma
sociologia preocupada apenas com a reprodução dos campos e
coloca em cena, sujeitos e subjetividades intervindo no proces-
so de produção industrializada da cultura.
Além disso, outra escolha neste trabalho, chama a aten-
ção e merece destaque: a assunção, por parte da autora, de
uma postura eminentemente epistemológica. A preocupação
em se apropriar cuidadosamente de uma perspectiva transdici-
plinar que se explicita tanto no diálogo com Morin – e com a
capacidade de “‘distinguir, separar, disjuntar’, sem, todavia,
reduzir, simplificar e exacerbar fronteiras disciplinares” – quan-
to com Canclini e sua “proposta de criação de um nomadismo
científico capaz de transitar pelas múltiplas interfaces conti-
das em um mesmo objeto” (p. 14).
Nesse sentido, o trabalho de Carmem se insere no que há
de mais atualizado no debate sobre telenovelas. E, mais do
que isso: é um trabalho que ousa tocar – com intuição, per-
cepção e delicadeza –, em inúmeras feridas que ainda hoje
dilaceram autores, diretores e demais realizadores que trafe-
gam pelos tortuosos, e por vezes perversos, caminhos da pro-
dução cultural brasileira contemporânea.

Silvia Helena Simões Borelli


Abril de 2004.
13

Introdução

D urante vários meses do ano de 1996, os telespectadores das


telenovelas das 20h30min da TV Globo participaram da his-
tória da vida da trabalhadora rural Luana Berdinazzi (Patrí-
cia Pilar). Uma personagem que encarnava a pobreza, carre-
gada nos traços da solidão, dos desafetos e brigas familiares,
da desonra herdada por meio do pai e do tio que roubaram a
própria mãe, sua avó. Mas também da pobreza que traz em si
a beleza, a sedução da força e da coragem, o espírito do traba-
lho e do auto-sustento honrado e digno e que não se submete
aos poderosos. Uma trajetória que não só tinha como mito de
origem a tragédia do trabalhador rural, mas que também pre-
conizava o mito da Cinderela que encontrava o seu príncipe
personificado num senhor de terras, num latifundiário pro-
dutivo, o rei do gado. Encontro mediado pelo Movimento dos
Sem-Terra e pela origem familiar desconhecida que lhe reser-
vava ao mesmo tempo um passado escuso e um presente/fu-
turo de riqueza e conforto.
Meses depois, já em 1997, uma outra trabalhadora rural
participante do Movimento dos Sem-Terra é transformada em
personagem – Débora Rodrigues. Ela foi convidada para po-
sar nua na Playboy. Convite que detona controvérsias no Mo-
vimento, no Partido dos Trabalhadores, tornando-se ponto de
pauta da agenda de grandes jornais, programas de televisão e
revistas. A Folha de S. Paulo, nos meses de julho e agosto desse
ano, em várias ocasiões, transpõe a história da sem-terra para
a primeira página. No dia 20 de agosto, por exemplo, tem-se
uma foto (21 x 14cm) da mais nova ‘coelhinha’ da Playboy.
Para descrever a foto lê-se a seguinte legenda: “No salão. A
sem-terra Débora Rodrigues tinge o cabelo em salão de São
Paulo, preparando-se para posar nua em sessão de fotos
14 Telenovela e Representação Social

marcada para hoje e amanhã na Praia de Camburi, litoral


paulista”. Na matéria ela explica: “Estou dando uma recau-
chutada na lataria”. Logo abaixo, tem-se o seguinte destaque:
“Rainha1 ameaça invadir bancos no Pontal”. Mais adiante, na
página 1-10, Rainha e Débora dividem o espaço, ele ao telefo-
ne, ela no salão, mas dessa vez em foto de corpo inteiro (ves-
tida, é claro!), mostrando a “funilaria e pintura” da sem-ter-
ra. A matéria termina com uma fala da Débora que dizia:
“Uma carreira artística pode acontecer ou não. Mas, se não
arrumar serviço por aqui, volto para o acampamento”.
Tem-se a impressão de, novamente, na posição de espec-
tadores, observar-se uma nova versão de Luana. Ambas fo-
ram criadas a partir de um dos movimentos sociais mais polê-
micos dos últimos anos na vida política brasileira. Fenômeno
sugestivo que ilustra uma das muitas representações dos mo-
vimentos sociais elaborada pelos media na sociedade brasilei-
ra contemporânea. Ilustra, ainda, a temática central deste li-
vro, qual seja: as telenovelas da maior emissora da televisão
brasileira e as representações sociais de atos e situações típi-
cas das classes populares numa sociedade marcada por inten-
sas desigualdades sociais matizadas por um complexo proces-
so de modernização.
Benedito Ruy Barbosa, o escritor responsável pela teleno-
vela que dramatizava o Movimento dos Sem-Terra na TV Glo-
bo, no seu horário de maior audiência e importância econô-
mica, escrevera anos antes na mesma emissora e horário a
premiada Renascer (1993, direção geral de Luiz Fernando Car-
valho). Novamente a questão agrária é um dos temas centrais
da história. Não se enfocou um movimento organizado, mas
a falta dele, diante da estrutura agrária de um país que nega-
va a terra para os homens que nela desejavam trabalhar. O
personagem emblemático dessa tragédia foi Tião Galinha
(Osmar Prado), um dos poucos personagens pobres de tele-
novela que não ascendeu socialmente, morrendo pelas suas
próprias mãos em defesa da dignidade expropriada pelo se-
nhor de terras e pela polícia.
1 José Rainha era, na época da telenovela estudada, um dos principais líderes do
Movimento dos Sem-Terra (MST) no Estado de São Paulo.
Introdução 15

Benedito Ruy Barbosa não foi o único a tematizar as situ-


ações e personagens das classes populares de maneira crítica
e, em princípio, incompatível numa emissora comprometida
com o mercado e as forças conservadoras. Ao ler os jornais da
grande imprensa2 e os boletins de programação (1980/90) das
telenovelas das ’20:00h’ da TV Globo3, e acompanhar a maio-
ria das telenovelas desse período4, foi possível desvendar uma
emissora que construía o popular5 dentro de um largo espec-
tro que contemplava autores e temáticas caras aos grupos de
esquerda da época. Pôde-se assistir desde (1) a denúncia dos
jogos de interesses políticos e econômicos mediante o estigma
da prostituição presente na trajetória de uma protagonista de
origem camponesa que, depois de rechaçada como vadia, é
aclamada quando retorna rica à sua cidade natal (Tieta, 1989,
Aguinaldo Silva e Paulo Ubiratan), (2) a crítica política aos
coronéis do poder (Roque santeiro, 1985, Dias Gomes,
Aguinaldo Silva e Paulo Ubiratan) até (3) as polêmicas em
torno dos direitos dos favelados sem-teto (Pátria minha, 1994,
Gilberto Braga e Dênis Carvalho), dos direitos à organização
sindical dos operários (Sétimo sentido, 1982, Janete Clair e
Roberto Talma) e dos direitos sociais dos meninos de rua (A
próxima vítima, 1994, Sílvio de Abreu e Jorge Fernando).

2 O material considerado foi: Jornal do Brasil, O Globo e a Folha de S. Paulo; as


revistas Veja e Isto é. Os jornais mais antigos foram examinados graças ao arquivo
pessoal do professor João Luiz Tillburg (PUC/RJ).
3 Os boletins são produzidos pela Divisão de Divulgação e Imprensa da emissora.
Apresentam uma síntese da trama e uma caracterização dos principais personagens,
além de citar a equipe técnica da telenovela. Este material é distribuído para a
imprensa e no interior da própria empresa, sendo muito usado pelo setor responsável
pela conquista dos patrocinadores, ou seja, do mercado publicitário.
4 Para isso tem sido muito útil as reapresentações em “Vale a Pena Ver de Novo” (TV
Globo, 14:00h, de segunda a sexta-feira).
5 O termo “o popular” estará sendo usado como fórmula sintética para designar
fenômenos, circunstâncias, fatos, personagens que se refiram às classes populares na
sociedade brasileira. Importante esclarecer que se tem conhecimento das imprecisões
e limites desse termo. Por isso, é oportuno frisar que o termo popular não será usado
para expressar categorias e pares de oposição usualmente a ele associados – subalter-
no/hegemônico, tradicional/moderno, culto/popular. Isto porque, lembrando Canclini,
não se pode perder de vista “as novas modalidades de organização da cultura, de
hibridização das tradições de classes, etnias e nações” (Canclini, 1989, p. 263).
16 Telenovela e Representação Social

Essa primeira aproximação das telenovelas das últimas


décadas da TV Globo, no horário assinalado6, indicava uma
presença freqüente do popular no interior de recortes e posi-
ções estéticas e políticas diferentes. A observação desses as-
pectos e das suas possíveis relações com as formas de drama-
tizar o popular em outras instâncias, como a imprensa, levou
à formulação de duas questões norteadoras da investigação
que originou esta publicação. A primeira pergunta, de cará-
ter mais geral, diz respeito ao fenômeno da representação so-
cial: Como pensar a representação social do popular na soci-
edade brasileira contemporânea? A segunda vincula o fenô-
meno da representação social com a dramatização do popu-
lar nas telenovelas. Como relacionar as representações soci-
ais do popular com as maneiras de se encenar o popular nas
telenovelas?
Para respondê-las seria necessário, no mínimo, articular
três disciplinas. Uma que contemplasse o fenômeno da repre-
sentação social, outra que se dedicasse à análise dos discursos
audiovisuais, além de uma que vinculasse a primeira à segun-
da. A necessidade de pensá-las a partir de mais de uma área
disciplinar vai ao encontro da já observada multiplicidade de
áreas do saber que exploram a complexidade do fenômeno da
representação em suas inter-relações com os media. Segue-se
aqui as trilhas de Canclini que defende as “ciências sociais nô-
mades”, isto é, a habilidade de circular pelas escadas que co-
municam as disciplinas que se ocupam das muitas dimensões e
interfaces que os seus objetos possuem (Canclini, 1989, p. 15).
As dificuldades postas pela análise do fenômeno da repre-
sentação social do popular na telenovela demandam, pois, a
capacidade de “distinguir, separar, opor e disjuntar” domínios
científicos, sem, todavia, reduzir, simplificar e exacerbar fron-
teiras disciplinares (Morin, 1994, p. 105). Sabendo-se das de-
licadezas que tal predisposição analítica supõe, busca-se de-

6 A forte presença do popular nesse horário não supõe sua ausência nos demais. Vale
lembrar, por exemplo, telenovelas como Que rei sou eu? (1989), de Cassiano Gabus
Mendes e Deus nos acuda (1993), de Sílvio de Abreu, no horário das 19:00h; e Barriga
de aluguel (1991), de Glória Perez e Sinhá moça (1986), de Benedito Ruy Barbosa, no
horário das 18:00h.
Introdução 17

senvolver uma prudente aproximação transdisciplinar da no-


ção de representação social, sem perder de vista a clareza do
caráter provisório e instrumental desse procedimento.
No primeiro capítulo apresenta-se o pano de fundo con-
ceitual que sustenta a análise das representações do popular
em uma das programações de maior alcance da televisão brasi-
leira – a telenovela – um gênero ficcional audiovisual, uma obra
cultural de caráter comercial elaborada por um coletivo de re-
alizadores. Um produto que guarda um conjunto de particula-
ridades no seu processo de criação, distribuição e consumo em
função da época de sua elaboração, do seu caráter comercial e
lucrativo, da equipe responsável pela sua realização, das carac-
terísticas e expectativas dos telespectadores e, por fim, da im-
portância política cultural e ideológica que possuem.
Centra-se a atenção sobre as relações entre as práticas
dos formuladores das representações do popular nas teleno-
velas e os sentidos produzidos por elas. Os estudos de Bourdieu,
Giddens, Canclini e Featherstone oferecem a base conceitual
para desenvolver a sociologia dos produtores aqui proposta.
Bourdieu será o autor-chave para analisar as representa-
ções sociais a partir das relações entre os realizadores e suas
obras, tendo como base às noções de habitus, trajetória e cam-
po. A interlocução com Giddens, Canclini e Featherstone de-
corre da necessidade de incorporar proposições sobre aspectos
não contemplados, ou até mesmo limitados, das contribuições
de Bourdieu, estando entre elas: a questão da modernidade, o
significado social e subjetivo da telenovela, o processo coletivo
de realização de obras culturais massivas, o conceito de reali-
zador de telenovela e a controvertida noção de habitus.
Os realizadores de telenovelas, a partir dessas referências,
foram considerados peritos empresários morais da produção
simbólica. Um dos muitos dispositivos mediadores das repre-
sentações sociais do popular na sociedade brasileira que vem
colaborando tanto para a construção de um ideário de nação
e de povo brasileiro, quanto para a conformação da auto-iden-
tidade e dos estilos de vida dos telespectadores.
Representações sociais elaboradas por realizadores cir-
cunscritos ao espaço social particular de produção de teleno-
18 Telenovela e Representação Social

velas. Um campo de relações de força, poder e de disputas


entre os agentes que dele fazem parte. Nessa medida, as re-
presentações do popular nas telenovelas expressam escolhas
de realizadores relacionadas às suas trajetórias neste campo.
O exame da história dos principais agentes e instituições
do espaço social de produção das telenovelas no Brasil permi-
tiu formular os critérios de classificação de realizadores e obras
que serviram de parâmetro para a seleção da emissora, tele-
novela e realizadores investigados. Optou-se pelos consagra-
dos por acreditar que eles permitem um delineamento mais
preciso da história dos processos de construção dos objetos de
disputa definidores do campo da telenovela (Almeida, 1979).
Decidiu-se pela maior e mais importante emissora produ-
tora de telenovela do país das últimas duas décadas, a TV Glo-
bo. No conjunto das telenovelas exibidas pela emissora, optou-
se pelo “horário das 20:00h”, aquele que associava a maior ren-
tabilidade e audiência com temáticas que enfatizavam ques-
tões sociais e políticas mais contemporâneas. O marco tempo-
ral selecionado foi o mais recente possível, pois as telenovelas
brasileiras têm sido formuladas ao longo da sua exibição, guar-
dando uma relação muito própria com o que estaria aconte-
cendo ‘no mundo real’. A contemporaneidade facilita a obser-
vação dessa relação. Além disso, o difícil acesso ao material
audiovisual para análise induziu, também, à seleção de uma
telenovela que pudesse ser registrada pela pesquisadora.
Para escolher a obra e os realizadores foi preciso, num
primeiro momento, observar o conjunto das telenovelas desse
horário, desde 1980, para identificar a temática, a história dos
protagonistas e a equipe de profissionais, particularmente os
escritores e diretores7. Ficou evidente uma alternância de te-
7 Os Boletins de programação das 25 telenovelas das 20:00h (1980 a 1994) foram
examinados, constatando algumas regularidades importantes na equipe de produto-
res culturais da emissora. A direção geral da maioria das telenovelas foi realizada por
Roberto Talma, Paulo Ubiratan e Dênis Carvalho, os escritores mais freqüentes foram
Janete Clair, Lauro César Muniz (os mais assíduos dos anos 70), Gilberto Braga e
Aguinaldo Silva. Não se pode esquecer que tais regularidades foram alternadas com
um conjunto de ‘novidades’ que inseriam novos diretores, escritores de outros horários,
dentre eles Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho. Na cenografia tem-se
Raul Travassos e Mário Monteiro. Na produção de arte destaca-se Ana Maria Maga-
lhães e Cristina Médicis e no figurino, Helena Gastal e Marília Carneiro.
Introdução 19

mas e realizadores, principalmente escritores e diretores ge-


rais, que expressavam as posições no campo e os diferentes
tipos de telenovelas que têm sido formuladas para o horário8.
Um outro procedimento foi necessário para que se pudesse
eleger a telenovela e o realizador a ser estudado. Sabe-se que a
telenovela é fruto de um trabalho coletivo que remete a tantas
áreas de experiência quantos tipos de profissionais ela absorver
em sua fabricação. Isso quer dizer, por exemplo, que escritores
remetem à história da produção jornalística e literária, enquanto
os diretores à esfera da produção audiovisual do cinema, vídeo
e televisão. Para garantir um recorte mais preciso e prudente
do realizador e das formas de expressão a que ele se filia, deci-
diu-se pelo de maior peso autoral na telenovela, o escritor. O
peso autoral foi considerado tendo em vista a postura
hegemônica no campo diante da autoria das telenovelas.
De posse destes critérios de seleção, chamou a atenção o
destaque obtido por Benedito Ruy Barbosa, que apesar de re-
conhecido no campo, surgiu em 1993, pela primeira vez, no
horário mais cobiçado pelos realizadores, depois de 27 anos
de experiência com telenovela. Além disso, ele estava acom-
panhado por um diretor que não só inaugurava o horário e a
posição de diretor geral, como também estava sendo conside-
rado representante de um novo modo de fazer telenovela. Um
outro aspecto curioso, e fundamental para a pesquisa, foi que
a telenovela Renascer trouxe para a telinha uma postura de
crítica social diante de personagens e situações de pobreza,
que inusitadamente não finalizaram suas trajetórias embala-
dos pela doce magia da ascensão social.
O conjunto de indicadores necessário para compor a sele-
ção da emissora, realizador e obra, já estava concluído. Re-
nascer (1993) e seus realizadores, Benedito Ruy Barbosa e Luiz
Fernando Carvalho, serviram de foco privilegiado da investi-
gação que examinou as relações entre as representações soci-
ais do popular nas telenovelas e a trajetória dos realizadores
no campo, com especial atenção ao lugar do escritor nesse
processo.

8 Ver quadro I em anexo.


20 Telenovela e Representação Social

No segundo capítulo apresenta-se a perspectiva de aná-


lise das representações dramatizadas do popular nas teleno-
velas. Pressupõe-se que as escolhas que os realizadores fa-
zem sobre os modos de dramatizar o popular nas telenove-
las devem-se tanto à trajetória que desenvolvem quanto às
“possibilidades estratégicas” ou “espaço de possíveis” do cam-
po. Quer dizer, ao “sistema comum de coordenadas” sobre o
que seja fazer uma telenovela, um conjunto de referências a
partir do qual os realizadores se reconhecem e se diferenci-
am. Sendo assim, examina-se as principais matrizes cultu-
rais do gênero: o melodrama e o folhetim. Destaca-se, por
privilegiamos a análise do escritor, o estudo dos romances
folhetins franceses do século XIX. Desenvolveu-se, ainda, uma
reflexão sobre a dimensão do realismo, pois ela tem sido uma
referência marcante nos processos de definição do gênero e
de formulação dos critérios de reconhecimento e consagra-
ção dos realizadores.
No terceiro capítulo apresentam-se, a partir das proposi-
ções de Bourdieu, as mediações ou rede de relações constitu-
intes do campo da telenovela. Usou-se como fonte de dados os
estudos sobre a história das telenovelas no Brasil e trabalhos
sobre o campo artístico brasileiro. A escassez de estudos que
contemplassem a história das telenovelas dos anos 90, no pe-
ríodo da investigação, levou também às matérias da grande
imprensa.
Identificou-se o papel do Estado, do mercado publicitário,
dos telespectadores e do meio artístico, na construção das re-
gras de funcionamento do campo examinado. Depois, estabe-
leceram-se as regras básicas e as particularidades que defini-
ram seus sistemas de consagração e reconhecimento, a nar-
rativa audiovisual das telenovelas, a concorrência entre as
emissoras, os pontos de vista e as disputas entre os realizado-
res que ordenaram os princípios de classificação e denomina-
ção das obras, deles próprios e do público.
A construção das mediações que constituem o campo da
telenovela objetivou, principalmente, servir de suporte analíti-
co para examinar as relações entre a trajetória de Benedito Ruy
Barbosa e as representações sociais do popular em Renascer.
Introdução 21

Renascer foi escrita e exibida em 1993. Isso significa que a


conformação do campo exigia uma recuperação de mais de
40 anos de existência da telenovela. Construiu-se alguns cri-
térios para identificar os estados, momentos históricos ou fa-
ses do campo. Eles surgiram das principais situações extraí-
das, por um lado, das ações dos agentes e instituições (oriun-
dos do Estado, do mercado publicitário e do campo artístico)
que exerceram funções de formação e regulação no campo;
e, por outro lado, das ações dos agentes e instituições que fi-
zeram parte do sistema de produção e difusão de telenovelas.
Os pontos demarcadores dessas fases do campo coincidi-
ram com um tipo de organização temporal por décadas. A pri-
meira telenovela, a introdução do videotaipe, a primeira teleno-
vela diária e o início da hegemonia da telenovela na teledrama-
turgia são, por exemplo, marcos específicos da primeira fase de
formação do campo, que iria de 1951 a 1967. Essa fase con-
templa os anos 50 e 60. A fase seguinte, a consolidação do cam-
po, compreende os anos 70 e a fase de ampliação e redefinição,
dos anos 80 em diante. Tais fases conduziram à formulação e à
apresentação das principais características do campo da tele-
novela no Brasil, tendo como eixo ordenador as ações dos prin-
cipais agentes e instituições que teriam nele exercido funções
de formação e regulação, a saber: o Estado, o mercado publici-
tário, os telespectadores e o campo artístico. Pretendeu-se, por
meio dessa revisão histórica, descortinar as linhas mestras da
lógica de funcionamento do campo e dos seus sistemas de con-
sagração e reconhecimento.
No quarto capítulo apresentam-se os aspectos particula-
res do campo que descortinam as situações de concorrência
entre as emissoras, os pontos de vista e as disputas dos reali-
zadores em torno dos sistemas de classificação das telenove-
las, aprofundando as interfaces com o campo artístico, quer
dizer, com os aspectos que expressam os espaços de possíveis
estético, técnico e cultural que têm servido de referência para
os realizadores representarem o popular nas telenovelas. Nes-
te capítulo são desenvolvidas as relações entre esse espaço
social de produção das telenovelas e a história de consagra-
ção de Benedito Ruy Barbosa.
22 Telenovela e Representação Social

Expõe-se a trajetória de Barbosa, privilegiando os dados


que indicam as instituições onde trabalhou, as telenovelas que
escreveu, a repercussão política, cultural e artística delas, as
concepções sobre o ato e os modos de escrever. O exame da
trajetória de Luiz Fernando Carvalho compõe, também, esse
capítulo, já que se está analisando um produto audiovisual
que não existiria sem as marcas do diretor geral. Decidiu-se
por esse caminho porque investigar as escolhas e formas da
representação do popular na telenovela pressupõe a configu-
ração da trajetória de seus principais realizadores e as esco-
lhas que realizam, a partir de um determinado universo de
referências, habitus e posições que ocupam no campo.
No quinto capítulo, centra-se a análise na representação
do popular em Renascer, privilegiando as dimensões extra-
textuais, de caráter mais sociológico, que fizeram parte do
seu processo de formulação, em especial o campo de produ-
ção das telenovelas e o papel do escritor e do diretor geral.
Tem-se clareza que tais dimensões são importantes, mas não
o suficiente para se examinar a obra. Nessa medida, não se
efetuou aqui uma análise das estratégias discursivas das tele-
novelas ou das suas regras de funcionamento, sua gramática.
O objetivo central foi instituir e demonstrar as relações entre
os pontos de vista sociais, políticos e estéticos de um escritor
determinado, e a representação do popular em uma das tele-
novelas que escreveu. Nessa medida, pode-se dizer que o
enfoque aqui privilegiado foi a história e diégese de uma de-
terminada obra ficcional audiovisual e não as suas formas de
expressão.
Nessa medida, a análise não se dirigiu direta e imediata-
mente aos aspectos formais típicos da linguagem do meio tele-
visivo. Embora não se perca de vista a importância e o signifi-
cado da linguagem, o enfoque privilegiado está posto na cons-
trução dos personagens populares e na constituição da trama
em que eles estão envolvidos.
Afirmar o privilégio de uma determinada abordagem não
significa desconsiderar outros aspectos presentes. No caso da
telenovela, seria um grave erro, particularmente pelo fato de
que o processo de realização da obra é coletivo e as marcas de
Introdução 23

autoria não se concentram no escritor, pois têm sido cada vez


mais compartilhadas com o diretor geral e a equipe capitane-
ada por ele. A telenovela é uma história apresentada median-
te um texto audiovisual, o que significa que, de algum modo,
se deve considerá-la como “o lugar de encontro e da associa-
ção sutil conteúdo-expressão que permite que a história tome
forma” (Vanoye e Goliot-Lété, 1994, p. 41).
Ao se examinar os personagens populares em Renascer,
observam-se escolhas operadas pela telenovela para desenhar
um mundo possível a partir de relações complexas com um
mundo real “que pode ser seu reflexo, mas também sua recu-
sa – ocultando aspectos importantes do mundo real, ideali-
zando, amplificando certos defeitos, propondo um ‘contra-
mundo’” (p. 56). Por isso, não se pode deixar de contemplar os
modos pelos quais a telenovela estruturou as representações
do popular em espetáculo e drama, sabendo que, nesse caso
particular, mais do que utilizar a telenovela para analisar as
representações sociais do popular em disputas na sociedade
brasileira, “observaremos” um conjunto de representações do
popular narradas na telenovela que remetem direta ou indi-
retamente à sociedade real em que se inscreve (p. 55).
A interpretação dessas representações é uma questão im-
portante. O olhar enviesado por outras áreas do conhecimen-
to, como a sociologia, tende a utilizar a telenovela para pen-
sar as relações sociais inscritas pelo texto, ou seja, a retirar
informações parciais, isoladas da telenovela para relacioná-
las com informações extratextuais advindas dos objetivos da
pesquisa. O que se pretendeu garantir aqui foi pelo menos
uma utilização mais completa da telenovela, aquela que reti-
ra informações a partir de um conhecimento cuidadoso das
maneiras particulares mediante as quais o gênero constrói as
representações. Tenta-se, assim, a maior aproximação possí-
vel com uma análise que não desconsidere o “real do texto”.
Buscou-se, então, elaborar interpretações a partir de um
rigoroso exame daquilo que estaria efetivamente expresso no
texto para, apenas depois disto, contrapô-lo às conjeturas da
pesquisadora a respeito dos pontos de vista dos realizadores.
Tal procedimento pretendeu identificar em que medida o tex-
24 Telenovela e Representação Social

to aprovaria ou desaprovaria essas conjeturas, ou indicaria


outras (p. 54).
Renascer contou com mais de 200 capítulos. Na primeira
semana apresentou-se a “primeira fase” na história do prota-
gonista da saga, O coronel Inocêncio. Nas duas semanas se-
guintes introduziu-se a fase atual da vida do coronel Inocêncio
e os personagens analisados: Tião Galinha (o representante
da questão da terra) e Teca (a representante da questão social
que envolve os meninos de rua dos centros urbanos). Em um
primeiro momento elaborou-se um resumo da história conta-
da em Renascer com o objetivo de mapear as principais rela-
ções sociais configuradas, em especial aquelas que envolvem
as trajetórias dos personagens enfocados com os representan-
tes do poder e da riqueza social, os coronéis. Em seguida, exa-
minou-se o primeiro capítulo com o objetivo de identificar as
principais características dos modos de representar o popular
nesta telenovela. Feito isso, foi exposta a análise dos persona-
gens exemplares das questões sociais em Renascer – Teca e
Tião Galinha – a partir da posição que ocupavam na trama,
das principais situações que enfrentaram e do final que lhes
foi destinado.
Tem-se neste trabalho um primeiro estudo, de caráter
exploratório, da narrativa da telenovela. Uma análise
direcionada e limitada pelos necessários recortes colocados
pelo objetivo perseguido: mostrar as relações entre a história
do campo da telenovela, a trajetória dos realizadores e os modos
de representar o popular.
25

Construção Social da Representação do


Popular nas Telenovelas

A representação é, de uma maneira geral, o ato de tornar


algo presente, por meio de imagens abstratas ou concre-
tas, de conteúdos mentais, de discursos e de outros meios, sem
que a ausência material seja superada. Uma noção com um
enorme espectro de uso, podendo ser aplicada no espaço cien-
tífico, teatral, literário, jurídico e psicológico1.
Quando a representação examinada é a do popular na te-
lenovela, um outro aspecto deve ser mencionado, a questão da
representação artística. Nesse caso, o fenômeno diz respeito à
capacidade da criatividade artística de tornar presente, medi-
ante formas e figuras de naturezas diferentes, a depender do
tipo de arte, um mundo real ou possível, da experiência direta e
concreta ou da fantasia, do delírio ou da intimidade mais
idiossincrática. A representação do popular na telenovela sig-
nificando o mundo das formas e figuras nos quais se apresenta
plasticamente o mundo vivido das classes populares.
No campo das ciências sociais2 a representação adquire o
atributo de social e refere-se ao ato de presentificar no pensa-
mento dos indivíduos, num contexto fortemente dependente
do vínculo social, a realidade vivida3. Autores clássicos da so-

1 A representação mental refere-se ao fenômeno pelo qual algo se torna disponível às


faculdades do entendimento ou da imaginação, entendido como conteúdo conceitual,
informação, esquema, valor aritmético, fórmula abstrata, ou como quimera, confi-
guração fantasiosa de mundos possíveis. A representação mental possibilita que esse
algo re-presentifique, tornando-se passível de ser manipulado pelo intelecto, pela
fantasia e pela vontade ou desejo. As representações mentais do popular na sociedade
brasileira, por exemplo, representificariam informações e fantasias sobre as classes
populares.
2 A esse respeito ver o trabalho de Minayo (1994, p. 89-113).
3 Embora fazendo parte da família de noções vinculadas ao conceito genérico de
representação, o vocábulo “representação social” no campo das ciências sociais tem lá
26 Telenovela e Representação Social

ciologia – como Durkheim, Weber e Marx – demonstraram


que os homens representavam a realidade em que vivem a
partir de uma complexa relação entre as suas condições de
existência e os grupos e as instituições que delas fazem parte.
Dessa relação resultava um contínuo movimento de gestação
de formas de pensar a realidade social, fomentadoras de prá-
ticas, sentimentos, condutas que tendem a reproduzir as con-
dições de existência. Eles já assinalavam que essa relação não
era direta, linear e dependente, que guardava ao mesmo tem-
po uma autonomia relativa e vínculos de complementariedade,
onde o real construiria formas de pensar que eventualmente
também construiriam esse real.
Durkheim enfatiza o caráter coercitivo e coletivo das re-
presentações sociais, acentuando a capacidade delas de ga-
rantirem a coesão social na medida em que formam as cons-
ciências individuais. Apesar de serem exteriores aos indiví-
duos, as representações sociais podem ser por eles interiori-
zadas por meio de instituições e agentes especializados, den-
tre eles as escolas e os educadores. Marx também destacou a
perspectiva coercitiva das representações sociais, mas não
mais justificando ou defendendo, como fizera Durkheim. Ao
contrário, buscou demonstrar de que maneira os diferentes
e antagônicos interesses existentes na sociedade poderiam
gerar modos de dominação sobre indivíduos e grupos, ela-
borando, assim, as noções de classe e ideologia dominante.
O enfoque nas formas de dominação pretendia estimular e
refletir sobre os modos de rebelar-se contra elas, formulan-
do a partir daí novas regras sociais e uma nova ordem social
que rompesse os modos de dominação vigentes. Ao contrá-
rio de Durkheim, negava o poder absoluto da representação
coletiva e dominante sobre as consciências individuais, aten-

as suas especificidades. Nesse caso a representação adquire o atributo de social ao


designar o ato de presentificar no pensamento dos indivíduos – imersos em situações
e contextos sociais, culturais, econômicos – fatos, objetos, construtos mentais, cir-
cunstâncias relacionadas à realidade vivida. As representações sociais seriam os con-
teúdos mentais de natureza conceitual, produtos da faculdade da imaginação ou de
conteúdos de natureza híbrida, constituídos no seio dos inescapáveis vínculos social e
grupal, por meio dos quais os indivíduos e grupos pensam, consideram e imaginam
(isto é, tornam presente) a realidade vivida.
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 27

tando para as possibilidades de mudança, revolucionárias


ou não, que as novas formas de representar a realidade soci-
al e cotidiana podiam chegar a ter. Novas representações
gestadas por novas formas de vida material, num contínuo
movimento dialético estabelecido com a vida material e as
idéias. O poder das instituições e dos sujeitos que dela fazi-
am parte era, também, ressaltado.
Weber, abstendo-se do ponto de vista classista e revolucio-
nário de Marx e do ponto de vista coercitivo e absoluto de
Durkheim, afirmava que o capitalismo educava e criava seus
sujeitos, formulando idéias com um poder acentuado de favo-
recer o seu avanço. As idéias guardariam, assim, uma certa
autonomia, traduzida em eficácias sociais particulares. Ele con-
tribuiu para relativizar a determinação da base material sobre
as representações sociais, já que considerava que somente após
um exame dos fatores que deveras contribuíram na configura-
ção de determinado fato ou ação social aferiria-se a efetiva
importância da base material. Por exemplo, o trabalho como
virtude máxima, a prosperidade como benção divina e o lucro
como fator legítimo seriam tão ou mais fundamentais para a
consolidação do capitalismo quanto as suas condições materi-
ais e históricas de surgimento e consolidação.
Esses três autores instituíram os pontos nevrálgicos e pri-
mários do debate acerca da representação social no campo
das ciências sociais. Bourdieu e Giddens, autores que muito
podem oferecer para ampliar este debate, são tributários do
diálogo e das controvérsias estabelecidas com o pensamento
desses autores e de seus seguidores4. Os clássicos citados fo-
ram, nesta medida, precursores do debate sobre a cultura
que a antropologia e a sociologia desenvolveram. No caso
do pensamento sociológico hegemônico da noção de cultu-
ra, observa-se que ele teria ficado durante muitos anos enges-
sado pela compreensão dos fenômenos culturais como refle-
xo do capitalismo. Esse limite iria finalmente ser superado
com o novo lugar que a cultura foi tomando no campo soci-
ológico a partir dos anos 70. Esse fenômeno foi, ao mesmo

4 Ver Ortiz (1983) e Giddens (1991).


28 Telenovela e Representação Social

tempo, fruto e incentivador de um movimento de esgarça-


mento de fronteiras disciplinares que ampliou as abordagens
teóricas sobre as relações entre cultura e sociedade. Consoli-
dava-se uma postura teórica que mostrava não ser mais
admissível teorizar a cultura sem considerar as áreas exter-
nas à sociologia, entre elas a filosofia, a história, a literatu-
ra, a semiologia e tantas outras (Featherstone, 1995, p. 53).
Featherstone lembra ainda que esse movimento foi enrique-
cido e estimulado pela interlocução com os pós-modernos,
que trouxe “as questões estéticas para o centro da teoria so-
ciológica”, assim como pela ascendência no campo científi-
co do feminismo, do marxismo, do estruturalismo e do pós-
estruturalismo, da semiologia, da teoria crítica e da psicaná-
lise (p. 55).
O interesse da sociologia pela análise da cultura teve um
desenvolvimento especial nos países de língua inglesa, onde
Giddens é considerado um expressivo teórico social da produ-
ção cultural contemporânea. No campo sociológico francês,
um dos destaques na área da análise da cultura tem sido Pierre
Bourdieu. Ambos, referências centrais neste trabalho para ana-
lisar a representação social do popular nas telenovelas.
Ao investigar as representações do popular nas telenove-
las optou-se por centralizar a atenção nas práticas dos reali-
zadores dessa obra cultural, ou seja, nas relações entre as prá-
ticas dos formuladores das representações do popular numa
determinada obra cultural massiva e os sentidos produzidos
por elas.
Os estudos de Pierre Bourdieu oferecem a oportunidade
de desenvolver uma sociologia dos produtores das representa-
ções que examinem essas relações entre os realizadores e suas
obras a partir dos seus aspectos comerciais, históricos, ideoló-
gicos, estéticos e simbólicos. Para tanto, fez-se uso mais siste-
mático das noções de habitus, “trajetória” e “campo”.
A escolha de um autor como Bourdieu deveu-se ainda a
sua habilidade em contemplar a tendência das instituições à
reprodução. Isso porque não se pode examinar as supostas
experiências críticas, criativas, inovadoras e emancipadoras
das instituições e dos sujeitos sociais – dimensões tão caras às
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 29

perspectivas mais críticas nas ciências sociais5 –, sem contem-


plar os conflitos, as contradições e os paradoxos que elas esta-
beleceriam com as experiências cotidianas e subjetivas que
tenderiam à reprodução. Tal ponto de vista, acredita-se, ofe-
receria uma capacidade analítica mais apropriada para a com-
preensão das facetas reprodutora e emancipadora dos media.
Algumas ressalvas, entretanto, precisam ser indicadas.
Bourdieu não tem tomado como seu objeto particular a aná-
lise da modernidade e dos meios massivos de comunicação,
como bem lembra Canclini (1989). Tal fato, contudo, não su-
gere a inadequação de seus pressupostos, mas apenas a ne-
cessidade de redimensioná-los. Assim sendo, buscou-se agre-
gar eventuais redimensionamentos a partir de uma inter-
locução com os trabalhos de Canclini, Featherstone e Giddens.
Os dois primeiros autores ofereceram importantes elemen-
tos teórico-metodológicos para realizar apropriações das no-
ções de habitus e de campo, contribuindo na reflexão sobre a
sociologia dos produtores, Giddens forneceu os aportes mais
significativos para refletir sobre a questão das representações
sociais na contemporaneidade, ampliando, assim, a noção de
telenovelas e dos sentidos do popular neste gênero ficcional.
Bourdieu tende a uma abordagem mais estruturalista e
marxista dos processos de dominação e legitimação social,
enfatizando as relações entre as posições sociais, a problemá-
tica das classes sociais e a construção das representações so-
ciais, Anthony Giddens tende a analisar as mudanças sociais
numa abordagem que, sem descurar totalmente a perspecti-
va estruturalista e o conceito de classe, acentua as dimensões

5 Das muitas críticas que Bourdieu tem recebido, merecem destaque aquelas que
reclamam do enfoque centralizado na reprodução. Martín-Barbero diz que Bourdieu
elaborou um dos modelos teóricos mais abertos, complexos e menos mecânicos para
compreender a relação das práticas com as estruturas. Todavia, ele sentia falta de
uma análise da produção das inovações e transformações (1987, p. 92). Também
Canclini (1987, p. 34) seguia por essa via e afirmava: “Bourdieu no examina como los
habitus pueden variar según el proyeto reproductor o transformador de diferentes
clases y grupos. (...) De cualquier modo, su aporte nos permite precisar en qué condiciones
socioculturales opera el conflicto politico entre lo hegemônico y lo subalterno. Permite
situar la potencialidad transformadora de las clases populares en los límites que le
pone la lógica de los hábitos y del consumo, esse consenso interior que la reproducción
social establece en la cotidianeidad de los sujetos.”
30 Telenovela e Representação Social

microssociais, individuais e subjetivas das práticas. Essa di-


versidade permitiu associar tendências e preocupações, em
princípio dissonantes, mas, depois de uma leitura mais acura-
da, se mostraram complementares. Esse enriquecimento tor-
nou-se possível ao se seguir uma linha que desenvolve alguns
aspectos importantes: (1) as implicações da modernidade nos
processos de construção das representações; e (2) os recursos
reflexivos que instituições, grupos e indivíduos têm lançado
mão para dar conta das questões postas hoje pela modernidade
nos países capitalistas ocidentais.
Uma análise baseada nos pressupostos formulados por
Bourdieu estimula uma leitura amarrada aos limites do su-
posto estruturalismo do autor, onde os agentes – e note-se, o
autor prefere esta denominação à de sujeito (Bourdieu, 1998,
p. 60) – e suas subjetividades estariam sendo desqualificadas
ou até mesmo negadas. De fato, Bourdieu não se dispõe a exa-
minar os processos psíquicos sustentadores das formulações
das representações sociais, mas nem por isso descartou a sua
existência, sendo a noção de habitus um importante aporte.
Giddens, no entanto, buscou uma maior aproximação com a
psicanálise frente à sua preocupação com a questão da inti-
midade, desenvolvendo uma interlocução importante com o
psicanalista inglês Donald W. Winnicott.
A noção de habitus em Bourdieu expressaria os processos
de objetivação e ancoragem, pois permite examinar as rela-
ções entre as estruturas produzidas pelas experiências anteri-
ores e as experiências novas que afetariam essas estruturas.
Segundo Bourdieu, habitus, disposições inconscientes, tendem
a assegurar sua própria constância e sua defesa contra a
mudança, selecionando e rejeitando as informações que colo-
quem em questão as informações previamente acumuladas e
definidas como corretas. Desse modo, os efeitos que uma ex-
periência nova poderia exercer sobre os habitus dependeriam
da relação de “compatibilidade” prática entre essa nova expe-
riência e as experiências já integradas ao mesmo (Romano,
1987, p. 54-55).
Spink (1994, p. 121) chamou o habitus de um dos contex-
tos de produção das representações, aquele marcado pelo tem-
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 31

po vivido, pelas experiências de “socialização”. Assim sendo,


se poderia dizer que o tempo do habitus seria predominante-
mente um tempo governado pela “lógica das repetições”, onde
o presente e o futuro seriam estruturados no passado, pelas
tradições. Nos períodos pré-modernos, as representações ema-
navam das tradições e contribuiriam para o que Giddens cha-
mou de segurança ontológica6. Porém, na modernidade, e mais
claramente na contemporaneidade, surgiram novas formas
de lidar com a tradição e com a conformação da segurança
ontológica. Nesse caso, é Giddens quem diz que o “futuro se-
ria continuamente trazido para o presente através da organi-
zação reflexiva dos ambientes de conhecimento”, mediados
por sistemas abstratos, instituições, especialistas e recursos
reflexivos7.
O que interessa reter dessas digressões é o caráter con-
temporâneo dos fenômenos da objetivação e da ancoragem.
Ou seja, as “estruturas produzidas pelas experiências anterio-
res” seriam marcadas pela reflexividade que interrogaria per-
manentemente a tradição e que suporia um conjunto mais
complexo e sofisticado de mediações das representações cole-
tivas com os sistemas subjetivos de ancoragem e objetivação,
marcados por uma fragilidade na manutenção do que Giddens
chamou de “confiança” e “segurança ontológica”.
Isso tudo faz com que se conceba as telenovelas como
objetos ficcionais de entretenimento que funcionariam como
obras/objetos mobilizadores e facilitadores de apropriações e
recriações subjetivas e simbólicas das representações sociais
que narram e dramatizam a vida familiar, as expectativas so-
ciais, a sexualidade, a procriação, os filhos e tantas outras
dimensões relacionadas ao cotidiano. Apropriações e recria-
ções subjetivas das representações sociais que seriam, em um
6 Segundo Giddens (1991, p. 95), “a segurança ontológica é uma forma de sentimen-
tos de segurança (...). A expressão se refere à crença que a maioria dos seres humanos
têm na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de ação
social e material circundantes. (...) A segurança ontológica tem a ver com ‘ser’ ou, nos
termos da fenomenologia, ‘ser no mundo’. Mas trata-se de um fenômeno emocional,
ao invés de cognitivo, e está enraizado no inconsciente.”
7 Conceitos que mostram fortes enlaces com as noções de campo e profissionais da
produção simbólica em Bourdieu.
32 Telenovela e Representação Social

primeiro momento, tributárias das disposições socialmente


construídas e subjetivamente incorporadas, o habitus, “estru-
turadores estruturantes” da reflexividade moderna.
Quanto ao processo de elaboração das representações por
parte dos realizadores de telenovelas – foco primário de aten-
ção – deve-se assinalar de antemão que o enfoque central é
sociológico. Como decorrência, parte-se da máxima de
Durkheim (Jameson, 1995, p. 6) que alerta sobre a falsa ex-
plicação de um fenômeno social quando ela é gerada a partir
de fenômenos psicológicos. Logo, seria prudente esclarecer que
não se pretende usar os saberes da psicologia ou da psicanáli-
se para analisar os realizadores e suas obras. Porque, como
bem salienta Jameson (1995), sabe-se, desde Freud, dos pro-
blemas metodológicos encontrados quando se utiliza na aná-
lise dos “objetos intersubjetivos” artísticos e culturais, as téc-
nicas psicanalíticas.
Autores clássicos como Morin (1976) já falavam das pro-
jeções e identificações dos sujeitos espectadores do cinema.
Preocupações com essa dimensão psíquica estariam também
presentes em Sarlo (1985), quando ela lembrava da “necessi-
dade de ficção” dos indivíduos na modernidade. Sem dúvida,
acata-se aqui a idéia de que existem complexas relações entre
as disposições inconscientes dos sujeitos e as obras culturais,
sejam elas mediáticas ou não, e que elas estariam presentes
tanto no processo de formação8 quanto no de consumo das
obras. Porém, para fins da reflexão aqui empreendida, consi-
dera-se adequado e suficiente nomear a existência dessa rela-
ção sem incorporá-la à análise das representações do popular
elaboradas pelos realizadores de telenovelas.

8 O ensaio de Piglia (1998) sobre as relações entre a literatura e a psicanálise é, nessa


linha, muito curioso e instigante. Ele lembra os modos de narrar inspirados pela
psicanálise, exemplificado no caso de Joyce, assim como os modos de expressão do
inconsciente mediante a literatura, exemplificados no caso de Puig. Piglia dizia que o
“inconsciente tem estrutura de folhetim”, sendo essa uma interessante forma de pen-
sar a capacidade de autores como Puig, que ao escrever sua ficção sem descuidar da
estrutura das telenovelas e dos grandes folhetins da cultura de massas, conseguia
captar essa “dramaticidade implícita na vida de todos, que a psicanálise põe no centro
da experiência de construção da subjetividade“.
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 33

Como Pensar a Representação do Popular nas Telenovelas Brasileiras?


Quando refletimos sobre o ato ou efeito da televisão represen-
tar grupos e indivíduos que ocupam posições sociais conside-
radas inferiores, subalternas, dominadas – como é o caso dos
sentidos que a nomeação povo envolve –, estamos nos refe-
rindo às interfaces das representações de caráter sociais e sub-
jetivas. Ao mesmo tempo em que se exibirá representações do
popular pautadas nas convenções sociais e no debate que gira
em torno delas, lidaremos também com uma complexa rede
de efeitos individuais e coletivos gerada pelo consumo dessas
representações.
A questão anteriormente formulada conduz a dois recor-
tes importantes. O primeiro centra a interrogação sobre as
relações entre a representação do popular em um determina-
do programa de televisão e a história de quase meio século da
sociedade brasileira. O segundo estabelece, como aspecto cen-
tral de sua análise, os formuladores das representações soci-
ais das telenovelas de maiores índices de audiência da mais
significativa emissora de TV no Brasil. Desse modo, garante-
se a possibilidade de examinar ângulos mais concretos e pal-
páveis do fenômeno da representação social, a fim de evitar
estratégias que possam descambar pela inflacionada interpre-
tação dos sentidos mediáticos.
Certa ocasião, Sílvio de Abreu e Jorge Fernando criaram
um núcleo de pobres em Torre de Babel (1998) que, logo de
saída, associou pobreza com a violência e prisão em tons as-
saz naturalistas Instantaneamente tocou-se na sensibilidade
de seus telespectadores que não estavam muito acostumados
ao tom utilizado nesse tipo de gênero, que em geral valoriza a
associação entre pobreza, trabalho e ascensão social de ma-
neira suave e idealista. Os autores, todavia, não deixaram de
interferir na fala cotidiana dos telenoveleiros (os consumido-
res habituées de telenovelas) das camadas populares, que pas-
saram a rir de si mesmos apoiados no personagem pobre Ja-
manta (Cacá Carvalho): um bobo que, de tão bobo, se fazia
de esperto.
Não foram os primeiros realizadores de telenovelas, e não
serão os últimos, a se deparar com essas respostas do público.
34 Telenovela e Representação Social

Faz parte do trabalho de todo e qualquer realizador de teleno-


velas a escolha de elementos do conjunto de representações
sociais do popular disponíveis para inventarem seus persona-
gens e narrativas. Eles também sabem que produzir telenove-
las significa estar atento às possíveis respostas às formas de
expressão que utilizaram para representar o popular. No caso
brasileiro, poderíamos ressaltar a idéia da escolha que eles,
realizadores, fizeram, tendo em vista as diversas pressões da
emissora, exigências estéticas e as condições de trabalho que
o fazer telenovela implica9. Escolhem, a partir desses limites e
possibilidades, posturas que gostariam que fossem difundidas,
destacadas e, até mesmo, polemizadas na sociedade. No caso
das telenovelas brasileiras (e elas não seriam os únicos casos
dos programas de televisão no Brasil) observa-se ainda que as
representações da identidade nacional, o brasileiro, eram cen-
trais, sugerindo assim relações do popular com a questão do
nacional.
A telenovela, um dos primeiros programas de uma TV re-
cém-criada no Brasil, data de meados dos anos 50, momento
de importante recrudescimento do projeto de modernização
da sociedade brasileira. No Brasil, Canclini (1989) e Ortiz
(1988) indicam que o modernismo – a expressão no campo
artístico da modernidade – estava associado a um desejo de
modernização instituinte da identidade nacional, onde origi-
nou-se a célebre frase “só seremos modernos se formos nacio-
nais” (Ortiz, 1988, p. 4). E aqui Canclini aponta uma dimen-
são muito curiosa, que poderá ser observada, mais adiante,
no campo da telenovela. Essa relação do modernismo com a
modernização foi cenário para o surgimento no Brasil de in-
telectuais, escritores e artistas envolvidos e preocupados com
os conflitos internos da sociedade, assim como, com as difi-
culdades de se comunicarem com o povo (Canclini, 1989, p.
72). Em vários casos, diz o autor, o modernismo cultural, “em
vez de ser desnacionalizador, deu o impulso e o repertório de
símbolos para a construção da identidade nacional” (p. 78).

9 Lauro César Muniz lembra que no Brasil a telenovela é escrita durante sua exibição,
permitindo, por isso, interferências de todo tipo (L. C. Muniz, em Mesa-redonda,
ECA/USP, 1998). Ver também Pallottini (1998).
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 35

Deve ser retido, dessa análise feita por Canclini, que no bojo
do processo de modernização e urbanização acentuadas se de-
senvolveu um modernismo cada vez mais mesclado com a ex-
pansão do mercado, da indústria cultural e com um debate
sobre a identidade nacional. Nesse contexto, forma-se um con-
junto de profissionais, especialmente os mais ligados aos movi-
mentos culturais e aos grupos de esquerda, dispostos a enfren-
tar os desafios colocados pelo projeto de “socializar a arte, co-
municar as inovações do pensamento a públicos majoritários,
com o intuito de fazê-los participar da cultura hegemônica” (p.
83). Mais do que isso, não se furtaram em desenvolver as práti-
cas artísticas de produção e consumo mais adequadas às ques-
tões postas por um Brasil que se modernizava.
O depoimento de Dias Gomes é exemplar. Ele conta que
fazia “parte de uma geração de dramaturgos que levantou
entre os anos 50 e 60 a bandeira quixotesca de um teatro po-
lítico e popular. Esse teatro esbarrou numa contradição bási-
ca: era um teatro dirigido a uma platéia popular, mas visto
unicamente por uma platéia de elite. De repente a televisão
ofereceu-me essa platéia popular.”10 Oferta que não obteve
recusa. Dias Gomes passou a ocupar posições de destaque
nessa nova prática, tornado-se um dos principais defensores,
criadores e renovadores de uma teledramaturgia genuinamen-
te brasileira.
Isso tudo leva a crer que formular representações sociais
do popular nas telenovelas estaria associado aos debates tra-
vados no campo artístico e político sobre a questão nacional,
onde se conferia aos realizadores de programas massivos um
importante papel na conformação da idéia de homem brasi-
leiro (Kehl, 1979). Uma função que pretendia ser regulada
pelo Estado e, de algum modo, pelos grupos do campo artísti-
co que o ser nacional e popular conferia prestígio e reconheci-
mento (Ortiz, 1988 e Ortiz et al, 1989).
Observações e referências teóricas a partir das quais os
formuladores de telenovelas serão compreendidos como em-
presários morais, peritos e profissionais da produção simbóli-
10 Entrevista com Dias Gomes, Opinião, 26 de fevereiro a 4 de março de 1973, p. 19,
citado por Ortiz (1988, p. 180).
36 Telenovela e Representação Social

ca, responsáveis pela formulação das representações sociais


na cultura de consumo que fundamenta na contemporanei-
dade as sociedades capitalistas ocidentais. Um dos muitos dis-
positivos mediadores das representações sociais do popular que
cotidianamente é ofertada aos sujeitos telespectadores.

Empresários Morais
A idéia de empresários morais é sugerida por Featherstone e
faz juz a essa função de construção de representações sociais
coletivas conformadoras do sentimento de communitas, de um
consenso moral capaz de gerar, em meio a uma sociedade
complexa e bastante diferenciada, o sentimento de valores
comuns compartilhados, um ideário unificador, capaz de trans-
por as diferenças, divisões e exclusões sociais. O interessante
dessa acepção é que não se pressupõe a existência da efetiva
integração. Com efeito, seriam sentimentos e experiências ali-
mentadas por momentos liminares que criariam a sensação
de integração (os exemplos podem ir da coroação que recria a
monarquia às olimpíadas que recriam os traços nacionais e
mundiais). Se não existe a possibilidade de uma efetiva inte-
gração nacional, seria importante considerar a constante for-
mulação de representações sociais que possam favorecer os
momentos e as experiências emocionais propiciadoras de uma
comunidade imaginada. Assim sendo, são de extrema impor-
tância os profissionais que exercem essa função – os empre-
sários do consenso moral.
Essas reflexões levam a supor que as representações soci-
ais do popular colaboram na construção de um ideário nacio-
nal, onde as noções de povo e de homem brasileiro fornecem
experiências emocionais e reflexivas que podem anular as dis-
tâncias sociais, construindo a experiência comum e compar-
tilhável de nação e de povo brasileiro. Os empresários morais,
participando do processo de construção e desconstrução des-
sas representações, teriam condições de fazer existir o que
Featherstone chama de cultura comum. Para efetivá-la, lan-
çam mão de representações passadas, traçando continuida-
des e descontinuidades com o presente, ao mesmo tempo, que
as transformam em valores que poderiam orientar práticas
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 37

futuras. Isso tudo calcado em um movimento que, mesmo


tocando nas diferenças, ressaltaria os sentimentos que as ate-
nuariam ou, até mesmo, eliminariam.
Para exemplificar, basta acompanhar os dois principais
temas das telenovelas – o amor e a ascensão social – para
perceber que a trajetória dos protagonistas é construída de
modo a acentuar os pontos que fornecem as pistas para a
felicidade (Kehl, 1979 e 1986) em uma trama de aventuras
enoveladas por conflitos, contradições e dificuldades de todo
tipo (Vink, 1989). A felicidade, quase como um lubrificante
do motor das convenções sociais, capaz de gerar, apesar das
diferenças, das desigualdades e das dificuldades, sentimentos
de caráter unificador, pacificador e alentador. No caso parti-
cular dos personagens que representam o popular, observa-se
uma tendência à defesa do trabalho, da dedicação, da hones-
tidade e da cordialidade como matrizes de homem ou mulher
pobre que conseguiria ascender socialmente. Ainda nessa li-
nha, a experiência amorosa tende a tratar dos valores que
deveriam nortear o casamento, a criação de filhos, a sexuali-
dade de forma a imprimir os modelos mais modernos e valio-
sos da família brasileira, aqueles entrelaçados com o projeto
mais geral de ascensão social, o projeto de “melhorar de vida”.
Quanto à questão espacial (e suas atribuições culturais e
semânticas) que alimenta o ideário nacional, observa-se, no
caso das telenovelas da TV Globo, a ênfase em determinadas
regiões que representam mais os pontos comuns a tantas ou-
tras, e não para as suas particularidades. Como se os locais
tivessem que ser representados de modo a apagar as diferen-
ças espaciais, a fim de facilitar experiências de identificação,
mais como brasileiros do que como cariocas, paulistas ou
baianos.
Definir os realizadores como empresários morais é, portan-
to, percebê-los como formuladores de representações sociais
que contemplam dimensões éticas e morais articuladoras do
passado, presente e futuro, concernentes ao nacional e ao
popular na sociedade brasileira em processo de moderniza-
ção. Essa como uma das dimensões das representações soci-
ais do popular nas telenovelas. Como pensá-las a partir de
38 Telenovela e Representação Social

outra dimensão a elas associada, aquela que toca no estilo de


vida dos sujeitos telespectadores? Estilo de vida que remete a
um universo de símbolos vinculados aos modos de organizar
a vida cotidiana e a intimidade inseridos no discurso da tele-
novela que divulga um modo de falar, de se vestir, de morar, de
comer, de cultivar amizades, de viver em família.

Peritos Realizadores de Telenovelas


Pergunta que reporta a Giddens e aos seus aportes sobre a
reflexividade na modernidade. Acepções que permitem refle-
tir sobre os consensos morais e a construção dos estilos de
vida nas sociedades marcadas pela permanente descontextua-
lização das representações sociais.
A modernidade, segundo Giddens, instituiria uma nova
experiência espacial e temporal. O tempo, com o advento da
modernidade, não seria mais construído a partir dos diferen-
tes espaços e lugares, ao contrário, seria padronizado em es-
calas mundiais e regionais. O espaço também não mais se
restringiria à noção de lugar (cenário físico da atividade soci-
al), sendo construído a partir de referências gerais. Por isso,
Giddens (1991, p. 27) afirma que as relações espaço-tempo-
rais “fomentam relações entre outros ‘ausentes’, localmente
distantes de qualquer situação dada ou interação face a face”.
O processo desarticulador das dimensões de tempo e espaço
foi denominado de “descontextualizador11 dos sistemas sociais”,
quer dizer, deslocamentos12 “das relações sociais de contextos
locais de interação” que se reestruturariam mediante extensões
indefinidas de tempo-espaço (p. 27). O processo rearticulador
dessas dimensões foi denominado de recontextualizador – em
outras palavras, a “reapropriação ou remodelação de relações
sociais” descontextualizadas, que estariam associadas (embora
parcial ou transitoriamente) a “determinadas condições locais

11 Na tradução do livro As conseqüências da modernidade (1991) usou-se o termo


“desencaixe” para traduzir o termo disembedding. Opta-se aqui pela tradução portu-
guesa do livro Modernidade e identidade pessoal (1994) que cunhou um termo mais
apropriado e claro: a descontextualização.
12 No sentido de “tirar de um lugar para outro”, mais do que no sentido de desvio e
transferência.
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 39

de tempo e lugar” (p. 83). Importante ressaltar que na proposi-


ção de Giddens existe um movimento de tensão permanente en-
tre esses processos – “mecanismos” de descontextualização e “con-
textos” de recontextualização – onde ambos, ao interagirem en-
tre si, estabeleceriam a recriação, consolidação e a destruição do
outro. Como se o primeiro deles indicasse os processos sociais
mais gerais que garantiriam aos sujeitos a possibilidade de pen-
sar e viver a descontextualização inerente à modernidade. O se-
gundo sinalizaria as situações e as práticas sociais nas quais tais
mecanismos se desenvolvem. Por isso, a relação contraditória,
dialética e complementar que os anima.
Este movimento de descontextualização se desenvolveria
a partir de dois importantes dispositivos: as “garantias simbó-
licas13” e os “sistemas periciais”14. Ambos conformariam um
sistema promovedor da recontextualização, que Giddens de-
nominou de abstrato. As garantias simbólicas operariam por
meio de objetos que funcionariam como meios de troca. Eles
possuiriam um valor padrão que permitiria circular de ma-
neira a estabelecer redes de trocas entre grupos e indivíduos
os mais diversos, em qualquer conjuntura particular. Para o
autor, o dinheiro seria uma das garantias simbólicas mais im-
portantes da modernidade. Pensar as garantias simbólicas sig-
nifica também definir os sistemas periciais que as constroem:
os sistemas técnico-profissionais organizadores da vida soci-
al, material e ambiental. Os conhecimentos elaborados e difu-
ndidos a partir das relações entre os dispositivos descontextu-
alizadores conformariam o que se chama de representações
sociais recontextualizadoras que balizariam as práticas soci-
ais e os comportamentos dos grupos ou indivíduos.

13 Novamente, faz-se a opção pela tradução portuguesa indicada na nota anterior. O


termo “fichas simbólicas” será substituído por “garantias simbólicas”. Vale aqui men-
cionar a explicação do tradutor: “a expressão symbolic takens foi traduzida por
garantias simbólicas de modo a evitar a redundância implícita em sinais simbólicos e
outras alternativas semelhantes, mantendo todavia o sentido de ‘algo que garante e
assegura’” (1994, p. xii). Os sistemas peritos também foram alterados para sistemas
periciais.
14 Considero esses elementos muito propícios à reflexão sobre os processos de cons-
trução das representações sociais, os quais permitiriam uma aproximação necessária
com a “sociologia de produtores” de Bourdieu.
40 Telenovela e Representação Social

Seguindo essa linha de raciocínio, os sistemas periciais são


responsáveis pelas garantias simbólicas e pelos outros senti-
dos demarcados pela reflexividade particular da modernidade.
A reflexividade15 torna-se vital frente à sua capacidade de
semantizar o passado e a tradição, fornecendo os conheci-
mentos que os indivíduos e grupos demandariam para se in-
serir em um cotidiano que cada vez mais se desarticularia desse
passado. A marca da reflexividade moderna estaria, assim,
relacionada ao movimento frenético de exame e reformulação
contínua das práticas sociais. Isso ocorre porque, de acordo
com Giddens, “somente na era da modernidade a revisão da
convenção é radicalizada para se aplicar (em princípio) a to-
dos os aspectos da vida humana, inclusive à intervenção tec-
nológica no mundo material. (...) [Sendo] característico da
modernidade não uma adoção do novo por si só, mas a supo-
sição da reflexividade indiscriminada. (...) Por isso, estamos
em grande parte em um mundo que é inteiramente constitu-
ído por meio de conhecimento reflexivamente aplicado, mas
onde, ao mesmo tempo, não podemos nunca estar seguros de
que qualquer elemento dado deste conhecimento não será
revisado. (...) Desta forma, a reflexividade da modernidade de
fato subverte a razão pelo menos onde a razão é entendida
como o ganho de conhecimento certo” (p. 45).
Os media, “expressão e instrumento das tendências
descontextualizadoras e globalizadoras 16 da modernidade”
(Giddens, 1993, p. 23), seriam um sistema pericial que desen-
volveria tanto os dispositivos da descontextualização quanto
experiências recontextualizadoras – processos vitais para a
sociabilidade dos indivíduos e grupos na vida moderna. A cons-
trução dessas redes de sociabilidade pressuporia a construção
15 Giddens sustenta que a reflexividade seria uma característica da ação humana.
Pois seria a partir do conhecimento que o indivíduo avaliaria e orientaria a sua ação,
ou seja, “todas as formas de vida são parcialmente constituídas pelo conhecimento
que os atores têm delas (1991, p. 45).
16 Apoiando-se em Giddens (1993, p. 19): “A globalização da atividade social que a
modernidade ajudou a fazer surgir é, em certos sentidos, um processo do desenvolvimento
de laços mundiais [...] de um modo geral, o conceito de globalização pode ser melhor
compreendido como exprimindo aspectos fundamentais de distanciação do espaço-tem-
po. A globalização diz respeito à intersecção da presença e da ausência, o entrelaçar de
eventos sociais e relações sociais ‘a distância’ com as contextualidades locais.”
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 41

dos sujeitos que dela fazem parte, atuando na tessitura e sen-


do tecidos por elas.
Quais seriam as interfaces entre os media e os indivíduos e
grupos? Um dos principais pontos de acesso desse sistema perici-
al, no caso da televisão, pode ser pensado como os peritos ou
“profissionais da produção simbólica”, na acepção de Bourdieu,
que tanto produzem a publicidade, os diversos programas da grade
televisiva, quanto o dramatizam (as âncoras dos telejornais, os
atores de telenovelas, os animadores de auditório). Um outro
ponto de acesso refere-se à “experiência mediada” que o texto
audiovisual da televisão proporciona. Nesse caso, salienta os sen-
tidos formuladores das garantias simbólicas presentes nas nar-
rativas, nos personagens, nos meios de expressão usados, ou seja,
as mediações narrativas e discursivas das expectativas, dos uni-
versos simbólicos e competências textuais dos telespectadores.
Giddens incisivamente afirma, não haverá sociabilidade,
e muito menos uma ação eficaz dos media, sem a confiança
nos dispositivos de descontextualização, pois eles são respon-
sáveis pelas experiências de recontextualização fundadoras
da reflexividade constituinte dos sujeitos sociais. O interes-
sante dessa asserção é o seu corolário: os media não apenas
dependem da confiança, mas também a constroem. E dessa
maneira tomam parte da formulação do que Giddens deno-
mina de intimidade, alimentando a idéia de que a telenovela
teria aí um papel a cumprir.
O eu seria um projeto reflexivo porque os indivíduos na
modernidade vivem a experiência de serem obrigados a inter-
rogar e a duvidar do passado, do presente e do futuro para
resolverem os problemas dispostos por um cotidiano mutante,
perigoso e desafiador. A permanente construção do eu neces-
sita de um conjunto significativo de recursos reflexivos ade-
quados às mais diferentes demandas. Por isso, cabe nessa no-
menclatura – recursos reflexivos – qualquer meio que possa
estabelecer essa função: da telenovela ao confessionário, dos
manuais de auto-ajuda aos psicanalistas17.

17 O exemplo dado por Giddens (1993, p. 42) – a invenção da dieta – é elucidativo.


“A dieta está ligada à introdução de uma ‘ciência’ da nutrição e, portanto, ao poder
disciplinar no sentido de Foucault; mas também situa a responsabilidade pelo desen-
42 Telenovela e Representação Social

As proposições de Giddens referem-se à idéia de que hoje


os indivíduos, em especial aqueles que vivem nos centros ur-
banos, sentem-se compelidos a buscar informações, conheci-
mentos que os habilitem para as muitas mudanças18 e dificul-
dades apresentadas pelos dias de hoje, de modo a aplacar a
ansiedade, o medo e a angústia que esse novo contexto mobi-
liza19. Os media produzem uma profusão desses recursos re-
flexivos. Alguns deles apresentariam um grande potencial de
influência, tais como, no caso da sociedade brasileira contem-
porânea, os programas de televisão, dentre eles os talk shows,
os programas de auditório e as séries ficcionais, em especial,
as telenovelas, por proporcionarem uma vasta gama de re-

volvimento e pela aparência do corpo diretamente nas mãos do seu proprietário. O


que um indivíduo come, mesmo entre os mais materialmente carentes, torna-se uma
questão reflexivamente impregnada de seleção dietética. Hoje em dia, toda a gente
nos países desenvolvidos, com exceção dos muito pobres, faz ‘uma dieta’. Com a
eficiência cada vez maior dos mercados mundiais, não somente o alimento é abun-
dante, mas uma variedade de gêneros alimentícios está disponível o ano todo para o
consumidor. Nestas circunstâncias, o que se come é uma escolha do estilo de vida,
influenciado, e construído, por um imenso número de livros de culinária, tratados
médicos populares, guias nutricionais etc.”
18 É preciso trazer à tona a preocupação diante da leitura, que aqui é feita, de
Giddens, a qual sugere um papel muito acentuado na capacidade de mudança posta
pelo conhecimento. Há que se desconfiar deste caráter inovador, pois as forças sociais
internalizadas e inconscientes que tenderiam à reprodução e à legitimação, tão bem
colocadas no conceito de habitus de Bourdieu, pareceriam muito relativizadas. To-
mando como base Bourdieu, pode-se dizer que o cuidado analítico que se estaria
reivindicando sugere que o habitus “engendra representações e práticas mais ajusta-
das do que aparentam as condições objetivas das quais são produto (...) a
harmonização do habitus implica a produção de práticas mutuamente ajustadas –
fora de toda referência consciente à norma (jurisdicismo), ou de toda estratégia ou
cálculo intencional (interacionismo). (...) [ou seja], não basta, por exemplo, tomar
consciência da condição de classe para se libertar das disposições duráveis que ela
produz” (Romano, 1987, p. 71-2).
19 Traz-se aqui uma elucidativa menção de Canclini (1985, p. 69): os migrantes
camponeses, em muitos casos indígenas, quando sentem que sua cultura local (a
língua, os hábitos cotidianos, as crenças sobre a natureza) dificultam a participação
na vida urbana, tenderiam a receber da cultura de massa a informação necessária
para entender e atuar ‘corretamente’ em suas novas condições, para saírem do isola-
mento e deixarem de ser ‘inferiores’. Sugere que a televisão é atraente para os migrantes,
até mesmo no que se refere à publicidade de objetos que não podem ser comprados,
devido ao serviço que ela presta às classes populares atuando como ‘manual de
urbanidade’, já que ela indica como se vestir, comer e expressar os sentimentos da
cidade.
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 43

cursos ficcionais, afetivos, emocionais e conceituais para a


“criação de uma narrativa reflexivamente ordenada do eu”20
(p. 41).
As telenovelas, recursos reflexivos, oferecem aos seus
telespectadores representações sociais de ordem moral com
vistas a gerar confiança necessária nas instituições sociais
(Giddens, 1991, p. 100). A defesa do popular e da Nação Bra-
sileira, por exemplo, tem estado, em geral, associada à defesa
de práticas de governabilidade e de projetos sociais e políticos
mais gerais (Kehl, 1979 e Ortiz et al, 1989 e Mattelart, 1989).
Todavia, uma outra dimensão se apresenta: as telenovelas, ao
mesmo tempo, narram a ordem moral e desenvolvem repre-
sentações sociais destinadas a um uso pessoal, íntimo, pois
deveriam atender às questões que os telespectadores enfren-
tam no cotidiano, as ansiedades, medos e pressões que ten-
dem a dificultar a construção do que Giddens chama de auto-
identidade.
Essa dupla dimensão das telenovelas conduz a uma refle-
xão sobre os realizadores de maneira a contemplar esse lugar
de peritos da modernidade portadores da capacidade de fo-
mentar experiências emocionais e reflexivas de ordem moral
e cultural para sujeitos que precisam estar reinventando a
narrativa que os instituem. Proposições que corroboram uma
concepção de telenovela vista como um gênero ficcional de
fins lucrativos que mira a intimidade do telespectador e exige
do realizador a capacidade de atingir esse alvo.
O que se observa nas telenovelas da TV Globo são perso-
nagens às voltas com os problemas da vida amorosa, do am-
biente de trabalho, da vida doméstica e familiar. O que faz o
marido diante da mulher adúltera? (Rei do gado, 1996); O
que a mulher casada deve fazer diante do marido que age
com violência? (Roque santeiro, 1985); O que a família deve
fazer com o filho drogado? (Torre de Babel, 1998); O que fazer
diante do filho homossexual? (A próxima vítima, 1995); O que
fazer para descobrir o filho (a) que desapareceu? (Explode

20 Importante lembrar quer a telenovela pensada como um recurso reflexivo não


aponta para uma preocupação teórica com a questão da recepção. O consumo dos
recursos reflexivos produzidos pelos media não é objeto deste trabalho.
44 Telenovela e Representação Social

coração, 1995); O que fazer diante do marido que assumiu a


homossexualidade? (Por amor, 1997); O que fazer diante do
preconceito racial? (Pátria minha, 1994). Perguntas que atra-
vessam uma narrativa baseada em dois grandes temas – o
amor e a ascensão social – sem, contudo, perder um caráter
pedagógico e informativo, que chega a indicar o melhor pro-
cedimento e os melhores serviços sociais disponíveis. As peri-
pécias narrativas que surgem a partir desses grandes temas
mesclam-se com as inúmeras questões anteriormente exem-
plificadas, num permanente entrecruzamento com formas
diversas de construir as diferenças sociais e subjetivas presen-
tes nos estilos de vida dos personagens. A mulher que drama-
tizava o adultério em Rei do gado, por exemplo, era rica e ele-
gante (manequim ‘na vida real’), pintava os cabelos de louro
e as unhas tinham fortes cores escuras. Características que
foram alvo de interesse das telespectadoras que desejavam
incorporá-las em seus modos de exposição dos corpos (Revis-
ta da TV – Jornal do Brasil, 21.9.1996).
O que esses exemplos articuladores de temas de ordem
moral e subjetiva, entrelaçados por feixes contínuos de situa-
ções relacionadas ao amor e à ascensão social, sugerem para
a análise dos estilos de vida? E o que incitam a pensar sobre o
papel dos realizadores na construção das representações do
popular?
Segundo Giddens (1994, p. 73), o estilo de vida na alta
modernidade é definido como um conjunto mais ou menos
integrado de práticas individuais rotinizadas, reflexivamente
abertas às mudanças. Elas seriam incorporadas pelo indiví-
duo não só porque são úteis, mas principalmente porque dão
“forma material a uma narrativa particular de auto identida-
de”. Os estilos de vida reportam-se ao que se faz no cotidiano,
às escolhas conscientes ou não do que se vai vestir, comer,
observar, conversar, ouvir, assim como das formas de mover o
corpo, de pronunciar as palavras, de olhar. O que Giddens
mostra é que essas práticas seriam elementos que os indivídu-
os usam para se explicarem, para se relacionarem com seus
pares, formarem grupos de referência seja pela alteridade, seja
pela exclusão do diverso, ou melhor, elementos presentes na
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 45

formulação dos seus caminhos de felicidade e dos critérios da


falta dela, dimensão do futuro do presente que Giddens cha-
mou de hipóteses e planos de vida (p. 73).
Os media na cultura de consumo contemporânea seriam
fomentadores de potenciais estilos de vida, oferecendo uma
gama enorme deles em função de interesses precisos das em-
presas que produzem do sabonete ao sorvete, do papel higiê-
nico a cerveja. Empresas que sabem que para vender os seus
produtos devem vender com eles estilos de vida (Ortiz, 1994).
E as telenovelas foram criadas tendo em vista essa difusão de
estilos e produtos. Todavia, deve-se ter cuidado para não hiper-
dimensionar os efeitos e o poder das telenovelas na constru-
ção da auto-identidade dos indivíduos, já que uma série de
outros fatores intervem nas escolhas por eles realizadas
(Giddens, 1994, p. 74-75). Destaca-se, por exemplo, aqueles
fatores concernentes ao que Giddens chamou de traços
estruturantes.
Bourdieu tem sido um autor importante por demonstrar
a complexidade desses traços na construção social dos estilos
de vida, mostrando, entre outras coisas, como interferem as
desigualdades sociais e de classe nas disposições sociais e in-
conscientes geradoras do gosto que define os estilos de vida.
Alguns dos exemplos oferecidos por Bourdieu merecem
ser recuperados. Ele mostra que o estilo de vida de um grupo
estaria presente nos móveis da residência e nas formas de se
vestir. Isso “não é somente porque estas propriedades sejam a
observação das necessidades econômicas e culturais que de-
terminam sua seleção; é também porque as relações sociais
objetivadas nos objetos familiares, em seu luxo ou em sua
pobreza, em sua distinção ou em sua vulgaridade, em sua
beleza ou em sua feiúra, se impõem pela mediação das expe-
riências corporais tão profundamente inconscientes, como o
tranquilizador e discreto roce de unas mosquetas de cor natu-
ral ou o frio e descarnado contato com uns linóleos gastos y
chillones, o acre odor, forte e áspero de la lejía ou os perfumes
imperceptíveis como um cheiro negativo. Cada lugar, com sua
linguagem, expressa o estado presente e inclusive o passado
daqueles que o ocupam, a segurança sem ostentação da ri-
46 Telenovela e Representação Social

queza herdada, a escandalosa arrogância dos novos ricos, a


discreta miséria dos pobres ou a dourada miséria dos ‘paren-
tes pobres’ que pretendem viver por cima de suas possibilida-
des econômicas” (Bourdieu, 1991, p. 75).
Um outro exemplo versa sobre o sentido estético. Ele apon-
ta para o fato de que “as posturas objetiva e subjetivamente
estéticas que supõem, por exemplo, a cosmética corporal, o
vestido ou a decoração doméstica, constituem outras tantas
ocasiões de provar ou de afirmar a posição ocupada no espa-
ço social, como aquela marca que se deve ter ou a distância
que se deve manter. Resulta evidente que todas as classes soci-
ais não estão igualmente impelidas e preparadas para entrar
neste jogo de rechaços que rechazan otros rechazos, de supera-
ções que superam outras superações. As estratégias que ten-
tam transformar as disposições fundamentais de um estilo de
vida em sistema de princípios estéticos, as diferenças objetivas
em distinções eletivas, as opções passivas – constituídas na
exterioridade pela lógica das relações distintivas – em postu-
ras conscientes e eletivas concernentes a grupos de referência
estéticos, estas e aquelas estão reservadas, de fato, aos mem-
bros da classe dominante, em especial, a alta burguesia. In-
clui-se nesses grupos, que teriam melhores condições, os in-
ventores e profissionais da estilização da vida, ou seja, os ar-
tistas: os únicos que estão em condições de fazer de sua arte
de viver uma das belas artes” 21 (p. 55).
Os realizadores das telenovelas serão considerados profis-
sionais e inventores da estilização da vida. Uma estilização
que funciona como um recurso reflexivo indispensável aos
indivíduos imersos em contextos pós-tradicionais, onde a tra-
dição não seria mais o principal ordenador da auto-identida-
de. O que não se quer deixar de ressaltar é que, como lembra
Giddens (1994, p. 77), esse fenômeno da alta modernidade –
a estilização ordenadora da auto-identidade – seria “mais ou
menos universal”, ou seja, independe das posições dos indiví-
duos no espaço social, apesar de a partir delas e da biografia e
trajetória dos indivíduos, ocorrerem diferenças e formas di-

21 A tradução deste trecho é de responsabilidade da autora.


Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 47

versas de lidar com as múltiplas ofertas de estilos de vida e


com os dispositivos de escolha, de apropriação, e de transmu-
tação dos mesmos em auto-identidade.
Em resposta às perguntas anteriormente formuladas, in-
formaremos que tanto o amor quanto a ascensão social fun-
cionam como temas gerais e centrais que permitem aos reali-
zadores desenvolverem narrativas que tecem um feixe contí-
nuo de relações entre personagens, situações, ações e senti-
mentos que trafegam de maneiras diversas entre aspectos de
caráter mais social e estruturante e aspectos mais subjetivos e
particulares. O tema amor versa sobre a vida afetiva, erótica e
sexual dos indivíduos, onde os desejos e as necessidades indi-
viduais podem gerar um constante estado de tensão com as
convenções sociais (Giddens, 1993). A ascensão social, desde
o século XVIII umas das principais metas do indivíduo que
acreditava poder aliar o progresso pessoal ao progresso social
(Martín-Martín-Barbero, 1987), permite articular os proces-
sos individuais de construção da auto-identidade com as suas
dimensões estruturantes, elementos externos a eles, mas que
neles interferem.
Desse modo, os realizadores de telenovelas podem lançar
mão de questões que tocam, a partir desses dois temas, os
problemas individuais causados pelas mudanças sociais e pe-
las novas exigências postas pela contemporaneidade: a
reflexividade. Ao fazê-lo, os realizadores de telenovelas for-
mulam representações que funcionam como um conjunto de
informações, modelos e referências de uma profusão de esti-
los de vida que mesclam as exigências do mercado com as
pistas necessárias para escolhas formadoras da auto-identi-
dade. O que se crê é que recursos reflexivos mediáticos, como
a telenovela, seriam tanto mais importantes para os indivídu-
os quanto mais desprovidos eles forem de capital econômico,
cultural, simbólico e social. Nessa medida, as representações
sociais do popular não apenas diriam respeito às dimensões
morais e ideológicas, mas também, às práticas individuais que
se voltam para a construção da intimidade, onde o popular
seria também uma importante referência para qualificar o
esperável e o não-esperável daqueles que experimentam as
48 Telenovela e Representação Social

maiores dificuldades para atingir as metas sociais e afetivas


hegemonicamente desejáveis.
O exame da representação social do popular nas teleno-
velas, um dos recursos reflexivos mediáticos de maior audiên-
cia da televisão brasileira, não deve, portanto, perder o foco
nas associações da dimensão da estetização da vida com as
múltiplas ofertas de sentidos do popular. Centrar o foco nessa
direção significa ainda investigar agentes realizadores dessas
representações, nesse caso, os autores e diretores de telenove-
las. E, ao fazê-lo, parte-se do pressuposto que eles são peritos
empresários morais formuladores de representações sociais
fundamentais para o processo de construção da auto-identi-
dade contemporânea. Investigar esses profissionais da repre-
sentação implica, assim, uma oportunidade de examinar as
“pedagogias e guias populares de estilos de vida” (Featherstone,
1995, p. 60).

Profissionais da Produção Simbólica


O termo – profissionais da produção simbólica amplia a com-
preensão do papel dos realizadores contemporâneos de tele-
novelas nas formulações sobre o popular. Isso porque já não
mais centra-se a atenção somente no sentimento de comuni-
dade, nos estilos de vida e representações constituintes da in-
timidade por eles gerados. Essa nova noção abarca melhor o
papel dos realizadores de telenovelas no processo de produ-
ção dessas representações sociais.
A noção – profissionais da produção simbólica – envolve
todos aqueles que se dedicam a formulação e difusão de re-
presentações sociais conformadoras do que Bourdieu chama
de capitais culturais e simbólicos: professores, psicólogos, pro-
fissionais dos media, esteticistas, médicos e muitos outros. Os
capitais seriam, grosso modo, recursos socialmente construídos
e subjetivamente adquiridos ou incorporados pelos agentes
sociais para entenderem o mundo que os cerca a fim de nele
poderem atuar. Os capitais culturais referem-se, mais especi-
ficamente, aos conhecimentos em geral, transmitidos pela fa-
mília e por outras instituições sociais, entre os quais se desta-
cariam os saberes vinculados à ciência e às artes. O capital
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 49

simbólico diz respeito ao significado dos recursos possuídos


pelos agentes, quer dizer, a distinção e reconhecimento social
a eles associados. Seguindo o raciocínio, quanto maior o con-
junto de objetos, condutas, formas de pensar e falar conside-
radas legítimas, maior o capital simbólico desses agentes e
grupos. Nas sociedades capitalistas ocidentais, as marcas das
desigualdades sociais e dos sistemas de dominação vigentes se
definiriam na posse desses capitais pelos indivíduos e grupos
sociais: quanto mais inferior a posição na escala social, me-
nor a capacidade de aquisição e ampliação dos capitais cultu-
rais e simbólicos, por exemplo. Nessa medida, não é de se es-
tranhar que a representação social do popular esteja na maior
parte das vezes associada à ignorância, ao analfabetismo, à
submissão e à humilhação.
Os profissionais da produção simbólica se especializam
na formulação e difusão das representações sociais, que teri-
am um “poder específico e simbólico de fazer ver e de fazer
crer, de levar à luz, ao estado explícito, objetivado, experiênci-
as mais ou menos confusas, imprecisas, não formuladas, até
informuláveis, do mundo natural e do mundo social, e desse
modo, fazê-las existir” (Bourdieu, 1988, p. 151). Tem-se, as-
sim, um repertório socialmente construído sobre o popular e
as idéias associadas, como a pobreza, a violência e o medo, de
que os sujeito sociais fazem uso para lidarem com esses repre-
sentantes do mundo popular. Interessante notar que tais re-
presentações sociais, ou as formas de se fazer o popular exis-
tir na vida dessas pessoas, tendem a ser suficientes para expli-
car e orientar o comportamento diante delas, independente-
mente do fato de essas representações estabelecerem nexos
de proximidade com as experiências concretas e cotidianas
dos sujeitos que vivem a pobreza.
Proposição que leva a uma outra e importante perspecti-
va para pensar a questão da representação social: o poder de
não apenas fazê-las existir, mas instituí-las como verdade. Se
a verdade é um lugar de lutas, como diz Bourdieu (1996, p.
83), tais profissionais se confrontariam em lutas que buscam
impor “princípios legítimos de visão e de divisão do mundo
natural e do mundo social”.
50 Telenovela e Representação Social

Representações sociais do popular tratam em geral de in-


divíduos, grupos ou classes sociais em posição de subalter-
nidade, inferioridade, exclusão, contrapostas a posições re-
presentantes do outro pólo, o poder legítimo e dominador, os
portadores do reconhecimento e da distinção social. Profissio-
nais da produção simbólica que se dedicam, direta ou indire-
tamente, a elaborar as representações do popular postam-se
a partir das diferenças, antagonismos, complementariedades
e contradições entre esses dois pólos. Nessa medida, a repre-
sentação social expressa uma posição dos agentes que lutam
entre si para construir não apenas a representação da reali-
dade, mas, por meio dela, a realidade mais adequada aos seus
interesses (Lenoir, 1993, p. 101).
No caso das representações sociais oferecidas pelos media,
Robert Stam (1995, p. 72) cunhou o termo campo de batalha
simbólico. Reportando-se às representações mediáticas ficcionais
que trabalham com um universo simulado, o autor aponta para
o fato que essas representações homologariam as da esfera polí-
tica, contribuindo para que questões de imitação e representa-
ção escorreguem facilmente para “questões de delegação e voz.”
Ponderações que, mais uma vez, incentivam observar as repre-
sentações do popular nas telenovelas a partir dessa idéia de cam-
po de disputas, de um jogo que envolve agentes formuladores de
representações do popular, dispostos em diversas posições, as quais
indicam perspectivas mais ou menos próximas dos interesses
daqueles que poderiam ser reunidos sob a categoria popular –
como massa, pobres, classes populares, classes trabalhadoras,
negros, índios e tantas outras. Além disso, as representações não
significam apenas pontos de vista nesse campo de disputas, mas,
também, possibilidades de repercussão positiva ou negativa nos
indivíduos, grupos ou classes representadas.
Stam esclarece que quanto maior o poder dos grupos re-
presentados, maior tende a ser o poder de interferência na
construção de representações mais diversificadas e não estru-
turadas em alegorias negativas (p. 73). Desse modo, freqüen-
temente existiria um “ônus da representação” para aqueles
grupos de pouca força política e representatividade, com séri-
as implicações para o cotidiano desses representados. Segun-
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 51

do o autor, a maior ou menor correspondência ou alusão aos


aspectos auto-referentes dos representados estaria associada
a existência de uma organização dos representados que possa
criticar e reivindicar determinadas táticas de representação
mais comprometidas com seus interesses. O ocorrido durante
a exibição da telenovela Pátria Minha (1994, Gilberto Braga e
Dênis Carvalho – TV Globo) é elucidativo. Uma cena conside-
rada racista por várias organizações do Movimento Negro
gerou uma polêmica de ressonância na grande imprensa. As
organizações exigiam que os negros não fossem representa-
dos como passivos diante do preconceito, exigindo novos en-
caminhamentos para os personagens na telenovela. O que de
fato ocorreu. Tal evento demonstrou o poder dessas organiza-
ções nas disputas pela auto-representação, deixando claro
como as reações e as respostas dos envolvidos dependem da
conjuntura histórico-política do país e das organizações dos
representados.
O cinema foi o campo de batalha simbólico dos media
analisado por Stam, onde a simulação e o representar diziam
respeito aos dispositivos particulares da economia discursiva
de um texto audiovisual que transformava o negro real em
ficção e alimentava a realidade social. Aspecto também pre-
sente quando se analisa a simulação e a representação do
popular numa obra cultural comercial como a telenovela. Para
fins deste trabalho, chamar a atenção para essas particulari-
dades significa que se busca desenvolver uma reflexão que
não desarticule a representação dramatizada do popular na
telenovela com as posições dos realizadores frente às repre-
sentações sociais do popular que lhes serviriam de referência.
Essa tem sido uma tensão própria dos profissionais da pro-
dução simbólica que se dedicam à formulação de representa-
ções sociais oferecidas por meios de expressão que lida com
linguagens muito particulares, possuidoras de regras próprias
de funcionamento que interferem na construção das represen-
tações sociais. Essa tensão coloca o seguinte problema: como
analisar as representações sociais do popular ofertadas aos teles-
pectadores pela telenovela, sem desvinculá-las das regras pró-
prias de funcionamento desse gênero ficcional televisivo? Como
52 Telenovela e Representação Social

contemplar as particularidades do gênero sem desconsiderar


todos os aspectos externos ao texto audiovisual que nele inter-
ferem, as pressões da empresa, do Estado, da Igreja, das orga-
nizações dos movimentos sociais, sem esquecer das pressões
geradas pelas condições específicas de trabalho?
A sociologia dos produtores desenvolvida por Bourdieu
mostra um caminho instigante quando sinaliza as polariza-
ções metodológicas que, ou defendem uma análise das repre-
sentações do popular a partir somente do exame dos discur-
sos das telenovelas, ou defendem as análises pautadas apenas
nos elementos externos conformadores das telenovelas. Os
primeiros, afirma Bourdieu, conceberiam as obras culturais
“como significações a-temporais e formas puras que pedem
uma leitura puramente interna e a-histórica, que exclui qual-
quer referência (tida como redutora e grosseira) a determina-
ções históricas ou a funções sociais” (Bourdieu, 1996, p. 55)22.
Os defensores da segunda posição, ainda segundo Bourdieu,
conceberiam a “relação entre o mundo social e as obras cul-
turais na lógica do reflexo, vinculando diretamente as obras
às características sociais dos autores (à sua origem social) ou
dos grupos que eram seus destinatários reais ou supostos, e
cujas expectativas eles supostamente atenderiam” (p. 59)23.
A opção pela sociologia dos produtores permite, assim,
superar a necessidade de decidir por uma dessas duas linhas
interpretativas as quais, como demonstra Bourdieu, não se
fertilizam mutuamente. A escolha da primeira significaria cir-
cunscrever a análise ao próprio texto, à sua teia discursiva,
desconsiderando qualquer relação com o processo de produ-
ção e difusão das telenovelas, sem falar na relação com os
seus autores e leitores empíricos.

22 A teoria neo-kantiana das formas simbólicas e a hermenêutica estruturalista


representam essa posição para Bourdieu. Dentre os que compartilham dessa última
posição, Bourdieu cita Foucault e os formalistas russos como “únicos” formuladores
de uma rigorosa proposição analítica das obras culturais.
23 De acordo com Bourdieu, os estudos mais exemplares dessa posição são os de
inspiração marxista, os quais buscam relacionar as obras à visão de mundo ou aos
interesses sociais de uma classe social. O artista como uma “espécie de médium”. Bourdieu
salienta que tal perspectiva, mesmo que tenha chegado a determinar as funções da
obra, não avançou na compreensão da sua estrutura (Bourdieu, 1996, p. 59-60).
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 53

Caso se escolhesse a segunda opção, o caráter reprodutor


da ideologia dominante seria privilegiado, perdendo de vista
os conflitos e embates vividos pelos escritores, diretores, ato-
res e demais profissionais da equipe de produção com a emis-
sora, a censura, a Igreja. Tal perspectiva não abarcaria, por
exemplo, os profissionais que tentaram não perder de vista a
oportunidade de se posicionarem politicamente mediante as
formas como representavam o popular em suas telenovelas.
Por onde segue Bourdieu quando pretende examinar es-
ses limites? Segue pela noção de “campo”, ou seja, aplicando
um modo de pensar relacional ao espaço social dos produto-
res – o microcosmo social no qual se produzem as obras cul-
turais. Segue por um caminho analítico que propõe costurar
a questão da lógica interna dos objetos culturais, sua estrutu-
ra de linguagem, com as relações objetivas entre os agentes
ou instituições que os elaboram. Pois, segundo o autor, é a
partir das relações de forças específicas e de lutas, que “têm
por objetivo conservá-las ou transformá-las, que se engendram
as estratégias dos produtores, a forma de arte que defendem,
as alianças que estabelecem, as escolas que fundam” (p. 60).
As críticas que Bourdieu formulou às proposições de
Foucault ajudam a esclarecer esse caminho analítico. Foucault
diz que “nenhuma obra existe por si mesma, isto é, fora das
relações de interdependência que a vinculam a outras obras.
Ele chama de ‘campo de possibilidades estratégicas’ o ’sistema
regrado de diferenças e de dispersões’ no interior do qual cada
obra singular se define. Contudo, ele se recusa a buscar fora da
ordem do discurso o princípio de elucidação de cada um dos
discursos que aí se encontram inseridos” (p. 56). Portanto, na
perspectiva de Foucault, os produtores culturais têm em co-
mum um sistema de referências comuns, marcas comuns, algo
que Bourdieu chamou de espaço de possíveis. Mas o problema
para Bourdieu é que Foucault afirma a autonomia absoluta
desse “campo de possibilidades estratégicas”, recusando como
ilusão doxológica a pretensão de encontrar no que chama de o
“campo de polêmica” e nas “divergências de interesses ou de
hábitos mentais entre os indivíduos” o princípio explicativo do
que se passa no “campo das possibilidades estratégicas”. Ou
54 Telenovela e Representação Social

seja, Foucault transferia para “o céu das idéias as oposições e os


antagonismos que se enraizam nas relações entre os produto-
res culturais e os que se utilizam das obras analisadas”. Tal
crítica, pontua Bourdieu, não pretenderia “negar a determina-
ção específica exercida pelo espaço de possíveis, já que uma das
funções da noção de campo relativamente autônomo, dotado
de uma história própria, é dar conta disso. O que não é possível
aceitar é a visão da ordem cultural, a epistème, como um siste-
ma totalmente autônomo” (p. 57)24.
A escolha dos caminhos analíticos propostos por Bourdieu
objetiva uma articulação das principais exigências de aborda-
gens internalistas e sociologizantes. Nessa medida, o exame das
representações sociais do popular nas telenovelas aqui propos-
to será efetuado tanto a partir da consideração do espaço soci-
al que as organiza, quanto de uma aproximação das estratégi-
as discursivas que as constroem. Contudo, enfatiza-se a pers-
pectiva sociologizante, sem deixar de lado a análise da teleno-
vela selecionada, a fim de estabelecer as relações entre as re-
presentações do popular nela dramatizadas e a posição dos re-
alizadores, em especial a do escritor, no campo da telenovela.

Campo da Telenovela: uma proposta de análise


O campo da telenovela é, a partir da perspectiva de Bourdieu,
atravessado por outros campos, em especial o político, o artís-
tico e o econômico, que lhes seriam estruturalmente homó-
logos25. O campo da telenovela é também um conceito que

24 Crítica semelhante vale para os formalistas russos que apenas considerariam o


sistema de obras, a rede de relações entre os textos, a intertextualidade e, como
Foucault, seriam obrigados a encontrar no próprio sistema dos textos o princípio de
sua dinâmica (p. 58).
25 Os campos guardariam homologias estruturais e funcionais entre si. Tais homologias
seriam observadas nas práticas dos agentes e das instituições que os compõem. As
estratégias e os interesses alimentadores das práticas traduziriam as relações entre
dominantes e dominados, entre conservadores e vanguardistas, assim como os meca-
nismos de reprodução e subversão das leis que regeriam o campo. O que não se deve
perder de vista é que essas homologias observáveis assumem particularidades próprias
nos campos específicos. Pois, Bourdieu insiste, a noção de campo foi construída para
captar a particularidade na generalidade e a generalidade na particularidade. Desse
modo, refletiria-se sobre os traços estruturalmente equivalentes que constituem o
campo político ou qualquer outro campo (exemplifica o autor que analisava o campo
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 55

permitiria observar as particularidades das práticas dos agen-


tes envolvidos nos processos de realização e circulação do gê-
nero e dos pontos de vista26 que defendem. Tanto essas práti-
cas quanto os pontos de vista expressariam os princípios ge-
radores das diferenças que fundam o campo, em especial, os
princípios ordenadores das disputas pelas definições legítimas
de telenovela.
Essa idéia do campo da telenovela ser atravessado por
outros campos deriva também do fato de o conceito de campo
de Bourdieu pressupor o que ele chama de espaço social, isto
é, um conjunto aberto de campos relativamente autônomos,
que podem estar direta ou indiretamente subordinados ao
campo da produção econômica. A gênese do Estado seria
inseparável do processo de unificação dos campos, que se tra-
duziria na constituição progressiva do monopólio estatal da
violência física e simbólica. Posto que concentra um conjunto
de recursos materiais e simbólicos, o Estado teria a capacida-
de de regular o funcionamento dos diferentes campos, seja
por meio de intervenções financeiras, seja mediante interven-
ções jurídicas (p. 51).
Um dos primeiros trabalhos sobre telenovela que a anali-
sou a partir da noção de campo foi o livro de José Mário Ra-
mos e Renato Ortiz (1989) – Produção industrial e cultural da
telenovela. O uso de tal noção buscava interpretar as relações
entre as dimensões estéticas e econômicas das telenovelas e
os agentes sociais envolvidos na sua produção. Observaram
os autores que existiam diferenças, disputas e polêmicas en-
tre esses agentes que interferiam na concepção e na elabora-

literário), sem precisar desconsiderar os lugares de lutas que guardam apostas espe-
cíficas e perseguem poderes e prestígios absolutamente particulares (Bourdieu, 1988).
26 Vale lembrar que “a posição ocupada no espaço social, isto é, na estrutura de
distribuição de diferentes tipos de capital, que também são armas, comanda as repre-
sentações desse espaço e as tomadas de posição nas lutas para conservá-lo ou
transformá-lo”. (...) O espaço social engloba o agente como um ponto, “mas esse
ponto é um ponto de vista, princípio de uma visão assumida a partir de um ponto
situado no espaço social, de uma perspectiva definida em sua forma e em seu conteú-
do pela posição objetiva a partir da qual é assumida. O espaço social é a realidade
primeira e última já que comanda até as representações que os agentes sociais podem
ter dele” (p. 27).
56 Telenovela e Representação Social

ção das telenovelas, assim como na concepção que tinham


deles mesmos como artistas. O estudo incorporou a noção de
campo na análise para apreender as relações entre os tipos de
telenovelas e as posições que os produtores envolvidos ocupa-
vam no “interior dos [seus] sistemas de produção e de circula-
ção”. Posições essas que demarcavam uma hierarquia entre
eles, definindo graus de consagração e sistemas classificatórios
de suas práticas e obras.
Esse trabalho de Ramos e Ortiz foi um importante ponto
de partida, pois já examinava o lugar desses produtores cultu-
rais, em especial dos escritores e diretores, no processo de cons-
trução das representações sociais do popular nas telenovelas.
Um lugar que contemplava o ponto de vista desses agentes
realizadores, de modo a superar as análises que os concebiam
mecanicamente articulados aos interesses das emissoras, às
pressões econômicas, políticas e partidárias que os transfor-
mavam em canais transmissores de suas posições ideológicas.
Contudo, Ortiz e Ramos apontaram alguns problemas no
que diz respeito ao uso mais abrangente da noção de campo.
Disseram que essa noção, na forma como estava ancorada no
campo conceitual de Bourdieu, não permitia dar conta da
questão da criatividade e dos projetos de uma cultura brasilei-
ra. Não dava conta porque Bourdieu não contemplava as obras
culturais da esfera industrial e comercial, reportando-se ape-
nas à esfera dos bens restritos, ou seja, às obras de arte. Tal
enfoque significava um limite, já que a telenovela se refere a
um campo regido pelo mercado, o qual não contemplaria a
“autonomia de criação que faz com que a lógica do campo
seja construída pelos seus pares” (p. 158). Essa postura não
os levou a explorar em profundidade a noção de campo, le-
vando-os apenas a selecionar alguns elementos a ela articula-
dos. Entretanto, e apesar disso, cunharam o termo campo da
telenovela.
Contribuições mais recentes de Bourdieu abriram cami-
nho para uma discordância quanto aos limites do uso da no-
ção de campo para o estudo das telenovelas. O autor mos-
trou, ao analisar o campo literário francês, que a oposição
entre a dimensão desinteressada e pura do fazer artístico e a
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 57

dimensão comercial estruturariam o campo da produção cul-


tural e artística como um todo.
O campo artístico seria pensado a partir da idéia de
subcampos27 correspondentes a cada uma dessas dimensões,
criados em função das particularidades das obras, dos objetos
de disputa, dos públicos e dos sistemas de consagração. Os
subcampos manteriam entre si uma outra oposição, denomi-
nada de secundária, ortogonal a precedente, referente à quali-
dade das obras e à composição social do público. Examinar o
subcampo da telenovela significa então considerar feixes de
oposição que o estruturam, em especial, às dimensões artísti-
cas e desvinculadas da dimensão comercial, associadas com as
características das obras e do público (Bourdieu, 1996, p. 65).
O universo de práticas que envolvem as telenovelas não diz
respeito ao palco das posturas que definem a arte a partir da
recusa do econômico. Entretanto, observa-se uma forte preo-
cupação dos agentes em não deixarem de definir e buscar a
qualidade artística do gênero telenovela, apesar de saberem da
força do econômico na sua constituição. Essa busca leva a crer
que o espaço social de produção e difusão da telenovela, por
princípio, é um subcampo do campo artístico referenciado à
rede de práticas e agentes circunscritos aos dispositivos de pro-
dução e circulação dos produtos televisivos. Pode-se, inclusive,
denominá-lo de campo da telenovela a partir do momento em
que fosse possível observar a existência de leis próprias de seu
funcionamento: atuando em suas obras, agentes e instituições
particulares, mediatizando a incidência de outros campos e
subcampos (p. 62). Afirmação que remete ao pressuposto: os
limites e a autonomia relativa dos campos é um produto histó-
rico, cujas fronteiras não podem ser determinadas a priori, ape-
nas mediante a investigação empírica (p. 43).
Acredita-se que esses novos aportes de Bourdieu permiti-
ram esclarecer: os problemas concernentes à criatividade e
aos projetos de cultura brasileira são eixos centrais tanto do
campo artístico brasileiro, quanto do campo da telenovela. As
dimensões comerciais contingenciam a dimensão criativa e
27 O campo e o subcampo teriam para Bourdieu a intenção de precisar uma certa
hierarquia e dependência entre campos quando comparados entre si.
58 Telenovela e Representação Social

artística dos realizadores de telenovelas sem, no entanto, eli-


minar a luta pela maior autonomia de criação e pela constru-
ção de critérios de consagração de obras e realizadores.
Um outro limite, apontado nos estudos sobre a autonomia
do campo artístico realizado por Bourdieu, foi elaborada por
Canclini (1989). Ele aponta o fato de que o sociólogo francês
não conseguiu captar a dimensão da cumplicidade que os agen-
tes precisam desenvolver para viabilizarem a crença na auto-
nomia do campo. Canclini referia-se aos artistas que muitas
vezes “suspendem seus enfrentamentos para se aliarem pela
defesa da ‘liberdade de expressão’”. O autor foi a Howard Becker
para refletir melhor sobre essa questão da autonomia do cam-
po artístico, já que estudos do sociólogo americano combina-
vam a afirmação de uma autonomia criadora com o reconhe-
cimento dos laços sociais que a condicionavam (p. 37).
Sem querer alongar essa reflexão, diria que Canclini
soube detectar a importante questão da autoria das obras
quando elas são de caráter coletivo, ou seja, quando con-
templam colaboradores e processos criativos coletivos. Fato
inegável, admitindo-se que, efetivamente, “as tecnologias
mais avançadas interviram criativamente no registro e re-
produção da arte, tornando mais imprecisa a fronteira en-
tre produtores e colaboradores” (p. 38). Agrega, desse modo,
à dimensão da cooperação, a dimensão da competição. Mas,
ao fazê-lo, deixa claro que as leis de funcionamento do cam-
po também são construídas a partir do fazer particular ao
mundo da arte e ao mundo dos artistas. Um fazer que mes-
cla a cooperação e a competição. “Na verdade, toda arte
supõe a confecção dos artefatos físicos necessários à cria-
ção de uma linguagem convencional compartilhada, o trei-
namento de especialistas e espectadores no uso dessa lin-
guagem, e na criação, experimentação ou mescla desses
elementos para construir obras particulares” (p. 37). Essas
ponderações de Canclini reforçaram a escolha de um olhar
analítico que pode contemplar a formação das leis próprias
do campo das telenovelas, de forma a não excluir as parti-
cularidades expressivas, técnicas, artísticas e cooperativas
que o fazer telenovela exige, acreditando que essas dimen-
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 59

sões também são importantes para o processo de constru-


ção dos sentidos do popular.
Uma investigação empírica viabilizadora da construção do
campo da telenovela supõe uma análise histórica da formação
de suas obras e seus realizadores, com o objetivo de cartografar
a importância e o papel de cada um dos agentes e instituições
envolvidas. Com isso, pode-se descortinar de que maneira as
lógicas de outras práticas, como a econômica, a política e a
artística, foram interferindo no processo de construção da tele-
novela e em qual momento uma certa autonomia se consti-
tuiu, gerando a expressão de lógicas particulares que regeriam
a criação desse gênero ficcional. Essa abordagem histórica ga-
rantirá, ainda, a identificação do que Bourdieu chamou de es-
tados do campo, ou seja, marcos temporais caracterizados pelo
conjunto de condições particulares de exercício de determina-
das formas de conceber e produzir as telenovelas.
A construção da lógica particular do campo da telenovela
pressupõe o exame da rede de relações objetivas entre as posi-
ções dos agentes, as suas disposições (habitus) e as escolhas
estéticas, políticas e culturais que fazem acerca do que seja
uma telenovela. Apenas a observação dessa rede permite le-
vantar os princípios geradores das diferenças e pontos de en-
lace que fundamentam a lógica do campo da telenovela.
Afirma-se aqui que ao se investigar as lógicas de repre-
sentação do popular efetuada pelos realizadores de telenove-
las, a partir da dinâmica do campo específico que as engen-
dra, está-se buscando as maneiras de observar as relações entre
a “realidade objetiva da sociedade como um todo e a ação dos
sujeitos” (Ortiz, 1983, p. 15). De acordo com Bourdieu (1972,
p. 65), as práticas dos agentes expressam um estado particu-
lar, conjuntural, dessa estrutura, por meio das relações entre
a estrutura objetiva que define as condições sociais de produ-
ção do habitus (que engendra as práticas) e as condições de
exercício desse habitus.
Para localizar as posições dos agentes é preciso identifi-
car, de início, a histórica forma de distribuição dos capitais no
campo – recursos possuídos pelos agentes que os diferenciam
dos demais –, classificando-os em função da importância e do
60 Telenovela e Representação Social

peso que teriam, para depois identificar as posições dos agen-


tes que expressam os tipos e o volume dos capitais que possu-
em. Os recursos básicos seriam os econômicos, os culturais, o
social (adquirido das redes de relações) e o simbólico (a auto-
ridade e o reconhecimento). A idéia de campo da telenovela
supõe que, a partir das particularidades do espaço de produ-
ção do gênero, ocorre uma diferenciação em função de certos
capitais específicos. Possuí-los significa um importante dife-
rencial de poder aos seus portadores.
As posições que os agentes ocupam no espaço social mais
geral e nos espaços mais particulares, nos campos específicos
que circulam, estão também relacionadas à história dos agen-
tes, ao senso prático que os caracteriza, ao modo de agirem.
Esse senso prático ou habitus seria, para Bourdieu, uma dis-
posição inconsciente, fruto das instituições e grupos sociali-
zadores da história do agente, que teriam viabilizado a interio-
rização histórica de uma série de sistemas de apreciação e clas-
sificação orientadores das suas ações. Os habitus seriam a
expressão das relações entre essa história das posições ocupa-
das pelos agentes e dos capitais que acumulou, ambos forma-
dores do senso prático que orientaria inconscientemente suas
práticas, as escolhas que realizariam para a formulação das
representações.
Um procedimento importante neste trabalho, que permite
flagrar as relações entre as posições, os habitus e as escolhas
dos agentes, é a construção da trajetória dos realizadores de
telenovelas. Ela descreve a série de posições sucessivamente
ocupadas pelo mesmo escritor de telenovelas em estados suces-
sivos do campo. Isso significa que apenas na estrutura de um
campo – ou seja, relacionalmente –, define-se o sentido dessas
posições sucessivas. O sentido seria dado a partir, por exemplo,
do “estar escrevendo” tal ou qual telenovela de determinado
horário, em tal ou qual emissora, de ter participado (ou estar
participando) em tal ou qual grupo (Bourdieu, 1996, p. 71).
A idéia de trajetória busca romper com o fetichismo das
essências, tão bem apontado por Bourdieu, já que se parte do
pressuposto de que a produção do universal é um empreendi-
mento coletivo, submetido a certas regras, e não o produto das
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 61

virtudes miraculosas do gênio criador. Nessa linha, as pulsões


estéticas dos realizadores definem-se sob as limitações e nos
limites da posição que ocupam na estrutura de um estado mui-
to específico de um microcosmo artístico e comercial, histori-
camente situado e datado. Não se privilegia uma narrativa cro-
nologicamente construída de eventos importantes, desde o co-
meço de um percurso de sucesso na vida artística, recheada de
perigos, aventuras, golpes de sorte e de malabarismos. Não se
enfatiza um conjunto coerente e orientado de fatos que expres-
sariam uma intenção subjetiva e objetiva de um projeto (p. 73).
Ao preferir a noção de trajetória busca-se então levantar uma
série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agen-
te (ou um mesmo grupo), em um espaço ele próprio em devir e
submetido a transformações incessantes, na pretensão de su-
perar a noção de vida como uma série única e por si só sufici-
ente de acontecimentos sucessivos (p. 81).
Por isso, os acontecimentos biográficos dos realizadores
de telenovelas serão vistos como alocações e deslocamentos
no espaço social, os quais serão analisados em função dos
diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição dos
diferentes tipos de capital que estão em jogo no campo da
telenovela. Afirma-se, dessa maneira, que não se pode com-
preender a trajetória dos criadores de uma telenovela sem que
se tenha previamente construído os estados sucessivos desse
campo, ou seja, o conjunto de relações objetivas que vincu-
lam os agentes investigados ao conjunto dos outros agentes e
ao espaço de possíveis demarcadores das escolhas das repre-
sentações sociais por eles efetuadas (p. 81).
Para melhor pensar as escolhas que os agentes fazem so-
bre as representações sociais do popular ao longo de suas tra-
jetórias no campo seria importante frisar essa idéia do espaço
de possíveis. Ao debater com Foucault, Bourdieu concorda que
os discursos expressariam um campo de possibilidades estra-
tégicas que os singularizam. Bourdieu recusa, no entanto, a
onipotência explicativa do discurso, que seria o princípio
elucidativo de si mesmo. Ou melhor, os discursos possuem dis-
positivos particulares de funcionamento, mas eles não pres-
cindiriam dos agentes sociais que os realizam. Dando conti-
62 Telenovela e Representação Social

nuidade ao raciocínio, deve-se pensar que “os campos de pro-


dução cultural propõem, aos que neles estão envolvidos, um
espaço de possíveis que tende a orientar sua busca, definindo
o universo de problemas, de referências, de marcas intelectu-
ais (freqüentemente constituídas pelos nomes de personagens-
guia), de conceitos em ‘ismo’, em resumo, de todo um sistema
de coordenadas que é preciso ter em mente – o que não quer
dizer na consciência – para entrar no jogo” (p. 53). Quanto
mais hábil for o agente diante desse sistema, mais profissional
e não amador ele é considerado. “Esse espaço de possíveis é o
que faz com que os produtores sejam ao mesmo tempo situa-
dos, datados, e relativamente autônomos em relação às deter-
minações diretas do ambiente econômico e social” (p. 53).
Com efeito, para compreender as escolhas que os realiza-
dores de telenovelas contemporâneos operam, não é suficien-
te relacioná-las às condições econômicas, tecnológicas e polí-
ticas de produção de suas obras, ou até mesmo aos seus índi-
ces de audiência. Torna-se indispensável referir-se historica-
mente a esses dados a fim de relacioná-los às polêmicas espe-
cíficas, ao universo de pontos em discussão que definem, por
exemplo, se o bom diretor ou escritor de telenovelas deve re-
presentar o popular de forma realista e comprometida com
posturas críticas diante das desigualdades sociais. Nessa me-
dida, “esse espaço de possíveis transcende aos agentes singu-
lares e funciona como uma espécie de sistema comum de co-
ordenadas que faz com que, mesmo que não se refiram uns
aos outros, os criadores contemporâneos estejam objetivamen-
te situados uns em relação aos outros” (p. 54).
Essas afirmações levam a considerar que as representa-
ções sociais do popular escolhidas pelos agentes são
construídas também a partir do que o popular significa no
próprio campo. Se um dos pontos polêmicos deriva do cará-
ter nacional ou não das telenovelas, esse é um aspecto do
espaço de possíveis que mostra a histórica relação entre a
presença do popular nas telenovelas e as estratégias usadas
para representar o ser brasileiro. Como decorrência, faz par-
te dos debates no campo os pontos definidores de estilos e
formas de relacionar o popular com a realidade brasileira
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 63

nas telenovelas. Esse debate mescla-se com as polêmicas so-


bre esta questão desenvolvidas em outros campos, como o
cinematográfico (Xavier, 1993), teatral e literário. Essas con-
trovérsias, um dos importantes elementos dos espaços de
possíveis, contribuiriam nas formas de representar o popu-
lar pelos realizadores de telenovelas.
Em suma, a noção do espaço de possíveis ajuda a relacio-
nar estilos, formatos de telenovelas com o processo de criação
das mesmas, viabilizando uma análise que contemple as di-
mensões internas e próprias do texto. Porém, para evitar que
se concentre a atenção no aspecto artístico e genial dos reali-
zadores das telenovelas, essas escolhas realizadas a partir do
espaço de possíveis precisam ser relacionadas tanto às posi-
ções dos realizadores no campo, quanto ao senso prático
(habitus) que as orientam. Esse é um dos cuidados básicos
que possibilita a observação das relações entre as estruturas
sociais e as ações dos agentes singulares.
As estratégias dos agentes envolvidos nas lutas travadas
no campo da telenovela indicam as suas escolhas a partir da
posição que eles ocupam na estrutura do campo, quer dizer,
na distribuição do capital simbólico específico, instituciona-
lizado ou não (reconhecimento interno ou notoriedade ex-
terna). Escolhas que supõem a mediação das disposições
constitutivas de seus habitus que são relativamente autôno-
mos em relação à posição. Deve-se estar ciente de que, sem
examinar as relações entre as posições e o habitus, não se
poderá compreender as estratégias utilizadas pelos agentes,
assim como, as lutas em torno da conservação ou transfor-
mação da estrutura de distribuição dos capitais simbólicos
particulares ao campo. Lutas que podem perpetuar as re-
gras do jogo ou subvertê-las. Por fim, as lutas entre os agen-
tes também dependeriam da história fundada pelo tipo e
qualidade dos debates em torno das questões centrais do
campo, ou seja, daquilo que Bourdieu denominou de espaço
de possibilidades herdado de lutas anteriores que definem as
tomadas de posição possíveis e a evolução da produção
(Bourdieu, 1996, p. 63-4).
64 Telenovela e Representação Social

Representações do Popular nas Telenovelas: Principais Hipóteses de Trabalho


A telenovela é uma obra cultural comercial que envolve um
número grande de profissionais da produção simbólica (es-
critores, diretores, atores, cenógrafos, produtores de arte,
figurinistas e muitos outros) que a elaboram dentro de um
sistema hierárquico de trabalho, a partir do qual se define a
sua autoria. A definição dessa autoria não é muito fácil já
que, além de ser coletivamente produzida, ela é de longa du-
ração e aberta (elaborada ao longo da sua exibição) na maio-
ria das vezes, sendo por isso sensível às mais diversas interfe-
rências que podem mudar os rumos e a qualidade da narrati-
va audiovisual. Apesar disso, observa-se que os profissionais
que detêm a maior capacidade de decisão e a maior responsa-
bilidade diante do produto final são o diretor-geral e o escri-
tor, sendo que, em geral, ambos contam com mais de um co-
laborador. Observa-se, também, que existe uma tendência a
considerar o escritor como o grande definidor das escolhas
que conformam uma telenovela. Tanto que elas são divulgadas
como a história de fulano, o escritor. Essas características do
processo de formulação da telenovela permitem assim definir
que o autor tende a ser o realizador com o maior poder de
definição das representações sociais oferecidas ao público28.
Todavia, analisar uma obra audiovisual implica em não
desconsiderar o papel daquele que transformaria um script
em texto audiovisual. Por isso é que se pretende analisar o
papel tanto do escritor quanto do diretor-geral, dando uma
centralidade ao primeiro.
Essa determinação dos autores é importante para
viabilizar a seleção daqueles que serão objeto da reflexão que
pretende verificar as relações entre as trajetórias dos realiza-
dores no campo da telenovela e as representações sociais do
popular em suas obras. Importa ainda salientar que a posição
dos autores da obra no campo não explica automaticamente
as estratégias narrativas que constroem a dramatização do
popular nas telenovelas. Elas ajudam a compreender as esco-
lhas das formas narrativas audiovisuais realizadas no espaço

28 Ver também Lisandro Nogueira (2002).


Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 65

de possíveis particular a um determinado estado do campo,


mas não é o bastante para analisar as estratégias audiovisuais
utilizadas. Mesmo não sendo o foco central de atenção, é im-
portante lembrar que saber quem escreve e quem dirige não
significa saber quem enuncia a narrativa quando se assiste à
telenovela (Vanoye e Goliot-Lété, 1994, p. 42).
Essa diferença é fundamental e inscreve a figura do autor-
modelo. Eco (1994) explica que para um texto narrativo ser
lido não se precisa conhecer quem empiricamente o escreveu.
Assim como quem escreve não precisa conhecer todos aqueles
que lerão a história. Isso porque o próprio texto se encarregaria
de conduzir e criar o seu leitor. Essa condução seria uma tarefa
do autor-modelo, e esse leitor criado pelo texto seria o leitor-
modelo. Ambos significam estratégias, conjunto de instruções
textuais, elementos que só poderiam ser extraídos do próprio
texto. Nessa medida, o escritor e o diretor das telenovelas cons-
truiriam juntos instruções textuais que não se confundem com
suas trajetórias, mas que lhes são tributárias, já que as estraté-
gias textuais estão relacionadas ao espaço de possíveis ofereci-
do pelo campo artístico (os estilos narrativos, as formas fílmicas)
e pelas particularidades do campo da telenovela.
Tais ressalvas conduzem ao primeiro aspecto que define
uma das primeiras hipóteses de análise do popular nas teleno-
velas. Quais seriam os principais elementos do espaço de pos-
síveis que os escritores e diretores têm lançado mão para rea-
lizar as telenovelas? Sabe-se que para responder a essa per-
gunta é importante levantar as mais significativas represen-
tações sociais do popular presentes no campo político, cientí-
fico e artístico. Desse modo, pode-se mapear as posturas bási-
cas e centrais que comporiam o espaço de possíveis dos escri-
tores e diretores.
Os limites impostos pelas condições deste trabalho condu-
ziram ao exame das representações sociais do popular pre-
sentes apenas no melodrama e nos romances-folhetins fran-
ceses. O objetivo deste mapeamento foi configurar as mais
importantes representações sociais e formas de narrar o po-
pular que pudessem estar servindo de referência aos realiza-
dores de telenovelas, em especial, os escritores.
66 Telenovela e Representação Social

A análise das representações sociais do popular nas tele-


novelas estará, portanto, articulada à análise das escolhas dos
realizadores num espaço de possíveis artístico, político e cul-
tural que semantizaria o popular. Escolhas limitadas a um
determinado estado de possíveis do campo da telenovela e à
posição que ocupam no campo da telenovela e no espaço so-
cial. Pressupostos que conduzem a uma interessante hipótese
de Bourdieu que será aqui contemplada: se as tomadas de
posição ou escolhas relacionadas às posições dependem, em
sua forma e conteúdo, de interesses específicos ligados, tanto
ao ser participante do campo da telenovela, quanto à posição
ocupada no mesmo, tentaremos estabelecer os nexos entre a
hierarquia das escolhas efetuadas e a hierarquia das origens
sociais que estariam na base das posições sociais dos realiza-
dores (Bourdieu, 1988, p. 153 e 1996, p. 72).
Abordaremos os realizadores de telenovelas – escritores e
diretores-gerais em particular – como agentes oriundos do que
Bourdieu chama de pequena-burguesia, mais especificamen-
te dos grupos denominados de novos intermediários culturais.
Boa parte deles desenvolveu uma trajetória que os levou a uma
posição bem diferente da original, pois passaram a contar com
recursos econômicos de grande monta e capital simbólico ex-
pressivo. O que Bourdieu pergunta é se haveria relação entre
as origens sociais dos realizadores e a disposição de escolhe-
rem uma ou outra representação social do popular. Segundo
Bourdieu (1988), esta relação seria observável.
Uma premissa inicial diz que a origem social pequeno-bur-
guesa levaria os realizadores (inconscientemente falando) a prá-
ticas ambíguas frente à burguesia e ao povo, já que eles experi-
mentariam essa ambigüidade29 desde suas origens. Uma primei-
ra característica dessa ambigüidade vem da leitura de Feather-

29 A ambigüidade proveniente da posição que ocupariam: ao mesmo tempo podem se


pensar com poderes e privilégios específicos das classes dominantes, já que são deten-
tores de um volume considerável de capital cultural, e saber que não possuem o
capital econômico necessário para de fato serem membros das classes dominantes.
Estariam assim na posição de dominados diante daqueles que detêm o capital econô-
mico, os mecenas modernos, travestidos em complexos dispositivos do mercado cultu-
ral contemporâneo.
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 67

stone, por ter explorado as especificidades dos novos intermediá-


rios culturais na cultura de consumo contemporânea.
Os novos intermediários culturais também dizem respeito
aos profissionais da produção simbólica que se especializa-
ram na formação de novos gostos e experiências culturais, na
dupla via da produção e da divulgação. Essa preocupação cons-
tante e estruturante com o gosto e as novas experiências cul-
turais, os teriam levado a “uma atitude de aprendizes perante
a vida”, e teriam levado alguns a um fascínio com “a identida-
de, a apresentação, a aparência e o estilo de vida”. A venera-
ção pelo estilo de vida artístico e intelectual seria tão grande
que eles inventariam conscientemente uma arte de viver, na
qual o corpo, a casa e o carro seriam como uma “extensão de
sua persona, que precisaria ser estilizada para exprimir a indi-
vidualidade do portador” (Featherstone, 1995, p. 90).
Uma das características desse novo grupo social, que se
pretende destacar, refere-se à tendência do grupo associar o
fomento de novos gostos e estilos de vida com o movimento de
confronto com “algumas das velhas distinções e hierarquias
simbólicas que giram em torno da polarização alta-cultura e
cultura popular” (p. 71).
Os novos intermediários culturais tenderiam a agir como
perturbadores tanto das antigas virtudes pequeno-burguesas
(como o consumo austero e disciplinado), quanto da missão
cultural de direita (que canonizaria a alta cultura). Tenderi-
am também a defender o lazer como jogo criativo, a explora-
ção emocional narcísica e a construção de relacionamentos
paradoxais, (podendo, por exemplo, ser um puritano de dia e
um playboy à noite). Para muitos, o movimento de contracul-
tura dos anos 60 foi uma importante referência, por ter sido
um dos palcos deste confronto. O consumo era defendido como
experiência vinculada ao prazer, aos desejos alternativos, ao
excesso e à desordem, numa clara contraposição aos valores
que regeriam a dita missão cultural de direita, quer dizer, a
racionalização, a mercantilização e a modernização da cul-
tura defendidas no final do século XIX.
Esse confronto entre o culto e o popular estaria relaciona-
do à posição paradoxal e ambígua desse grupo. Estaria atraído
68 Telenovela e Representação Social

pela onda crítica e transgressora que se associa ao carnavales-


co e aos excessos liminares da cultura popular. Formas de viver
que estimulariam a agitação, as emoções descontroladas e os
prazeres físicos grotescos diretos e vulgares da comida farta, da
bebida embriagante e da promiscuidade sexual (p. 41-3). Po-
rém, estaria, também, preso às exigências das “pretensões
civilizadoras e universalizantes” e das “hierarquias simbólicas
dominantes”, que canonizam o culto e professam o autocontrole
e o permanente cultivo do capital cultural.
A experiência paradoxal desse grupo estimulou Featherstone
a buscar em Norbert Elias e em Raymond Williams interessan-
tes veios analíticos. Estes permitiram refletir sobre a experiên-
cia do paradoxo pequeno-burguês a partir das idéias de fascí-
nio e medo, sedução e repugnância que se teria diante do popu-
lar. A massa, a multidão, a turba, a plebe, o vulgar, as camadas
populares, a classe trabalhadora, têm sido, em geral, nomea-
ções que identificam grupos que tenderiam a provocar um sen-
timento de aversão e repugnância nos grupos sociais pequeno-
burgueses, porquanto a democracia e o crescimento econômi-
co social teriam gerado uma mistura, em especial nos centros
urbanos, que os ameaçavam. Dois sentimentos se destacam: o
medo de perder o autocontrole conquistado depois de um lon-
go e penoso investimento e a repugnância diante daqueles po-
pulares que simbolizavam a necessidade visceral da distinção
que os guiava30. Não se pode deixar de assinalar que apenas o
auto-controle habilitaria o distanciamento de si, a capacidade
de refletir sobre o mundo, de cultivar-se, de adquirir o capital
cultural que permitiria ao pequeno-burguês a mudança de po-
sição social.
Essa idéia da repugnância, proveniente dos estudos de
Norbert Elias, traz à baila o processo civilizatório que vem
conformando o gosto e o estilo de vida pequeno-burguês. Um
30 Esses valores estariam circunscritos a um espaço social regido por relações
assimétricas de dominação simbólica, que segundo Passeron, compreendem “las rela-
ciones respectivas de los dominantes y de los dominados com la exclusión (con los que
excluen, com los que los excluyen y con lo excluido), (...) y los dominados tienem
siempre que hacer respecto de lo que los dominantes les niegam – hagan lo que hagan,
por lo demás: resignación, denegación, contestación, imitación o rechazo” (Passeron e
Grignon, 1991, p. 51-52).
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 69

processo que privilegiaria o controle das emoções, a capaci-


dade de desenvolver o gosto de forma comedida e distanciada,
sempre em contraposição ao excessivamente emocional, sim-
ples, animalesco e vulgar. O gosto puro seria valorizado em
detrimento das impurezas do gosto popular, que não contem-
plaria a disciplina e o controle diante das sensações corpóreas,
sexuais e mundanas (p. 187).
Um outro aspecto do paradoxo, pondera Featherstone, é a
presença do fascínio pela cultura das camadas populares, que
se expressaria na interminável representação e duplicação
desse imaginário na literatura, no cinema e na televisão: as
atrações da alteridade da floresta, da feira, do teatro, do circo,
do cortiço e dos selvagens. Desenvolveu-se, ainda, e de forma
articulada ao fascínio, o que Featherstone chamou de um
habitus flexível31, a disposição inconsciente, o senso prático
que habilita os agentes a trafegarem pelo culto e pelo popular,
pelo grotesco e pelo austero, pelo controle e pelo descontrole
das emoções. Isso porque, como bem recorda Featherstone, as
câmeras de vigilância, os guardas e tantos outros agentes da
segurança mostram com freqüência que na cultura de con-
sumo dos shoppings, megashows e tantas outras práticas, é
necessário saber como evocar prazeres e pertubações sem fe-
rir o autocontrole esperável para cada uma delas (p. 45-48).
O ponto a ser destacado nesse momento, depois das muitas
considerações até aqui levantadas, estará calcado na impor-
tância da observação da origem social dos realizadores, pois
31 A noção de habitus flexível construída por Featherstone é aqui pensada como uma
nomeclatura que pudesse caracterizar melhor um certo tipo de senso prático, um
senso mais apropriado ao que Giddens chama de reflexividade moderna. Isso não
significaria que o habitus de Bourdieu não seja flexível, no sentido de fechado a
mudanças. O habitus foi pensado justamente para mostrar a presença das estruturas
sociais nas ações dos sujeitos, ou seja, os modos pelos quais os sistemas de dominação
e controle se fazem presentes nas práticas cotidianas por meio das estratégias
viabilizadoras das regularidades constitutivas destas práticas. Nessa medida, o habitus
flexível diria respeito ao novo senso prático em constituição frente às novas experiên-
cias de determinados grupos sociais, que se conformaram na cultura de consumo
contemporânea. Essas novas disposições seriam necessárias porque as anteriores esta-
riam inadequadas às práticas que lhes correspondem. Fenômeno que Bourdieu deno-
minou de histerese de habitus (Romano, 1987, p. 49). O importante é deixar claro que
para pensar a existência de habitus flexível é necessário articulá-lo às regularidades
práticas que o constituem e o confirmam.
70 Telenovela e Representação Social

ela pode ser um indicador importante para se pensar as rela-


ções entre as disposições dos realizadores (habitus) e os modos
deles representarem o popular nas telenovelas. Maneiras de
construir o popular que podem, por exemplo, trafegar por ver-
tentes mais ou menos idealizadoras que enfatizam a dimensão
fascinante, transgressora, autêntica e /ou por vertentes coerci-
tivas e pedagógicas que enfatizam a dimensão inculta, descon-
trolada e perigosa do popular. Além disso, as hipóteses das rela-
ções de fascínio e repugnância ajudam a pensar não apenas a
existência do habitus flexível dos realizadores de telenovelas,
mas no papel deles diante dos habitus flexíveis em construção
na sociedade brasileira contemporânea. Será que a representa-
ção do popular não estaria tendo, também como atributo, a
valorização da aquisição de habitus mais flexíveis, tendo em
vista serem eles mais adequados às características da cultura
de consumo contemporânea – ritmos acelerados, a necessida-
de constante do novo, a estetização da vida cotidiana?
Quais nuances poderiam ser conferidas a essa análise ao
se contemplar esses realizadores a partir do campo da teleno-
vela? Responde Bourdieu (1988, p. 153): os agentes do campo
cultural tenderiam a reproduzir essas práticas ambíguas frente
ao popular e ao seu contraponto, a burguesia. Fazer parte de
um campo já representaria para Bourdieu um ódio desses
agentes ao vulgar, ao profano, a tudo aquilo que os negaria
como especialistas e profissionais, pois seria a partir do cam-
po que eles se conformariam especialistas. Eles buscariam dis-
tinguir-se do vulgar, de tudo que fosse considerado não-pro-
fissional, isto é, de fora do campo. Essa reação de animosida-
de, Bourdieu chamou de aspecto negativo da representação
social do popular, porque corresponderia aos obstáculos que
dificultariam a imposição de legitimidade esperada e perse-
guida pelos profissionais.
O caráter ambíguo das posições dos agentes, associado às
particularidades dos campos de produção cultural mostra,
entretanto, uma dimensão positiva do popular. Tal dimensão
se conjugaria ao movimento dos profissionais dominados no
campo (em geral, provenientes de regiões dominadas do cam-
po social), que num movimento de inversão de signos positi-
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 71

variam o popular com uma preocupação de reabilitação deles


mesmos, em prol de reconhecimento e enobrecimento.
E, nesse ponto, Bourdieu é categórico: “a maior parte dos
discursos que se fizeram ou se fazem a favor do ‘povo’ provêm
de produtores que ocupam posições dominadas no campo de
produção”. Segue dizendo que as “diferentes representações
do povo aparecem assim como outras tantas expressões trans-
formadas (em função das censuras e normas formais própri-
as de cada campo) de uma relação fundamental com o povo
que depende da posição ocupada no campo dos especialistas
– e, mais amplamente, no campo social – e da trajetória que
os conduziram a essa posição” (Bourdieu, 1988, p. 153).
O exemplo do historiador francês Michelet é elucidativo.
Ele buscou converter o estigma em emblema ao reivindicar
orgulhosamente as suas origens, servindo-se de seu povo e de
seu sentido de povo para se impor no campo intelectual. Quan-
do se tornou um intelectual consagrado estava em condições
de reivindicar com orgulho suas origens pobres, sabendo que
poderia obter de tais origens um aumento de mérito e distin-
ção. Nessa medida, Bourdieu afirma que a exaltação do povo
expressaria tanto o povo como a experiência de um duplo corte
com o popular e com o mundo intelectual (p. 154).
É oportuno retomar a importância da noção de trajetó-
ria. Como ela descreve a série de posições sucessivamente ocu-
padas pelo mesmo produtor em estados sucessivos do campo
analisado, espera-se poder relacioná-la às representações do
popular construídas pelos realizadores investigados, para apre-
ciar a pertinência analítica das instigantes alusões de Bourdieu
anteriormente consideradas.
Por fim, prefigura-se a última das hipóteses para analisar
as relações entre as posições, disposições e representações so-
ciais do popular dos realizadores de telenovelas. Afirmou-se
anteriormente que o campo da telenovela caracteriza-se por
uma autonomia relativa frente ao campo artístico, econômi-
co e político. Essa afirmação implica na observação dessas
interfaces para qualificar melhor o tipo de autonomia possí-
vel no campo da telenovela. Um dado importante porque aju-
da a investigar as relações entre as possibilidades dos agentes
72 Telenovela e Representação Social

se sentirem autorizados a falar do povo ou para o povo e exa-


minar as lutas internas dos campos. Para Bourdieu, quanto
mais frágil for a autonomia relativa do campo, tanto maior
seria esse sentimento que autoriza.
Nos exemplos apontados por Bourdieu, o campo político
se caracteriza por uma autonomia relativamente pequena,
estando assim configurado um espaço onde o uso do popular
teria uma força muito grande, já que se poderia aí jogar com
todas as ambigüidades da palavra povo (classes populares,
proletariado, nação, Volk). No caso do campo artístico relaci-
onado à arte pura, desinteressada (especificamente do campo
literário) se teria uma autonomia relativa maior. O êxito do
popular ganharia, nesse caso, menos força, pois representa-
ria uma forma de desvalorização, desqualificação. Já o cam-
po religioso, apresentaria uma autonomia relativa sob per-
manente contradição entre as exigências internas, que levam
a buscar o raro, o distinguido, o não popular, e as exigências
externas (em geral descritas como comerciais), que levariam
a oferecer à clientela profana, mais desprovida culturalmen-
te, uma religião ritualista, de fortes conotações mágicas e po-
pulares (p. 152-153).
Esse último exemplo aproxima-se, ao que parece, das par-
ticularidades da autonomia relativa do campo da telenovela
no Brasil. A telenovela torna-se, nos anos 70, a principal obra
cultural da televisão, seja pelo seu caráter comercial, seja pela
sua importância artística, cultural e ideológica. Observa-se no
campo da telenovela, tal como no campo religioso, uma con-
tradição particular gerada tanto por exigências internas que
requerem a novidade e o prestígio do ato artístico criador, quan-
to por exigências externas que requerem a expansão desse
mercado. Tais exigências externas seriam regidas por regras
comerciais de caráter industrial, destinadas a públicos cada
vez mais amplos, heterogêneos, e no caso brasileiro, desprovi-
dos de capital escolar e cultural, ou seja, a públicos de fortes
marcas populares. Proposições que poderiam confirmar a hi-
pótese de Bourdieu, de que esse tipo de autonomia do campo
da telenovela traduziria uma tendência à presença de agentes
autorizados a falarem pelo povo e para o povo, sendo tal dis-
Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas 73

posição um importante elemento para analisar o lugar desses


agentes nas lutas internas do campo e as possibilidades dessa
representação do popular oferecer atributos de reconhecimento
e distinção.
75

Representação do Popular
nas Telenovelas

A telenovela é um produto comercial de entretenimento que,


como dizem alguns realizadores de telenovelas, deveria ofe-
recer a oportunidade de sonhar, de emocionar.
O que se perguntava era como fazê-lo? Deve-se apenas
entreter, como faziam os contos de fadas que enfatizavam a
dimensão emocional e afetiva, tematizando especialmente o
amor e a aventura, ou deve-se ir além e ‘fazer pensar’, ‘infor-
mar’, ‘promover novos comportamentos’? E, nesse caso, o que
se deveria fazer quando fosse representar o popular, tradicio-
nalmente associado à pobreza, aos revolucionários ou aliena-
dos, aos trabalhadores ou vagabundos?
Quando se perguntava sobre o que se deveria pensar, in-
formar e fazer, um leque de respostas se abria em função dos
pontos de vista dos indivíduos e grupos sociais envolvidos. Os
representantes do regime militar dos anos 70 propunham a
educação para o desenvolvimento: o progresso articulado a
uma certa ‘moral e cívica’. Aqueles que desejavam lucrar com
o produto telenovela, o mais importante era garantir a audi-
ência associada às informações sobre o que precisava, ou não,
ser mudado na vida dos telespectadores, em função do que
deviam consumir para comer, adornar o corpo, descansar,
casar. Aqueles envolvidos com as mudanças sociais, de cunho
revolucionário ou não, estavam preocupados em fazer da te-
lenovela um meio de se pensar sobre os problemas pessoais,
sociais, econômicos que necessitavam ser alterados, numa ten-
tativa de esclarecimento e de ‘conscientização’, desejosos de
novas práticas e uma nova sociedade. Todos aqueles que com-
partilhavam dessa perspectiva, malgrado as diferenças, defen-
diam a construção de imagens realistas da sociedade brasilei-
ra em processo de modernização (Ortiz, 1988).
76 Telenovela e Representação Social

A defesa do realismo nas telenovelas estava, por exemplo,


associado à formulação de personagens que pudessem repre-
sentar, simbolizar e conferir sentido ao que fosse considerado
popular na sociedade brasileira. A representação daqueles que
compartilhassem do adjetivo popular devia servir de símbolo,
informar sobre o mundo em que viviam, produzir conheci-
mentos sobre eles, e por fim, oferecer sensações estéticas es-
pecíficas (Aumont, 1993). O personagem de Renascer, Tião
Galinha (interpretado por Osmar Pardo), idealizado por Be-
nedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho, é bem ilustrativo,
quando representou, durante mais de seis meses, o homem do
campo da sociedade contemporânea brasileira.
Todavia, cabe perguntar: O Tião Galinha podia, de fato,
ser encontrado na zona cacaueira da Bahia? Acredita-se que
não seja necessário que isso ocorra para que o personagem
permita, por um lado, “ver e compreender estados de alma
relativos a uma pessoa imaginária”, e por outro, informar so-
bre os trabalhadores sem-terra e sem-trabalho, simbolizando
a relação de subalternidade com os fazendeiros. Assim sendo,
o ato de representar com realismo é arbitrário, no sentido de
que a criação do personagem Tião Galinha teve como refe-
rência uma série de convenções socializadas, pensada a partir
de um conjunto de referências estéticas, políticas, culturais,
ideológicas que têm conformado o espaço de possíveis do cam-
po da telenovela. Quer dizer, esse processo foi suficiente para
tornar Tião Galinha um representante realista do popular no
gênero ficcional telenovela.
Por essa razão, pondera-se que as representações do po-
pular e da sociedade brasileira nas telenovelas serão realistas
quando puderem ser reconhecidas e rememoradas1 pelos teles-
pectadores, quando corresponderem às idéias sobre o que es-
tiver sendo representado, ou mesmo quando o modo de repre-
sentar os fizer crer que assim o seja.
1 Para Aumont (1993, p. 81), o uso desses dois termos objetivariam relacionar o
fenômeno da representação às duas formas principais de investimento psicológico na
imagem: o reconhecimento e a rememoração. A aparente dicotomia coincidiria com
a “distinção entre função representativa e função simbólica”. A primeira delas puxa-
ria mais “para a memória, logo para o intelecto, para as funções de raciocínio e a
outra para a apreensão do visível, para as funções mais diretamente sensoriais”.
Representação do Popular nas Telenovelas 77

Para tanto, os realizadores baseiam-se em um conjunto


de índices de analogia que devem permitir aos telespectadores
evocar, por exemplo, aquele que se convencionou qualificar
de popular. Índices de analogia que devem contemplar os
modos de representar e as práticas e saberes dos telespec-
tadores. Um outro elemento, agregado a essa dimensão da
evocação do verossímil, diz respeito ao efeito de real (Aumont,
1993) que pudesse garantir a identificação dos telespectadores
com os sentidos suscitados pelos personagens.
Sabe-se que existem relações entre os diferentes modos de
se construir a verossimilhança nas telenovelas e a história das
formas narrativas, de correntes, tendências, escolas estéticas
que as influenciaram.2 Sabe-se ainda que a primeira e mais
comum afirmação sobre o modo de representar o real na tele-
novela seja a de que ele deveria subordinar-se aos modos de
narrar que provocassem o suspense, o riso, o medo.
Os estudos sobre telenovelas têm mostrado que o privilé-
gio das emoções têm dado ao gênero algumas características
importantes. Ana Maria Moretzsohn3 apresenta um interes-
sante exemplo quando escreve o decálogo do bom autor de
telenovela, baseando-se em Janete Clair. Alguns dos manda-
mentos expostos diziam que: 1) deve-se evitar de intelectualizar
as mensagens dos personagens; 2) deve-se abusar do ser ro-
mântico e deixar fluir a emoção; 3) deve-se evitar de expor o
por quê dos acontecimentos, em detrimento do como. Os per-
sonagens têm que ter ação, mesmo se for preciso sacrificar a
coerência psicológica; 4) deve-se manipular sentimentos como
amor, ódio, ciúme e inveja; 5) deve-se estimular o sonho; 6)

2 Aqui não se fará uma análise dessas influências na história de produção das teleno-
velas de Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho, apenas pressuporá a exis-
tência das mesmas. Esse pressuposto permitirá construir alguns vetores de análise que
relacionam a história das principais formas narrativas das telenovelas com as repre-
sentações do popular, o que se estará chamando de relações entre os espaços de
possíveis do campo e os modos de representar o popular. O que permitirá, então, fazer
uma análise dos modos de representar o popular na telenovela de Benedito Ruy
Barbosa – Renascer (ver o quinto capítulo).
3 Escritora de telenovela que durante muitos anos compôs a equipe de Aguinaldo
Silva (TV Globo). Naquele momento era contratada da TV Plus, escrevendo telenove-
la como autora responsável para a TV Bandeirantes.
78 Telenovela e Representação Social

deve-se evitar preconceitos elitistas. Novela é drama: não pode


refletir totalmente a realidade (Revista da TV, Jornal do Brasil,
17.8.1996). Mandamentos ancorados em matrizes culturais
de gêneros ficcionais populares: em especial o melodrama e o
folhetim.
A telenovela é um gênero ficcional constituído a partir da
característica básica das séries – a tensão entre novidade e
repetição –, contando com telespectadores que desejam des-
frutar da novidade da história, ao mesmo tempo em que se
distraem seguindo um esquema narrativo constante, satisfa-
zendo-se com o encontro de personagens, aventuras e solu-
ções de problemas já conhecidos (Eco, 1991, p. 123). Um
telespectador de séries consola-se com o retorno do idêntico,
mesmo que mascarado, e gratifica-se com a sua capacidade
de prever o desenrolar da história, saboreando assim a possi-
bilidade efetiva do retorno daquilo que ele espera acontecer.
Como se o telespectador, aqui pensado como leitor-modelo,
usasse a obra como um dispositivo semântico, sendo vítima
das estratégias do autor, que o conduziria ao longo de uma
série de previsões e expectativas.4 Isso tudo significa que para
a elaboração desse gênero ficcional os realizadores devem sa-
ber construir a carpintaria do texto de tal forma que as expec-
tativas dos seus telespectadores sejam atendidas.
Isso quer dizer que a representação do popular nas tele-
novelas passa, também, e principalmente, pelas característi-
cas da obra, as quais fixam uma espécie de fronteira criativa,
limites que demarcam as inovações e as exigências do que
deve constar. Desse modo, supõe-se que o popular é represen-
tado a partir de regras já estabelecidas, as quais sofrem maio-
res ou menores mudanças, influenciadas trajetórias dos reali-
zadores e das histórias particulares dos campos específicos de
produção e consumo das obras.

4 Essa afirmação não nega a existência de outros ‘tipos’ de telespectadores, ainda na


perspectiva do leitor-modelo, que avaliam a obra como produto estético, sendo capa-
zes de posturas mais críticas frente às estratégias acionadas pelo texto, sem contudo
se abandonarem à fruição das mesmas. Cada texto, enfatiza Eco, privilegiaria um ou
outro leitor, oferecendo desafios que poderiam não só pôr à prova sua competência
textual, como também aprimorá-la.
Representação do Popular nas Telenovelas 79

Apropriar-se de uma noção de gênero ficcional mostra-se


adequada, pois ela permite compreender os formatos, as re-
gras de funcionamento, a gramática, as estratégias de comuni-
cabilidade usadas com o público, ou seja, uma série de ele-
mentos concernentes às exigências que a formulação de uma
telenovela coloca para os seus realizadores. Apoiando-se em
Borelli, entende-se a telenovela como um gênero ficcinal con-
formado por um conjunto de categorias classificatórias, his-
toricamente demarcadas, que não devem funcionar como li-
mites rígidos associados às exigências de padronização, e sim
como guias e modelos de orientação que sofrem transmu-
tações. Assim sendo, os “gêneros ditos originais” (epopéia, tra-
gédia e comédia) funcionariam como pontos de partidas ou
“matrizes de produção” das telenovelas sem, contudo,
desconsiderar que, por diversas razões, estas matrizes sofreri-
am misturas, transformações, num movimento contínuo de
“fluxo e redefinição”. Por fim, as classificações demarcam re-
ferências comuns que funcionariam como estratégias de
comunicabilidade dos realizadores com o público consumi-
dor, na medida em que eles são capazes de reconhecer os gê-
neros, mesmo ignorando as suas regras de produção, gramá-
tica e funcionamento. Reconhecimento que se torna possível
porque os gêneros acionam mecanismos de recomposição da
memória e das representações sociais de diferentes grupos
sociais (Borelli, 1996, p. 76).
Os estudos sobre telenovelas tendem a focalizar o melo-
drama e o folhetim como suas principais matrizes fundado-
ras, além das influências das radionovelas latino-americanas
e do cinema norte-americano da griffe Hollywood (Ortiz et al,
1989; Pallottini, 1996; Aprea, 1996 e Martín-Barbero, 1987).

Melodrama
A primeira proposição que salta aos olhos quando se lê sobre
o melodrama refere-se à sua origem e destino populares. Data
dos idos de 1790, sendo identificado com os espetáculos de
teatro popular encenados principalmente na França e na In-
glaterra. O melodrama representaria formas e modos popula-
res de expressão ligados “à revolução francesa: a transforma-
80 Telenovela e Representação Social

ção do ‘populacho’ em povo”, pois ele passava a ser o ator


principal em cena. “As paixões políticas despertadas pela re-
volução e as terríveis cenas nela vividas teriam exaltado a ima-
ginação e exacerbado a sensibilidade das massas populares
que poderiam, finalmente, darem-se o gosto de por em cena
suas emoções. Para tanto, o cenário estará pleno de cárceres,
de conspiração e ajustes de contas, de desgraças imensas so-
fridas por vítimas inocentes e de traidores que ao final pagari-
am caro por suas traições” (Martín-Barbero, 1987, p. 124).
A dimensão popular do melodrama corresponderia tam-
bém aos conflitos com a burguesia e a nobreza. Em
contraponto à pureza da arte culta dos teatros oficiais, os te-
atros populares não podiam utilizar os diálogos, por exemplo.
Como bem lembra Xavier (1998), a tragédia clássica e o rea-
lismo moderno tendem a ser colocados como um contraponto
ao melodrama, o qual é percebido como uma modalidade mais
popular na ficção moderna. Polarizações que influenciam os
processos de reconhecimento dos analistas de obras culturais
consideradas populares e massivas, como as telenovelas.
Uma outra importante faceta desses conflitos contem-
pla o momento histórico de florescimento do melodrama. En-
quanto ele representava, por exemplo, um dos modos popu-
lares de expressão de “forte sabor emocional”, a burguesia
estava imersa em um processo civilizatório que exigia o “con-
trole das emoções” (Martín-Barbero, 1987, p. 125), diferen-
ças e contradições expressivas do pano de fundo moderni-
zador da época.
A fim de examinar as relações entre o fenômeno da mo-
dernização e o melodrama, Xavier (p. 5) recupera Brooks
(1976) e seu pioneiro e instigante trabalho sobre a “imagina-
ção melodramática”. A Grande importância de Brooks, de acor-
do com Xavier, foi romper com “a idéia do melodrama como
categoria a-histórica” e demonstrar a “especificidade dos tra-
ços que vinculam sua estrutura e sentido à modernidade.”
Brooks, na leitura de Xavier (p. 5), não teria visto a ascen-
são do melodrama como “sinal de uma perda”, assim como
não pensou a “‘morte da tragédia’ como um sintoma de crise
da cultura”.
Representação do Popular nas Telenovelas 81

O melodrama teria substituído o gênero clássico


porque a nova sociedade demandou outro tipo de
ficção para cumprir um papel regulador, exercido,
agora, por essa espécie de ritual cotidiano de fun-
ções múltiplas. Se a moral do gênero supõe confli-
tos, sem nuanças, entre o bem e o mal, se ela oferece
uma imagem simples demais para os valores parti-
lhados, isto se deve a que sua vocação é oferecer
matrizes aparentemente sólidas de avaliação da ex-
periência num mundo tremendamente instável, por-
que capitalista na ordem econômica, pós-sagrado
no terreno da luta política (sem a antiga autoridade
do rei e da Igreja) e sem o mesmo rigor normativo
no terreno da estética. Flexível, capaz de rápidas
adaptações, o melodrama formaliza um imaginário
que busca sempre dar corpo à moral, torná-la visí-
vel, quando esta parece ter perdido os seus alicerces.
Provê a sociedade de uma pedagogia do certo e do
errado que não exige uma explicação racional do
mundo, confiando na intuição e nos sentimentos “na-
turais” do individual na lida com dramas que envol-
vem, quase sempre, laços de família.
Como salienta Xavier, a tragédia clássica também contem-
plava os dramas de família, mas numa outra articulação do
público com o privado. Não mais a ênfase no destino dos per-
sonagens – reis, rainhas e nobres – que se confundiam com o
destino da sociedade, pois o que se buscaria enfatizar na cul-
tura burguesa seriam os sentimentos universais e individua-
lizantes, não mais a ênfase na condição de rainha, mas na
sua condição individual de mãe, pois assim se estaria garan-
tindo os elos com a dor de uma mãe camponesa. “Ou seja, a
substância do drama pessoal pode ser semelhante – tensões
entre lei e desejo, questões de identidade, falsos parentescos.
Mas há as diferenças no contexto social e na envergadura dos
heróis e há a identidade de status a aproximar as figuras do
palco e da platéia, marcando a ancoragem histórica do melo-
drama e a sua inserção numa cultura laica de mercado desde
1800” (p. 5).
82 Telenovela e Representação Social

O que se tem ressaltado acerca do melodrama é a sua


maleabilidade, quer dizer, a capacidade de incorporar as vari-
ações sofridas pelas noções sobre as quais ele está ancorado –
em especial, as noções de bem e mal, quer dizer, as noções que
se articulam às questões de ordem moral. Ainda é Xavier (p.
6) quem fala, observando:
Não é o conteúdo específico das polarizações morais
que importa, mas o fato de haver tais polarizações
definindo os termos do jogo e apelando para fórmu-
las feitas. Há melodramas de esquerda e de direita,
contra ou a favor do poder constituído, e o proble-
ma não está tanto numa inclinação francamente con-
servadora ou sentimentalmente revolucionária, mas
o fato de que o gênero tradicionalmente abriga e, ao
mesmo tempo, simplifica as questões em pauta na
sociedade, trabalhando a experiência dos injustiça-
dos em termos de uma diatribe moral dirigida aos
homens de má vontade. Na parábola moral, embo-
ra o triunfo da virtude seja o roteiro tradicional e o
final feliz prevaleça na indústria, o infortúnio da ví-
tima inocente é também uma forma canônica. Em
verdade, o melodrama tem o reduto por excelência
de cenários de vitimização.
Aqui se coloca um aspecto central da reflexão aqui culti-
vada, as fronteiras demarcadas pelo gênero para as represen-
tações do popular. Martín-Barbero (1987) considera o melo-
drama um dos importantes vértices do processo que
transmutaria o popular em massivo, pois soube aliar-se ao
novo público popular que a esse gênero correspondia. Cum-
plicidade com o público (continuamente) construída median-
te uma série de recursos e formas de narrar. Dentre elas desta-
ca a capacidade de tornar visível, de maneira espetacular, os
sentimentos de tons moralizantes, a estrutura dramática e as
operações simbólicas que realiza, particularmente, aquelas que
se dedicam ao amor.
O melodrama, na sua versão teatral de 1800, desenvolve
uma série de estratégias cênicas e formas de narrar com o
Representação do Popular nas Telenovelas 83

intuito de expressar os anseios de seus públicos, sem deixar de


captar a atenção e o interesse. Estratégias e formas que serão
amplamente usadas pela indústria da cultura. Dentre as cita-
das por Martín-Barbero (p. 126-128), destaca-se aqui as mais
próximas, ou mais sugestivas, de um dos gêneros ficcionais
dos meios massivos audiovisuais: a telenovela. A primeira de-
las explora uma estrutura dramática que associava os perso-
nagens a sentimentos fortes, mobilizadores de medo, excita-
ção, riso e ternura.5 Outras desenvolviam os recursos usados
para a polarização maniqueísta, onde os bons se contrapu-
nham aos maus, onde as caracterizações dos personagens es-
tavam associadas a valores morais. Por último, aquelas que
enfatizavam um espetáculo que explorasse uma profusão de
recursos sonoros e visuais.
Xavier (p. 6) foi muito preciso dizendo que “essa combina-
ção de sentimentalismo e prazer visual tem garantido ao melo-
drama dois séculos de hegemonia na esfera dos espetáculos, do
teatro popular do século XIX – que já era orgulhoso dos seus
efeitos especiais – ao cinema que conhecemos”. Compartilha-se
da perplexidade de Xavier que se impressiona com a capacidade
de sobrevivência e renovação do melodrama. Depois de tanto
tempo, ele está presente tanto nas telenovelas quanto em filmes
de expressiva bilheteria, como o Titanic. E não se deve esquecer,
como diz Martín-Barbero, que se está diante de um fenômeno
que não se explica apenas pela operação comercial e ideológica
que subjaz ao seu uso pela indústria. O melodrama mostra-se
uma importante mediação para o exame das telenovelas que no
“plano dos relatos passa pelo folhetim, no plano do espetáculo
passa pelo music-hall e pelo cinema”, sem deixar de ser influenci-
ada pelo radioteatro (Martín-Barbero, 1987, p. 131).
Merece ser aqui apresentada algumas das estratégias que
caracterizam o melodrama:
Em seu gosto por um ilusionismo visual impactante,
de resto embalado por uma sonoridade melodiosa

5 As platéias podiam ficar descontroladas emocionalmente, havendo ocasiões de


destruição dos locais de espetáculo, a ponto de as autoridades inglesas se preocupa-
rem em criar sistemas de contenção dos efeitos do descontrole.
84 Telenovela e Representação Social

(o ‘melos’ do drama), o gênero sempre se pautou


pela intensidade, pela geração de estados emocio-
nais catalisadores da credulidade – não apenas a fé
inocente, mas fundamentalmente a consentida. E
radicalizou os ideais de transparência, de expressão
direta dos sentimentos na superfície do corpo, onde
verdades ‘afloram’ porque estão livres da linguagem
convencional. Vale aí a fé na ‘voz muda do coração’
e na espontaneidade do gesto (embora este seja pro-
duto de convenções teatrais) e leva-se aí ao extremo
o princípio da imitação: tudo pode ser traduzido
numa aparência oferecida aos sentidos. O mundo
visível torna-se uma superfície de enorme plastici-
dade, espécie de fisionomia natural em que se expres-
sam a interioridade dos indivíduos e mesmo ordens
maiores do universo; o que coloca a questão da ver-
dade em termos da oposição moral entre as forças
da sinceridade e as forças do engano (Xavier, p. 6).
Alguns autores, entretanto, solicitam cuidado na compre-
ensão das estratégias melodramáticas como uma mediação
que garantiria a longevidade discursiva do melodrama nas
telenovelas. José Luiz Petriz (1996), em artigo sobre o
“metadiscurso teórico do gênero telenovela”, afirma que exis-
tiria uma tendência nos estudos de telenovelas6 a absorver
incorretamente o termo melodrama. Ele observou que não se
estabelecia um princípio de caracterização e descrição, seja
do melodrama, seja da telenovela, com vistas a identificar as
possíveis semelhanças entre eles. Logo, tendia-se ao uso do
termo melodrama, não para identificá-lo enquanto um gêne-
ro-teatral-musical, mas apenas enquanto um estilo de cons-
trução de textos que atravessava o gênero telenovela. Segun-
do Petriz, confundia-se nessa comparação os modos de enun-
ciar melodramáticos com as estruturas ‘actanciais’ do gêne-
ro, gerando, entre outras coisas, a dificuldade de caracterizar

6 Petriz examina artigos de Martín-Barbero, de Jorge González, Maria tereza Quiroz,


Anamaria Fadul, e Nora Mazziotti, presentes no livro organizado por essa última, em
1993. E os livros de Assumpta Roura (1993) e Cecília Absatz (1995).
Representação do Popular nas Telenovelas 85

o gênero telenovela, os estilos que o atravessam e constituem,


assim como as mudanças que vem sofrendo ao longo de sua
história.
O estilo, segundo o autor, seria um certo tom, modos enun-
ciativos que podem atravessar diferentes gêneros, socialmen-
te classificáveis, passíveis de modificações, os quais podem ser
gerados tanto a partir do social que os define, quanto das con-
tínuas mudanças estilísticas em curso na sociedade (Petriz, p.
196). Como decorrência, o gênero melodrama diria respeito à
uma determinada estrutura ordenadora de ações, “às classes
de textos ou objetos culturais, classificáveis em função da lin-
guagem e do suporte” (p. 177), geradora de um estilo melo-
dramático, ou seja, de modos de enunciação, de modos de
formulação e de leitura, cultural e historicamente reconhecí-
veis (p. 157). A telenovela, de acordo com essa perspectiva, é
devedora do gênero melodramático, ao mesmo tempo, que é
atravessada pelo estilo7 melodramático.8
Quais seriam algumas dessas características do estilo me-
lodramático que teriam atravessado um conjunto de gêneros
populares, dentre eles os romances-folhetins franceses do sé-
culo XIX e as telenovelas brasileiras do século XX?
O popular, no sentido de massivo, que atuaria na origem
e no destino da narrativa, envolvendo desde as classes popu-
lares até consumidores de expressivo volume de capital eco-
nômico e cultural. Um discurso moralizante que marcaria
conflitos entre o bem e o mal – podendo ir do mais maniqueísta
ao mais paradoxal. O melodrama tendia a oferecer matrizes
de avaliação para as experiências cotidianas de todos os indi-
víduos que se deparavam com as mudanças permanentes que
a modernização provocava. Nessa medida, o melodrama se
relacionaria aos reclames da época de sua produção, dando
7 Petriz (1996, p. 180) deixa claro que o fenômeno das questões estilísticas não se
esgota em um meio, assim como o estilo não seria, mesmo em última instância,
determinado pelas intenções do autor e pelos fatores econômicos.
8 Segundo Aprea (1996, p. 158), o modo de enunciação melodramático se caracteri-
zaria, de maneira geral, pela construção de um efeito de sentido por meio do qual se
manifestaria (de modos distintos e com soluções diferentes) um embate entre a lógica
dos desejos e das paixões dos indivíduos e a lógica que alimenta todo tipo de conven-
ções sociais.
86 Telenovela e Representação Social

visibilidade e ‘corpo à moral’, podendo ser observado polariza-


ções morais maleáveis que trafegavam por pontos de vistas
conservadores e emancipatórios.
Essa atenção do melodrama voltada para os indivíduos de
posições sociais diversas que experimentavam as mudanças
sociais postas pela modernidade levou ao desenvolvimento de
modos de narrar não mais centrados na trajetória de perso-
nagens marcadas pelo destino. Os “sentimentos orientando
os personagens” foi a estratégia recorrentemente usada, enfa-
tizando o drama individual de modo a permitir liames mais
claros entre o universal e o social no indivíduo e a construção
de diferenças sociais, políticas e individuais. Tais recursos per-
mitiriam vínculos e identificações com públicos mais hetero-
gêneos, já que as personagens representavam essa heterogenei-
dade quando se referiam às posições sociais e morais diversas,
até mesmo, antagônicas. Nessa medida, o melodrama tem sido
uma parábola moral que tem representado os injustiçados,
expressando articulações do triunfo da virtude e do infortú-
nio da vítima inocente.
O espetáculo pautado no sonoro e no visual, onde predo-
minava a cena e a representação do ator em função das fortes
emoções e dos seus efeitos morais, tem sido uma de suas prin-
cipais marcas. O princípio de imitação tende a ser levado ao
extremo, pois acredita-se que tudo pode ser traduzido numa
aparência oferecida aos sentidos. O mundo visível passa a ter
a obrigação de expressar a interioridade dos indivíduos e as
ordens maiores do universo, simbolizadas nas lutas entre as
“forças da verdade e as forças do engano” (Xavier, 1998).
Tantas outras características poderiam ser contempladas,
examinadas, aprofundadas. No entanto, o escopo deste tra-
balho exige que se priorize uma reflexão sobre as fronteiras
que o estilo melodramático e os romances-folhetins teriam
constituído para a representação do popular no gênero tele-
novela. A ênfase nos romances-folhetins, em detrimento do
cinema hollywodiano e tantas outras influências, deve-se ao
interesse de examinar o escritor nos seus processos de repre-
sentação do popular. Sabe-se do caráter coletivo da elabora-
ção da telenovela e da sua dimensão audiovisual e dramatúr-
Representação do Popular nas Telenovelas 87

gica, mas está fora dos propósitos desta análise articulá-las


nesse momento. Sabe-se, ainda, que se está abordando, ape-
nas, um dos muitos vetores para se delinear o “espaço de pos-
síveis” da representação do popular no campo da telenovela.

Melodrama e o Romance-folhetim
O folhetim nasce por volta de 1830, no bojo do desenvolvi-
mento das tecnologias ligadas aos sistemas de impressão. Ele
designa um lugar preciso do jornal: o rodapé. Quando sur-
giu na França, era um espaço vazio destinado ao entreteni-
mento, a uma espécie de vale tudo das formas e modalida-
des de diversão escrita. Com o advento da revolução jornalís-
tica, associada à ousadia criativa de editores como Emile de
Girardin (La Presse), esse espaço transforma-se em impor-
tante atração para as vendas dos jornais, favorecendo o sur-
gimento do folhetim ficcional e serial. Sua consolidação, em
1836, estabelecerá o consumidor das histórias fundadas a
partir da fórmula do “continua amanhã”. Será pelos idos de
18409 que se consolidará também um importante parceiro
desse consumidor – o romance-folhetim (pois nem todos os
folhetins podem ser nomeados dessa forma), e suas fortes
interfaces com o melodrama e o drama romântico, que por
sua vez, têm a ver com a “forma romanesca que precede o
folhetim em termos de popularidade: o chamado romance
negro” (Meyer, 1996, p. 57-60).
A penetração expressiva do romance-folhetim, pós 1840,
gerou uma nova definição para o gênero. Desde então ele passa
a ser designado tanto em função do seu modo de publicação,
quanto em função da sua estrutura, a qual passou a contar
com “exigências próprias de cortes de capítulo, de fragmentos
que não destruíssem a impressão de continuidade e totalida-
de”. Marcas que, segundo Meyer influenciaram todos os ro-
mances, a ponto de se verificar que estavam muito presentes
até mesmo no campo literário brasileiro (p. 63).
Além da influência da estrutura narrativa do romance-
folhetim nos escritores brasileiros, seria possível observar se-
9 Meyer (1996) lembra que já em 1838 foi publicado o primeiro romance-folhetim
traduzido do Francês.
88 Telenovela e Representação Social

melhanças com as telenovelas no que diz respeito à organiza-


ção mercantil, senão fabril, da sua produção. Em primeiro
lugar, tanto o folhetim, quanto a radionovela e a telenovela se
transformam em devoradores dos seus respectivos veículos,
quer dizer, eles ganharão tamanha importância econômica
que os veículos se colocarão numa relação de dependência
diante das rentabilidades que passaram a proporcionar. No
que diz respeito ao trabalho dos escritores, já existia, com Ale-
xandre Dumas, um dos principais folhetinistas da época, a
realização conjunta das obras que contava com o apoio dos
seus redatores auxiliares, uma das práticas atuais de trabalho
de boa parte dos escritores de telenovelas. Tem-se, ainda, um
outro aspecto sugestivo que remete à telenovela. O romance-
folhetim era tão pejorativamente encarado que chegava a ser
visto de maneira uniforme e homogênea, de modo a descon-
siderar-se completamente as diferenças de qualidade e de es-
tilos (p. 62-64).
Essas obras, apesar de suas cargas negativas, têm uma
história e “se inscrevem na história”, podendo, assim, serem
examinadas em função de épocas e fases. Meyer identificou
três dessas fases do romance-folhetim na França, consideran-
do que a terceira delas teria influenciado de modo mais expres-
sivo as telenovelas no Brasil.
Na primeira fase (1836 a 1850) conforma-se a moda clás-
sica do romance-folhetim, a qual será marcada pela ênfase
num ponto de vista social, onde os miseráveis, os desempre-
gados, os migrantes moradores das cidades e os operários dei-
xarão de ser turisticamente retratados como bárbaros e peri-
gosos, para serem vistos como classes laboriosas, sujeitos da
história. Um movimento acompanhado por revoltas e lutas
que se encerra com o fim da República, o fim do financiamen-
to dos folhetins, a morte de seus principais autores e o exílio,
seguido de morte, daquele que imprimiu a maior radicalidade
social aos folhetins – Eugéne Sue.
Destaca-se a relação entre o aumento dos movimentos dos
miseráveis, operários e vagabundos com a maior expressão
dos mesmo nos romances de folhetim, chegando ao ponto de
editores de jornais solicitarem a Eugéne-Sue que escrevesse
Representação do Popular nas Telenovelas 89

sobre os bas-fonds de Paris. Meyer (p. 80) traz à baila que os


leitores burgueses dos folhetins buscavam a crença na paz
social e as emoções distraídas que os romances folhetins ofe-
reciam. Ao mesmo tempo, os operários se tornaram leitores
que se reconheciam nas obras de Sue, mas que também não
dispensavam as emoções e a distração. Um público heterogê-
neo que, por motivos díspares, precisava entrar em contato
ficcional com os personagens que representassem o popular.
Curiosa a tensão vivida pelo escritor, que logo lembra os auto-
res de telenovelas que se voltam para temáticas sociopolíticas.
Ele fica preso na antinomia distrair-ensinar, que leva em al-
guns momentos à perda da força romanesca em detrimento
das reflexões e conselhos, assim como lhe exige, muitas vezes,
a capacidade de poder dar autenticidade à sua imaginação
literária mediante notas, pesquisas, dados, visto querer tam-
bém fazer história por intermédio de seus romances. O públi-
co reclama desses excessos e desequilíbrios na narrativa por-
que, apesar de se identificar com os esquecidos e explorados,
não quer deixar de se divertir, abandonando-se no “caudal
romanesco”.
Sue é considerado um realista, “no sentido do real recria-
do a partir do concreto amplificado pela imaginação”, que
depois de convertido ao socialismo, se converterá também ao
popular. Meyer insiste muito, porém, no seu papel como escri-
tor, pois, diz ela, esse era o seu melhor ofício. Nesse sentido,
ele deixou traços importantes no modo de narrar dos roman-
ces-folhetins, presentes de certa forma até hoje. Destaca-se aqui
a estética da escala e o modo como misturava o melodrama
com o drama romântico.
A estética da escala, recurso proveniente da tradição do
romance do séc. XVIII, consistia no descentramento da narra-
tiva, que não se “organiza mais em torno de uma ação cen-
tral, mas se faz ao léu dos personagens encontrados nas dife-
rentes escalas do navio [espaços internos do navio que pode
ser visto como situações ou espaços cênicos], sendo esse o
núcleo da ação”. Este deslocava-se dos personagens para os
espaços, jogando permanentemente com a idéia dos encon-
tros e desencontros, renovados a cada novo porto que o navio
90 Telenovela e Representação Social

passava. Tem-se assim o desenvolvimento da estética do frag-


mento (p. 70).
Sue, com muita maestria, introduz a simplificação dos per-
sonagens – o bom nobre e o horrível vilão (já presente na tra-
dição do romance negro) que se articularia com o traidor do
melodrama, aquele que representaria a “tragédia das classes
populares” (p. 71). E o faz sem garantir a presença perma-
nente do happy end, tão marcante no melodrama. Ou seja, ele
efetua uma fascinante mistura do drama romântico com o
melodrama. Não deixou ainda de trazer para o romance-fo-
lhetim uma boa tradição do melodrama: a presença do cômi-
co como modo e como personagem (p. 77).
O outro autor que marcou e conformou essa primeira fase
foi Alexandre Dumas, o realizador dos folhetins históricos e
hábil “operário da escrita”, que sabia negociar seus rendimen-
tos com os editores. Dos traços de sua obra, ressalta-se o papel
da vingança.
Dumas teria criado um dos principais recursos da ficção
seriada – a multiplicação de incidentes que tornam a história
mais longa, mais atraente economicamente para os editores e
autores, e mais prazerosa para os leitores. As histórias que
giravam em torno da vingança, tão bem desenvolvidas por
Dumas, foram formas perfeitas para criar esse conjunto de
peripécias. Além delas terem sido um valioso recurso de com-
posição literária, de investigação psicológica e de visão de
mundo, tornaram-se um passaporte que permitia ao roman-
cista circular livremente pela sociedade, articulando grupos e
classes sociais (p. 68)
A segunda fase do romance-folhetim, 1851 a 1871, seria,
segundo Meyer, caracterizada pela conformação de um novo
estilo, por ela denominado de “rocambolesco”. O responsável
por essa criação seria Ponson du Terrail. O contexto de sua
criação foi o império napoleônico. Napoleão, que havia proi-
bido o romance-folhetim marcado por forte tom de critica so-
cial, vê-se anos depois numa nova conjuntura, o que o leva a
autorizar o seu ressurgimento, mas não sem antes instaurar
a censura que exigia a eliminação da crítica social de suas
histórias. Uma censura que, além de amparo jurídico, tinha o
Representação do Popular nas Telenovelas 91

apoio e o empenho dos editores dos jornais, que mesmo de-


pois da suspensão do selo que proibia o romance, buscavam
resguardar-se de multas e, claro, das reações do público que
redundassem na diminuição das vendas.
Por um lado, assiste-se à degradação das condições de vida
dos operários, ao aumento do movimento migratório das áreas
rurais para as urbanas, que a partir de então passarão a viver a
efetiva divisão de seu espaço, pois os pobres se deslocarão para
os subúrbios, com a tendência cada vez menor de manterem os
laços de vizinhança com os burgueses, fato corriqueiro até en-
tão. Associada a essas mudanças decorrentes da modernização
real da época, que trouxe no seu bojo o aumento progressivo do
contingente de alfabetizados, tem-se a reorganização do movi-
mento operário e a emergência de novas camadas sociais, não
mais filhos de operários, mas ainda filhos do povo. Uma “baixa
classe média”, como chama Meyer, que usufrui da vida urbana,
em especial do lazer que esta proporciona. Um outro aspecto
que caracteriza os filhos do povo são as novas atividades que
desenvolvem, muitas delas de proximidade com as classes altas,
tais como costureiras, lojistas. Tem-se, assim, o público por ex-
celência dos romances folhetins e a efetiva condição de surgi-
mento de públicos diversificados no mercado das obras impres-
sas. Surge o público popular da imprensa popular, aliado ao
cuidado das elites e do Estado em tentar educar esse povo, para
evitar que essas camadas inferiores se deixassem influenciar por
romances e obras populares que disseminassem o costume mal-
são. Está declarado o combate aos folhetins ruins quanto ao
estilo e à moral que difundem, principalmente para os jovens,
tão sensíveis às infames exacerbações da sensualidade.
Quais seriam os grandes temas dessa época? Responde
Meyer: o dinheiro como majestade suprema, onde a palavra
de ordem é enriquecer. Ponsoil du Terrail foi o maior repre-
sentante dos romances-folhetins dessa época. Sua obra mais
significativa era uma série em andamento contínuo do herói
imortal conhecido como Rocambole. A personagem, filho de
guilhotinado e zeladora, era despudorado, facínora, um la-
drão cheio de astúcia associada à audácia. Uma representa-
ção “do caminho do poder de um ‘canalha medíocre’ e trapa-
92 Telenovela e Representação Social

ceiro – Napoleão”. Para a autora, o único herói romanesco


possível “nessa época sem heróis nem faustos”.
Aspectos referentes aos modos de narrar e as influências
dessa segunda fase do romance-folhetim merecem ser desta-
cados pela sua contemporaneidade. A concorrência e influ-
ência dos fait divers (o relato romanceado do cotidiano real),
os temas e as estratégias discursivas.
Muito oportunamente, Meyer lembra que o ressurgimen-
to do romance-folhetim inaugura a concorrência com os fait
divers,10 recém chegados às páginas dos jornais. Competição
que ajudou a instituir a expectativa de um tipo de romance-
folhetim, aquele que, além do mistério e da aventura, fosse
“uma janela aberta para o mundo”, que estivesse “ancorado a
uma experiência atual e vivida”, que pudesse “constatar ou
dar testemunho”, que apelasse, enfim, para o verdadeiro, o
real, seguindo assim o naturalismo vigente. Dentre as outras
modificações geradas, chama a atenção a necessidade do fo-
lhetim ficar mais ágil e curto (p. 100-101).
Uma das características dessa segunda fase do romance-
folhetim, ainda tributárias do estilo de Ponson du Terrail, é a
série ou ciclo. As histórias de Rocambole mostraram ao leitor
que existia um “fim sem susto”, pois seu herói voltava em ou-
tra série ou aventura. “Para lá da fragmentação cotidiana de
um enredo, que obviamente tampouco se apresenta como um
todo na cabeça de seu autor, introduz-se o novo fragmento
que acabará por constituir o imprevisível todo uma vez che-
gado seu desfecho. Quando se fecha a aventura servida em
fatias, entra a exigência do público (o qual já interviera no
decorrer da narrativa), a querer mais uma fatia do bolo final-
mente constituído” (p. 105). Com a vantagem de que Rocam-
bole era imortal, ele sempre voltava, mas sem ser o mesmo. E
esse retorno, essa repetição do acontecido no registro da farsa
introduziu uma outra forte marca de du Terrail, a paródia.
O uso da paródia estaria associado ao melodrama, pois a
mola mestra rocambolesca não deixou de ser o “velho embate

10 O fait divers, esclarece Meyer (1996, p. 98), era a “notícia extraordinária, transmi-
tida em forma romanceada, num registro melodramático, que vai fazer concorrência
ao folhetim e muitas vezes suplantá-lo nas tiragens”.
Representação do Popular nas Telenovelas 93

mítico entre o bem e o mal, ainda que seja um maniqueísmo de


fancaria” (p. 130). Tudo para o autor era motivo de paródia: o
tema romântico da caridade, do satanismo, do bom operário,
do mundo do trabalho, da moça pobre mas honesta, da reden-
ção da cortesã, do amor como recurso para subir na vida, da
vingança. Como diz Meyer, as paródias seriam usadas para des-
montar o vazio do romantismo, com o intuito de “sem dó nem
piedade” mostrar a verdadeira razão de ser de tantas artima-
nhas, qual seja: o dinheiro. A paródia como recurso para colo-
car entre parênteses os sentimentos e valores institucionais, na
medida em que invocava a norma, mas em contexto invertido.
A centralidade no melodrama, acrescida da paródia e de
outros recursos usados por Ponson (a pilhagem narrativa, por
exemplo), acabou gerando uma nova receita do gênero
folhetinesco, que não visava emocionar, tranquilizar, construir
um herói central definitivo.
Os romances-folhetins até então produzidos podiam ser
caracterizados da seguinte maneira: o desenvolvimento do
enredo não era definido de antemão, pois eram movidos por
uma intriga essencial: o mistério do passado. O que se obser-
vava era uma espécie de “puzzle melodramático”, onde se ti-
nham episódios, personagens sem muita relação entre si, que
se misturavam propositadamente para ao longo da história ir
formando uma ordem e um encadeamento dos fatos. Como
se um enredo que parecesse simples – história de catástrofes,
de fatalidades dos heróis e suas parentelas, mostrasse uma
complexa composição de um romance principal sobreposto
por uma série de outros romances. Uma adição de infinitos
enredos paralelos, mas imbricados por um elemento que per-
tence ao enredo principal, que só se desvendariam quando
costurados a ele no epílogo (p. 161).
O que trouxe Ponson du Terrail de diferente? A possibili-
dade de não fechar jamais o núcleo principal, pois a constru-
ção em série das aventuras de Rocambole, o herói imortal e
mutante, não permitia. “O herói principal é o ser da meta-
morfose” movido pela trapaça, onde Meyer suspeita que o mote
não seja esclarecimento, mas sim os novos escamoteamentos
de uma verdade que nunca se alcança.
94 Telenovela e Representação Social

Está aí uma das principais atualidades do estilo rocambo-


lesco. A associação entre aventuras inverossímeis e realidades
inverossímeis que tematizam a trapaça, tudo que se faz por
dinheiro, o banditismo e tantas outras. O termo rocambolesco
não designaria meramente um conjunto de truques para movi-
mentar enredos, para agarrar e agradar um público, mas seria
também um paradigma de todo um sistema de bandidagem
generalizada que não envolveria só grandes bandidos, mas até
o mais banal cotidiano. Sem dúvida, estaríamos diante de um
abre-alas do banditismo, uma das marcas da sociedade con-
temporânea, onde seria possível identificar-se com heróis nega-
tivos em termos de moral, mas totalmente positivo em termos
de sucesso alcançado por qualquer meio. Uma certa banaliza-
ção do mal que traria consigo a complacência universal como
forma generalizada de comportamento.
A terceira fase do romance-folhetim francês (1871-1914)
corresponderia à Terceira República, sinalizando – com a data
que finaliza o marco – o início do “Império da imagem”, o
qual demarcaria a entrada do cinema influenciado pelos mol-
des do folhetim. Essa afirmação conduz a autora a uma nova
afirmação, a de que o romance-folhetim da terceira fase trans-
formou-se na matriz da grande narrativa de massa, repercu-
tindo nos modos brasileiros de fazer telenovela – o gênero
ficcional mais “assumido e brasonado descendente” de tal ro-
mance. Quais seriam as características do romance-folhetim
que estariam presentes nas telenovelas?
O tratamento analítico dado pela pesquisadora, não se
pode deixar de lembrar, articula a conjuntura política, econô-
mica e social da França com os modos de produzir, distribuir e
narrar do romance-folhetim. Nesse sentido, não se escapa de
uma síntese da composição desse cenário. Do grande conjun-
to de romances-folhetins publicados nesse período, depreende-
se uma aura mais conservadora e mais desvalorizada, quan-
do comparados aos seus predecessores. Suas nomeações – “ro-
mance dos crimes de amor” ou “romance da vítima” – já guar-
davam um tom pejorativo. Meyer também não se furta de cri-
ar uma outra alcunha, não menos pejorativa e nem menos
encantadora: o “romance desgraça pouca é bobagem”.
Representação do Popular nas Telenovelas 95

Em linha gerais, os heróis tendiam a uma vitimização di-


ante das agruras da vida, à qual se associava uma tendência
de extremo respeito às convenções sociais, pois nem o mais
intenso sofrimento significava uma crítica às normas sociais.
Diluiu-se ao quase desaparecimento aqueles heróis do folhe-
tim romântico que lutavam contra a coerção social, em con-
frontos onde o bem e o mal estavam bem construídos. Tor-
nar-se-á mais presente e preponderante aquele vilão de sedu-
ção barata e pouca astúcia, que se reabilita após submeter-se
às penas impostas pelas autoridades defensoras da ordem, pois
se torna possível redimir-se e recuperar a ‘inocência perdida’.
Esse romance-folhetim era também denominado de burguês
numa alusão ao conservador. E, aí, Meyer (p. 219) é taxativa,
dizendo que era “conservador, porque propunha modelos bur-
gueses de aspiração de vida, porque era o responsável pela
ruína do verdadeiro espírito popular, o do povo, visto como
abstrata e divinizada categoria”.
O aburguesamento e a face conservadora do romance-
folhetim deu-se num período de ampliação e diferenciação
maior do seu público. Instaura-se de fato, nesse momento, a
imprensa industrial e mercantil, onde o público popular e o
público burguês definem-se por contraponto. Para o público
popular será destinado o romance-folhetim, num sistema de
vendas e distribuição que contará com lançamentos utilizan-
do as distribuições gratuitas, com a força dos anúncios e re-
clames, com a sedução das ilustrações e com a diversificação
das suas formas finais, pois não mais se restringirá aos rodapés
dos jornais.
Os critérios de distinção e de consagração dessas obras
com “etiqueta popular” estavam também se conformando.
Duas fontes de critérios, curiosamente, sugerem importantes
pontos para se pensar as telenovelas contemporâneas no Bra-
sil. A primeira refere-se ao produtor/ divulgador das obras (p.
229). Existiam diferenças entre os jornais que indicavam pú-
blicos, tiragem e ideologias. Logo, compunham indicadores
de maior ou menor distinção em função do caráter popular
ou burguês dos jornais (quanto mais popular, mais feminino
o seu público, por exemplo).
96 Telenovela e Representação Social

A segunda fonte de critérios toca no formato. Dois indica-


dores foram mencionados: a maneira de dar o título e o ta-
manho da obra. Quanto ao segundo, mais sugestivo para exa-
minar o caso das telenovelas, afirmava-se que quanto mais
popular o jornal, maior o tamanho da obra. Folhetins curtos
estariam associados a narrativas mais bem acabadas, mais
próximas da “narrativa legítima” e culta, que poderia versar
sobre temas mais exóticos e policialescos, atendendo a um
público de sexo masculino. Os folhetins mais populares seri-
am mais longos e predominantemente “sentimentais” (o “ro-
mance de vítima”), suporiam narrativas e modos de leitura
mais grosseiros, que impediriam uma visão de conjunto por
parte de um leitor, preferencialmente feminino, o qual era vis-
to como pouco preocupado com a coerência narrativa, estan-
do mais voltado para questões de ordem moral.
Outro aspecto importante diz respeito ao papel dos críti-
cos do romance-folhetim. Os críticos tendiam a menosprezar
a denúncia posta nos folhetins quando narravam crimes, es-
tupros, filhos ilegítimos e tantos outros: os leitores estariam
sendo indevidamente influenciados, quem sabe até mesmo
sendo inspirados por tais histórias. Pergunta Meyer (p. 270-
271): quais seriam, na perspectiva dos críticos, os grupos sen-
síveis a essas inspirações? As ‘classes operárias’, responde. To-
davia, salienta a autora, os crimes e outros exemplos de mal
comportamento associados aos representantes do poder polí-
tico e econômico não constituíam perigo para esses críticos.
Os folhetins não deixavam de mostrar, por exemplo, “os pode-
rosos e seus poderes de empregar, desempregar, expulsar da
casa ou da fábrica, comprar a justiça...”. Sendo assim, era
digno de nota a ausência do exame das contradições do gêne-
ro nas críticas. Não só não era observado o lado vil dos pode-
rosos, como também não era contemplada a presença conco-
mitante dos atos vis dos operários com a defesa da harmonia
social e da lógica de submissão, pois os escritores “sempre”
opinavam no sentido do julgamento moral, não perdendo a
oportunidade de construir os “bons” personagens e as situa-
ções na direção da boa norma. O faziam, inclusive, sem reti-
rar a carga de ambigüidades que tais situações detinham.
Representação do Popular nas Telenovelas 97

A arguta análise coloca um dado interessante sobre o pa-


pel desse tipo de crítica das obras populares: suscita um des-
prezo do aspecto moralizador da obra e uma culpabilidade
tanto do autor quanto do leitor. Se isso é verdade, diz ela, a
critica estaria negativamente voltada para as classes popula-
res, já que não seriam possuidores do discernimento que os
defenderiam dos efeitos embrutecedores de leituras nefastas.
Culpados seriam os leitores, que só sabem se nutrir de leituras
inadequadas, e culpados também os autores porque as pro-
duzem. Curiosamente, estariam liberados de toda e qualquer
responsabilidade os donos dos jornais que contratavam os au-
tores e arrebanhavam vultosas somas de dinheiro mediante
essa literatura menor e degradante. E estaria também fora da
órbita de análise dos críticos o que Meyer apropriadamente
chamou de “matreirice ideológica” dos autores.
À matreiricie corresponderia a dupla proeza de, por um
lado, preservar a necessária verossimilhança e, por outro, não
descartar as ambigüidades que permitiriam ao leitor popular
uma identificação possível. Sem esquecer que se tem como
pano de fundo um discurso moralizador que indica sujeição
aos “donos da verdade e do dinheiro”. A “mulher do povo”, por
exemplo, será, tendencialmente, construída a partir do seu
cotidiano e da ideologia dos higienistas, reformadores sociais,
filantropos. Ela aparece como depravada, mas também como
corajosa e abnegada. Vítima perseguida pelo destino, não dei-
xará de ser uma heroína positiva. De um cotidiano cheio de
privações e muito trabalho ela não deixará de ser a “mulher
do lar, moralizadora do homem e da família”.
Os editores e autores sabiam que a rubrica popular contin-
ha diferenças, não apenas de expectativas e condições de vida,
mas também de gênero – com referência ao sexo. O público
feminino era considerado o mais abrangente e o mais sensibili-
zado para o formato do romance-folhetim. Sabiam, ainda, que
o público considerado burguês não era homogêneo. Ele podia
apresentar exigências e estilos diferenciados, mas isso não os
eliminava do rol de leitores dos romances dito populares.
Os escritores, de origem popular ou de pequena classe
média, tornam-se hábeis artífices das formas de se estabelecer
98 Telenovela e Representação Social

vínculos com essa diversidade de leitores. Um dos recursos mais


freqüentes foi aquele que estimulava o deslumbramento das
classes populares e médias diante da vida dos ricos, quase sem-
pre representados pela “nobreza ressurgida e pela burguesia
triunfante” (p. 223).
Os realizadores e editores enfrentavam o desafio perma-
nente de agradar na diversidade. Zola dizia ser preciso “agra-
dar a uma multidão [...] realizando o milagre de contentar
todo mundo sem arranhar ninguém”. Os milagres defendidos
na época eram por uma lado proscrever a política (somando-
se à legislação da época que de fato a proibia) e, por outro,
fazer da “crônica cotidiana” um mix de ensino e divertimento
(p. 230).
O primeiro milagre conduzia a uma relação com o con-
texto da Terceira República. O medo foi a palavra-chave usa-
da para caracterizar essa época. A burguesia e a aristocracia,
depois de terem experimentado o poder destruidor e transfor-
mador das “classes laboriosas – perigosas”, assumem clara-
mente, em especial os defensores da ordem burguesa, a ne-
cessidade de gerarem o princípio da autoridade no trabalho e
na família, associando-a às práticas filantrópicas e assisten-
ciais para os operários e todos aqueles que estivessem sob o
codinome de classes populares. Retomo Meyer (p. 220) para
melhor descrever esse momento:
A Terceira República inaugura-se sob a marca do
medo [...] de uma sociedade que enriqueceu com a
industrialização encetada com sucesso na época de
Napoleão III. Uma industrialização à francesa, mo-
derna na perspectiva do lucro, arcaica na estrutura,
baseada que era num patronato fechado nos seus
privilégios de família, as deux cent families, [...] Esse
patronato impõe como que um neofeudalismo, feroz
defensor de uma ordem infensa à mobilidade social.
[...] O patronato industrial assume dupla função de
autoridade: a necessidade interna e orgânica da au-
toridade no seio da empresa, com a “militarização”
da fábrica e sua inflexível disciplina [...] e a autori-
Representação do Popular nas Telenovelas 99

dade social que exerce ‘junto com a justiça e o exérci-


to para garantir, pelo enquadramento social, a tran-
qüilidade pública’. Autoridade e disciplina férrea den-
tro da fábrica com a expulsão do ‘mau operário’, e
‘bondade’ fora dela pela formidável arma da
filantropia [...] Mas como a época é a da democrati-
zação do ensino [...] vão se formando jovens qua-
dros de engenheiros e técnicos [...] que vão tentar na
força do braço, romper o cerco das famílias consa-
gradas e abrir empresas que haverão de reproduzir
o padrão recorrente.
A despolitização dos romances-folhetins na Terceira Re-
pública segue assim as ordens já, de certa forma, presentes na
fase anterior. Parece ter criado matizes mais fortes frente à
ampliação e consolidação da indústria da cultura, a qual se
associava ao ethos burguês e às práticas assistencialistas que
se formavam naquele momento. Desenvolveram-se outros te-
mas, também presentes nas fases anteriores, como a “vítima e
o vil sedutor”, “a virtude conspurcada” e a “defesa da honra
até a morte”. Todavia, a figura do protetor único e a do vilão
único, figuras assíduas do velho melodrama, não estavam mais
tendo lugar nesse romance-folhetim. Assim como os grandes
“arroubos românticos, das exaltadas indignações e denúnci-
as, castigos e vinganças” não foram tocados. O folhetim da
terceira fase estava mergulhado no naturalismo da época, fa-
zendo do romance-folhetim a narrativa dos “dramas da vida”.
A explicação dada a esse fenômeno foi a seguinte: o mun-
do mudou, trazendo mudanças para esse gênero ficcional. Um
novo indivíduo surgiu. Ele agora precisa aprender a se defen-
der sozinho dos difusos vilões que o acossam. O destino deixa
de ser a grande fonte dos males e das soluções para dar lugar
à vida e às ações da vítima, sendo a mulher a sua principal
representante.
Os novos tempos são os do reforço de todos os
enquadramentos, donde novos personagens e arte-
fatos: a manufatura e a usina, o operário, a operá-
ria e a criança trabalhadora e a necessidade de sua
100 Telenovela e Representação Social

adequação ao tempo da produção. Há o bom ope-


rário, fiel ao patrão e ao seu trabalho; o mau ope-
rário, que bebe, chega atrasado, prefere o ócio, es-
panca ou violenta a mulher; o mau ou bom patrão e
o mau contramestre; a operária mãe de família e a
operária solitária; a prostituta de luxo ou a decaí-
da. Há a habitação popular, o castelo do nobre, a
ostentação do banqueiro novo-rico e o luxo sóbrio
do novo herói: o engenheiro inteligente e honesto,
merecedor portanto do dote que lhe traz a virtuosa
e nem sempre bela esposa, que o leva à acumulação
de capital e à usina onde pode desenvolver seus
inventos. Há a urbanização e o perigo da grande
cidade, armadilha para a futura vítima etc. (p. 232).
O segundo milagre que os escritores precisavam ativar
levaria aos enlaces contínuos do fait divers com os romances-
folhetins, associado à tendência pedagógica das elites diante
das classes populares. Nesse caso o objetivo é associar o entre-
tenimento com o ensino moral e científico. Tornou-se cada
vez mais forte a “folhetinização da informação” por meio dos
fait divers. Nele, a informação tendia a não separar o público
do privado, usando para tanto a estratégia da narrativa frag-
mentada e personalizada dos fatos sociais, a qual alimentava
a expectativa do leitor, ao mesmo tempo, que não lhe permitia
uma visão de conjunto. Mas não apenas as informações pas-
savam por um processo de folhetinização. A difusão de co-
nhecimentos (descobertas científicas, modernos preceitos de
higienização) também estava vivendo o mesmo processo. Uma
ciranda do ir e vir, onde a informação e a divulgação incorpo-
ravam os modos de narrar do romance-folhetim e ele torna-
va-se cada vez mais um meio que contava histórias que devi-
am difundir conhecimentos e prolongar os “ensinamentos
fragmentados” dos jornais.
Os principais escritores dessa fase foram Emile de
Richebourg e Xavier de Montépin. O primeiro deles incorpo-
rava os dados da história em suas ficções, além de se preocu-
par com a relação capital-trabalho, o “socialismo bondoso” e
as questões sociais de sua época, dando destaque à condição
Representação do Popular nas Telenovelas 101

feminina, tematizando, dentre outros, a ascensão social das


mulheres através dos estudos e/ou do casamento. Ele tinha,
meio à revelia da época, uma visão generosa da mulher. Em
uma de suas obras mais famosas – “A Toutineira do Moinho”
– ele profetizava que o “dever do homem é ajudar a mulher a
levantar-se [...] Eu não sou escravo do mundo nem dos seus
preconceitos. Se os homens se mostrassem mais generosos,
[...] não haveria mais repetidos casos de felicidade doméstica
aniquilada, nem tantas mulheres condenadas irremediavel-
mente a uma existência miserável” (p. 215).
O outro escritor, Montépin,11 em um de seus livros céle-
bres – “La Porteuse de Pain” – narrava a história de uma mu-
lher pobre que depois de “20 anos de sofrimento”, enovelados
em seiscentos e 50 páginas, conquistou um final feliz porque
“há justiça no céu” (p. 217).
Afastamentos do velho melodrama12 foram observados,
mas não a sua ausência. Isso porque não se abriu mão dos
excessos que as intensas emoções, sofrimentos e paixões
avassaladoras (algumas delas criminosas) pudessem provo-
car. O folhetim romance, quando dramatizou o cotidiano e a
sua época, o fez não deixando de carregar as tintas nas emo-
ções – amor, ódio, ciúme, desejo, ganância, ambição, fome,
morte, crime, luxúria, loucura. Consolida, desse modo, recur-
sos que se tornaram um dos pilares da grande e desprezada
narrativa de massa.
As invenções, porém, não deixaram de existir. Ela era ob-
servada na forma de construção do enredo. Desenvolveu-se a
redundância, o repetitivo, um jeito de enredar em forma de
labirintos. Sabe-se que os temas, as situações e as coincidên-
cias retornarão, mas não se sabe quando e nem de que ma-
neira (p. 234). Esse suspense proveniente da sucessão
imprevisível, nascido do hábil entremear das narrativas para-

11 Considerado por Gramsci, um analista arguto desses romances-folhetins, um con-


servador reacionário.
12 Visto aqui como o gênero teatral definido por Chevalier (citado por Meyer, 1996,
p. 233): “é a coisa representada em carne e osso; a coisa em ação, coberta apenas por
alguns trapos, tremendo de fome, de frio, com o inverno, a injustiça, o horror, o
cárcere, o algoz!”
102 Telenovela e Representação Social

lelas, era, na percepção de Meyer, o mais novo objeto de delei-


te dos maníacos do gênero. Essa narrativa de labirintos, asso-
ciada à exteriorização das emoções e aos dramas da vida, foi
oferecida, por um longo tempo, em pedacinhos para os leito-
res, cujo lugar tem sido o de destinatário e determinador dos
rumos da história.
Essa “máquina de redundância que estrutura o folhetim”
podia também gerar denúncias de caráter político-sociais,
sustenta Meyer (p. 273). Como se ecoasse por meio dela um
permanente “grito da miséria humana”, que em alguns mo-
mentos produziram mais do que ecos em seus leitores e nos
representantes do poder. Os folhetins teriam interferido, por
exemplo, na formulação da lei francesa que reconhece a pa-
ternidade livre, em 1912, ou da lei que regulamentava, no
mesmo país, o trabalho da mulher e da criança. Ponderações
que indicam a necessidade de se pensar o papel dos gêneros
ficcionais populares na denúncia das desigualdades e na cons-
trução da cidadania.
Esses modos de fazer o romance-folhetim da terceira fase
tornaram-se uma “receita salvadora” das boas histórias con-
tadas pela televisão. Pois, atendeu-se a todos os envolvidos na
trama que criam e alimentam esses gêneros ficcionais. Esses
critérios atenderiam às expectativas do público consumidor e
às exigências econômicas dos realizadores, patrocinadores e
emissoras.
Enfim, não há como deixar de compartilhar com Meyer
(p. 235) da perplexidade diante da atualidade das marcas des-
sas obras culturais, pois “por mais moderno que se pretenda
ser, por mais distante que estejamos dos velhos tempos e te-
mas dos folhetins e do melodrama, parece que, para contar
uma boa história televisiva, não há como escapar dos gan-
chos, suspense, chamadas, retrospectos, acaso, coincidências
e emoção!”

Romance-folhetim e Telenovela
Meyer, ciente das particularidades de cada um deles, afirma
ser o folhetim um dos fundamentos da telenovela, sugerindo
que ela seria sua tradução atualizada. Aponta, ainda, que os
Representação do Popular nas Telenovelas 103

“modos melodramáticos” atravessariam ambos os gêneros.


Nessa linha, Ramos e Borelli (1989, p. 106), chegaram a cu-
nhar o termo “folhetim melodramático modernizado” para se
referirem às telenovelas.
Parecem incontestáveis essas influências, sendo, todavia,
relevante aprofundar algumas distinções importantes porque
se pretende delinear melhor os principais elementos que vêm
conformando o leque de alternativas estéticas que os realiza-
dores de telenovelas dispõem para construir as representações
do popular.
Por se privilegiar o lugar do escritor, as bases da arte das
‘escrituras’, nesse processo coletivo de realização da telenove-
la, decidiu-se indicar os principais aspectos do romance-fo-
lhetim que teriam influenciado na formulação das telenove-
las. Novamente, lembra-se que não se pretende desconsiderar
as influências do cinema, ou da estética audiovisual na con-
formação das telenovelas e da representação do popular ne-
las inscrita.
O valioso estudo sobre os romances-folhetins, da França
ao Brasil, elaborado por Meyer, permitiram compor bons indi-
cadores para se examinar modos de narrar e representar o
popular nas telenovelas. O primeiro deles diz respeito aos mo-
dos de narrar das telenovelas; o segundo concerne aos pro-
cessos de sua produção e circulação, nas inter-relações com
os modos de narrar, de consumir e de conformar os mecanis-
mos de distinção dos autores; e o último aponta para os te-
mas que dizem respeito à representação do popular.13
Os romances-folhetins ofereceram para as telenovelas a
sua característica de série (Eco, 1991), ou seja, a dimensão da
repetição e da longevidade. Exigia-se para tanto, por exem-
plo, a multiplicação de peripécias que não deixassem de atrair
o público, seja porque se conseguia surpreendê-lo, seja por-
que, de alguma forma, se lhe apresentava algo esperável (as
coisas que se repetem: temas, histórias, a estrutura narrativa,
personagens, modos de narrar e tantas outras). Associado aos

13 Vale ressaltar que a preocupação de elencar as características principais dos modos


de narrar e representar o popular não negligencia a diversidade de obras e autores,
ancorados em tempos e lugares que também os particularizam.
104 Telenovela e Representação Social

processos de repetição tem-se o fragmento, ou seja, uma nar-


rativa oferecida aos pedaços sob a fórmula do “continua ama-
nhã”. Isso leva a um conjunto de estratégias para garantir a
continuidade sem a perda do vínculo com o leitor. Dentre elas,
destaca-se os ganchos, ou os elos que se constroem entre es-
ses pedaços, que podem variar de tamanho e importância.14
No caso das telenovelas, tem-se a diferença dos ganchos entre
os intervalos comerciais e entre um capítulo diário e outro. A
exigência do “continua amanhã” promoveu também o desen-
volvimento de uma história contada pelas múltiplas tramas
articuladas num tronco principal, favorecidas pela redundân-
cia e por um “jeito de enredar” que entremeava essas narrati-
vas paralelas, mesclando surpresas e repetições. Observam-
se, por fim, várias modalidades do romance-folhetim (cômi-
cos, realistas, rocambolescos) e diferentes escritores com suas
marcas particulares.15
Como as telenovelas, os romances-folhetins mostraram que
não conheciam fronteiras e eram fontes de sonhos e lucros.
Essa capacidade de gerar lucros interferiu nos modos de narrar
– a fórmula do “continua amanhã”, esticando histórias e am-
pliando fontes de rentabilidade. Institui a necessidade de pro-
duzir histórias que podem ser consumidas por um público hete-
rogêneo, na sua maioria detentor de pouco capital cultural,
sendo analfabeto ou neófito no mundo da escrita. Foi-se bus-
car inspiração e referências em gêneros e estilos mais popula-
res, como o melodrama e o drama romântico. Absorvia-se o
cotidiano familiar, a história passada e presente do país e tantas
outras esferas de proximidade com os leitores, chegando à
imbricada relação com o fait divers, tão bem explorado por Meyer.
Foi-se arranjando formas de amarrar o freguês por meio das
formas de contar, de encadear as histórias e de desenvolver fa-
çanhas publicitárias, antecipando, por exemplo, as “revistas da
TV”. Introduziram-se a idéia e as formas do público sentir-se
participante dos destinos da história, como se ela pudesse mol-

14 Ver os estudos de Cristina Costa (2000).


15 Poder-se-ia, por exemplo, fazer uma analogia entre Eugénue Sue e Benedito Ruy
Barbosa, entre Balzac e Gilberto Braga e entre a paródia de Du Terrail e a irreverência
de Aguinaldo Silva.
Representação do Popular nas Telenovelas 105

dar-se completamente aos gostos do freguês. Procedimento que


ajudou a conhecer o perfil do público consumidor e suas ten-
dências de ampliação e diversificação, levando os editores a in-
vestirem no público feminino, a solicitarem tipos e temas para
as histórias e a distribuírem modalidades diferentes de folhetins
em função dos perfis dos consumidores. A característica co-
mercial desse gênero ajuda a compreender o processo de traba-
lho dos escritores, o ritmo do trabalho, a necessidade de ter au-
xiliares, a capacidade de negociar seus honorários com os edi-
tores e de construírem canais de reconhecimento e consagra-
ção nesse novo meio de produção artística, sem desconsiderar
os critérios da norma culta.16
Tanto o romance-folhetim quanto a telenovela são obras
culturais com fins comerciais, voltadas para um público he-
terogêneo e amplo, que foi cada vez mais se popularizando,
no sentido de ir contendo parcelas cada vez mais expressivas
de indivíduos com menor capital econômico e cultural. Essa
característica popular e massiva, pelo que se pode perceber,
permite compreender a necessidade dessas obras representa-
rem os vários segmentos sociais, de operários a burgueses.
Pontos de vista adotados variaram muito em função das con-
junturas, tradições locais etc. Assim seria possível pensar es-
sas representações a partir de fases. No caso dos romances-
folhetins, passou-se de um momento de forte crítica social para
o de apoio incondicional às convenções sociais. No caso das
telenovelas, a idéia de fases e a coexistência de pontos de vista
ideológicos diversos, também, se interpõem, havendo alguns
períodos mais politizados que outros. Ambos os gêneros tra-
zem em comum a censura interna à obra causada por uma
complexa relação das exigências de sucesso comercial do pro-
duto com as expectativas de entretenimento de um público
heterogêneo e extenso.
Da leitura do trabalho de Meyer foi possível descortinar três
grandes formas de representar o popular nos romances-folhe-
tins franceses. Na primeira fase (1836 a 1850) tem-se um lugar
especial para os miseráveis, desempregados, migrantes e operá-
16 Um longo parágrafo que poderia ser relido, só que substituindo o termo romance-
folhetim por telenovela.
106 Telenovela e Representação Social

rios, retratados como “classes laboriosas”, cada vez menos exó-


ticas e cada vez mais organizadas, reivindicativas, lutadoras e,
portanto, revolucionárias e perigosas. O happy end dos melo-
dramas perde a primazia, passando as articulações entre os gru-
pos e classes sociais a ser priorizada. Na segunda fase (1851 a
1871), a censura política e econômica se instalam. O caráter
das lutas sociais se arrefece, mas não se perde a crítica à hipocri-
sia social e ao “vale tudo” pelo dinheiro. As elites e o Estado
estiveram voltados para o propósito educativo e moralizante que
essas obras destinadas às massas deveriam ter, irão interferir no
conteúdo e na trajetória dos personagens que precisavam ser
fonte de testemunho dos bons costumes. A paródia, num perío-
do de vigorosa censura, foi um recurso muito usado pelo princi-
pal escritor da época, para poder pôr entre parênteses os senti-
mentos e valores institucionais. A paródia, na sua capacidade
de desnudar as regras pela expressão do seu contrário, destacou
um dos temas que carregam uma expressiva contemporaneida-
de – a banalização do mal, que aproxima pobres e ricos na luta
vil pelo dinheiro e por tudo que ele permite.
Na terceira fase (1871-1914), não mais se observará os
heróis românticos que empunhavam todas as suas armas con-
tra a coerção social e, muito menos, o herói da trapaça e da
astúcia que mediante a paródia colocava em evidência as
marcas ideológicas e amorais. Agora, observa-se o império dos
modelos burgueses de ascensão social. Um “realismo do coti-
diano” que constrói núcleos de ricos e de pobres. O primeiro
retrataria o que Meyer (1996, p. 387) chamou de indivíduos e
grupos “modulados numa hierarquia que vai da suntuosida-
de dos naturalmente ricos e bem-nascidos à ostentação dos
que lá chegaram”. Nos romances-folhetins eles tomavam
champagne e sonhavam com Paris, nas telenovelas eles toma-
vam whisky e sonhavam com a zona sul carioca e os “Jardins
de São Paulo”. Esse núcleo dos bem de vida mistura-se com o
dos pobres ou remediados. Para esses últimos se reservava os
valores da virtude e da dignidade. Espera-se também que ve-
nerem o espetáculo que os ricos proporcionam – o show de
sonhos que divulga modos e modas de viver, morar, vestir,
numa hierarquia social com ares de definitiva e cristalizada.
Representação do Popular nas Telenovelas 107

As proposições de Meyer, somadas às de Martín-Barbero


(1989, p. 122), permitiram aventar que a temática da ascen-
são social torna-se a partir do século XVIII um ideal difundido
pela burguesia que indica o desejável na trajetória dos indiví-
duos, como se a salvação religiosa fosse substituída pela sal-
vação oferecida pelo êxito social.17 Um tema central que per-
passa com maior ênfase os gêneros ficcionais populares quan-
do ocorre a consolidação da indústria da cultura.18 Foi este o
momento histórico francês que deu à luz o romance-folhetim
da terceira fase, e, que, na percepção de Meyer, mais analogi-
as permitiria com as telenovelas.
A temática da ascensão social surgindo como ideal de fe-
licidade, de caminho para a solução dos problemas colocados
pela Revolução Burguesa. De que problemas estariam falan-
do? Mais uma vez traz-se à baila as reflexões de Meyer (p.
393-400) sobre a recepção dos folhetins. Ela pergunta: o lado
sombrio19 das narrativas não seria um dos motivos do deleite
dos leitores? Associada a essa questão ela sugere uma interes-
sante chave de leitura – o binômio classes laboriosas/classes
perigosas, pois ele revelaria medos e horrores que estariam
cumprindo algumas funções para os leitores. Sem desconsi-
derá-la, e sem alongar inferências que extrapolariam os obje-
tivos aqui contemplados, diríamos que o importante é a di-
mensão do perigo e do medo associada ao popular, gerando
na narrativa e nos leitores controvérsias diante do que fazer
com tantos riscos e ameaças.

17 Um dos motivos da iconografia popular, a escada da vida ou árvore da vida,


permitiria visualizar essas mudanças. “A partir do século XVIII a função religiosa e a
imagem macabra desaparecem e são substituídas por imagens seculares. A escada e
suas fases se transformam em momentos da ascensão social e do necessário processo
de ‘amadurecimento’ do indivíduo para alcançá-la” (Martín-Barbero, 1987, p. 122).
18 Nota-se como os romances-folhetins franceses, por exemplo, apesar de abordarem
a temática da ascensão social desde o início, o faziam podendo explorar com ênfase
outras temáticas que davam um tom mais crítico ao pano de fundo ideológico e
burguês. A censura, quando associada à consolidação da hegemonia burguesa, pare-
cia tornar maior o peso que a ascensão social tomava, em detrimento aos outros
temas mais polêmicos como a justiça.
19 Como diz a autora (1996, p. 390), o lado sombrio das narrativas: “fascinadoras e
fascinantes pelo próprio excesso, pelo “mau gosto” que remetia ao obscuro, ao turvo
embutido no recôndito dos seres e das situações”.
108 Telenovela e Representação Social

Dos miseráveis de Eugéne Sue aos escravos dos romances


folhetins brasileiros, passando pelo trabalhador livre, pelos
imigrantes italianos e pelos migrantes nordestinos podería-
mos relacionar medos e riscos diferentes. O medo da doença,
da morte, da promiscuidade que se associa ao da violência
animalesca e destruidora que o negro escravo rebelado pro-
vocava. O medo dos migrantes que na busca por novos em-
pregos podem se transformar nos perigosos vadios dos espa-
ços urbanos. Os operários que podem ser portadores de maus
costumes e de ímpetos organizatórios, revolucionários e
destrutivos. Dos imigrantes, fortes competidores no mercado
de trabalho e na luta pela sobrevivência e pela ascensão soci-
al. Conflitos que tendem a “colocar em campos opostos” os
envolvidos nas lutas pelo trabalho e pela ascensão social.20
Um outro medo, que não mais abarca inteiramente o pon-
to de vista burguês, refere-se à justiça. Ela é claramente descri-
ta como de classe, ou seja, não é igual para todos, podendo os
ricos desconhecer a lei, enquanto os pobres sofrerem a ceguei-
ra da justiça. Exacerbaria-se a “angústia social” e a figura das
“vítimas de uma sociedade regida pela lei do mais forte”.
Sobressaem os riscos, os medos e as angústias, por um
lado, e os dispositivos que deveriam restaurar a confiança,
por outro, fornecendo conhecimentos e experiências emocio-
nais que pudessem aplacar os problemas apreciados no coti-
diano de cada leitor. E, mais uma vez, os aportes de Meyer,
somados aos de Giddens, sugerem um outro foco interessante
de análise: a família e a mulher21 como possíveis formadores
da confiança e dos espaços de segurança.
Os romances e gêneros ficcionais foram importantes ins-
trumentos civilizatórios de mulheres que buscavam modos de
vida mais modernos. Para tanto, deveriam estar atentas aos
padrões de intimidade e novos papéis femininos na família
ditados pelos médicos, pelos homens de bem e pelos livros,22
20 Ver nota 44, p. 406, em Meyer (1996).
21 Reforçando mais uma vez as linhas de estudo sobre telenovelas que as consideram
um espaço por excelência da dramatização do familiar e do feminino.
22 Os romances filiados ao “lirismo francês” surgem a partir de 1857, explorando a
“doçura do lar”, aquele espaço da felicidade, onde impera a “doçura da mulher”
(Meyer, 1996, p. 109).
Representação do Popular nas Telenovelas 109

revistas, que ditariam as novas regras para a organização


doméstica e as novas formas de agir e pensar diante dos peri-
gos provenientes da pobreza, dos pobres, criminosos, imigran-
tes e negros. Recursos reflexivos que representaram no Brasil,
por exemplo, a passagem do tradicional escravo doméstico da
colônia e do Império – que tinha uma presença constante na
casa grande – para a governanta da família higienizada da
República, onde o negro já era sinônimo de doença e imorali-
dade, necessitando controle, seleção e substituição. Observa-
ção que remete, curiosamente, a um dos lugares mais fre-
qüentes de representação do popular nas telenovelas contem-
porâneas, as empregadas domésticas.
Não só a família e a mulher burguesa precisavam moder-
nizar-se, civilizar-se, habilitando-se para lidar com os medos e
angústias que a presença cotidiana dos trabalhadores – es-
cravos, operários, migrantes e imigrantes – e vagabundos re-
presentavam. Também o Estado, as instituições religiosas e o
patronato buscavam formas de punir, controlar e educar as
classes laboriosas e perigosas, tendo nos jornais e outras pu-
blicações um apoio incisivo.
Um outro e importante sentimento, que não deixa de es-
tar associado ao medo do popular, à temática da ascensão
social e ao caráter feminino e familiar da narrativa, é o amor.
O lado negativo do povo (negros, prostitutas, usurpadores)
associaria-se aos excessos, dentre eles o de ordem sexual. Es-
ses personagens, por meio da sedução e da paixão, corrompe-
riam ou destruiriam as virtudes, a honra, a moral familiar, o
destino das crianças e filhos ilegítimos, o casamento
monogâmico. O lado positivo do povo (trabalhadores e víti-
mas das desgraças sociais) se agregaria às virtudes, à astúcia,
à coragem, à perseverança, onde o amor (em especial, o
devocional e isento de ardores sexuais) seria um instrumento
vital para garantir a presença do bem, a cumplicidade entre
patrões e empregados, assim como o êxito que levaria ao final
feliz. Repetidamente, personagens de distintas e antagônicas
posições sociais se entrecruzavam tendo o amor como mote,
apresentando variações em função do ponto de vista dos au-
tores, limitados pela maior ou menor possibilidade de expres-
110 Telenovela e Representação Social

são política de sua época. De qualquer forma, nota-se a fre-


qüência, por exemplo, com que casamentos podiam aproxi-
mar e mudar posições sociais.
O que a leitura do estimulante trabalho de Meyer mos-
trou foi a presença das lutas simbólicas nos folhetins que re-
presentam, com maior amplitude, os pontos de vista burgue-
ses, indicando, assim, que a partir desse lugar as representa-
ções do popular invocam, não só os medos e as angústias so-
ciais, como também, pedagogicamente, introduzem as práti-
cas de controle e resolução dos problemas que o binômio clas-
ses laboriosas/perigosas prescrevem. Em especial, os espaços
associados a um dos principais destinos dessas representações,
que no caso dos folhetins era o feminino e a sua mais nova
função – a gestão da família nuclear. Por fim, deixou vislum-
brar que os conflitos sociais e individuais característicos das
buscas permanentes de ascensão social e da realização afetiva
e amorosa ocupam lugares de destaque na narrativa.
111

Campo da Telenovela

A noção de campo da telenovela no Brasil implica em uma


análise histórica dos processos de elaboração, distribuição
e consumo desse gênero na sociedade Brasileira, assim como
um descortinar das instituições e agentes realizadores que
fazem parte dessa história. Essa abordagem contribui na iden-
tificação do que Bourdieu denominou de estados do campo,
ou seja, fases correspondentes a marcos temporais caracteri-
zados pelo conjunto de condições particulares de exercício de
determinadas formas de conceber, produzir e consumir as te-
lenovelas.
Dar corpo a noção de campo da telenovela antecipava
vários problemas. Entre eles, destaca-se a sua originalidade,
no sentido de que até então essa idéia estava apenas esboçada
no trabalho de Ramos e Ortiz (1989). Isto posto, optou-se por
uma demarcação dos elementos básicos que conformam o
campo da telenovela. Explorou-se, então, as disputas em tor-
no da denominação telenovela e suas relações com os siste-
mas de reconhecimento, distinção e consagração do gênero e
de seus realizadores. Outra providência tomada foi pautar-se
em pesquisas já realizadas sobre cada uma das dimensões que
compõem o campo, evitando desenvolver muitas frentes
concomitantes e amplas de trabalho. De qualquer modo, acre-
dita-se que o caráter exploratório não diminui a importância
da construção do conceito, frente à sua capacidade explicativa
das relações entre os pontos de vista dos realizadores e as re-
presentações do popular nas telenovelas.
A fase de formação do campo da telenovela (anos 50 e
70) corresponde às primeiras condições tecnológicas, artísti-
cas, econômicas e políticas que propiciaram o surgimento das
emissoras, dos realizadores e do produto telenovela. A primei-
112 Telenovela e Representação Social

ra televisão foi inaugurada em 1950 e a telenovela vem logo


depois, no ano seguinte. O empresário responsável por isso,
Assis Chateaubriand, munido do espírito empreendedor e
desenvolvimentista da época, resolveu, mesmo à revelia das
condições técnicas e econômicas, trazer para o Brasil os bons
resultados da televisão no exterior. Esse novo suporte aportou
em terras brasileiras, nos grandes centros econômicos da épo-
ca, Rio e São Paulo, sem se saber o que fazer com ela, sem se
ter o mercado publicitário convencido do seu potencial, sem
se ter os profissionais preparados. Mas o desafio estava posto
não só para alguns empresários, como para agências gover-
namentais e os homens e mulheres que iriam se preocupar
em construir a televisão brasileira. Até início dos anos 60 exis-
tiu uma telenovela incipiente, experimental, um produto a ser
desenvolvido e melhor definido, centralizado no eixo Rio e São
Paulo, lutando contra a falta de condições econômicas e téc-
nicas para ser explorado.
Na década seguinte surgiram as condições técnicas e pro-
fissionais mínimas para se poder desenvolver o gênero, desta-
ca-se: (1) a introdução do videoteipe em 1963; (2) a maior
experiência dos profissionais que passaram a contar com o
apoio de escritores e técnicos estrangeiros, principalmente
norte-americanos; e (3) o uso de sistemas de telecomunica-
ções que estabeleceram os links regionais e nacionais, permi-
tindo a expansão do mercado e a maior influência do Estado
no território nacional. Nesse momento já estavam presentes
mais de uma emissora de TV e a concorrência entre elas. Um
público cativo e urbano mostrava fortes sinais de crescimen-
to. Observa-se o debate entre os realizadores sobre o que seria
uma telenovela, culminando, ao final da década, no surgi-
mento de um formato considerado a vanguarda nas telenove-
las (Beto Rockefeller, 1968). Tem-se assim um dos primeiros
marcos de inflexão da história do gênero, demarcando a par-
tir daí um determinado modo de fazer e pensar a telenovela.
Pode-se dizer, então, que os principais elementos que configu-
raram um campo particular de práticas já estavam presentes.
O gênero já tinha conquistado um lugar expressivo na pro-
gramação televisiva, mostrando ser um espaço importante de
Campo da Telenovela 113

trabalho para os profissionais da comunicação audiovisual e


televisiva, desejosos do fortalecimento da teledramaturgia
nacional. Um produto que mostrava um enorme potencial de
expansão para o mercado e representava um importante ins-
trumento para os projetos modernizadores do Estado.
Nos anos 70 observa-se a fase de consolidação do campo,
quer dizer, um fortalecimento dos elementos anteriormente
descobertos e implementados. Nesse momento lida-se com a
efetiva expansão e afirmação do campo, onde as inovações
tecnológicas continuam se ampliando. O mercado publicitá-
rio passa a apresentar um aumento assaz expressivo, tendo a
telenovela, como um dos eixos centrais da rentabilidade das
emissoras. Começam a vigorar as novas regras de funciona-
mento das empresas, mais racionais e voltadas para uma
moderna organização gerencial, redefinindo desde o lugar da
telenovela na grade de programação das emissoras, até as re-
lações de trabalho com os novos profissionais da área. O Esta-
do autoritário no final da década anterior estipulou algumas
regras básicas para o funcionamento e os objetivos da televi-
são e da telenovela, assim como interferiu na forma de orga-
nização das empresas, dispositivos que tiveram um peso im-
portante nas lutas concorrenciais entre as emissoras. Como
resultado desse novo contexto, as disputas entre as emissoras
resultaram numa perda expressiva para a extinta TV Excelsior
e em crises profundas para a TV Tupi – ambas se retiram do
mercado ao final da década –, e na emergência da hegemonia
da TV Globo, que se transforma desde então na principal emis-
sora de TV do país e na maior produtora de telenovelas.
Aumentou-se o conjunto de trabalhadores da televisão e
exacerbou-se o movimento em prol da profissionalização e
especialização de funções do setor, que a partir de então se
volta para as experiências que melhor qualificam a obra, ga-
rantindo o score necessário para a competição nacional e in-
ternacional do produto telenovela. Os principais realizadores
de telenovelas – os escritores – passam a ter o primeiro gran-
de contato com as ingerências das regras de mercado da cul-
tura e das pressões do governo autoritário. A resposta desses
profissionais a essa nova característica se dá a partir da tenta-
114 Telenovela e Representação Social

tiva de subversão a essas regras e pressões, aprendendo ao


longo do período a lidar com os sistemas internos de consa-
gração de suas práticas, os quais oferecem uma situação mais
favorável para a negociação dos espaços de criação e das con-
dições de trabalho com as empresas. A inversão na formação
dos profissionais e nos equipamentos introduz novos elemen-
tos no debate e nas formas de se conceber as telenovelas, como
é o caso da experiência com a gravação das cenas externas e
sua repercussão na concepção de uma linguagem audiovisual
mais madura, que naquele momento foi chamada de cinema-
tográfica, e de enredos mais voltados para a realidade brasi-
leira. Cresce nesse meio o papel dos diretores, que na década
seguinte despontarão como importantes realizadores de tele-
novelas, sendo capazes de definirem uma linguagem audio-
visual própria e particular da televisão brasileira e, por conse-
guinte, das telenovelas.
Nessa ocasião, as emissoras e os realizadores de telenovelas
afinam as relações com os telespectadores, a pequena burguesia
ascendente e urbana, atingindo resultados que se tornam im-
portantes pontos de referência para os anos posteriores.
Nos anos 80 e início dos anos 90 – a fase de ampliação e
reestruturação – novos cenários alteram o campo: o fim do
regime militar, um mercado cultural concentrado e poderoso,
a democratização da sociedade brasileira, uma crise econô-
mica que fragiliza o mercado publicitário, mudanças na con-
figuração do telespectador (maior segmentação, extensão
geográfica e ampliação das camadas sociais atingidas) e as
constantes inovações tecnológicas no meio audiovisual e das
telecomunicações.
Inicia-se um novo debate frente ao sistema de controle
dos media. O Estado continua sua atuação na área das teleco-
municações, modificando substancialmente a sua presença
como censor. Mantém as linhas gerais de exigências culturais
e educativas para as telenovelas e torna-se um dos principais
anunciantes da televisão.
Na década de 1980, as emissoras enfrentam a crise no
mercado publicitário. Saíram vencendo a batalha a TV Globo
e O SBT. A rede Manchete se desarticula. Novas emissoras des-
Campo da Telenovela 115

pontam no cenário, demarcando um novo momento na con-


corrência entre elas, como é o caso da Record. A TV Globo
continua no pódio, a principal produtora de telenovelas, com
altíssimos índices de audiência que se modificam apenas na
década seguinte. No início dos anos 90, pela primeira vez de-
pois de muitos anos, a TV Globo se depara com a primeira
grande concorrência na área da telenovela. Novas produções
desse gênero televisivo ressurgiram, mas o poderio da TV Glo-
bo mostra-se ainda inabalável.
Os profissionais da área estabelecem os primeiros confli-
tos coletivos com a empresa, mostrando em seus depoimentos
as condições estafantes de trabalho. Os altos salários e as dife-
renças entre os profissionais se acentuam, assim como o res-
surgir das disputas pelos profissionais consagrados entre as
emissoras, trazendo uma nova reorganização na equipe for-
mada pela TV Globo, como foram os casos das saídas de Roberto
Talma e Daniel Filho, e dos conflitos legais em torno das
propaladas mudanças de emissora de escritores do calibre de
Aguinaldo Silva e Benedito Ruy Barbosa, por exemplo.
Os escritores e diretores de maior expressão no campo es-
tão se movendo no interior da TV Globo, observando-se uma
ampliação no número dos profissionais circulantes. Novos es-
critores e diretores aparecem, tornando-se importantes marcas
das telenovelas da emissora. Destacam-se: Gilberto Braga,
Aguinaldo Silva, Glória Perez, Sílvio de Abreu, Carlos Lombardi.
O mesmo pode-se dizer dos diretores que, nestas décadas, am-
pliaram o número efetivo de profissionais e as suas possibilida-
des de experimentar a autoria. Tornam-se expressivas as abor-
dagens audiovisuais de veteranos como Daniel Filho, Walter
Avancini, Carlos Manga, Roberto Talma e Paulo Ubiratan, e
dos novatos Dênis Carvalho, Jorge Fernando, Wolf Maya, Jayme
Monjardim, Ricardo Waddington e Luiz Fernando Carvalho.
O debate sobre a crise nas telenovelas se instaura a partir
do início dos anos 80, antevendo, entre outras coisas, um
momento da história do campo onde os profissionais já consi-
derariam a existência de uma evolução no gênero a ponto de
ele se encontrar, para alguns, em um momento necessário de
redefinições.
116 Telenovela e Representação Social

Nesse período novos marcos do gênero surgiam. Não se


pode esquecer da importância de Vale tudo, Roque Santeiro,
Pantanal, Que rei sou eu? Renascer. Um revigoramento das temá-
ticas sociais e políticas foi retomado a partir de meados dos
anos 80, chegando a ser cunhado nos anos 90 o termo
merchandising social em função da freqüência e dos modos de
abordagem das questões sociais nas telenovelas, que não mais
se restringiram ao ‘horário das 20:00 horas’. É também o perí-
odo dos grandes remakes, seja na TV Globo ou fora dela, mos-
trando um curioso sinal da história do campo que já usufruía
um passado que podia ser reinventado. Esse movimento tor-
na-se, exemplarmente, uma das estratégias de concorrência
entre as emissoras.
Por fim, o campo da telenovela também é muito sensível à
história do campo artístico brasileiro, em especial das áreas
que lhes são mais próximas: a literatura, o cinema, o teatro e
a música, e a história dos espaços de produção da imprensa e
do rádio. Analisaremos, mais adiante, as principais implica-
ções dessas relações no campo da telenovela, objetivando tra-
çar os aspectos mais centrais que consubstanciam as princi-
pais influências que funcionam como aquele espaço de possí-
veis que os realizadores dispõem para elaborar as representa-
ções sociais do popular.

O Estado na Formação e Regulação do Campo


O Estado brasileiro exerceu um papel de construtor do mer-
cado dos bens simbólicos e do campo artístico. Essa é uma das
idéias norteadoras da análise realizada por Ortiz (1988), a
qual interessa reter, pois parece essencial para compreender o
papel do Estado brasileiro no campo da telenovela. Retoman-
do o que já foi explicitado anteriormente, Ortiz (p. 49) lembra
que o incipiente desenvolvimento do capitalismo brasileiro dos
anos 20 e 30 impedia a expansão das empresas culturais.1 O

1 Isso não quer dizer que o governo de Getúlio não tivesse tido interesse em estruturar
um sistema nacional e estatal de radiodifusão, recorda Ortiz. O fato é que inteligen-
temente, frente às condições econômicas e políticas da época, o governo optou pelo
apoio às empresas culturais, regulamentando a publicidade do rádio e utilizando-o
como veículo publicitário (Ortiz, 1988).
Campo da Telenovela 117

Estado assume o papel de facilitador dessa expansão,2 trans-


formando os anos 60, principalmente a sua segunda metade,
num marco para pensar o surgimento da televisão como veí-
culo de massa (p. 49 e Mattelart, 1989). Fenômeno que tam-
bém se relaciona à presença de um Estado forte e autoritário
que se instala em 1964.
Chama a atenção, também, os principais incentivos do
Estado ao aparato tecnológico que viabilizou a expansão da
TV. De acordo com Ortiz (1988), “em 1965 cria-se a Embratel,
que inicia toda uma política modernizadora para as teleco-
municações. Neste mesmo ano o Brasil se associa ao sistema
internacional de satélites (Intelsat), e em 1967 é criado um
Ministério de Comunicações. Tem início a construção de um
sistema de microondas, que foi inaugurado em 1968 (a parte
relativa à Amazônia é completada em 1970), permitindo a
interligação de todo o território nacional. Isso significa que as
dificuldades tecnológicas, das quais padecia a televisão na
década de 1950, podem agora ser resolvidas. O sistema de re-
des, condição essencial para o funcionamento da indústria
cultural, pressupunha um suporte tecnológico que no Brasil,
contrariamente aos Estados Unidos, é resultado de um inves-
timento do Estado” (p. 118). O Estado é considerado, portan-
to, um importante estimulador e viabilizador do mercado de
bens simbólicos, depositando uma atenção especial no poten-
cial econômico e político da televisão e em um dos seus princi-
pais produtos depois de meados dos anos 60, a telenovela3.
Outra dimensão que mostrava a fragilidade da indústria
cultural e do mercado de bens simbólicos nos anos 40 e 50 era
a frágil e incipiente racionalidade capitalista empresarial. O
2 Vale lembrar a solenidade de inauguração da segunda emissora de televisão brasi-
leira, a TV Tupi do Rio (janeiro de 1951). Ela transcorreu num clima de euforia
desenvolvimentista, contando com a presença do “Presidente da República, o prefeito
do Distrito Federal e a senhora Deborah Mendes de Moraes”, os quais “ligaram os
transmissores no Pão de Açúcar – passo gigantesco dos ‘Associados’ em prol da evolu-
ção artística de nosso povo”, noticia a imprensa (Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 13).
3 Tal consideração leva a pensar, por exemplo, que o videotaipe, equipamento técnico
que permitiu o surgimento da telenovela diária, assim como o desenvolvimento da
linguagem audiovisual, não teriam, provavelmente, sido capazes de transformar a
telenovela no principal produto da TV sem o advento do sistema de redes estruturado
pelo Estado em 1969.
118 Telenovela e Representação Social

regime militar, ao imprimir um projeto de internacionalização


do capital, estava, também, incentivando uma nova gestão
administrativa e financeira, que não mais contemplava o esti-
lo dos capitães de indústria. No caso da televisão, a referida
racionalidade expressou-se com vigor nos anos 60, tendo como
duas representantes importantes a TV Excelsior e a TV Globo.
Não obstante o espírito empreendedor de Chateaubriand ca-
racterizar o estilo de uma época, sabe-se que ele não corres-
pondia ao capitalismo dos anos 60 e 70. Nessas décadas “os
grandes empreendedores do setor cultural administram con-
glomerados englobando diversos setores empresariais, desde
a área da indústria cultural à indústria propriamente dita” (p.
134). O estilo a ser introduzido não mais correspondia ao dos
capitães da indústria, os quais não sabiam submeter à vonta-
de individual a racionalidade da empresa. Era necessário sa-
ber delegar e superar o espírito desbravador e criador dos gran-
des fundadores que se construíram à imagem e semelhança
de suas empresas. Walter Clarck (p. 135) lembra bem que “o
sucesso da TV Globo tem a ver com o fato do Roberto Marinho
ter entregue a TV para que ele, o Joe Wallace, o Boni, o José
Ulisses Arce e o José Otávio Castro Neves, a fizessem”.
Torna-se compreensível o depoimento dos pioneiros da
televisão e das telenovelas que, ao falarem dos primeiros anos
da TV no Brasil, alimentavam o espírito coletivo, experimen-
tal, inovador e criativo da teledramaturgia, pois eles ainda não
conheciam, em toda a sua extensão, os limites impostos pelas
regras de produção empresariais, as quais se consolidam nos
anos 704. Assim como passam a ser mais compreensivas as
queixas posteriores a essa década, quando os produtores cul-
turais reclamavam de falta de criatividade, de individualismo
exacerbado e de condições escravizantes de trabalho.
Em termos culturais, como diz Ortiz (1988, p. 114), o pa-
pel central do Estado na conformação do mercado dos bens
simbólicos trouxe conseqüências imediatas, devido ao fato de
que, “paralelamente ao crescimento do parque industrial e do
mercado interno de bens materiais, fortaleceu-se o parque

4 Ver, especialmente, os depoimentos levantados por Klagsbrunn e Rezende (1991).


Campo da Telenovela 119

industrial de produção de cultura e o mercado de bens cultu-


rais”. O que o autor buscou ressaltar foi a atenção do Estado
à dimensão simbólica envolvida nesse processo, a qual apon-
tava claramente para problemas ideológicos. Por isso, ele afir-
ma, o Estado tratou de forma diferenciada essa área, onde a
cultura poderia também expressar valores e disposições con-
trárias às diretrizes políticas por ele defendidas.
Tal diferenciação foi bastante desenvolvida pelo regime
autoritário frente ao seu papel de “promotor do desenvolvi-
mento capitalista”. Esse cuidado é observado quando se per-
cebe que o governo não se deteve somente na censura de ca-
ráter repressivo. Ao contrário, desenvolveu a face disciplina-
dora da censura, aquela que definia uma série de eixos
temáticos orientadores de um determinado projeto de moder-
nização que se pretendia implantar no país, sem deixar de
incentivar o crescimento da indústria da cultura (p. 114 a 116).
Um crescimento que não deixou de ter como critério de ade-
são política ao governo, como se pode observar a história da
TV Excelsior. As posições nacionalistas dessa emissora leva-
ram à sua cassação em 1969, depois de fortes medidas gover-
namentais contra o grupo empresarial que a sustentava eco-
nomicamente. Quatro anos antes, em 1965, a TV Excelsior já
sofria restrições econômicas advindas desse embate com o re-
gime militar, mostrando como ela era um empreendimento
“viável economicamente, mas inviável politicamente” (p. 154,
uma fala de Wallace Simonsen Neto, um dos donos da emis-
sora). Tem-se, dessa forma, mais um elemento facilitador da
ascensão da TV Globo no campo, pois se debilitava uma das
suas principais concorrentes, senão a única que poderia de
fato disputar com ela o pódio da emissora de TV mais impor-
tante das décadas seguintes, pois ambas guardavam as dispo-
sições empresarias, tecnológicas e artísticas para tanto.
Ortiz (p. 165) recorda também que “a relação entre cul-
tura e política se expressava como complementaridade nos
anos 50 e até meados de 60, porque vivíamos um clima de
utopia política no interior de uma sociedade de mercado
incipiente. Os grupos culturais podiam, dessa forma, associar
o fazer cultura ao fazer política. Com o golpe militar e o avan-
120 Telenovela e Representação Social

ço da sociedade de consumo ocorre um desenvolvimento e


uma especialização do mercado”. Nesse contexto, vale frisar
a forte tendência a especialização e a profissionalização dos
produtores culturais. Desde então, comenta Ortiz, pode-se
observar o aumento da dicotomia entre trabalho cultural e
expressão política. “Enquanto cidadãos, como o resto da po-
pulação, eles podem participar das manifestações políticas;
profissionais, eles devem se contentar com as atividades que
exercem nas indústrias de cultura ou nas agências governa-
mentais”.
A presença de autores de esquerda (e outros trabalhado-
res da cultura) na televisão, monopólio privado aliado ao go-
verno militar, colocou-os na contradição vivida por aqueles
que não pretendiam deixar de expressar o engajamento polí-
tico, apesar de terem aceitado trabalhar nas referidas condi-
ções impostas pela TV (Mattelart, 1989, p. 96; Kehl, 1979/1980;
Ortiz et al, 1989). Muitos deles, inclusive, migraram para a TV
por não conseguirem mais espaço para trabalharem no tea-
tro ou no cinema (Ortiz, 1988). Migração que explica em par-
te o reconhecimento dos anos 70 como o mais criativo da
teledramaturgia brasileira, e, sem dúvida, o lugar da TV Glo-
bo como uma das maiores beneficiárias dessa onda criativa.
Nas décadas anteriores observou-se um Estado fomen-
tador das bases culturais, econômicas e políticas que garanti-
ram um projeto de modernização conservadora na Sociedade
Brasileira. A televisão tinha um lugar importante nesse proje-
to frente as promessas que ela trazia ao afirmar o seu poder
de mudar os comportamentos das massas telespectadoras por
meio da propalada dimensão educativa. A televisão podia, e
para alguns devia, tornar-se um importante aliado do Estado
no seu empreendimento modernizador. As bases mais impor-
tantes para tal aliança entre as forças governistas e as emis-
soras de TV – tecnológicas, financeiras e legais – foram
lançadas na década anterior. Restava agora consolidá-las. Os
momentos mais duros do regime autoritário garantiram esse
novo momento. A televisão ao afirmar-se no mercado, contu-
do, mostrou-se mais forte para lutar por seus próprios inte-
resses que, entre outras coisas, significou a manutenção de
Campo da Telenovela 121

uma linha de telenovelas mais sintonizada com as boas res-


postas do mercado, as quais nem sempre apresentavam uma
adequada sintonia com os preceitos do governo. O imponde-
rável estabeleceu-se: essas obras tornaram-se um perigoso
reduto das críticas ao projeto de modernização em curso na
Sociedade Brasileira (Ramos e Borelli, 1989).
Observou-se assim um governo autoritário interessado em
organizar sua interferência para além dos suportes técnico e
econômico do sistema televisivo. Manteve, por um lado, o in-
vestimento no setor de telecomunicações, destacando-se o uso
do sistema Internacional de satélites, sendo o Brasil em 1974
o quarto usuário. Quatro anos depois, em 1978, finalizou o
sistema de redes iniciado em 1969, com a inauguração das
últimas estações terrestres de transmissão de ondas pelo terri-
tório nacional (Ortiz et al, 1989 e Mattelart, 1989). Por outro
lado, não perdeu de vista a necessidade de estar presente na
definição das linhas gerais da programação televisiva, parti-
cularmente das telenovelas, sem descurar das exigências de
qualidade a ser perseguida. Walter Clarck (1991), importante
manager da TV Globo nos anos 70, conta que a inserção da
cor na televisão deveu-se, por exemplo, a uma exigência do
Ministro das Comunicações (1973), gerando um enorme des-
conforto no meio televisivo, pois ele não estava preparado para
essa nova modalidade técnico-estética.
Isso significa que nos anos 70 a hegemonia da TV Globo
se constituiu no campo a partir dessa tensa, mas efetiva rela-
ção de atenção às demandas do governo militar. Buscou aten-
der às exigências estatais presentes nos Planos e Políticas Na-
cionais de Cultura, nos discursos de ministros e presidentes
militares. Ela desenvolveu a “recreação, informação, educa-
ção e cultura qualificada”, a “preservação da memória nacio-
nal”, a “integração nacional”, a “crença na nacionalidade” e
a “identificação do estilo brasileiro de vida” (Kehl, 1979,
Mattelart, 1989 e Ortiz et al, 1989).
Pensa-se, ainda, que a ação disciplinadora da censura,
acentuadamente coercitiva nos anos 70, foi capaz de interfe-
rir fortemente na construção de eixos temáticos na narrativa
das telenovelas, entre os quais se destaca a urbanização e a
122 Telenovela e Representação Social

modernização da Sociedade Brasileira (Kehl, 1979; Ramos e


Borelli, 1989).
O governo exigiu, por exemplo, uma programação que
combatesse o tom popularesco e grotesco que se expandiu na
década anterior, pois caberia à televisão expor o bom compor-
tamento das classes altas e médias (Borelli e Ramos, 1989, p.
85). Essa exigência teria gerado no campo da telenovela uma
curiosa resposta: as maiores emissoras da época – TV Tupi e
TV Globo – assinaram um protocolo de autocensura assumindo
o controle dos programas populares mais visados, como
Chacrinha e Dercy Gonçalves (Ortiz, 1988, p. 120). Surgia as-
sim uma regra de convivência entre as emissoras instituída
como resposta às pressões governamentais.
A TV Globo estabeleceu também o atendimento às deman-
das educativas e sociais solicitadas pelo governo, sendo a Fun-
dação Roberto Marinho e as campanhas sociais os exemplos
mais emblemáticos. Além disso, construiu os critérios de qua-
lidade que exigiam produtos audiovisuais de padrão interna-
cional, mostrando um Brasil altaneiro e vencedor para o mun-
do inteiro, ou seja, uma janela aberta para a idéia moderna
da identidade nacional (Kehl, 1979; Mattelart, 1989 e Ortiz et
al, 1989).
A TV Globo optou por uma estreita aproximação com o
regime militar que evitasse para ela o triste fim da TV Excelsior,
e, ao mesmo tempo, pudesse garantir o desenvolvimento de
estratégias particulares ao processo de produção e distribui-
ção de uma TV comercial que esperava aliar qualidade artísti-
ca ao sucesso econômico. Para tanto, por exemplo, a TV Glo-
bo contratou os melhores realizadores da época, oferecendo a
eles o máximo de abertura para criarem suas obras. Procedi-
mento que marcou essa época como a mais criativa da histó-
ria da telenovela, mas também a mais perseguida pela censu-
ra, já que a veia criativa estava associada a posturas mais crí-
ticas aos aspectos políticos e culturais do projeto modernizador
do governo autoritário.
Configura-se, assim, uma tensão expressiva entre um re-
gime militar que incentivava a construção de uma moderni-
zação conservadora e a TV Globo que amparava e difundia
Campo da Telenovela 123

uma teledramaturgia voltada para posturas críticas e eman-


cipadoras. O depoimento de Walter Clarck é, de fato, ilustrativo.
Ele conta que tiveram problemas com a censura em Despedi-
da de Casamento e Roque Santeiro. Elas foram gravadas parci-
almente, com “chamadas no ar”, mas não foram levadas ao
público, gerando um grande prejuízo. “A Despedida, de Durst,
tinha até assessoria técnica de psicanalista como o Gaiarsa.
Nada disso comoveu a censura que via ali a pura dissolução
dos costumes” (Ramos e Borelli, 1989, p. 88).
O evento causado em torno da censura de Roque Santeiro5
chegou a gerar um esclarecimento por parte do governo quan-
to aos seus princípios, lembra Ramos e Borelli (1989:89), sen-
do lançado uma portaria do Ministério da Justiça. O docu-
mento avaliava que “a telenovela poderia ser ‘de um lado vali-
oso instrumento de educação, e de outro, meio eficaz de de-
turpação de valores éticos da sociedade’, requerendo, portan-
to, uma regulamentação específica. A argumentação era que
a legislação da censura vigente era antiga, de 1946, anterior à
televisão e à telenovela, necessitando por isso de uma atuali-
zação. Exigia-se assim ‘censura prévia do texto integral’ e da
‘gravação de todos os capítulos’, estabelecendo-se proibições
relativas ao uso de drogas, exploração do sexo, pregando-se
ainda o respeito às tradições e valores da nossa civilização”.
As censuras sofridas pelas telenovelas da TV Globo mos-
traram que os produtores culturais pregavam mudanças mais
profundas de comportamento (na esfera do casamento, da
sexualidade, das relações entre pais e filhos) e as instituições
governamentais representavam as forças conservadoras que
pregavam uma modernização econômica urbano-industrial,
sem, contudo, alterar os velhos costumes.6
O objetivo desta análise até aqui realizada foi o de estabele-
cer os aspectos centrais que constituiram o papel formador e
5 Jornal do Brasil, 27/04/1980, Caderno Especial 15 anos da TV Globo, p. 2. “O Que
Não Pode Ser Visto”.
6 Supõe-se, inclusive, que os produtores culturais que defendiam projetos de moderni-
zação da sociedade brasileira mais inovadores na esfera dos costumes estivessem em
permanente negociação com os representantes do governo e da emissora pela maior
liberalização de seus textos. Um movimento que representa também a disposição dos
realizadores em buscarem incessantemente a novidade e as mudanças.
124 Telenovela e Representação Social

regulador do Estado no campo da telenovela. Nessa medida,


mostra-se importante finalizar o balanço da ação do Estado
dos anos 70 com uma interessante reflexão de Mattelart (1989,
p. 51) sobre esse fenômeno da autonomia relativa das emisso-
ras de televisão frente ao governo autoritário. Ele diz que “a
racionalidade da propaganda de Estado que manda organizar
explicitamente a mídia como dispositivo de técnicas disciplina-
res entrou em contradição no Brasil com a lógica de cultura de
massa”. A ditadura militar estaria comprometida com o desen-
volvimento da indústria cultural, com uma “etapa acelerada de
seu projeto de desenvolvimento industrial, de ampliação e de
internalização de seu mercado interno, onde a TV terá um pa-
pel pioneiro na conquista da nova fronteira comercial” (p. 51).
O autor buscou enfatizar com essa afirmação que as análises
apressadas que comparam facilmente os movimentos fascistas
e nazistas europeus com as experiências autoritárias latino-ame-
ricanas perdem de vista as particularidades dessas últimas. Não
se veria, por exemplo, o “inédito do autoritarismo brasileiro”,
que consistiu na existência do seguinte paradoxo: “seu projeto
político recorre à coerção e ao enquadramento policial da soci-
edade, ao exercício da violência não-simbólica, o poder do Es-
tado, para assegurar um consenso, se dirige efetivamente aos
aparelhos mercantis da cultura de massa, produtos formais de
uma concepção política de uma sociedade em que a opinião
pública é reconhecida e atuante. Uma cultura de massa que
corresponde a uma idéia de democracia representativa, a um
projeto de democratização do mercado de acesso à informa-
ção, à cultura, ao lazer” (p. 52).
Tais considerações ajudam a refletir sobre o permanente
interesse do Estado em criar e regular os meios massivos de
comunicação, agindo como facilitador dos sistemas de apoio
para o desenvolvimento da televisão (sistemas de telecomuni-
cações, medidas econômicas, sistemas de crédito, aparatos
legais) e dos programas de maior apelo popular, como a tele-
novela. Interesse que, de certa forma, independeria do cará-
ter autoritário do regime.
Essas funções formadoras e reguladoras do Estado foram
assim uma característica da presença dele na história do campo
Campo da Telenovela 125

da telenovela, a qual expressava a existência de um espaço


permanente de negociação das emissoras com o governo mi-
litar devido a necessária autonomia das empresas para ex-
pandirem um empreendimento econômico que, em contrapar-
tida, atendiam aos interesses governistas, oferecendo “infor-
mação, lazer e cultura”.
Essas características do regime militar – que envolviam a
criação e a regulação negociada dos processos de produção e
difusão dos produtos mediáticos – estiveram articuladas ao
crescimento econômico e cultural da emissora, viabilizando
um fenômeno citado pelos estudiosos de telenovelas: a ante-
cipação da TV Globo ao processo de abertura política associa-
do às severas práticas internas de censura após a referida aber-
tura (Kehl, 1979 e Ortiz et al, 1989). Instaurou-se uma ten-
dência em que a censura às telenovelas tornou-se, com o tem-
po, uma difícil engenharia política de responsabilidade da
emissora. Ela era obrigada a lidar com pressões governamen-
tais, pressões de organizações dos movimentos sociais e sindi-
cais, de Igrejas, e também com os resultados das pesquisas
que identificavam e avaliavam a satisfação das expectativas
dos telespectadores e do mercado publicitário.
Sem querer menosprezar a censura da tesoura do regime
autoritário – que nem sempre foi tão claramente usada (como
este texto pode sugerir) –, o que se procura ressaltar é o para-
doxo da censura no caso brasileiro. Capítulos ou programas
inteiros da televisão brasileira eram destruídos e o poder de cen-
sor do Estado não se restringia apenas aos conteúdos. Ele tinha
a seu favor o poder econômico e regulador que exercia no mer-
cado dos bens simbólicos, já que, entre outras coisas, o governo
brasileiro era (e ainda é) nos anos 90, uma das suas importan-
tes forças, pois tem sido um dos principais anunciantes das
empresas de comunicação. Sendo assim, é muito apropriada a
ponderação de Ortiz (1988, p. 121), que chama a atenção para
a permanente negociação entre as forças do Estado e os em-
presários da comunicação, em particular da televisão, onde se
sabe que a “censura ‘excessiva’ é certamente um ônus para o
crescimento da indústria cultural, mas este seria o preço a ser
pago pelo fato de ser o pólo militar (e mais tarde, com o fim do
126 Telenovela e Representação Social

regime militar, o pólo situacionista do Estado) o incentivador


do próprio desenvolvimento brasileiro” e dos media.
Nos anos 80, observa-se o esforço do Estado em ampliar o
sistema de telecomunicações, criando os satélites Brasilsats I
e II, em 1985 e 1986, respectivamente (Mattelart, 1989 e Ortiz
et al, 1989). A era das telecomunicações já apresentava mun-
dialmente uma nova revolução, mostrando que o Estado e as
empresas de comunicação precisariam preparar-se para ela
(os sistemas de telefonia celular, as fibras óticas, o sistema
digital). Nessa década observou-se uma reorganização mun-
dial dos conglomerados ligados à comunicação, onde emisso-
ras como a TV Globo vão experimentar ampliar os seus mer-
cados para a Europa e demais continentes do planeta. No pla-
no nacional e internacional, esse período foi conhecido pelo
aumento da tendência de concentração das redes de informa-
ção e entretenimento nas mãos de um número cada vez mais
reduzido de grandes corporações transnacionais (Ferreira,
1991). Mas também foram os anos onde mais se pôde obser-
var os maiores avanços da história latino-americana na área
da comunicação (Santoro e Festa, 1991, p. 180).
Nos primeiros anos da década de 1990 o Estado se vê às
voltas com a questão das televisões a cabo. A TV Globo não se
mostrou preocupada, já que avaliava que o grande consumi-
dor de televisão aberta iria demorar a poder pagar as contas
das TVs fechadas (Otávio Florisbal, 1993). Esse, todavia, era
um novo mercado, principalmente para os conglomerados da
área da comunicação como a Globo, que entrou nele produ-
zindo e distribuindo canais. O Estado era impelido assim a
legislar sobre o controle social dos media, e dar prosseguimento
às mudanças na lei de imprensa7.
Nos anos 80 ocorreram expressivas tentativas econômi-
cas para atender a uma das piores crises econômicas já sofri-
das pelo país, as quais repercutiram no mercado publicitário.
De acordo com o superintendente comercial da TV Globo,

7 Desde 1990, circula no Congresso Nacional o projeto Lei de Democratização da


Informação, patrocinada pelo deputado Zaire Rezende (PMDB-MG). Por encontrar
dificuldades para ser aprovada em alguns setores, continua vigorando a Lei de Im-
prensa, assinada pela ditadura militar em 1967.
Campo da Telenovela 127

Florisbal (1993), o mercado publicitário deixaria de crescer


em 1983, para começar a se restabelecer 10 anos depois. Não
se conseguia sair da cifra dos “dois bilhões e meio de dólares,
a três bilhões”.
Chama a atenção nessa década, não só a crise econômica
que afetou as emissoras de televisão como um todo, levando-
as a investir no mercado externo, mas também as estratégias
de superação elaboradas pelas grandes corporações da área
da comunicação. Uma emissora como a TV Globo, depois de
avaliar a possibilidade de crescimento do mercado, apostou
na saída da crise, e investiu na renovação do seu capital
tecnológico e administrativo, desenvolvendo o projeto deno-
minado de Projac. Tais investimentos pretendiam redefinir as
relações com o mercado publicitário e os telespectadores, as-
sim como incrementar a linguagem audiovisual e a teledra-
maturgia para o mercado internacional.
Procedimentos que demonstraram a racionalidade empre-
sarial como marca consolidada no campo. Nessa área, a TV
Globo também manteve uma posição de destaque. A crise eco-
nômica e financeira do início dos anos 80 foi atendida pelos
estrategistas empresarias da TV Globo a partir de investimen-
tos que apostaram na continuidade do poderio da emissora no
âmbito nacional e no aumento da sua importância no merca-
do internacional. Investiram, como já foi anteriormente apon-
tado, em novas tecnologias, em uma fábrica de sonhos cha-
mada de Projac, e em novos canais de relacionamento com os
públicos da televisão, que de acordo com Otávio Florisbal eram
definidos como telespectadores e investidores, os geradores de
receita de uma empresa de comunicação. A TV Globo não só
investia em mudanças comerciais e tecnológicas, mas também,
apostava em alterações gerenciais e administrativas, culminan-
do em 1998, com a mudança mais significativa da TV das últi-
mas décadas, a ascensão de Marluce Dias da Silva, a diretora
de administração e finanças da emissora, e a saída do tradici-
onal homem forte da TV Globo, José Bonifácio de Oliveira So-
brinho, o Boni, vice-presidente de operações.
Um aspecto importante relacionado com a incorporação
da racionalidade capitalista empresarial no campo diz respei-
128 Telenovela e Representação Social

to às mudanças no relacionamento entre as empresas e os


trabalhadores culturais. Com o novo ethos empresarial gera-
do em função do crescimento das próprias empresas, a explo-
ração dos trabalhadores da cultura ficou mais evidente. As
relações de trabalho foram redefinidas, tornando-se mais im-
pessoais, formalizadas e regidas por princípios econômicos e
legais. Nesse quadro, o espaço da televisão não ficou de fora
da retomada dos movimentos sindicais no país. Em 1986, por
exemplo, o Sindicato dos Artistas e Técnicos de Diversão
(SATED) foi vitorioso, conseguindo diminuir a carga horária
máxima de trabalho para 36 horas (Ortiz et al, 1989).
Os anos 80 foram palco das grandes transições políticas
que inauguraram a presença mais forte dos movimentos soci-
ais, as primeiras eleições diretas para governadores, prefeitos
e presidente da República. No final da década viveu-se no país
a experiência da Constituinte, que mostrou com clareza o
poder das corporações da área da comunicação.
A democratização do Estado e da sociedade brasileira al-
terou a relação das telenovelas com a vida política do País,
permitindo, principalmente depois de meados dos anos 80, o
retorno da crítica social e de costumes: exemplarmente ilus-
trados com Vale tudo (1988), Roque santeiro (1985), Que rei
sou eu? (1988), Salvador da pátria (1989) e Deus nos acuda
(1992). A censura do Estado foi redimensionada, mas a cen-
sura da própria emissora, e aqui se cita a TV Globo, foi
redefinida, com o objetivo de estar cada vez mais instrumenta-
lizada para aferir as implicações políticas e culturais das mu-
danças e experimentações na teledramaturgia. Nota-se, in-
clusive, um recrudescimento da censura interna à emissora
em função das expectativas e mudanças de perfis dos telespec-
tadores, do mercado publicitário e da concorrência com ou-
tras emissoras que ressurgiram nos anos 80.
O ocorrido na telenovela Pátria minha foi expressivo. Si-
tuações consideradas racistas por representantes do movimen-
to negro foram alteradas depois de um embate público com a
emissora. O movimento apoiou-se no artigo 20 da nova Lei
7.716/89, que estabelecia como crime “praticar, induzir ou
incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação
Campo da Telenovela 129

de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça,


cor, religião, etnia ou procedência nacional” (Folha de S. Pau-
lo, 1994:3-2). Legislação que expressava as portas abertas para
o debate mais aprofundado sobre o controle social da televi-
são,8 e do assunto que dele decorre, ou seja, o que significa a
censura nas sociedades democráticas com alto nível de desi-
gualdades sociais, particularmente quando se trata de temas
morais de grande repercussão, como a violência, o erotismo,
o homossexualismo, o racismo.
As demandas governamentais para as telenovelas dos anos
80 e os primeiros anos de 1990 não apresentavam modifica-
ções com a década anterior. Manteve-se assim a dimensão
educativa e de serviços sociais. Nas primeiras décadas dos anos
90, destacou-se, por exemplo, o caso da Telenovela da TV Glo-
bo, Explode Coração (1995), dando explícito apoio ao movi-
mento das mães e parentes de crianças desaparecidas.
Novos contornos políticos geraram, a partir do surgimen-
to da década de 1990, uma estabilidade econômica que
viabilizou o florescimento das ditas classes emergentes D e E,
alterando o perfil das telenovelas e da concorrência entre as
emissoras. Medidas que contribuíram na ampliação do mer-
cado publicitário e do mercado audiovisual, com o ressurgi-
mento do cinema nacional. Elementos que podem modificar
o campo da televisão e da telenovela nas próximas décadas.

O Mercado na Formação e Regulação do Campo


Deve-se relembrar que o pretendido neste livro não é o exame
da história do mercado publicitário e suas interfaces com as
telenovelas no Brasil, mas, sim, a compilação dos principais
elementos que permitem observar as relações entre a dinâmi-

8 Inspirada na experiência Inglesa (ver Jornal do Brasil, 14/9/1996 e TV Folha, 3/11/


1996) e de outros países no que diz respeito ao controle social da televisão, Marta
Suplicy (deputada federal do PT/SP, em 1998) encampou o projeto de desenvolver uma
discussão e um sistema de controle, não de censura, da televisão brasileira. Movimento
deflagrado não só pelo amplo retorno do “grotesco” na programação televisiva, que em
função da disputa da audiência exibiu desde deformações físicas até sushis servidos em
mulheres nuas, como também pela ausência efetiva de controle das televisões no Brasil,
já “que nem mesmo o código da Abert (Associação Brasileira de Empresas de Rádio e
Televisão) tem sido respeitado” (Jornal do Brasil,20/12/1997).
130 Telenovela e Representação Social

ca de funcionamento desse mercado e as leis de funciona-


mento do campo da telenovela. Procurou-se, assim, destacar
os índices de venda dos aparelhos de televisão, os índices de
crescimento e retração do investimento publicitário na televi-
são e os canais de interferência do mercado publicitário na
organização das empresas de comunicação, na narrativa e
formato das telenovelas e nos debates entre os produtores
culturais sobre os critérios de consagração e autoria.9
Os grandes anunciantes iniciaram as apostas na TV a
partir de 1955 (Ortiz et. al, 1989). Quando o fizeram, a televi-
são absorvia 8% dos investimentos publicitários, o rádio e os
jornais captavam 22% e 44%, respectivamente. Nessa época,
os aparelhos de TV já excediam a casa dos 200 mil. Apostava-
se num Brasil grande que iria mostrar sua face 10 anos de-
pois. Em 1965 a venda de aparelhos teve 333% de incremento
se comparada a 1960, e a televisão passou, em 1967,10 a con-
centrar 42% de verbas publicitárias, contra 16% do rádio e
15% dos jornais.
O crescimento do mercado de propaganda (que daria um
grande salto em 1968), associado à percepção da TV como
um dos veículos mais importantes para a garantia da
integração dos consumidores, interferiu na nova gestão das
emissoras de TV. No início, a TV Globo era dirigida por profis-
sionais do meio artístico e jornalístico, para depois dos anos
60, passar a ser administrada por profissionais das áreas de
marketing e planejamento (Ortiz, 1988, p. 137). Não é a toa
que Mattelart considera que a ”ascensão da Globo correspon-
de principalmente a uma primeira fase decisiva na definição
de um profissionalismo televisivo. Contrariamente a seus con-
correntes (especialmente a TV Tupi), a Globo empreenderá

9 O esforço de apresentar as particularidades do campo da telenovela privilegiando


cada um dos principais elementos que nele interferem: o Estado, o mercado e mais
adiante, os telespectadores, não deve ser visto como uma postura que negue a dinâmi-
ca relacional que existe entre esses elementos.
10 Em 1960 surgiu a maioria das agências de propaganda que até hoje atuam no
mercado. Também nessa década a profissão de publicitário conquista o reconheci-
mento universitário e são criadas as maiores escolas de formação dessa área. Nesse
período observa-se ainda a multiplicação dos Institutos de pesquisas de mercado
(Ortiz,1988).
Campo da Telenovela 131

uma reflexão sobre o mercado. Será a primeira a criar depar-


tamentos de pesquisa, marketing e de formação. Também será
a primeira a criar um departamento de relações internacio-
nais” (Mattelart, 1989, p. 41).
O ano de 1970 mostrava o crescimento de 300%, chegan-
do a 4,9 milhões de aparelhos, em 1975 trabalhava-se com o
número de 10 milhões de aparelhos de TV, para em 1980 al-
cançar a cifra de 19,6 milhões. As verbas publicitárias manti-
veram a margem de 40% concentrada na TV até meados da
década de 1970, para em 1979 chegar a quase 50% (Ramos e
Borelli, 1989, p. 81). Tem-se clareza que a aposta não foi em
vão, de fato, a TV tornou-se o principal veículo de comunica-
ção de massa do país.
Nos anos 80, o mercado da televisão experimentou as con-
seqüências da crise econômica, apresentando um cenário bem
diverso da pujança da década anterior. Os dados em que a TV
Globo se apoiou para desenvolver o Projac (e toda a
reformulação da empresa) retrata o significado desse quadro.
Florisbal (1993), superintendente comercial da TV Globo, afir-
mava que: o mercado da televisão, apesar da crise em que se
encontrava, tendia a crescer. Em 1993, existem 32 milhões de
domicílios com aparelhos de TV em casa, com uma média de
mais de um aparelho por domicílio. Espera-se o número de 45
milhões de aparelhos nos próximos anos. Tais números locali-
zam o Brasil entre os cinco maiores no mercado de TV no
mundo ocidental, com a particularidade de ser o País que apre-
sentaria os mais altos índices de aparelhos ligados, e por mais
tempo, em todas as faixas de horário. O Projac, afirmava
Florisbal, projeto que a TV Globo desenvolve desde 1983, apos-
tou num enorme crescimento desse mercado nos anos 90.
Estima o aumento das vendas de televisores,11 podendo che-
gar em meados de 1990 a 38 milhões de domicílios com apa-
relhos de TV, com a possibilidade de ter um público de mais de
130 milhões de telespectadores, passando para o posto de ter-
ceiro maior mercado do mundo ocidental.

11 Florisbal dizia que isso se sucederia devido aos preços mais baratos dos televisores,
atingidos em função do desenvolvimento tecnológico aliado a abertura da economia
brasileira.
132 Telenovela e Representação Social

Nesse panorama, o mercado publicitário também cresce-


ria. Florisbal previu que a estagnação dos últimos 10 anos
desse mercado chegaria ao fim. De qualquer modo, dos 1,5
bilhões de dólares anuais que esse mercado gera, 55% a 60%
seriam disputados pelas redes de TV. Essa tendência, para ele,
não vai ser alterada frente ao perfil do público dos meios de
comunicação no Brasil. Logo, aumentariam o volume de in-
vestimentos no mercado publicitário e o volume de receita a
ser disputado pelas redes de TV. Além disso, Florisbal indicava
as principais implicações para a televisão e para o mercado
publicitário das mudanças tecnológicas em curso no mundo,
tais como a informatização, o sistema digital e o maior núme-
ro de satélites. Entre as mudanças que tais inovações incitari-
am, ele enfatizou a possibilidade de ter vários intervalos co-
merciais em um espaço que anteriormente só exibia um úni-
co intervalo e, ainda, a diversificação de serviços e atendimen-
tos oferecidos pelos anunciantes, que Florisbal denominou de
sistema multiuso. Inovações que sem dúvida apontariam para
uma expansão das redes e do mercado publicitário.
Esse processo de expansão das vendas de TV e dos investi-
mentos publicitários nesse veículo, tão bem ilustrado no de-
poimento de Florisbal, significou para Ortiz (1988) a melhor
expressão do advento e da consolidação da indústria cultural
no Brasil. Ele chamou a atenção para o fato de a telenovela
ter sido um importante suporte nesse processo. Outros analis-
tas também têm declarado serem as telenovelas, desde o final
dos anos 50, um dos carros chefes da rentabilidade das emis-
soras.12
As redes de TV têm trabalhado, desde então, com um con-
junto de programas por faixa de horário, onde a faixa das
18:00h às 23:00h foi se mostrando como a de maior fatura-
mento, sendo vulgarmente chamada de nobre. Nessa faixa de
horário, as telenovelas têm ocupado lugares bastante expres-
sivos (Borelli e Ramos, 1989). No caso da TV Globo, em 1993,
ao horário nobre correspondia 80% de toda a rentabilidade

12 A televisão brasileira, quando faz a opção de construir sua economia sobre “os
ombros confortáveis da telenovela”, estaria, segundo Ramos e Ortiz (1989, p. 113),
seguindo uma tendência internacional.
Campo da Telenovela 133

da emissora. Nesse bloco de programas tinha-se diariamente


três telenovelas e três telejornais, sendo o pico de maior audi-
ência conferido pela dupla Jornal Nacional e telenovela das
20:00h (Florisbal, 1993).
Referir-se às fatias de tempo que geram o maior volume
de recursos da emissora brasileira mais importante significa
afirmar que as redes de TV são empresas comerciais que de-
pendem do mercado para se reproduzirem. E mais, que de-
pendem dos sucessos das telenovelas, já que são elas as prin-
cipais captadoras de recursos. Nessa medida, considera-se
necessário configurar as linhas gerais que manteriam as rela-
ções estabelecidas entre o mercado e a emissora de TV em
questão.
Para tanto, recupera-se inicialmente a idéia de mercado
publicitário desenvolvida por Florisbal (1993). Ele afirma que
a “missão de uma rede de TV é atender muito bem os seus
diferentes públicos”, os quais foram agrupados em externos e
internos. Os últimos congregam os profissionais (que devem
ser motivados e treinados para os novos desafios) e os acionis-
tas. O público externo diz respeito aos telespectadores e ao
mercado publicitário, quer dizer, agências e anunciantes.
Ambos são muito importantes, pois são consideradas as “úni-
cas” fontes de receita das redes de TV.
Telespectadores assíduos geram índices de audiência que
funcionam não só como indicadores para o investimento dos
anunciantes, como também indicadores para a conformação
dos preços dos espaços publicitários a serem vendidos pelas
redes. Uma cadeia de processos que, quando bem articulada,
gera uma receita que viabiliza o reinvestimento na rede, man-
tendo-a atualizada e competitiva, já que ela lida com um “pro-
duto bastante perecível”. Florisbal enfatiza que, quanto mais
hábil for a rede de TV em manter essa roda girando, mais
promissora e eficaz será a realização da “missão” de atender
com qualidade os seus diferentes públicos. Assim, o marketing
da televisão deve integrar o marketing do telespectador com o
marketing do mercado publicitário, já que um depende do outro.
Nessa integração, o produto telenovela funciona como uma
moeda corrente que sinaliza o resultado das relações entre
134 Telenovela e Representação Social

anunciantes, telespectadores e produtores culturais, as quais


são mediadas pelos representantes da emissora das áreas de
criação e das áreas ligadas à comercialização.
Mais uma vez vai-se retomar o depoimento de Florisbal
para refletir sobre as interfaces entre telespectadores, merca-
do publicitário e produtores culturais, não só porque ele re-
presenta a emissora hegemônica, mas também por ser ela o
espaço privilegiado de análise deste trabalho, ou seja, seus co-
mentários permitem compreender os aspectos centrais dessas
interfaces que compõem um dos momentos do processo de
elaboração das telenovelas e um dos vetores constituintes das
regras de funcionamento do campo.
Florisbal explica que a fatia privilegiada na comerciali-
zação do tempo da televisão tem sido os intervalos comerci-
ais, sendo eles responsáveis por até 85% do faturamento da
empresa. Outras formas de comercialização têm sido os pa-
trocínios, o merchandising, o licenciamento e os projetos de
caráter institucional.13
A comercialização desses espaços publicitários contava,
em 1993, com um conjunto de aproximadamente 700 profis-
sionais distribuídos em uma rede de serviços dividida em cin-
co áreas. Duas delas faziam o contato direto com as agências
e os anunciantes, sendo chamadas de atividades-fim e as de-
mais, que davam suporte a esse contato, sendo chamadas de
atividades-meio. As primeiras estavam voltadas para as de-
mandas que estivessem fora da empresa, o objetivo era a con-
quista do anunciante, as outras, estavam voltadas para a di-
nâmica interna da empresa, objetivando oferecer o suporte
para o atendimento do anunciante conquistado.
A interface da atividade de marketing que aqui se privilegia
(e que está articulada às demais áreas de comercialização da
empresa), diz respeito à complexa dinâmica de atendimento, tanto
das necessidades do público telespectador, quanto do público
13 Os intervalos eram vendidos em três modalidades, a nacional, a local e a ‘venda-
spot’. Um intervalo comercial do horário nobre da TV Globo, em sistema nacional,
custa entre 30 a 40 mil dólares por 30 segundos (dados de 1993). A outra forma de
venda de espaço publicitário que mais interessa ao caso das telenovelas é o
merchandising. Ele é veiculado nacionalmente, sendo inserido no contexto da teleno-
vela, assim como de séries e shows.
Campo da Telenovela 135

anunciante. Florisbal logo ressalta: “é claro que o telespectador


está sempre em primeiro lugar, mas é necessário procurar fazer
adequações, sugestões” quando se faz necessário uma adapta-
ção maior às necessidades dos anunciantes. Existem, como de-
corrência, setores na atividade de marketing que se especializam
nessa interface dos dados relacionados às demandas dos anun-
ciantes e às características do mercado com as áreas das progra-
mações e da produção da emissora, em especial o telejornalismo
e a teledramaturgia. Uma interface que não apenas regula o pro-
cesso de criação dos programas,14 mas constrói os critérios de
formulação e definição dos novos. Isso tudo, esclarece Florisbal,
ocorre a partir de critérios éticos e de qualidade que atendem às
expectativas dos anunciantes e dos telespectadores. Pois, não se
pode esquecer que esses últimos precisam ser “cativados, surpre-
endidos todos os dias para que continuem nos honrando com
sua preferência”, enfatiza Florisbal. Nessa medida, o depoimen-
to do superintendente comercial da TV Globo mostra a certeza
de que as adequações nas telenovelas, por exemplo, devem ser
feitas sem, contudo, deixarem de manter os profissionais da cri-
ação motivados e sempre prestes a enfrentar as dificuldades per-
manentes das mudanças geradas pelas demandas do mercado,
ou do que ele prefere chamar de público externo.
Essa longa digressão sobre a organização geral da comer-
cialização das telenovelas objetivou explicitar uma das carac-
terísticas do contexto onde se desenvolve uma das importan-
tes leis de funcionamento do campo da telenovela. Aquela que
diz respeito às relações da dinâmica de trabalho com o “po-
tencial de criação” dos realizadores, particularmente daque-
les aqui examinados: o diretor geral e sua equipe e o escritor e
sua equipe (quando existe).
Ortiz et al (1989), e tantos outros pesquisadores, já apre-
sentaram as características do trabalho que os produtores
14 Os boletins de programação apresentam um perfil dos escritores e diretor geral, a
equipe técnica, um resumo das telenovelas e dos principais núcleos de personagens,
destacando os principais protagonistas. Um dos usos que a emissora fazia desse
material dizia respeito a identificação dos possíveis produtos a serem comercializados,
permitindo assim que os setores comerciais da empresa pudessem estabelecer os con-
tatos com os anunciantes (entrevista realizada com o representante do setor comer-
cial da TV Globo, em 1993).
136 Telenovela e Representação Social

culturais da telenovela realizavam – ritmo acelerado com ca-


racterísticas fabris, aliado à exigência de eficiência, produtivi-
dade, flexibilidade e bons resultados –, as quais geram um
forte stress, compensado para escritores, diretores e atores
consagrados por longas férias e contratos regulares de traba-
lho, acompanhados com altos salários e outras fontes de ren-
da (direitos sobre venda no exterior, participação na inserção
do merchadising). Escrever telenovelas, brinca Dias Gomes,
“não é um meio de vida, é um meio de morte. Não é um feito
artístico, é um feito esportivo. A maior qualidade de um autor
de novela é o preparo físico, porque você passa nove meses
tendo que escrever vinte e tantas laudas por dia, sem falhar
um dia, sem ter direito a ficar doente, a ter uma discussão,
uma dor de cabeça. É preciso ser realmente um atleta. Então,
tem que haver um grande preparo físico. Um pouquinho de
talento ajuda, mas não é essencial” (Klagsbrunn e Rezende,
1991, p. 178).
Portanto, tem-se uma prática profissional que exige habili-
dade e disposição por parte dos produtores culturais no cumpri-
mento das exigências empresarias e fabris da emissora – que são
mensuradas pelos índices de audiência e pelas taxas de
faturamento (frente à venda dos intervalos comerciais, do
merchandising e outros formatos possíveis) –, e na capacidade de
responderem às oscilações que tais índices possam apresentar, e
às intempéries que possam suceder a uma telenovela, como morte
de atores, brigas entre atores, pressões legais censurando o de-
senvolvimento de certas temáticas. Uma outra disposição e habi-
lidade, articulada à anteriormente referida, diz respeito ao domí-
nio da arte da escrita, da direção e de todas as outras que com-
põem o fazer uma telenovela. Dizendo de outro modo, a capaci-
dade de, apesar das exigências comerciais, garantir a qualidade
esperada pelo telespectador, pelos anunciantes, pelos controladores
do padrão de qualidade da empresa, pelos críticos que se pro-
nunciam na imprensa e pelos seus pares.
Tais aspectos também dizem respeito à conformação dos
critérios de consagração e autoria das telenovelas. Para tanto,
os produtores necessitam ainda de habilidades ou disposições
para negociarem maiores espaços de criação e inovação com
Campo da Telenovela 137

a emissora que age, tendencialmente, em função das pesqui-


sas de interesse dos anunciantes e dos telespectadores. Logo,
quanto maiores as habilidades técnicas e criativas que pos-
sam atender às exigências das emissoras, maiores os índices
de consagração e maiores as possibilidades de negociação e
ampliação das marcas de autoria nesses produtos. Um movi-
mento contínuo que conforma o ethos desses produtores que
precisam, e isso em uma dimensão inconsciente, responder às
exigências de formato e conteúdo ditados pelos cânones do
sucesso comercial, e imprimir nessas obras as marcas que os
distinguem como criadores e artistas.
Por fim, lembrar que os dados referentes às leis de merca-
do mostram, mais uma vez, o controle das emissoras sobre o
produto telenovela, pois eles concentram as informações so-
bre os possíveis riscos econômicos da rede. Essa assertiva per-
mite compreender as regularidades15 que marcam o processo
de produção das telenovelas, assim como as dificuldades para
se enfrentar as inovações, em especial no ‘horário das 20:00’,
o de maior rentabilidade da emissora. Considerações que per-
mitem a construção da seguinte suposição: quanto maior o
volume de investimentos publicitários no mercado, maior a
tendência das emissoras em apostar em novas linguagens,
novos autores. Nos anos 70 o mercado publicitário estava em
alta, assim como a concorrência entre as emissoras. Essa dé-
cada foi chamada de a mais criativa da teledramaturgia. Nos
anos 80, o mercado estava em baixa e a TV Globo pratica-
mente não tinha concorrentes na área da telenovela. Essa
década foi considerada uma das menos criativas, colocando
em cena o tema da crise das telenovelas.
A demanda pela inovação da telenovela tem sido proferi-
da por críticos16 e pelos próprios realizadores quando solicita-
dos pela imprensa. Dias Gomes e Lauro César Muniz, dois dos
principais autores da década de 1970 também avaliavam a
15 Ver quadro I, em anexo, e o capítulo 5.
16 Artur da Távola, escreveu em Fatos e Fotos (17/11/1980) que o início dos anos 80
mostrava na “produção média de telenovelas da Rede Globo uma queda na qualidade
conseguida na década anterior”, ou seja, “não estão atingindo o mesmo equilíbrio
entre repercussão (audiência) e qualidade artística e literária obtida pela emissora no
meio da década de1970”.
138 Telenovela e Representação Social

chegada dos anos 80 como pouco criativa.17 Ambos, junto a


Janete Clair, foram consagrados no campo nessa década, não
apenas pela qualidade de suas obras, mas também pelos índi-
ces de audiência que elas alcançaram. Desse modo, como já
se havia sugerido, um dos índices de consagração mais im-
portantes do campo advém de critérios regidos pelos índices
de rentabilidade da emissora. Em geral, quanto maiores os
índices de audiência alcançados por suas obras, maiores as
possibilidades de negociação desses escritores, atores e direto-
res tendo em vista a ampliação da margem de autonomia cri-
ativa. A almejada performance artística que tem sido utilizada
como um dos índices de consagração aferidos pelos seus pró-
prios pares e pelos críticos dos setores da imprensa especializada
nessas obras.
Seria preciso ilustrar essas considerações com alguns de-
poimentos de consagrados diretores acerca dos trabalhos que
realizam na principal emissora do País. Guel Arraes chama a
TV Globo de “Hollywood sem filtro brasileira”. Nela, ele “está
virando um diretor-autor, mesmo sabendo que precisa estar
atento à produção, ao controle dos custos e benefícios, pois
tem toda uma economia envolvida nesse negócio” (Folha de S.
Paulo, 21/12/1993). Jorge Fernando dizia que “sou funcioná-
rio da Globo há 15 anos e nunca li os contratos. O meu
profissionalismo torna-me respeitado” (Revista de Domingo,
Jornal do Brasil, 9/10/1994). Carlos Manga comenta que a
TV Globo é a “minha nova Atlântida, só que com muito mais
recursos e um padrão de qualidade forçado pela necessidade
de competir internacionalmente” (Folha de S. Paulo, 8/8/1995).
Luiz Fernando Carvalho afirma que “não dirijo para a Globo,
mas para quem assiste e para mim. Se a Globo gosta, me con-
serva lá” (TV Folha, 4/4/1993).

17 Dias Gomes considera que a terceira fase das telenovelas no Brasil, os anos 80,
mostram um impasse, já que não ocorreu uma transformação temática ou formal na
fórmula que se estruturou na década anterior (klagsbrunn e Rezende, 1991). Lauro
César também aponta que o panorama atual (Folha de S. Paulo, 28/9/1980) das
telenovelas mostra temas repetitivos, empobrecimento no tratamento das histórias,
dos conflitos, apresentando soluções semelhantes. Afirma que quando principia a
abertura política, momento em que as produções começam a respirar mais tranqüilas,
as emissoras retrocedem e caem nos temas superficiais e de consumo fácil.
Campo da Telenovela 139

Pode-se observar também escritores consagrados que têm


alcançado bons resultados diante da tensão entre as deman-
das da empresa e as exigências básicas do ofício do artista.
Dias Gomes professa que a “TV tem enorme repercussão po-
pular. Não se deve ter preconceito com ela, ao contrário, deve-
se buscar criar uma linguagem própria para ela. O importan-
te é não deixar a TV montar em você, você deve montá-la”
(Revista de Domingo, Jornal do Brasil, 3/11/1996). Benedito
Ruy Barbosa, na sua verve anarquista, dá a sua “palavra de
honra, como não abre mão de certas coisas. A Globo é o meu
trabalho e não a minha vida. Se tivesse prejudicado a novela
(comentava a redução da primeira fase de Renascer exigida
pelo Boni), eu teria saído. Saí da emissora naquela vez e sairia
de novo” (RP/TV – Jornal Brasil, 6/3/1993). Por fim, Aguinaldo
Silva não deixa de provocativamente afirmar que os limites
que a empresa jornalística colocava aos seus trabalhos eram
maiores que os da televisão. Ele conta que no final dos anos
70, Daniel Filho o convidou para escrever Plantão de polícia,
dizendo que ele teria “plena liberdade”. O primeiro episódio
narrava a história de um cidadão que era preso por engano e
executado pela polícia. O programa foi ao ar, deixando
Aguinaldo com a clareza de que “era ali que ele queria traba-
lhar” (Playboy, julho, 1992).
Um dos muitos aspectos que chamam a atenção nesses
depoimentos é a crença no processo de criação dos realizado-
res (escritores e diretores), imaginando assim existir uma boa
margem de não interferência da empresa de comunicação na
realização da telenovela. Não se está supondo estarem eles
negando as exigências econômicas e políticas que estruturam
as telenovelas, mas apenas salientando a estratégia da emis-
sora de preservar determinados espaços de autonomia para
os seus criadores, o seu “público interno”, pois como diz
Florisbal, sem talento e sem motivação não haverá telenove-
las de sucesso e a “roda” da rentabilidade deixaria de girar.
Deve-se frisar que a autonomia das empresas de TV frente
às pressões dos anunciantes deu-se mais fortemente ao final
dos anos 60. Desde 1957, aproximadamente, as agências de
publicidade, particularmente a Colgate, patrocinavam as te-
140 Telenovela e Representação Social

lenovelas, tendendo a agir como os centros de decisão do pro-


cesso de realização desse produto: contratavam escritores,
definiam enredos, estipulavam margens pequenas de liberda-
de para modificarem as fórmulas importadas de sucesso. Nes-
sa medida é ilustrativa a história da TV Tupi do Rio recupera-
da por Klagsbrunn e Rezende (1991). Elas mostram que antes
da presença dos patrocinadores, os escritores, diretores e equipe
criavam telenovelas com temáticas nacionais, algumas com
fortes tons de crítica social. Na fase de domínio dos patrocina-
dores, a temática nacional seria abolida e assistiríamos a he-
gemonia dos dramalhões cubanos, argentinos. A retomada
da temática nacional ao final dos anos 60 é também um sinal
do declínio do poder dos patrocinadores e da nova posição das
emissoras que gerenciam com mais autonomia e competên-
cia técnico-financeira a sua carteira de anunciantes 18 (Ortiz
et al, 1989 e Matterlart, 1989).
Pondera-se, entretanto, a existência dos riscos intrínsecos a
esse mercado, seja por parte dos anunciantes, como mostra o caso
de Pantanal19 (TV Manchete, 1990), que proporcionou aos bons
apostadores bons resultados, seja no caso das emissoras,20 quan-
do assumem a gestão e a captação dos recursos publicitários.
A conquista dessa autonomia diante dos patrocinadores e
anunciantes exigiu a diversificação das formas de gestão dos

18 Segundo Walter Clarck, responsável pela Central Globo de Telenovelas, em 1966/


7, “com a reforma na política comercial da TV Globo, a emissora estava interessada
em patrocínio e inserções nos breaks e não mais em produções de anunciantes”.
19 A situação da Brahma exemplifica o primeiro caso: ela “deixou de patrocinar
Pantanal, que se revelou um estrondoso sucesso. Segundo Osmar Gonçalves, superin-
tendente comercial da Rede Manchete, a emissora imaginava que a novela teria
grande repercussão, mas não podia esperar que desse 50 pontos. Neste caso, Bombril,
Pernambucanas, Tang, Nestlé, Bradesco e Zacharias de Pneus, que patrocinaram a
novela, pagaram menos por um produto supervalorizado” (Revista Imprensa-mídia,
julho, 1995, p. 33).
20 No segundo caso, a TV Manchete é também um bom exemplo. “Embora desde sua
inauguração a emissora tenha se destacado por megaproduções como Dona Beija,
Pantanal e Kananga do Japão, a história de Benedito Ruy Barbosa fez com que a
Manchete ganhasse projeção nacional e status no mercado publicitário. Se por um
lado Pantanal foi fenômeno de audiência, seus altos custos iniciaram um rombo nas
finanças – ampliado pela novela Ana Raio e Zé Trovão e Amazônia (maior fracasso da
rede) – que culminou na transferência da emissora para o grupo IBF, de Hamilton
Lucas de Oliveira” (Revista Imprensa –mídia, julho, 1995, p. 33).
Campo da Telenovela 141

intervalos comerciais, assim como a elaboração de novos sis-


temas de comercialização dos espaços-tempo televisivos. Além
disso, foi necessário aprimorar, no caso das telenovelas, os
recursos narrativos que pudessem atender a essa demanda da
empresa. Entre eles, destaca-se o chamado gancho:21 disposi-
tivo articulador dos intervalos comerciais, os breaks, entre os
blocos de cenas dos capítulos. E aqui se trata de mais uma
importante exigência característica do campo da telenovela:
o desenvolvimento de uma série de recursos narrativos com o
objetivo de responder às exigências comerciais da empresa,
sem, contudo, perder de vista os critérios de qualidade da pró-
pria emissora e dos próprios realizadores. Recursos que vão
desde os ganchos até a inserção dos anúncios no interior das
telenovelas. Esse último implica, por exemplo, na construção
de enredos que permitem o uso de locações de apelo publicitá-
rio, como bares, restaurantes, lojas, bancos e, também, a cri-
ação de cenas e seqüências nas quais as personagens possam
estabelecer ações publicitárias, como ir ao banco, comprar
produtos, beber cerveja, assistir televisão, fazer ginástica, me-
dicar-se com homeopatia, tirar fotos e tantas outras.22 Tem-
se, assim, mais um critério de avaliação e consagração na arte
de fazer telenovela, a capacidade de usar esses recursos, com
qualidade técnica e artística, sem deixar de garantir a satisfa-
ção do anunciante e do telespectador.
Das muitas interferências das exigências do mercado no
formato das telenovelas, selecionou-se até aqui algumas de-
las com o objetivo de mostrar, como tanto elas fazem parte do
processo de construção das obras, quanto regulam e constro-
em as relações entre os produtores, e destes com as referidas
21 Os ganchos são pequenos ou grandes clímax. Trabalha-se com três a cinco interva-
los ao longo de um capítulo de telenovela, sendo necessário um conjunto de no
mínimo quatro ganchos, o último deles é de grande importância, pois deve atrair o
telespectador para o dia seguinte. Os ganchos finais dos capítulos de sexta-feira e
sábado são decisivos, já que estão lidando com o fim-de-semana e o domingo, dia de
‘descanso’ das telenovelas, que retornam na segunda-feira seguinte (Campedelli, 1987,
p. 43). Ver, ainda, minucioso estudo de Costa (2000) sobre o gancho nas telenovelas.
22 Nos anos 70 a tecnologia audiovisual (câmeras mais leves, por exemplo) vai sendo
cada vez mais absorvida pela televisão, favorecendo o efetivo uso das ‘externas’ nas
telenovelas, ampliando assim as maneiras de inserção da publicidade em sua narrati-
va (Campedelli, 1987 e Ortiz et al, 1989).
142 Telenovela e Representação Social

obras. A última a ser citada é a definição da duração da tele-


novela em função da sua margem de rentabilidade. Atualmen-
te, o formato mais rentável gira em torno de 150 a 180 capítu-
los, podendo ser ‘esticada’ até os 200 capítulos ou mais, quan-
do é uma trama de sucesso. Esse período de duração permite
uma captação de recursos adequada às demandas da empre-
sa, pois sendo mais longa é maior a margem de faturamento
com a comercialização dos seus espaços publicitários (poden-
do inclusive agregar novos clientes com preços diferenciados
frente à maior audiência do produto). Importante lembrar que
em poucos meses o custo de produção das telenovelas é ab-
sorvido, sendo a partir de então uma fonte de lucro23 (Ortiz et
al, 1989).
Na última década, os realizadores de telenovelas, em es-
pecial os escritores, têm reivindicado formatos mais breves.
Eles esperam com isso melhorar a qualidade das telenovelas e
diminuir o desgaste das condições de trabalho. Boa parte des-
ses escritores atua há mais de duas décadas, não tendo, por-
tanto, a mesma condição física que essa “prática esportiva”
requer. Além disso, como lembra Carlos Lombardi, escritor de
telenovelas da TV Globo, “assim como cinema é arte do dire-
tor, novela é talento do autor”. Tal afirmação reforça a idéia
de que, mesmo não podendo se ter absoluta certeza dos resul-
tados de uma telenovela, mesmo sabendo estar seguindo os
caminhos já pré-figurados de uma certa fórmula de sucesso,
parece correto afirmar que grande parte do sucesso delas deve-
se à habilidade dos escritores. Tem-se, então, mais um proble-
ma associado ao anterior, ou seja, a renovação dos escritores
de telenovelas.24 Nesse caso, as redes de TV, principalmente a
23 Para os 5,6 milhões de dólares investidos em As pupilas do senhor Reitor, o SBT teve
18,9 milhões de dólares de retorno comercial, o que significa um lucro de mais de 13
milhões de dólares, com uma audiência que não ultrapassou os 10 pontos (Revista
Imprensa-Mídia, julho 1995, p. 30).
24 O que se observa é a existência de um número pequeno e regular de escritores que
traduz um campo pouco permeável às renovações. Estima-se que tal fato deva-se,
entre outros: 1) a baixa concorrência entre as emissoras, que se ampliou apenas ao
final dos anos 80; 2) o alto custo de manutenção dos mesmos; 3) o longo período de
atividade produtiva e eficiente dos mesmos, nesta situação a experiência acumulada
gera capital cultural e técnico, favorecendo a permanência deles em posições consa-
gradas; 4) a dificuldade de formar escritores que possam articular de forma eficiente
Campo da Telenovela 143

Globo, têm buscado construir fóruns de seleção para novas


telenovelas e sistemas de formação de novos escritores.25

Os Telespectadores na Formação e Regulação do Campo


Um olhar mais atento sobre a dinâmica presença da figura do
telespectador no campo se faz necessário. Em primeiro lugar,
devido ao papel que ele cumpre para as emissoras. Elas orga-
nizam suas programações e seu faturamento a partir da au-
diência conquistada, ou seja, a partir tanto da mensuração,
quanto da avaliação do perfil de expectativas dos seus telespec-
tadores. Em segundo lugar, porque na concorrência estabele-
cida entre as redes de TV, os índices de audiência seriam um
dos critérios de consagração e prestígio. Além disso, os índices
também influenciam nos processos de reconhecimento e con-
sagração dos realizadores de telenovelas. A terceira, explica-
se pela importância de se identificar as principais relações
entre os modos de fazer telenovela e os modos pelos quais os
realizadores (em especial, os escritores e diretores) concebem
os telespectadores.
Supõe-se que tais aspectos vêm se alterando ao longo da
história do campo, sendo mais um indicador de suas fases. Ao
discorrer sobre cada um deles, mesmo que brevemente, espe-

ritmo de trabalho, habilidade técnica, artística e boa capacidade de negociação com


os representantes das empresas; e 5) o risco econômico das emissoras quando mexem
nesse time.
25 A TV Folha (28/6/1998) alerta que a “Globo sofre a falta de autores”, principal-
mente para o horário das oito. Polêmicas a parte, não são apenas as condições
estressantes de trabalho que dificultam a inserção de novos autores. Ricardo Linhares,
depois de longos anos de trabalho na equipe de Aguinaldo Silva assina a sua primeira
telenovela solo – Meu bem querer (19:00h, TV Globo). Os novos autores da TV Globo,
além de serem formados ao longo do trabalho, como é o caso de Linhares, realizam
oficinas de teledramaturgia, desde 1991, coordenadas por Flávio de Campos, as quais
são conhecidas pelo rigor e qualidade. Atualmente, o autor só está pronto para a
primeira telenovela solo depois de um mínimo de cinco anos de co-autoria. O SBT
também investia, em 1996, na criação de oficinas de formação de autores (Revista da
TV, Globo,15/12/1996). A preocupação com a qualidade das telenovelas na TV Globo
levou até a contratação de assessorias de roteiristas americanos especializados para a
nova e a velha guarda de escritores e diretores (como Glória Perez, Benedito Ruy
Barbosa, Paulo Ubiratan), como foi o caso do coordenador do departamento de
roteiros da Universidade do Sul da Califórnia, instituição por onde passaram Lucas e
Spielberg (Folha de S. Paulo, 8/7/1994).
144 Telenovela e Representação Social

ra-se oferecer novos elementos que, ao se articularem às re-


flexões anteriores sobre o papel do Estado e do mercado pu-
blicitário no campo da telenovela, possam ajudar a compre-
ender as posições e as escolhas dos realizadores frente às re-
presentações do popular.
Tem feito parte da história das emissoras e de suas equipes
produtoras de telenovelas, a preocupação de acompanharem
muito de perto os modos de vida de seus telespectadores. Estão
sempre atentas às suas reações, que muitas vezes estão sinali-
zadas nos índices de audiência. Tal preocupação relaciona-se
ao objetivo central das emissoras no processo de criação das
telenovelas, qual seja, seqüestrar os telespectadores, atá-los ao
maior número possível de capítulos exibidos ao longo de vários
meses. Conseqüentemente, uma importante característica do
campo é essa busca frenética e constante pela sedução do pú-
blico, que está imerso em um contexto diverso, eclético e pleno
de ruídos, sempre pronto a ser distraído. Como nos diz Castro
(1994, p. 10), “a la pantalla no se puede ignorar, se la atiende o se
la abandona (...) para el creador de televisión es imprecindible
conocer todo lo relacionado con el gusto, las necessidades, los
intereses, las motivaciones y las frustaciones del público al que se
dirige. Ningún otro medio requiere de los estudios previos de
población como éste, ya que solamente así se trabaja con precisión
el processo comunicativo eficaz que se requiere.”
“A opinião do público” tem sido continuamente expressa
nos telefonemas às emissoras26 e de cartas enviadas à imprensa
especializada e à própria emissora.27 Nos anos 50 já se esboça-
vam as características das cartas de hoje, as quais falavam de
um telespectador que não apenas acompanhava regularmente

26 O sistema de telefonia usado atualmente pela TV Globo é um bom exemplo. Na


Revista do Jornal do Brasil (21/9/1996) tem-se a seguinte notícia comentada na coluna
de Ana Claudia Souza: “As perguntas que os atendentes do CAT (Central de Atendimen-
to ao Telespectador da TV Globo) mais respondem dizem respeito ao figurino de Silvia/
Léia [da novela Rei do gado], principalmente a cor e a marca do esmalte usado por ela.
(...) Também graças aos telefonemas recebidos pelo CAT, o maestro André Sperling
pode estar chegando perto de gravar seu primeiro CD. Muita gente liga para elogiar os
arranjos musicais da novela [Rei do gado], todos feitos pelo André”.
27 Atualmente, elas são enviadas à imprensa e às emissoras (nesse caso, muitas delas
endereçadas aos autores e atores).
Campo da Telenovela 145

as programações, como também se via como um examinador


crítico do que lhe era ofertado, seja para avaliar o desempenho
de um ator, seja para solicitar mudanças nos programas. Isso
confirma a hipótese de que o público considera a si mesmo um
elemento importante no desenvolvimento do meio, com poder
para interferir na programação, a qual deve, sem sombra de
dúvida, atendê-lo28 (Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 55). A se-
ção de cartas dos encartes dos jornais (todos tem seus encartes
semanais de TV), assim como a seção de cartas das revistas
especializadas em televisão, permanece até hoje.29
Um outro canal de comunicação com o telespectador que
vem sendo desenvolvido desde o surgimento da telenovela advém
também dos jornais e revistas. Meios que divulgam principal-
mente as telenovelas e os produtos a elas associados (dos estilos
de vida dos atores até os produtos dos patrocinadores). Forne-
cem também o espaço para as críticas, um dos elementos fun-
dadores dos sistemas de classificação e reconhecimento das
obras, realizadores, atores e demais equipe técnica.
Os jornais trabalham com encartes semanais especializados
em televisão, que cumprem algumas funções importantes: (1)
fazem os lançamentos das telenovelas (apresentam reportagens
sobre os novos autores, atores, diretores, personagens, a nova
trama); (2) acompanham o desenvolvimento e o desfecho da
trama (resumos dos capítulos da semana, reportagens sobre
temas tratados, entrevistas com escritores, diretores, atores, res-
ponsáveis pelos bastidores e pelos efeitos especiais, os sucessos
ou insucessos de audiência, as fofocas amorosas, as dúvidas
quanto ao final, as pressões do público por esse ou aquele des-
28 Na carta de Cassandra, enviada à revista TV Programa em 1959, tem-se o exemplo
raro de uma telespectadora que avaliava os programas, pois o mais comum era as
cartas para os ídolos (assim como hoje). Cassandra referia-se a maior escritora de
telenovela da época no Rio de janeiro: “que a D. Ilza tem talento não se contesta. Suas
novelinhas Mme. Delly fazem sucesso. Enfim, como escritora, vá lá...mas querer em-
purrar-nos seus dotes inexistentes de diretora, cortadora, ensaiadora, produtora,
camera-woman, ah! Isto não!!!” (Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 56).
29 A Revista da TV do Jornal do Brasil, em 21/9/1996, publica, por exemplo, trecho
da carta de Ana P. Ela escreveu elogiando o trabalho de Raul Cortez, em Geremias
Berdinazzi, no Rei do gado. João Franco, nesse mesmo jornal, recriminou o “festival
de cenas íntimas, despudoradas e luxuriosas” nas telenovelas que “não passam de
pornochanchadas”.
146 Telenovela e Representação Social

fecho); (3) publicam as cartas dos telespectadores; e (4) forne-


cem o espaço de expressão da crítica especializada, localizado
em colunas, que funcionam como editoriais (como é o caso de
Fernando Barros e Silva, da TV Folha), e localizado, também,
em reportagens que avaliam os produtores culturais, o papel
do público e a concorrência entre as emissoras.
Os espaços nos jornais para os críticos em telenovela e
televisão também foram mantidos, com destaques nos anos
70 e 80 para Helena Silveira da Folha de S. Paulo, Artur da
Távola de O Globo. No início dos anos 90 tem-se a coluna de
Esther Hamburger na Folha de S. Paulo, de Gabriel Priolli na
Gazeta Mercantil. As revistas especializadas como Amiga e
Contigo também têm se organizado de forma muito parecida
com os encartes sobre televisão dos jornais, dando forte des-
taque para a “vida íntima” dos artistas.30 Nem mesmo revistas
como Veja e Isto É têm desconsiderado essa temática, tendo
suas reportagens e críticos especializados (na coluna de Eu-
gênio Bucci – Veja, em 2/10/1996 – lia-se que “o melodrama
da televisão só funciona se souber excitar as fantasias secre-
tas do telespectador”).
Um último e importante papel que a imprensa tem cumpri-
do no campo diz respeito ao seu poder de estabelecer os canais
de reconhecimento, premiação e consagração dos produtores
culturais, indo desde a Dália de ouro, nos anos 50, ao prêmio
fornecido pela revista Contigo! nos anos 90. Os três prêmios
destinados aos profissionais de televisão de maior repercussão
são os prêmios APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte),
Contigo! e Troféu Imprensa, patrocinado pelo SBT.31
O papel da imprensa nos dispositivos de reconhecimento
e consagração das emissoras e dos produtores culturais dei-
30 A preocupação com a ‘vida íntima’ dos artistas é um traço importante do campo e
do vínculo com o telespectador. Preocupação presente desde o surgimento da televi-
são e da telenovela, como mostra a reportagem da Revista do Rádio, dos anos 50, que
chamava o leitor para conhecer o lar de Lídia Matos, Urbano Góes e seus quatro filhos
(Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 53).
31 Os critérios de escolha dos melhores em cada categoria são diferenciados. No caso
da APCA, os mais reconhecidos críticos de arte do país se reúnem uma vez por ano
para escolher os melhores, segundo seus “olhares especializados”. Já a revista Contigo!
seleciona os três melhores de cada categoria, votados por seus editores e repórteres, e
em seguida conclama os leitores a votarem em seus preferidos mediante carta, e-mail,
Campo da Telenovela 147

xa clara a estreita relação entre a mídia impressa e a televi-


são.32 Sem ater-se a uma análise desse fenômeno, apresen-
tam-se dois pontos importantes para pensar o campo da te-
lenovela. O primeiro deles trata do sistema dos media mais
amplo no qual a telenovela se situa. Esse gênero televisivo
nasce e se reproduz em organizações empresarias que con-
gregam vários veículos de comunicação, como o rádio e os
jornais. Estes foram e vêm sendo usados para consolidar e
ampliar o consumo da televisão e de sua programação, fun-
cionando como se todos os meios estivessem integrados a
um movimento onde um veículo se alimentasse e servisse de
alimento ao outro.33
O segundo ponto incide nos estudos de Verón (1993) so-
bre o funcionamento discursivo da telenovela. Segundo o au-
tor, a telenovela, quando é contínua e cotidianamente ofere-
cida ao consumo, necessita de uma diversidade de canais
construídos pela imprensa para que estes funcionem como
mecanismos de preparação e avaliação das reações do públi-
co consumidor. Proposição que coloca a imprensa (jornais e
revistas) como um sistema mediador entre os responsáveis
pela elaboração do texto e os seus consumidores, podendo
cumprir a função de formadora de disposições dos telespec-
tadores, habilitando-os para um tipo de consumo que exige
permanência e continuidade.34 Uma outra fonte importante
ou telefone. O SBT, por sua vez, faz o caminho inverso ao da revista. Em pesquisa
corpo-a-corpo nas ruas, o telespectador escolhe os três melhores e, num programa
especial, apresentado por Sílvio Santos, os convidados – os jornalistas dos principais
veículos de comunicação (ou editorias) especializados em televisão – elegerão os
melhores do ano (dados de 1999).
32 Não foi possível nesse momento refletir sobre o papel cumprido pelo rádio, que
também apresenta os seus críticos, comentários e recriações cômicas das telenovelas,
tendo se destacado nos últimos anos, no Rio de Janeiro, o trabalho de Cidinha
Campos.
33 Primeiro observa-se os Sem-terra na Imprensa e nos telejornais, para depois
acompanhá-los na telenovela, novamente nos jornais, nos telejornais (não esquecer
que chegou até a associar-se o consumo do crack aos jovens dos Sem-terra no Jornal
Nacional) até se gerar o fenômeno Débora Rodrigues que rebateria na revista Playboy
e retornaria para o SBT, no programa Fantasia e depois seria capa e matéria de tantas
outras revistas e jornais e por aí em diante.
34 Pallotini (1998, p. 57) estabelece uma outra função para as revistas e jornais. Eles
‘adiantariam’ a telenovela para os telespectadores com o objetivo de garantirem o
148 Telenovela e Representação Social

de dados para as emissoras acompanharem os movimentos


dos telespectadores tem sido as ‘medidas’ da audiência. As
pesquisas realizadas pelas agências de publicidade tornaram-
se uma demanda regular das emissoras a partir dos anos 70.
O Ibope, Instituto Brasileiro de Opinião Pública, surgiu em
1942, conquistando o mercado de controle das audiências na
televisão brasileira a partir dos anos 70, transformando-se
em jargão do campo: “Isso dá Ibope!” (Mattelart, 1989, p.
58).35 O Ibope, nos anos 80, amplia o seu sistema de coleta e
análise de dados, oferecendo, no início dos 90, a evolução da
audiência das emissoras de 15 em 15 minutos (podendo che-
gar de minuto a minuto nos programas de maior concorrên-
cia), e um sofisticado “painel” que permitiria acompanhar,
por períodos mais longos, os hábitos de consumo de um pú-
blico mais segmentado.
Em suma, as pesquisas de audiência das telenovelas solici-
tadas às agências pelas emissoras, associadas a outros levanta-
mentos sobre o telespectador, têm mostrado que, em linhas ge-
rais, os telespectadores de telenovelas diferenciam-se em fun-
ção dos horários e não mais se restringem à dona-de-casa ou
ao olhar feminino. Além dos homens que as vêm, desde os anos
70, tornando-se habitueés, outros grupos ampliaram o consu-
mo do gênero, os jovens e as crianças. As pesquisas indicam
também que as telenovelas têm sido normalmente assistidas
em grupo, pela família, ou mais precisamente, pelos residentes
de uma unidade doméstica (Vink, 1990, p. 101).
Sobre o telespectador masculino de telenovelas, sabe-se
que as pesquisas de audiência têm indicado um progressivo

controle da dose necessária de suspense. Segundo Pallotini, o telespectador de teleno-


velas não suporta doses intensas de ansiedade, precisando assim satisfazer sua curio-
sidade, a ponto de controlar a ansiedade em patamares que permitam a confortável
fruição da obra.
35 Com o crescimento da disputa entre as emissoras no final dos anos 80, os resultados
das pesquisas de audiência do Ibope começam a ser criticados pelas emissoras concor-
rentes a Globo, alegando serem eles pouco críveis. Vink (1990) ilustra essa desconfiança
com os resultados de pesquisa de mercado dessa agência que apenas indicavam a Globo
como veiculadora de determinado anúncio que não teria sido divulgado por ela. Nico
Vink pondera que não é apenas uma polêmica em torno da credibilidade da pesquisa,
mas uma crítica às posições de monopólio da TV Globo e do Ibope.
Campo da Telenovela 149

aumento, com variações acentuadas nos horários. 36 Roque


santeiro (1985), por exemplo, já apresentava uma audiência
feminina de 59%, para uma audiência masculina de 41%.
Esses dados, além de mostrarem que os homens estavam
mais interessados em telenovelas, indicavam também que
esse gênero ficcional estava sofrendo modificações, em fun-
ção do interesse das emissoras de conquistarem uma fatia
maior do público masculino, já que as pesquisas permitiam
afirmar, inclusive, que a fruição das telenovelas dependia do
sexo do telespectador (p. 101).
O que interessa examinar nesse momento é o ponto de
vista que formula a maior parte dessas sondagens: a capa-
cidade de consumo dos telespectadores. As classes sociais
que os classificam, por exemplo, têm sido formuladas a
partir de dados referentes à quantidade de aparelhos
eletrodoméstico (rádio, televisão, videocassete, máquina de
lavar, aspirador de pó), de banheiros, de empregadas, de
anos de escolaridade.37
Em 1993, no período de exibição de Renascer, o Ibope apre-
sentava os resultados de uma pesquisa encomendada pela TV
Globo sobre “os hábitos de consumo da mídia na cidade de
São Paulo.38”
36 Interessante notar como essa tendência de crescimento já estava presente na época
das radionovelas (Borelli e Mira, 1996) e nas pesquisas dos anos 70 sobre as teleno-
velas. Os dados de Irmãos Coragem (1971), por exemplo, mostravam o mesmo inte-
resse de ambos os sexos (Ramos e Borelli, 1989, p. 81).
37 Os parâmetros para a construção desses dados têm sido formulados pela ABA/
ABIMEPE, Associação Brasileira de Pesquisa de Mercado. A classificação
socioeconômica lista os bens de consumo, equipamentos e auxiliares domésticos,
depois atribui valores em função da quantidade desses itens que o entrevistado possui.
As maiores pontuações estão em função do número de banheiros, automóveis, empre-
gadas e TVs coloridas. Os pontos obtidos na classificação socioeconômica são soma-
dos aos pontos obtidos em função dos anos de escolaridade – faixa que vai do
analfabeto/ primário incompleto (0 pontos) ao superior completo (21 pontos). Para
a classe A estima-se mais de 89 pontos, para a classe B, de 55 a 88 pontos, ate chegar
a classe E, que varia de 0 a 19 pontos. Para exemplificar, os telespectadores da classe
D, na menor pontuação desse grupo, teriam uma TV colorida, um rádio, um banheiro,
uma geladeira e o primário/ginásio incompleto. Esses pontos somados são enfim
relacionados à posição do entrevistado na família (chefe, cônjuge ou ambos).
38 De acordo com o superintendente comercial da TV Globo, Otávio Florisbal, esti-
mava-se que em 1993, 65% das verbas publicitárias no Brasil estariam concentradas
em São Paulo, enquanto que 15% no Rio de Janeiro.
150 Telenovela e Representação Social

O que a pesquisa dizia sobre esses telespectadores? Em pri-


meiro lugar, que 90% dos informantes tinham a TV como fonte
básica de lazer. A telenovela e as minisséries eram a segunda
melhor opção de lazer, sendo que quanto mais baixa a classe
social, maior a intensidade dessa opção. Além disso, para 94%
dos informantes, a TV era a principal fonte de informação. Pode-
se dizer que esses dados mostram uma característica dos
telespectadores presente desde meados dos anos 70. Entretan-
to, os anos 90 mostraram uma das maiores mudanças no perfil
dos telespectadores favorecida pela maior estabilidade da eco-
nomia advinda da experiência do Plano Real.
Os consumidores denominados de ‘emergentes’, os da clas-
se D e E, entraram na cena televisiva com muito empenho nos
primeiros anos da década de 90 (Pesquisa realizada pela
Almap/BBDO e pela Datafolha, 1996; Revista Veja – dezem-
bro, 1996). Esse novo telespectador gerou uma inusitada dis-
puta entre as emissoras e o retorno do grotesco à televisão
brasileira. Desse modo, recolocou-se no campo o debate acer-
ca do lugar do ‘populacho’ na televisão brasileira. As recentes
matérias dos jornais analisando as disputas pela audiência e
os programas do Faustão, Gugu e Ratinho são expressões des-
sa nova fase do campo da televisão. Emissoras como Record e
SBT pareciam buscar o rompimento de uma das marcas que
tinha consagrado a TV hegemônica do campo: “o padrão Glo-
bo de qualidade”. Não se pode tecer contundentes afirmações,
ainda, sobre essa nova fase do campo da telenovela, pois os
estudos sobre ela mal começaram. Todavia, nota-se um retor-
no ao clássico folhetim melodramático, associado a uma me-
nor tolerância aos temas tabus, como se pode verificar no caso
das personagens lésbicas que recentemente precisaram ser
soterradas com a Torre de Babel (Sílvio de Abreu, 1998).39
39 A imprensa especializada noticiou que as pressões de “segmentos conservadores da
sociedade contra os supostos abusos” de Torre de babel, associada a índices de Ibope
pouco desejáveis, levou a morte na explosão do Shopping os personagens pecadores
que praticavam o lesbianismo. Tal fenômeno não pode ser explicado apenas pela
inclinação mais popular do perfil da audiência, já que grande parte das organizações
que defende o final dos ‘abusos morais’ não pode ser chamada de ‘populares’. Contu-
do, não se pode desconsiderar que por mais que a audiência não tenha ‘cara própria’,
como lembra Fernando de Barros e Silva, o mercado é sem dúvida o ‘grande inquisidor
da atualidade” (TV Folha, 19/6/1998).
Campo da Telenovela 151

O dados desses estudos de audiência e dos consumidores


emergentes mostraram que os anos 90 (pelo menos até 1998)
correspondiam a uma nova fase de crescimento econômico
no campo da televisão, instituindo uma maior segmentação e
heterogeneidade dos telespectadores. Isso, quando os dados
são comparados com as décadas anteriores. Fenômeno que
gera, sem dúvida, um novo desafio para as emissoras, em es-
pecial a TV Globo, que diferentemente das suas principais con-
correntes, não se especializou nesse novo perfil do público.
Apesar das mudanças que esse novo telespectador está geran-
do nas programações das emissoras, na narrativa e nas estra-
tégias discursivas das telenovelas, não se pode esquecer que
as emissoras contam com serviços de institutos de pesquisa
que vêm desenvolvendo sistemas sofisticados e precisos de
quantificação e caracterização desse público consumidor. Isso
significa que as emissoras esperam poder saber por quem es-
tão lutando. Nessa medida, resta a elas reinventarem os ca-
minhos das disputas, onde as telenovelas ainda mantêm uma
expressiva importância econômica. O “show deve continuar”
porque, entre outras razões, o Brasil ainda é um País onde a
televisão continua sendo o principal veículo de propaganda
em que “tudo deve ser anunciado”, mesmo sabendo que nem
todos podem comprar (Florisbal, 1993).
Por fim, um outro sistema de quantificação e qualificação
dos telespectadores soma-se aos anteriores: o organizado pela
própria emissora. O sistema adotado pela TV Globo, nos anos
70 e 80, sob o comando de Homero Sanches, foi um impor-
tante marco de referência. Sanches desenvolveu um método
de avaliação para manter a telenovela sob os “trilhos da audi-
ência” (Ramos e Ortiz, 1989, p. 126). Em meados dos anos 80,
Ramos e Ortiz (p. 127-128) contam que a TV Globo já contra-
tava uma agência para avaliar a repercussão da telenovela.
O que se pretende não é discorrer sobre a eficácia, ou não,
dos métodos utilizados, ou até mesmo refletir sobre as mu-
danças ocorridas nessa área na última década. O que se bus-
ca é chamar a atenção para a dinâmica dos processos deci-
sórios de uma empresa como uma emissora de televisão que
depende de dados sobre a audiência – colhidos antes, durante
152 Telenovela e Representação Social

e depois dos programas –, para formular e reformular seus


produtos audiovisuais. Tais processos fazem parte de um mo-
vimento permanente e imanente ao campo que exige dos for-
muladores e executores das políticas da empresa rapidez, fle-
xibilidade, agilidade e capacidade de inventarem soluções para,
não apenas, resolverem os problemas provenientes dos baixos
índices de audiência, como também, retirarem o máximo pro-
veito dos altos índices. Movimento que envolve todos os inte-
grantes das equipes de realização dos programas. No caso da
telenovela, as posições de maior poder decisório têm sido as
do diretor geral e do escritor responsável.
A telenovela, Irmãos coragem,40 de acordo com a impren-
sa, apresentou uma crise de audiência. Relatório do Ibope
apontava apenas 30% de aparelhos ligados. Luiz Fernando
Carvalho, o diretor-geral, foi interrogado sobre essa queda de
audiência, e respondeu: “não há crise na TV Globo frente aos
baixos índices de audiência de Irmãos coragem, porque já se
esperava uma queda da audiência devido ao horário de ve-
rão”. Ele também não concordou com os comentários de que
a linguagem da telenovela não era adequada ao horário. De
qualquer forma, comentava que o Boni (vice-presidente de
operações da Rede Globo) conversou com ele sobre os índices
apresentados pela pesquisa.
Boni contou-me que na primeira versão da novela
pediu-se a Janete que a trama tivesse um teor mas-
culino, porque a Globo estava interessada em criar
uma cumplicidade com o público masculino. Com a
novela passando para o horário das 18:00h, a gen-
te automaticamente perdeu esse público, pois ele es-
tava trabalhando. Essa é uma novela com uma lin-
guagem ainda muito masculina e que trata da luta
do pobre contra o rico opressor. E você não tem esse
público que participa dessa luta no plano da reali-
dade. Boni colocou muito claramente a preocupa-
ção de inverter o foco para o público feminino. Logo,

40 Remake de telenovela escrita em 1971 por Janete Clair, exibida no horário das
18:00h em 1996.
Campo da Telenovela 153

buscarei equilibrar isso um pouco mais, alimentan-


do dramaticamente os núcleos femininos dentro da
novela”. Não era uma mudança de rumo, explica Luiz
Fernando, pois a discussão, agora, é apenas como
tentar dialogar com o público feminino (O Globo,
Segundo caderno, 6/2/1995).
Esse longo depoimento sugere que o acompanhamento
das telenovelas tem feito parte do ritual de trabalho dos estra-
tegistas da emissora, que buscam transformar dados diversos
sobre a audiência em bons resultados. Além desse acompa-
nhamento, tem-se tentado criar fóruns de avaliação e criação
das telenovelas, como foi o caso da “Casa de Criação Janete
Clair”, em 1984 (Ortiz et al, 1989), e a tentativa recente de
Boni em criar um Conselho de Autores para a seleção de tele-
novelas, contando com Gilberto Braga, Dias Gomes, Sílvio de
Abreu e outros (Folha de S. Paulo – Ilustrada, 13/3/1996).41
A indicação desses diversos canais entre as emissoras e
seus públicos mostra como, ao longo da história do campo,
sofisticou-se os sistemas de quantificação e qualificação ava-
liadores dos telespectadores. As emissoras parecem ter clare-
za que esses seriam dados essenciais, mas não suficientes para,
por si só, garantirem o faturamento necessário. As brigas re-
centes da TV Globo com o SBT e a Record pelos índices de
audiência mostram que apesar da profusão de dados circu-
lantes sobre os telespectadores, ainda tem sido fundamental o
papel dos criadores da televisão, pois são eles que transfor-
mam esses dados em efetiva audiência.
Das funções que esses dados de audiência exercem no
campo, destaca-se o poder de indicação da emissora de maior
prestígio. Quanto maior a audiência de uma emissora, maior
a sua capacidade de definir bons preços dos seus espaços co-
merciais. Logo, quando bem gerenciada, a audiência gera bons
faturamentos que podem significar a capacidade de manter e
41 Chama a atenção, também, a notícia veiculada pela Folha de S. Paulo (Ilustrada,
30/6/1997), informando que a Globo promoveria uma série de group discussion de
telespectadores, em São Paulo, para definir novos rumos para as telenovelas. O resul-
tado da primeira já mostrava que novos caminhos precisariam ser redesenhados, pois,
entre outras coisas, estava-se rejeitando a violência e as longas histórias.
154 Telenovela e Representação Social

formar as melhores equipes de realizadores, as quais poderão


fornecer a manutenção desses índices. Mais do que isso, quanto
maiores eles forem, maiores as condições de negociação e de
imposição dos interesses das emissoras nos conflitos estabele-
cidos com o Estado, com outras emissoras, com representan-
tes dos movimentos sociais, com a Igreja Católica, com os re-
presentantes das Associações dos Trabalhadores da Televisão.
As emissoras de TV, por exemplo, não se cansam de bus-
car, dentro do atual mercado concorrencial das telenovelas
brasileiras, os horários, o ritmo dos intervalos, as equipes téc-
nicas e os sistemas de produção adequados para a construção
e a consolidação de um público em expansão e em amplo pro-
cesso de segmentação.42 Movimentos contínuos que realimen-
tam uma das bases de sustentação do campo – as emissoras e
o público, e também fornecem as bases para os sistemas de
consagração e hierarquia dos realizadores e suas obras, já que
no Brasil ainda permanece a defesa da associação da qualida-
de artística das telenovelas com a expansão do consumo.
Os índices de audiência têm colaborado na conformação
dos ritos de reconhecimento e consagração dos realizadores.
Todo escritor de telenovela, por exemplo, sabe que precisa vin-
cular o telespectador à sua obra. Isso significa que para a ela-
boração desse gênero ficcional os realizadores devem saber
construir a carpintaria do texto de tal forma que as expectati-
vas dos seus telespectadores sejam atendidas. No caso das te-
lenovelas, fala-se em um número gigantesco de telespecta-
dores, heterogêneos quanto à classe social, idade, sexo e ex-
pectativas. Para dar conta da exigência de sintonia com um
público tão heterogêneo, os realizadores vivem a experiência
de trabalho que entrelaça um arsenal de dados sobre os teles-
pectadores – coletados por eles ou pela emissora – com a “boa
fórmula” de telenovela, aquela que permite construir a cum-
plicidade vital entre os realizadores e seus consumidores.
Associado ao recurso da boa fórmula, assim como a exi-
gência de seu bom cumprimento, observa-se a busca do estilo

42 Vale a pena lembrar as recentes estratégias do SBT, que não só criou dois horários
para exibição da mesma novela, como manteve a exibição de novelas venezuelanas e
mexicanas e ampliou o sistema de produção das suas próprias.
Campo da Telenovela 155

de cada um e dos critérios de reconhecimento e consagração.


Está-se querendo com isso dizer que não são apenas os bons
índices de audiência que consagram os realizadores. Poder
desenvolver fórmulas com estilos próprios, representa tanto a
possibilidade de reinventá-las, quanto a origem de um dos cri-
térios que constituem os sistemas de hierarquia do campo.
Infere-se, então, que tanto os dados que retratam os telespec-
tadores quanto os modos de construção da cumplicidade
imanente com o consumidor exercem uma função formado-
ra e reguladora do campo. Para finalizar, reafirma-se a idéia
de que quanto mais hábeis forem na construção da carpinta-
ria da telenovela, maiores serão as condições para conquista-
rem os bons índices de audiência e consagração, favorecendo
uma margem maior de possibilidades criativas e autorais.

Campo Artístico e as “Regras da Arte” na História de Produção das Telenovelas Brasileiras


A gênese do campo da telenovela está relacionada ao proces-
so de formação e consolidação da indústria cultural na socie-
dade brasileira e ao debate acerca das dimensões puras e co-
merciais das obras artísticas e culturais intrínsecas ao campo
artístico daquela época. Um dos principais traços desse cam-
po artístico que tem influenciado fortemente, não apenas o
momento inicial do campo da telenovela, mas toda a sua his-
tória, foi a presença de critérios artísticos para sua avaliação,
apesar do seu caráter marcadamente comercial.
O campo artístico no Brasil, segundo Ortiz (1988), apre-
senta características particulares em função da forma como
a cultura artística entrelaçou-se à cultura de mercado. Não
teria ocorrido, como na Europa do século XIX, a emergência
de duas esferas culturais distintas e antagônicas, de um lado
a circulação restrita vinculada à literatura e às artes e, de outro,
a circulação ampliada de caráter comercial. Sem querer dis-
cutir tais afirmativas desenvolvidas por Ortiz, fica-se com essa
idéia levantada pelo autor para refletir sobre o momento da
gênese do campo da telenovela, obra cultural ofertada pela
televisão.
O interesse aqui é chamar a atenção sobre essa possível
particularidade do caso brasileiro. Ao pensá-la a partir do pró-
156 Telenovela e Representação Social

prio Bourdieu (1996a), surge a idéia de que para existir um


campo artístico seria fundamental a presença de determina-
das pressões do mercado e de outras forças sobre os artistas.
Pode-se pensar: mais importante do que existir ou não uma
esfera da arte desinteressada em antagonismo com a arte co-
mercial é existir as pressões que, num determinado contexto,
favoreceriam o surgimento do campo, e nele, dos represen-
tantes das artes ‘puras’. Isso porque o campo só poderia ser
gerado depois de um mercado ter-se constituído, ou quando
ela, a esfera da arte desinteressada, fosse capaz de interferir
de fato nas ‘regras da arte’. Ou seja, pondera-se aqui que a
existência do mercado restrito da arte se faria a partir do con-
fronto com o mercado comercial já existente.43 Portanto, não
devem ser examinados, isolando-se um do outro.
O mais importante de ser ressaltado da proposição do Ortiz
diz respeito à suposição de uma expressiva presença das re-
gras da arte como formadoras dos critérios de qualidade da
teledramaturgia da televisão brasileira. Ou melhor, à idéia de
que no Brasil os artistas brigam pelas definições da arte den-
tro da indústria da cultura, pois não tem sido possível emergir
no país uma esfera cultural autônoma da arte. Ela teria sur-
gido a partir da própria indústria, no seu interior, no confron-
to com a censura, com os patrocinadores e os empresários
pouco sensíveis às dimensões artísticas.
Como não existe uma diferença e um antagonismo acen-
tuado entre as artes desinteressadas e as obras fabricadas pelo
mercado (afirmação que remete à ausência de um mercado
das artes fora do eixo comercial dado pelas empresas de co-
municação), a televisão, assim como os outros veículos, seri-
43 Ponderações que remetem a Bourdieu (1996a, p. 75), que diz: “o campo literário e
artístico constitui-se como tal na e pela oposição a um mundo ‘burguês’ que jamais
afirmara de maneira tão brutal seus valores e sua pretensão de controlar os instru-
mentos de legitimação, tanto no domínio da arte como no domínio da literatura, e
que, por intermédio da imprensa e seus plumitivos, visa impor uma definição degrada-
da e degradante da produção cultural. O desgosto mesclado de desprezo que inspiram
nos escritores (Flaubert e Baudelaire, especialmente) esse regime de novos-ricos sem
cultura, (...) o materialismo vulgar dos novos mestres da economia, o servilismo
cortesão de boa parte dos escritores e dos artistas não contribui pouco para favorecer
a ruptura com o mundo ordinário que é inseparável da constituição do mundo da arte
como um mundo à parte, um império, em um império”.
Campo da Telenovela 157

am povoados de artistas interessados na difusão e produção


da arte. Ou seja, busca-se construir no interior do espaço re-
gido pelas regras comerciais, as regras da arte, uma perspec-
tiva de autonomia, mesmo que relativa, frente às leis de fun-
cionamento do mercado. Regras que têm como meta a luta
pelo fortalecimento dos critérios artísticos e estéticos na qua-
lificação e elaboração dos produtos mediáticos. Imagina-se
que tal busca pelos critérios de consagração seriam imanentes
ao campo, sendo que as fases de gênese e consolidação seri-
am momentos cruciais de expressão de diferentes pontos de
vista acerca dos mesmos,44 pois o campo se constituiria tam-
bém a partir do movimento de determinados agentes e insti-
tuições que se auto-consideram artistas e defendem a cons-
trução de sistemas classificatórios próprios, expressões das
lutas contra as relações de dependência, contra as forças que
geram formas de submissão e limitações, advindas seja do
Estado, da Igreja ou do mercado.45
O que se observou, atenta Ortiz (1988), foi uma cultura
popular de massa nascente marcada por uma preocupação
que deveria, em princípio, pertencer apenas à esfera erudita
da cultura.46 O caso do cinema citado por Ortiz (p. 66) é emble-
mático. Tinha-se, de um lado, a Vera Cruz, fortemente influ-
enciada pelo cinema americano de Hollywood e por outro, a
Atlântida, de caráter mais popular. Com a Vera Cruz se busca-
44 Esse raciocínio serviria para pensar os diversos subcampos do campo artístico – ou
seja, que isso não seria uma particularidade do campo da telenovela.
45 Bourdieu (1996a, p. 77-78) afirmaria que: “um dos efeitos maiores do funciona-
mento do mundo literário como campo advém da relação entre o campo literário e o
campo do poder, que por acentuarem a dependência, geram por parte dos ‘artistas’ a
indignação moral contra todas as formas de submissão aos poderes ou ao mercado.
Tais formas de submissão desempenham um papel determinante na resistência cotidi-
ana que levou à afirmação progressiva da autonomia dos escritores; e é certo que na
fase heróica da conquista da autonomia, a ruptura ética é sempre, como se vê em
Baudelaire, uma dimensão fundamental de todas as rupturas estéticas. [Logo], na
fase crítica da constituição de um campo autônomo, reivindica-se o direito de definir
ele próprio os princípios de sua legitimidade”.
46 Uma explicação para esse fenômeno dada por Ortiz (1988) diz que o “industrialismo
da burguesia” não mais se apoiava nos princípios aristocráticos de cultura, e muito
menos nos moldes de um mecenato benemérito. O que percebia era uma burguesia
preocupada em despender grandes somas de dinheiro com vistas à sua afirmação no
domínio da cultura, supondo que o mercado construía também as bases do erudito.
158 Telenovela e Representação Social

ria uma legitimidade e reconhecimento artístico que não pas-


sasse pelo cinema de autor (o neo-realismo italiano, por exem-
plo), mas de uma dramaturgia pautada na conquista tecno-
lógica e na produção industrial de caráter empresarial de pa-
drões hollywoodianos (p. 70). A diferença almejada estava nas
experiências da Atlântida que representavam o popular em
espetáculos histriônicos de simplicidade cenográfica e tecno-
lógica. Trata-se, insiste Ortiz, na expressão de grupos sociais,
como a burguesia industrial, que investem na construção dos
seus traços de distinção, ao mesmo tempo, que investem numa
indústria cultural.
Tal análise da formação da cultura popular de massa na
sociedade brasileira ajuda a pensar porque a televisão, no pe-
ríodo de seu surgimento (anos 50), era apontada pelos seus
realizadores como um produto elitista. Era assim chamada
não só em função do público a que se destinava naquela épo-
ca, mas porque representava um traço de distinção para os
telespectadores e para os artistas, técnicos, empresários e in-
telectuais nela envolvidos.47 Segundo Ortiz (1988), a qualifi-
cação elitista apóia-se numa hierarquia de valores que agru-
pa programas considerados como mais legítimos de um lado
(teatro e teleteatro, no caso da televisão), e mais populares de
outro (aqueles produzidos segundo o antigo esquema do rá-
dio, como musicais e programas de auditório – e as telenove-
las, ainda no caso da televisão). E, de algum modo, observa-se
hoje o mesmo fenômeno quando se estabelece a comparação
entre as minisséries e as telenovelas. A primeira está mais pró-
xima da realização pautada em critérios artísticos, neste caso,
a telenovela não pode ser pensada apenas a partir deles, já
que não tem as condições necessárias para tanto (condições
de trabalho, público, pressões limitantes do mercado).
O que se pretende ressaltar é a presença no campo da
telenovela de critérios de consagração e legitimação de seus
produtos tributários das polêmicas travadas no campo artísti-

47 Fenômeno também presente na história do rádio. Borelli e Mira (1996, p. 35)


indicaram que nos anos 30 “o rádio começou a funcionar comercialmente e voltou-se
para a produção de programas de calouros, humorísticos e de variedades, contrarian-
do o destino mais erudito que lhe fora atribuído, inicialmente, por seus criadores”.
Campo da Telenovela 159

co como um todo. O principal deles é aquele que demarca as


fronteiras (ou não-fronteiras) do ‘erudito’, artístico, singular,
e do ‘popular’, massivo, uniforme. O mercado está maculando
qualquer uma delas, sabe-se isso de antemão, mas nem por
isso se está impossibilitando a reinvenção das disputas que
regem as práticas e a existência dos artistas e, muito menos,
das marcas de distinção e reconhecimento social que esses
produtos significam para os empresários que os produzem ou
para aqueles que os consomem. Declarar-se atualmente con-
sumidor assíduo de minisséries da TV Globo em rodas de inte-
lectuais é menos danoso do que se apresentar como amante
das telenovelas dessa emissora. Discriminar o “horário das
20:00” é inclusive menos danoso que se mostrar defensor das
versões mais tradicionais reificadas nas produções da Televi-
sa, ou em remakes de Pérola negra (SBT, 1999).
O pólo dominado e desprestigiado da teledramaturgia tem
sido a telenovela. Nos anos 50 e 60 era produzida sem os mes-
mos recursos (não havia também índices de audiência que os
justificassem) e cuidados dos teleteatros (Klagsbrunn e
Rezende, 1991). Mas, mesmo naquela época, podia-se obser-
var a busca do reconhecimento do gênero como estratégia de
distinção para os realizadores envolvidos.
Insiste-se que a existência de estratégias que visam à cons-
trução de sistemas de reconhecimento e consagração não é
apenas um traço particular da fase inicial do campo, como
pode sugerir a análise de Ortiz.48 Elas seriam lógicas estrutu-

48 “Afirmar uma hierarquia de valores no interior da esfera de produção comercial é


dizer que a lógica da legitimidade cultural, determinada na área da cultura “erudita”
pelos pares, penetra o universo da produção em massa. O prestígio do teleteatro se
estende, dessa forma, para a televisão como um todo, e uma empresa como a Tupi
[São Paulo] pode ser considerada como de elite, seja pelos críticos, seja por seus
próprios membros que se vêm como promotores da cultura e não como vendedores de
mercadoria cultural.(...) Se levarmos em consideração que entre os programas mais
vistos figuram os musicais e outros do tipo O céu é o limite, percebemos que a questão
do prestígio passa por outros canais que não são necessariamente os da popularidade
dos programas. (...) Em uma sociedade de massa incipiente, a televisão opera portan-
to com duas lógicas, uma cultural, outra de mercado, mas como essa última não pode
ainda consagrar a lógica comercial como prevalecente, cabe ao universo da chamada
alta cultura desempenhar um papel importante na definição dos critérios de distinção
social” (Ortiz, 1988, p. 76).
160 Telenovela e Representação Social

rantes do campo, que como lembra Bourdieu, funcionariam


como contradições que atravessariam de maneira “ortogonal”
as esferas eruditas e comerciais do campo artístico, e seus mais
diferentes subcampos. Examinando o caso das telenovelas,
apesar de serem, em princípio, simbolicamente dominadas,
seus realizadores constroem sistemas de distinção, utilizando
para tanto critérios formulados na dita esfera da cultura eru-
dita, mesmo quando ela não se conformasse aos clássicos
moldes europeus. Tal perspectiva ajuda a compreender, por
exemplo, o papel dos managers da cultura televisiva, como Boni,
que desde que se introduziu na TV Globo, em 1965, buscou
articular no processo de seleção e elaboração dos programas,
as exigências que poderiam gerar uma linguagem própria para
a TV que resguardasse a qualidade artística. Empenho que se
expressa nos anos 70 pelo conhecido bordão “padrão globo de
qualidade”, ou quem sabe “padrão Boni de qualidade”.49
Aspectos que expressam um dos primeiros e centrais pon-
tos de vista estruturantes do campo. Estruturante porque de-
fine posições dos agentes e instituições e porque pode interfe-
rir nas formas de se lidar com a questão do popular, pois de-
terminadas formas de abordá-la podem ser usadas como um
desses critérios de consagração e distinção. Importante exa-
minar as posturas em torno do “realismo” e do “romantismo”
nas telenovelas, pois se sabe que desde os anos 70 ser realista
era sinônimo de bom escritor e boas telenovelas para a crítica
especializada. Um dos exemplos mais interessantes tem sido
em torno de Janete Clair, considerada romântica pelos críti-

49 Referência a artigo de Mauro Ventura, na Revista de Domingo do Jornal do Brasil


(4 de agosto de 1996). Nesse artigo um depoimento ilustrativo das bases desse ‘pa-
drão Boni’: “Sempre fiz o popular bem feito”, diz o próprio Boni, o que confirma
Armando Nogueira, quando lembra que “ele cuida da técnica com o mesmo zelo e a
mesma obsessão com que trata da estética. A Globo tem uma imagem melhor do que
qualquer outra rede no mundo graças ao Boni”. Necessita-se de estudos que possam
confirmar a efetiva importância de ‘Boni’ enquanto pilar sustentador do sucesso da
emissora que tem conquistado uma estética televisiva de qualidade. Neste momento,
basta frisar que a história de ‘Boni’ no meio televisivo tem uma função preciosa no
campo. Ao ser construída pelos seus próprios pares e demais agentes (como os jorna-
listas especializados), está representando um importante ‘mito de origem’ para expli-
car, justificar e defender a qualidade estética da televisão e de produtos como a
telenovela.
Campo da Telenovela 161

cos de telenovela, em contraposição ao Dias Gomes, conside-


rado realista. Xexéo recupera na biografia de Janete Clair,
muito claramente, essa polarização e seu significado para o
reconhecimento e a distinção dos escritores de telenovelas,
merecendo ser aqui exposta.
Janete começava [em 1975] a ser rejeitada pelo ex-
cesso de fantasia de seus textos, pelo romantismo
exacerbado com que desenvolvia um enredo. Nada
muito diferente do que tinha eliminado Glória
Magadan da folha de pagamentos da TV Globo. E,
para a emissora, o exemplo do que um bom autor
de novelas podia ser estava na própria casa de
Janete: Dias Gomes.
Ele também vinha de uma série de sucessos às 22:00h
como Bandeira dois e o Bem amado. Seu estilo era
o oposto do da mulher. Enquanto as novelas das
20:00h se encharcavam de romantismo, as das
22:00h traziam o realismo para a TV Brasileira. O
universo dos bicheiros no Rio de Janeiro ou dos co-
ronéis do interior da Bahia alcançava menos audi-
ência que a fantasia desbragada de Janete, mas ti-
nha muita repercussão e agradava em cheio a críti-
ca. Quem sabe se, transportando esta temática para
às 20:00h, a Globo não uniria o sucesso de público
ao respeito dos críticos? Dias Gomes foi convocado
para escrever a novela que renovaria, mais uma vez,
os ares de 20:00h. O destino de Janete não seria tão
radical quanto o que a emissora reservou para Gló-
ria Magadan. Bastava transferi-la para o horário
mais água-com-açúcar das 19:00h. “Ela ficou ma-
goada. Achou que tinha sido rebaixada e nunca en-
goliu essa mudança”, revela o próprio Dias Gomes”
(Xexéo, 1996, p. 75).
Um outro exemplo interessante, citado por Ortiz (1988, p.
74), ocorreu na fase de formação do campo. Na programação
televisiva da época, a experiência mais valorizada era a vincu-
lada ao teatro. O curioso era poder identificar na mesma área
162 Telenovela e Representação Social

de trabalho as regras de distinção e consagração. Um grupo


de artistas consagrados no campo teatral – “os melhores de
sua época”, responsáveis pelo Grande Teatro Tupi (Sérgio Brito,
Fernanda Montenegro, Fernando Torres e outros) –, realiza-
vam uma apresentação semanal conhecida como de “grande
qualidade”, pois era o melhor teatro do país na TV (Klagsbrunn
e Rezende, 1991, p. 141). Essa possível transferência de legiti-
midade e reconhecimento de uma “arte e artistas consagra-
dos” para um meio audiovisual ainda incipiente estaria asso-
ciada a uma linguagem audiovisual que fosse o mais fiel pos-
sível aos modos de expressão dos palcos, opção que, na pers-
pectiva de Ortiz, mostrava uma desconsideração à especifi-
cidade da linguagem audiovisual. Mas havia também os gru-
pos envolvidos com os teleteatros, não tão consagrados quan-
to os primeiros, mas ainda de um fazer artístico que lhes con-
feria reconhecimento. Essa posição talvez lhes tenha propor-
cionado a possibilidade de se transformarem num dos princi-
pais promotores de experiências inovadoras da teledramatur-
gia. Para esse grupo existia o desafio de encontrar uma lin-
guagem televisiva própria que fosse construída a partir de pro-
fícuos encontros com a linguagem teatral e cinematográfica,
já que não estava comprometido com as regras mais eruditas
do campo teatral.
Um dos destaques desse período está no Programa Câmera
Um (TV Tupi do Rio) dirigido por Jaci Campos, de quem Herval
Rossano destacava a ‘fascinante’ habilidade de enquadramento
(p. 89). Fábio Sabag dizia que até hoje ninguém fez um pro-
grama como o Câmera um, dirigido por um dos melhores dire-
tores que já havia passado pela televisão brasileira. “Ele tinha
uma criatividade fantástica com uma câmera só. O câmera
operador tinha que ser um bailarino na medida em que passe-
ava a máquina pela mão do Jaci, pegava o detalhe do anel, ia
subindo, tinha um close... Era sensacional” (p. 103). Ibañes
Filho considerava Jaci Campos um grande mestre do
enquadramento, do uso da técnica do cinema em favor da
televisão. Salientou que ao aplicar “toda a técnica” que apren-
deu com o mestre, tornou-se um sucesso e até prêmios rece-
beu (Id. 127).
Campo da Telenovela 163

A TV de vanguarda (1952 a 1967, TV Tupi de São Paulo)


era considerada a experiência inovadora do território paulista.
Segundo Ortiz (1989), Walter Durst e Cassiano Gabus Men-
des estava incrementando as interfaces do cinema, teatro e
televisão.50
Nessa fase de formação do campo da telenovela, observa-
se que experiências acumuladas na área teatral como ator,
escritor ou diretor, por exemplo, aumentavam as chances de
reconhecimento e consagração na televisão. Tal assertiva tam-
bém pode dizer respeito às positivas experiências acumuladas
dos realizadores seja no rádio, no cinema ou na literatura.
Isso leva a supor que a busca de uma linguagem própria para
a televisão foi realizada a partir de recursos técnicos e de ex-
pressão disponíveis e consagrados, entre eles o teatro e o cine-
ma. O depoimento de Péricles Leal, um dos principais direto-
res e escritores de televisão, e também de telenovela, daquela
época, é muito ilustrativo:

Eu definia a televisão (quando fui professor de esté-


tica de televisão) como uma manifestação artística
que, do ponto de vista do realizador e do ator, tem a
continuidade emocional do teatro, mas é captada e
transmitida numa linguagem cinematográfica. Hoje
o take pára muito, mas naquela época não parava,
o capítulo começava e ia até o fim. Hoje, se pára,
faz-se uma seqüência, outra seqüência, faz-se um
take, depois outro take. Tudo é feito como no cine-
ma; antigamente era direto. Então, tinha a conti-
nuidade emocional do teatro, sendo que nós procu-
rávamos fazer com uma linguagem cinematográfi-
ca. A nossa influência era muito do cinema. Eu me
lembro que, na época, ninguém do meu grupo tinha
vindo do rádio. Todos tinham feito algum teatro ex-

50 Regis Cardoso lembra que nessa época a TV Paulista também realizava o teledrama
Três Leões, e Álvaro Moia buscava “fazer o nosso teatro parecer mais um filme, mais
cinema. Tanto que tudo era bem ensaiado, muito bem planejado, todos os takes, coisa
que a Tupi já fazia de uma maneira mais industrial” (depoimento em Klagsbrunn e
Rezende, 1991, p. 128).
164 Telenovela e Representação Social

perimental e todos eram loucos por cinema”


(Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 161).
Na fase de consolidação do campo da telenovela, essa lin-
guagem já estava em formação, e mais especificamente, a lin-
guagem própria da telenovela, que vinha esboçando inova-
ções desde meados dos anos 60 (Ramos e Borelli, 1989, p. 78).
Tais critérios de consagração permaneceram em curso no cam-
po? Acredita-se que sim. Continuam presentes consagrados
escritores dramaturgos, como Dias Gomes, Lauro César Muniz,
Bráulio Pedroso, Jorge Andrade. Benedito Ruy Barbosa conta,
por exemplo, que foi chamado para escrever telenovelas so-
mente depois do prêmio que recebeu com sua peça de sucesso
Fogo frio (1959). Os loucos por cinema, os diretores, passa-
ram cada vez mais a serem avaliados frente à habilidade de
desenvolverem a arte da narrativa audiovisual para a teleno-
vela, como foi o caso de Daniel filho, Herval Rossano, Walter
Avancini (Ramos e Ortiz, 1989).
Acredita-se ainda que tais critérios vigoram até os dias
atuais. Não são poucos os exemplos que se pode oferecer. Ato-
res, escritores e diretores51 passearam, e continuam passean-
do, pelas mais diferentes áreas do campo artístico, na busca
de uma rota de prêmios e de experiências que os legitimem
cada vez mais em uma área ainda considerada menor, e que
também os permita sentir afinados com seus projetos pesso-
ais de artistas.
Isso não significa que os realizadores só agissem em fun-
ção de cálculos previamente estabelecidos que os conduziri-
am ao leito da fama. Não se está, necessariamente, falando
de realizadores cínicos, mas de hábeis e capazes de incorpora-
rem e reconhecerem as regras de funcionamento do espaço
social das práticas que desenvolvem. Parafraseando Bourdieu,
diz-se que são agentes dotados de “senso prático”.
Não se pode esquecer que a televisão expandia seus hori-
zontes e a telenovela capturava os telespectadores das esferas
51 Bons exemplos no caso das atrizes são Fernanda Montenegro, Marieta Severo e
Marília Pêra; no caso dos escritores, Dias Gomes e Benedito Ruy Barboza, Aguinaldo
Silva, e no caso dos diretores, tem-se Luiz Fernando Carvalho, Guel Arraes e Jorge
Fernando.
Campo da Telenovela 165

teatral e cinematográfica que enfrentavam fortes problemas


decorrentes, entre outros motivos, da forte censura do regime
militar (Ortiz, 1988). Nessa medida, a televisão tornou-se um
importante espaço para os artistas da época52 que não apenas
podiam oferecer os melhores salários, mas também a possibi-
lidade de experimentar, inovar e criar. Migraram juntamente
com esses artistas seus critérios de reconhecimento e distin-
ção, seja do trabalho que realizavam, seja de suas obras. O
depoimento de Dias Gomes é paradigmático: “Levei minha
temática teatral para a televisão, o que no fundo era uma
maneira de eu me defender. Eu tinha realmente medo de per-
der a minha identidade na televisão. Então, raciocinei: vou
levar a minha temática para a televisão, assim posso continu-
ar minhas experiências teatrais dentro da televisão, apenas
numa nova forma que vou tentar dominar, a técnica da tele-
novela” (Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 174).
Em uma primeira fase do campo, os teleteatros eram os
programas mais consagrados, nos anos 70 as ‘novelas das
22:00h’ da TV Globo (Kehl, 1979 e Ramos e Borelli, 1989) e no
início dos anos 90, os ‘especiais’ do “núcleo do Guel Arraes”.53
De qualquer modo, faz parte da história da telenovela ocupar
o pólo dominado e desprestigiado da teledramaturgia (exce-
ção da novela das 22:00h). Nos anos 50 e 60, as telenovelas
eram produzidas sem os mesmos recursos (não havia tam-
bém índices de audiência que os justificassem) e cuidados dos
teleteatros (Klagsbrunn e Rezende, 1991 e Ortiz et al, 1989).
Desde essa época, pode-se observar a busca de critérios pró-
prios de reconhecimento do gênero, de algum modo tributári-

52 Aguinaldo Silva dizia que no Brasil escritores de primeira categoria escrevem


telenovelas, enquanto nos Estados Unidos, nem os de décima categoria o fariam. Há
uma importância desmedida desse gênero no Brasil, em parte causado pela força que
a televisão assumiu no país, em detrimento da pobreza do teatro, do cinema e da
música. “Foi a televisão que restou” como espaço para os realizadores de qualidade
(Playboy, julho de 1992).
53 Guel Arraes de formação cinematográfica, em especial no “cinema-transforma-
ção” dos anos 60, tem sido considerado um dos renovadores da ‘fórmula do dramalhão’
das telenovelas das sete nos anos 80, sendo responsável por um dos mais importantes
espaços de experimentação da teledramaturgia (Gazeta Mercantil, 19/12/1997 e Lua
nova, 1985).
166 Telenovela e Representação Social

os dessa tradição advinda da relação dos realizadores com o


cinema, o teatro, a literatura e o rádio.
Desde meados dos anos 50, já se observavam depoimen-
tos de realizadores, especialmente, escritores e diretores, que
defendiam ora o uso de critérios artísticos, ora o uso de cri-
térios mais comerciais e de entretenimento para avaliarem o
produto. Os pontos comuns usados na avaliação têm sido a
qualidade do script, a construção dos personagens, a dire-
ção, a atuação dos atores, a cenografia, a capacidade de cri-
ar elos com os telespectadores que estimulem o acompanha-
mento da telenovela. Em cada um deles se está avaliando a
habilidade do realizador para construir, adaptar, dirigir e ino-
var os textos adequados ao suporte televisão ou para conse-
guir manter a qualidade da obra, apesar das condições ad-
versas de trabalho.
Passa-se na história do campo da fase da improvisação,
ausência de profissionais especializados, recursos inadequa-
dos, à fase das tecnologias de ponta em sistemas de efetiva
racionalização do trabalho, com equipes experientes e consa-
gradas. Seja num momento ou no outro, os realizadores tra-
balham em ritmo acelerado com fins comerciais que, segun-
do eles, sempre dificulta o tempo de dedicação que demarca
aquela diferença que confere o selo de qualidade e singulari-
dade prezado pelas regras da arte (Ramos e Ortiz, 1989).
Os defensores dos critérios mais artísticos não desconhe-
cem aqueles construídos em função da dimensão comercial
da telenovela, apenas defendem outros que a eles se agregam.
Por exemplo, os escritores demandam uma nova forma de
organizar esse tempo e essas condições de trabalho (telenove-
las fechadas, mais curtas, sem tantas interferências do mer-
cado publicitário e do telespectador, equipes de realizadores
sobre seu controle) para poderem garantir e ampliar, não ape-
nas a qualidade de seus produtos, mas a possibilidade de cria-
rem algo de novo (Ramos e Ortiz, 1989).
Aguinaldo Silva chegou a declarar, sem nenhum pudor,
que telenovela não é arte, mas um produto de seu trabalho –
“insano, é verdade. Mas o que se há de fazer?” (Super TV, Jor-
nal do Brasil, 15/1/1999, p. 3) – mas, que o remunerava mui-
Campo da Telenovela 167

to bem. ”é uma estiva, não? É como eu defino a novela: é


estiva, não tem nada a ver com arte. Ela é uma fábrica de
pizza”. Perguntado se essa loucura valia a pena, ele respon-
deu: “vale a pena na medida em que o novelista tem um bom
salário” (Playboy, julho de 1992).
Silva serve de contraponto significativo a um dos mais res-
peitados defensores da perspectiva artística da telenovela, Dias
Gomes, que a percebe como uma espécie de “arte dramática
popular” (Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 176). “A telenovela
no Brasil transformou a televisão, tornou-a popular, mas tam-
bém um veículo que divulga arte, cultura, conhecimento, ou
seja, um veículo de criação. Nesse espaço, a telenovela é um
novo gênero de arte popular” (Folha de S. Paulo, 28/9/1980).
Um critério que talvez melhor corresponda a dimensão do
mercado, e que tem sido admitido por todo e qualquer reali-
zador, é o atendimento às demandas do telespectador, aferidas
nos índices de audiência e popularidade (Ramos e Ortiz, 1989).
As diferenças se colocam, por exemplo, na forma de pensar a
maior ou menor interferência do público em suas obras. Au-
tores, como Benedito Ruy Barbosa, defendem a autonomia do
autor diante das demandas do público aferidas em índices de
audiência ou qualquer outro sistema: “Custe o que custar, eu
não mexo nas tramas centrais de minhas novelas”, pois corro
o risco de comprometer a sua coerência e qualidade (entrevis-
ta Souza, 28/9/1998).
Quanto mais defendem os critérios artísticos para avaliar
as práticas do campo, maior também a demanda pela origi-
nalidade da obra, na maior parte das vezes associada à di-
mensão da inovação. A crítica de televisão tem assumido um
papel importante no fortalecimento dessa perspectiva na me-
dida em que não perde a oportunidade de demandar as reno-
vações do gênero, em geral acrescidas da bandeira da crise
que o embala. O comentário de Muniz Sodré (um intelectual
constantemente solicitado por jornalistas) ilustra essa deman-
da: “Parece que o público gosta muito de clichês, porque eu
falo há anos que a telenovela brasileira vai entrar em crise e
ela ainda não veio totalmente. Mas ela virá, porque as fórmu-
las estão saturadas” (O Globo, 28/11/1993).
168 Telenovela e Representação Social

Dias Gomes e Lauro César Muniz foram escritores de tele-


novelas que marcaram os anos 70 com suas inovações no gêne-
ro, sendo partidários da perspectiva artística da telenovela. Am-
bos não olharam a chegada dos anos 80 com bons olhos, pois se
estava perdendo a possibilidade das inovações e da originalida-
de experimentada na década anterior (Folha de S. Paulo, 28/9/
80 e Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 175). Segundo Lauro César
Muniz, com a abertura política seria correto supor que as pro-
duções começassem a respirar mais tranqüilas. As emissoras,
entretanto, retrocederam e caíram nos temas superficiais e de
consumo fácil. A preocupação com novos conteúdos, lingua-
gem e estrutura cederam espaço para as fórmulas bem sucedi-
das e de bonita embalagem. Um dos fatores dessa queda de qua-
lidade foi o aumento do volume de merchandising na narrativa e
a censura da emissora (Folha de S. Paulo, 28/9/1980).
Os realizadores mais preocupados com o caráter de en-
tretenimento e comercial da telenovela tendem a fazer uma
certa ironia com essa necessidade de conferir critérios mais
reconhecidamente artísticos, inovadores e originais ao gêne-
ro. Aguinaldo Silva, o mais exemplar deles, não cansa em di-
zer que a demanda por inovação em telenovela é inadequada
e passa a usar a repetição de forma provocadora, construindo
um estilo a partir dela. Diz que suas telenovelas antigas reme-
tem às recentes, onde personagens e cidades de uma teleno-
vela passeiam pela outra, traçando continuidades declaradas
(Revista da TV, Jornal do Brasil, 15/2/1997, p. 12). Chegou
inclusive a afirmar que não sofria da “angústia criativa”, pois
telenovela não era uma obra de arte. “Escrevo porque é o meu
trabalho” e não porque ela tem que ser a “minha obra. (...)
Ela não é um livro que você escreve para continuar sendo lido
por 50 ou 100 anos. Ela é uma coisa vã – existe enquanto está
no ar” (Playboy, 1992).
Um outro ponto interessante que tende a estar ou não
presente no critério de avaliação é a questão da representa-
ção da realidade cotidiana do telespectador. De certo modo,
desde a formação do campo, têm-se defensores de telenovelas
que buscavam representar a realidade de seus telespectadores
para facilitar as identificações, tradição também presente no
Campo da Telenovela 169

rádio (Mira e Borelli, 1996), nas fotonovelas, no cinema e no


teatro (Ortiz, 1988). Mas, também, havia aqueles que não se
incomodavam com essa questão, sendo o protótipo dessa pos-
tura Glória Magadan. Dias Gomes conta que em uma conver-
sa com Janete Clair, em que ela solicitava poder escrever uma
telenovela com personagens brasileiros, Glória Magadan te-
ria dito que o Brasil não era um país romântico. Por isso, não
adiantaria construir personagens brasileiros, pois não teria
cabimento um galã chamar João da Silva. “O galã tem que se
chamar Ricardo Montalbán, uma coisa assim, bem bonita”
(Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 174).
Desde a formação do campo pode-se identificar, nos depo-
imentos da maior parte dos realizadores, a defesa de uma te-
lenovela que chamavam de realista, no sentido de representar
a realidade brasileira e o cotidiano dos telespectadores. A crí-
tica fazia-se contra a pressão das empresas de comunicação e
as agências de publicidade que quando iniciavam uma expe-
riência de produção e difusão de um produto cultural, davam
preferência àqueles importados em detrimento da produção
local, cabendo aos realizadores nacionais as adaptações e tra-
duções.54 Nessa medida, uma das dimensões dessa demanda
pelo “realismo” refere-se à defesa de um mercado de trabalho
em uma indústria da cultura que estava dando os seus pri-
meiros passos.
Os defensores das telenovelas realistas também se indis-
punham contra aqueles que não se mostravam sensíveis às
necessidades da população brasileira imersa nas mudanças
provenientes da modernização que se instituía. Para esses re-
alizadores, a telenovela tinha um importante papel a cumprir,
seja fornecendo o momento necessário do entretenimento, seja
assumindo uma função pedagógica ou política. No primeiro
caso, defendia-se que quanto maior a proximidade com a re-
alidade do telespectador, maiores seriam as garantias da efeti-
va identificação com as suas expectativas de consumo e lazer.
A função pedagógica estabelecia a difusão de informações e
de princípios morais que só poderiam ser exercidos com resul-
54 Fenômeno que também ocorreu com a fotonovela, a radionovela e a telenovela
(Ortiz, 1988).
170 Telenovela e Representação Social

tados satisfatórios se fosse possível referir-se ao cotidiano de


telespectadores inseridos num País que passava por profun-
das mudanças. No que diz respeito à função política, criticou-
se certas representações de realidade brasileira, a fim de di-
fundir perspectivas mais progressistas e até mesmo revolucio-
nárias (Ramos e Ortiz, 1989).
A defesa de telenovelas realistas perpassou todo o campo
desde sua formação, mas é a partir do final dos anos 60 que
essa tipologia passa a configurar um importante critério de dis-
tinção, reconhecimento e consagração no campo. Nos anos 70,
na TV Globo, essa perspectiva realista de funções político-peda-
gógicas, regada às orientações nacionais populares (Mattelart,
1989 e Ortiz, 1988), ganha um lugar de destaque, reforçando
dentro do campo uma linha de trabalho que buscava construir
representações sociais do popular de caráter mais crítico, mar-
cado pelas denúncias das desigualdades sociais. A telenovela
de Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho, Renascer
(1993), analisada neste livro, aproxima-se dessa tendência.
O importante a ser demarcado no caso das telenovelas é
que a demanda por um realismo crítico e engajado foi cres-
cendo no campo, sendo usado inclusive como critério de mar-
co de telenovelas de qualidade, como é o caso de Bem amado,
Roque santeiro, sobressaindo-se nesse processo a figura de Dias
Gomes. Nessa esteira veio também o reconhecimento de Be-
nedito Ruy Barbosa.
Essas polêmicas vêm atravessando todas as fases do campo.
Importantes vetores analíticos que permitiram articular a traje-
tória de Benedito Ruy Barbosa com os modos de se construir as
representações do popular na telenovela Renascer, sem perder de
vista o papel do diretor-geral neste processo – Luiz Fernando
Carvalho. Aspectos que serão posteriormente tratados.
171

Emissoras e Realizadores Disputam no


Campo a Representação Realista do Popular

R enascer (1993), escrita por Benedito Ruy Barbosa, direção-


geral de Luiz Fernando Carvalho, foi produzida pela TV Glo-
bo, aquela que vem sustentando a supremacia no campo da
telenovela desde o final dos anos 60. A emissora é concedida
em 1957, no governo de Juscelino Kubitscheck, ao Grupo
Roberto Marinho que, à época, congregava o jornal O Globo,
a Rio Gráfica Editora e a Rádio Globo. Começou, entretanto,
a operar apenas em 1965. Antes disso, associou-se ao Grupo
americano Time-Life. Tal acordo financiou a construção de
suas instalações e a compra de equipamentos (Ramos e Borelli,
1989, p. 83). Além disso, a Time-Life forneceu conhecimentos
técnicos, administrativos e comerciais. Um acordo que mos-
trava clareza quanto às regras que já estavam instaladas no
campo e às formas de se entrar na disputa com chances de
ganhar o jogo.
Quando a TV Globo se introduziu no mercado televisivo,
as duas grandes emissoras eram a TV Tupi e a TV Excelsior. A
telenovela já era diária e um dos produtos de maior rentabili-
dade da televisão1. Não mais se duvidava do potencial econô-
mico desse meio de comunicação e, muito menos, da teleno-
vela, que em 1964 já era apontada como uma mania nacio-
nal. No final dos anos 50, as agências patrocinadoras das ra-
dionovelas passaram a explorar economicamente as teleno-
velas, almejando os bons resultados já conquistados com a
experiência no rádio. Entre as particularidades do campo nesse
período, destacam-se duas com as quais a emissora se depa-
rou. A primeira delas envolvia a necessidade de superar uma
forte característica da história da televisão dos seus primeiros
1 Apresentavam os maiores índices de audiência dos programas de TV na época, entre
32% e 29% (Ramos e Borelli,1989, p.65).
172 Telenovela e Representação Social

10 anos, a improvisação, a falta de conhecimentos técnicos e


profissionais especializados; a outra, relacionada a anterior,
debatia-se com a necessidade de implantar uma gestão em-
presarial, racional e moderna da televisão.
A TV Excelsior era, em 1965, a maior produtora de tele-
novelas com os maiores índices de audiência e o melhor de-
sempenho técnico e gerencial. Ela foi a primeira a imprimir
uma gestão empresarial de funcionamento, consolidando no
campo algumas de suas regras básicas – a gestão empresarial
e racionalizada da indústria do entretenimento que associava
rentabilidade econômica com ousadia estética, criatividade e
inovação, embalada por um projeto de construção e difusão
da identidade nacional. A Excelsior subverteu algumas regras
já estabelecidas no campo em formação, instituindo outras
que lhe deram uma nova posição com maior reconhecimento
e prestígio. Rompeu, por exemplo, com o ‘acordo de cavalhei-
ros’ entre as emissoras e contratou o melhor corpo técnico e
de realizadores disponível, independente de onde estivessem
trabalhando. Estabeleceu o princípio da profissionalização dos
realizadores, ou seja, o fim do trabalho artesanal e a exigên-
cia da especialização de funções e da tecnologia em prol da
qualidade do produto da televisão (pioneiramente criou os de-
partamentos de figurino e cenografia). Por fim, aceitou a pro-
posta da patrocinadora Colgate Palmolive e investiu na tele-
novela diária. Para tanto buscou a melhor experiência – da
Argentina – trazendo profissionais que colocaram em 1963 a
primeira telenovela diária no ar. A emissora também se reor-
ganizou a partir de claras estratégias de conquista de merca-
do. Até 1963 ela enfatizava o cinema e o teatro em sua pro-
gramação. Como essa linha de programação não aumentava
a sua posição diante das concorrentes – a Record e a Tupi –
ela passou a investir em programas mais populares como te-
lenovelas e shows de auditório (p. 59).
A TV Tupi, a outra grande emissora dos anos 60, chama-
da pelo cenógrafo Paulo Bandeira de “escola básica de televi-
são no Brasil”, pois por ela passaram, de algum modo, os per-
sonagens mais significativos de sua história, de José Bonifácio
Sobrinho (Boni) a Sílvio Santos (Klagsbrunn e Rezende, 1991,
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 173

p. 106). As primeiras experiências de telenovela se constituí-


ram nesse espaço e até os anos 70 ainda era uma das princi-
pais emissoras do mercado. Segundo Wallace, manager da Glo-
bo, foi a grande referência para as disputas no campo nos
anos 70 (Ramos e Borelli, 1989, p. 89). Sem dúvida, foi um
importante espaço de experimentação e criação do gênero,
sendo responsável por um dos marcos fundadores de uma nova
maneira de se fazer telenovela – representada por Beto
Rockefeller (1968). A TV Tupi não conseguiu, todavia,
entronizar-se com uma das novas e mais importantes regras
gerenciais do campo. Tal fato não apenas garantiu as posi-
ções de maior poder no campo à Excelsior (em seu momento)
e mais tarde à TV Globo, como também a decadência e encer-
ramento da Tupi nos anos 80.
Recuperar a importância da concorrência das emissoras
na época da introdução da TV Globo no campo ajuda a perce-
ber a sua posição ‘iniciada’ nessa disputa. Posição que a leva-
ria (assim como fez a Excelsior) a transgredir uma das regras
já definidas, a saber: a proibição legal de estabelecer socieda-
des com empresas estrangeiras2. Em contrapartida ao seu curto
período de transgressão – mas suficiente para o seu cresci-
mento3 e a sua nova posição de destaque no campo – a emis-
sora encerraria o acordo com a Time-Life em 1969 sob a pres-
são de um governo autoritário, que foi ligeiramente confron-
tado nesse primeiro momento, mas que será parceiro na dé-
cada seguinte, em prol das chamadas segurança e integração
nacional.
Quando as telenovelas surgem no mercado pelas mãos da
TV Tupi, um conjunto de realizadores desse gênero, advindos
principalmente do rádio e do teatro, preocupavam-se com o

2 Transgride uma regra do campo da telenovela, apoiando-se no que “ocorria no resto


do sistema produtivo, a hegemonia dos interesses ligados ao capital estrangeiro e à
internacionalização do mercado interno” (Mattelart, 1989, p. 40).
3 Mattelart (1989, p. 40) escreve que “em 1969, a Globo compra as ações (49%) que
o grupo Time-Life detinha na sociedade. Está agora em condições de estabelecer um
padrão de grande rede nacional (network), com produção centralizada e distribuição
dos programas por meio de todo o País. No mesmo ano, 1969, é inaugurado o jornal
de âmbito nacional pela televisão, o Jornal Nacional. É o primeiro programa a partir
da central do Rio para os outros Estados.”
174 Telenovela e Representação Social

papel que as obras culturais deviam ter no projeto de moder-


nização em curso no Brasil, considerando necessário e digno
uma face brasileira que pudesse diferenciar-se das matrizes
estrangeiras (Ortiz, 1988; Mattelart, 1989 e Ramos e Borelli,
1989). Proposições nesse sentido já eram notadas no teatro,
no cinema, na música, na radionovela e até nas fotonovelas
(Ortiz, 1988, Borelli e Mira, 1996 e Xavier, 1993). Experiênci-
as que incentivaram diversos realizadores, desde a gênese do
campo, a buscarem telenovelas com tons nacionais que re-
presentassem o povo brasileiro.
Aparecida Menezes, escritora e diretora de telenovelas da
Tupi do Rio, dizia que nos anos 50 “as temáticas eram, em geral,
romances, onde se buscava passar uma mensagem. Cada autor
passava a sua. (...)” A mensagem que Menezes tentava trans-
mitir relacionava-se a temas brasileiros como a “luta do opera-
riado contra a escravidão imposta pelo poderoso”, desejava
enfiar na cabeça do poderoso que ele tinha que pen-
sar um pouquinho mais, porque ele dependia do
operariado, não é? Eu me lembro de uma novela
minha, o último líder, acontecia na Amazônia, numa
madeireira, lá tinha um chefe de polícia que coman-
dava um bando e ordenava a todos os madeireiros
que fizessem tudo. De repente, um dos madeireiros
vira-se para o bando e diz: “Mas vocês estão fa-
zendo o quê? Vocês são operários como nós, ga-
nham uma miséria como nós, por quê vocês o
endeusam tanto? Vocês já imaginaram que não exis-
te rei sem súditos? Se nenhum súdito obedecer ao
rei, o rei perde a coroa. O rei só é rei porque todo
mundo obedece. Foi aí que a proibiram. Isso foi em
1960. Eram essas as mensagens que a gente tenta-
va transmitir (Klagsbrunn e Rezende, 199, p. 82)
Telenovelas que retratassem a realidade brasileira foi, in-
clusive, um dos critérios para se configurar aquelas que devi-
am ser vistas como marcos de referência no campo. Nota-se,
por exemplo, que nas diversas formas de se contar a história
das telenovelas no Brasil, seja por parte de pesquisadores, seja
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 175

por parte daqueles que participavam de sua realização, havia


a preocupação em distinguir as fases onde eram possíveis ex-
periências de telenovelas mais realistas, daquelas onde impe-
ravam os scripts estrangeiros desconectados da realidade na-
cional. A ponto de se buscar eleger um marco, uma referên-
cia capaz de pontuar o momento onde se apresentou uma
vitória nessa luta a favor de uma telenovela comprometida
com o ‘jeito nacional de ser’. Beto Rockefeller tem sido, sem
dúvida, o marco mais consensual. Contudo, merecem ser apre-
sentados aqui os pontos de vista de dois realizadores contem-
porâneos sobre essa questão, pois a partir deles pode-se antever
como a busca de um marco de referência representa deman-
das de reconhecimento e consagração, assim como estratégi-
as de acumulação do capital simbólico necessário para galgar
posições de maior prestígio no campo.
Dias Gomes dizia:
quando a ‘Dona’ Glória Magadan saiu foi que a
Janete pode realmente começar a escrever novelas
brasileiras. Quando eu fiz “Verão Vermelho” (TV Glo-
bo, 1970), ela fez paralelamente “Véu de Noiva” (TV
Globo, 1969)4; eu às 10:00h e ela às oito. Véu de
noiva já foi uma novela com temática brasileira e
com personagens brasileiros. Ambas deram início a
uma virada. Ao mesmo tempo, lá em São Paulo, o
Braulio Pedroso fazia o Beto Rockefeller”, que não
teve nenhuma influência no movimento que se de-
sencadeou na Globo, porque eu nem vi Beto
Rockefeller, nenhum capítulo, até porque passava

4 “Para não haver dúvidas de que os duques, arquiduques e barões das novelas ante-
riores estavam enterrados, Janete transformou seu galã num piloto de Fórmula 1.
Com Emerson Fittipaldi iniciando sua carreira européia, não podia haver nada mais
moderno na ficção da TV. Pela primeira vez, também, utilizava-se uma trilha sonora
especialmente para a novela. Quando os personagens pobres apareciam no vídeo,
ouvia-se Gente Humilde, de Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Garoto. A entrada
da personagem abilolada de Betty Faria era anunciada pela canção Irene de Caetano
Veloso. O mundo de corredores secretos, masmorras, calabouços, galeões espanhóis
de Glória Magadan foi substituído por imagens de um Rio de Janeiro luminoso, casas
de campo em Petrópolis, autódromos movimentados. Hoje isso tudo pode parecer
banal. Mas em 1969 era moderníssimo” (Xexéo, 1996, p. 71).
176 Telenovela e Representação Social

no mesmo horário de Verão vermelho. Eu não po-


dia ver (p. 177).
Benedito Ruy Barbosa também advoga outras experiênci-
as para referir-se a essa “virada” nas telenovelas. Ele contou:
No começo as novelas eram importadas. A Colgate, a
Kolinos, a Gessy importavam. Eram novelas que não
tinham a ver com nossa realidade e eram maniqueístas
do ponto de vista de arte. E havia um comportamento
explicável da própria crítica, que menosprezava a no-
vela como gênero de espetáculo. Eu também! Quando
fui para a novela, tinha um nojo... não agüentava nem
ouvir falar de novela. Nós tivemos uma autora, a mãe
da telenovela, que foi Ivani Ribeiro. A Janete Clair, a
Globo tentou fazer crer durante um bom tempo que ela
era a mãe da telenovela. Quando a Janete começou a
escrever, a Ivani já tinha uma prateleira cheia de nove-
las escritas. Começou no rádio, assim como a Janete.
Na televisão, eu comecei antes da Janete. Quando fui
para a Colgate comecei a pressioná-la para que aban-
donasse os textos estrangeiros. Eu consegui comprar
do Érico Veríssimo a trilogia O tempo e o vento e a fiz
na Excelsior. A Ivani fazia A muralha, Minas de prata,
começando a trazer o público para a história do Bra-
sil. Acho que isso foi muito importante porque marcou
o rompimento da nossa teledramaturgia com a impor-
tada. Para mim, esses foram momentos importantes:
A muralha, Minas de prata, assim como O tempo e o
vento também foi. Não é pelo fato de eu estar envolvi-
do no projeto, mas foi importante. Pelo menos, tirou a
Colgate desse mercado industrial, começou a valorizar
nossos diretores e atores. Depois tivemos um salto, que
foi o Beto Rockfeller, uma novela que foi escrita pelo
Cassiano Gabus Mendes – queriam que eu escrevesse,
na época – e eu não podia, por ser da Colgate. Marcou
também o surgimento do anti-herói e rompeu com cer-
tos conceitos que a novela trazia (entrevista Souza,
28.9.1998).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 177

Mas não eram apenas Benedito Ruy Barbosa e Dias Go-


mes que tentavam imprimir uma nova temática e narrativa
nas telenovelas brasileiras. Ramos e Borelli (p. 70-75) pon-
tuaram bem as mudanças que já se anunciavam nesse perí-
odo. Na fase inicial da telenovela diária – 1963 a 1969 – mos-
travam que num primeiro momento, de 1963 a 1966, o tipo
de telenovelas que marcaram o período eram as adaptações
de romances (Dumas e José de Alencar, Victor Hugo, Maurier
que escreveu Rebeca), herança da década anterior. O estilo
mais presente era o melodrama. Inicialmente, foram as tele-
novelas importadas de Cuba, Argentina, México e Venezuela.
Depois foram as brasileiras, muitas delas transmitidas na fase
áurea do rádio 5. A distinção entre a tedramaturgia latino-
americana importada e a brasileira consistiu no fato de que
a última estabelecia a identificação do telespectador com a
sua realidade cotidiana de brasileiro. Movimento que já ha-
via ocorrido com as radionovelas, fotonovelas (Ortiz, 1988)
e teleteatros.
Ainda, segundo Ramos e Borelli (p. 78-9), o folhetim me-
lodramático foi hegemônico nesta fase, principalmente de 1963
a 1966. Nos anos seguintes observa-se o surgimento das expe-
riências consideradas de reformulação desse modelo. As emis-
soras responsáveis pelas principais telenovelas que represen-
tariam essa marca do novo seria a Tupi de São Paulo, com
Geraldo Vietri (Os rebeldes, 1967-68) e Braulio Pedroso (Beto
Rockefeler, 1968-69) na TV Excelsior com Lauro César Muniz
(Ninguém crê em mim, 1966) e Marcos Rey (Os tigres, 1968-
69). Todas as quatro apresentaram baixos índices de audiên-
cia, mas foram importantes canais de renovação da telenove-
la, principalmente Beto Rockefeler.

5 Tramas, temas e dramas dicotômicos mais freqüentes nas telenovelas desse primeiro
período foram: a doméstica numa relação amorosa com o patrão milionário, o
relacionamento conturbado entre a mãe e a filha que desconhecia a verdadeira
maternidade, a mulher misteriosa que, num jogo de dupla personalidade, se faz freira
durante o dia e dançarina cigana durante a noite, a mulher má com cara de anjo que
flerta com homem casado, bebês trocados com duelo de culpa e vingança, a paterni-
dade desconhecida, uma pluralidade de assuntos que circulariam pelo amor, o dever
à família, numa rede de polarização entre o bem e o mal, ricos e pobres, justos e
injustos, felicidade e tristeza (Ramos e Borelli, 1989).
178 Telenovela e Representação Social

Os rebeldes e Os tigres tematizaram o cotidiano urbano


que se modernizava e se transformava. No caso da última
delas buscou-se experimentar uma linguagem audiovisual
“mais cinematográfica”, com tomadas externas que retratas-
sem a dinâmica das ruas urbanas. Ninguém crê em mim não
centralizava as suas experiências na trama. Foi um exercí-
cio inspirado em Electra de Sófocles, que se propôs a inovar
na linguagem audiovisual, utilizando traços do cinema ex-
pressionista alemão. Na direção estava Dionísio de Azeve-
do. Beto Rockefeller, fruto de ensaios anteriores, rompeu com
os diálogos formais, propondo uma narrativa de cunho co-
loquial, repleta de gírias e de expressões populares. O enre-
do procurou reproduzir o ritmo dos acontecimentos no in-
terior da própria narrativa. Braulio Pedroso dizia que que-
ria escrever uma telenovela realista, ou seja, que trouxesse
o cotidiano vivido, a realidade, para o vídeo. Realçava a fi-
gura do anti-herói, aquele pobretão que queria subir na vida
sem muito esforço, sem dinheiro, mas com o talento de
enganar as pessoas, sendo carreirista, mentiroso, arrivista,
infiel e mulherengo. Tudo que ainda não se tinha mostrado
no vídeo.
A TV Globo, quando iniciou sua experiência de produção
de telenovelas não abriu espaço para aqueles que defendiam
a perspectiva das telenovelas realistas, uma perspectiva já
marcante na Excelsior, na Tupi Rio (Rezende e Klagsbrunn,
1991) e na Tupi São Paulo (Ortiz et al, 1989 e Mattelart, 1989).
Essa primeira fase 6, conhecida como o império de Glória
Magadan, estendeu-se de 1966 a 1969. A emissora apostava
na escritora cubana que sabia garantir a qualidade da produ-
ção de textos comercialmente eficientes, já testados em ou-

6 A primeira telenovela da Globo chamava-se O ébrio, adaptação de uma radionovela


de Gilda de Abreu, uma escritora consagrada do rádio. A Segunda foi Eu Compro essa
Mulher, escrita por Gloria Magadan. Uma suposta adaptação livre de O Conde de
Monte Cristo (Alexandre Dumas). Depois desta, Glória escreveria O Sheik de Agadir,
O rei dos Ciganos, ambas em 1966. Desse ano até 1969 a TV Globo não fez mais de
cinco telenovelas. Encerrou a década com o caso anedótico da telenovela de Emiliano
de Queiróz, Anastácia, que precisou ser implodida por Janete Clair, sinalizando assim
o início de uma nova fase da TV Globo, com a entrada em cena daquela que marcaria
a teledramaturgia ‘das 20:00h’ dessa emissora (Ramos e Borelli, 1989 e Xexéo, 1996).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 179

tros países da América Latina. Ao decidirem por autores e tex-


tos estrangeiros, os principais gestores da emissora pretendi-
am garantir os princípios comerciais de produção das teleno-
velas, evitando o caráter experimental em andamento nas
outras emissoras que buscavam uma linha de trabalho que
desenvolvesse uma forma brasileira de fazer telenovela e uma
linguagem própria, criativa e de qualidade.
A defesa da telenovela realista estava por todos os lados.
Todavia, os estudos levam a crer que foi com Beto Rockefeler7
que se evidenciou a possibilidade desse tipo de telenovela ge-
rar a rentabilidade almejada pela indústria do entretenimen-
to, tornando viável para as emissoras a conquista de uma
maior autonomia no processo de gestão e levantamento de
seus recursos, dispensando enfim as pressões das agências
patrocinadoras. Uma sintonia que entrelaçava as demandas
dos realizadores com as necessidades das emissoras. De acor-
do com Walter Durst (Folha de S. Paulo, 21.8.1993) e Walter
Clarck (1991), essa telenovela teria feito parte das ‘lutas pela
audiência’ entre a Tupi e a Globo. Uma aposta arriscada de
Cassiano Gabus Mendes para reerguer a situação financeira
da TV Tupi, sem dinheiro naquele momento8. Traçou-se, as-
sim, o pano de fundo que tornou hegemônica as manifesta-
ções realistas nas telenovelas brasileiras. Sem dúvida, o “mundo
das classes médias urbanas brasileiras, com seus dramas e
suas aspirações” (Mattelart, 1989, p. 31) invadia definitiva-
mente as telenovelas.

7 Nesse mesmo ano, seria bom lembrar, a TV Globo, bastante atenta às disputas
concorrenciais, incentivou as telenovelas realistas e permitiu, no horário das 20:00h,
as criações de Janete Clair. Véu de Noiva (1969), a primeira delas, de acordo com
Xexéo (p. 72), foi aquele sucesso que teria dado a partida para a emissora conquistar
nos anos seguintes a liderança de audiência no país.
8 Beto Rockefeller foi, também, um importante resultado das batalhas travadas pelos
realizadores em prol de telenovelas mais criativas, inovadoras e representativas da
realidade brasileira. Um dos mais expressivos mentores desse projeto foi Cassiano
Gabus Mendes, um dos importantes homens da televisão brasileira, que com 23 anos
assumia a direção da primeira emissora de TV do País, a TV Tupi de São Paulo.
Responsável por trabalhos como a TV de Vanguarda (1967), Beto Rockefeller (1968)
e mais tarde, nos anos 80, como escritor na TV Globo, da telenovela Que rei sou eu?,
um dos marcos da comédia política do gênero (Walter Durst, FSP, 21.8.1993; Ramos
e Borelli, 1989 e Klagsbrunn e Rezende, 1991).
180 Telenovela e Representação Social

Nos anos 70, tem-se a consolidação dessa vertente realis-


ta no campo. A TV Globo atravessou a década amparada na
grande senhora do horário das oito, Janete Clair, sob a dire-
ção geral de Daniel Filho. Na Tupi, a grande senhora era Ivani
Ribeiro, e a TV Excelsior não mais comporá, nesse período, a
cena das disputas e recriações das telenovelas.

O Realismo nas Telenovelas e a Consagração de Benedito Ruy Barbosa


Benedito Ruy Barbosa inicia sua história de escritor de teleno-
velas em 1966, na fase dos folhetins melodramáticos onde as
agências de publicidade e as patrocinadoras, como a Colgate-
palmolive, já regiam o mercado. A Denison Propagandas con-
quistou a conta da Colgate – Palmolive em 1965. Esse novo
cliente exigiu um script editor para selecionar os textos das
telenovelas importadas.
Ninguém sabia o que era isso [a função de script
editor]. Eu tinha uns amigos que ajudaram a fazer
contato com o diretor de propaganda da Colgate e,
com espírito de aventura, fui saber o que era. Eles
tinham a Glória Magadan. ...eu tinha feito teatro,
tinha ganho o prêmio de revelação do ano, aquilo
me ajudou muito. Trocamos umas idéias sobre o que
eu achava de novela e eles me contrataram. Comecei
a trabalhar com a Glória Magadan. (...) A primeira
novela que fiz com ela foi Eu compro essa mulher
(TV Globo, 1966). Eu já trabalhava como supervi-
sor. A escalação foi feita com Walter Clarck e
Henrique Martins, que era o diretor na época. Eu
não escrevia novela, mas lia tudo que ela escrevia,
além de todos os originais que a Colgate comprava
no exterior para fazer uma avaliação [e futura sele-
ção] (entrevista Roda Viva – TVE, 1997).
Essa experiência de trabalho proporcionou conhecer os
modos de narrar uma telenovela, propiciando identificar os
meios mais adequados à concepção de telenovela que ia assu-
mindo. A proximidade com Glória Magadan tornou possível a
aquisição desse capital específico do campo, assim como o
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 181

incentivo que vai marcar a sua passagem de supervisor para


responsável pelo texto. Essa primeira experiência conferiu-lhe
um dos maiores sucessos da época, mostrando assim a outra
importante habilidade necessária, ou seja, converter modos
de narrar em rentáveis tostões para o mercado publicitário e
as emissoras de televisão. Naquela época a conta da Colgate-
Palmolive, gerenciada pela agência de publicidade, servira à
várias emissoras – Tupi, Record e Globo.
Fiz Somos todos irmãos (TV Tupi de São Paulo,
1966). Foi o recorde nacional de audiência da
Colgate. Bateu nas novelas de Glória e em todas as
novelas que a Colgate tinha feito na época, e eu não
tinha know-how nenhum. Mas é o tal negócio: pe-
guei a malícia e aprendi a como não fazer – eram
muito chatos aqueles scripts – Meu Deus do Céu!
(entrevista Souza, 28.9.1998).
Vale a pena recuperar um pouco da história de como se
tornou um autor de sucesso, pois ilustra não só o capital soci-
al que a posição que ocupava na Colgate proporcionava, como
a importância da autorização simbólica dos pares afirmando
de que já estaria habilitado para iniciar a sua trajetória de
escritor de telenovelas de sucesso, que combinava a criatividade
com a capacidade de aliá-la aos interesses da empresa.
O caso da primeira telenovela que escreveu é exemplar. O
escritor seria outro, a telenovela corria o risco de não ser fabricada,
pois estava causando uma polêmica enorme entre os patrocina-
dores e, além disso, a empresa onde trabalhava arcaria com pre-
juízos significativos, já que boa parte da produção já estava con-
cluída. Benedito Ruy Barbosa contou a sua própria história res-
saltando justamente a sua capacidade de criar uma alternativa
viável para a empresa, ao mesmo tempo, criava a oportunidade
para tornar-se um escritor, obtendo a ascensão funcional e sala-
rial que essa nova posição representava.
Eu tinha sugerido à Colgate que fizesse uma adapta-
ção do Rochester A vingança do Judeu. A história
era fantástica para uma novela. O Jorge Walter Durst
estava fazendo a adaptação. Na reunião na Tupi,
182 Telenovela e Representação Social

começou uma discussão dos diabos, eles não queri-


am aceitar o livro como era, os judeus estavam em
pé de guerra. A novela tinha rabino, católico e espí-
rita em conflito. Eu estava na reunião com a Glória
Magadan. Estávamos com todos os figurinos e ce-
nários prontos, elenco montado, a gravação come-
çaria daí a dois dias. E agora, o que fazer? Falei
[com a intenção de resolver o problema]: não é essa
a história. Não estamos discutindo o livro, mas a
novela. Esse livro não é a “vingança dos judeus” e
sim Somos todos irmãos. Resolveu, na hora! A gló-
ria pediu que eu mesmo contasse a sinopse e eu con-
tei a história de viva voz. Eles perguntaram: Os ju-
deus são heróis? Claro, respondi, e de olhos azuis.
Então eles toparam. Glória, na volta para casa, fa-
lou para eu ir para casa, tomar um uísque, sentar
na máquina e escrever seis capítulos para começar a
gravar. Aí começa aquela história, eu não bebia, sen-
tei na máquina e não saía nada. Aquilo era um su-
plício. Desci no bar, tomei uma talagada e o texto foi
embora. No dia seguinte, as 10:00h), cheguei na Tupi
com dois capítulos, entreguei para a diretora, voltei
para a casa, dormi três horas e escrevi mais dois
capítulos. E assim fiz os seis primeiros capítulos em
três dias. Eles começaram a gravar e foi o recorde de
audiência da Colgate. O que vale foi que me deram
um salário extra e aí pensei, opa! Agora só vou fazer
isso. Hoje fico imaginando como pude trabalhar de
graça (entrevista Roda Viva, TVE, 1997).
Nessa fase do campo Benedito Ruy Barbosa escreveu mais
uma telenovela para a Tupi, O anjo e o vagabundo (1966). Um
texto original, oportunidade pouco comum na época, que já
acena para uma das suas principais marcas enquanto escri-
tor: a presença da realidade brasileira por meio de persona-
gens que pudessem representar os problemas sociais do País.
Nesse caso ele abordava a questão da criança, temática que
também será vista em outras de suas telenovelas, dentre elas
Renascer (TV Globo, 1993), com a personagem Teca.
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 183

(...) em 1967-68, fiz O anjo e o vagabundo. Nela já


tinha o menor de rua, um casalzinho sobrevivendo
da esperteza de cada um e ao mesmo tempo da bon-
dade do povo, já encarando certas dificuldades que
não eram tão aberrantes como hoje. Quando fiz
Renascer, vivia em São Paulo, [que assim como] no
Rio ou em grandes centros, essa preocupação [com
a questão da criança e do adolescente] acaba sendo
uma coisa até lógica. Quando se está dirigindo e se
vê essas crianças encostarem em você de todas as
formas, é uma coisa que preocupa muito, muito...
(entrevista Souza, 28.9.1998).
Ao final dos anos 60 já existem configuradas as princi-
pais características do campo que terá a TV Globo como cam-
peã absoluta de audiência nos anos 80. Em primeiro lugar, a
TV Globo preparou-se técnico-administrativamente para a
expansão da televisão no Brasil: soube construir as alianças
e negociações com o Estado autoritário em fase de recrudes-
cimento e investiu, de forma exitosa, nos dois principais pro-
gramas de sustentação da emissora, os telejornais e as tele-
novelas. Suas duas competidoras saem dessa década sem as
condições necessárias para acompanhar essa expansão. A
TV Excelsior, por problemas políticos com o regime militar,
teve sua concessão cassada em 1970. A TV Tupi perdeu uma
série de batalhas nessa década, decorrentes de seus proble-
mas gerenciais, já que ainda não havia incorporado o ethos
empresarial que habilitara os concorrentes para a nova fase.
Perdeu, entre outras batalhas, a furiosa corrida para afiliar
as estações de TV às emissoras, derrota que implicou numa
outra perda, a da disputa pelo investimento publicitário que
exigia um veículo com amplitude nacional. A Tupi fechou
suas portas em 1980. Seus espólios foram divididos e dispu-
tados pelas duas outras emissoras que comporão a concor-
rência com a TV Globo nos anos 80 e 90, a TV Manchete e o
SBT (Ortiz et al, 1989).
Nos anos 70 a telenovela torna-se o programa de televi-
são de maior audiência, superando os programas de auditó-
rio, um outro campeão de audiência. Passa a ser assim um
184 Telenovela e Representação Social

dos gêneros mais visados, seja pelos representantes da emis-


sora, seja pelo mercado publicitário, seja pelo governo. Ante-
riormente viu-se que não apenas representantes do governo
pleiteavam determinadas temáticas e orientações morais,
como, também, eram um forte elemento no campo por meio
da censura.
As emissoras precisaram, ainda neste período, definir a
forma mais apropriada de produção, circulação e exibição das
telenovelas. Na primeira metade dessa década se construíram
as bases do sistema que vigoram até os dias atuais. O número
de telenovelas diárias, assim como os horários, o público espe-
cífico, o enfoque a ser dado, o número ideal de capítulos, a
duração ideal do capítulo diário. A TV Globo seguiu algumas
experiências bem-sucedidas da Excelsior.9 A TV Tupi não con-
seguiu implementar um sistema que pudesse garantir a dis-
puta com a TV Globo e a partir de 1975 perderá definitiva-
mente o pódio das audiências do gênero (Ramos e Borelli, 1989
e Mattelart, 1989). A TV Globo, ao contrário, mantem-se, até
hoje, nesse novo lugar de campeã.
Esporádicas situações de risco no ranking das audiências
do gênero foram sentidas pela emissora. No início dos anos
90, Benedito Ruy Barbosa, com Pantanal (TV Manchete), tor-
na-se um dos principais responsáveis pela primeira perda ex-
pressiva de audiência da telenovela do horário de maior ren-
tabilidade da emissora.
Na organização da grade de programação da TV Globo,
observa-se que desde os anos 70 se tem priorizado à faixa de
horário de maior rentabilidade – das 18:00h as 22:00h – aquela
que ficou conhecida por meio do adjetivo nobre. Nessa faixa
têm-se transmitido de três a quatro telenovelas e um telejornal.
No caso das telenovelas, o horário das 18:00h era conhecido
como o das adaptações de romances de autores nacionais e
centrado em “enfoque nacionalista e educativo”, especialmente
pleiteados pelos representantes do regime militar. Um horário

9 Interessante notar, que dos romances-folhetins até às radionovelas observa-se as-


pectos comuns de gerenciamento e fabricação dos produtos culturais, entre eles:
busca das formas de atrair os seus consumidores, de adequar o produtos às suas
‘necessidades e expectativas etc. (Meyer, 1996 e Mira e Borelli, 1996).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 185

pouco aberto às experimentações e inovações. O horário se-


guinte, o das 19:00h, podia ater-se a outros gêneros mais le-
ves, como era o caso das comédias10. No horário das 20:00h,
um cuidado especial precisava ser tomado, pois era o de maior
audiência. Escolhia-se escritores consagrados e de sucesso
garantido, como Janete Clair, amparados por uma direção
segura na mão de Daniel Filho, um dos principais idealizadores
das diretrizes do horário das 20:00h dos anos 70, que, de certo
modo, vigoram até hoje. As telenovelas das 20:00h, de acordo
com ele, deveriam ser “pseudamente inteligentes” e envolver
um grande mistério. A história precisava contar com perso-
nagens de várias faixas etárias, enfatizando problemas femi-
ninos em detrimento dos masculinos. Todas as classes sociais
deveriam estar presentes e a ascensão social era um tema
imprescindível. O personagem principal representaria esta
ascensão. Novos atores deviam ser lançados e atores consa-
grados deviam estar presentes. Um assunto emergente, novo,
precisaria ser trabalhado ao longo da história, porque não
importa “se somos nós que criamos a moda, o importante é
difundi-la” (Kehl, 1979, p. 53). O horário das 22:00h foi aque-
le onde as experiências eram possíveis. Nesse caso, o público
de maior capital cultural acolhia as obras de escritores reco-
nhecidos no campo artístico como Dias Gomes, Jorge de
Andrade e Walter Durst (Ramos e Borelli, 1989, p. 90-105).
Nesse momento, o campo contava com quatro emisso-
ras produzindo telenovelas, e mais de 20 escritores, reunin-
do em uma década um conjunto de 157 obras. Enquanto na
TV Globo foram produzidas 77 telenovelas, na Tupi foram
produzidas 52 e na Record 18, ficando a Bandeirantes com
apenas nove (p. 89). No início dos anos 70, a Excelsior exi-
biu a sua última telenovela e a TV Cultura, uma emissora
pública paulista, produziu a segunda telenovela de signifi-
cativo sucesso de Benedito Ruy Barbosa: Meu pedacinho de
chão. A primeira telenovela educativa que se tornou o me-
lhor exemplar desse gênero, conseguindo uma audiência ines-
perada e expressiva. Assim que os bons resultados foram
10 Essa organização da TV Globo guardava muita semelhança com outras emissoras,
principalmente com a sua principal concorrente, a TV Tupi.
186 Telenovela e Representação Social

observados, ela foi assumida também pela TV Globo, sendo


exibida em quatro horários diários, dois deles em cada uma
das respectivas emissoras11.
Um sucesso que marcou a trajetória de Benedito Ruy Bar-
bosa, pois depois de seu retorno a TV (ausentou-se de 1971 a
1975), o escritor acabou sendo confinado ao horário educativo
das 18:00h, na TV Globo. Seu primeiro trabalho na emissora,
em 1976, era uma adaptação do romance de Origines Lessa,
O feijão e o sonho. Iniciou uma fase de adaptador de roman-
ces nacionais que se estendeu até o final da década. Em 1979
a telenovela Cabocla, adaptação original de Ribeiro Couto,
recebeu expressivo prêmio da época: APCA.
Cabocla foi escrita num momento em que ainda era ne-
cessário driblar a censura. Benedito Ruy Barbosa decidira fa-
lar sobre o “voto livre”, denunciando o “voto de cabresto”. Para
isso foi preciso, diz ele, reescrever continuamente cenas que
haviam sido cortadas pela censura, até o momento onde não
mais seriam eliminadas e, com isso, indo para o ar. A teleno-
vela teve a sua última cena gravada num palanque, uma das
poucas vezes onde o gênero não terminou em casamento e
muitos beijos. Lembra Barbosa (Roda Viva, TVE, 1997) que “o
coronel, com o espírito de político jovem, dizia: vocês têm que
saber em quem estão votando. Não quero voto pinga-pinga,
em Deputado ou Senador”.
Nota-se que Benedito Ruy Barbosa, apesar de ter-se dedi-
cado às adaptações literárias, pensava o seu modo de narrar
como realista. Autoclassificação que estava presente desde o
início de sua carreira, como a sua referência a O anjo e o va-
gabundo atesta. Ramos e Borelli (1989), contudo, o colocam
nessa categoria apenas em 1980, com a telenovela que escre-
veu para a Bandeirantes, Pé de vento, uma obra original. Um
dos critérios que parece ter sido usado por esses autores para
11 Segundo Benedito Ruy Barbosa, Meu pedacinho de Chão enfocava “o rural e falava
de agricultura, saúde, higiene. Era uma novela que tinha uma finalidade educativa.
Ninguém acreditava e foi um sucesso enorme. Até hoje, para dar a audiência que ela
deu, é meio difícil. Fiz essa novela na TV Cultura em co-produção com a TV Globo.
Quando eu tinha 10 capítulos, a Globo comprou. O “Boni” foi ver, adorou e, como a
TV Cultura não tinha muita verba, a TV Globo passou a financiar a produção”
(entrevista Souza, 28.9.1998).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 187

pensar a questão do realismo foi o fato de a obra ser ou não


original, enquanto as adaptações estariam, em princípio, mais
próximas do drama romântico.
Sem querer aprofundar esse comentário, frente à com-
plexidade que guarda o exercício da classificação, aqui se afir-
ma a originalidade da obra como um meio de ressaltar o ca-
ráter artístico da obra comercial, representada especialmente
por escritores como Dias Gomes, Lauro César Muniz, Walter
George Durst, Jorge Andrade e algumas obras de Janete Clair.
Quando Ramos e Borelli construíram os tipos de telenovelas
do período, as que foram consideradas realistas não passa-
vam de 23 (em um total de 157), sendo 18 delas produzidas
pela TV Globo, nos horários das 20:00h e das 22:00h. As de-
mais caberiam na classificação folhetim melodramático mo-
dernizado, comédias e adaptações literárias.
A idéia de telenovela “realista” surgiu nos anos 70 para
designar um modo de narrar que contemplasse a realidade
brasileira contemporânea e seus problemas sociais, políticos e
culturais. Essa perspectiva realista fez-se mais presente nos
anos 70, sem que se tornasse hegemônica no campo. Todavia,
ela firmou-se como um dos principais critérios de consagra-
ção e reconhecimento fortemente alimentado pela crítica es-
pecializada de televisão, segundo a qual este era sinônimo de
‘boa telenovela’. As ‘boas telenovelas’ estavam sediadas na
emissora que a partir de meados dessa década tornou-se
hegemônica no campo.
Em 1978, Liane C. Alves, do Estado de S. Paulo (1.10.1978),
escreveu: “finalmente, a telenovela começa a despertar para
a realidade”. Elaborou uma crítica mais cuidadosa do papel
dos escritores, pois seriam eles um dos principais responsáveis
pela “insistência sistemática nos temas de preocupação soci-
al”. A analista buscava discriminar as telenovelas que abraça-
vam um “pretenso realismo”, daquelas que tinham “enredo e
personagens próximos da realidade”. Citava como principais
“cronistas da classe média”, do horário das 20:00h, Lauro César
Muniz e Gilberto Braga. O segundo, sendo capaz de construir
uma personagem que morava em Copacabana, na Rua Miguel
Lemos, funcionária do INPS. Um fato “praticamente inédito
188 Telenovela e Representação Social

em matéria de localização de personagens”. Janete Clair seria


ainda o exemplo do “pretenso realismo”, pois construía perso-
nagens nada factíveis, nem ao menos “aparentados com o
real”, sendo guiados apenas pelas determinações da autora e
seus critérios de formulação do suspense.
Não ser considerada uma representante do realismo foi
um problema para Janete Clair, diz Xexéo (1996). Não basta-
va ser respeitosamente chamada de “usineira de sonhos” por
Carlos Drummond de Andrade, ela queria retomar o horário
das oito que havia perdido frente ao seu “pretenso realismo”.
Desejo que se tornou realidade quando Roque santeiro foi cen-
surada e ela foi chamada a acionar, mais uma vez, a sua habi-
lidade em tirar a TV Globo de enrascadas. Escreveu Pecado
capital, e gerou, nesse momento, uma nova inflexão nas suas
telenovelas românticas. A partir de então passaram a ser acres-
cidas da qualidade realista. “Pecado capital finalmente mos-
traria uma Janete com preocupações sociais”, diz Xexéo (p.
78). A própria Janete via-se obrigada a reconhecer que muda-
ra seu gênero. “Não fiz Pecado capital para imitar o Dias, mas,
pelo menos, para me igualar um pouco no estilo dele. Levei
meu romantismo para o lado realista. Parece que de Pecado
capital em diante, eu dei uma melhorada.” Daí em diante, ela
retomará seu lugar, garantindo até à sua morte, a presença
da “nossa senhora das 20:00h”.
Um crítico importante da época, Artur da Távola, fez ques-
tão de realizar um balanço do tipo de telenovelas que se fir-
maram nos anos 70 (O Globo, 15.1.1980), aquelas que tive-
ram “temas relacionados com conflitos reais da sociedade bra-
sileira”. Um novo modo de fazer telenovela mostrava que o
“gênero começava a se firmar como expressão de determina-
das maneiras de ser brasileiro, quanto a cultura e como povo,
e da televisão, como ideologia e painel”. Dos 22 pontos desen-
volvidos, chamou a atenção para: (1) o tema da ascensão so-
cial, reflexo da estratégia do modelo econômico adotado pelo
País, predominou nas obras; (2) macroproblemas sociais bra-
sileiros, tipo miséria, fome, analfabetismo, não foram temas
centrais de nenhuma telenovela, alguns autores os aborda-
ram incidentalmente. Em outras palavras: a pobreza chegou
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 189

a ser tema ou subtema de telenovelas, a miséria jamais; e (3)


o problema do poder absoluto ou exercício dele, com arbitra-
riedade e totalitarismo, foi permanentemente abordado me-
diante analogias, representações, símbolos e metáforas.
Recentemente, a questão do realismo voltou a ser tema cen-
tral dos críticos de televisão. Um dos mais importantes –
Fernando de Barros e Silva (Folha de S. Paulo, TV Folha, 24.1.1999)
– propunha rever os critérios usados para construir essa cate-
goria avaliadora das telenovelas – o realismo. Dizia que se esta-
ria supondo a existência de um “realismo da novela brasileira”
apenas porque elas estariam reproduzindo a “nossa realidade
social”. Ocorre, diz Barros, que se algum realismo houver, tra-
ta-se antes de um “realismo estatístico” orientado por necessi-
dades mercadológicas que levariam a “suavização brutal da mi-
séria”. Que realismo seria esse que nunca construiu um pobre
de verdade? Nessa medida, só será possível identificar o realis-
mo nas telenovelas brasileiras quando elas forem capazes de
“trazer à luz e desdobrar conflitos latentes e insolúveis de uma
sociedade que nas aparências se supunha homogênea e orga-
nizada”. Para Barros não existia realismo nas telenovelas brasi-
leiras, e por isso, a miséria assumia “ares de um suave veneno,
tão inebriante quanto inevitável”.
Trazer aqui o ponto de vista de Barros objetivou apenas
demonstrar a atualidade da questão do realismo no campo
das telenovelas, onde ele assume uma importante força
classificatória, que, muito mais do que indicar um modo de
narrar a pobreza e os conflitos sociais, representa disputas e
tomadas de posições no campo.
Um outro elemento importante que contribuiu na cons-
trução e na defesa dessa ‘boa telenovela realista’ foram os
embates travados com a censura, pois o realismo estava asso-
ciado à resistência política, à resistência dos artistas e à liber-
dade de expressão e criação.
Importante mencionar o depoimento emocionado de Eva
Wilma, compartilhado por Lauro César Muniz e Carlos Zara,
em Mesa-redonda na USP/SP (28.81998)12. Ao final de sua
12 Mesa redonda intitulada Comunicação e Linguagem: telenovela e sociedade, promo-
vida pelo Núcleo de pesquisa de telenovela da Escola de Comunicação da USP/SP, 1998.
190 Telenovela e Representação Social

exposição, que explorava o lugar do ator nas telenovelas, ela


propunha uma homenagem à telenovela, pois ela foi durante
muitos anos a expressão da sobrevivência da nossa dramatur-
gia e da resistência à ditadura.
Nessa medida, o ponto de vista de Dias Gomes e Lauro César
Muniz no contexto dos problemas que a década de 1980 pre-
nunciava no campo da telenovela é bastante sugestivo. Ambos
temiam pela telenovela realista (o horário das 22:00h, seu prin-
cipal espaço de expressão, que seria interrompido em 1979),
pois ela representava um modo de narrar que associava a defe-
sa do ato criador e inovador do artista, mesmo quando cercea-
do pela indústria ou pelo Estado, com a defesa da função social
e política das obras populares – no sentido de massivas –, capa-
zes que eram de permitir a denúncia das questões sociais e mo-
rais que assolavam a sociedade brasileira contemporânea. Não
se pode, por outro lado, desconsiderar que ambos os escritores
poderiam estar de certo modo declarando e confirmando o lu-
gar de realizadores consagrados que ocupavam, principalmen-
te para os novos escritores que desde meados dos anos 70 vi-
nham se multiplicando. Com efeito, eles se reconheciam como
um dos principais formuladores do tipo de telenovela conside-
rada de maior qualidade pelas instâncias de consagração do
campo, em especial, os jornalistas críticos de televisão.
Artur da Távola declarou, em novembro de 1980 (Fatos e
Fotos, 17.11.1980): “verifica-se na produção média de teleno-
velas da Rede Globo uma queda na qualidade conseguida na
década passada. (...) Pelo menos quatro dentre os mais im-
portantes autores lá não estão escrevendo telenovelas: Dias
Gomes, Jorge Andrade, Lauro César Muniz e Braulio Pedroso.
A perda desses quatro autores só foi compensada pelo surgi-
mento de um novo Gilberto Braga. Quatro a um! É despro-
porcional.” Uma das explicações oferecidas por Távola corres-
pondia às de Lauro César e Dias Gomes – a fase mais estrita-
mente industrial das telenovelas estaria comprometendo o in-
vestimento nas inovações.
Dias Gomes considerava os anos 80 a década do impasse,
pois nesse momento ter-se-ia estruturado uma fórmula e ter-
se-ia deixado de avançar. Movimento contrário aos anos 70,
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 191

quando se estabeleceu uma revolução formal e temática que


originou a forma atual de se fazer telenovela (Klagsbrunn e
Rezende, 1991). Enquanto Dias Gomes falava do que teria sido
os anos 80, Lauro César Muniz mostrava, no início dessa dé-
cada, o seu ceticismo e preocupação com o futuro das teleno-
velas. O apogeu das telenovelas, segundo ele, foi de 1973 a
1978. Nesse período renovou-se na linguagem e na estrutura
das telenovelas. E agora (referindo-se ao final do ano de 1980),
têm-se temas repetidos, empobrecimento no tratamento das
histórias, os conflitos e as soluções são parecidos, falta o rea-
lismo. As personagens nunca exercem qualquer atividade pro-
dutiva, sendo sempre vistas em seus momentos de lazer. Por
quais razões? A emissora estaria mais comprometida com as
exigências do mercado publicitário e do público, que tenderi-
am a ser conservadores, pouco permeáveis ao novo. As inova-
ções na telenovela é que preparariam o telespectador para
compreendê-las e solicitá-las no futuro. Sem elas, ficaria com-
prometida a possibilidade de “abrir canais de maior entendi-
mento do público” das inovações (Folha de S. Paulo, 28.9.1980).
Parece, entretanto, que a previsão da catástrofe não foi
confirmada. Nos anos 80, depois da segunda metade, ocorre
o ressurgimento das telenovelas de crítica social, como Roque
santeiro e Roda de fogo, ambas escritas por Dias Gomes (com
a parceria de Aguinaldo Silva) e Lauro César Muniz, respecti-
vamente13. Aguinaldo Silva e Gilberto Braga se fazem mais
presentes nessa faixa de horário durante os anos 80, sendo
acompanhados por autores como Glória Perez e Sílvio de
Abreu. Aguinaldo tentava manter a crítica social dos costu-
mes e da política, tentando fugir do estilo panfletário ao im-
primir um humor refinado e fantasioso (Ramos e Ortiz, 1989).
Gilberto Braga tendia a uma crítica de costumes e política,
mais voltado às elites, como diz Arnaldo Jabor, um certo
“Balzac Eletrônico” (Folha de S. Paulo, 4.7.1994). Ambos os
escritores já citados, além de Glória Perez e Sílvio de Abreu,
mantiveram a linha dos serviços e cuidados ao tratarem de
temas polêmicos, mas com forte apelo social, como transplan-

13 Além disso, o tom de crítica social estende-se também para os outros horários.
192 Telenovela e Representação Social

tes e desaparecimento de crianças, no caso de Glória Perez, ou


homossexualismo e racismo, no caso de Sílvio de Abreu. Di-
mensões que caracterizaram as telenovelas como um todo,
introduzindo na imprensa dos anos 90 o termo “merchandising
social” (Folha de S. Paulo, 16.6.1993).
No horário das 19:00h surge a comédia política de
Cassiano Gabus Mendes e Sílvio de Abreu (Ramos e Borelli,
1989 e Ramos e Ortiz, 1989). O horário das 18:00h manterá,
em certa medida, o que já havia sido prenunciado na década
anterior, uma narrativa histórica que de algum modo tratava
questões sociais e políticas (Escrava Isaura e Sinhá moça). O
horário das 18:00h apresentou, principalmente na sua segun-
da metade, telenovelas que contemplavam a atualidade, faci-
litando com isso a abordagem das questões sociais, como bem
exemplifica Benedito Ruy Barbosa, um dos mais assíduos au-
tores dessa faixa de horário, com sua telenovela Paraíso (1982).
Quando o General Figueiredo veio com aquela his-
tória “plante que o João garante”, eu estava com a
novela O paraíso no ar. Nela tinha uma emissora de
rádio. Quem abria o programa era o cara mais inte-
lectual da cidade. E quando saiu essa história, fiz
uma cena que a censura cortou, mas depois acabara
liberando – estava na época da abertura, não podia
se contradizer. O locutor começava de manhã, bota-
va o jornal e dizia: “Bom dia professorinha! Você
que acordou agora, você garotinho de pé no chão,
comendo poeira para ir a escola, vai que esse é o seu
futuro. Caminhoneiro, você que está transportando
o progresso; cafeicultor, você que está escutando a
rádio colhendo o café.” E depois dizia: acorda presi-
dente. Bom dia Brasil era o nome do programa [na
telenovela]. Ele continuava: presidente, você está di-
zendo aqui (...), mandando o povo plantar que o
senhor garante, mas como o senhor garante? O se-
nhor tem armazenamento para essa safra que o se-
nhor quer que colha? (...) Plantar para perder? (en-
trevista Roda Viva, TVE, 1997).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 193

A telenovela de cunho social e político se diversifica e essa


dimensão do realismo passou a ocupar espaços cada vez mai-
ores no campo. O que seria importante de ressaltar, para fins
específicos na reflexão que aqui se desenvolve, é que o horário
das 20:00h da emissora hegemônica no campo tem, desde os
anos 70, privilegiado a realização de telenovelas realistas14.
Esse é um dado importante para analisar as andanças de Be-
nedito Ruy Barbosa pelas emissoras nessa década e na seguinte,
que culmina em 1993 na sua entronização no horário dos
escritores, de maior peso de consagração no campo, com um
dos maiores sucessos da emissora dos últimos anos, a teleno-
vela Renascer.
Em 1979, depois do sucesso com Cabocla, no horário das
18:00h, Benedito Ruy Barbosa encerra pela primeira vez o
contrato com a TV Globo. Solicitou à emissora a mudança de
horário e a possibilidade de desenvolver um projeto há muito
acalentado, a telenovela Imigrantes. A emissora negou e Be-
nedito Ruy Barbosa partiu para a Bandeirantes que iniciou a
década com o único grande sucesso nesse gênero. A Bandei-
rantes, contudo, não foi para Benedito um espaço de
florescimento da sua obra, dada a sua fragilidade gerencial e
produtiva, o que o leva a retornar à TV Globo. Novamente
para o horário das 18:00h. Como ele mesmo dizia: ”sou co-
nhecido como o autor da novela das 18:00h. Estava carimba-
do assim, aquele que sempre acerta a mão” (Jornal do Brasil,
6.3.1993). Depois de ter retornado à emissora, não mais fará
adaptações, apenas obras originais, a última delas, Sinhá Moça
(1986), inspirada no romance de Maria Dezzone P. Fernandez.
Obra que se tornou um dos maiores sucessos de venda para o
exterior, depois de Escrava Isaura. Em 1988 escreveu Vida nova
e pela primeira vez trabalhou com o diretor Luiz Fernando

14 Esta seria uma tendência presente no próprio campo, onde as emissoras concorren-
tes, como a Manchete e a Bandeirantes, buscaram assumir uma orientação da pro-
gramação bastante próxima dessa. A SBT desenvolveu uma estratégia diversa, ado-
tando telenovelas mexicanas e venezuelanas, que em princípio, negariam a aborda-
gem realista – isso sem antes tentar com Brasileiros e Brasileiras de Avancini, uma
versão frustrada do gênero que não tinha ricos, só pobres – mas não sem antes
convidar os telespectadores para que depois de assistirem a telenovela das 20:00h da
Globo, dessem a preferência para a deles, que seria exibida em seguida.
194 Telenovela e Representação Social

Carvalho, aquele que se transformou na “sua cara metade”


no horário das 20:00h nos anos 90. Mais uma vez, Benedito
Ruy Barbosa solicitou à TV Globo a possibilidade de realizar
um outro projeto de trabalho. A emissora não viabilizou o pro-
jeto. Dessa vez, a concorrente de plantão que apostou em Be-
nedito Ruy Barbosa foi a TV Manchete. Pantanal (1990) foi
um dos maiores sucessos da época, marcando para muitos
críticos um novo modo de narrar do gênero (Becker, 1992).
O retorno para a TV Globo, depois do sucesso de Pantanal,
não seguiu mais os moldes anteriores. O escritor deixará o
antigo posto no horário das 18:00h, sendo alçado para o ho-
rário dos maiores riscos e o de maior reconhecimento. Poderá
fazer as telenovelas que almejava, com o diretor que escolhes-
se e com sistema de produção que lhe aprouvesse. Esse novo
momento na trajetória de Benedito Ruy Barbosa significou,
portanto, uma mudança significativa de sua posição no cam-
po. Renascer, a sua prova de fogo, foi um grande sucesso de
audiência, de crítica, de prêmios e de captação de recursos.
Instalou-se, assim, mais um novo membro no jogo de regula-
ridades e alternâncias da emissora. O escritor, três anos de-
pois de sua estréia no horário, fabricará com o mesmo diretor,
uma outra telenovela. Novamente, ele trouxe mais sucesso
para a emissora: o econômico, de crítica, de audiência e de
prêmios. Benedito Ruy Barbosa preparou, ainda, a telenovela
do novo milênio – Terra Nostra (1999, direção geral de Jayme
Monjardim) –, aquela que esteve no ar no ano 2000, no horá-
rio mais nobre da televisão brasileira, respondendo, com cer-
teza, a mesma expectativa de sucesso.
Sempre que saí, foi com um objetivo. ...a primeira
vez que saí da Globo foi para fazer Os imigrantes,
que a TV Globo não quis fazer, achou que era uma
novela complicada, que eles não precisavam, líderes
de audiência... Fui para a TV Bandeirantes, peguei o
horário com dois pontos, e a novela teve 37 pontos
de audiência. A maior história de audiência da Ban-
deirantes até hoje. Depois saí de novo da TV Globo
para ir para a TV Manchete; deixei 20 anos de casa
porque eu queria fazer o Pantanal a qualquer custo.
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 195

Era um sonho meu, uma novela exeqüível, achava


que ela podia mudar até o conceito de novela. E, mais
uma vez, não é que a Globo tivesse recusado o proje-
to, mas toda vez que o apresentava, ficava para de-
pois. No sétimo ano eu me cansei. Saí para a TV
Manchete que resolveu bancar. Se a TV Manchete não
tivesse aceitado, teria voltado para a TV Globo ime-
diatamente. Eu saí com essa condição. O Boni falou
para mim: “É para fazer Pantanal, se não der você
volta!” – Ele achava que não ia dar. E agora, quan-
do voltei para a TV Globo, voltei com condição para
escrever para às 20:00h, eu queria ter um pouco mais
de liberdade de criação, às 18:00h te cerceia muito.
Nesse horário, a novela é mais romântica, sem com-
promisso... Mesmo assim, minhas novelas das
18:00h tiveram compromisso! Sempre falei de polí-
tica, economia, mexi em tudo, é uma questão de tei-
mosia. Essas minhas idas e vindas foi só em função
de projetos que queria realizar e precisava ter al-
guém que acreditasse neles. Não é que a Globo não
acreditasse, é que realmente ela não precisava fazer
esse esforço. Estava muito tranqüila na sua posição
de líder. E se for preciso, saio de novo. Só que quan-
do voltei, já tinha o compromisso assegurado de fa-
zer Renascer. Quando assinei o contrato, já sabia
que seria ela, na Bahia com 70% de externa, todas
essas coisas... na seqüência O Rei do Gado. Na ver-
dade, em toda minha vida, nunca fiz novela sob en-
comenda, e não tenho temperamento para isso. As-
sim como não gosto de palpite em sinopse, detesto
isso! (entrevista Souza, 28.9.1998).
Mais uma vez, Benedito Ruy Barbosa estaria as voltas
com a questão da mudança de emissora. Um possível acordo
vantajoso deveria ser estabelecido com aquela que estaria
emergindo no campo como a grande concorrente da TV Glo-
bo, o SBT. Problemas legais surgiram desmanchando essa
nova parceria. Benedito Ruy Barbosa, em depoimento ao pro-
grama Roda Viva, diz que ficou muito triste com essa histó-
196 Telenovela e Representação Social

ria, pois ao ser forçado a abrir mão dessa nova experiência,


estava sendo forçado a deixar de participar das lutas que
colocam determinados tipos de telenovelas dentro das emis-
soras, como ele havia feito na Manchete, na Bandeirantes,
na Record e na TV Cultura. “Eu sempre estive semeando”
(Roda Viva, TVE, 1997).
Durante esse longo trajeto, o escritor não aplainou, como
se poderia supor, a verve política e a crítica social que caracte-
rizam as suas telenovelas. Ao contrário, exacerbou-as. A ques-
tão agrária, sem dúvida um dos seus temas mais recorrentes,
que lhe conferia singularidade e estilo, entrou na negociação.
Tião Galinha, em Renascer, lutava pelo direito a terra solitari-
amente. O escritor sabendo que ainda não era o momento
para falar da questão agrária de maneira mais “profunda”.
Esse momento foi aproveitado na telenovela imediatamente
posterior ao seu primeiro sucesso no horário, O rei do gado15.
O Movimento dos Sem-Terra, personagem da questão agrá-
ria, tornou-se um dos pontos centrais do debate nacional tra-
vado nas ruas, nos jornais, nos telejornais e na telenovela.
Esse movimento irrequieto de Benedito Ruy Barbosa é pen-
sado como a expressão do habitus de criador que busca in-
cansavelmente o reconhecimento e a consagração no campo.
Dos pontos que ilustram essa busca, destacam-se as pequenas
lutas travadas com as emissoras (e, em seu momento, com a
censura) e a defesa de telenovelas realistas que tematizam a
opressão, a desigualdade e a injustiça.
A trajetória de Barbosa indica também a habilidade em
lidar com as regras básicas de funcionamento do campo, tais
como a negociação permanente com os representantes da in-
dústria e do governo. Um escritor que negocia ciente da ne-
cessidade de satisfazer as demandas básicas das empresas de

15 “Tenho consciência [que a novela pode contribuir para a luta pela reforma agrá-
ria]. Aliás, foi a nossa única preocupação quando estávamos começando a escrever a
novela, com a sinopse já pronta. Falei com a direção da Globo que eu queria abordar
esse tema da reforma agrária há muitos anos. Não queria mais fazer a história do Tião
Galinha que se enforcava. Dessa vez a intenção era aprofundar-me no tema. Em
nenhum momento a Globo deixou-me inibido “não faça isso nem aquilo. E fui sentindo
a repercussão e me cuidando. Eu tenho absoluta certeza que levei o público a entender
a reforma agrária” (Roda Viva, TVE, 1997).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 197

comunicação – a rentabilidade e a qualidade que alimenta o


respeito da crítica – sem contudo, abrir mão de seus direitos e
da acumulação dos capitais específicos do campo que lhe per-
mitem a consagração que confere tanto a distinção e o reco-
nhecimento entre seus pares, quanto o maior poder de barga-
nha com as emissoras em prol de suas reivindicações e do seu
ethos de criador16.

Benedito Ruy Barbosa, Empresário Moral de Questões Sociais Representa o Popular


Benedito Ruy Barbosa narra a sua história para a imprensa
como quem conta a saga de seus protagonistas. Permeada de
desafios e lutas para enfrentar a perda do pai, a vida no maior
centro urbano do País, as agruras dos limites e tensões de quem
se dedica às empresas de comunicação, no início como jorna-
lista e depois como realizador de telenovelas. Tensões advindas
de sua preocupação política – um namoro com o comunismo
e mais tarde uma declaração de fé ao anarquismo. Tensões
provenientes também da sua postura de criador e artista, que
o levariam a incansável busca das oportunidades de acumu-
lação do capital social e simbólico necessários para ampliar
os modos de narrar os problemas da sociedade brasileira em
um gênero ficcional que tende para o entretenimento ingê-
nuo e de consumo fácil.
A política entrou na vida de Benedito Ruy Barbosa muito
cedo mediante a história de seu pai e do jornalismo de crítica
social que desenvolvia numa cidade do interior paulista.
Eu nasci dentro de um círculo familiar movido pela
preocupação política. Mais tarde exerci o jornalis-
mo, onde a política é latente no trabalho cotidiano,
pelo próprio envolvimento com a notícia. A política
está muito presente no meu trabalho porque é uma
inquietação minha – todo autor tem a sua inquieta-
ção e a minha é essa (entrevista Souza, 28.9.1998).

16 A habilidade e a competência da prática de resistência dos realizadores que traba-


lhavam na indústria do entretenimento, já apontada por Ramos e Ortiz (1989) e por
Mattelart (1989).
198 Telenovela e Representação Social

A morte prematura do pai mudou as suas condições de


vida17 e o fez entrar muito cedo no mercado de trabalho.
Visualizava na indústria cultural em expansão um promissor
emprego para aqueles que tinham a habilidade da escrita18,
mas não tinham o diploma universitário. Necessidades eco-
nômicas que levaram muitos artistas da época a uma experi-
ência de renovação dos produtos comerciais desprestigiados,
como a telenovela19.
Ao comentar sobre as principais telenovelas brasileiras,
Barbosa não deixa de citar algumas de suas obras, dentre elas
Os imigrantes (1980). Atitude que mostrava não apenas uma
estratégia de reconhecimento, mas principalmente uma de-
claração de princípios e práticas que baliza a sua identidade
como criador. Ao ser inquirido sobre sua história de escritor
do gênero, ele imediatamente criticava as primeiras telenove-
las, maniqueístas e distantes da realidade brasileira, para de-
pois afirmar o seu amadurecimento como escritor de teleno-
velas, já que foi capaz de construir um estilo próprio, que mais
tarde mostrará seus frutos, em Pantanal, Renascer e Rei do gado.
No começo as novelas eram importadas e não tinham a
ver com nossa realidade, sendo maniqueístas do ponto de vis-
ta da arte.(...) quando fui para a Colgate, comecei a pressioná-
la para que abandonasse os textos estrangeiros. (...) O tempo
e o vento, projeto que estive envolvido na Excelsior, foi impor-
tante também para tirar a Colgate desse mercado industrial e
para valorizar nossos diretores e atores. Depois tivemos um
salto, que foi Beto Rockfeller. Na seqüência tivemos grandes
novelas... Sem querer puxar a sardinha para a minha brasa,
acho que a grande guinada depois de Beto Rockfeller foi Os

17 “Nasci e fui criado num ambiente de classe média (até a morte de meu pai, em Vera
Cruz, os ricos eram só os fazendeiros). Os comerciantes também estavam bem de vida.
Os jornais ... era uma luta para fazer. A tipografia de meu pai era a única da região.
Ele tinha um ganho razoável que nos permitia viver bem. Conseguiu comprar um
rádio enorme, que era símbolo de status” (entrevista Souza, 28.9.1998).
18 Benedito Ruy Barbosa ganhou, ainda bem jovem, o segundo lugar no concurso
para revisor do Jornal O Estado de S. Paulo (Jornal do Brasil, 29.4.1990).
19 Xexéo (1996) não deixaria de apontar essa dimensão em Janete Clair e Dias
Gomes, assim como Ortiz (1988) já dizia da atração que a indústria cultural em
expansão exercia sobre os jovens de pouco capital econômico e cultural.
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 199

imigrantes. O Estado de S. Paulo escreveu uma crítica dizen-


do: “A novela brasileira se conta antes e depois de Os Imigran-
tes.” A novela passava a verdade dos fatos, do cotidiano da
época. Ela conquistou um público muito qualificado (recebi
duas mil cartas): professores, estudantes, pessoas que viam a
novela com outro enfoque, não estavam atrás só de emoção,
mas preocupados com os relatos. Ela foi um marco para mim,
mudando o meu modo de encarar a novela. Depois, uma que
foi reconhecida foi Pantanal. Mudou mesmo o ritmo da nove-
la, o fato de ser a maior parte em externa, as imagens, a lin-
guagem... Deu uma guinada danada! Já Renascer e O rei do
gado são conseqüências de Pantanal. Na verdade, estou man-
tendo o meu estilo (entrevista Souza, 28.9.1998).
A perspectiva de Barbosa de transformar a telenovela,
dentro do possível, num produto de qualidade que pudesse ser
uma das fontes de expressão de suas posturas políticas e esté-
ticas, ajuda a refletir sobre os aspectos estimuladores da per-
manência dos realizadores nesse veículo, em princípio consi-
derado fechado e impermeável a interesses que não servissem
aos propósitos econômicos e político conservadores.
Benedito Ruy Barbosa insiste, e outros realizadores tam-
bém, que não tem sido cerceado pelas empresas de comunica-
ção, tendo suas sinopses respeitadas e o script, com raras exce-
ções, também. Isso, por um lado, pode-se dizer, mostra o seu
“bom senso”20 associado à sua competência e habilidade nas
negociações com a empresa (é interessante notar como ele, sem-
pre que podia, não perdia a oportunidade de manifestar que
dela não dependia. Uma maneira de construir o respeito e o
temor por parte das emissoras21). Por outro lado, essa autono-
20 Na entrevista dada ao Programa Roda Viva (TVE, 24.2.1997), perguntaram a
Benedito Ruy Barbosa quem controlava o dono da novela, se a TV Globo não fazia um
severo controle ideológico sobre o produto. Barbosa respondeu: “Você tem que seguir o
bom senso. Quando você recebe números do Ibope dizendo que a telenovela tem 68
milhões de telespectadores, pensará em termos de Brasil...” Então é o público, insistem.
“Não, responde, é o bom senso mesmo. É evidente que se quisesse botar fogo no campo,
não iam deixar eu fazer isso. A imprensa tem uma linha editorial. Você entende?.”
21 “Palavra de honra como não abro mão de certas coisas. A Globo é meu trabalho e
não a minha vida. Se tivesse prejudicado a novela (sobre a redução da primeira fase
de Renascer, exigida por “Boni”), eu teria saído. Já sai uma vez e sairia de novo” (RP/
TV, Jornal do Brasil, 6.3.1993).
200 Telenovela e Representação Social

mia negociada, e permanentemente construída por ele, expõe


a sua “matreirice ideológica”, aquela que lhe permite elaborar
um texto que mescla aventuras com assuntos polêmicos.
Quem liga a TV, depois do trabalho, quer ver coisas
bonitas. Na novela, eu mostro uma lavadeira can-
tando, o cacau sendo amassado. Isso é fantástico.
O sujeito não quer ver sua realidade. Mas a novela
é perigosa porque vira uma fuga. Preciso ter cuida-
do para que isto não aconteça. Quando mostro a
Bahia, mostro que lá tem problemas. E, ao mesmo
tempo, mostro o verde, porque pelo menos a pes-
soa respira. E pensa (Jornal do Brasil – Cad. B
11.4.1993).
Em Renascer tem-se a greve dos professores do estado de
São Paulo, a chacina da candelária, a chacina dos índios
Ianomami mesclados com assuntos de forte tom emocional,
como o amor de José Inocêncio e Maria Santa, de João Pedro
e Mariana, de Joana e Padre Lívio.
Você não pode transformar a novela num discurso
político. A discussão política está inserida no con-
texto da novela. Em Renascer, aquela discussão que
eles faziam: “Fecha o Congresso, fecha tudo!” e todo
mundo bateu palmas. Mas o povo estava pensando
aquilo. São verdades... Se está dentro do contexto, o
personagem diria aquilo. O personagem não está
pedindo um break para fazer um discurso. Tem que
estar dentro da emoção. Aquela cena que ela
(Lourdinha, a professora) faz da agressão da polí-
cia, ela fez chorando. Eu recebi centenas de cartas de
professores... (entrevista Souza, 28.9.1998).
A mescla daquilo que é politizado e polêmico com as for-
tes emoções oferecidas pelas histórias de amor e paixão é ain-
da atravessada pelos grandes temas que povoam o cotidiano
familiar: os conflitos familiares entre pais e filhos, a materni-
dade, o casamento e a morte. Temas explorados sob uma pers-
pectiva moralizante e libertária, no sentido de mostrar o cer-
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 201

to, o que deve ser feito, mas a partir de princípios que conde-
nam práticas autoritárias, misóginas e preconceituosas.
Por estar mexendo com os Sem-terra, sempre andei
na corda bamba, tentando conduzir a trama sem
criar atritos. (...) Mas acho que a novela já cumpriu
a sua missão: pregou a mensagem de paz no campo
ao mesmo tempo em que mostrou que o problema é
grave e tem de ser resolvido (TV Folha – 26.1.1997).
Pode-se afirmar que uma das principais características das
telenovelas de Benedito Ruy Barbosa tem sido a ênfase na
questão do poder: das práticas do Estado e de instituições so-
ciais, como a Igreja, a Escola, os partidos e a família, até a
expressão das redes de dominação presentes na intimidade e
no relacionamento amoroso.
Essa característica do escritor tende a trazer a questão do
poder e da representação social do popular para o primeiro
plano da telenovela, sempre que as regras de funcionamento
do gênero assim o permitam22. Observa-se em suas obras uma
preocupação constante em construir personagens populares
a partir dos problemas da sociedade brasileira, não só para
estabelecer denúncias (o caso da bandeira vermelha 23, do des-
caso do governo diante da praga da vassoura de bruxa e o
problema da educação no país em Renascer), como também
para apontar soluções (a defesa da dimensão técnica da re-
22 O termo primeiro plano visa a frisar o lugar secundário que, em geral, se tem dado
aos indivíduos e grupos que representam a pobreza nesse gênero. O depoimento de
Tony Ramos, um dos atores do núcleo de pobres da telenovela Torre de babel (1998,
TV Globo, Sílvio de Abreu), ilustra bem essa tendência: “Já trabalhei em 35 novelas.
A vida inteira fiz novelas com as pessoas dizendo “Ah! Já sei, o mocinho vai ajudar a
pôr o bandido na cadeia e ficar com a mocinha. Não tem realidade. Parece novela
mexicana! Agora está lá o ferro-velho sujo e purgando realidade e todo mundo diz
que é chato! (Super TV/Jornal do Brasil, 21.6.1998, p. 9)”
23 Na entrevista que deu ao Roda Viva (TVE, 24.2.1997), perguntaram sobre a
polêmica criada pela questão da bandeira vermelha, já que ele dizia apoiar o Movi-
mento dos Sem-Terra. Barbosa respondeu: “Uma coisa nada tinha ver com a outra. A
bandeira vermelha sugerida era a de foice e martelo e não à dos Sem-Terra.(...) O que
tem a foice e o martelo a ver com esse movimento? O comunismo acabou e a gente
tem que pensar de outra forma. (...) O assunto da reforma agrária tem que ser
tratado tecnicamente. Ideologicamente não tem mais lugar. Você não pode misturar
ideologia com reforma agrária.”
202 Telenovela e Representação Social

forma agrária em O rei do gado e a defesa da terra para o


trabalhador em Renascer), e para fomentar reflexões sobre
assuntos polêmicos como o patriarcalismo, a submissão femi-
nina24 e a questão racial.
Essas marcas expressam a sua concepção de telenovela,
um importante recurso reflexivo que deve oferecer a todos os
segmentos sociais que o consomem princípios morais ancora-
dos no “bom senso” e em “verdades”. O escritor concebe o
gênero como um espaço onde ele pode transmitir sua crença
em princípios democráticos vinculados a emancipação social
e subjetiva. Não se pode desconsiderar a relação entre esses
princípios e a questão da modernização: o que deveria ser su-
perado e o que deveria ser adquirido; o que deveria permane-
cer, apesar de parecer “careta” ou “fora de moda”, e o que
deveria ser incorporado; os problemas causados pelas mudan-
ças impostas pela modernização e as dificuldades que preci-
sariam ser resolvidas para que ela seguisse o seu curso. Nesse
sentido, a telenovela tende a ser vista como um recurso que
também deveria cumprir esse papel de ajudar a pensar as ques-
tões postas pela modernidade. Desde a importância da convi-
vência da curandeira da cidade do interior com o novo médi-
co que chega na cidade (Meu pedacinho de chão), até o fenô-
meno dos empresários e fazendeiros que se recusam, não só a
modernizar seu sistema de produção, como também a supe-
rar práticas clientelistas, discriminatórias e desrespeitosas dos
direitos sociais e trabalhistas (como em Renascer). O curioso é
o escritor se sentir respaldado socialmente para cumprir esse
papel, respaldo oferecido pelo apoio que recebe dos agentes e
instituições que em princípio estaria representando.
A telenovela Rei do Gado é um bom exemplo. A questão agrá-
ria da sociedade brasileira mostra um dos mais antigos, sangren-
tos e difíceis conflitos de interesses de sua história. De um lado,
poderosos fazendeiros que no imaginário social ocupam o lugar

24 Nas telenovelas Pantanal e Renascer Benedito Ruy Barbosa idealizou no interior do


núcleo dos fazendeiros tradicionais personagens femininos que passaram de uma
posição de subordinação aos maridos para um efetivo processo de emancipação e
autodescoberta. As histórias emblemáticas de Maria Bruaca (Angela Leal) em Panta-
nal e D. Patroa em Renascer (Eliane Giardini).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 203

do responsável por atrocidades: o lugar da tradição escravocrata


e patriarcal, da ilegalidade. Do outro, o problema da política agrí-
cola e da questão da terra que envolve os trabalhadores rurais, os
movimentos sociais e sindicais, a Igreja Católica, os partidos po-
líticos, deputados, senadores. Benedito Ruy Barbosa buscou mos-
trar que abordou essa questão, sabendo que deveria dizer algo a
todos os envolvidos25. Para tanto ele se amparou num conjunto
de conhecimentos específicos e especializados sobre a temática,
a qual vinha sendo objeto de seu interesse há muitas décadas. Ele
fez questão de explicitar, em seus depoimentos, o seu papel de
perito no assunto, um efetivo e reconhecido representante26 de
um determinado ponto de vista sobre a questão27.
Representante de uma perspectiva política e social, ele tam-
bém se considera um porta-voz das causas populares. Repre-
sentar o povo, o pobre, o trabalhador seria ser capaz de tradu-
zir a verdade de seus problemas sociais, a esperança e a tragé-
dia imanente a sua realidade. Nessa medida, quanto mais ve-
rossímil e realista for a trama e os personagens, mais o escri-
tor se aproxima do seu objetivo enquanto representante dos
interesses populares.

Personagens Populares de Benedito Ruy Barbosa


A fim de estabelecer uma primeira aproximação com os mo-
dos de Barbosa narrar os personagens populares, decidiu-se

25 “A morte do Senador em O rei do gado. Eu recebi um recado do próprio Congresso,


mediante uns amigos...Estavam me cobrando: como eu mato um Senador da Repúbli-
ca e ninguém fica sabendo quem matou? Não vai ser punido? A resposta que dei foi a
seguinte: Quem foi o mandante da chacina de....? Cadê os assassinos de Carajás?
Quando me apresentarem, eu também coloco quem matou” (Roda Viva, TVE,
24.2.1997).
26 Para refletir melhor sobre essa questão das posições de que o autor se julga
representante é importante analisar o papel de senadores do Partido dos Trabalhado-
res, Benedita da Silva e Eduardo Suplicy, enquanto ‘atores reais’ na cena do velório do
personagem Senador ‘Caxias’ (Carlos Vereza). Para essa mesma seqüência, o Senador
Sarney, que já havia gravado uma cena, se recusou a ‘aparecer’.
27 A entrevista realizada pelo programa Roda Viva é um excelente exemplo, onde ele
argumenta longamente suas posições sobre uma determinada política agrícola, uma
determinada ação do Movimento dos Sem-terra, do Partido dos trabalhadores, do
Congresso e dos fazendeiros. Sobre esses últimos reclamava a necessidade da moder-
nização e da efetiva utilização da terra.
204 Telenovela e Representação Social

elencar algumas das principais características da sua carpin-


taria textual, para a partir daí examinar alguns dos seus mo-
dos de representar o popular em Renascer.
O artigo de Claude Grignon (1991, p. 177) – a “composi-
ção da novela e a construção sociológica” – inspirou uma li-
nha de análise baseada na analogia entre os modos dos soció-
logos e escritores representarem as classes populares. Grignon
afirma que quanto maior a busca da ‘autenticidade’ na repre-
sentação das classes populares, quanto maior a proximidade
dos problemas metodológicos enfrentados pela Sociologia que
pretende analisá-las. “Problemas de valorização e reabilita-
ção do sujeito, problemas de documentação e de investigação
de um meio social distante e estranho, e, fundamentalmente,
problemas de representação e ‘tradução’. Como dar forma in-
teligível ao testemunho vivido, ao documento bruto, sem alte-
rar seu sabor? Como transmitir a fala popular, a língua oral
por excelência, nesta língua duplamente escrita que é a lite-
rária?.” Além disso, afirma o autor (p. 78), “a técnica do ro-
mancista seria muito semelhante à do sociólogo quando bus-
ca uma ‘descrição com conceitos’ e se esforça para que a aná-
lise tenha sua origem na observação dos fatos e na apresenta-
ção do material, mas com uma diferença capital, a de que a
seleção dos traços pertinentes seria feita pelo escritor de uma
maneira arbitrária, em função de uma tomada de partido que
preside sua concepção da obra e que governa o conjunto de
suas posições anteriores”.
O que se tenta demostrar aqui é que escritores como Be-
nedito Ruy Barbosa, que se definem como realistas, desen-
volvem uma forma de trabalho que, muito próxima aos soci-
ólogos, pauta-se em observações diretas e convívio com as
classes populares, em levantamento de dados fidedignos e
autênticos sobre seus modos de vida, modos de falar, pensar,
vestir, cantar.
Em 1971, depois de sair da TV Cultura e decidir pa-
rar de escrever telenovelas, resolvi viajar. Peguei mi-
nha família e fomos para a Bahia. É um hábito da
gente, você não vai para pesquisar mas acaba pesqui-
sando, porque você entra numa roda de prosa e acaba
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 205

levantando história à beça ali. Passei a ter uma rela-


ção muito direta não só com os fazendeiros de ca-
cau de lá – muitos deles, inclusive, me hospedaram
nas fazendas que visitei – mas principalmente com o
tabaréu, os agregados das fazendas. Eu comecei a
conversar com eles e acompanhar o processo de co-
lheita do cacau, o tratamento que se dá ao cacau até
o momento em que é exportado. Aquilo me encantou
muito, não só do ponto de vista de imagem – traba-
lho lindo aquele, não é? – mas também pelo conteú-
do socioeconômico daquela região cacaueira. Os
personagens vão nascendo desses encontros que você
tem, é só você observar. De repente você está voltan-
do e fica com o linguajar... Não se podia registrar
essas coisas. Porque se você chega num lugar desses
e pega um gravador ou um caderno de apontamen-
tos todo mundo se cala. Esse tipo de pessoa, que não
está acostumado, você inibe. O gostoso é você come-
çar tomando uma pinga com eles. A garrafa passa
de mão em mão, se você limpar o gargalo, os caras
se sentem ofendidos. Eu entrava nesses papos e ia a
ponto de presenciar o trabalho deles, das 20:00h às
quatro da manhã, de secar o cacau numa fornalha,
como mostrei na novela. Dali eu já comecei a pensar
na história de Renascer (entrevista Souza,
28.9.1998).
O depoimento de Barbosa conduz até mesmo a alguns
traços populistas, no sentido de que busca a autenticidade em
sua própria experiência de conhecimento do povo a partir do
seu ser como eles. Como diz Grignon, “uma certa fantasia ro-
mântica que consiste em querer fundir-se com o Outro sem
deixar de ser ele mesmo” (p. 175).
Eu sempre defendi que a terra deve ser dada a quem
tem vocação para a terra. Porque quem conhece a
lida o campo – e eu conheço – trabalhei na terra,
ainda menino; sabe que não é fácil. Nós tivemos uma
época em que houve o êxodo rural que as pessoas
206 Telenovela e Representação Social

saiam da enxada e vinham aprender a apertar pa-


rafuso, no desenvolvimento da nossa indústria. Hoje
o caminho está sendo inverso por causa da onda de
desemprego que está cada vez aumentando (...) Des-
ses que voltam, a grande maioria não se adapta mais
ao trabalho. Eu pesquiso isso, tenho informações fi-
dedignas. Muitos dos que são assentados vendem a
terra e vão embora, alguns até abandonam... (en-
trevista Souza, 28.9.1998).
Diferentemente dos sociólogos, que deveriam traduzir o po-
pular a partir de regras particulares do campo científico, os escri-
tores de telenovelas representam o popular a partir das regras
básicas de funcionamento desse gênero ficcional e dos pontos de
vista estéticos construídos em sua trajetória no campo.
Pallottini (1998, p. 76) lembra que a pobreza tem ficado
tradicionalmente em tramas paralelas e secundárias. O movi-
mento de Benedito Ruy Barbosa e outros escritores que dão
uma amplitude maior a esses personagens populares –
representá-los em primeiro plano – deve-se à habilidade de
ampliar não só a importância das tramas paralelas, como tam-
bém às formas de articulá-las aos personagens das tramas
centrais. De qualquer modo, o lugar que usualmente cabe ao
popular tem sido o da subalternidade e do segundo plano.
Barbosa, enquanto escritor de telenovelas, está muito mais
limitado no processo de elaboração da representação do po-
pular do que romancistas consagrados como Zola (escritor
examinado por Grignon). Isso significa que maiores dificul-
dades enfrenta para construir essa autenticidade. Entretanto,
os dispositivos usados parecem muito semelhantes. Destaca-
se a metodologia de trabalho que sugere um tratamento cien-
tífico do “real”. Um atributo importante para o processo de
criação, assim como para a necessária interpelação dos diver-
sos agentes sociais que uma telenovela aciona. Uma forma de
construir reconhecimento e legitimidade para a obra e seu
realizador. Movimento que dá substrato para a sua condição
de porta-voz de pontos de vista políticos, ideológicos e cultu-
rais comprometidos com as questões populares e nacionais.
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 207

Benedito Ruy Barbosa tem em sua trajetória mostrado cla-


reza quanto à importância da equipe de realizadores para que
se garanta a integridade da obra, principalmente a almejada
representação do popular. A escolha de Luiz Fernando Carva-
lho como diretor-geral e dos atores e atrizes que representam
os personagens populares assim o demonstram.
Luiz Fernando Carvalho é um jovem cineasta e videasta
reconhecido. A sua experiência de direção em televisão vem
desde 1984, na Manchete e na Globo, com trabalhos de suces-
so em ambas. Renascer, entretanto, foi a sua primeira direção
geral no horário das 20:00h, apesar de ter trabalhado, nos
anos 80, na equipe de direção de várias telenovelas deste ho-
rário. Um de seus sucessos foi em Pedra sobre Pedra, de
Aguinaldo Silva, onde dirigiu um capítulo que se transformou
em um programa especial de fim de ano, o Auto de Nossa Se-
nhora da Luz28.
Ambos se encontraram pela primeira vez em Vida nova
(1988), telenovela das 18:00h da TV Globo. O trabalho em
telenovela é pensado por eles como coletivo, onde o peso maior
da autoria é dada ao escritor. Luiz Fernando Carvalho, por
exemplo, diz:
a síntese da novela é do Benedito. Por mais que eu
criasse situações, não importa, a síntese tinha que
ser do Benedito. Se fugisse dessa síntese eu estaria
errado. Eu o respeito como a um autor de obra fe-
chada. Eu estou adaptando um romance do Benedi-
to (Seminário da Cândido Mendes, 1994).
Além do respeito ao estilo e obra do escritor, Carvalho fri-
sa o caráter coletivo da experiência
o autor com o diretor têm que formar uma dupla.
Eles vão trabalhar juntos durante um ano. Eles têm
28 “Antes de ser diretor geral, meu esforço estava voltado para o resultado de uma
cena ou, no máximo, uma seqüência de cenas”. Foi numa dessas seqüências, um
capítulo inteiro de Pedra sobre pedra com a festa do Auto de Nossa Senhora, que ele
começou a se destacar na emissora. A Globo recebeu muitos pedidos de reprise e
encomendou um especial sobre o assunto, com nova direção de Luiz Fernando Carva-
lho. Foi a deixa. Logo vinha o convite para a primeira direção geral em Renascer
(Revista de Domingo, Jornal do Brasil, 27.6.1993).
208 Telenovela e Representação Social

que falar a mesma linguagem, terem o mesmo obje-


tivo enquanto criadores. Não se pode esquecer do
elenco. Ele contribui para formar melhor a idéia de
personagem, de direção e de cenário. A idéia de quem
é a obra: é um conjunto muito forte feito pelo dire-
tor, autor e elenco. Principalmente essa comunhão
entre autor e diretor. Senão, não dará certo. A sínte-
se é do autor. O diretor interpreta o texto. O resulta-
do final não é nem o que o Benedito viu como resul-
tado formal e nem uma coisa só minha porque parti
da síntese dele, é uma terceira coisa (seminário so-
bre televisão – ECO/UFRJ, 25.10.1994).
Barbosa segue pela mesma vertente ao ressaltar a autoria
do escritor, sem desconsiderar a importância da dimensão
coletiva da obra
o peso maior da autoria de uma telenovela estaria
no autor. O sucesso de uma novela começa na sinop-
se. Daí para frente, depende dos capítulos bem escri-
tos e da direção correta para aquele tipo de novela.
Você não pode fazer uma novela rural com um dire-
tor extremamente urbano, que não conheça nada de
campo, fica muito complicado! Eu sempre brinco com
diretor de novela minha: não pode ter medo de mos-
quito, sapo, jacaré, ou sol. O Luiz Fernando, por
exemplo, eu me dou super bem com ele – primeiro
porque temos a mesma origem (ele também tem o
barro na sola do pé!) e ele gosta de fazer isso, tem
uma empatia muito grande com a natureza! Tem uma
linguagem com a imagem e é um excelente iluminador,
é primoroso! A gente que escreve, senta no computa-
dor ou na máquina criando a cena, ela está na sua
cabeça e você visualiza, vê as coisas. Ele não me frus-
tra, ao contrário, acrescenta. Às vezes, ele está entu-
siasmado com uma cena, liga para mim perguntan-
do se pode fazer assim, assado. “Faz! Não precisa
perguntar! (entrevista Souza, 28.9.1998).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 209

Observa-se uma identidade temática e política entre eles,


além da identidade estética. Uma proximidade importante faz-
se notar também no procedimento usado para construir os
personagens que representam as classes populares. Ambos
buscam, por exemplo, uma composição minuciosa dos perso-
nagens e situações para que eles possam de fato representar a
“realidade do povo brasileiro”. Luiz Fernando Carvalho des-
creve o seu papel de diretor geral em duas partes
A primeira corresponde ao conceito e à realidade da
fase inicial da novela; a tentativa de, a partir do tex-
to, buscar uma narrativa próxima da fábula, do
universo lúdico do povo brasileiro. A outra, realmente
mais difícil, marcou a passagem de época, quando
os personagens já não seriam tão motivados pela
esperança, pelo romantismo. A precariedade encon-
trada nas estradas de terra e nas carroças daquele
tempo teve que ser encontrada nas relações huma-
nas, e o sonho, sobreviveu como um alento, nas apa-
rições de Maria Santa, aliviando o fardo de Inocên-
cio. Mas esta fase acabou nos atropelando um pou-
co... Enfim, muito mais difícil do que conceituar uma
novela é fazer com que este conceito não se esfacele
durante a longa caminhada de quase 200 capítu-
los... Vamos dizer que agora eu esteja começando a
descobrir o caminho que devo seguir. Esta busca sig-
nifica um acúmulo absurdo de trabalho. ...O suces-
so atual, deve-se, eu acho, ao tom que a novela tem
agora, algo que eu e o Benedito estivemos procuran-
do desde o princípio. É um tom de fábula, de encan-
tamento, da recuperação do herói, do sonho, da es-
perança, aliados a uma intensa consciência do real e
do País. Não poderia ser uma fantasia pura e sim-
ples, pois o País não permite. Se você embarcar só
na fantasia fatalmente vira um vidiota. Esta mistu-
ra da fábula e do real mexe muito com as pessoas.
Você vai de uma cena de encantamento e corta para
uma cena de pisoteio de cacau, com os negros ra-
chando no sol. É uma mistura muito interessante
210 Telenovela e Representação Social

porque é o retrato do brasileiro, que vive com o delí-


rio do sonho e a precariedade do real. Isso faz com
que as pessoas se aproximem da novela de uma for-
ma intensa. Elas se comprometem... (Revista da TV,
Globo, 6.6.1993).
A construção da personagem Maria Santa (primeira fase)
é assaz ilustrativa da estética de Carvalho
Maria Santa tinha uma janelinha por onde ela olha-
va o mundo. Pensei que era preciso contar a estória
dessa menina como se fosse um conto de fadas, e a
coisa mais importante no conto de fadas é o olhar
do mundo. Como essa menina precisa olhar o mun-
do? Pensei, vou construir na locação uma janelinha
pequenininha para ela, para que ela possa se aprisi-
onar lá fora da mesma maneira como está aprisio-
nada lá dentro. A câmera sempre a mostra no espa-
ço, mesmo quando ela está lá fora, a câmera mostra
pela moldura vista de dentro do quarto, ou seja ela
continua estando aprisionada. Esse tipo de relação
é uma narrativa. Esse tipo de relação não seria pos-
sível num estúdio de maneira nenhuma com aquelas
quatro câmeras me olhando. Na busca de um ponto
de vista dessa personagem, falei com o cenógrafo
Mário Monteiro, que é ótimo, que tal cena não po-
deria ser no estúdio, apesar dele insistir que pode-
ria. Não dava porque esse cenário precisava da di-
nâmica do olhar do mundo, da pessoa que olha, que
o olhar atravessa a janela. A ausência da possibili-
dade de se usar um ponto de vista dentro do estúdio
é horroroso para quem está contando uma história,
porque isso é uma caligrafia, o ponto de vista é uma
caligrafia, é um substantivo. Se você tira isso de uma
história, você perde e muito da subjetividade da per-
sonagem. Eu fui juntando todas essas coisas até ten-
tar fazer a cara de Renascer (Seminário da Cândi-
do Mendes, 1994).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 211

Sou um diretor que preza a escritura de sua caligrafia,


apesar da engrenagem comercial que move o campo da tele-
novela. Um realizador que defende com veemência as marcas
autorais em seu trabalho. Como ele mesmo diz:
o padrão da Rede Globo existe para diretor que não
tem padrão. Se você não tem uma caligrafia pesso-
al, alguém segura a sua mão e assina por você. Eu
sempre tive a sorte de ter grandes professores dentro
da televisão. E todos impunham as suas personali-
dades. Não tenho porque fugir à busca de um traba-
lho mais autoral na TV. Diretor só é diretor quando
tem responsabilidade artística. Senão, vira soprador
de apito (Revista da TV, Globo, 6.6.1993).
Como lembra Ramos e Ortiz (1989), o encontro do escritor
com a sua “cara metade” da direção geral confere a cumplici-
dade e a identidade política e estética que garante a autoria, a
inovação e a qualidade possível em um produto comercial e de
fabricação industrial como a telenovela. No caso particular de
Benedito Ruy Barbosa, o encontro com Luiz Fernando Carva-
lho permitiu aguçar uma determinada linha de construção da
representação do popular, aquela pautada na tensão perma-
nente entre, de um lado, a fábula, o lirismo e a emoção, e, do
outro, o realismo e a crítica social, sem descurar do respeito e
da importância da telenovela como um produto comercial e
artístico. É Luiz Fernando Carvalho quem afirma
A gente vive num País de semi-analfabetos, onde a
grande maioria da população absorve a televisão
como única fonte de informação, cultura e diverti-
mento. E é para essa grande maioria da população
que eu estou trabalhando. Respeito demais isso, da
mesma forma com que respeito a possibilidade de
eles terem acesso a um livro, a um filme, a uma
peça...Por isso eu tento dar o melhor de mim. Eu sei
que o público vai sentar para ver a novela como um
lazer fundamental e o povo não é bobo, não é igno-
rante, não se satisfaz com mediocridade. Infelizmente
212 Telenovela e Representação Social

há poucas opções, mas se você faz um espetáculo de


qualidade, ele recebe, percebe, lê, assimila essa qua-
lidade e cresce com isso. Acho uma irresponsabilidade
para com a mentalidade da nação, para com o ima-
ginário dos nossos espectadores – que é o grande
imaginário deste País –, fazermos coisas ruins por
preguiça, acomodação, ou por falta de consciência.
É prá fazer? Então vamos fazer bem-feito (Boletim
de Programação, O rei do gado, p. 14).

O Companheiro de Jornada, Luiz Fernando Carvalho, e a Representação do


Popular em Renascer
Luiz Fernando Carvalho inicia sua trajetória na televisão em
1984, com Helena, na TV Manchete. Luiz Fernando é um dos
representantes da nova geração de diretores, que segundo
Avancini (citado por Ortiz e Ramos, 1989, p. 175) faria parte
de uma “geração de TV” ligada nas possibilidades expressivas
do meio, consolidada ao final dos anos 70. Essa geração, vol-
tada para o aprimoramento da linguagem televisiva e de suas
programações particulares, em especial a teledramaturgia (te-
lenovelas, minisséries, casos especiais, seriados como Arma-
ção ilimitada e comédias), trouxe para a televisão a possibili-
dade de uma “TV de autor”, ou seja, de efetivas marcas de
autoria na direção de telenovelas.
Ramos e Ortiz (p. 150), em meados dos anos 80, desconfi-
avam da existência dessas marcas. De acordo com eles, “o papel
da direção se caracterizava mais pela sua função que seu con-
teúdo. O importante era que o trabalho fosse realizado da for-
ma mais adequada possível, sem que se levasse muito em con-
ta as idiossincrasias ou as inclinações estéticas das pessoas
envolvidas”. Mais do que isso, durante a exibição de uma tele-
novela ocorriam freqüentes trocas dos diretores decorrentes
da “demanda interna da empresa”, supondo que assim uma
“história, do início até o final, contaria com dois a quatro des-
tes profissionais”. Concluem: como era difícil procurar uma
relação mais íntima entre a parte e o todo, o trabalho de dire-
ção, contrariamente ao que ocorria no cinema e no teatro,
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 213

desfrutava de um anonimato relativo quando era comparado


com o prestígio do autor e dos atores.
Não se pode desconsiderar que a consolidação de uma
linha de trabalho voltada para a especificidade da expressão
audiovisual da telenovela tem sido um importante desafio no
campo da telenovela. Eva Wilma (Mesa-redonda, ECA/USP,
1998), apresenta uma interessante metáfora para pensar a
importância do trabalho da direção: existe uma relação mui-
to particular entre o escritor e o diretor, ele escreve amorosa-
mente uma partitura, os atores atuam como instrumentos e o
diretor porta-se enquanto um maestro. Em geral, o diretor-
geral, o grande maestro, constitui a equipe que se responsabi-
liza pela continuidade da telenovela, pela linha expressiva pró-
pria que se impõe nos 10 a 20 primeiros capítulos. Eva Wilma
chama a atenção para a importância desses primeiros capítu-
los, pois eles têm sido, de fato, dirigidos por um único diretor.
Isso levaria a um dos principais problemas enfrentados hoje
na direção: os maestros seriam muitos e estariam tendo mui-
ta dificuldade em articular e manter a unidade expressiva,
principalmente, porque o desafio da unidade e da integração
da equipe não têm sido pequenos frente ao caráter fabril e
acelerado das hiperproduções associadas a uma complexida-
de tecnológica crescente.
Na história do horário das 20:00h da Globo, desde os anos
70, Daniel Filho e Walter Avancini foram diretores que busca-
ram garantir, apesar das condições adversas, a construção
dessa linha de trabalho que defendia o maior controle de um
processo que favorecesse a qualidade estética da telenovela e
o maior reconhecimento autoral dos diretores-gerais. Daniel
Filho, por exemplo, manteve uma regularidade de trabalho
com Janete Clair (Xexéo, 1996), e foi, enquanto diretor do
núcleo de telenovelas da TV Globo, um dos responsáveis pela
formação de uma equipe de produção e de diretores que mar-
caram autoralmente e esteticamente as telenovelas desse ho-
rário dos anos 80.
Não se pode refutar o trabalho estafante e pouco avesso
às condições ideais da produção artística, nem mesmo as con-
dições fabris, industriais a que estes realizadores se subme-
214 Telenovela e Representação Social

tem. Ortiz e Ramos (p. 156) consideram que “a criatividade


mobilizada para a criação da telenovela esbarra necessaria-
mente na forma já padronizada do produto, que limita as ino-
vações, e nos imperativos econômicos e industriais que o ca-
racterizam”.
As práticas desses realizadores, entretanto, apontam tam-
bém o movimento que realizam, dentro deste contexto ad-
verso, para se reconhecerem enquanto artistas. O caso Daniel
Filho soma-se ao depoimento de Florisbal (1994). Esse últi-
mo, ao comentar o papel criativo e inovador dos realizado-
res, deixa claro que a própria empresa precisa também
viabilizar a existência desses canais de reconhecimento das
marcas e estilos autorais, já que esse fenômeno alimenta a
ânsia das empresas e do público de manterem acesa a ten-
são necessária entre as novidades e as fórmulas repetitivas
geradoras do sucesso.
É urgente, portanto, rever o significado da afirmação de
Ortiz e Ramos: os realizadores de telenovelas tenderiam ao
isolamento, sem a capacidade de se construírem enquanto
verdadeiros artistas (já que não estariam habilitados a produ-
zir o novo), sendo peças de uma grande engrenagem, onde
estariam ali para atender às demandas da empresa.
O conteúdo desta afirmação remete, antes de mais nada,
às disputas no campo da telenovela referentes ao papel dos
realizadores diante dessa fábrica de telenovelas que tende à
imposição de uma série de regras e formas de organização do
trabalho “lesivas” ao ato criador. Proposição que conduz ao
levantamento das posições que os diretores têm tomado dian-
te da questão da dimensão artística do seu trabalho.
O exame dos depoimentos dos diretores gerais, assim como
de escritores e atores sobre o trabalho de direção, leva a crer
que um dos pontos mais destacados, responsável pela distin-
ção e reconhecimento dos diretores, tem sido a sua capacida-
de de instituir os elos de comunicação dentro da equipe, isto
é, o diretor-geral mais integrado à sua equipe de direção, aos
escritores, aos atores e assim por diante, refletiria uma produ-
ção respeitosa e fomentadora do ethos do artista que se pensa
autor e criador.
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 215

Luiz Fernando Carvalho tem sido considerado um dos


importantes representantes dessa tendência, claramente ex-
posta em sua forma de descrever o próprio trabalho:
a novela é um processo muito louco, é muita coisa que
se tem para fazer por dia. Você testa rápido e vê logo o
resultado e diz: Ah! Não é isso, não pode ser assim. Isso
é só forma, só enfeite. Desde Helena até Renascer, eu
fico tentando me encontrar, pesquisar essa tentativa de
contar uma estória de uma forma humana, que é essa
idéia da “morada do Ser”, a dificuldade que existe nisso
é imensa (...). A Globo tem um processo industrial que
é escravizante, absurdamente pesado para qualquer ten-
tativa de elaboração. Eu tentei aproximar-me dessa pro-
posta (da “linguagem morada do Ser”), principalmen-
te, por meio da formação de uma equipe. Acho impor-
tantíssimo isso. Você não faz nada sozinho, depende de
muito trabalho, muita pesquisa, muito conceito, que de
certa forma não existe em televisão, não existe uma pre-
paração saudável de um projeto, você geralmente tem
que botar no ar daqui a um mês... tem 80 personagens,
100 cenários, quer dizer, um desafio sobre humano. Tentei
zerar o que seria uma preparação de qualquer projeto.
O que se faz?... primeiro estrutura o conceito, o que se
quer sobre cada personagem, sobre cada figurino, luz
do personagem, câmera do personagem, enfim, tentar
detalhar ao máximo. E isso foi feito em Renascer nas
reuniões de conceito, com toda a equipe. Nessas reuni-
ões foi-se esmiuçando o trabalho de Benedito, para ten-
tar torná-lo o mais crível possível em termos de ficção,
ou seja, o crível possível em ficção para mim é criar
uma sintonia direta com quem está assistindo (Semi-
nário da Cândido Mendes, 1994).
Uma preocupação com a equipe que estaria desenvolven-
do um “conceito criativo,”29 possível apenas quando os reali-
29 Segundo Luiz Fernando Carvalho, “a única saída para conviver com a visão comer-
cial de um produto como a telenovela é a equipe. A formação de uma equipe de
produção que esteja totalmente direcionada para um objetivo novo, um exercício
216 Telenovela e Representação Social

zadores fossem ‘autores’, capazes de criar renovando. Nova-


mente, tem-se, assim como em Barbosa, uma defesa da auto-
nomia de criação diante da emissora30 associada por um lado
à habilidade de negociar com a empresa, já que se tem clareza
da necessidade de atender seus interesses econômicos, e por
outro, de ter o poder de ‘entrar e sair’ quando a autonomia
básica de criação fosse negada. Carvalho afirma:
Não dirijo para a Globo, mas para quem assiste e
para mim. Se a Globo gosta, me conserva lá. No iní-
cio, houve algumas dúvidas quanto às novidades que
Renascer propunha. Mas foram indagações normais
de uma grande empresa produtora. Questionaram
elenco, abordagem, fotografia...tive que provar que
era possível realimentar a expectativa do público com
um elenco novo, uma luz nova, um olhar novo (TV
Folha, 4.4.1993).
Sobre os representantes da emissora, diz:
Não enfrentei barreiras na Globo para chegar ao ho-
rário nobre frente a minha forma de ver a TV. O Boni
(vice-presidente de operações da Rede Globo) me
pediu só uma coisa: profundidade, sem ser intelectua-
lizado demais (TV Folha, 4.4.1993). Durante toda a
novela Renascer contei com o apoio do Mário Lúcio
Vaz, outro mestre. Ele está aberto para ouvir seu
ponto de vista sobre qualquer tema ligado à novela.

verdadeiro. Mauro Mendonça Filho, Emílio di Biase e Carlos Araújo são co-diretores
sensíveis, sem falar de toda a equipe que lutou junto comigo para que o conceito
original da novela não se desgastasse tanto. Não fiz nada sozinho” (Revista da TV –
Jornal do Brasil, 13.11.1993).
30 “Eu trabalho na TV Globo. Tenho orgulho de trabalhar na TV Globo porque acho
que...não dá prá falar mal do lado de fora. Tem que ir lá e chacoalhar. Se você tem a
oportunidade de gravar uma cena, faça-a da forma que você acredita. Se você tem
que escalar, vá prá ‘pqp’ do interior mineiro e ache o Jackson Antunes. E tem que lutar
pelo nome do cara, pois vão te dizer que fulano de tal vende mais revista. O retorno vai
ser muito maior se o personagem for identificado com o ator. Tenho 34 anos, mas não
sou da nova geração. Vocês são os diretores e atrizes que mexerão com o que deve ser
feito” (Terminou assim sua fala no Seminário sobre televisão-ECO/UFRJ, 24.10.1994,
sendo imediatamente ovacionado pelos alunos de comunicação da UFRJ/RJ).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 217

A partir daí, poucas foram as ocasiões onde houve


vetos significativos. Houve bom senso (Revista da
TV, Jornal do Brasil, 13.11.1993).
Carvalho conta ainda:
sinceramente, levei muitas p.... Os conceitos que de-
fendo, tive que bancá-los. Eu jamais tive a preocu-
pação de inovar nada, muito pelo contrário, acho
isso antigo. Mas existe uma resistência ao mistério
mesmo, eles morrem de medo pois têm muito dinhei-
ro em jogo. A nossa sorte é que deu Ibope, porque
senão eu estava fora já no segundo capítulo. Existi-
ram pressões, mas as pessoas estão receptivas às mu-
danças, mas estão muito inseguras, é muito dinhei-
ro em jogo e não é fácil. Eu até entendo esse medo,
sem dúvida nenhuma eu ficaria é com medo mesmo
se eu estivesse no lugar deles...” (Seminário da Cân-
dido Mendes, 1994).
Uma outra importante característica demandada pelos re-
presentantes dessa tendência tem sido a importância do dire-
tor para desenvolver formas de expressão próprias para o meio
televisivo e para a telenovela que sejam fruto da incorporação
adequada de outro meio expressivo, como o cinema. Incorpo-
rações que devem preservar e desenvolver a particularidade
da televisão e dos recursos tecnológicos que lhes são próprios.
A preocupação dos diretores com a construção de uma
linguagem própria da telenovela, também, traduz um dos te-
mas centrais do campo presentes nas disputas em torno de
critérios de consagração e reconhecimento.
A televisão trouxe a possibilidade de se debruçar sobre
as obras audiovisuais. Mas o que seria essa linguagem
audiovisual da televisão? E as telenovelas, deveriam trazer
alguma particularidade? Nos anos 50, antes portanto do
advento do videotaipe, os realizadores sentiam-se com pou-
cas possibilidades de ação, mas o entusiasmo não era pe-
queno. Parecia estar em andamento um espetáculo que fun-
dia a efervescência cultural do período, que exacerbava o
novo e o moderno, com a energia esperançosa e quixotesca
218 Telenovela e Representação Social

da faixa etária da turma que ingressava nessa experiência.


A juventude criando a televisão que almejava um meio que
não fosse apenas uma mistura das linguagens dos outros
suportes que a antecediam, pois se desejava algo novo, com
a cara do Brasil e que pudesse ser motivo de orgulho deles
próprios enquanto artistas e brasileiros (Klagsbrunn e
Rezende, 1991).
No final dos anos 50 já estava instalada uma interessante
diferença entre os escritores e diretores (pois à época, muitos
deles acumulavam essas funções) quanto ao valor da preocu-
pação estética na televisão. Os realizadores que trabalhavam
nas emissoras do Rio concordavam com Péricles Leal que di-
zia haver um modo diverso de pensar a linguagem entre o
“Rio e São Paulo”. Os paulistas teriam uma forte preocupação
estética e sonhavam em fazer uma TV auto-suficiente, com
sua própria linguagem. No Rio a TV era encarada mais como
veículo que difundia teatro, música e tantas outras atividades
artísticas (p. 44). Herval Rossano concordou com Péricles e
dizia ser excessiva a preocupação estética dos paulistas pois
tornava-a menos dinâmica (podiam levar até três horas para
dizer “eu te amo”). Mas os espaços da experimentação estéti-
ca existiram em ambos locais: a “TV de Vanguarda” em São
Paulo e o “Câmera Um”, no Rio31.
Essa diferença sugere a permanente tensão entre os gru-
pos que defendem uma televisão mais voltada para resultados
comerciais, sem grandes preocupações estéticas, e um outro
que buscava na televisão uma possibilidade de aliar suas de-
mandas econômicas com o desenvolvimento de uma lingua-
gem audiovisual própria, inovadora e de qualidade.
Tal tensão esteve presente ao longo das fases do campo,
tendo sido a TV Globo um espaço privilegiado para o seu de-

31 Jacy Campos, depois de uma breve experiência de formação nos EUA, volta com a
novidade: usar só uma câmera em movimento, ao invés de três. Mudança importante
em termos de linguagem. Criou o “Camera Um”, trabalhando com teleteatro. Depois
ele foi saindo do estúdio, chegando às primeiras externas. Filmava em circos quando
a história assim o exigia, por exemplo. “Câmera Um” deixaria sua marca na busca de
uma linguagem própria para a televisão, inovando no tratamento cênico, brincando
com o telespectador ao lidar com a câmera e os seus limites, uma câmera que, muitas
vezes, narrava sem cortes (Klagsbrunn e Rezende, 1991, p. 43).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 219

senvolvimento32. Benedito Ruy Barbosa tem sido um impor-


tante defensor dessas inovações estéticas responsáveis pela lin-
guagem própria da telenovela, sendo o escritor das obras que
foram consideradas marcos renovadores da estética do gêne-
ro nos anos 90: Pantanal e Renascer33. Luiz Fernando Carva-
lho, um dos mais expressivos representantes contemporâneos
dessa tendência autoral da direção de telenovela, fez de Re-
nascer o seu sucesso mais exemplar. Experiência que mostrou
um novo patamar na história da telenovela: o cinema não
seria mais a fonte dos critérios de avaliação e reconhecimento
estético desse gênero, eles já seriam encontrados na sua pró-
pria história audiovisual.
Nos depoimentos e entrevistas de Luiz Fernando Carvalho
observa-se a permanente comparação da televisão com o ci-
nema, no sentido de mostrar as diferenças e de exigir por par-
te da crítica que deixe de avaliar a televisão pelo cinema34.
Nessa medida, ele defende também um olhar sobre a própria
história da televisão e da telenovela que já vem construindo a
sua linguagem e os seus próprios sistemas de avaliação, dis-
tinção e reconhecimento35.

32 Novas pesquisas são necessárias para examinar os aspectos que poderiam ser
aferidos a partir desse debate para se pensar a história das formas de expressão
audiovisuais das telenovelas e as relações ali estabelecidas com os critérios de reco-
nhecimento e consagração tanto do gênero quanto dos realizadores.
33 Renascer foi considerada a “novela que deixa nova marca na televisão brasileira”
Um dos grandes responsáveis é o diretor Luiz Fernando Carvalho, que acrescentou ao
esquema industrial um estilo que intervém criativamente no texto, criando um produ-
to de alta qualidade. Os primeiros quatro capítulos de Renascer foram considerados
os melhores da TV Brasileira (Revista da TV, Jornal do Brasil,13.11.1993).
34 O jornalista Hugo Sukman pergunta a Carvalho: “por que se diz que quando a TV
tem qualidade é cinematográfica e, quando é ruim é TV mesmo?” Ele responde: “há
uma tendência geral em diminuir a televisão e sou completamente contra isso. As
pessoas costumam fazer a comparação: é cinema, é bom, mesmo que não seja; é
televisão, é ruim, mesmo que seja bom. A narrativa cinematográfica é totalmente
diferente da televisão, não lida com tantos diálogos, tantos planos fechados” (Jornal
do Brasil, cad. B, 12.5.1995).
35 Interessante a fala em que distingue sua obra da de Monjardim, o diretor conside-
rado pela crítica como um inovador estético nas telenovelas por intermédio de Panta-
nal. Marcia Penna Firme pergunta se Pantanal, que estreou uma forma anticonvencional
de fazer TV, influenciou Renascer. Luiz Fernando responde: “Acho que Pantanal, nos
seus melhores capítulos, imprimiu uma estética contemplativa. Renascer, em seus
220 Telenovela e Representação Social

as linguagens da TV e do cinema se mesclam atualmen-


te. Uma ajudando a outra na narrativa. Incomoda ver,
seja no cinema ou na TV, uma linguagem que esteja
extremamente mecanizada, levada ao máximo da cons-
trução pelo ponto de vista da indústria. Penso ser da
responsabilidade de uma pessoa que cria, que dirige,
tentar lapidar esses excessos da industrialização, seja
em cinema ou TV, para que o ser humano volte a apa-
recer como personagem. Os cortes, por exemplo, têm
que ter função. E a linguagem da televisão, por uma
questão de acúmulo de produtividade acabou gerando
um fantasma que engole a própria linguagem. Um ex-
cesso de zoom, de corte, de tudo. Porque a história que
a gente conta é a de um ser humano, não é a do corte,
da produtividade. Se o personagem pede uma
interiorização não posso ficar picotando takes. A fu-
são da linguagem da TV com a do cinema é natural.
Existe um certo consenso, principalmente na geração
mais nova, de que esse excesso da linguagem da TV
gerou um certo torpor. E que o cinema é na verdade o
elemento que contém os princípios básicos geradores
da linguagem televisiva. Nada mais natural, então, que
se faça o caminho de volta e comece de novo (Seminá-
rio sobre televisão – ECO/UFRJ, 25.10.1994).
O que essa estética desenvolvida por Carvalho teria a dizer
sobre a representação do popular em Renascer? Uma resposta
possível de Luiz Fernando seria: quero que os brasileiros se ve-
jam na tela da TV36. Renascer buscou, por exemplo, enfatizar as
difíceis condições de vida e trabalho da região do cacau.
melhores momentos, trabalhou sobre a fábula, sobre a precariedade da região do
cacau. Dois enfoques diferentes. O que elas têm em comum é o objetivo de desmassificar
a produção televisiva” (Revista da TV – Jornal do Brasil, 13.11.1993).
36 Carvalho comenta: “queremos a cumplicidade de quem assiste. É preciso que
alguma parte do telespectador esteja comprometida com o nosso trabalho. Pode ser a
cabeça ou o coração. Hoje é fácil ligar a TV e ver um monte de jovens bronzeados
falando em US$ 300 mil. Isso deve gerar uma sensação enorme de impotência no
brasileiro. A maioria sequer sabe converter dólares em cruzeiros. A força interior das
pessoas se aniquila quando elas vêem que não pertencem àquele mundo dos caixas
eletrônicos. Quero que os brasileiros se vejam na tela da TV” (TV Folha, 4.4.1993).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 221

Preocupava-me em Renascer fazer com que ela fosse


uma novela brasileira, dentro do possível, quando
se fala de uma televisão de caráter industrial, onde
muita coisa foge das mãos. A gente queria que fosse
brasileiro na recuperação dos tipos, da cor, da mise-
en-scène (Seminário da Cândido Mendes, 1994).
Perspectiva que levou Carvalho a buscar nos pintores uma
tradução dessa idéia. Caribé, por exemplo, inspirou a tipologia
do cenário, em especial o prostíbulo de Jacutinga. O traba-
lho fotográfico de Maurin Biliard sobre as margens do
Capibaribe, inspirou a localização do personagem Tião Gali-
nha. Diz Carvalho:
O Benedito não tinha escrito o personagem enquan-
to catador de caranguejo. Mas eu era apaixonado
pelo “cão sem plumas”, um poema do João Cabral.
Juntei essas duas coisas e propus ao Benedito pôr o
Tião no mangue. O trabalho da Joaninha e do Tião
foram tiradas dessa idéia, da lama (Seminário da
Cândido Mendes, 1994).37
O trabalho da figurinista, Bete Filipeck, foi também um
importante exemplo citado. Ela fez um trabalho muito curio-
so na região, comenta Carvalho:
adquiriu roupas das pessoas locais, da própria re-
gião e vestia os atores com as roupas. Buscava a
vivência, que as roupas contassem uma história, pois
tudo que se vestisse, que tivesse cercando o persona-
gem deveria estar contando uma história. A gente
queria que cada personagem tivesse um figurino es-
pecífico e ele teria que ter esse figurino vivenciado
por ele, costurado por ele...e isso é difícil você conse-
guir, produzir isso em termos de televisão, de cons-
truir isso objetivamente. Comprava-se muitas rou-
pas e chapéus, ia-se nas locações e trocava com as

37 No Seminário promovido pela Faculdade Cândido Mendes (RJ), em 1994, Carva-


lho mostrou as fotos inspiradoras, dizendo:“essa é uma catadora de carangueijo,
maravilhosa, fumando cachimbo. Isso é real. O real é mais espesso”.
222 Telenovela e Representação Social

pessoas. O curioso é que a maioria das pessoas não


trocava. “Moço, por favor, tá aqui um chapéu novi-
nho...” Ele respondia: “meu chapéu eu não troco por
esse aí não senhor”. E não adiantava insistir. Às ve-
zes era um chapéu costurado a mão misturado com
pedaços de couro de bola de futebol, que se pusesse
na Bienal ganhava prêmio (Seminário da Cândido
Mendes, 1994).
Walter Carvalho38, diretor de fotografia, foi um colabora-
dor essencial. Os comentários que teceu neste Seminário so-
bre o projeto de iluminação da telenovela ilustram também a
estética proposta pela direção-geral para a representação do
popular. Ele dizia:
existe um certo descuido em relação as cenas de ex-
terna em vídeo, porque são tratadas de uma forma
muito jornalística. Ou seja, o cara abre a câmera e
grava, não há uma preparação para aquilo que esta
sendo gravado, não se elabora a imagem, muito
menos se ilumina, apenas ‘roda e grava isso aí’. Eu
queria algo diferente, algo que não fosse jornalismo,
mas ficção, que a luz contasse uma história, que a
luz emocionasse. Usou-se muito a luz para marcar
o suor, por exemplo, por ser ele elemento que está
contido em Renascer o tempo todo, na região, no
texto, no labor, representando a função social do in-
divíduo, por isso, a contraluz tinha que estar lá. (Se-
minário da Cândido Mendes, 1994).
Luiz Fernando Carvalho lembra a delicada e difícil ilumi-
nação da barcaça:
era importante não pelo belo em si. Era dramatica-
mente importante que fosse mostrado o calor, a pre-

38 Walter Carvalho foi incisivo defensor das diferenças entre as formas de expressão
cinematográficas e televisivas, ilustrando essas diferenças a partir das cores e tons que
se pode alcançar em um e outro meio. Não cansava de reclamar da forma equivocada
de elogiar a televisão a partir da expressão “igual ao cinema” (Seminário na Cândido
Mendes, 1994).
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 223

cariedade quase que medieval do trabalho na cultu-


ra do cacau hoje em dia (Seminário da Cândido
Mendes, 1994).
O ponto de vista de onde Luiz Fernando Carvalho partiu
para formular a representação do popular mostra de fato uma
sintonia com Benedito Ruy Barbosa, pois ambos se sentiam
implicados num projeto social mais amplo que exigia que se
fizesse da telenovela um recurso reflexivo que ajudasse os su-
jeitos telespectadores a enfrentarem um cotidiano em perma-
nente mudança geradora de angústias e medos. Nesse mun-
do em mudanças, a pobreza, as experiências de dominação e
submissão, os conflitos familiares e as dificuldades da vida
amorosa precisavam ser tratados de forma a tocar ‘fundo’ na
realidade de cada um, sem mascarar a realidade. Fizeram um
esforço de não ofuscar os seus traços mais fundamentais. No
caso da representação do popular, buscaram acentuar as tra-
gédias advindas da falta do trabalho ou dos problemas que a
sua existência geravam. Estiveram atentos quanto às impli-
cações da falta de dinheiro, de educação escolar, de reconhe-
cimento social, de afeto e de justiça.
A expressão da falta não foi a dimensão privilegiada da
representação do popular. Eles voltaram-se para as muitas
maneiras de trazer para a telinha os modos de vida e as mui-
tas maneiras de pensá-los – desde a menina bonita, que sob
o jugo do pai e a impotência da mãe pôde fazer da janelinha
de sua casa uma porta para outros mundos (como foi o caso
da personagem Maria Santa), até as maneiras de exibirem
as lavadeiras que cantavam enquanto trabalhavam, o ritual
da morte, as festas, as crenças e as ações corajosas, ingênu-
as, astuciosas e dignas presentes em Damião, Joaninha,
Jacutinga, Tião Galinha, Morena, Teca e tantos outros per-
sonagens. Uma representação do popular em uma realidade
que supunha as relações de contradição, antagonismo, leal-
dade e respeito com os que representavam o poder, a ordem,
a dominação.
Realizadores que se sabiam especialistas no processo de
transformar a realidade em ficção e a ficção em um novo ca-
minho de acesso a realidade, apoiaram-se na convicção de
224 Telenovela e Representação Social

que, por serem criadores, podiam dizer o que pensavam – ape-


sar das limitações do texto, do sistema de produção e de tan-
tas outras restrições. E, ao fazê-lo, instituíram um duplo mo-
vimento que, ao mesmo tempo, reconhecia e anunciava a
importância da representação do popular como apoio às uto-
pias democráticas e emancipadoras, reconhecia e anunciava
a defesa permanente da autonomia e da criação dos realiza-
dores submetidos ao jugo do mercado.
E aqui se toca numa importante hipótese desta investiga-
ção: aquela que estabelece relações entre as representações
do popular na telenovela e as posições do realizador no cam-
po e no espaço social. A hipótese levantada sugeria que a ori-
gem social dos realizadores seria um importante indicador
para se pensar a posição no campo, o habitus e as tomadas de
posição frente às representações sociais do popular.
A origem social pequeno-burguesa dos novos intermediá-
rios culturais poderia ajudar a examinar a postura paradoxal
que desenvolvem diante do popular. Preceitos marcados pela
ambigüidade que caracteriza essa posição. Por um lado, se
teria a aversão e o medo daqueles que representavam um des-
tino e uma origem. Princípio e fim contra os quais lutam para
se distanciar e se diferenciar. Por outro, o fascínio e a sedução,
estimuladores da transgressão e da carnavalização.
Das tantas características levantadas, destaca-se aquela que
conduziu o olhar analítico para a tendência desses novos inter-
mediários culturais de confrontarem as distinções e hierarqui-
as simbólicas da alta cultura e das culturas populares. O que se
indica é a relação entre essa perspectiva e os movimentos dos
realizadores que buscavam construir critérios artísticos para o
reconhecimento e a distinção das telenovelas e de seus autores.
Cunhou-se termos como arte popular (Dias Gomes) e defen-
deu-se com insistência as particularidades estéticas e a quali-
dade das telenovelas. Luiz Fernando Carvalho insistia, por exem-
plo, que quadros do Caribé e Matisse podiam ser inspiradores
de telenovelas. Assim como Barbosa buscava trazer para o gê-
nero o maior número de informações “fidedignas” sobre os te-
mas tratados, fazendo uma alusão ao cuidado de pesquisa que
as obras realistas mais cultas e de melhor qualidade exigem.
Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do Popular 225

A análise da representação do popular em Renascer e das


trajetórias de Barbosa e Carvalho mostram, ainda, que as te-
lenovelas e seus realizadores estão imersos num projeto mais
amplo de difusão do erudito, de valorização do popular e de
estimulação de práticas emancipadoras. Posturas implicadas
no incentivo ao desenvolvimento de “habitus flexíveis”
alimentadores da reflexividade, quer dizer, da construção de
disposições sociais que permitam lidar com o paradoxo e o
provisório.
Um outro ponto que também está associado à posição
paradoxal dos realizadores refere-se à tendência de se cons-
truir representações do popular, ora voltadas para a ênfase
nos aspectos negativos do popular – o combate a vulgaridade
e a ignorância, por exemplo –, ora voltadas para uma ênfase
nos aspectos positivos do popular. Tendência que deveria ser
pensada a partir da posição dos realizadores no campo e no
espaço social. As histórias de consagração revelariam, por
exemplo, como a representação do popular passaria de um
estigma – e por isso condenável e passível de superação – para
um emblema de orgulho e reconhecimento que traduzisse a
conquista realizada. Nesse caso, a exaltação do povo
enalteceria também o sucesso dos realizadores diante do du-
plo corte que realizaram: a distinção do popular (também vis-
to como não especialista) e a distinção diante de seus pares –
realizadores.
O que se pôde observar, no estudo da trajetória de Barbo-
sa e de Carvalho, foi a presença da exaltação e das dimensões
positivas do popular associadas à crítica aos seus aspectos
negativos – a ingenuidade, a ignorância e a submissão. Ca-
racterísticas que foram usadas pelos próprios realizadores para
narrarem o reconhecimento que eles alcançaram. Enfatizaram
a autonomia conquistada, a qualidade do trabalho que de-
senvolveram enquanto especialistas e a não submissão ao
mercado e à emissora. Exaltação mesclada com a declaração
de proximidade com o popular, seja na experiência de vida,
seja por princípios políticos, morais e estéticos.
Tais ponderações articulam-se com a última hipótese
norteadora desta investigação. Ela diz que quanto mais frágil
226 Telenovela e Representação Social

a autonomia do campo, maior a presença de realizadores de-


fensores do povo, imbuídos de sentimento que os autorizam a
falar para o povo e pelo povo. Quanto maior o envolvimento
nas lutas internas de reconhecimento e consagração do cam-
po, maior seria a tendência de utilizarem o recurso que os
transforma em empresários morais do povo, seja para defendê-
lo, seja para apoiá-lo nas lutas contra a pobreza, a injustiça, a
ignorância.
As relações entre a trajetória de Barbosa, Carvalho e o
popular representado em Renascer evidenciaram que ambos –
participantes de lutas internas por reconhecimento e consa-
gração de um campo de autonomia assaz relativa – podem
ser considerados empresários morais do popular, profissionais
peritos da produção simbólica. Profissionais cientes do papel
das representações que significam estratégias de luta em seu
campo de disputas e possibilidades de repercussão positiva ou
negativa nos indivíduos, grupos ou classes representados.
Tem-se clareza que não foi possível aprofundar as parti-
cularidades provenientes das relações entre a posição que ocu-
pavam no campo e no espaço social e as representações do
popular que elaboraram. Para tanto, faz-se necessário estu-
dos comparativos com as trajetórias de outros realizadores,
assim como a análise mais acurada de suas obras. Espera-se,
no entanto, que esta investigação tenha contribuído para um
debate sobre a pertinência desse caminho analítico, promo-
vendo novas indagações e descobertas.
227

O Popular em Cena na Telenovela Renascer

P ara analisar Renascer, é importante situá-la na história das


telenovelas do “horário das oito” da TV Globo (os chamados
“novelões dos ovos de ouro”1). Uma breve localização para
melhor configurar o que ela representava no movimento das
regularidades e inovações.
No processo de fabricação da telenovela, um dos primei-
ros momentos da produção é a seleção de um produto que
combine promessas e expectativas de novidades, dentro de um
modelo já existente e consagrado2 (Eco, 1991).
A análise da equipe técnica, dos 24 “novelões” produzidos
desde 1980, expressava esta tensão entre o modelo e a novida-
de. Um aspecto que sobressaiu foi a regularidade e perma-
nência de determinados realizadores que significavam a ex-
perimentação e a novidade. Eles eram em menor número e
alternavam com aqueles mais voltados para as fórmulas con-
sagradas. Os autores mais freqüentes e suas obras mais pró-
ximas dos modelos esperados não deixavam de buscar tam-
bém a possibilidade do exercício criativo e inovador. O que
ficou claro, ao analisar o material, foi que o aspecto inovador
não era, e não podia ser, a tônica da elaboração dessas obras.
Ao longo desses anos 80, observou-se a preocupação em
construir uma linha de trabalho “própria” da direção geral
das telenovelas desse horário. Na década anterior, Daniel filho
era o diretor geral mais freqüente, marcando um modo de
dirigir. Na década seguinte, Paulo Ubiratan, Roberto Talma e
Dênis Carvalho, foram, também, os diretores gerais mais pre-
1 Termo sugerido por Kehl (1979).
2 Renascer, por exemplo, para ser exibida precisou esperar que Pedra sobre pedra e
Tereza Batista (minissérie), ambas ambientadas na Bahia, saíssem da memória recen-
te dos telespectadores (Jornal do Brasil, 6/3/93).
228 Telenovela e Representação Social

sentes e imprimiram os seus modos de direção3. Os dois pri-


meiros fizeram uma dobradinha até Partido alto (1984), sen-
do que das nove telenovelas dirigidas neste período, apenas a
entrada de Daniel Filho para dirigir Brilhante (1981) alterou
essa regularidade. Dênis Carvalho entrou em cena com Corpo
a corpo (1984) de Gilberto Braga (marcando a afinada rela-
ção entre ambos). Depois, de 1984 até 1993, ele segue alter-
nando apenas com Paulo Ubiratan.
A partir de 1984, a Globo apresentou um ritmo mais in-
tenso na absorção de novos diretores no “horário das 20:00”,
rompendo a predominância dos diretores anteriores e permi-
tindo a entrada mais freqüente dos “novos”4. De 1984 a 1993,
Dênis Carvalho dirigiu quatro telenovelas, Ubiratan, cinco,
Roberto Talma, uma e as demais (em torno de quatro) foram
conduzidas pelos novos diretores. Destes, três deles vinham
desenvolvendo trabalhos na equipe de direção dos diretores
gerais já citados, e o quarto, Jorge Fernando, foi uma escolha
condicionada pelo autor, Sílvio de Abreu.
Aos novos, depois de um período anterior de trabalhos re-
conhecidos, era permitido um vôo solo na direção geral que
significava a possibilidade de um novo caminho, combinando
criatividade com consagração. Este foi o caso de Luiz Fernando
Carvalho. Depois de consagrado com Renascer, entrou na equipe
básica de diretores gerais, fazendo-se responsável por mais
uma telenovela desse horário. Foi o primeiro novato, depois
de Dênis Carvalho (10 anos antes), a ser cogitado para mais
de uma direção geral dos novelões.
O mesmo movimento – a tensão entre a novidade e a fór-
mula consagrada – estaria presente na área dos escritores. O
terceto de escritores mais presentes da década de 1970 atua-
ram nas sete primeiras telenovelas dos anos 80 – Janete Clair,
Lauro César Muniz e Manoel Carlos. Essa trinca foi alterada
em meados dos anos 80, surgindo uma nova variação entre
dois autores já consagrados na década anterior – Janete Clair

3 Essas considerações merecem uma análise mais rigorosa. É necessário investigar


melhor o que de fato significam esses ‘modos de dirigir’, considerando as regularida-
des e particularidades narrativas de cada um deles.
4 Novos em relação a posição de direção geral das telenovelas daquele horário.
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 229

e Manoel Carlos – e um novato no horário, que ganhou noto-


riedade com Dancing day’s: Gilberto Braga. Depois de 1983, o
falecimento de Janete Clair e a entrada em cena de um novo
escritor para o horário, Aguinaldo Silva, modificou novamen-
te essa regularidade, e uma alternância se estabeleceu até
1993. Nessa década, em 17 telenovelas, Gilberto Braga assi-
naria três e Aguinaldo Silva, cinco, sendo que em Vale tudo
trabalharam juntos.
O interessante é que estes escritores atravessaram o perí-
odo indicando uma permanência de estilos, que se alternava
com autores consagrados de outros horários – Cassiano Gabus
Mendes, Dias Gomes, Sílvio de Abreu, Benedito Ruy Barbosa e
Glória Perez – e com o autor mais freqüente da década anteri-
or, depois de Janete Clair: Lauro César Muniz5.
Renascer, escrita por Benedito Ruy Barbosa, com direção
geral de Luiz Fernando Carvalho, foi ao ar em março de 1993.
Na alternância entre as novidades e a fórmula de sucesso, ela
representava a novidade. Benedito Ruy Barbosa, um escritor
que, desde o surgimento do gênero, acumulava experiências
na arte de escrevê-las e sucessos consagradores. O trabalho
de maior repercussão anterior a Renascer foi Pantanal (TV
Manchete, 1990), que estimulou a competitividade com a TV
Globo, sendo capaz de ganhar, em alguns momentos, a dispu-
ta pela audiência. Disputa, desconhecida pela Globo nos anos
80, que viabilizou ao escritor, depois de mais de 20 anos de
telenovelas, a inauguração da sua primeira obra no ‘templo
dos novelões’.
Luiz Fernando Carvalho, bem mais jovem, mas já próxi-
mo dos 10 anos de trabalho na ficção televisiva, inaugurou a
posição da direção geral dos novelões depois da confirmada
habilidade para a inovação aliada ao sucesso expressa no tra-
balho de maior repercussão anterior a Renascer, a telenovela
rural Pedra sobre pedra (1992) de Aguinaldo Silva.

5 Na cenografia, a hegemonia de Raul Travassos e Mário Monteiro era evidente. Na


produção de arte destacaram-se Ana Maria Magalhães, Cristina Médicis, Luciana
Viggiani e Silvana Estrella; no figurino os nomes mais freqüentes foram Helena
Gastal, Marco Aurélio e Marília Carneiro.
230 Telenovela e Representação Social

Um outro aspecto extraído do exame das telenovelas an-


teriores a Renascer foi a existência de um eixo ordenador dos
temas tratados. Ao estudar os novelões dos anos 70, Kehl (1979)
indicou que havia um pano de fundo articulador das situa-
ções e temas explorados no gênero: a urbanização e a moder-
nização da sociedade. Um eixo que também esteve presente
no conjunto das 24 obras exibidas durante o período aqui es-
tudado – 1980 a 19936. Um olhar sobre os boletins de progra-
mação de cada uma delas, indicou que o enfoque espacial e
temático da maioria das histórias era urbano, como já apon-
tavam as pesquisas sobre telenovela (Mattelart, 1989; Ramos,
1986; Ortiz et al, 1989). Contudo, tanto o urbano quanto o
rural foram representados a partir de suas inter-relações. Em
geral, as tramas centrais enfocavam situações de mudança
(campo – cidade, pobreza – riqueza, dependência – indepen-
dência, tradicional – moderno) que repercutiam nos estilos
de vida dos personagens imersos em um cotidiano alterado
permanentemente pelo fenômeno da modernização7.
Depois de Gigantes (1979-80), foi apenas a partir de 1985
que os espaços rurais tornaram-se mais freqüentes, em Roque
santeiro, Salvador da pátria, Tieta, Pedra sobre pedra, Renascer,
com o privilégio do rural baiano-nordestino.
A predominância dos espaços urbanos, entretanto, não
implicou na ausência de situações e valores considerados ru-
rais, como o provincianismo, o conservadorismo, a subjuga-
ção feminina. E vice-versa, as novelas rurais trataram dos
conflitos com o moderno, com a cidade e com as mudanças
necessárias para o progresso econômico e moral.
As telenovelas trataram de temas contemporâneos vin-
culados à intensa urbanização e metropolização da socieda-

6 Eixo que já havia sido observado nos melodramas e romances-folhetins. Ver capítulo 2.
7 1980 é atravessado pelas telenovelas: Gigantes, Água viva, Coração alado. A primei-
ra se passa numa cidade do interior marcada pelos conflitos entre a industrialização
proposta pelas multinacionais e aquela proposta pelo capital nacional. Água viva,
que explora o urbano, como todas as telenovelas de Gilberto Braga, retoma astensões
urbano/rural, moderno/tradicional a partir dos conflitos entre os personagens que
vivem no coração do urbano – a zona sul carioca – e a sua periferia, o subúrbio.
Janete Clair, em Coração alado, usa o urbano para contar histórias sobre os migrantes,
suas trajetórias de sucesso e fracassos nas grandes cidades.
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 231

de brasileira. A ascensão social, um valor necessário para


garantir o êxito da modernização, teve como campo de ação
privilegiado o contexto urbano. Os protagonistas, na sua mai-
oria, representaram esta ascensão: Um passado de pobreza
e de marginalidade superado, seja pelo trabalho, pela inteli-
gência, pelo casamento, pela herança que desconhecia, seja
pelos caminhos menos nobres: a corrupção, o roubo, o cri-
me e a prostituição.
Protagonistas femininas eram freqüentes, representando
as mulheres no seu enfrentamento com os tempos modernos.
Abordou-se a dimensão da maternidade – a possibilidade his-
tórica de escolher ser mãe, sem preterir a sexualidade, a pro-
fissão – e as novas formas de gestão da família que decorriam
dessas mudanças. O trabalho foi uma dimensão constante na
vida das protagonistas que assumiam, na maioria das vezes,
posições de comando em empresas, fábricas, pequenos negó-
cios. A sexualidade, o casamento, as separações, os conflitos
amorosos enfatizavam o desafio proposto pelo desejo de rela-
ções mais igualitárias dessa nova mulher com os homens.
Os temas mais contemporâneos e conjunturais tiveram a
sua ressonância nessas telenovelas, sendo que as questões
políticas e ideológicas se tornaram mais claras a partir de
meados daquela década. Roque santeiro parece ser um marco
na retomada dessas questões – um certo ar de Nova Repúbli-
ca invadindo os novelões.
Roque santeiro retomou alegoricamente o domínio dos
chefes políticos, os que tinham a capacidade de fazer e desfa-
zer mitos sem romper com os clássicos mecanismos de domi-
nação que garantiam luxo, riqueza e poder. Roda de fogo tra-
tou a questão da corrupção no mundo empresarial e suas con-
seqüências para o País. A temática da impunidade, dos valo-
res que se deterioram, foi retomada em outros momentos,
como Vale tudo, Salvador da pátria, O dono do mundo. Em
Salvador da pátria tratou-se dos desafios do país para a esco-
lha do presidente da República depois de longos anos sob o
regime militar (Weber, 1990).
O comunismo, o anarquismo, as questões sindicais, as
raciais, o homossexualismo, a contravenção, também se fize-
232 Telenovela e Representação Social

ram presentes nas tramas, assim como a paranormalidade, o


misticismo, a religiosidade, as academias de ginástica, os
shopping centers, novas práticas médicas e religiosas. A famí-
lia foi um núcleo central e recorrente, com os seus conflitos
geracionais, as relações incestuosas (Sodré, 1991), os rituais
dos casamentos, dos nascimentos e das mortes.
No que se refere a representação do popular, os estudos
de Kehl (1979 e 1986) sobre as telenovelas dos anos 70 indi-
cam uma representação associada ao caráter pueril, infantil,
higienizado do povo, onde se enfatizava a rápida ascensão
social que as personagens pobres experimentavam para ma-
gicamente solucionarem os seus problemas. A análise de Nico
Vink (1989), sobre as desigualdades sociais nas telenovelas da
TV Globo dos anos 70-80, contrapôs-se a essas observações,
mostrando como os pesquisadores de telenovelas tendem a
uma análise de cunho reprodutivista que não permitia supe-
rar o seu estigma como obra alienada. Sem querer entrar no
mérito de suas afirmações, concorda-se com Vink quando ele
afirma que se deve ter cuidado com esse tipo de pressuposto,
já que outras leituras desse gênero ficcional podem mostrar
que o amor e o casamento não representam apenas mágicas
garantias da ascensão social dos pobres. Vink (p. 8) afirma
que a importância deste tema – ascensão social – não impli-
caria em uma mensagem central das telenovelas pautada pelo
amor como superador da desigualdade. Uma análise mais
cuidadosa revelaria, inclusive, que boa parte dos enredos e
finais de telenovelas não ofereceriam argumento para apoiar
essa tese. As telenovelas realmente apresentariam uma histó-
ria de Cinderela, mas isso não significaria a defesa da idéia de
que o rapaz pobre possa atingir a felicidade somente pelo amor,
pois as dificuldades advindas das posições sociais e das ori-
gens de classe não deixaram, em momento algum, de serem
enfatizadas.
Essa foi uma importante contribuição de Vink. A partir de
seus estudos pôde-se desenvolver melhor a hipótese de que a
ascensão social nas telenovelas não supõe apenas a magia do
amor e do casamento, mas também a união amorosa dos po-
bres com os ricos que magicamente os colocam numa nova e
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 233

melhor posição social. O amor teria muitos significados, sen-


do, várias vezes, mais do que uma solução, uma fonte inspi-
radora para que os pobres enfrentassem os problemas dispos-
tos pelo projeto de modernização, que por si só não garantia a
ascensão social. Esta devia ser conquistada, e as dificuldades
enfrentadas pelos personagens assim o mostravam, principal-
mente por meio do trabalho e da educação. Nesse último caso
vale enfatizar que a educação introduzia um outro tipo de
mudança, não menos importante, a de costumes – novas for-
mas de falar, vestir-se, comportar-se –, fundamentais para os
pobres que precisavam apreender estilos de vida que pudes-
sem conferir-lhes reconhecimento social.
Mais uma vez, a telenovela vista como um recurso reflexi-
vo que poderia agir como um “manual de urbanidade”
(Canclini, 1988:69): as informações necessárias para que as
classes populares possam entender e atuar corretamente nas
novas condições impostas pelo processo de modernização, com
vistas à superação do isolamento e da posição de subalternidade
e inferioridade a que estariam destinadas.
Não é preciso ser espectador assíduo de uma telenovela
para se dar conta de que os personagens, de fato, se debatem
na maior parte do tempo com problemas amorosos. Porém,
dar primazia ao amor sem associá-lo à ascensão social é per-
der de vista o segundo grande eixo temático desse gênero. O
amor articula-se aos processos de modernização das socieda-
des ocidentais capitalistas, constituintes do pano de fundo his-
tórico, social e político da ascensão e consolidação do que se
pode chamar de cultura hegemônica do ethos burguês, onde o
sentido da ascensão social é visto como um dos seus princi-
pais Leimotiv. O amor estaria centrado na intimidade e no fe-
minino, enquanto as peripécias pertinentes à ascensão social
explorariam com maior ênfase as dimensões do público e do
masculino. Ambos associados entre si em caráter de comple-
mentariedade. Esses atributos e essas características podem
variar em detalhes e importância dentro da narrativa, sem
contudo deixarem de estar lá.
Renascer foi, sem dúvida, um espaço de dramatização dessas
temáticas a partir de moldes já estabelecidos e consagrados pelo
234 Telenovela e Representação Social

gênero. Ocupou, todavia, o lugar das telenovelas que podiam


experimentar a novidade narrativa e estética. Foi, nessa medida,
a expressão de um dos raros momentos onde personagens po-
bres de forte impacto na história não apresentavam um desfecho
coroado com o happy end da ascensão social. Um personagem
como Tião Galinha, como se verá a seguir, representou o típico
fim dos homens que sem-trabalho e sem-terra têm encontrado
na sociedade brasileira: a angústia, o desengano e a morte. A
personagem Teca representou as dificuldades postas pelo cotidi-
ano de violência, pobreza e desamparo das crianças e adolescen-
tes que trabalham e moram nas ruas dos centros urbanos. Ca-
racterização que não omitiu os desafios a serem enfrentados para
a solução das questões que a história dessa personagem remete:
a rebeldia, a violência, o abandono e a falta de perspectiva.
Renascer contou com mais de 200 capítulos. Na primeira se-
mana apresentou-se a primeira fase da história do protagonista
da saga, o Coronel Inocêncio. Nas duas semanas seguintes, in-
troduziu-se a fase atual da vida do Coronel e dos personagens,
objeto de análise deste trabalho: Tião Galinha (o representante
da questão da terra) e Teca (a representante da questão social
que envolve os “meninos de rua” dos centros urbanos).
A seguir, será apresentado um resumo da história contada
em Renascer com o objetivo de mapear as principais relações so-
ciais configuradas, em especial aquelas que envolvem as trajetó-
rias dos personagens examinados com os representantes do po-
der e da riqueza social, os coronéis. Em seguida, será descrito o
primeiro capítulo com o objetivo de identificar as principais ca-
racterísticas dos modos de representar o popular na telenovela.
Feito isso, desenvolveremos a análise dos personagens exempla-
res das questões sociais em Renascer – Teca e Tião Galinha – a
partir da posição que ocupavam na trama, das principais situa-
ções que enfrentaram e do final que lhes foi destinado.

Renascer Coloca em Primeiro Plano o Poder, a Família e o Trabalho


Renascer narra a saga (Eco,1991) do Coronel José Inocêncio,
fazendeiro da região cacaueira da Bahia. Na primeira semana
de exibição, apresentou-se a primeira fase de sua trajetória: o
passado mítico da juventude. Encerrada essa fase, transporta-
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 235

se o telespectador para a maturidade do Coronel Inocêncio, o


tempo no qual se desenrolarão os novelos de uma trama fami-
liar e subjetiva e que será finalizado com a morte do persona-
gem no último capítulo. A morte o levará para os braços da
mulher sempre amada que morreu jovem, Maria Santa, assim
como favorecerá o perdão e o reencontro com o filho, João
Pedro, que será aquele que dará prosseguimento à história de
lutas do pai. A saga de José e Maria se faz prosseguir em João
Pedro, o apóstolo das mensagens anunciadas aos telespectado-
res pela ficção seriada mais consumida no ano de 1993.
O enredo desenvolve-se a partir de dois núcleos familiares
centrais que representam dois tipos de fazendeiros em perma-
nente confronto: um moderno e outro tradicional.
No início da trama, na fase jovem do protagonista, o
‘coronelzinho’, moderno e empreendedor, chega numa das
regiões que prometia riquezas e desafia a si mesmo conquistá-
las, oferecendo sua vida em troca do sucesso, dando como
garantia o seu facão8 fincado no pé do Jequitibá, fonte de
força e determinação. Vitorioso de várias batalhas, consolida
seu poderio ao comprar as terras de seu arquiinimigo, morto
numa emboscada que lhe deu a fama de matador. Em suas
batalhas, segue na companhia de dois escudeiros leais e cora-
josos, Deoclesiano e Jupará.
Inocêncio apaixona-se por Maria Santa, ‘desgraça’ a moça,
mas com ela se casa, salvando-a da pobreza e da prostituição.
Entrega-se a virgem esposa ao homem que ama, tendo com
ele quatro filhos homens. O mais novo, João Pedro carregará
consigo a morte oferecida de sua mãe (morre ao dar à luz). A
abnegação de seu ato transformará a vida do filho caçula,
que será perseguido pelo pai, que o culpará pela morte da
esposa.
Nasce, assim, um herói – vítima, João Pedro, que, embora
rico, vive como pobre, valorizando o trabalho e a tradição fa-
miliar e patrimonial construída pelo pai. Empenha-se na bus-
ca do reconhecimento do pai, seguindo seus passos em meio

8 Símbolo da saga familiar, pois para poder morrer em paz, o filho rejeitado deveria
desenterrá-lo e oferecê-lo ao pai, selando assim o perdão e a benção para o filho que
iniciaria ali um novo ciclo.
236 Telenovela e Representação Social

aos conflitos gerados pela relação de amor e ódio que os une.


Será o filho rejeitado, matuto e ignorante, que se diferenciará
dos demais irmãos, que foram separados do pai para estudar
e ‘virarem doutores’. Cada um deles, a seu modo, não saberá
converter o apoio financeiro do pai em uma história de vida
autônoma, plena de gratificações profissionais e pessoais. Ao
longo da trama, Inocêncio e os filhos se debaterão em torno
da seguinte questão: o que fazerem, pais e filhos, com suas
vidas diante de um expressivo patrimônio. Brigas em torno da
herança levam à divisão de suas terras e a novos rumos na
vida da família do Coronel.
Nessa fase da juventude de Inocêncio, o coronel tradicio-
nal Belarmino ‘malvadeza’, se vê às voltas com esse forasteiro,
e usará de todos os meios para impedir o avanço daquele que
poderia de fato destruí-lo. Perderá a luta e a vida na contenda
contra o coronelzinho. Sua família partirá para a cidade gran-
de e sua neta, Mariana, voltará para vingar o avô, suposta-
mente assassinado por Inocêncio. A meiga e jovem Mariana
entrará na vida do Coronel Inocêncio já maduro e viúvo e
será mais uma fonte de conflitos com o filho João Pedro e
mais um problema a ser resolvido diante da disputa pelo
patrimônio.
Na fase madura de Inocêncio, o coronel tradicional e an-
tagonista será representado por Teodoro, personagem tam-
bém movido pela vingança. O pai dele mandou “depelar vivo”
o coronelzinho por ter invadido suas terras. Julga que
Inocêncio teria assassinado seu pai impelido pela vingança.
O Coronel Teodoro será o típico vilão da história que mata,
maltrata e explora empregados, mulher, filha. Uma mulher
urbana (Eliana), sedutora e determinada, viúva do filho mais
velho de Inocêncio, a quem ele havia assassinado, se confron-
tará com o seu poder. Casará com ele, traindo-o com um em-
pregado de Inocêncio, o matador Damião, e mentindo quanto
à paternidade do filho. Após a morte de Teodoro, toma o seu
lugar e se torna a “coronela” da região, tendo Damião como
seu capataz e amante.
A filha de Teodoro, Sandra, urbana, escolarizada e ‘libe-
rada’, casará com o filho caçula e matuto de Inocêncio. Am-
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 237

bos, filhos independentes e rejeitados que não deixarão de lu-


tar pelo reconhecimento e pelo afeto dos pais. A primeira
mulher de Teodoro, mãe de Sandra, após anos de submissão
ao marido, viverá sua emancipação apoiada pela filha, com
quem irá morar.
Coronel Inocêncio representa o fazendeiro liberal e moder-
no porque ao mesmo tempo em que se interessa pela produtivi-
dade e eficiência dos trabalhadores, investe na educação das
crianças, filhos dos seus empregados, e procura ser justo com
seus trabalhadores, dispensando um tratamento familiar e de
agregado aos companheiros fiéis – Deoclesiano, Jupará e de-
pois Zinho, seu filho – e à empregada mãe preta Inácia. Seria
moderno porque também foi capaz de imprimir mudanças pes-
soais em decorrência da recomposição dos laços filiais que o
levaram a reavaliar a posição de pai, da questão racial presente
em seus netos e nora negros, na questão do hemafroditismo da
nora e tantas outras. Moderno também porque diante da crise
na produção do cacau, não se abateu e procurou investir em
novos empreendimentos econômicos.
O coronel Teodoro, ao contrário, será tradicional porque
não manteve relações de respeito e justiça com os trabalhado-
res da fazenda, sendo ganancioso, machista, violento e fecha-
do para toda e qualquer mudança exigida pelas alterações no
mundo do trabalho e das relações familiares que pleiteassem
a superação de práticas clientelistas, autoritárias e escravo-
cratas. Mudanças que foram prenunciadas especialmente pela
filha que representava valores e práticas associados à emanci-
pação feminina, à relações filiais mais horizontalizadas e me-
nos hierarquizadas.
A representação do popular observada na telenovela esta-
va presente nos personagens pobres que estabeleciam relações
com ambos os núcleos familiares, núcleos que traduziam a ri-
queza e o poder. Destacam-se as empregadas domésticas: Inácia,
como a respeitável mãe preta; as empregadas da casa de Teodoro
e depois Joana, a esposa de Tião Galinha, a empregada de
Sandra, quando já na casa de Rachid (o ‘turco’ que era liba-
nês), no antigo prostíbulo da cidade. Um outro destaque pode
ser dado para as prostitutas, a cafetina que misturava sabedo-
238 Telenovela e Representação Social

ria com as habilidades de parteira e as prostitutas que mescla-


vam sensualidade com maternidade e casamento. Outros per-
sonagens representantes do popular enfatizados foram o ma-
tador Damião, que refletia profissionalismo, frieza e lealdade;
Teca, a menina das ruas de São Paulo e Tião Galinha, o homem
pobre que clama por um pedaço de terra. A representação do
popular estava também no personagem anônimo presente em
cada plano e seqüência que exibia os trabalhadores do cacau
(na colheita e na secagem), as lavadeiras nos rios, as crianças
filhas dos empregados correndo pela fazenda.

Primeiro Capítulo
Uma breve descrição do primeiro capítulo objetiva trazer as
principais características dos personagens e situações da tra-
ma e os modos de narrar e representar o popular ao longo de
toda a telenovela. Os primeiros 20 capítulos expressam, em
geral, a “cara da telenovela” (Pallotini, 1996) e o estilo de seu
diretor geral. Nesse momento, ainda se pode trabalhar em um
ritmo menos intenso. Além disso, as características de fabri-
cação desse produto exigem que se forme uma trilha básica
por onde os outros diretores da equipe possam seguir. Algu-
mas ocasiões poderão ser melhor cuidadas, com uma quali-
dade dramática diferente, mas apenas algumas. Luiz Fernando
Carvalho tem uma expressão interessante frente a essa ur-
gência que se instala: “Na TV, a esteira vai passando, cada um
bota sua peça e o produto final fica acéfalo. O que me interes-
sa é que o trabalho tenha alguma coisa de mim, porque se
tiver 20% que seja, vai ter 20% de quem estiver assistindo”
(Revista de Domingo – Jornal do Brasil, 27.6.1993).
Para evitar a elaboração de um produto comercial
“acéfalo”, Carvalho apóia-se na idéia do “conceito”. A teleno-
vela deve ser formulada a partir de um projeto estético narra-
tivo mais amplo, para que ela possa ser minimamente prote-
gida das muitas encruzilhadas que podem retirá-la do prumo.
Barbosa a cuidar das bases da história e da carpintaria do
texto de modo a garantir a integridade da narrativa9 e Carva-
9 Barbosa é categórico quando afirma que nada e ninguém têm poder sobre o seu
texto. Na espinha dorsal de sua história não se mexe.
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 239

lho a buscar o conceito onde a linguagem é a ‘morada do Ser’


e a narrativa deve estar sintonizada com os telespectadores.
Os personagens e situações que representam o popular refle-
tem esse cuidado.
Renascer estreou no dia 8 de março de 1993, encerrando
sua longa passagem pela telinha no dia 12 de novembro do
mesmo ano. Um conjunto de 215 capítulos para contar a saga
do Coronel Inocêncio.
Nos 12 primeiros capítulos foram apresentados os perso-
nagens principais e os problemas centrais que os acompanha-
ram ao longo de muitos meses. Na primeira semana apresen-
tou-se a fase jovem do Coronelzinho e os elos com a fase se-
guinte, que se iniciou na segunda semana. De modo geral, a
história apresentou os principais personagens dos núcleos fa-
miliares centrais e aqueles que orbitaram em torno deles. Os
personagens aqui privilegiados – Teca e Tião Galinha – surgi-
ram na terceira semana, apenas quando os núcleos centrais
já estavam configurados.
Na primeira fase, os blocos foram maiores e o tratamento
dado permitiu limpar a história das inserções publicitárias,
seja nas situações vividas pelos personagens, seja nos interva-
los, que foram em menor número, permitindo uma maior
concentração do telespectador na história ali contada.
Sem avisar que estava chegando, a história irrompe na
telinha com um rapaz banhado em suor, trajando roupas sur-
radas e sujas, rodeando um gigantesco ‘Jequitibá Rei’. No meio
da mata, sozinho e, claramente, sem um passado que devesse
ser mencionado – só o futuro importa. “Aqui aos seus pés vou
plantar o meu destino, o meu reino e a minha vida. Aqui eu
planto a minha alma como se fosse semente de cacau.” Nesse
momento, o facão, envolto em cordas, mostrando a intimidade
com seu dono, é plantado no pé do Jequitibá. “A partir dos seus
pés, Jequitibá, eu vou marcar a minha posse. Enquanto meu
facão estiver cravado aqui, nem eu nem você haverá de morrer
de morte matada, nem de morte morrida...” Um ritual mágico
que encena a crença na força do homem guerreiro que em co-
munhão com a força da natureza tudo pode conquistar. Logo
em seguida, o primeiro limite se interpõe. As disputas pela terra
240 Telenovela e Representação Social

são sangrentas e os homens que ali estavam tinham ordens


para eliminar todo e qualquer um que chegasse. Eles encon-
tram Inocêncio, que depois de dependurado ao lado do Jequitibá,
é ‘depelado’ vivo e ali deixado. O desespero e a vontade de mor-
rer cessarão quando surge um mercador ambulante, também
agredido pelos mesmos homens, para salvá-lo. Inocêncio resti-
tui suas forças e depois de ‘costurado em linha de retrós’ pelo
Libanês, chamado de Turco, o Coronel plantará a sua lenda de
valente, destemido e de ‘corpo-fechado’.
A vinheta aparece ao som de Ivan Lins. Enquanto ele can-
ta: “Nada cai do céu, nem cairá, tudo que é meu, eu fui bus-
car...”10, uma gota cor de sangue cai do céu e alimenta o nas-
cimento de uma enorme árvore que cresce cortando a tela ao
meio. Em seguida surge uma fazenda e grandes extensões de
terra que se rasgam em duas. Sob a terra, um centro urbano
de arranha-céus e ruídos, num movimento de dobras, recria
um tronco – coluna metalizada – que se movimenta para im-
primir o título Renascer.
Depois dessa longa seqüência de apresentação do herói
da trama, o telespectador é apresentado, por meio dessa
vinheta, às imagens síntese da trama e aos realizadores da
obra. Vinheta que será inúmeras vezes vista e ouvida, servin-
do de guia para um telespectador que precisa de trilhas bem
claras para acompanhar a história.
Insere-se, logo a seguir, o primeiro intervalo comercial.
No retorno (sempre precedido pelo som associado a Renascer
no vídeo), o telespectador é conduzido pela câmera, embala-
do por uma cantoria popular, à festa do Bumba meu boi, sen-
do preparada em frente à casa da segunda mais importante
personagem dessa trama, Maria Santa, aquela que será ama-
da pelo Coronel José Inocêncio. Nesse momento, vê-se a festa
de uma minúscula janela de uma casa muito simples e peque-
na, caiada de branco com janelas e portas de um azul desbo-

10 “Tudo que é meu eu fui buscar. Aprendi a viver e caminhar entre os bons e maus, e
me guardar. Fico me remoendo, com meus remendos, para me lembrar, que lá vem
desavenças e eu tenho que enfrentar. Isso que me alimenta, que me sustenta, me faz
amar. Nesses confins de mundo, nada vai me assustar”. Ivan Lins cantando o ‘grito de
guerra’ do Coronel Inocêncio.
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 241

tado. Por essa janelinha, Maria Santa olha a festa, proibida de


brincar pelo pai, o ‘miolo do boi’. O ritual da festa é encenado,
o bumba é colocado sobre o homem que o carrega. Enquanto
a festa se encaminha no terreiro, Maria Santa dança com sua
boneca de pano. Mais uma vez olha pela estreita fenda de seu
pequeno mundo e se depara com o olhar severo e agressivo do
pai. Um close no olhar assustado de Maria Santa, acompa-
nhado pelo brusco desfecho da música, encerra mais um qua-
dro da história.
O próximo personagem a ser apresentado é o “matador”
que será contratado por Belarmino para ‘tocaiar’ José Inocêncio.
Antes de ser visto, aparece na tela pela primeira vez uma das
situações mais emblemáticas de Renascer: os trabalhadores do
cacau nas barcaças de secagem de cacau. O matador com-
pra, na venda de Norberto, rifle e munição. Para testá-los, ati-
ra da venda, acertando num camponês que passava em sua
mula. O homem mal estava devidamente apresentado e o jei-
to matreiro de Norberto também. Personagem que cumpriria
um importante papel ao longo da narrativa.
Mais uma vez, uma música vibrante acompanha uma
câmera que vem por cima dos pés de cacau, focaliza os traba-
lhadores colhendo os frutos. Um diálogo entre José Inocêncio e
seu “escudeiro” Deoclesiano começa ali, mostrando a transfor-
mação do forasteiro no Coronelzinho, e termina no poço da
cachoeira, os dois de torso nu, anunciando o erotismo caracte-
rístico do gênero. Dessa conversa entende-se que a festa do boi
chegará à fazenda de Inocêncio, e que o ‘miolo do boi’, Venâncio,
trabalha para seu inimigo, Belarmino. O Coronelzinho é
reapresentado como rico, destemido e esperto.
Uma nova seqüência se inicia. A música vibrante, que se-
gue com a câmera, mostrando ao longe uma fila de homens,
maioria de negros, a pé e em burros, transportando o cacau
por um descampado que corta uma cachoeira onde lavadei-
ras cuidavam das roupas.
Trabalhadores em primeiro plano, seminus e descalços,
dentro das barcaças. O olhar investiga e curiosamente segue
um deles que carrega o cesto de cacau nos ombros. Ele trans-
porta o telespectador para outra atividade – o carregamento
242 Telenovela e Representação Social

dos sacos de cacau que é conduzido, nas costas de um outro,


para outro lugar. Agora é esse que serve de guia para onde
Belarmino, numa cadeira de balanço, conversa com o mata-
dor e contrata seus serviços para matar Inocêncio. O desta-
que dado na conversa não perde de vista, ao fundo, os ho-
mens e o seu trabalho. O motivo da encomenda começa a ser
esclarecido: o forasteiro, seu vizinho, “marcou as terras de
um jeito tal que me deixou imprensado. Amanhã, se ele cis-
mar que tem pouco, eu vou ficar a perigo”.
Pés sujos, um esfregando o outro, dentro de uma peque-
na bacia de alumínio. Dedos femininos cosendo um vestido de
tecido florido. Dois detalhes que fazem alusão ao fim de um
dia de trabalho. Os pais de Maria Santa conversam em uma
sala pequena, a janela iluminada por uma lua cheia. Quitéria,
mãe de santinha e de Marianinha. Enquanto a primeira vem
sendo guardada em casa pelo pai, a outra foi mandada embo-
ra por ele, depois que ficou grávida. A mãe pede por Maria
Santa, que ela possa participar da festa do boi, e reclama a
ausência da outra filha. Venâncio, o pai, é grosseiro e agressi-
vo. Ameaça bater na mulher. Ela não cede e consegue do ma-
rido a permissão, contanto que Santinha “amarre os peitos e
não mostre as pernas”. Quitéria sendo apresentada como a
esposa pobre de um homem violento, teme por ela e pelas fi-
lhas, desconfia do desejo do pai para com elas. Mesmo com
medo, tentará proteger a filha que resta da ira do pai. A cora-
gem possível daquela que não se vê em condições de romper
com a relação de submissão ao marido.
Um conjunto de cenas prepara a ida de Maria Santa ao
encontro do Coronelzinho, pois a festa sairá em procissão da
casa do ‘miolo do boi’, com o grupo vestido de acordo com a
cultura local, entoando as canções que acompanham o corte-
jo. Enquanto isso, na fazenda destino da festa, Coronelzinho
almoça com Deoclesiano. Uma mesa ampla, de madeira, a
mesma que, ao longo da história, aglutinará a família dos
Inocêncio e todos que por aquela casa passarem. Foram servi-
dos por Inácia que conta do sonho que teve: a tocaia que o
esperaria quando fosse viajar no dia seguinte, para negociar
a venda do cacau. Inácia, a devoção ao patrãozinho e suas
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 243

premonições são apresentadas pela primeira vez. Uma em-


pregada que cumprirá durante toda a narrativa o lugar da
principal responsável pela gestão da casa e guardiã do bem-
estar da família. Muitas mulheres passarão pela casa, mas
nenhuma ocupará o seu lugar.
A festa do boi se aproxima.
Belarmino, enquanto isso, conversa com a mulher na va-
randa de sua casa. Com um binóculo observa as divisas dizen-
do: eu podia ter mais terra. A mulher não compartilha de sua
ambição. Uma relação que não mostra afeto, mas obrigações
e desconfiança. Ele não parece escutar e continua falando
alto: o Coronelzinho, se morrer, não terá herdeiros.
A festa chega no terreiro da casa do Coronelzinho. Todos
descem para a festa. Esse é o encontro de Maria Santa e
Inocêncio que, depois desse momento, estarão apaixonados.
Trocam olhares que enfurecem o pai de Santinha, que, reage,
primeiro derrubando a filha com o boi, e depois o Coronelzinho.
A música pára, Coronelzinho levanta e, sem mudar o tom,
rispidamente avisa que é melhor ele seguir o seu caminho e
nunca mais voltar. Em silêncio, o grupo se retira. Maria Santa
e Inocêncio se despedem. Entreolhares. Jupará surge pela pri-
meira vez nessa cena da festa e ele, juntamente com Inácia e
Deoclesiano, dirão quem é a moça e o tipo de pai que ela tem.
Nada poderá dissuadir o Coronelzinho de querer vê-la de novo.
Maria Santa corre por entre os pés de cacau fugindo da
surra que leva do pai, a mãe intervém salvando a menina de
mais lambadas. Enquanto a mãe dá um banho de ervas em
Santinha para tratar dos hematomas, o pai se auto-flagela
dizendo, ‘ela é linda demais, a diaba’. Inicia-se aqui o aumen-
to progressivo da tensão instalada na casa de Santinha, ao
mesmo tempo, ela começa a se dar conta das razões pelas
quais o pai a surra e reprime. Essa cena termina com a mãe,
que a banhava seminua em pé numa bacia pequena, rodeada
de velas, cobrindo-a com uma toalha como se fosse uma san-
ta. Ela diz que “tomara raiva do Coronelzinho. Não ia casar
com ninguém, só com nosso senhor Jesus Cristo”.
Depois de apresentados os principais personagens, desen-
volvem-se as situações até então prenunciadas. O desejo de
244 Telenovela e Representação Social

matar o coronel por parte de Belarmino e Venâncio, que gira


em torno da tocaia que se arma mas não é bem-sucedida.
Fato que permite ao Coronelzinho mover suas pedras para
enfrentar Belarmino e propor a compra de suas terras – a
revanche. Belarmino, ainda persiste com a idéia de matar
Inocêncio e insiste, ao final do capítulo, para que Venâncio
cometa a sua primeira morte em troca de casa, dinheiro, terra
e a tranqüilidade que sua filha será preservada.
O amor de Inocêncio e Santinha enfurece o pai, que re-
cusa dinheiro e terras pela filha. A construção desse amor
intenso, apesar de ter brotado de um único olhar, prossegue
num crescendo. O capítulo é encerrado com a seqüência em
que o Coronelzinho chega em sua casa e a encontra sozinha,
cabelos molhados, depois de um banho no poço, encantada
e amedrontada com o desejo que sentia, a Maria casta, ingê-
nua e pura. Inocêncio rouba-lhe um beijo, sai decidido a ca-
sar com ela, gritando que será a mãe de seus filhos. Santinha
fica atordoada e em desespero, dizendo que está perdida.
Encerra-se o capítulo com o telespectador observando o de-
sespero de Maria Santa diante da minúscula janela do seu
pequeno mundo.
Um entrecortar de situações intercalam cenas e força dra-
mática, dando destaque à tocaia e às características do ambi-
ente de Maria Santa, a pobreza expressa na casa, no fogão de
lenha e na lingüiça que defumava, nas funções que exercia
na casa, as roupas que pegava no varal de arame farpado, na
mãe que sempre trabalhava. Não eram apenas esses os indíci-
os de sua condição. Nas conversas com sua mãe, ela lhe mos-
trava o poder despótico do pai, a descoberta pessoal do desejo
e da possibilidade da transgressão, quando dizia, “mas eu não
fiz nada de errado”. Maria Santa, assim como foi vista como
Santa, foi também posta como mulher em uma cena que mis-
turava a sensualidade do seu banho nua no poço de areia da
cachoeira, com o lirismo provocado pela canção de fundo da
lavadeira, gorda e forte: “Já vai chegar, oi... Eu vou contar,
oi... Mariazinha, oi... Foi se lavar, oi... Mariazinha, oi... foi se
lavar, oi... no poço fundo, oi... de areia, oi...“
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 245

Trabalho e Cultura Inundam Passagens


O primeiro capítulo anunciou uma estratégia que se manteve
ao longo dos 215 capítulos. Nas passagens de uma seqüência
para outra foi priorizado o cotidiano do ‘povo brasileiro’ re-
presentado por meio do trabalho e de manifestações popula-
res diversas. Nesse capítulo foram enfatizadas as atividades
associadas ao cultivo do cacau, as lavadeiras11 e suas canções
e a festa do Bumba meu boi12. Passagens que guardavam um
cuidadoso tratamento no figurino, na iluminação e no cená-
rio em busca do que pudesse simbolizar o “povo brasileiro”.
Essas passagens traduzem a presença marcante dessas
duas temáticas na narrativa que se enovelam com as histórias
dos protagonistas. Pode-se dizer, no que diz respeito ao traba-
lho, que dois focos foram privilegiados: o trabalho de colheita,
transporte e secagem do cacau nas barcaças e o trabalho fe-
minino – o cuidado com as roupas, com a alimentação e com
os filhos. No que se refere à cultura, sempre que possível fo-
ram introduzidas festas e canções populares13, o espaço lúdico

11 Barbosa contou que quando esteve na região de Renascer, em 1971, viu umas
lavadeiras cantando, parou o carro e “fiquei feito besta!” Quando voltou no local com
Carvalho, comentou que, na Bahia, nesses rios, as mulheres costumam lavar as roupas
– na tábua, como se fala – e elas cantavam... “Se achasse isso.... Quando o Luiz
Fernando começou a gravar ligou-me para contar que as lavadeiras estavam lá, “pode
escrever!” e eu fui atrás. Elas ficaram famosas... ficaram tão felizes – Meu Deus do
Céu! A vida delas mudou. Largavam o marido lá e não queriam saber de acordar
quatro horas da manhã para fazer comida ... “Faço mais isso não! Eu ganho 500 mil
réis quando venho aqui. Vou para a roça, ganho 50. Eles que se matem lá...” (entrevis-
ta Souza, 28/9/98).
12 “A ficção sai em busca da brasilidade e abandona os velhos estereótipos”. Título de
artigo da Revista da TV (Jornal do Brasil, 6/3/93) que descreve os procedimentos
adotados pela equipe de realizadores de Renascer para a representação da festa do
boi. O bumba meu boi foi realizado por um mestre local chamado Aureliano. Sob sua
foto lia-se: o grupo não é uma ficção mas uma tradição da Bahia. O depoimento da
responsável pelas pesquisas, que ‘dissecou o Brasil’ para mostrar ao brasileiro o chão
que ele pisa, evidenciava esse cuidado com a representação do popular. Dizia que
“nunca se consegue colocar na tela a cultura popular na sua verdadeira forma, mas é
possível, através da TV, despertar cada brasileiro e mostrar que o interior do Brasil não
se reduz à caipira de trancinhas.”
13 As lavadeiras, seu trabalho e suas canções, retornaram várias vezes, seja como no
caso do banho de Maria Santa, onde a lavadeira divide a cena com a protagonista,
seja quando elas se tornam protagonistas, de segundos para minutos na telinha,
narrando a própria história.
246 Telenovela e Representação Social

e de socialização do bordel e da ‘venda’, o ritual de se ‘beber o


morto’, o casamento, a ‘arte popular’ (o prazer das histórias
orais e fabulosas, do teatro mambembe, das danças), a religi-
osidade popular (a figura da Santa, a procissão, o padre, o
diabo, a premonição, os espíritos e o erotismo).
O trabalho, sobretudo, foi uma temática privilegiada para
representar o popular. Por meio dele pôde-se enfocar as rela-
ções de poder estabelecidas entre os patrões e os empregados,
desde aquelas que contemplam lealdade, admiração e
compadrio, como é o caso do núcleo chefiado por Inocêncio,
até aquelas que significavam a submissão e a desconfiança,
como é o caso do núcleo de Belarmino14. No primeiro caso,
fica claro que os trabalhadores poderão, pela eficiência e leal-
dade, terem acesso a melhores condições de vida, enquanto
aos outros essa possibilidade não será sequer colocada.
A marca da ignorância, agressividade, descontrole, des-
potismo e pobreza acentuada em Venâncio, empregado de
Belarmino, foi contraposto, por exemplo, à lealdade, à esper-
teza, ao diálogo, ao dividir à mesa com Deoclesiano, Jupará e
Inácia, empregados de Inocêncio. Como se as características
que valorizassem o trabalhador estivessem associadas às suas
chances de ‘melhorar na vida’, assim como ao tipo de trata-
mento dado pelos patrões. Se modernos e justos, maiores a
qualidade do trabalhador e as chances de uma certa justiça
social.
As relações de poder entre patrões e empregados que in-
terferem no trabalho e na vida dos trabalhadores atravessam
toda a narrativa e podem ser recuperadas nas histórias de inú-
meros personagens. Para fins deste trabalho, decidiu-se
desenvolvê-las melhor por intermédio de algumas situações
vividas pelos personagens Teca e Tião Galinha, importantes
casos exemplares. Os dois não configuram a clássica solução
14 Quando o pai de Maria Santa, Venâncio, fugiu, pois não iria “agüentar mais uma
vergonha”, levou a carroça e o burro do patrão. Belarmino, no dia seguinte à fuga,
comenta com sua esposa: “fugiu feito cachorro magro. Essa gente é muito ingrata,
levou minhas carroças e meus burros”. Depois, mais adiante, já conversando com
Inocêncio, que estava desconsolado com o sumiço de Maria Santa, ele diz: “O senhor
perdeu a mulher, eu a carroça e o burro de melhor qualidade, não sei quem teve
prejuízo maior.”
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 247

dos conflitos através da ascensão social. Teca abriu mão dela,


pois o preço foi a ‘liberdade’, e Tião também o fez, pois o seu
preço era a dignidade.

O Amor, a Ascensão Social e a Tragédia da Modernidade


Os traços materiais e simbólicos escolhidos para indicar a pre-
sença da pobreza, um dos modos de representar o popular,
foram exemplarmente desenvolvidos por meio da personagem
Maria Santa. Os traços da pobreza visíveis no tamanho da
casa, nas paredes sem reboco, nos portais carcomidos por
cupim, na cozinha simples do fogão de lenha, no varal de ara-
me farpado, no terreiro de terra batida. A centralidade da per-
sonagem em um tipo de gênero ficcional como a telenovela,
que acentuava o romantismo com a valorização da beleza, da
pureza e da coragem, trouxe jarros de flores para a mesa da
sala, filós, camisolas, vestidos de chita e laços de fita coloridos
na cabeça, sem contar com a cena do banho que, à luz de
velas, recortava o seu corpo nu, numa mistura do profano
com o sagrado.
Santinha era a parceira do herói guerreiro e iria se trans-
formar na rainha do cacau. Entende-se assim a aura de ro-
mantismo da personagem que simboliza o ideal de amor e
entrega, bases para a realização pessoal e o êxito da ascensão
social.
No bojo de sentidos que gravitam em torno de Maria San-
ta e Inocêncio, associa-se também um ideal de família unida e
segura, assentada no amor, na devoção, no desejo e na mater-
nidade. Interessante como esse modelo será posto em cheque
quando a modernização tornar-se uma realidade na história
de Inocêncio. Os principais representantes das novas tendên-
cias de relacionamento familiar, amoroso e sexual serão os
filhos ‘urbanos’ de Inocêncio. A partir daí não faltarão moti-
vos para conflitos e preleções sobre as separações conjugais,
as novas formas de amor, o cuidado dos filhos, o papel da
mulher, as funções paternas, a maternidade, a anticoncepção,
o aborto. A cada conflito resolvido, uma disposição será res-
saltada, enfatizando determinadas condutas e valores.
248 Telenovela e Representação Social

O que a história de Maria Santa mostraria nesse caso?


Entre outras coisas, que o despotismo e a ignorância do pai
podem gerar a destruição dos filhos. A história de Inocêncio
mostra que o excesso de severidade associada à não flexibili-
zação de valores e práticas também conduz à “destruição da
família e dos filhos”. Problemas que não se restringem às posi-
ções sociais e de classe dos indivíduos, mas às mudanças e à
reflexividade instituídos na modernidade.
Essas temáticas articuladas ao amor e à ascensão social
em Renascer guardam semelhanças com alguns dos aspectos
indicados pelas reflexões de Berman (1986) sobre Fausto
(Goethe) “amador” e “fomentador”, de tal modo que, ao se
deter sobre eles, a reflexão sobre as representações do popu-
lar em Renascer se amplia.
Fausto “amador” refere-se ao amor entre Fausto e Gretchen
que encenaria a “tragédia de Gretchen15”. A mulher ama e é
incitada a se transformar ao conhecer através de Fausto o novo
mundo aberto pelo desenvolvimento. Ela, no entanto, não foi
capaz de se separar do seu “pequeno mundo”, pleno de forças
conservadoras representadas principalmente pela família e
pela Igreja. Alguns elementos foram levantados por Berman
para explicar essa dificuldade de Gretchen: ser pobre e mu-
lher, fazer parte da primeira geração a vivenciar o impacto do
novo mundo e, por fim, o fato de Fausto ser inocente. Goethe,
diz ele, mostrava com a “tragédia de Gretchen” que os custos
a serem pagos por aqueles que resolvem entrar no novo mun-
do seriam tanto maiores quanto mais subordinada fosse a
posição social e de classe destes. “Uma mulher pobre, atrelada
à família, não tem qualquer liberdade de movimento. Está
destinada a se ver à mercê de homens que não têm comiseração
por uma mulher que não conhece o seu lugar. No seu mundo
fechado, loucura e martírio são os únicos caminhos à sua dis-
posição” (Berman, 1986:58).

15 Berman inicia a reflexão sobre Gretchen, chamando a atenção para a reação


negativa dos leitores contemporâneos à heroína, por ser ela melodramática, “boa
demais para ser verdadeira”. O movimento do autor em busca de novas leituras,
menos preconceituosas, reafirma as atuais linhas de pesquisa sobre as telenovelas, que
pretendem repensar o estilo melodramático do gênero.
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 249

No caso particular da personagem de Maria Santa, a tra-


gédia não se impôs, reservou-se um lugar para o drama ro-
mântico, onde a superação do seu “pequeno mundo” trans-
forma-se num importante passaporte para a felicidade. Como
se fosse necessário tratar com mais esperança as lutas contra
a pobreza e o sofrimento que os protagonistas encarnam.
Entretanto, Renascer não deixou de explorar a temática
do amor em relação aos conflitos ou aos custos sociais e pes-
soais daqueles que se aventuraram a romper com os “peque-
nos mundos”, sendo as mulheres e os pobres, direta ou indire-
tamente (e não por acaso), um dos seus focos centrais. Ao
tratar das tensões entre as continuidades e descontinuidades
quanto aos “pequenos mundos”, tematizou os conflitos de
gênero e geracionais, mostrando que, apesar da resistência
dos homens e mulheres, pais e filhos, maridos, esposas e aman-
tes ao se adaptarem ao “desejo de mudança” de um outro, os
“pequenos mundos” podem ser transformados em “conchas
vazias” e os desejantes de mudanças podem partir “na direção
de grandes cidades, fronteiras mais amplas, novas nações, em
busca da liberdade de pensar, amar e crescer” (p. 59). Uma
perspectiva que afirma: a construção da subjetividade na
modernidade implica a existência de relações mais autôno-
mas e distantes das instituições que reforçariam os valores
tradicionais16.
José Inocêncio, o vencedor da primeira fase, será um he-
rói porque ao vencer a luta contra os pequenos mundos, abriu
as portas para o desenvolvimento e a modernização. Mas ou-
tras batalhas se impuseram, defronta-se permanentemente
com os seus fantasmas, dramas do cotidiano e tragédias pos-
tas pela vida. Outra vez, faz-se uma analogia com as reflexões
de Berman sobre a terceira metamorfose de Fausto, o
fomentador.
Essa seria marcada pela romântica procura de auto-desen-
volvimento através do “esforço titânico” que implementa o de-

16 Vale ressaltar que as telenovelas recriam este campo de tensões construindo, na


mesma obra, tanto personagens que referenciam posições conservadoras quanto
modernas, assim, temos pais e avós que tanto criticam os novos hábitos dos seus filhos
e netos, quanto aqueles que atuam enquanto incentivadores.
250 Telenovela e Representação Social

senvolvimento das forças econômicas. O desejo de articular a


dimensão do desenvolvimento pessoal com a sociedade e a co-
munidade potencializaria Fausto para a construção do novo e
para a destruição do velho mundo, transformando-o em herói
trágico. O lado heróico em Fausto se fixaria na busca da realiza-
ção espiritual através da modernização do mundo material. Seu
lado trágico surgiria com a suposição de que se pode “criar um
mundo onde o crescimento pessoal e o progresso social possam
ser atingidos com um mínimo de sacrifícios humanos”. A tragé-
dia que decorre de seu “desejo de eliminar a tragédia da vida”.
Ao construir essa dimensão da tragédia, Goethe estaria
ressaltando que as contradições e os conflitos sociais seriam
inerentes ao “progresso”, e tanto a destruição da humanidade
quanto a de sua própria vida dependeriam da maneira como
o fomentador lidasse com as forças que enfrentaria ao longo
das mudanças: a pobreza, a necessidade, a culpa e a ansieda-
de. Como o personagem em sua onipotência supõe que pode-
rá eliminar essas forças, o caminho da tragédia e da destrui-
ção é inevitável17.
Filemo e Báucia18 foram os principais representantes das
vítimas da tragédia do desenvolvimento. Simbolizavam virtu-
des cristãs (generosidade, inocência, humildade, resignação)
dos perseguidos, penalizados ou eliminados pelos fomenta-
dores, em geral, ricos empresários ou fazendeiros. Virtudes
cristãs associadas aos melhores valores que o velho mundo
17 O que essa postura de Goethe estimula a pensar, pergunta Berman? Ele, Goethe,
constrói um modelo fáustico de desenvolvimento que propõe uma síntese entre o
poder público e o poder privado, os trabalhadores e os empresários. De imediato,
algumas posturas mais críticas apontariam o idealismo presente neste modelo. Entre-
tanto, a tragédia inscrita na história indicaria para Berman um outro ponto de vista,
pois Goethe, ao afirmar que a “tragédia do desenvolvimento” é devoradora do sangue
e dos ossos das vítimas, estaria alertando para o eterno e sempre urgente desafio de
buscar, supondo a dimensão destruidora inerente ao crescimento, novas formas de
reinventar os sujeitos e suas práticas sociais, econômicas e políticas que possibilitem
assim não ao homem existir em função do desenvolvimento, mas sim o desenvolvi-
mento existir em função do homem (p. 74).
18 Filemo e Baucia, um casal de velhos simpáticos e hospitaleiros, moram há “tempo
sem conta” em uma porção de terra desejada por Fausto para construir uma torre de
observação que permitiria “contemplar (soberanamente) a distância até o infinito”.
O casal resiste às propostas de compra da terra, tornando-se um forte empecilho aos
projetos de Fausto (Cf. Id.: 68-70).
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 251

pode oferecer: “são demasiado velhos, teimosos, talvez estúpi-


dos para se adaptar e mudar; no entanto, são pessoas belís-
simas, o sal da terra em que vivem”.
Que fomentadores seriam esses? Aqueles que ao mesmo
tempo que constroem o mundo novo, destroem o velho, e, ao
fazê-lo, semeiam a destruição do que acabaram de construir.
Fausto representaria o empresário capitalista consciente dos
terrores da tragédia do desenvolvimento, buscando moderni-
zar em prol do “futuro da humanidade”, e Mephisto represen-
taria o empresário oportunista e sem escrúpulos. A tensão
permanente entre eles ilustraria tanto as contradições per-
manentes da modernidade, quanto as “desregulagens” entre
o poder público e o poder privado imanentes às tragédias do
desenvolvimento.
Em geral, as telenovelas mostram protagonistas fomenta-
dores em conflito, de um lado o empreendedor e humanista e,
de outro, o corrupto, individualista, destruidor. O primeiro pas-
sará por momentos de provação e arrependimento pelas mui-
tas Gretchens, Báucia e Filemo que atravessaram o seu cami-
nho, permitindo que, na maioria dos casos, eles possam ser con-
duzidos a um final feliz. Assim será com o Coronel Inocêncio
que lutava contra o Coronel Teodoro e contra Belarmino.
Teca e Tião Galinha não ocupam um lugar na narrativa
tão importante quanto Báucia e Filemo. Todavia, podem ser
vistos enquanto representantes das histórias de pobreza e ne-
cessidade que os fomentadores empreendedores e humanistas,
de muitos modos conscientes e inconscientes, diretos e indire-
tos, têm ajudado a construir e a manter.

Teca, as Crianças de Rua e a Família


A personagem Teca foi interpretada por Paloma Duarte, espe-
lhando-se nas crianças de rua do centro de São Paulo, tendo
sido construída a partir da observação direta do cotidiano,
comportamento e linguagem desses grupos. Uma personagem
que precisou sair da trama antes do tempo previsto pelo escri-
tor, por problemas de saúde da atriz. O final da história de
Teca seria outro. Interessante notar que o escritor tenha se
negado a dizer qual era. De certo modo afirmava que o im-
252 Telenovela e Representação Social

portante não é o suposto final, mas aquele narrado na teleno-


vela, pois esse sim, tem algo a dizer (entrevista Souza,
28.9.1998).
Teca é inserida na trama mediante a história do filho mais
velho de Inocêncio, José Venâncio. Era casado com uma mu-
lher gananciosa e ciumenta que o infernizava e seduzia
(Eliana), negando-lhe a paternidade. Um homem dividido en-
tre a sedução de uma mulher, e a sedução oferecida por sua
amante (Buba), ‘uma pseudo-hermafrodita feminina’. Ao con-
trário de sua rival (Eliana), Buba luta pela maternidade, ado-
tando uma adolescente grávida que vivia no cotidiano violen-
to das ruas paulistas, uma menina de rua, uma “trombadinha”.
Teca surgiu no vídeo na terceira semana de Renascer. A
família do Coronel Inocêncio já devidamente apresentada e
reunida na fazenda para o novo casamento do patriarca. Buba,
encantada com o sogro e com o neto que ele lhe pediu. Sem
escrúpulos, no bojo da separação das terras milionárias do
sogro entre os filhos, segue adiante em seus planos de arru-
mar uma mãe de aluguel. A personagem, uma típica repre-
sentante da classe média paulistana, decide que pode fazer
uma troca com a adolescente “trombadinha”, instituciona-
lizada, grávida e sem família. Dinheiro e cuidados em troca do
filho que vai nascer.
Buba estimula a fuga de Teca da Instituição “Casa da Mãe
do Céu” que atendia as mulheres e adolescentes que não que-
riam ou não podiam criar os seus filhos. Na conversa com a
assistente social responsável, o tema era a adoção. Mas Buba
era Alcebíades e não tinha como provar a sua identidade fe-
minina. Solução adotada, a fuga de Teca que é acolhida em
sua casa. Daí em diante, muitas peripécias e segredos a serem
desvendados.
No processo de apresentação da personagem, Teca con-
versa com Buba e explica o medo que tem dos homens. Conta
histórias de violência sexual e física que as meninas de rua
estão permanentemente expostas e como é importante a pre-
sença do rapaz que zela por elas, no caso de Teca, Du, pai de
seu filho. Ele matou um homem que a esbofeteava porque ela
não queria abrir as pernas, um homem sem farda, mas arma-
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 253

do. Du usou o canivete, aquele que conseguiu com o colar de


ouro que roubara. Em outras ocasiões da narração Du
retornará, seja para que se mencione o futuro de Teca, a de-
pender do fato, de ele estar morto ou preso, seja para falar da
sua negritude. Por fim, Du será um dos chacinados da
Candelária.
O extermínio das crianças da Candelária, no Rio de Ja-
neiro, assim como atingiu a população por meio da mídia,
aparece também em Renascer pela televisão. Teca já residia na
fazenda, a família do coronel Inocêncio, vendo o telejornal,
recebe a notícia da chacina. O episódio real insere-se na histó-
ria quando Teca descobre que o pai de seu filho e homem que
amava fora morto neste episódio macabro da história das cri-
anças e adolescentes brasileiros.
A personagem Teca surge da vontade de uma hermafrodita
que se pensava mulher e desejava ser mãe (Buba). Ela queria
munir-se de forças diante do amante e ter um trunfo a mais
diante de seu sogro, que tanto almejava um neto. A morte de
José Venâncio repercutiu na trajetória de Teca, que irá viver
na Fazenda com Buba, dizendo ser o filho esperado por Teca o
seu neto. Uma nova rede familiar é construída e a “menina de
rua” aproxima-se do Coronel Inocêncio.
Teca é introduzida por Buba em outra condição social e
afetiva, na qual vai vivendo de forma desconfiada e agressiva,
mas corajosa, usando a sagacidade, a inteligência e o silên-
cio. Aos poucos vai se transformando, dando a impressão ao
longo da trama que moradia, afeto e alimentação poderiam
alterar a condição de vida das crianças de rua.
Teca também vai, através do acolhimento encontrado em
Buba e Inácia, reconstruir sua história, recompondo os cacos
de uma vida sem passado. O recurso poético passa pela paranor-
malidade de Teca que lhe permite conhecer os sofrimentos de
sua mãe e se aproximar de sua tia, Maria Santa, que a ajudaria
no nascimento de seu filho. Maria Santa ilumina o parto, con-
forta-a e assegura que seu filho terá uma história diferente da
dela, permitindo assim o nascimento da criança.
Alguns aspectos da história da personagem são ressalta-
dos. Tocou na questão do preconceito diante dos ‘tromba-
254 Telenovela e Representação Social

dinhas’, que gera o medo e a insegurança nas camadas médi-


as. Criticou as soluções fáceis para o problema, como se o
mero acolhimento dessas crianças por novas famílias que ofe-
recem amor e carinho bastasse. Desde o início buscou evitar a
vitimização de Teca, construindo uma personagem o mais
consciente possível da sua condição social e das formas de
resistência necessárias para aqueles que conhecem as dificul-
dades da violência simbólica e material do cotidiano na rua –
o uso da mentira, do silêncio, da sedução, da rebeldia, da ne-
gociação.
No final da história da personagem ela, depois de tudo o
que por ela fizeram, volta para a cidade grande e abandona o
filho na Fazenda, com Buba e Inácia, certa de que ele terá um
futuro diferente dos pais.
O movimento de retorno de Teca ao urbano decorreu da
discordância daqueles que, apesar de terem mudado a sua
vida, desejavam dominá-la. Inocêncio, em especial, era con-
tra o namoro com o amigo, Pitoco, que veio do passado que
ela devia esquecer. Não obstante, ela parte para novas aven-
turas com o rapaz que ama, o companheiro dos tempos da
rua que foi buscá-la na Fazenda, e se apresentou como aquele
que viveu na rua e não fez a opção pela vida de bandido.
O Coronel, mesmo sabendo que o recém-nascido era ne-
gro e não era seu neto, o inclui como herdeiro. Interessante
como o coronel não representa o perdão que invoca a pureza
e a gratuidade cristã. Ele se convence que o filho de Teca era
parente de sua falecida mulher e, por esta razão fundamen-
tal, o aceita. Recusa-se, porém, a pensar na possibilidade de
Teca não se casar com alguém que possa mudar para melhor
sua condição de vida e preservar sua nova condição social.
Assim, proíbe seu namoro com um ‘menino de rua’, gerando
o conflito que o separará de Teca.
A personagem Buba busca evitar a glamourização de boa
samaritana, deixando claro os interesses que moviam a sua
ação – o afetivo e o econômico. O uso da pobreza e da fragili-
dade social e afetiva, associado a interesses muito pouco hu-
manitários por parte de camadas médias dos centros urbanos
que lutam contra a solidão e a favor da expansão do capital
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 255

econômico. Ao mesmo tempo, mostra uma Buba sensível à


tragédia das crianças de rua, que vai, ao longo da história, de
fato preocupar-se com a moça, dispondo-se a mudar a sua
própria vida. Teca pede para ficar, depois da criança nascer,
ela não queria voltar para as ruas. Buba não diz sim nem não,
num primeiro momento, mas diz que vai pensar. Resposta que
admite as dificuldades reais de soluções individuais para ques-
tões que transcendem, em muito, o âmbito do privado.
De qualquer modo, uma personagem importante para
abordar a questão da adolescência e das relações que estabe-
lecem com o poder representado no mundo adulto, além de
ser um espaço promissor para contemplar modos de vestir, de
falar, de se alimentar.
A história de Teca ocupou um espaço significativo na tra-
ma, apesar do lugar secundário que lhe foi destinado, sendo
usado explicitamente como canal de informações sobre a se-
xualidade, o cuidado com a gravidez, a reprodução. Quando
ela volta a namorar, depois de nascido o seu filho, Buba, preo-
cupada, fala da pílula anticoncepcional e da necessidade de
“se cuidar”. Assim como, chama a atenção para a dificuldade
das mães adolescentes de se responsabilizarem pelos seus fi-
lhos. Inácia, conversando com Teca, lembra o fato de que o
momento não era de pensar nos amigos que tinham ido em-
bora, mas no filho que ela teria que cuidar.
As situações vividas por Teca representaram a violência
contra as crianças e adolescentes, o problema das drogas, a
questão racial e a defesa de uma família em que pai e mãe
dialoguem com os filhos, educando-os.
A fuga de Teca sugere essa perspectiva, assim como todos
os conflitos familiares narrados na telenovela. Uma nova fa-
mília que demanda principalmente a figura de um pai menos
severo, mais companheiro e afetuoso com os filhos. Quem
sabe, seriam mensagens do escritor que acredita que tem algo
a dizer, a partir da sua própria experiência pessoal de buscar
soluções para os problemas vividos pelos seus filhos e por ele
próprio? Mensagens que considera vitais, quando se vive num
momento onde tanto pai quanto filhos não possuem mais o
caminho das certezas cunhado nas tradições.
256 Telenovela e Representação Social

De certo modo, é perceptível a insistência na família como


lugar privilegiado para o cuidado dos filhos. Sem ela, eles irão
parar nas ruas para viverem as histórias de roubo, violência,
morte, prostituição, fome e droga. Uma história que depois de
iniciada, deixa marcas profundas que poderiam até mesmo
inviabilizar soluções. As esperanças, todavia, não foram es-
quecidas. Pitoco, o namorado de Teca e amigo dos tempos de
rua, sugere que se pode recusar a vida de bandido, coisa que o
seu outro amigo não fez. Em outra situação, depois do nasci-
mento da criança, a preocupação de Teca era que o filho não
fosse como ela e o pai, ele não podia morar na rua. A solução
ficcional encontrada de transformar a criança em sobrinho-
neto de Inocêncio sugere a complexidade de um problema que
toca tanto nas condições materiais de existência, quanto na
construção da intimidade e da vida afetivo-sexual dos sujei-
tos. A adoção de um recém-nascido, com ou sem laços de
consangüinidade, sendo colocada como uma complexa, mas
importante forma de se tentar responder ao problema das cri-
anças abandonadas.
Não se pode esperar análises mais elaboradas sobre pro-
blemas dessa ordem de gravidade numa telenovela, embora,
o escritor não tenha evitado a complexidade do tema. Eludiu
a vitimização da criança e a culpabilização da família, assim
como enfatizou que, apesar das soluções individuais não re-
solverem questões sociais mais amplas, elas não devem ser
abandonadas.
Teca foi uma personagem que representou críticas sociais
muito mais através do que dizia, do que era dado a ver. Era
uma menina das ruas, jovem, branca, bonita, cabelos cuida-
dos, dentes perfeitos, que rapidamente se inseriu num sistema
de vida que não condizia com sua origem social. As falas da
personagem, em geral, estavam em forma de denúncia, num
português primário, com expressões de autonomia e delicade-
za. Foi uma personagem caracterizada pelos traços fortes das
estratégias que favorecem a ascensão social e os sonhos que
com ela se cumprem: o fim da fome, da violência, da solidão e
da insegurança. O que chama a atenção é que a personagem
não perderá a sua autodeterminação ou o poder de contrapor-
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 257

se a práticas de dominação. Características que levam a crer


numa representação da ascensão social como sonho de uma
nova sociedade onde melhores condições de vida não signifi-
cam a reprodução de práticas inibidoras da reflexividade
emancipadora (Giddens, 1991 e Manzini-Covre, 1996).

Tião Galinha, o Trabalho e a Pobreza


Na terceira semana de Renascer, surgem com maior vigor as
tramas paralelas. Assim como Teca, a história de Tião e sua
família chegam ao vídeo. O telespectador diante de um
manguezal, troncos e lama, luz e escuridão. A princípio está-
se diante de uma imagem fotografia. Aos poucos percebe-se
movimentos, olhos e corpos humanos enterrados na lama aten-
tos ao movimento dos caranguejos, alçados como pequenos
trunfos. Cenas do trabalho que retratavam as condições de
miséria de Tião, sua mulher e todos aqueles que, ao se mistu-
rarem com a lama, redesenham a condição humana.
Depois do trabalho, vem a morada e a vontade de não ser.
A casa era de pau a pique, pequena e no sopé de um morro. A
decisão de ir embora é facilitada pelos pertences da família
que se resumiam a uma pequena mala velha. A estrada e o
não saber para onde ir. Mulher, marido e filho esperam famin-
tos que alguém por ali passe e lhes dê uma carona para a vida
melhor. Aqueles que ouviram o “clamor de Tião e sua família”
foram os padres Santo e Lívio, o barbudo19. A Igreja sensível à
pobreza, mas não muito hábil na forma de lidar com ela, pois
levam Tião e sua gente para a Fazenda de Teodoro, o grande
vilão da história.
Ao chegar na fazenda do Coronel Teodoro, o personagem
é empregado na colheita do cacau, estabelecendo uma rela-
ção de submissão e adoração ao seu patrão, pois ele havia lhe
dado casa, trabalho e escola para as crianças. O que Tião não

19 “Vou fazer uma brincadeira com o padre Lívio, o barbudo que substituirá o padre
Santo em Renascer. A barba é o símbolo do Partido dos Trabalhadores. Um símbolo
antigo. Eu sou originalmente petista, mas acho que o partido perdeu seus rumos.
Quero colocar uns cacoetes no personagem. Aquela barba, o jeito de falar, as expres-
sões típicas. Eu tenho a impressão de que no PT são todos papagaios. Apesar dos
chavões, o padre Lívio é bem intencionado” (Jornal do Brasil – Cad. B, 11.4.1993).
258 Telenovela e Representação Social

percebia é que ele estava empregado porque o patrão estava


interessado na sua esposa, Joana. Mulher trabalhadeira, amo-
rosa e ardente com seu marido, uma boa mãe para os seus
filhos. Moça bonita que o coronel não cansava de espiar as
pernas e o corpo moldado pelo suor e pelas águas das roupas
que estirava no varal. Roubava peças de roupa para transfor-
mar sua mulher, Yolanda, em Joaninha.
As primeiras cenas de Tião no cultivo do cacau nas roças
de Teodoro exibem para o telespectador um empregado des-
lumbrado com a bondade de um patrão que o usava e enga-
nava. Um empregado que confiava no patrão, a ponto de não
suspeitar o motivo das delicadezas que ele lhe dispensava.
Joana pede para que tenha cuidado, estão dizendo que o pa-
trão não é tão bom assim... Tião, bravo, não a deixa prosse-
guir, ele precisava acreditar e confiar. Confiança que, na nar-
rativa, lançará Tião na busca do seu “pote de ouro”.
Teodoro, depois de observar Joana com olhos de desejo,
encontra com Tião, cumprimenta-o com efusividade, o braço
sobre os seus ombros, e diz: “Você é um homem feliz, tem
saúde, mulher, filhos”. Tião prontamente responde: “Sou não
senhor. Falta uma rocinha”. E aí, o patrão discorda dizendo
que Tião tinha que sonhar mais alto e dá como exemplo a
história de Inocêncio, o coronel que depois de criar um diabi-
nho na garrafa, tornou-se senhor e dono de terras e riqueza.
Tião, convencido que devia sonhar mais alto, pois nunca o
havia feito, decide que vai fazer um trato com o demo: “quero
tirar a gente dessa miséria”, dizia para Joana. Ela retrucava:
“mas nós nunca estivemos tão bem de vida, temos casa, boa
comida, trabalho, as crianças estão felizes e temos um patrão
bom”. Tião interrompe: “Mas eu quero ser o patrão. Deus
quando fez o mundo não deu terra para ninguém, pegaram
seus pedaços os que foram mais espertos. Agora tô achando
que foi o diabo quem fez a partilha.” A convicção cresce em
Tião. Joana cultiva o medo, o terço entre os dedos, reza. Terço
na mão. “O que temos hoje é passageiro”, vaticina Tião. “Quem
disse que um dia o patrão não manda a gente embora daqui?
E, se mandar, a gente volta para o Manguezal? Ou para estra-
da esperar outro padre cair do céu?” Tião, enérgico e decidi-
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 259

do, não titubeia mais: “Não, Joana. Nunca mais na minha


vida quero voltar a caçar caranguejo. Quero andar para fren-
te. Eu vou lhe vestir de rainha e você vai ficar feliz.”
Tião queria enriquecer para mudar a vida de sua família.
Propõe a si mesmo a única via que lhe parecia possível para a
ascensão social, o pacto com o diabo. Coronel Inocêncio tinha
ficado rico por causa do demônio que tinha na garrafinha.
Precisava conhecê-lo e convencê-lo a contar-lhe o segredo.
Depois de uma longa caminhada em um burro velho de seu
patrão, consegue estar diante do temido e respeitado
Inocêncio. Os portões fechados. Inocêncio visto de cima de
suas escadarias. Tião, em close, atrás das grades do portão
que os separavam. Inocêncio se recusa a deixá-lo entrar, não
precisa de empregados, também não quer saber de gente de
Teodoro. Tião insiste e fala as palavras mágicas: “Eu venho da
parte do demo.”
Na sala de Inocêncio, o coronel sentado na sua cadeira de
patriarca, pergunta a Tião, em pé, um pouco afastado, barba
por fazer, chapéu de pano entre as mãos. Olhar firme, apesar
do porte respeitoso diante do senhor. Terão uma longa con-
versa. Inocêncio busca dissuadir Tião, sente pena, chega a ser
ríspido com ele, mas não consegue negar o pedido diante da
firme insistência de Tião. “Trabalho não dá roça e vida melhor
para Joana e meus filhos. Trabalhei a vida inteira e nunca tive
nada de meu. Eu quero ser patrão. Por isso posso ter parte
com o demo.” Inocêncio fala do preço alto que tem que ser
pago, a vida de um ente querido. Tião sofre muito, o choro
contido, mas decide que um de seus filhos será o preço. “Te-
nho a minha Joana. A gente enricando, faço outro filho nela.
Faço o trato porque estou cansado de viver na miséria.”
Inocêncio lhe conta uma história repleta de complicações
esperando que estas dificuldades dissuadissem Tião do seu
intento. Porém, nada o impediria, estava decidido a sair da
miséria. A credulidade de Tião lhe faz passar por situações
muito difíceis e ridículas. “Cai na boca do povo”, perde sua
eficiência no trabalho, perde a paz na relação com a mulher,
que, impotente, vê seu marido preso e torturado pelo sonho
de “enricar” e pela culpa de ter que oferecer um dos filhos em
260 Telenovela e Representação Social

troca do sonho realizado. Tião torna-se Tião Galinha, que cui-


da sem descanso da franguinha preta que lhe daria o ovo
“galado” pelo Demo.
A descoberta da verdade sobre o diabo abaterá este sonha-
dor, que precisava de novas estratégias para chegar à sua roça.
Tentará, através do apoio de Padre Lívio, o padre barbudo e
progressista, usar sua fé e a ‘força do evangelho’ para explicar e
reinventar a sua existência, o seu infortúnio e os seus sonhos. A
história de Tião trafega pelo desemprego, por trabalhos esporá-
dicos, não se adapta ao cultivo do cacau. Mas nada diminui o
sonho de um pedaço de terra e de uma vida melhor. Torna-se
um pregador no meio dos trabalhadores rurais nas terras de
Teodoro, que manda surrá-lo e urde uma artimanha que o leva
a prisão. Solto por seus amigos, continua sua caminhada. No-
vamente é fruto de calúnias e por ser pobre, em princípio, é
culpado. Mais uma vez é levado à prisão.
Assim que chega na cela, diz ao delegado, “eu não fiz
nada...”. Mal termina a frase é violentamente agredido no ros-
to. Trancam a cela. “É muita humilhação. Eu não vou agüen-
tar”. Tião mira o teto de grades, longo close em seu rosto, lágri-
mas. Joana inquieta e descontrolada conversa com os amigos
Rachid e Yolanda. Prevê a morte de Tião. “Se ele dormir na
prisão a humilhação o matará. A única coisa que meu Tião tem
nessa vida é vergonha na cara. Temos que voltar para o
manguezal, ensinar nossos filhos a catar caranguejo. Esse é o
destino que Deus deu pra nós nessa vida. Oh! Meu pai, a gente
era feliz lá.” Grita o desespero de sua agonia: “Eu falei. A gente
tinha perna curta demais para os sonhos dele.” A seqüência se
encerra com uma cena silenciosa de Tião, de costas nuas, abrin-
do a camisa em tiras (detalhe). O intervalo prenuncia a morte.
No dia seguinte, o delegado caminha em meio ao cárcere
para ver Tião, motivo de chacota porque trocou a comida por
papel e lápis. “Prendemos um poeta...” O delegado assombra-
do diante da cela de Tião. Atrás das grades o vê, seminu, en-
forcado. Uma seqüência contundente e longa, que alterna
cenas diferentes de Tião, delegado, carcereiro que chega, Tião...
Uma luz ilumina o corpo, Tião crucificado, música sacra cres-
cente. Em certo momento o delegado abre a mão de Tião, um
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 261

bilhete: “Quem trabalha mata a fome e não come o pão de


ninguém. Quem ganha mais do que come, sempre come o
pão de alguém. A escritura sagrada é a escritura de terra. Eu
só queria um bocadinho de terra, mode plantar minha rocinha
e criar os meus filhos.” Rosto em close de Tião, sua voz em off,
fusão de imagens que traz suas mãos espalmando terra em
momento de pregação para os trabalhadores. Flash back. Tião,
o mensageiro: “Não vou precisar mais do que um bocadinho
de terra pra dar estudo para os meus filhos... Deus quando fez
o mundo, distribuiu terra pra que? Então, por que ela tem
tanto dono?” Nesse momento, o “sotaque de pobre” é tão in-
tenso que perde-se clareza. Uma alusão à fome ao final do seu
discurso faz jorrar na tela imagens fotográficas da fome do
mundo – mulheres da Etiópia, ossos de animais no sertão.
Inusitadamente, foi dedicado um capítulo à morte de Tião
e à simbologia que o movia. Dois momentos destacam-se após
as seqüências da prisão e morte, a do velório e a do enterro,
numa progressiva inserção de mensagens mediante os diálo-
gos, letras de músicas e imagens.
No velório, escutam-se sinos e a canção que se faz de últi-
ma palavra de Tião para Joana e para os telespectadores:
Se o que nos consome fosse apenas fome, cantaria o
pão. Como que sugere a fome para quem come, como
que sugere a fala para quem cala, como que sugere a
tinta para quem pinta, como que sugere a cama para
quem ama. Palavra, quando acesa, não queima em vão,
deixa uma beleza posta em seu carvão. E se não lhe
atinge, como uma espada, peço que não me condene, Ó
Minha amada. Pois as palavras foram para ti amada.
Pe. Lívio o absolve: “Tião dos caranguejos, Tião da gali-
nha preta, Tião sonhador, Tião bóia-fria, Tião sem terra, Tião
brasileiro. É por você, Tião de Joaninha, Tião brasileiro, que
vamos rezar agora” (Ave Maria em coral).
Um intervalo comercial para respirar. Volta-se para a
cena do mangue, lama e troncos, ao fundo Tião, pura lama
e vigor, alça o fruto de seu trabalho-natureza. Close no ca-
ranguejo, substituído pelo rio de cores do mangue, ao pou-
262 Telenovela e Representação Social

cos um tom azulado preenche a telinha. Dunas e o mar ao


longe, fortes ondas de espuma. Ao longe, a procissão do en-
terro de Tião, progressiva aproximação que busca Joaninha,
véu negro sobre a cabeça, terço entre os dedos e o olhar per-
dido no mar. Chega Yolanda, ajuda-a a prosseguir, a vida
carece continuar, encerrando uma das mais longas seqüên-
cias de denúncia e lirismo da miséria e da fome já narrados
numa telenovela brasileira.
Cenas que foram acompanhadas por uma música sacra,
cantada e vibrante, e por trechos de poesia manuscritos em
letras brancas que diziam:
Como todo real é espesso, aquele rio é espesso e real.
Como é muito mais espesso o sangue de um homem
do que o sonho de um homem. Espesso como uma
maçã é espessa. Como uma maçã...é muito mais es-
pessa se um homem a come do que se um homem a
vê. Como é ainda mais espesso se a fome a come.
Como é ainda mais espessa, se não a pode comer a
fome que a vê.
Um personagem que vai da ingenuidade à sabedoria dos
mártires, um personagem que vai da relação de submissão e
adoração ao patrão a uma relação pautada na desilusão e na
clareza de que do patrão senhor de terras não virá a mudança
que ele anseia. Do trabalho servil só se colhe a miséria. Tião
também pregava no deserto de si mesmo, sugerindo que o
evangelho ou discursos que desnudam a exploração, a injus-
tiça e as desigualdades não florescem, dando frutos, quando
eles se limitam às batalhas solitárias daqueles que ingenua-
mente só querem um pedacinho de terra.
Um personagem fortemente caracterizado pelo trabalho
e pela devoção à mulher e aos filhos. Ao contrário de Teca, em
nenhum momento acena em sua história a possibilidade da
ascensão social. Os caminhos mágicos que a prenunciam só
traduziram fracassos. Tião, de fato, sonhava um dos mais
duros e difíceis projetos da sociedade brasileira: a reforma
agrária. Tião, símbolo de todos os pobres, de todos aqueles
que carregam a vida severina de Sebastião.
O Popular em Cena na Telenovela Renascer 263

Tião foi construído com esse propósito de personagem


exemplar. Barbosa afirmou que “Tião Galinha eu já conheci
500”. “O Tião Galinha é a soma desses anseios que você en-
contra. Se você viajar para o interior, chegar numa fazenda
de café, você encontra uma quantidade enorme de pessoas
colhendo e derriçando café (...) Acabada a derriça, eles ficam
sem empregos, sem nada ...” (entrevista Souza, 28.9.1998).
Carvalho queria narrar a pobreza, misturando fábula e
tragédia, para oferecer o real que, como ele mesmo diz, é mais
espesso. “O conflito entre o sonho e a precariedade do perso-
nagem faz de Tião um representante dos impulsos primitivos
do povo. Ele não tem consciência política, mas é a força pri-
mitiva dela. É um dos personagens que mais se aproxima de
uma mudança de linguagem, propiciando grandes vôos artís-
ticos” (Revista da TV, O Globo, 27.6.1993). Segue dizendo que
“a morte de Tião Galinha foi uma comoção, pois era um per-
sonagem sintonizado com o inconsciente do povo e tanto eu
como o Benedito acreditamos na importância de retratar a
desesperança, o vazio no qual sobrevivem os nossos heróis anô-
nimos” (Revista da TV, Jornal do Brasil, 13.11.1993).
Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho, profissi-
onais da produção simbólica que se sabem peritos na arte de
narrar um gênero popular e massivo e se concebem como
empresários da moral que deve representar o popular subal-
terno, contraditório, paradoxal, limitado, encarnando a dig-
nidade, a coragem, a luta e a esperança numa nova sociedade
mais justa e igualitária. Narrando o popular e o real também
representam um importante lugar no campo da telenovela e
na sociedade brasileira: o da defesa da criação e da renovação
diante da indústria da cultura que, ao mesmo tempo, vampiriza
e alimenta.
265

Considerações Finais

A observação do cotidiano daqueles que o adjetivo popular


qualifica – pobres, pessoas simples e sem instrução
–, remete a uma reflexão sobre as desigualdades sociais, eco-
nômicas, culturais e políticas que o caracterizam. Muitos são
os modos de pensar e agir sobre elas, e não são poucas vezes
que se indaga sobre os processos de produção destas concep-
ções. Este livro apresentou os resultados de uma investigação
sobre um dos meios de formulação e difusão dessas represen-
tações sociais, as telenovelas, ou melhor, sobre as relações entre
as representações do popular na telenovela e a posição do es-
critor no campo de sua produção.
Esse gênero ficcional televisivo comporta algumas carac-
terísticas bem evidentes: foi feito para divertir, os pobres não
são muito importantes e rapidamente melhoram de vida; o
telespectador é constantemente interpelado pelas emoções que
as histórias de amor suscitam e na maior parte das vezes tem-
se a impressão que não se pode ser muito crítico diante das
ações dos personagens, pois se corre o risco de desligar a TV e
deixar de seguir a história.
Porém, se mirar com um pouco mais de atenção as teleno-
velas da TV Globo, do chamado horário das 20:00h, algumas
diferenças importantes se colocam: a cada escritor correspon-
de um tipo de telenovela, muitos são os temas sociais aborda-
dos e nem sempre aqueles que representam os pobres terão um
final feliz. A denúncia social se faz presente. Como explicar a
existência dessas posturas mais críticas? Como pensar as dife-
rentes formas de abordagem do popular nas telenovelas?
A investigação aqui apresentada respondeu estas indaga-
ções depois de estabelecer uma interlocução primeira com as
pesquisas do casal Mattelart (1989) e de Borelli, Ortiz e Ra-
266 Telenovela e Representação Social

mos (1989). As concepções de Martín-Barbero (1987) sobre


telenovelas também foram uma importante referência. Todos
defendiam, com muita propriedade, que as respostas mais
adequadas surgiriam de um exame cuidadoso da história da
produção das telenovelas brasileiras que considerasse o papel
dos realizadores na elaboração das representações. No caso
de Ramos e Ortiz pode-se encontrar a interface com o campo
da telenovela, uma das noções centrais deste livro. Essa ver-
tente analítica gerou, então, a necessidade de explorar os pro-
cessos de produção das representações pela via das proposi-
ções de Pierre Bourdieu, em especial, as noções de campo,
habitus e trajetória.
Ao centrar a atenção nas práticas dos formuladores das
representações do popular nas telenovelas, emergiu a exigên-
cia de explicar as diferenças e as semelhanças dos modos dos
escritores representarem o popular nas telenovelas da maior
emissora produtora desse gênero no Brasil, assim como colo-
cou em pauta a compreensão das relações dessas diferenças e
semelhanças com a dinâmica social particular de produção
das telenovelas, ou seja, com o campo da telenovela. Esta di-
reção teórico-metodológica forneceu as bases para a defini-
ção dos critérios de seleção de obras e realizadores que deveri-
am ser examinados diante de uma profusão de materiais pas-
síveis de análise1. Decidiu-se, então, pela telenovela Renascer,
TV Globo, horário das 20:00h, e pelo escritor, Benedito Ruy
Babosa.
O olhar recaiu, assim, sobre a trajetória de Benedito Ruy
Barbosa, que apesar de reconhecido no campo, surgiu em
1993, pela primeira vez, no horário mais cobiçado pelos reali-
zadores, com a telenovela Renascer. Isso, depois de 27 anos de
experiência com telenovela. Ele estava acompanhado por Luiz
Fernando Carvalho, um diretor que não só inaugurava o ho-
rário, mas também a posição de diretor-geral. Carvalho, as-

1 Para lembrar, no período da investigação, os primeiros anos da década de 1990, em


cada horário da maior emissora produtora de telenovela do país podia-se localizar
quatro telenovelas por ano e, claro, mais de 20 por horário numa década com muitas
dezenas de realizadores envolvidos, isto se considerar apenas os escritores e diretores.
Ver também a introdução e o capítulo quatro.
Considerações Finais 267

sim como Barbosa, estavam sendo considerados representan-


tes de um novo modo de fazer telenovela. Um outro aspecto
curioso e fundamental para a seleção desses realizadores e da
telenovela Renascer foi que a história trouxe para a telinha
uma postura de crítica social diante de personagens e situa-
ções de pobreza, que inusitadamente não finalizaram suas
trajetórias embalados pela doce magia da ascensão social.
Refiro-me aos personagens examinados: Teca e Tião Galinha.
Por que a noção de campo da telenovela foi tão importan-
te? Por ter se mostrado a mais completa ao permitir investigar
as relações entre as representações sociais do popular e a re-
presentação do popular nas telenovelas a partir do que
Bourdieu denominou de sociologia dos produtores. Uma pers-
pectiva analítica que articulava a lógica interna dos objetos
culturais com as relações objetivas entre os agentes e as insti-
tuições que os elaboram.
Quais foram os aspectos que se destacaram na investiga-
ção realizada?
O primeiro deles: o ponto de vista dos realizadores que
teve maior importância e crescimento na história do campo
da telenovela foi aquele que associava as representações soci-
ais do popular com a idéia de sociedade brasileira em acentu-
ado processo de modernização. Observou-se que as represen-
tações que relacionavam as idéias de povo, nação, ascensão
social e modernização diziam respeito tanto à história das po-
sições dos agentes e instituições no campo, quanto à história
dos modos de dramatizar o popular no gênero.
Aspecto que concerne ao espaço de possíveis do campo e
à primeira hipótese de trabalho formulada: os realizadores
de telenovelas dramatizam o popular a partir das posições
ocupadas no campo e dos universos de referência e possibili-
dades históricas de narrar o popular no gênero. A análise da
história dos principais elementos desse universo no espaço
social e no campo das telenovelas brasileiras levou a algu-
mas premissas.
Os debates em torno do realismo no campo da telenovela
e a dinâmica que ele impôs aos jogos de disputa e aos sistemas
de reconhecimento e consagração dos realizadores e suas obras
268 Telenovela e Representação Social

é a primeira delas. O realismo foi colocado como vertente es-


tético-político de abordagem do popular e do nacional e se
tornou um importante critério de avaliação das obras e dos
realizadores, levando a um crescimento dessa vertente no cam-
po ao longo de sua história.
A segunda premissa decorre da anterior ao apontar que a
tendência do aumento de telenovelas realistas levou a uma
análise das matrizes narrativas deste gênero ficcional que per-
mitissem estabelecer as relações entre elas e os modos realis-
tas de narrar o popular. A análise dessas relações não só indi-
cou alguns canais de observação da representação do popu-
lar nas telenovelas como também demarcou, com mais clare-
za, as fronteiras narrativas que limitam a construção da re-
presentação.
Entre os canais de observação aludidos merece menção
os sentimentos associados à representação do popular – o
medo, a repugnância, a piedade, o amor, a honra – identifica-
dos a partir das relações entre os personagens e as diferentes
posições sociais que representam (rico/pobre, possuidor de
bens/despossuído de bens, patrão/empregado) e, merece tam-
bém menção, as práticas institucionais, familiares e individu-
ais destinadas ao popular, supondo serem elas exemplos sig-
nificativos dos sentidos culturais, sociais e políticos que essa
representação aciona, assim como das estratégias e táticas no
jogo de disputas voltados à ascensão social, à assistência e ao
controle social.
O estudo das fronteiras narrativas da representação do
popular nas telenovelas salientou que, de fato, ela tende a
ocupar um lugar secundário. Ela tem lugar garantido nas tra-
mas paralelas, que podem ganhar em volume e importância,
dependendo dos estilos e pontos de vista dos realizadores. Os
protagonistas, por exemplo, podem apresentar um passado
de pobreza, ou um passado de riqueza que poderá levar vários
meses para ser descoberto. Eles podem inclusive ser pobres
num momento provisório de suas histórias. Nesse caso especí-
fico, o estado de pobreza tende a ser associado com a prova-
ção recompensadora de alguma reparação. Enfim, observou-
se uma ênfase na representação do popular voltada para as
Considerações Finais 269

passagens necessárias que levam a um mundo melhor, con-


duzindo a todos pelas trilhas da ascensão social em tempos de
modernização. Mas não se deve deixar de ressaltar que esta
investigação não se dedicou à recuperação dos lastros históri-
cos das fronteiras narrativas dessas representações (elas fo-
ram apenas mencionadas quando as matrizes culturais folheti-
nescas das telenovelas foram apresentadas), assim como não
foi estabelecido um sistema que as comparasse entre si. Pon-
tos que merecem a atenção de pesquisas futuras.
As premissas anteriormente citadas – as disputas em tor-
no do realismo no campo e os modos realistas de narrar o
popular – foram fundamentais para a análise da telenovela
Renascer, isto porque proporcionaram uma aproximação com
o real de seu texto, com a história e as situações dos persona-
gens analisados. A perspectiva teórica adotada firmou que se
deve examinar as relações da trajetória dos realizadores no
campo com as representações do popular em suas obras.
Sabia-se estar diante de escolhas operadas pelo texto – tele-
novela para desenhar um mundo possível a partir de relações
complexas com um mundo real, ou melhor, estava claro que não
se podia fazer um uso indiscriminado da telenovela. A estratégia
consistia em interrogar as representações do popular narradas,
sabendo que remetiam direta ou indiretamente à sociedade real
em que se inscreviam. O que se pretendeu garantir foi uma utili-
zação mais completa da telenovela, retirando informações a partir
de uma inspeção meticulosa das maneiras pelas quais o gênero
(incluindo a telenovela Renascer), construiu as representações.
Por fim, ainda precisa ser mencionado o fato de a análise ter sido
direcionada e limitada pelos recortes colocados pelo objetivo per-
seguido na investigação: mostrar as relações entre a história do
campo da telenovela, a trajetória dos realizadores e os modos de
representar o popular em suas obras. A ênfase nessas relações
levou a uma análise de Renascer muito mais voltada para a histó-
ria e diégese da telenovela do que para as suas formas de expres-
são. Por isso, os aspectos formais típicos da linguagem do meio
televisivo não foram diretamente abordados, restringindo-se à
construção dos personagens populares e à constituição da tra-
ma em que eles estavam envolvidos.
270 Telenovela e Representação Social

Um outro aspecto que mereceu a atenção refere-se à se-


gunda hipótese da investigação. Sugeria que além da posição
no campo da telenovela, a posição dos realizadores no espaço
social seria um importante indicador para se pensar as esco-
lhas frente às representações sociais do popular.
Os escritores e diretores de telenovela compartilhavam de
princípios afinados com os chamados “novos intermediários
culturais”. Apresentavam uma postura paradoxal, marcada
pela ambigüidade, diante do popular. Entre tantas caracterís-
ticas levantadas, frisou-se aquela que conduziu o olhar analí-
tico para a tendência dos novos intermediários culturais de
confrontarem as distinções e hierarquias simbólicas da alta
cultura e das culturas populares. Proposição que permitiu
aventar a relação entre esta perspectiva e os movimentos dos
realizadores de telenovelas na história do campo na sociedade
brasileira que lutaram pelo reconhecimento dos critérios ar-
tísticos e estéticos para a consagração e a distinção do gênero
e de seus autores. O que a análise do campo da telenovela
mostrou foi que no caso brasileiro o paradoxo apresentou a
ênfase na “estetização da vida” e na sua articulação com a
questão do desenvolvimento de “habitus mais flexíveis”. Logo,
pode-se afirmar que gêneros massivos como a telenovela ex-
pressam a habilidade da articulação paradoxal do popular e
do erudito.
Foi possível, então, localizar na representação do popular
em Renascer relações com dimensões das trajetórias de Barbo-
sa e Carvalho que apresentavam tomadas de posição decor-
rentes desse projeto mais amplo de difusão do erudito, de va-
lorização do popular e de estimulação de práticas emanci-
padoras. Posturas que incentivavam o desenvolvimento de
habitus flexíveis alimentadores da reflexividade, quer dizer,
propiciadores de disposições sociais e inconscientes que per-
mitiriam lidar com o paradoxo e o provisório.
Um outro ponto associado ao anterior remete à tendência
de se construir representações do popular, ora voltadas para a
ênfase nos aspectos negativos do popular – o combate a vul-
garidade e a ignorância, por exemplo –, ora voltadas para uma
ênfase nos aspectos positivos do popular. Tendência que tam-
Considerações Finais 271

bém deve ser pensada a partir da posição dos realizadores no


campo e no espaço social.
O que se pôde observar, no estudo da trajetória de Barbo-
sa e de Carvalho, foi a presença da exaltação e das dimensões
positivas do popular associadas à crítica aos seus aspectos
negativos – a ingenuidade, a ignorância e a submissão. Ca-
racterísticas que foram usadas pelos próprios realizadores para
narrarem o reconhecimento que eles alcançaram. Exaltavam
a autonomia conquistada, a qualidade do trabalho de especi-
alistas e a não submissão ao mercado e á emissora. Exaltação
mesclada com a declaração de proximidade com o popular
pela experiência de vida e pelos princípios políticos, morais e
estéticos.
A terceira e ultima hipótese dizia que quanto mais frágil a
autonomia do campo, maior a presença de realizadores que
defendem e se sentem autorizados a falar para o povo e pelo
povo. E quanto maior o envolvimento nas lutas internas de
reconhecimento e consagração do campo, maior a tendência
de utilizarem o recurso que os transforma em empresários
morais do popular, seja para defendê-lo, seja para apoiá-lo
nas lutas contra a pobreza, a injustiça, a ignorância.
A análise da representação do popular em Renascer per-
mite dizer que tanto Barbosa quanto Carvalho – participantes
de lutas internas por reconhecimento e consagração de um
campo de autonomia assaz relativa – podem ser considerados
empresários morais do popular, profissionais peritos da pro-
dução simbólica. Profissionais cientes do papel das represen-
tações que significam estratégias de luta em seu campo de
disputas, e possibilidades de repercussão positiva ou negativa
nos indivíduos, grupos ou classes representados.
As reflexões apresentadas neste livro detiveram-se sobre
as regras básicas e históricas de funcionamento do campo da
telenovela para compreender as relações entre a trajetória de
Benedito Ruy Barbosa e a representação do popular em Re-
nascer. Tal restrição demanda novos estudos sobre o campo
da telenovela para permitir a comparação das trajetórias e
obras de outros realizadores. Medida que viabilizaria conside-
rações mais precisas e generalizáveis sobre as representações
272 Telenovela e Representação Social

do popular nas telenovelas. Até o momento, reserva-se as pon-


derações ao caso particular de Benedito Ruy Barbosa e Luiz
Fernando Carvalho, acreditando consolidar a pertinência des-
te caminho analítico para novas investigações nessa área.
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Quadro 1: Escritores e Diretores Gerais de Telenovelas do Horário das 20:30h.


Rede Globo de Televisão (1979 a 1993)

Ano Telenovela Escrit or(es) Diret or(es)


Os Gigantes
1979 Lauro Cezar Muniz Régis Cardoso
( 20/ 08/ 79 a 02/ 02/ 80)

Água Viva Gil berto Braga e Roberto Tal ma e


1980
( 04/ 02/ 80 a 09/ 08/ 80) Manoel Carl os Paul o Ubiratan
Coração Al ado Roberto Tal ma e
Janete Cl air
( 11/ 08/ 80 a 14/ 03/ 81) Paul o Ubiratan
Bail a Comigo Roberto Tal ma e
Manoel Carl os
( 16/ 03/ 81 a 26/ 09/ 81) Paul o Ubiratan
1981
Gil berto Braga
Daniel Fil ho col aboração
Bril hante col aboração de
de Marcos Paul o e
( 28/ 09/ 81 a 27/ 03 82) Eucl ides Marinho e
José Carl os Pieri
Leonor Basséres
Roberto Tal ma
Sétimo Sentido
Janete Cl air col aboração de Jorge
( 29/ 03/ 82 a 08/ 10/ 82)
Fernando e Guel Arraes
1982
Manoel Carl os
Sol de Verão Roberto Tal ma, Jorge
e no final por
( 11/ 10/ 82 a 26/ 02/ 83) Fernando e Guel Arraes
Lauro Cezar Muniz
Gil berto Braga
Louco Amor
col aboração de Paul o Ubiratan
( 11/ 04/ 83 a 21/ 10/ 83)
Leonor Basséres
1983
Cassiano Gabus Paul o Ubiratan
Champagne
Mendes col aboração col aboração de Wol f Maia
( 24/ 10/ 83 a 04/ 05/ 84)
de Luciano Ramos e Mario M. Bandarra
Roberto Tal ma
Partido Al to Aguinal do Sil va e col aboração de Luis
( 07/ 05/ 84 a 24/ 10/ 84) Gl ória Perez Antônio Piá e Hel mar
1984 Sérgio
Gil berto Braga
Corpo a Corpo Dênis Carval ho e
col aboração de
( 26/ 10/ 84 a 21/ 06/ 85) Jaime Monjardim
Leonor Basséres
286

Quadro 1: continua...

Ano Telenovela Escrit or(es) Diret or(es)


Dias Gomes e
Paul o Ubiratan
Aguinal do Sil va
Roque Santeiro col aboração de
1985 col aboração de
( 24/ 06/ 85 a 21/ 02/ 86) Jayme Monjardim e
Marcíl io Moraes e
Gonzaga Bl ota
Joaquim Assis
Janete Cl air, atual izada Wal ter Avancini (até o
Sel va de Pedra
por Regina Braga e cap. 20) e Dênis Carval ho
( 24/ 02/ 86 a 22/ 08/ 86)
1986 El oy Araújo (do cap. 21 em diante)
Roda de Fogo Lauro César Muniz e Dênis Carval ho e
( 25/ 08/ 86 a 21/ 03/ 87) Marcíl io Moraes Ricardo Waddington
Gonzaga Bl ota
Aguinal do Sil va
O Outro col aboração de
col aboração de
( 23/ 03/ 87 a 10/ 10/ 87) Fred Confal onieri e
1987 Ricardo Linhares
Ignácio Coqueiro
Mandal a Dias Gomes e Ricardo Waddington e
( 12/ 10/ 87 a 14/ 05/ 88 Marcíl io Moraes José Carl os Pieri
Gil berto Braga,
Val e Tudo
1988 Aguinal do Sil va e Dênis Carval ho
( 16/ 05/ 88 a 07/ 01/ 89)
Leonor Basséres
Paul o Ubiratan
O Sal vador da
col aboração de
Pátria Lauro César Muniz
Gonzaga Bl ota,
( 09/ 01/ 89 a 12/ 08/ 89)
José Carl os Pieri
1989
Aguinal do Sil va Paul o Ubiratan
Tieta col aboração de col aboração de
( 14/ 08/ 89 a 31/ 03/ 90) Ana Maria Moretzohn Reynal do Boury e
e Ricardo Linhares Luis Fernando Carval ho
Rainha da Sucata Jorge Fernando e
Sil vio de Abreu
( 02/ 04/ 90 a 27/ 10/ 90) Jodel e Larcher
Cassiano Gabus
1990 Paul o Ubiratan
Meu Bem, Mendes col aboração
col aboração de
Meu Mal de Maria Adel aide
Ricardo Waddington e
( 29/ 10/ 90 a 14/ 05/ 91) Amaral , Dejair Cardoso
Reynal do Boury
e Luiz Carl os Fusco
Gil berto Braga
Dênis Carval ho
O Dono do col aboração de
col aboração de
1991 Mundo Leonor Basséres,
Ricardo Waddington e
( 16/ 05/ 91 a 04/ 01/ 92) Angel a Carneiro e
Mauro Mendonça Fil ho
Ricardo Linhares
287

Quadro 1: continua...

Ano Telenovela Escrit or(es) Diret or(es)


Paul o Ubiratan,
Pedra Sobre Pedra col aboração de
Aguinal do Sil va
( 06/ 01/ 92 a 01/ 08/ 92) Gonzaga Bl ota e
1992 Luis Fernando Carval ho
De Corpo e Al ma
Gl ória Perez Rogerto Tal ma
( 03/ 08/ 92 a 06/ 03/ 93)

Benedito Ruy Barbosa Luis Fernando Carval ho


Renascer col aboração de col aboração de e
1993
( 08/ 03/ 93 a 13/ 11/ 93) Edmara Barbosa e Emil io di Biasi e
Edil ene Barbosa Mauro Mendonça Fil ho

Fonte: Boletins de Programação de Telenovelas da TV Globo e Centro de Documenta-


ção da emissora.
288

Quadro 2: Telenovelas de Benedito Ruy Barbosa (1966 a 2002)

Ano Telenovela Emissora Observações


Obra baseada no romance
Somos Todos Tupi
A Vingança do Judeu de
Irmãos (Col gate Pal mol ive)
J.W. Rochester
O Anjo e o Tupi
Vagabundo (Col gate Pal mol ive)

1966 Eu Compro Gl obo


Essa Mul her (Col gate Pal mol ive)
Supervisor
Record
Úl tima Testemunha
(Col gate Pal mol ive)

Al gemas de Ódio Record


(obra original ) (Col gate Pal mol ive)

Excel sior Adaptação do original de


1967 O Tempo e o Vento
(Col gate Pal mol ive) Érico Veríssimo Supervisor
O Décimo
1968 Record Tradutor e Adaptador
Mandamento
Gl obo
Meu Pedacinho (13:00 e 18:00) Dirigida ao públ ico
1971/ 2
de Chão Cul tura infanto-juvenil
(10:00 e 22:00)

Adaptação do original de
1976 O Feijão e o Sonho Gl obo (18:00)
Orígenes Lessa
A Sombra dos Novel a de Veriato Corrêa
Gl obo (18:00)
Laranjais Adaptação
1977/ 8
Sítio do Pica Pau Reformul a, a pedido de Boni,
Gl obo (18:00)
Amarel o 12 capítul os da série
Adaptação do original de
1979 Cabocl a Gl obo (18:00) Ribeiro Couto Prêmio da
APCA de mel hor novel a
Bandeirantes
1980 Pé de Vento
(19:00)

Prêmio APCA – Novel a e


1981 Os Imigrantes Bandeirantes
Autor Troféu Imprensa

1982 Paraíso Gl obo (18:00)

1983 Vol tei pra Você Gl obo (18:00)


289

Quadro 2: continuação

Ano Telenovela Emissora Observações


Sinopse de Benedito Ruy
1985 De Quina pra Lua Gl obo (18:00) Barbosa e novel a de Al cides
Nogueira
Inspirado no romance de
1986 Sinhá Moça Gl obo (18:00)
Maria Dezzone P. Fernandes

1988 Vida Nova Gl obo (18:00)

Prêmio de Mel hor Programa


Internacional – Chil e Mel hor
1990 Pantanal Manchete Tel enovel a pel a Associação
Paul ista dos Críticos de Arte
(APCA)
Mel hor Teel enovel a, Mel hor
Ator (Antônio Fagundes),
Revel ação Mascul ina (Jackson
1993 Renascer Gl obo (20:30) Antunes), Ator Coadjuvante
(Osmar Prado), e Atriz
Coadjuvante (Regina
Dourado) pel a APCA
Troféu de l mel hor autor,
mel hor novel a e mais 18 das
1996 Rei do Gado Gl obo (20:30) 24 categorias da premiação do
2º Prêmio Contigo de
Tel enovel as

1999 Terra Nostra Gl obo (20:30)

2002 Esperança Gl obo (20:30)

Fonte: material de imprensa, Centro de Documentação da TV Globo.

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