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A construção de mundos

na ficção televisiva brasileira


VOLUME 6
COLEÇÃO TELEDRAMATURGIA

A construção de mundos
na ficção televisiva brasileira
Org. Maria Immacolata Vassallo de Lopes

Ana Paula Goulart Ribeiro


Cecília Almeida Rodrigues Lima
Daniela Schmitz
Dário Mesquita
Gabriela Borges
Igor Sacramento
João Massarolo
Ligia Prezia Lemos
Marcia Tondato
Maria Aparecida Baccega
Maria Carmem Jacob de Souza
Maria Cristina Brandão de Faria
Maria Ignês Carlos Magno
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Nilda Jacks
Rodrigo Lessa
Rogério Ferraraz
Sandra Depexe
Veneza Ronsini
Yvana Fechine
© Globo Comunicação e Participações S.A., 2019
Capa: Letícia Lampert

Projeto gráfico e editoração: Niura Fernanda Souza

Preparação de originais e revisão: Felícia Xavier Volkweis

Editores: Luis Antônio Paim Gomes e Juan Manuel Guadelis Crisafulli

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza – CRB 10/960

C758
A construção de mundos na ficção televisiva brasileira / orga-
nizado por Maria Immacolata Vassallo de Lopes. -- Porto Alegre:
Sulina, 2019.
255 p.; 14x21cm.

ISBN: 978-85-205-0850-3

1. Televisão – Programas. 2. Produção Televisiva – Ficção.


3. Meios de Comunicação Social. 4. Comunicação de Massa. I.
Lopes, Maria Immacolata Vassallo de.

CDD: 791.455
CDU: 316.77
654.19
659.3

Direitos desta edição adquiridos por Globo Comunicação e Participações S.A.

Editora Meridional Ltda.


Rua Leopoldo Bier, 644, 4º andar – Santana
Cep: 90620-100 – Porto Alegre/RS
Fone: (0xx51) 3310.9801
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e-mail: sulina@editorasulina.com.br

Setembro/2019
Sumário

APRESENTAÇÃO
A construção de mundos na ficção televisiva brasileira........................ 9

PRIMEIRA PARTE
Mundos dos produtores e espectadores /
Mundos dos autores e leitores............................................................. 17

A construção de mundos na telenovela brasileira: um estudo de


caso a partir das cinco personagens mais lembradas.......................... 19
Maria Immacolata Vassallo de Lopes, Ligia Prezia Lemos,
Larissa Leda Rocha, Andreza dos Santos, Lucas Martins Néia,
Mariana Lima, Tissiana Pereira, Daniela Ortega

Da concepção ao mito: o mundo da maternidade de


A Força do Querer no Facebook........................................................ 41
Veneza Ronsini, Sandra Depexe, Lúcia Loner Coutinho,
Luiza Betat Corrêa, Simone Munir Dahleh

Construção de mundos na ficção seriada do SBT e da Globo:


A Garota da Moto e Totalmente Demais............................................. 63
Maria Ignês Carlos Magno, Rogério Ferraraz,
Renato Luiz Pucci Jr., Ana Márcia Andrade,
Anderson Gonçalves, Camila Souto,
João Paulo Hergesel, Renan Villalon
SEGUNDA PARTE
Mundos da recepção / Mundos dos fãs............................................... 85

Criadoras de mundos dos casais adorados nas


fanfictions de telenovelas: prazer de amar e narrar............................. 87
Maria Carmem Jacob de Souza, Rodrigo Lessa, Maíra Bianchini,
Hanna Nolasco, Bárbara Souza, Genilson Alves, João Araújo

A construção de mundos ficcionais pelo fandom


Limantha, de Malhação: Viva a Diferença....................................... 107
Gabriela Borges, Maria Cristina Brandão, Daiana Sigiliano,
Leony Lima, Pedro Martins, Matheus Soares, Lucas Vieira

TERCEIRA PARTE
Expansões dos mundos da ficção / Mundos transmídia.................... 133

Ações socioeducativas nos mundos da telenovela transmídia:


um estudo a partir da abordagem de questões LGBTQIA+.............. 135
Yvana Fechine, Cecília A. R. Lima, Diego Gouveia Moreira,
Gêsa Cavalcanti, Marcela Chacel

Design ficcional, mundos possíveis e narrativas transmídia:


modalidades de recepção inclusiva na série Sob Pressão................. 157
João Massarolo, Dario Mesquita, Naiá S. Câmara,
Gustavo Padovani, Anna P. T. Araújo, Luiz E. M. Cunha,
Danilo Mecenas, Júlio C. R. Santos, Yan M. Nicolai
QUARTA PARTE
Mundos narrativos da nação............................................................. 181

Construções de mundo: o popular


da narrativa à recepção...................................................................... 183
Nilda Jacks, Daniela Schmitz, Daniel Pedroso, Denise Alves,
Erika Oikawa, Fabiane Sgorla, Guilherme Libardi,
Laura Wottrich, Lírian Sifuentes, Lourdes Silva, Sara Feitosa, .
Valquiria John

Mundos ficcionais e representação da política:


a ditadura militar nas séries da Globo............................................... 203
Ana Paula Goulart Ribeiro, Igor Sacramento, Patrícia D’Abreu,
Tatiana Sciliano, Lilian Durães, Gabriela Pereira da Silva

Novos formatos teleficcionais e a recepção da televisão


de qualidade no Brasil: um olhar para a supersérie
Onde Nascem os Fortes.................................................................... 225
Marcia Perencin Tondato, Maria Aparecida Baccega,
Andrea Celeste Montini Antonacci, Camilla Rodrigues Netto da
Costa Rocha, Maria Amélia Paiva Abrão, Carolina Saboia,
Antonio Hélio Junqueira, Fernanda Elouise Budag

Sobre os autores e colaboradores...................................................... 247


Apresentação

Com 12 anos de trajetória, a Rede Obitel Brasil vem se destacando


por sua pesquisa ininterrupta sobre a ficção televisiva brasileira. Neste
ano, temos o prazer em apresentar o sexto volume da Coleção Teledra-
maturgia1, com o tema A construção de mundos na ficção televisiva
brasileira: revisitando mundos imaginados na produção e na recepção
de narrativas televisivas ficcionais. A continuidade dessa coleção não
somente reforça a importante parceria com a Globo Universidade, como
também reafirma a consolidação da Rede Obitel Brasil, braço brasileiro
de pesquisadores do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva
(Obitel).2

1
Os cinco volumes anteriores da Coleção Teledramaturgia são: Ficção televisiva no Brasil:
temas e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora Globo/Globo Universidade, 2009; Ficção
televisiva transmidiática no Brasil: plataformas, convergência, comunidades virtuais. Porto
Alegre: Sulina/Globo Universidade 2011; Estratégias de transmidiação na ficção televisiva
brasileira. Porto Alegre: Sulina/Globo Universidade, 2013; Por uma teoria de fãs da ficção
televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina/Globo Universidade, 2015; Por uma teoria de fãs
da ficção televisiva brasileira II: práticas de fãs no ambiente da cultura participativa. Porto
Alegre: Sulina/Globo Universidade, 2017.
2
Criado no ano 2005, em Bogotá, o Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva
(Obitel) é uma rede internacional de pesquisadores que tem por objetivo o estudo sistemático e
comparativo das produções de ficção televisiva no âmbito geocultural ibero-americano. Tendo
como foco a compreensão e análise dos diversos aspectos envolvidos na produção, circulação
e consumo de ficção televisiva nos países que participam do projeto, a rede contempla atual-
mente 12 países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos (de
língua hispânica), México, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela. Com base no monitoramento
permanente da grade de programação, horas e títulos produzidos anualmente, conteúdos e
audiência de ficção das redes nacionais de televisão aberta desses países, o Obitel publica seus
resultados em forma de anuário – o Anuário Obitel – e de seminários internacionais em que
debatem pesquisadores e produtores de teledramaturgia, culminando neste trabalho. A série de
anuários teve início em 2007 e, em 2019, publicou-se o 13º anuário consecutivo.

9
1 Obitel Brasil – Rede Brasileira de Pesquisadores de Ficção Televisiva

Fundado em 2007, o Obitel Brasil surge com a proposta de ser uma


rede nacional que conecta renomados pesquisadores de ficção televisiva.
Composta por mais de 70 investigadores, a rede articula pesquisas desen-
volvidas no âmbito de universidades e centros de pesquisas espalhados
por três regiões e seis estados brasileiros – Pernambuco, Bahia, Minas
Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Em 2019, o Obitel
Brasil mantém sua parceria com dez grupos de pesquisa e o apoio de
universidades públicas e particulares, de agências regionais e nacionais
de fomento à pesquisa.
Sem dúvida, uma rede com esse tempo de existência e uma dimensão
nacional, que se dedica ao estudo da ficção televisiva brasileira, é fato
inédito no campo da Comunicação no Brasil. Prova disso foi o reconheci-
mento advindo pelo Prêmio Luiz Beltrão, com o qual a Rede foi contem-
plada, em 2018, pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares
da Comunicação na categoria “Grupo Inovador”, em função do destaque
e inovação nos planos teóricos e metodológicos de suas pesquisas. Fruto
de um esforço coletivo e do trabalho colaborativo de pesquisadores que
se regem pelos princípios da interdisciplinaridade, a dinâmica de pes-
quisa se pauta a partir de um tema comum, que é pesquisado por todas
as equipes de forma individual e tem seus resultados publicados a cada
dois anos em livro da Coleção Teledramaturgia (Globo/Sulina). A rede
também promove seminários nacionais que reúnem pesquisadores e
produtores da área de ficção televisiva.
Em 2019, o Obitel Brasil traz como tema a construção de mundos na
ficção televisiva brasileira. Reafirmando um interesse comum em alinhar
contribuições de autores internacionais de referência no que diz respeito
à construção de mundos – como Umberto Eco, Marie-Laure Ryan e Mark
Wolf – a questões pertinentes ao cenário da ficção televisiva no Brasil, o
presente volume busca refletir sobre os diferentes mundos criados pela
e a partir da ficção. Assim, passando por estudos que abordam desde
aspectos produtivos até a recepção de narrativas televisivas ficcionais
e os mundos construídos pelo leitor, o trabalho demonstra, no todo, um

10
esforço coletivo em se pensar o modo como a mídia, e mais especifica-
mente a ficção televisiva, vem oferecendo recursos para a construção de
mundos e “eus” imaginados (Appadurai, 1996).
No Brasil, historicamente marcadas por um imaginário da nação
brasileira (Lopes, 2003), as telenovelas, por exemplo, são verdadeiras
fábricas de mundos imaginados, que se definem por um extenso horizonte
de possibilidades. Podendo ser exploradas a partir de temas, imagens,
personagens, cenário social e histórico, ideias e filosofia de vida de um
autor (Ryan, 2014) ou mesmo a partir do imaginativo mundo da audiência
(Zipfel, 2014), o fato é que refletir sobre os mundos criados pela ficção
televisiva ilumina a importância de se pensar como séries e telenovelas
cada vez mais transbordam seu universo narrativo processual para além
dos limites da televisão, alcançando públicos com diferentes níveis de
engajamento. Não sem causa, muitas ficções ainda se fazem presentes
no imaginário coletivo, apesar de sua distância no tempo.
Neste livro, os pesquisadores da Rede Obitel Brasil pensam e ex-
ploram o conceito de mundos possíveis da ficção de um modo amplo e,
por vezes, até articulado com a internet. A partir de diferentes legados
teóricos e metodológicos que abarcam as dinâmicas de todos os processos
sociais midiáticos – produção, circulação, recepção –, as pesquisas bus-
cam entender os mundos narrativos da ficção não como algo dado, mas
que pode remeter a diferentes ideias e perpassar produtores, personagens,
enredos e audiência. Assim, tendo como leque maior a construção de
mundos narrativos como uma noção ontológica construída por narrativas
desde as orais até as transmídias, o volume agrega estudos cujo recorte
abrange especificamente as narrativas de televisão e que buscam explorar
as conexões entre os mundos produzidos por essas ficções e os mundos
construídos pela recepção. São trabalhos que vão de personagens e repre-
sentação política até produção de fanfictions e recepção transmidiática.
Todos esses esforços poderão ser vistos nos dez capítulos que
compõem o volume. Resultado de um trabalho colaborativo, mais do
que uma coletânea de textos sobre construção de mundos na ficção, a
atual publicação da Coleção Teledramaturgia, tal como os cinco livros
anteriores, busca respostas a uma pergunta comum, proposta em reunião

11
de planejamento do projeto bienal de pesquisa 2018-2019: da produção
à recepção, passando pela narrativa, como a ficção televisiva brasileira
constrói e compartilha mundos? Diante desta pergunta, cada equipe
elaborou um projeto de pesquisa, dedicando-se, ao longo de dois anos, a
investigar e compreender como se dá a construção de mundos na ficção
televisiva brasileira.
A publicação deste sexto volume reafirma, assim, o propósito da
Rede Brasileira de Pesquisadores de Ficção Televisiva – Obitel Brasil –
de iluminar debates sobre o que há de emergente e de novo nos estudos
televisivos, especificamente no que tange à criação de mundos possíveis
pela ficção. Por todo o exposto, acreditamos que este é um trabalho
pioneiro, na medida em que reúne projetos de dez grupos de pesquisa
sobre a temática da criação de mundos pela ficção, tema ainda recente
no cenário internacional.

2 Organização do livro

O presente livro, A construção de mundos na ficção televisiva bra-


sileira, organiza-se em quatro partes. A primeira parte, “Mundos dos
produtores e espectadores / Mundos dos autores e leitores”, é composta
por três capítulos. O primeiro, A construção de mundos na telenovela
brasileira: um estudo de caso a partir das cinco personagens mais
lembradas, coordenado por Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Ligia
Prezia Lemos, da Equipe Obitel Brasil-USP, investiga a complexidade
dos mundos construídos a partir das personagens das telenovelas, utili-
zando as que mais chamaram a atenção do público e sua relação de afeto
com elas. A criação da personagem na telenovela pode ser tomada como
uma construção coletiva, que nasce do autor e passa pelo diretor, pela
encenação e pelo ator para, então, alcançar o público, que dialeticamente
a transforma, construindo mundos plasmados no imaginário nacional,
porque simbolizam ou exprimem um sentimento coletivo.
O capítulo Da concepção ao mito: o mundo da maternidade
de A Força do Querer no Facebook, da Equipe Obitel Brasil-UFSM,

12
coordenado por Veneza Ronsini e Sandra Depexe, aborda a participação
de comunicantes/fãs em redes sociais on-line, potencializando formas
tecnológicas de interações entre os sujeitos. Estuda, assim, a capacidade
dos produtos ficcionais em estabelecer uma relação entre autoria, fruição
e interpretação dos espectadores em forma de mundos possíveis, cons-
truídos coletivamente nas redes sociais on-line.
A Equipe Obitel Brasil-UAM, coordenada por Maria Ignês Carlos
Magno e Rogério Ferraraz, apresenta o capítulo Construção de mundos
na ficção seriada do SBT e da Globo: A Garota da Moto e Totalmente
Demais. O trabalho apoiou-se na compreensão da construção de mundos
enquanto representações criadas por agentes produtores e passíveis de
serem atualizadas, modificadas e expandidas pelo público espectador.
É uma pesquisa qualitativa que partiu da observação analítica de dois
processos de construção de ficções televisivas e envolveu análises compa-
rativas sobre a maneira como cada emissora cria e compartilha universos
próximos da realidade com seus respectivos públicos.
A segunda parte, “Mundos da recepção / Mundos dos fãs”, reúne
dois capítulos. O primeiro é a pesquisa da Equipe Obitel Brasil-UFBA,
Criadoras de mundos dos casais adorados nas fanfictions de teleno-
velas: prazer de amar e narrar. Coordenada por Maria Carmem Jacob
de Souza e Rodrigo Lessa, trata de autoras de fanfics sobre personagens
de telenovelas. Continuação de trabalho anterior, a pesquisa aprofunda e
seleciona quatro das 12 escritoras pesquisadas anteriormente e recorre à
noção de mundos ficcionais para compreender os recursos narrativos das
fics. Estas recriam mundos das telenovelas que as inspiraram a produzir
seus próprios materiais midiáticos.
O segundo capítulo, A construção de mundos ficcionais pelo fan-
dom Limantha, de Malhação: Viva a Diferença, foi coordenado por
Gabriela Borges e Maria Cristina Brandão de Faria, da Equipe Obitel
Brasil-UFJF. O estudo analisa o modo como o fandom das personagens
ampliou e ressignificou no Twitter o mundo ficcional construído em
torno do arco narrativo do casal Lica e Samantha (Limantha), da 25º
temporada de Malhação (Globo, 1995-atual), vencedora do prêmio de
melhor série no Emmy Internacional Kids. A equipe verifica, mais uma

13
vez, o fenômeno da shippagem e a utilização de recursos técnico-estéticos
do arco narrativo pelo fandom no Twitter, criando um mundo ficcional
paralelo ao do enredo.
A terceira parte do livro, “Expansões dos mundos da ficção / Mundos
transmídia”, inicia com o capítulo Ações socioeducativas nos mundos
da telenovela transmídia: um estudo a partir da abordagem de
questões LGBTQIA+, da Equipe Obitel Brasil-UFPE, coordenado por
Yvana Fechine e Cecília A. R. Lima. O intuito foi traçar um percurso da
noção de “mundos possíveis” – cujo modo de existência é meramente
potencial (imaginada) – à de “construção de mundos” – dotados de uma
existência atualizada (concreta) graças à transmidiação. Para isso, a pes-
quisa buscou compreender as percepções sobre as ações socioeducativas
da Globo relacionadas ao grupo LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Travestis, Queers, Intersex, Assexuais e outras possibili-
dades), tomando como objeto a telenovela Segundo Sol (Globo, 2018).
Já a Equipe Obitel Brasil-UFSCar, coordenada por João Massarolo
e Dario Mesquita, apresenta a pesquisa Design ficcional, mundos possí-
veis e narrativas transmídia: modalidades de recepção inclusiva na
série Sob Pressão. A investigação faz um estudo sobre a série médica
Sob Pressão (Globo, 2017-2019) e explora o potencial dos mundos pos-
síveis de expansão das fronteiras da ficção para o campo das narrativas
transmídia. Busca, ainda, verificar a contribuição dos objetos de design
para construção de uma lógica interna do mundo ficcional da série.
Finalmente, a quarta parte, “Mundos narrativos da nação”, reúne os
três capítulos finais. O primeiro, Construções de mundo: o popular da
narrativa à recepção, coordenado por Nilda Jacks e Daniela Schmitz,
da Equipe Obitel Brasil-UFRGS, revisita alguns de seus trabalhos de
pesquisa anteriores no Obitel e, a partir dos dados coletados durante a
exibição de Avenida Brasil (Globo, 2012), Império (Globo, 2015) e Velho
Chico (Globo, 2016) e de suas respectivas narrativas, busca identificar
como essas telenovelas construíram o mundo popular ficcional por meio
de vários elementos constitutivos da trama.
Em seguida, o capítulo Mundos ficcionais e representação da
política: a ditadura militar nas séries da Globo é fruto de investiga-
ção da Equipe Obitel Brasil-UFRJ-Fiocruz, coordenada por Ana Paula

14
Goulart Ribeiro e Igor Sacramento. A partir da análise de duas produções
ficcionais, Anos Rebeldes (Globo, 1992) e Os Dias Eram Assim (Globo,
2017), investiga os processos de representação do passado a partir de
argumentação sobre os discursos televisivos de inspiração histórica, so-
bretudo os que privilegiam o passado recente do país – especificamente
a ditadura militar (1964-1985).
Encerrando o livro, temos o capítulo Novos formatos teleficcionais
e a recepção da televisão de qualidade no Brasil: um olhar para a
supersérie Onde Nascem os Fortes, coordenado por Marcia Perencin
Tondato e Maria Aparecida Baccega, da Equipe Obitel Brasil-ESPM,
que buscou refletir sobre os elementos mobilizados na renovação das
séries ficcionais televisivas. A partir de discussão sobre gênero e formato
televisivos, a pesquisa aborda a construção dos mundos diegéticos mobi-
lizados no diálogo com o mundo da “realidade objetiva” e as estratégias
adotadas para a conquista de um público cada vez mais motivado ao
consumo de conteúdos em diferentes telas.
Para finalizar esta apresentação, agradecemos a todos os pesquisa-
dores da Rede Obitel Brasil que se dedicaram nos últimos dois anos às
pesquisas cujos resultados compõem este livro. Agradecemos também à
equipe de bolsistas do CETVN pelo envolvimento e pela dedicação nos
trabalhos de preparação deste livro. Em nome de todos os pesquisadores
e suas equipes, queremos ainda expressar à Globo nosso reconhecimento
pelo apoio permanente dado à Rede Obitel Brasil e à publicação de nossas
investigações sobre a ficção televisiva brasileira.

Referências

APPADURAI, A. Here and now. In: APPADURAI, A. Modernity at


large. London: University of Minnesota Press, 1996.
LOPES, M. I. V. A telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação.
Revista Comunicação & Educação, São Paulo, v. 25, jan./abr. 2003.
RYAN, M.-L. Story/worlds/media: tuning the instruments of a media-
conscious narratology. In: RYAN, M.-L.; THON, J.-N. (Ed.). Storyworlds

15
across media: toward a media-conscious narratology. Lincoln/London:
University of Nebraska Press, 2014.
ZIPFEL, F. Fiction across media: toward a transmedial concept of
fictionality. In: RYAN, M.-L.; THON, J.-N. (Ed.). Storyworlds across me-
dia: toward a media-conscious narratology. Lincoln/London: Universityof
Nebraska Press, 2014.
Primeira Parte

Mundos dos produtores e espectadores /


Mundo dos autores e leitores
A construção de mundos na telenovela brasileira:
um estudo de caso a partir das cinco personagens mais
lembradas

Maria Immacolata Vassallo de Lopes (coord.)


Ligia Prezia Lemos (vice-coord.)

Larissa Leda Rocha


Andreza dos Santos
Lucas Martins Néia
Mariana Lima
Tissiana Pereira
Daniela Ortega1

Em nossas leituras teóricas e metodológicas sobre o desenvolvimen-


to de mundos narrativos que atravessam diversas mídias, deparamo-nos
com uma lacuna: poucos textos tratam da personagem na problemática
da construção de mundos. A criação de mundos – assim como as co-
munidades imaginadas através dos meios de comunicação – é assunto
que há tempos chama a atenção de pesquisadores da comunicação e da
cultura. Por exemplo, Anderson (2009) e Appadurai (1996) tomam a ideia
de imaginação para a compreensão do papel dos meios de comunicação
na produção e constituição de subjetividades das sociedades modernas.
Enquanto o primeiro explora como jornais e romances proporcionaram
os meios técnicos para a representação de uma comunidade imaginada
nacional, o segundo aponta modos como a mídia eletrônica reconfigurou
o compartilhamento de emoções, na medida em que ofereceu novos
recursos para a construção de “eus” e mundos imaginados.

1
Colaboraram na pesquisa os bolsistas do Centro de Estudos de Telenovela da Universidade
de São Paulo (CETVN-USP): Vital Soares da Silva Neto, Helena Sabino Rodrigues Cunha,
Diana Soares Cardoso, Gustavo Slachta Rodrigues, Leticia Stamatopoulos e Marcella Medeiros
de Oliveira Silva.

19
No caso brasileiro, é sabido que as telenovelas historicamente ela-
boram um imaginário de nação brasileira (Lopes, 2009). O conceito de
“mundo”, longe de ser dado, pode remeter a várias ideias, como cenário
social e histórico, temas, imagens ou mesmo às ideias gerais e à filosofia
de vida de um autor (Ryan, 2014). No polo da audiência, é válido ressaltar
que a aceitação da obra se dá por meio de um jogo de faz de conta, em
que o público entra num mundo imaginativo e usa sua visão para explicar
reações emocionais a essas obras (Zipfel, 2014). É fundamental pensar
essa construção de mundos imaginários, que perpassa personagens,
enredo e ideias, e é um acordo entre produtores e audiência.
Nosso objetivo foi estudar a complexidade dos mundos construídos a
partir das personagens das telenovelas, utilizando as que mais chamaram
a atenção do público e sua relação de afeto com elas. A longa extensão
da narrativa possibilita que a telenovela seja confundida com a vida, o
que estreita o vínculo do público com as personagens. A criação da per-
sonagem na telenovela pode ser tomada como uma construção coletiva,
que nasce do autor e passa pelo diretor, pela encenação e pelo ator para,
então, alcançar o público, que dialeticamente a transforma, construindo
mundos plasmados no imaginário nacional, porque simbolizam ou expri-
mem um sentimento coletivo. Essa perspectiva dialoga com a abordagem
proposta por Eco (2002) no que diz respeito à cooperação interpretativa
em textos narrativos.

1 Mundos possíveis: origem, conceito, desdobramentos

O conceito de mundos possíveis surge na segunda metade do sécu-


lo XX, inspirado pela filosofia de Liebniz, como um meio de resolver
problemas na semântica formal (Ryan, 2012). Inicialmente desenvolvida
por filósofos da escola analítica, a teoria dos mundos possíveis foi, em
meados de 1970, adaptada aos mundos ficcionais pelo filósofo David
Lewis e por teóricos literários como Umberto Eco, Lubomír Doležel e
Marie-Laurie Ryan.
Com base na ideia de que a realidade é um universo composto de
uma pluralidade de mundos distintos, Ryan (2012) destaca que a teoria

20
dos mundos possíveis parte do pressuposto de que esse universo é hie-
rarquicamente estruturado pela oposição a um elemento, que funciona
como o centro do sistema para todo o conjunto (Kripke, 1963 apud Ryan,
2012). O elemento central é conhecido como mundo “real”, enquanto
os outros são mundos possíveis alternativos ou não reais.

Para que um mundo seja possível, ele deve estar ligado ao


mundo real por uma relação de acessibilidade. As fronteiras
do possível dependem da interpretação particular dada a essa
noção de acessibilidade. A interpretação mais comum associa
a possibilidade a leis lógicas: todo mundo que respeite os
princípios da não contradição e do meio excluído é um mundo
possível (Ryan, 2012, p. 4, tradução nossa).

Outro desdobramento é o conceito de storyworld, que compreende


em sua genealogia uma mescla do legado de mundos possíveis da filo-
sofia adaptados à teoria literária, representado por Richard Gerrig, David
Herman e Paul Werth (Ryan; Thon, 2014). À diferença do que críticos
literários ou leitores têm em mente quando se fala sobre o “mundo de
Marcel Proust” ou o “mundo de Friedrich Hölderlin”2, o conceito de
storyworld é projetado por textos individuais – e não por todo o trabalho
de um autor –, onde cada história constrói seu próprio storyworld.3
Quanto à influência do conceito de mundos possíveis4, Ryan e Thon
(2014) apontam que, na literatura, é usado para resolver problemas como
definição de ficção, valor de verdade, status ontológico das entidades,
classificação semântica dos mundos literários, relações entre mundos de
textos distintos, além da descrição de mecanismos de enredo em termos
de conflitos e organização geral do domínio semântico como universo no
qual um mundo real é oposto a um número variável de mundos possíveis
alternativos criados pela atividade mental dos personagens.

2
Que leva em conta o cenário social e histórico típico das obras de determinado autor ou os
principais temas e imagens recorrentes desse trabalho.
3
Exceto em narrativas transmídia, em que a representação de um mundo é distribuída entre
textos de diferentes mídias.
4
No que se refere aos mundos das abordagens cognitivas, os estudos focam na forma como
esses mundos são construídos e “simulados” na mente do leitor.

21
Com base no princípio da não contradição interna, o conceito de
storyworld contraria a crença popular de que histórias não ficcionais são
verdadeiras e histórias ficcionais são falsas (Ryan; Thon, 2014). Consi-
derando que histórias não ficcionais podem ser verdadeiras ou falsas em
relação ao seu mundo de referência, as ficcionais são automaticamente
verdadeiras no mundo sobre o qual são contadas.
Definido por seu horizonte de possibilidades, pode-se afirmar que,
“se o mundo da história é o mundo de alguém, esse mundo é o dos perso-
nagens” (Ryan; Thon, 2014, p. 32, tradução nossa). A esse respeito, Eco
(2002, p. 89) afirma que os mundos ficcionais são parasitas do mundo
real, ou seja, aqueles pontos da ficção que não são explicitamente dife-
renciados do que existe no mundo real correspondem “às leis e condições
do mundo real”.
Vale sublinhar a importância que Eco (2002) dá à personagem
ao fazer empréstimos de outras disciplinas – como a lógica modal –,
ressaltando que sua ideia de mundos possíveis só se realiza a partir de
mundos “mobiliados”:

um mundo consiste em um conjunto de indivíduos dotados


de propriedades. Visto que algumas destas propriedades ou
predicados são ações, um mundo possível pode ser visto
também como um curso de eventos. Dado que este curso
de eventos não é real, mas absolutamente possível, ele deve
depender dos comportamentos proposicionais de alguém,
que o afirma, nele acredita, com ele sonha, deseja-o, o prevê
etc. (Eco, 2002, p. 109).

Tal noção substantiva de mundo tem como a menor unidade, tam-


bém descrita por Eco (2002, p. 111) como marca semântica, a noção de
propriedade, isto é, características que, ao se combinarem, comporão
os indivíduos de determinados mundos. Tais indivíduos são, portanto,
“coágulos espaciotemporais de uma série de qualidades físicas e psí-
quicas (semanticamente expressas como ‘propriedades’), entre as quais
também as propriedades de estar (ser) em relação com outros coágulos

22
de propriedades, de realizar certas ações e de tolerar outras” (Eco, 2002,
p. 110-111).
Nos mundos imaginados e afirmados pelo autor – ou seja, quando as
atitudes proposicionais partem daquele que criou e deu forma à história –,
as possibilidades se encontram no plano de composição dos indivíduos
que integram o enredo, por meio de combinações de propriedade escolhi-
das para atuar no campo de forças narrativo. A partir dessas propriedades,
personagens e leitores poderão tecer atitudes proposicionais – este último
caso equivale aos mundos do leitor.
Os personagens, com suas ações, são os principais responsáveis por
gestar outros rumos e possibilidades à história – seja a partir de sua criação
pelo autor ou de sua apreensão pelo leitor –, dando-nos a ilusão de que
são, de fato, indivíduos autônomos. As propriedades que os constituem,
afinal, foram tomadas de empréstimo do mundo “real” de referência. Tal
afirmação encontra respaldo ao olharmos para a telenovela brasileira: sua
tendência ao naturalismo cria correspondência entre o habitus (Bourdieu,
1975 apud Lopes, 2009) do mundo narrado e do mundo vivido.
Ao discorrer sobre os indivíduos dos mundos narrativos, Eco (2002,
p. 112) frisa que “discutir-lhes as condições epistemológicas de cons-
tituição é problema de se delegar a outros tipos de pesquisa que dizem
respeito à construção do mundo da nossa experiência”. É esse o desafio
de nossa investigação, pois falar de telenovela brasileira é remeter à
nossa maior narrativa cultural, social e estética, capaz de refletir e refratar
nossa realidade.
Acompanhar as perspectivas de Eco (2002) sobre o leitor e seu papel
na construção do sentido de um texto exige compreender inicialmente que
o texto é incompleto, tanto por depender do destinatário como operador
de regras que o tornem inteligíveis quanto por ser sempre entremeado
pelo “não dito”.5 Isso, que não está manifesto na superfície, precisa ser
atualizado a partir de “movimentos cooperativos, conscientes e ativos da
parte do leitor” (Eco, 2002, p. 36). Esses “não ditos”, espaços em branco

5
Eco (2002) deixa claro que suas considerações foram pensadas a partir de textos escritos e
narrativos. Mas é razoável considerar que seus conceitos podem ser usados para narrativas em
outras linguagens, como a audiovisual.

23
que demandam contribuição para atualizar seu sentido, constituem o
texto, construído com a cooperação do leitor. Os “não ditos” são propo-
sitais por dois motivos. O primeiro é que, para Eco (2002, p. 37), o texto
é um “mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive da valorização
de sentido que o destinatário ali introduziu”. O segundo é que o texto
deixa ao leitor a “iniciativa interpretativa”, afinal, “todo texto quer que
alguém o ajude a funcionar”.
É possível, portanto, dizer que o texto prevê o “leitor-modelo”,
que é um leitor imaginado, que segue instruções textuais ou mesmo um
conjunto de frases ou de outros sinais (Eco, 1994, p. 22). Isso garante
a cooperação textual que evitaria as possibilidades de interpretações
“aberrantes”. Esse leitor-modelo não é o mesmo que o leitor empírico.
Tem natureza espectral, especulativa, mas é alguém capaz de participar
da atualização textual, em uma dinâmica de completude com o autor.
Se é verdade, então, que o autor empírico pressupõe esse leitor-
modelo, também é verdade que institui sua competência. Assim, busca
articular o texto, fazê-lo caminhar em direção à sua construção, ou seja,
o texto não aguarda na inércia pela competência do seu leitor-modelo,
mas oferece sua contribuição para tal habilidade. Eis que surge a dúvida:
o texto seria menos “preguiçoso” do que faz pensar e ofereceria menos
liberdade do que parece?
Eco pensa em dois extremos em relação aos textos – fechados e
abertos –, a distinção entre o uso e a interpretação dos textos, e, essen-
cialmente, entender que a questão do leitor-modelo e do autor-modelo
repousa na lógica de uma estratégia textual. Intuitivamente, Eco (2002,
p. 42) propõe entender o texto aberto como o que decide “até que ponto
deve controlar a cooperação do leitor e onde esta é provocada, para onde
é dirigida, onde deve transformar-se em livre aventura interpretativa”. As
interpretações possíveis não entram em confronto, mas se reforçam. E é
necessário deixar claro que há limites a essas possibilidades interpreta-
tivas que envolvem “uma dialética entre estratégia do autor e a resposta
do leitor-modelo” (Eco, 2002, p. 43). Eis a distinção necessária entre
o uso livre de um texto aberto e sua interpretação. Esta não se dá sem
limites e sem cooperação, pensada como uma estratégia entre a escrita
e a leitura, ainda que leituras aberrantes e maliciosas possam ser feitas.

24
É de estratégia textual que fala Eco ao pensar nas questões sobre o
autor e o leitor-modelo. De um lado temos um autor empírico, o sujeito
da enunciação textual, que estabelece um leitor-modelo (hipotético) e,
ao fazer isso, traduz tal estratégia na configuração de si próprio como um
sujeito do enunciado – em si, também uma estratégia –, e isso organiza
uma operação textual. Por outro lado, o leitor empírico – sujeito que
concretamente coopera na produção do sentido do texto – configura para
si uma ideia de autor, o autor-modelo, justamente a partir dos dados da
estratégia textual. O autor-modelo e o leitor-modelo “são entidades que
se tornam claras uma para a outra somente no processo de leitura, de
modo que uma cria a outra” (Eco, 1994, p. 30).

2 Percurso metodológico

Para traçar um diagnóstico do estatuto da personagem da telenovela


brasileira e de seus mundos possíveis a partir da perspectiva do leitor
empírico, percorremos um caminho teórico-metodológico composto
por quatro etapas: (1) pesquisa bibliográfica referente ao conceito de
personagem a partir, principalmente, da narratologia; (2) questionário6
compartilhado por link do Google Forms aleatoriamente nas redes sociais
Facebook, Twitter, Instagram, WhatsApp e por e-mail (entre 11/2018​
e 1/2019); (3) análise interpretativa7 com base nas variáveis: (a) cinco
personagens mais citadas; (b) gênero dessas personagens; (c) período
da exibição das telenovelas; e (d) faixa etária dos respondentes; e (4)
elaboração de categorias de “uso e interpretação” (Eco, 1994), a partir da
análise e recorrência das razões para as respostas do “leitor/receptor”. São
dez categorias com o mesmo peso: atuação, construção da personagem,
memória cultural, empatia, questões femininas/feministas8, sentimento,
direção de arte, memória afetiva, repercussão e vilania.

6
Questionário com três perguntas: idade; personagem mais marcante de sua vida; o porquê
de sua(s) escolha(s).
7
Com auxílio do software MaxQDA. Ver: http://www.maxqda.com/brasil/. Acesso em: jan.
2019.
8
Entendemos por questões femininas/feministas atitudes e comportamentos das personagens que
transgridem prescrições comportamentais estabelecidas pelas relações de poder entre os gêneros.

25
No universo de 716 respostas, foram citadas 360 personagens. Op-
tamos por estudar qualitativamente as cinco com mais menções, devido
a limites editoriais. Assim, as mais citadas foram: 1) Carminha (Avenida
Brasil, Globo, 2012); 2) Nazaré Tedesco (Senhora do Destino, Globo,
2004); 3) Odete Roitman (Vale Tudo, Globo, 1988); 4) Viúva Porcina
(Roque Santeiro, Globo, 1985); 5) Jade (O Clone, Globo, 2001).
Uma das problemáticas reveladas pelo recorte de nosso objeto em-
pírico foi a de gênero: as cinco personagens mais citadas são mulheres.
Isso adensa, mas não desvirtua, o problema de pesquisa. Para Lopes
(2009), é na trajetória das personagens femininas – assim como nas
representações do amor e da sexualidade – que se expressa de maneira
mais bem-acabada a capacidade da telenovela brasileira de aglutinar
experiências públicas e privadas.
Cientes dessas questões, partimos para o estabelecimento de cate-
gorias segundo propriedades relevantes (Eco, 2002) que, com base no
nosso referencial teórico, consideramos estruturais na construção dos
mundos narrativos das personagens femininas na telenovela brasileira:
amor romântico (AR), amor confluente (AC), maternidade (M), ascensão/
manutenção social (AS), trabalho (T) e vilania (V). Para mensurar a pre-
sença ou ausência dessas propriedades relevantes, elaboramos o Quadro
1, inspirado nos diagramas propostos por Eco (2002), no qual o símbolo
+ significa presença da propriedade, – significa ausência, 0 refere-se a
indeterminado, e os parênteses indicam propriedades essenciais.

Quadro 1 – Propriedades relevantes das personagens


com mais menções
Personagens AR AC M AS T V
Carminha – (+) (+) (+) 0 (+)
Nazaré Tedesco – (+) (+) + – (+)
Odete Roitman (+) + (–) (+) (+) (+)
Viúva Porcina (+) + 0 (+) 0 0
Jade (+) + + 0 0 –
Fonte: Equipe Obitel USP

26
Caminhamos, portanto, para a definição de duas categorias de aná-
lise baseadas em Eco (1994, 2002): uso e interpretação, relacionada ao
mundo do leitor; e propriedades relevantes, ligada ao mundo do autor e
ao mundo das personagens. Por fim, no texto, as falas da audiência, do
nosso leitor, estão destacadas entre aspas em itálico.

3 Corpus: as cinco personagens mais lembradas

Tabela 1 – Dados quantitativos9


Personagem % dos votos Faixa etária predominante
Carminha 11,3% 18-34
Nazaré Tedesco 10,4% 18-34
Odete Roitman 4,1% 35-49
Viúva Porcina 3,2% 50+
Jade 2,4% 18-34
Fonte: Equipe Obitel USP

A personagem mais lembrada na pesquisa empírica, Carminha


(Adriana Esteves), é a vilã protagonista de Avenida Brasil10, novela que
galvanizou a atenção do país e virou caso de sucesso nas exportações
da emissora.11 A vingança é o mote da novela, centrada no conflito entre
Carminha e Nina/Rita, a anti-heroína. Carminha deseja se manter rica
sob a aparência da esposa feliz de Tufão, em quem deu um golpe para
casar-se e ascender econômica e socialmente, tendo uma relação extra-
conjugal com Max. Sua principal fraqueza é o amor pelo filho Jorginho,
que sente profunda rejeição pela mãe. Marcada por um tom cômico e
irônico, humaniza-se e é rendida no fim da trama. Tem a oportunidade
de se vingar, mas escolhe confessar (o assassinato do ex-amante) e ser

9
Os percentuais apresentados são relativamente baixos devido à grande quantidade de perso-
nagens mencionados, além do número de telenovelas já exibido na televisão brasileira.
10
Novela das 21h da Globo; 179 capítulos; mar.-out. 2012; de João Emanuel Carneiro, com
direção geral de Amora Mautner e José Luiz Villamarim, do núcleo Ricardo Waddington.
11
Obra mais licenciada da história da Globo (mais de 120 países). Disponível em: http://
www.globotvinternational.com/newsDet.asp?newsId=351&random=1381768708310. Acesso
em: jul. 2019.

27
punida. Ao sair da cadeia, faz as pazes com Nina/Rita, a essa altura esposa
de Jorginho e mãe de seu neto.
Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) ficou em segundo lugar na me-
mória do leitor. É a vilã antagonista da personagem Maria do Carmo
em Senhora do Destino12 e responsável pelo sequestro de duas crianças
– uma delas criada como sua filha – e alguns assassinatos. A trama ini-
cia durante a ditadura militar, com Nazaré jovem e prostituta. Tem um
amante, a quem mente ser auxiliar de enfermagem e estar grávida para
se casar. O plano dá certo e a vida melhora: sai da periferia do Rio e vai
para Copacabana, vira esposa de um marido enganado e mãe de uma bebê
sequestrada. Na segunda fase, Nazaré vive sua farsa sem ser incomodada,
até que sua foto com a bebê no colo no dia do sequestro é mostrada ao
jornalista namorado de Maria do Carmo. O objetivo de Nazaré é manter
o amor da filha, Isabel/Lindalva, e a mentira que o sustenta. Em nome
disso, mente, agride, assassina e seduz. Mas também sofre as consequên-
cias ao longo da trama, o que não é comum nas novelas, em que as vilãs
geralmente são punidas no final. O autor, Aguinaldo Silva, reconheceu
inspiração no desenho Tom & Jerry13, criando uma vilã quase caricata,
atrapalhada, com tom fortemente humorístico e narcisismo hiperbólico,
vítima das próprias armações.
A personagem Odete Roitman (Beatriz Segall), de Vale Tudo14, foi
eleita a maior vilã de todos os tempos da telenovela brasileira em enquete
do jornal O Estado de S. Paulo de 2004, com respostas espontâneas.15
Era autoritária, forte e assumiu a presidência do grupo Almeida Roitman
desde a morte do marido. Morava em Paris, mas tinha apartamentos em
outras cidades. Odiava o Brasil, para onde só viajava em casos de extrema
necessidade. Tinha conflitos com a filha, Heleninha, a quem não perdoava
por suas fraquezas. Não admitia a ideia de que o filho, Afonso, queria

12
Novela das 20h da Globo; 221 capítulos; jun. 2004-mar. 2005; de Aguinaldo Silva, com
direção geral e direção de núcleo de Wolf Maia.
13
KNOPLOCH, Carol; JIMENEZ, Keila. Naza teve a quem puxar. Estado de S. Paulo, São
Paulo, 17 out. 2004. Disponível em: http://bit.ly/2LCneMd. Acesso em: jun. 2019.
14
Novela das 20h da Globo; 204 capítulos; maio 1988-jan. 1989; de Gilberto Braga, Aguinaldo
Silva e Leonor Bassères, com direção geral de Dennis Carvalho.
15
AGÊNCIA ESTADO. Enquete elege Odete Roitman a maior vilã da tevê. Estadão, 18 out.
2004. Disponível em: http://bit.ly/2NDjsow. Acesso em: maio 2019.

28
morar no Brasil. Manipulava a vida dos filhos e humilhava os subordi-
nados. Só vacilava em seus objetivos em nome do amante, César. Foi
assassinada (por engano) nos capítulos finais, provocando uma comoção
nacional em torno do mistério: “quem matou Odete Roitman?”.
A Viúva Porcina (Regina Duarte), de Roque Santeiro16, com
maquiagem exagerada, figurinos extravagantes, coloridos e cheios de
acessórios, se sobressaía entre os habitantes da fictícia Asa Branca, no
interior nordestino. O brilho das bijuterias e os turbantes, complementa-
dos pelo salto alto, aludiam à exuberância e sensualidade. Sua trajetória é
marcada pela condição de viúva, farsa apoiada pelo amante, Sinhozinho
Malta, rico latifundiário e político. O mito da viúva se inicia quando a
então balconista Porcina (de uma cidade vizinha) conhece Roque, es-
cultor e vendedor de santos. Os dois teriam se apaixonado e se casado.
Em seguida, Roque retorna a Asa Branca e aparentemente é morto ao
defender a cidade do bandido Navalhada, passando a ser considerado
padroeiro local e alçando Porcina a um lugar de destaque. Com o retorno
de Roque, descobre-se então que Porcina não era viúva nem casada, o
que não os impediu de logo estabelecerem um relacionamento.
Por fim, Jade (Giovana Antonelli) é uma das protagonistas de O
Clone17 e, diferentemente das outras quatro personagens, não é vilã nem
anti-heroína, mas a mocinha18 da novela. Um marco é sua ambivalência:
Jade se divide entre duas culturas, já que é muçulmana e marroquina, mas,
criada no Brasil, não aceita as imposições sociais e religiosas ligadas à
sua origem. A história de amor de Jade e do brasileiro Lucas conduz a
trama. Amorosa, mas rebelde, busca, além do amor, a realização pessoal.
Carrega o desejo de estudar e ter liberdades semelhantes às das brasilei-
ras. Cedendo à pressão familiar, Jade se casa com o muçulmano Said,

16
Novela das 20h da Globo; 209 capítulos; jun. 1985-fev. 1986; de Dias Gomes e Aguinaldo
Silva, com direção geral de Paulo Ubiratan.
17
Novela das 20h da Globo; 221 capítulos; out. 2001-jun. 2002; de Gloria Perez, com direção
geral e direção de núcleo de Jaime Monjardim.
18
As personagens tidas como “mocinhas”, as heroínas, ligadas ao bem, estão presentes em
toda a teledramaturgia, com origem nos arquétipos, do grego archetypos (modelo primitivo),
da psicologia junguiana: “a mocinha/heroína constitui um dos principais ingredientes de uma
telenovela. Elemento este herdado do folhetim, melodrama, contos de fada, literatura de modo
geral” (Brandão; Fernandes, 2015, p. 14).

29
com quem tem uma filha. Seu dilema, então, reside em escolher entre
seu amor e a convivência com a menina – que seria limitada devido a
imposições familiares, sociais e religiosas.

4 Análise do mundo do autor e do mundo da personagem segundo as


categorias do quadro de propriedades

Ao contrário do amor apaixonado, fenômeno mais ou menos univer-


sal (GIDDENS, 1992), a noção de amor romântico (AR) é culturalmente
específica e essencialmente feminilizada. Surgida ao final do século
XVIII, se faz presente na ficção televisiva pela procura da alma gêmea
e do encontro com o masculino (LOPES et al., 2015).
No caso das personagens analisadas, a questão do amor romântico
permanece forte, mesmo se considerarmos que apenas Jade é uma moci-
nha. Fruto de uma estrutura já consolidada no melodrama (Lopes et al.,
2015), a perenidade do sentimento amoroso por homens que validam a
autoidentidade feminina é algo que – de diferentes formas – atravessa
de maneira estrutural as personagens Jade, Odete e Porcina. Já Nazaré
e Carminha, mesmo como amantes, nutrem sentimentos de amor pelos
respectivos pares e rompem um paradigma: ambas encontraram no ca-
samento formal apenas um meio de abandonar uma posição de opressão
– pobreza, no caso de Carminha; prostituição, no caso de Nazaré – e
ascender socialmente.
Resultado da emancipação e autonomia sexual feminina, o amor
confluente (AC) diz respeito a um amor ativo, que presume igualdade
no dar e receber emocional e entra em choque com as categorias “para
sempre” e “único” da noção de amor romântico (Giddens, 1992). Na
telenovela brasileira, o amor confluente, fortemente ligado à liberação
sexual das personagens femininas, foi a única categoria que uniu todas
as personagens, o que evidenciou o modo como esses diferentes rela-
cionamentos são, no todo, mais baseados na igualdade e na intimidade
do que na subordinação ou na conformidade à lei (Lopes et al., 2015).
Se considerarmos, por exemplo, que, mesmo muçulmana, Jade busca
uma vida sexual associada ao amor, fica fácil enxergar como a autonomia

30
feminina aparece em todas as obras. Abarcando desde a rica e elegante
Odete até a espalhafatosa Porcina, vemos mulheres distintas – em reli-
gião, gosto, classe social, nacionalidade –, porém liberadas sexualmente.
Algumas podem até estar dispostas ao amor romântico, desde que não
interfira em seus objetivos (Rocha, 2016).
A maternidade (M), tema muito valorizado e uma das principais
representações femininas nas telenovelas (Sifuentes; Ronsini, 2011),
continua a aparecer como fundamental na vida da mulher, associada
a feminilidade e “afeição maternal”, concepções bastante firmes da
sexualidade feminina (Giddens, 1992). Retratada em quatro das cinco
personagens analisadas – Nazaré, Carminha, Odete e Jade –, o peso dado
ao tema é tão grande que mesmo as vilãs encontram na maternidade seu
objetivo (Rocha, 2016) ou fraqueza.
Se, por um lado, a maternidade está presente na vida de pratica-
mente todas as personagens – à exceção de Porcina, que não é mãe –,
por outro, não necessariamente aparece associada ao amor pelos filhos.
Carminha, por exemplo, tinha um amor desmedido por Jorginho, en-
quanto desprezava a outra filha, Ágata, por ser mulher e gorda. Já Odete,
controladora e autoritária, manipulava a vida dos filhos a partir de seus
próprios interesses.
É válido ressaltar ainda que, antes de mães, elas são mulheres:
mesmo extremamente zelosa com a filha Isabel/Lindalva, Nazaré nunca
se anulou como mulher, buscando seu próprio prazer, fosse ele sexual,
econômico ou de qualquer outra ordem. Jade, por sua vez, considerou
deixar a filha para ficar com Lucas. Assim, oscilando entre estereótipos e
rupturas sobre o feminino, essas mulheres constroem um mundo híbrido
e contraditório, onde – como acontece na América Latina – o novo e o
velho se encontram e destoam o tempo todo.
Martín-Barbero (2003) elenca a ascensão social como um dos temas
trabalhados pelo folhetim de forma a responder às aspirações sociais do
século XIX. Consolidando-se no imaginário do telespectador brasileiro a
partir de Dancin’ Days (Globo, 1978) – quando a telenovela passa a (se)
retroalimentar (d)o desejo das classes mais baixas de ascender à classe
média retratada na televisão (Straubhaar, 2007) – a ascensão/manuten-

31
ção social (AS) significa para as personagens femininas – majoritaria-
mente as vilãs – poder de ação e dá a elas a capacidade de movimentar
outros núcleos dos quais fazem parte (Rocha, 2016).
Ao observarmos a relação entre ascensão/manutenção social (AS) e
vilania (V)19 feminina nas telenovelas brasileiras, percebemos o quanto a
construção dessas personagens também se estrutura a partir de um devir
moral: a mulher que almeja a mobilidade de classes – como Nazaré,
Carminha e Porcina – ou a manutenção de seu status social – caso de
Odete – é majoritariamente construída sob o estereótipo da vilã ambicio-
sa, calculista e implacável. Acompanhando e muitas vezes antecipando
comportamentos liberalizantes, as vilãs de telenovela se afastam do ethos
cristão da renúncia e do sacrifício redentor, da doçura, da abnegação e
do valor familiar e vão ao encontro de uma representação que autoriza
à mulher sentimentos e comportamentos antes relegados aos homens,
ligados a estruturas de poder e liberdade, a desejos pessoais e egoístas.
Uma das possibilidades abertas às personagens femininas a partir
dos anos 1970, conforme Hamburger (2014), foi o mundo do trabalho
(T), o que dialoga com o fato de o movimento de inserção da mulher no
mercado de trabalho brasileiro ser constante e intenso a partir desse pe-
ríodo (Dantas, 2018). Contudo, tanto no mundo “real” como nos mundos
ficcionais da telenovela, esse movimento ainda apresenta disparidades
entre raças, classes e gêneros. Questões como o dinheiro, o emprego e a
racionalidade, na divisão ideológico-cultural promovida pelo patriarcado,
compõem tradicionalmente a ordem do masculino (Rocha, 2016). Além
disso, muitas vezes os ofícios e afazeres das personagens são abordados
de forma superficial.

19
Elaborar a coluna referente à vilania ofereceu um desafio no que diz respeito a Viúva Porcina.
Afinal, suas atitudes no decorrer de Roque Santeiro não a habilitam para o status de mocinha,
tampouco permitem classificá-la como vilã. Baseados no sistema de classificação proposto por
Eco (2002) quanto à presença e/ou ausência de propriedades relevantes, buscamos encontrar
o significante mais adequado à condição de anti-heroína – numa escala gradativa, o zero (0)
pareceu o que melhor representaria essa propriedade. Porcina compartilha de características
que se enquadram no tipo de anti-herói que Vogler (2015) descreve como tortuoso – aquele
que é “perdoado” no final da história. Segundo Rocha (2016), esse é o tipo de anti-herói mais
comum nas telenovelas devido ao papel moralizante herdado da pedagogia melodramática.

32
Dado que nos revela a persistência de estereótipos de gêneros é o
fato de a questão do trabalho (T) ser relevante para apenas uma das
personagens. Odete Roitman é a única que apresenta essa propriedade
como primordial em sua construção; vale reparar, contudo, que é também
a única cuja ausência de maternidade (M), nos sentidos já mencionados,
é condição estruturante. Nazaré, por outro lado, teceu ações no sentido de
fugir da responsabilidade de trabalhar; o seu contraponto em Senhora do
Destino, a mocinha Maria do Carmo, reforça essa percepção, visto que
uma de suas principais características é justamente a entrega ao trabalho,
modo pelo qual prosperou na vida. Já para as demais personagens essa
questão é quase irrelevante.
Diante do exposto, ressaltamos que, ancorada sobre uma lógica que
catalisa o desenvolvimento da indústria audiovisual da América Latina
com “as velharias e anacronismos, que fazem parte da vida cultural desses
povos” (Martín-Barbero; Rey, 2001, p. 115), a telenovela brasileira pode
ser percebida como um campo de expressão em permanente formação
e transformação. Oscilando entre temas já recorrentes no melodrama e
abordagens que se modificam, as características que emergem a partir das
personagens nos propiciam um exercício de reflexão sobre as mudanças
nas relações de gênero em nossa própria sociedade.

5 Análise do mundo do leitor a partir das respostas ao questionário
classificadas como categorias de uso e interpretação

A Carminha vista pelo público foi lembrada essencialmente pela


construção da personagem e pela atuação da atriz. Sua comicidade
irônica, misturada a uma dose significativa de ambição e maldade, deram
um tom à personagem que foi memorável aos telespectadores: “Ela era
cômica, solar, apesar de todas as maldades”. A interpretação da atriz
é outro ponto fundamental nessa construção. A personagem está cada
vez mais identificada com o ator que a encarna, transformada, portanto,
“em uma entidade psicológica e moral, encarregada de produzir ao
espectador um efeito de identificação” (Aumont; Marie, 2007, p. 226).
Outros elementos têm relação com questões femininas/feministas que

33
permitem o aparecimento de mulheres fortes e poderosas, que lutam por
algo, são revolucionárias, livres e cheias de ambição, bem como pelo
fato de serem vilãs. A vilania aparece como uma característica quase
suficiente na definição do motivo pelo qual a personagem é lembrada:
“Carminha, uma vilã inesquecível”.
O fascínio pela maldade, revestida por uma comicidade irônica e
perversa, em uma personagem que é rendida ao final pela força do bem,
parece ter sido a equação de sedução da personagem junto ao público
que construiu um sentido para Carminha e a deixa numa posição con-
fortável de ter o “combo das boas vilãs. Má, bem-humorada e popular”.
E, ainda que seja constantemente lembrada por seu carisma e deboche,
Carminha é a protagonista em uma narrativa exibida recentemente, com
impressionantes números de audiência e notável repercussão nas redes
sociais digitais. Outras características podem ser compreendidas a partir
da Carminha lida e construída pelo leitor, uma personagem feminina forte,
má, divertida e, ao final, humana, que foi vivida por uma atriz que soube
dar vida a ela, criando uma vilã empática e irônica, com liberdade de
falar e viver aquilo que as pessoas só conseguem por procuração com a
personagem. Há, nessa repetida resposta de ser Carminha a personagem
mais lembrada de todas, uma dose de explicação que está no trabalho
de construção da personagem feito pelo mundo do autor, outra na co-
operação do leitor em dar a Carminha os contornos que aparecem em
suas memórias (e respostas em nosso questionário) e, por fim, um tanto
de justificativa que pode ser entendida pelo posicionamento da novela
Avenida Brasil no contexto mercadológico da indústria cultural nacional.
O protagonismo de Senhora do Destino é vivido por Nazaré em
oposição direta a Maria do Carmo. Era esperado então que, para o lei-
tor, a vilania fosse uma categoria que aparecesse insistentemente nos
seus motivos para rememorarem a personagem, uma “vilã autêntica”,
“incrível”, “arquétipo de vilã”. Outras duas categorias marcantes a partir
do mundo do leitor são a construção da personagem – “primeira vilã
louca que me cativou o suficiente para prestar bem atenção na história
dela” – e a atuação da atriz. Suas frases memoráveis de tom marcada-
mente debochado e cômico resistem ao esquecimento. “Nazaré até hoje é

34
lembrada por suas falas e expressões.” Questões relacionadas à empatia,
na perspectiva de Smith (1995) de entender seu funcionamento como
uma questão não de compartilhamento, mas de substituição imaginativa,
também estão presentes, apesar de a personagem ser uma vilã. Nazaré
“revelava um lado que todos têm, mas não revelam por filtros sociais,
em relação a comentários e comportamentos”, levando, afinal, o leitor
a desejar o êxito da personagem – “o fato de as coisas darem errado
para ela a tornaram tão próxima do telespectador que ficava difícil não
torcer por ela”.
Nazaré é a segunda personagem mais lembrada na pesquisa empírica,
mas é necessário considerar que a novela é oito anos mais velha do que
Avenida Brasil. No entanto, Senhora do Destino já foi reprisada duas
vezes e também é um caso de sucesso.20 Porém é sua repercussão nas
redes sociais digitais, ressignificando a personagem por meio de memes
e GIFs, que permite sua permanência na memória cultural: “A perso-
nagem vai além hoje em dia por conta dos memes que viralizaram nas
redes sociais, isso torna impossível esquecê-la”; e mesmo na memória
afetiva dos leitores: “Eu era menor de idade e sentia muito medo da Na-
zaré. Depois, eu entendi e comecei a amar”. Renata Sorrah, intérprete de
Nazaré, comentou que a personagem mudou mais a sua carreira depois
de cooptada como meme nas redes digitais: “existe toda uma geração
que é fã da Nazaré sem nunca ter visto a novela. Os memes sim, foram
uma transformação na minha carreira”.21 O perfil @nazareamarga, por
exemplo, dedicado exclusivamente à produção de memes com a perso-
nagem, tem 5,7 milhões de seguidores na rede Instagram e 97 mil no
Twitter.22 “Virou um personagem meio cult até, o pessoal vive fazendo
memes dela.” Esse âmbito de consumo, repercussão e reapropriação do
conteúdo da telenovela dá contornos a um imaginário coletivo que é te-

20
Líder de audiência no horário nobre, considerando os nove anos anteriores. Foi vendida para
mais de 20 países. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/
novelas/senhora-do-destino/curiosidades.htm. Acesso em: 29 jun. 2019.
21
Disponível em: http://revistaglamour.globo.com/Celebridades/noticia/2017/03/senhora-do-
-destino-renata-sorrah-comenta-os-memes-de-nazare-tedesco-e-volta-da-novela-em-2017.
html. Acesso em: 28 jun. 2019.
22
Dados recolhidos em: 27 jun. 2019.

35
cido também por memórias históricas e afetivas dos telespectadores. “A
Nazaré ultrapassou os limites da telinha. Ganhou a internet e se mantém
viva até hoje, muitos anos após o fim da novela Senhora do Destino.
Virou expressão e parte da vida do brasileiro.”
A construção da personagem e a interpretação da atriz certamente
nortearam os receptores a escolher Odete Roitman. Uma das razões da
preferência por Odete são suas frases memoráveis “marcantes, irônicas
e ácidas sobre o Brasil que continuam fazendo sentido nos dias atuais”.
Assim, a personagem foi citada como “o retrato do Brasil”, além de
representar uma “leitura atual da sociedade”, validando que a veros-
similhança na telenovela brasileira é importante para o telespectador.
Sua função enquanto narrativa da nação permite que a telenovela opere
como agente da memória cultural – no caso de Odete, exemplificada
pela repercussão em torno de seu assassinato –, na medida em que as
fronteiras das coletividades se tornam inseparáveis dos usos e apropria-
ções da televisão.
Outro motivo citado para escolher Odete Roitman foi sua vilania:
“a melhor e maior vilã das novelas brasileiras” com “os deliciosos de-
feitos de caráter que jamais esqueceremos”. O vilão é o antagonista que
dá impulso à narrativa por meio de suas ações (Propp, 1984). Odete era
“uma sofisticada vilã, rica, poderosa, autoritária e empresária de suces-
so” (Rocha, 2016, p. 215). Mesmo assim, o público se identificou com
a personagem, citando-a como “icônica”, “marcante” e “carismática”,
revelando empatia. Para Smith (1995), o funcionamento da empatia é
duplo: primeiro, age como uma luz de busca em nossa construção da
situação narrativa; e, em segundo, gera no espectador, de alguma forma
atenuada, as emoções predominantes das personagens no mundo da
história. E o fato de ser uma mulher “ambiciosa” e “com força feminina”
nos mostra que as questões femininas/feministas também se fazem
presentes.
Viúva Porcina foi lembrada pelos leitores especialmente pelo
“exagero”, “humor” e “deboche”, características que, para além do
visual, estavam presentes no sotaque nordestino carregado, nos gestos,
nas gargalhadas e na atuação, considerada pelos leitores como “perfeita,
divertida e lúdica”. Portanto, a personagem, segundo os espectadores,

36
era “icônica”, “carismática” e “engraçada”, pois “para a época foi
marcante, até hoje nos lembramos, com seu jeito de falar e postura
inesquecíveis”. Devido ao seu comportamento moralmente duvidoso,
Porcina foi interpretada pelos leitores a partir de seu “empoderamento
feminino”, uma mulher “a frente da minha época, determinada... amada...
extravagante”, “ousada” e “autêntica”. Assim, as questões femininas/
feministas colaboraram para a ruptura do ideal de mulher servil e com-
portada, estabelecendo o contraponto com a personagem Mocinha –
noiva de Roque, que, após sua “morte”, fez voto de castidade e jurou não
mais casar. Porcina, então, rompeu com o conservadorismo ao seguir os
ditames de sua vida como falsa viúva e, posteriormente, compondo um
triângulo amoroso com Roque e Sinhozinho Malta, o que a fez ser vista
como “determinada” e “forte”.
Por fim, Jade é lembrada especialmente por lançar moda. A atriz
Giovanna Antonelli é reconhecida por conseguir transbordar suas per-
sonagens do mundo da história para os usos e apropriações cotidianos,
o que faz dela um valor importante em termos mercadológicos para a
emissora. Seu carisma, associado ao figurino excêntrico da personagem,
fez com que Jade se inscrevesse na memória cultural: “Ficou marcada
pelo exotismo da personagem, beleza e dança”; “Por me apresentar
uma cultura diferente quando era criança, achava lindo ver ela e ou-
tras personagens da novela dançando”. Apesar de ser de uma cultura
notadamente de dominação masculina, Jade “foi uma mocinha forte e
lutou contra a família e a religião mulçumana por causa do amor da
vida dela” – questões femininas/feministas que perpassam muitas das
falas dos leitores.

6 Considerações finais

Cada uma das personagens carrega a síntese dos mundos das tele-
novelas a que pertence e é interpretada nesse trabalho a partir da coo-
peração entre o mundo do autor e o mundo do leitor. Carminha, mesmo
depois de rica, traz consigo o estereótipo do gosto popular da zona norte
carioca – corporificando o limiar entre subúrbio e zona sul delimitado

37
pela avenida que dá nome à trama em questão. Nazaré, em contraponto
à próspera Baixada apresentada em Senhora do Destino, sintetiza o pa-
drão de vida individualista consolidado do núcleo Copacabana, onde os
ricos são decadentes e vivem de aparência. Odete Roitman é expoente
da máxima expressa no título de sua telenovela: Vale Tudo – desde se
aliar a uma mulher ambiciosa (apesar de pobre), controlar os filhos e
até fazer vista grossa a negociatas escusas em suas empresas. Viúva
Porcina, “aquela que foi sem nunca ter sido”, expressa a trajetória do
próprio Roque Santeiro, “o que morreu sem perder a vida”, e funciona
metaforicamente como uma representação do coronelismo em tempos
de Nova República. E Jade traz em si o limiar entre a cultura ocidental
e oriental, mote narrativo de O Clone.
É interessante perceber que, mesmo se configurando como uma
linha de força na projeção de uma sociedade multicultural e progressista
no Brasil (Lopes, 2009), a telenovela não deixa de construir suas per-
sonagens e mundos a partir de modelos e ideias arcaicas, estabelecendo
uma negociação do telespectador sobre os limites de quanto os mundos
ficcionais devem avançar em relação ao mundo real. Essas negociações,
fundadas na articulação entre os polos da produção e da recepção – ou
seja, no encontro entre os mundos dos autores e os mundos das persona-
gens com os mundos do leitor/telespectador –, devem ser compreendidas
como cooperações na construção dos mundos da telenovela brasileira.
Tais cooperações, mais efetivas no período em que a telenovela está no ar
em razão do seu caráter de obra aberta, continuam a ocorrer longitudinal-
mente devido ao trabalho de memória dos leitores/telespectadores a partir
de personagens cujas possibilidades insistem em atuar num imaginário
social marcado por condições estética e culturalmente condicionadas.
Este estudo, de caráter exploratório, não se esgota aqui. O que nos
motivou foi justamente apresentar a complexidade do tema e estimular
o desenvolvimento de novas investigações a partir dos achados da pes-
quisa. Explorar um percurso que perpassa o mundo do autor e alcança
o mundo do leitor se demonstrou um exercício epistemológico que abre
diferentes perspectivas para futuras vivências teóricas e metodológicas.

38
Referências

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das Letras, 2009.
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Lincoln/London: Un. Nebraska Press, 2014.
Da concepção ao mito: o mundo da maternidade de A
Força do Querer no Facebook

Veneza Mayora Ronsini


Sandra Depexe
Lúcia Loner Coutinho
Luiza Betat Corrêa
Simone Munir Dahleh

1 Introdução

A cultura da convergência (Jenkins, 2009; Shirky, 2011) transforma


os modos de ser audiência pela relação ampliada com os bens culturais:
na escolha de conteúdos, lugares, momentos de acesso e compartilha-
mento (García Canclini, 2017). Se ser audiência é conectar-se com outras
pessoas pela mediação das telas (Orozco; Miller, 2019), a telenovela tem
estimulado a participação de comunicantes/fãs, em especial, através das
redes sociais on-line, potencializando as formas tecnológicas de interação
entre os sujeitos.
O produto televisivo é ponto de contato com a vida cotidiana dos
receptores: as tramas impulsionam o debate sobre a realidade brasileira
por sua relação com a produção de sentidos identitários (Lopes, 2014;
Mungioli, 2014). No debate público sobre a maternidade, a função social
do folhetim eletrônico se assenta em construções históricas e sociocul-
turais que reproduzem ou problematizam posições naturalizadas como
pertencentes ao domínio e à realização feminina, envolvendo as relações
de poder que fundam as noções de família e as responsabilidades pela
criação dos filhos (Moreira; Nardi, 2009). Entre essas posições, é pro-
blemática a representação da maternidade como realização plena e do
cuidado como prerrogativa unicamente feminina, pois, assim, a mater-
nidade se inscreve nas mentalidades como mito ou ideologia, servindo

41
para reproduzir a ideia de que o destino da mulher é ser mãe e cuidar da
família: a mulher como um ser para o Outro (Bourdieu, 2011).
A capacidade dos produtos ficcionais em estabelecer uma relação
entre autoria, fruição e interpretação dos espectadores em forma de
“mundos possíveis” (Eco, 1993, 2016), construídos coletivamente nas
redes sociais on-line (Scolari, 2011), permite-nos supor que a novela é
um recurso comunicativo (Lopes, 2009, 2014) na construção do mito
materno e de mundos possíveis para a maternidade. A hipótese é explo-
rada pela observação do modo de ver e ler a telenovela pelas práticas da
audiência de A Força do Querer (Globo, 2017).
Para nos aproximarmos da problemática, elegemos como objetivo
geral investigar as articulações entre a narrativa da telenovela e as ne-
gociações de sentidos da recepção em ambiente on-line na “construção
do mundo da maternidade”. E como objetivos específicos buscamos: a)
comparar as práticas de interação e participação de comunicantes e fãs
em um grupo da telenovela A Força do Querer e na fan page do Gshow,
ambos no Facebook; b) identificar os imaginários que constroem o mito
da maternidade para confrontar com os sentidos construídos por comu-
nicantes/fãs na recepção da telenovela A Força do Querer.

2 Mundos possíveis na tela

A noção de mundos possíveis, para Eco (1993, 2016), pode ser enten-
dida por dois vieses: um originário da semântica, outro da narratividade.
Vinculamo-nos ao segundo, ao compreender que os mundos possíveis são
construídos culturalmente, tendo a linguagem como medium universal.
Atrelando os mundos possíveis da narrativa dramatúrgica ao
contexto da recepção de telenovela, a negociação de sentidos entre
narrativa e receptor produz novos entendimentos de seu mundo e de
seu lugar nele, “com espaço para novas histórias, ilusões e expectativas
de um mundo melhor”, compartilhando-os a cada capítulo da novela
(Orozco; Miller, 2019, p. 75). A construção de mundos possíveis se
tornou um processo coletivo nas redes sociais on-line, pois “os espec-
tadores discutem o texto que acabaram de ver, analisam suas possíveis

42
continuações e debatem sobre os personagens e a trama do episódio”
(Scolari, 2011, p. 131).
Conforme Eco (1993), é a possibilidade de conceber ou crer em
um mundo alternativo que permite questionarmos o mundo real. Nesse
contexto, “a narrativa sugere que talvez nossa visão do mundo atual
seja tão imperfeita quanto a das personagens narrativas. Eis por que as
personagens de sucesso se tornam exemplos supremos da ‘real’ condição
humana” (Eco, 2016, s.p.). A perspectiva de que os processos de iden-
tificação e desidentificação repercutem nos usos e apropriações que os
receptores fazem das personagens nos é cara, pois o imaginário sobre
o ideal de maternidade não é isento dos jogos de ajuste e desajuste de
posições socialmente construídas.
Como os mundos possíveis se conectam com o sistema de crenças e
com a ideologia (Eco, 1993), reconhecemos seu nexo com o imaginário
e a mitologia, especialmente para o debate da noção de maternidade
construída pela mídia. O imaginário se manifesta em formas simbólicas
e é estruturado de modo lógico; já o mito tem o caráter de alienação ide-
ológica, dominação política e exclusão econômica (Ruiz, 2004). Parece-
nos apropriado, para ressaltar a experiência universal da maternidade
como particularizada em cada sociedade e vivida individualmente, ter
explicações racionais e implicações simbólicas socialmente construídas,
sujeitas a aberturas e fechamentos de sentido. Vale dizer: maternidade é
mito, mas não se esgota nele. A maternidade pode ser vista como amor
incondicional da mulher aos filhos, quando ela tem espaço para se realizar
como pessoa, independentemente da família.
Gloria Perez, em nossa leitura, é uma autora que apresenta a ma-
ternidade transpondo o mundo da ficção ao mundo real. Em Barriga de
Aluguel (1984) e O Clone (2002), abordou a inseminação artificial e a
disputa de guarda na justiça; em De Corpo e Alma (1993) e Explode
Coração (1996), a troca de bebês na maternidade e o desaparecimento
de crianças, respectivamente; em América (2005) e Caminho das Índias
(2009), a dificuldade em aceitar a homossexualidade e a esquizofrenia
dos filhos. A novela de intervenção é uma de suas marcas autorais, com
inserção de segmentos documentais e depoimentos reais (Hamburger,

43
2005). Sua escrita, classificada como vertente futurista do Romantismo
ficcional na tevê, (Junqueira, 2009), não se enquadra apenas na tradição
romântica, pois discute de forma renovada as múltiplas sexualidades, as
desigualdades de gênero e os problemas ligados à maternidade, mesmo
mantendo traços do romantismo clássico. Em A Força do Querer (2017),
o mito é reproduzido e, às vezes, paralelo, em personagens distintos, com
uma perspectiva positiva de mulheres independentes, o que se mostra
conflitante ou problemático frente ao ideário vigente sobre maternidade,
como se percebe nos comentários analisados.

3 Estratégia metodológica

O desenho de pesquisa (Figura 1) é construído nos planos epistemo-


lógico, metodológico e operacional (Lopes, 2010), articulados em dois
eixos: para ver e para ler o empírico. Para ver o empírico, vinculamo-
nos ao conceito de cultura da participação, à noção de comunicantes e
à teoria de fãs; e metodologicamente adaptamos o monitoramento de
mídias sociais para a pesquisa. Elegemos o Facebook, em específico
a fan page do Gshow e o grupo fechado “A força do querer (novela)”,
como ambiência de observação da investigação. Já para ler o empírico,
conectamo-nos à noção de mundos possíveis, associada à de mitos e
imaginários, para analisarmos como se dão as negociações de sentidos
sobre a maternidade em comentários de comunicantes/fãs da telenovela
A Força do Querer.

Figura 1 – Desenho de pesquisa

44
Operacionalmente, inspiramo-nos em quatro passos delimitados
por Kozinets (2014) para a condução de uma netnografia1, aplicando-os,
entretanto, como técnica de coleta de dados. O contato com o empírico
se deu, além da semana exploratória (entre os dias 10 e 16 de abril de
2017), em mais 14 coletas semanais entre os meses de abril e outubro
de 2017. As datas foram escolhidas de forma intencional para abarcar
momentos relevantes da telenovela e para contemplar diferentes aspectos
temporais do enredo das personagens.
A observação e a coleta foram realizadas sem interações, evitando
o risco de dispersar ou alterar o comportamento dos grupos observados
(Fragoso; Recuero; Amaral, 2011, p. 22). O monitoramento on-line
prévio ao recorte do objeto assegurou a relevância do tema maternidade
a partir da repercussão em postagens e comentários das narrativas das
personagens Ritinha (Isis Valverde), Joyce (Maria Fernanda Cândido) e
Bibi (Juliana Paes). As categorias de análise imbricam maternidade com
a vida pessoal, trabalho e relações sexuais/afetivas da mulher, pontos que
tensionam o escopo teórico com as experiências vividas, idealizadas e
fictícias.
Desse modo, visamos confrontar, na circulação, os papéis ocupados
por “mães” na trama A Força do Querer, construídas pela autoria de Glo-
ria Perez, com o imaginário da recepção sobre o que é “ser mãe”. Nesse
confronto, as questões de gênero e classe se entremeiam aos discursos
sobre aquilo que é apontado como ideal da maternidade, desvelando
posições de poder e/ou subjugação e indicando a reprodução e/ou o
questionamento do “mundo da maternidade” lidos a partir do referencial
ficcional, mas que respaldam modos de ver e viver o real.

4 Modos de ver: audiências conectadas

Em um mundo conectado pelas telas e redes de computadores, a


internet se apresenta como parte da vida dos indivíduos, podendo ser
vista tanto como objeto cultural quanto como um lugar (Hine, 2015).

1
Planejamento e entrada; coleta de dados; análise de dados; e netnografia ética.

45
À primeira instância, se associa à utilização prática, com aspectos coti-
dianos explorados ou beneficiados através dela; à segunda, vincula-se
às diferentes formas de sociabilidade e participação. Assim, emergem
do próprio on-line: um cenário de multiespacialidades com mobilidade
dos usuários; conexão com múltiplos espaços geográficos; existência
de diferentes temporalidades; interações que podem ser efêmeras ou de
longo prazo (Hine, 2015).
Esse cenário potencializa a mídia tradicional e oferece novas possibi-
lidades de interação entre telas (Orozco, 2011). As dinâmicas de interação
e as práticas de participação indiciam uma dimensão de interlocução com
maior liderança e criatividade, em que o receptor torna-se cada vez mais
ativo. Além de fazer pensar, o consumo pode servir também para criar,
produzir e situar-se como público.
No ambiente digital, compreendemos que a maioria das audiências
se configuram como sujeitos comunicantes pela mediação das tecnologias
de comunicação e informação (Orozco, 2011, 2012). Isto é, embora as
fronteiras entre produtores e emissores tenham se tornado difusas (Fausto
Neto, 2009; Jenkins, 2009), os atos desses sujeitos nem sempre escapam
de um consumo ampliado ou meramente reativo (Orozco, 2012). Tão
relevante quanto o ritual de assistir à novela é o ritual de falar sobre ela
(Lopes, 2009) nos âmbitos off-line e nas redes sociais on-line. Por isso,
há o reconhecimento de que as audiências comunicantes têm importância
na construção, negociação e circulação de sentidos em uma coletividade
transterritorial (García Canclini, 2017).
Todavia, entre os comunicantes existem diferentes níveis de engaja-
mento com as produções midiáticas e comunidades de sentidos (Janotti
Jr., 2003), estas formadas pela associação de pessoas que compartilham
determinados interesses, podendo usufruir de valores em comum, gostos
e afetos, além de certas práticas de consumo. Por conseguinte, faz-se
apropriado realizar uma diferenciação dos sujeitos delas participantes,
que podem ou não ter comportamento de fã.
Entendemos que ser fã abrange expressivos níveis de engajamento
e envolvimento emocional, como grande interesse por peculiaridades do
objeto cultural consumido, criação de laço que contribui para o sentido

46
de identidade e vontade de espontaneamente manter contato com outros
fãs – o que pode envolver a participação em comunidades de fãs, que
possuem lógicas particulares de consumo e interação (Amaral; Monteiro,
2013; Lopes et al., 2015; Hills, 2015; Duffett, 2013). É nessa perspectiva
que diferenciamos os ambientes e sujeitos aqui observados. Empregamos
o termo fã para designar todos os comunicantes que fazem parte de forma
contínua de uma comunidade ou grupo virtual em que, apesar de não
se mostrarem produtores, apresentam práticas específicas de interação
e engajamento com o produto midiático de seu interesse, a telenovela.
Portanto, evidenciamos a relação entre tecnologia e cotidiano (Hine,
2015) e o hábito de comentar novelas (Lopes, 2009) nos dois ambientes
monitorados relativos à novela A Força do Querer. No caso do primei-
ro, o grupo intitulado “A força do querer (novela)” caracteriza-se por
ser um grupo fixo e fechado no Facebook, administrado por uma única
pessoa, cujo nome assim como as discussões e interações são pautadas/
modificadas em virtude de alguma das novelas em exibição na Globo. No
início do monitoramento, o grupo contava com cerca de 6.490 membros
e, ao final, passou dos 12 mil. Nesse espaço, observamos a realização de
postagens e compartilhamento de links com informações sobre a novela,
assim como a discussão do capítulo a ser exibido no dia e entrevistas
com curiosidades sobre atores, diretor e autora da trama.2
Já o segundo ambiente foi a fan page do Gshow3, página institu-
cional da Globo, que atualmente4 conta com 10.785.933 curtidas. Os
conteúdos ali publicizados correspondem a links que redirecionam
para matérias do site do Gshow. As postagens relativas à telenovela se
apresentam na forma de spoiler5, resumo da semana, cenas e bastidores.
É nessas postagens que o público interage com comentários, expondo
suas ideias, contestando/concordando com comentários de outras pes-

2
Nas interações do grupo, destacamos a presença de Fabiana Escobar, que serviu de inspira-
ção para a personagem Bibi, debatendo a trama e as próprias atitudes da personagem com os
demais membros.
3
O Gshow, lançado em janeiro de 2014, é uma plataforma caracterizada por ser um portal de
entretenimento da Globo.
4
Coleta do dia 11 de janeiro de 2019.
5
Termo em inglês que significa revelar o que vai acontecer na trama antes mesmo de o teles-
pectador assistir.

47
soas, criticando cenas/personagens, ou ainda sugerindo modificações
na produção.
Além da diferente origem dos ambientes, um criado e pautado por
fãs, com o objetivo de discutirem sobre a telenovela, e o outro de viés
institucional, com público que se interessa pelas diferentes produções da
emissora, notamos que eles se distinguem primordialmente pela relação
das pessoas que participam dessas interações, por meio de comentários
que evidenciam seus cotidianos e o afeto estabelecido entre os sujeitos.
No grupo, nota-se a afinidade que os membros têm entre si, uma vez
que, através de postagem, mobilizam-se para acompanhar e comentar
conjuntamente o capítulo do dia e, assim, acabam se referindo ao coti-
diano/vida pessoal (Figura 2), como o lanche que estão degustando no
momento, a temperatura em suas cidades, a situação de desemprego,
“DR” com marido, entre outros. Além disso, alguns membros avisavam
quando não participariam da dinâmica de comentar o capítulo, dada
a cobrança quando “sumiam” e depois reapareciam nas interações.
Igualmente, consideramos existir laços de afeto entre sujeitos, visto o
emprego de termos como “lindas”, “meus amores”, “querida” e “amiga”
nas mensagens trocadas. Por outro lado, no Gshow, os comunicantes não
têm afinidades entre si e pouco referendam seus cotidianos, o que pode
estar relacionado à amplitude do público que tem acesso à fan page,
já que a média de curtidas nas publicações da novela chega a cerca de
20 mil. Os comentários comumente se voltavam a “marcar” alguém, à
aparência dos atores ou ao tema da postagem.

48
Figura 2 – Exemplo de interação sobre o cotidiano entre fãs6

Destacamos a percepção de que a maioria dos fãs que interagem no


grupo são mulheres e, em virtude disso, na publicação de comentários
sobre o “capítulo do dia”, não raro, aparecem manifestações sobre o
cuidado delas com os filhos enquanto assistem à telenovela (ex.: não
puderam ver o capítulo, pois o filho assistia a um filme/desenho anima-
do; estavam colocando o filho para dormir e perderam algo da novela
ou por isso demoraram para comentar o capítulo; entre outros), como
constam nos exemplos da Figura 3. Tais comentários são indiciais da
realidade brasileira, atestada pela pesquisa do IBGE PNAD Contínua,
que afirma que 92% das mulheres realizam afazeres domésticos e 37%
são responsáveis pelo cuidado de pessoas, enquanto 78% e 26% dos
homens, respectivamente, realizam as mesmas atividades.7

Figura 3 – Cuidado das mães/fãs e a assistência da telenovela

6
Os comentários reproduzidos mantêm sua grafia original.
7
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101650_informativo.pdf.
Acesso em: 4 jul. 2019.

49
Nota-se ainda que ambos os ambientes não apresentam unidade nas
opiniões expressas, todavia, no grupo, os fãs se mostram um pouco mais
coesos. No Gshow, a maior parte dos comentários não tem interações
e muitos são triviais. Alguns, porém, expressam opiniões de maneira
mais pungente, seja com elaborados questionamentos sobre as temáticas
levantadas ou com críticas e reclamações sobre a narrativa. São esses
que, de forma geral, geram mais discussões, tanto com comentários con-
cordantes quanto com embates. No caso do grupo, percebemos alguns
conflitos mediante opiniões divergentes (especialmente pautados pela
dificuldade de interpretação), mas eles não apresentam problemas para
a continuidade da interação em comunidade.
Além dessas diferenças de interações e participações de cada am-
biente, destacamos uma diferença relacionada à própria interação dos
sujeitos com a novela: o tempo de duração do capítulo. Os fãs consideram
a quarta-feira o pior dia de assistência, pois o capítulo é curto compa-
rado aos demais dias devido à exibição de jogos de futebol. Os atrasos
no início da telenovela provocam manifestações de descontentamento
e xingamentos direcionados à Globo ou ao conteúdo exibido no Jornal
Nacional, aspectos que não são observados em manifestações no Gshow.
Porém algumas similaridades foram encontradas. Os comunicantes
e fãs se aproximam nos sentidos manifestos em comentários opinativos
sobre enredo e personagens. Sobressai-se um grande interesse pelas in-
formações caracterizadas como spoilers, sejam eles provindos do próprio
Gshow ou de revistas semanais conhecidas por adiantarem/especularem
sobre telenovelas e links de sites/blogs, como o blog da Patrícia Kogut
e o site Notícias da TV UOL. Por fim, apesar de ser uma fan page insti-
tucional, a linguagem e o modo de escrita empregados no Gshow, com
recursos informais que induzem à sensação de intimidade, são análogos
ao que ocorre na conversação dos fãs no grupo.
Sob a perspectiva de que a cultura da participação atravessa a tele-
novela e sua circulação nas ambiências on-line é retroalimentada pela
ação de comunicantes e fãs, apresentamos a Figura 4 como forma de
sintetizar os principais resultados.

50
Figura 4 – Audiências conectadas

5 Entre mito e realidades

Conforme mencionado, a maternidade, seja real, seja idealizada, é


entrecruzada por discursos de diversas ordens. O amor materno funda a
noção de família moderna, conforme relata Badinter (1985), sobretudo
na França, a partir das ideias sobre a infância na obra Émile (1762), de
Rousseau. A criança passa a ser vista como um ser sem pecado, após sé-
culos de uma pedagogia punitiva baseada em ideias religiosas, enquanto,
para os demais, é um estorvo e pode ser física ou moralmente abandonada.
O discurso capitalista e demográfico do século XVIII fala do ho-
mem como “matéria-prima” da riqueza nacional. Assim, o aumento
populacional e a diminuição da alta taxa de mortalidade na infância
tornam-se um projeto importante para a nação. Pouco depois de 1945,
a imprensa na França e nos Estados Unidos inicia uma campanha que
edifica em torno da mãe uma mística para torná-la a mulher devotada ao
lar e aos filhos, ideia essa que perdura até pelo menos o final da década
de 1970, constituindo um discurso sobre o papel central da mãe para o
desenvolvimento infantil.
Conquistas feministas posteriores buscaram apontar a maternidade
como opção e como missão compartilhada entre os pais. No entanto, a luta

51
por relações familiares com papéis de gênero mais igualitários está longe
de ser ultrapassada. Ao falar sobre as famílias na pós-modernidade, Beck
(2011) expõe o contraste entre as expectativas femininas e os discursos
masculinos de igualdade. Mesmo em países econômica e socialmente
mais desenvolvidos, boa parte das mulheres depara-se com a frustração
entre o que teoricamente lhes foi prometido, décadas após a revolução
de costumes da segunda metade do século XX, e o cotidiano cultural
e político de desigualdade (tanto público quanto dentro dos lares). A
persistência da identidade feminina tradicional baseada na maternidade
é parte das estruturas de poder que submetem as múltiplas sexualidades
ao padrão heteronormativo e referenda o lugar simbólico do masculino
como universal, ainda que o exercício da maternidade e o lugar da mulher
no espaço público tenham se alterado.
Enquanto se pode explorar o mito da maternidade como tema na
sociedade globalizada, é necessário também situá-lo dentro de especifi-
cidades socioculturais brasileiras. A historiadora Mary del Priore (2009)
apresenta a “sacralização” da maternidade no Brasil colônia como parte
do projeto de instituições patriarcais, da Igreja Católica e do Estado para
a normatização e regulação da civilização no “novo mundo”. A idealiza-
ção e a perpetuação da imagem da “santa mãezinha provedora, piedosa,
dedicada e assexuada” contrastava com a cristalização de seu avesso,
a mulher mundana e lasciva, imprópria para a vida familiar, ao mesmo
tempo que tornava a mulher o centro regulador de valores socioculturais
desejáveis à formação populacional. Esse projeto foi tão bem-sucedido
que se reproduz no imaginário nacional séculos depois.
Contrariamente às mitologias que cercam a maternidade, a autora
aponta que “a maternidade delimita um território onde mães e filhos se
relacionam empiricamente, adaptando-se aos valores da sociedade em
que estão inscritos” (Del Priore, 2009, p. 16). Pode-se ver essa afirmação
presente nos comentários e concepções expressas sobre a maternidade
nos ambientes estudados. Trata-se de um discurso que, ao mesmo tempo,
julga as mães frente aos filhos, ao parceiro e à sociedade e por vezes
deixa transparecer as próprias agruras e contradições com o papel da
maternidade.

52
Embora os valores sociais tenham se modificado desde a época
colonial, esse ideário da “mãe” parece ter se modificado muito pouco,
o que pode ser encontrado tanto em produções midiáticas, como nas
telenovelas, quanto nas perspectivas do público em relação à forma
como a questão é apresentada e como elas próprias se veem dentro des-
sa mitologia. Na interpretação das postagens, observa-se a reprodução
do modelo binário de gênero, baseado na ideia de que a preocupação e
o cuidado com os outros são tarefas femininas (Gilligan, 1982, 1997).
Seguindo o raciocínio de Gilligan (1982, 1997) sobre a necessidade da
universalização da ética do cuidado como condição para a mudança da
sociedade patriarcal, a mentalidade da audiência feminina está mais
próxima da reprodução do mito materno do que da reconstrução de um
mundo possível de igualdade de gênero.
A partir desse fundo teórico, passamos para a análise dos comen-
tários coletados relativos à maternidade, acompanhando as postagens
sobre a trajetória das personagens Bibi, Joyce e Ritinha. Na primeira
parte da trama, a personagem que mais levanta discussões é Joyce em
sua relação com os filhos, Ruy e Ivana. Já pela metade da narrativa, é
Bibi com seu filho e sua mãe. Ao final da trama, questões mais claras
sobre maternidade aparecem na narrativa, sendo de forma mais aguda e
pontual para Joyce e Ritinha, e como redenção para Bibi.
Ao acompanharmos os comentários a respeito de mães na fan page
do Gshow e no grupo de fãs da novela no Facebook, observamos que
a maternidade é considerada uma condição exemplar e simbolicamente
sagrada, porém jamais contemplada em sua idealização. Estas três per-
sonagens são algumas das mais criticadas pelos comentários ao longo
da trama por suas escolhas, mas principalmente por não se enquadrarem
moralmente nas expectativas da feminilidade. Ritinha é constantemente
percebida com uma mulher devassa, pronta para destruir a vida dos
homens com os quais se envolve; Joyce é frívola e fria demais; e Bibi é
movida por suas paixões e humores, perdendo de vista o que seria de fato
relevante. Elas são consideradas pelos comentaristas muito egocêntricas,
enquanto a essência da vida familiar da mulher e a maternidade exigem
renúncia e abnegação.

53
Boa parte das mulheres mães da novela são personagens com mais
contradições do que a simplificação de motivações e personalidade
proposta pela imagem da mãe ideal. Nenhuma das personagens mães
com relevância na trama se resume à domesticidade ideal. A que mais
se aproxima da imagem de mãe sofredora é Aurora (Elizângela), a mãe
de Bibi. Apesar de sua trajetória incluir namoros e vida social própria, o
principal enredo envolvendo a personagem é o sofrimento com as esco-
lhas de vida da filha e os cuidados com o neto. São muitos os comentários
que apontam o descumprimento dos “conselhos” ou mesmo das súplicas
da mãe como um dos maiores crimes morais cometidos por Bibi.
A trajetória de Bibi traz à tona a contradição entre o mito da mater-
nidade e outra construção sociocultural com estreita conexão a este, o
amor romântico. Bibi casa-se por amor com Rubinho (Emílio Dantas) e
o único problema apontado por ela são as dificuldades financeiras, que os
levam ao despejo. A vida da família muda quando Rubinho, com posterior
ajuda da esposa, começa a subir na hierarquia do tráfico de drogas. A
crescente “cegueira” e conivência da personagem em relação aos desvios
do marido criam incômodo entre os comentaristas, com postagens cada
vez mais venais em relação à personagem, que não poupam aspecto
nenhum de sua personalidade, e em alguns casos de sua aparência. Daí
em diante, suas atitudes são criticadas por não serem condizentes com
o papel de mãe (Figura 5).

Figura 5 – Personagem Bibi

54
Para o público do Facebook, é imperdoável que a lealdade de Bibi
esteja com o marido, e não com sua mãe e seu filho, que sofre com a
perda de amigos em virtude das ações dos pais. É frequente o uso pelos
comentaristas da expressão “mulher de malandro” para qualificar Bibi,
que abandona a família pelo fugaz bem-estar material, emocional e sexual
que Rubinho lhe proporciona. Nessa visão, Rubinho não é visto como
parte da família de Bibi, pois sua atividade criminal o invalida como
merecedor desse sacrifício. O relacionamento do casal não é julgado
nos comentários sob o viés da domesticidade característica do amor ro-
mântico, tão central aos melodramas, mas como uma paixão excessiva.
Podemos inferir que os sentimentos de Bibi em relação ao esposo esta-
riam mais próximos do amour passion, uma construção cultural anterior
ao amor romântico (Giddens, 1993). O amour passion estaria ligado à
quebra da rotina e do dever, à busca por aventuras, e mantém-se ainda
mais próximo dos homens (Grün, 1995), enquanto o amor romântico
está vinculado à reconstrução social do casamento na Idade Moderna,
relacionado à prioridade que a mulher deve dedicar ao lar e à família.
A adesão dos comentaristas às lógicas do amor romântico e das
virtudes da mãe cuidadora é evidente quando Rubinho é julgado quase
exclusivamente em suas ações criminais e raramente no papel de ma-
rido e pai, enquanto, para Bibi, a maioria dos julgamentos envolve a
não conformidade de suas ações com o papel de mãe. Mesmo quando
ela passa a ser traída pelo marido, isso é visto como um castigo, uma
lição a ela por priorizar esse relacionamento em detrimento da relação
que poderia ter tido com Caio (Rodrigo Lombardi), considerado um par
romântico mais adequado.
De forma semelhante, Ritinha também não se encaixa no arqué-
tipo da mãe e esposa ideal. Em ambos os espaços de coleta, Ritinha é
majoritariamente criticada em sua conduta sexual e moral. Sua conduta
como mãe, porém, divide as opiniões. Embora as críticas em relação às
mentiras da personagem quanto à paternidade de seu filho sejam maioria,
na fan page do Gshow os comentários buscam justificar tal ação como
uma proteção filial: o medo de que ela e o bebê sejam rejeitados pelo
pai biológico, Zeca (Marco Pigossi). Apesar de todas as críticas à sua
personalidade e atitudes, Ritinha é percebida de forma geral como uma

55
boa mãe. Na reta final da novela, quando ela perde a guarda do filho para
o marido Ruy (Fiuk), a maioria dos comunicantes/fãs acredita que isso é
uma injustiça e que o pai e os avós não se sobrepõem à mãe quanto aos
cuidados e “direitos” sobre a criança. Embora exista uma intersecção
entre a posição do público em relação a Ritinha, ao pai adotivo do me-
nino8 e em relação à sogra Joyce9, boa parte dos comentários demonstra
ambiguidade sobre Ritinha. Mesmo sendo vista como uma mulher in-
consequente e, por isso, rejeitada pela audiência, as críticas a Ritinha se
limitam ao seu comportamento conjugal, e não ao seu desempenho como
mãe, diferentemente do que ocorre na relação de Bibi com o público,
por exemplo (Figura 6).

Figura 6 – Personagem Ritinha

O comportamento considerado reprovável de Ritinha é em parte


relacionado à influência da mãe, Ednalva (Zezé Polessa). Criada so-
mente pela mãe e “filha de boto”, referência folclórica a um “sedutor

8
Ruy é amplamente visto como mimado e mau caráter, e contrapõe-se a Zeca, mais simpático
ao público.
9
O público, em sua maioria, critica a posição de Joyce em relação a Ritinha por considerá-la
elitista, pois desdenha de hábitos identificados com classes populares e da região Norte.

56
desconhecido” que engravida a mulher e desaparece, Ritinha e Ednalva
terminam por representar uma realidade que, apesar de comum, ainda é
vista como perturbadora à ordem social: famílias chefiadas por mulheres.
Apesar de não ser uma personagem aprovada pelo público, pelas
suas transgressões morais e sexuais, Ritinha tem um final que rompe
com a regra melodramática de supremacia do romance e da família
patriarcal. Ela segue carreira como performer internacional, afirmando
a Ruy e Zeca que, apesar de gostar de ambos, gosta mais de si mesma.
Ainda, leva consigo o filho e deixa claro aos dois pais do garoto que não
irá abrir mão de criá-lo. Ritinha, dessa forma, escolhe a maternidade em
conjunto à sua liberdade.
Se Ritinha e Bibi são cobradas em relação aos filhos pequenos,
Joyce sofre críticas por não prestar atenção necessária aos filhos adultos.
O fato de os filhos frequentemente se aconselharem e desabafarem com
a empregada da família, Zu (Cláudia Mello), em vez da mãe, aparece
nos comentários como sintoma de desestruturação familiar, e Joyce seria
culpada por não colocar as subjetividades dos filhos e do esposo como
prioridades. Juntamente, é criticada pelas tentativas de modificar o jeito
de ser da filha, querendo que Ivana seja uma reprodução de si mesma,
ao mesmo tempo que é leniente demais com os erros do filho, Ruy. A
maternidade como um projeto árduo e perene, quase como um prolon-
gamento “das dores do parto por uma vida inteira” (Del Priore, 2009), é
uma constante no imaginário do público do Facebook.
Por outro lado, a rejeição a Joyce diminui conforme a filha, Ivana,
descobre-se e revela-se como um homem transexual – Ivan. Muitos de-
monstram pena e empatia pelo fato de a personagem enfrentar situação
tão difícil para uma mãe, especialmente uma mãe que sempre “sonhou
em ter uma menina”. Nesse ínterim, a evolução dos posicionamentos a
respeito de Joyce é atravessada pelos conceitos feitos pelos espectadores
em relação à transição de Ivan, reconhecendo-se enquanto homem transe-
xual, questão que muitos espectadores têm dificuldade de compreender.
Apesar do sofrimento, Joyce, enfim, aceita o filho como ele é, fator que é,
de forma geral, apreciado pelos espectadores, também pela emotividade
das cenas (Figura 7).

57
Figura 7 – Maternidade na personagem Joyce

Considerando que a leitura da maternidade na telenovela é atra-


vessada pela noção de mundos possíveis e suas relações com o mito e
imaginário de mãe e esposa ideais, a interpretação da audiência sobre as
personagens dá vazão aos rótulos de apaixonada, devassa e frívola. Ao
desdobramento da narrativa, porém, negociam-se sentidos negativos e
positivos envoltos às questões familiares e à realização pessoal e profis-
sional da mulher (Figura 8).

Figura 8 – Modos de ler a maternidade

58
6 Considerações finais

Observar a recepção da telenovela na cultura da participação implica


atentar para as potencialidades e capacidades dos ambientes em que as in-
terações da audiência se manifestam. Para além das métricas, se comentar
a novela é um hábito (Lopes, 2009) ou um pretexto para a comunicação
e convivência on-line (Scolari, 2011; Orozco; Miller, 2019), devemos
questionar como as atividades nessas ambiências produzem significados
e geram experiências para seus usuários (García Canclini, 2017).
Nesta pesquisa, evidenciamos que uma mesma plataforma, no caso, o
Facebook, pode propiciar níveis de interações e relações com a telenovela
que se distinguem de acordo com o contexto comunicacional de uma fan
page ou de um grupo. Em termos de engajamento na fan page do Gshow,
institucional da Globo, as interações são numerosas e reativas (curtir,
marcar alguém), muitos comentários questionam a relevância da novela
ou indiciam comunicantes que não têm tanta afinidade com a trama. Já
no grupo “A força do querer (novela)”, os participantes são considerados
fãs por haver engajamento e envolvimento emocional com a novela e
com os membros do grupo. Outro fator interessante a se considerar é
que os fãs se preocupam com o tempo de duração da novela, um fator
não comentado pelos membros da fan page do Gshow.
No grupo, a ritualidade da assistência televisiva é atravessada aos
comentários opinativos, como uma expansão transterritorial das rotinas
dos lares. A realidade das mulheres e mães é relatada no cuidado com os
filhos e a casa, na divisão entre as tarefas e na fruição ficcional. Ali as
experiências e os confrontos entre o mundo possível da tevê e o mundo
possível da maternidade são expostos, verbalizados, compartilhados,
permitindo compreender como o consumo de telenovela é um ato signi-
ficante, dentro e fora do grupo.
Essa realidade doméstica, embora exposta em suas dificuldades em
muitos comentários, não significa, necessariamente, uma facilidade em
compreender as escolhas das mães na telenovela. Isto é, os espectado-
res ponderam o sentimento das personagens, mostrando empatia com
determinadas situações conforme suas próprias experiências, como a

59
incompreensão de Joyce diante da redesignação de gênero do filho, a
dor de Bibi ao ver o filho ser rejeitado pelos amigos devido às escolhas
do pai, ou o desespero de Ritinha ao perder a guarda do filho. Todavia,
quando tais personagens se afastam da mitologia e fazem escolhas que
supostamente não priorizam os filhos, ou mesmo o ideal de domestici-
dade da maternidade, são duramente repreendidas. Observamos que os
comentadores referendam o mito da maternidade de forma mais enfática
do que a própria narrativa melodramática. É nessa ambiguidade que en-
contramos diferenças entre os modos de ver dos incômodos e problemas
que frequentemente transparecem sobre o cotidiano da maternidade, e os
modos de ler, com a afirmação sobre o caráter prioritário da maternidade
discursivamente.

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62
Construção de mundos na ficção seriada do SBT e da
Globo: A Garota da Moto e Totalmente Demais

Maria Ignês Carlos Magno (líder)1


Rogério Ferraraz (vice-líder)

Renato Luiz Pucci Jr.


Ana Márcia Andrade
Anderson Gonçalves
Camila Souto
João Paulo Hergesel
Renan Villalon

1 Introdução

O objetivo da pesquisa aqui apresentada foi investigar o processo de


construção de mundos na ficção televisiva brasileira por meio da análise
comparativa entre a série A Garota da Moto e a telenovela Totalmente
Demais, exibidas total ou parcialmente em 2016. A escolha desses dois
produtos como objetos do estudo sustentou-se na ideia de que, apesar
de produzidos por emissoras distintas (SBT e Globo, respectivamente),
compartilham entre si três características: o protagonismo e o antago-
nismo da trama centrados em personagens femininas, a origem social
das protagonistas de cada história e os índices de audiência referentes à
transmissão televisiva que, em ambos os casos, tiveram desempenho de
destaque na programação de cada emissora. Ressalta-se, no entanto, que
esse conjunto de elementos apenas sustentaram a definição dos objetos,
sem desempenhar função central na análise apresentada neste capítulo.

1
Integrantes do GP Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira, da Universidade
Anhembi Morumbi.

63
O desenvolvimento da pesquisa apoiou-se na compreensão da cons-
trução de mundos enquanto representações criadas por agentes produto-
res. A partir dessa perspectiva, definiu-se a problemática do estudo, que
se concentrou na investigação das estratégias de cada emissora para a
construção de mundos.2 Em A Garota da Moto, predominam ambientes
populares, uma firma de galpão, objetivos pessoais singelos, enquanto
Totalmente Demais é dominada por um ambiente que envolve luxo, meio
empresarial, busca do sucesso midiático. O exame mais atento, porém,
poderia levar à descoberta de mais elementos em jogo, além desses
contrastes óbvios, permitindo ainda pensar a comparação dos produtos
a partir dos recursos narrativos, estilísticos e transmidiáticos utilizados
por SBT e Globo.
Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma pesquisa qualitati-
va, partindo de uma observação analítica de dois processos de construção
de ficções televisivas, envolvendo, portanto, a análise comparativa sobre
a maneira como cada emissora cria tais universos.

1.1 SBT e A Garota da Moto

Embora tenha sofrido transformações estruturais desde a sua fun-


dação, em 1981, o SBT continua calcado no melodrama clássico para
formatar suas produções, sobretudo em entretenimento e dramaturgia
(Hergesel, 2019, p. 37), e esse é um dos motivos pelos quais mantém
um lugar no imaginário popular (Martins, 2016, p. 2).
Desde 2012, a ficção do SBT tem se dedicado quase que integralmen-
te a remakes e originais de telenovelas infanto-juvenis (Nantes, 2018, p.
5). Em 2016, no entanto, retornando às obras voltadas ao público adulto,
entrou no ar A Garota da Moto, que se tornou um exemplo da tendência
de inserção de produtoras independentes na TV aberta e como o Brasil

2
No projeto inicial, também havia o objetivo de analisar as estratégias de compartilhamento das
emissoras em relação aos mundos desses dois produtos junto à audiência. Tal investigação foi
feita e nosso levantamento demonstrou que as ações e suas repercussões com o público foram
distintas: algumas no caso da Globo, relativamente bem-sucedidas; praticamente nulas no caso
do SBT. Por conta disso, e tendo em vista o tamanho definido para este capítulo, optamos por
disponibilizar os resultados desse estudo em publicações futuras do Grupo.

64
tem apostado na inclusão de produções seriadas curtas (Lopes; Greco,
2017, p. 100, 107).
A Garota da Moto (2016, 2019), criada por David França Mendes e
João Daniel Tikhomiroff, que também assina a direção, foi uma produ-
ção idealizada pela Mixer, com coprodução da Fox Brasil (na primeira
temporada) e do SBT, sendo exibida primeiramente pela emissora aberta
e, posteriormente, pelo canal pago.3 Unindo drama, aventura e comédia,
seu enredo registra o dia a dia de Joana (Christiana Ubach), jovem que,
ainda na cidade do Rio de Janeiro, envolve-se afetivamente com um
homem casado e tem um filho desse relacionamento. Após a morte do
pai da criança, a moça foge para São Paulo a fim de proteger sua família
das perseguições da viúva Bernarda (Daniela Escobar), que não aceita a
ideia de dividir a herança e usa seu status para encomendar a morte do
garoto. Para manter seu sustento e o de seu filho, passa a trabalhar como
motogirl, percorrendo diversos pontos da metrópole.
Algumas características tendem a aproximar a série do modelo
convencional da telenovela. Além da sua estrutura melodramática, a
opção pela exibição diária e pelo horário em que foi veiculada (entre
21h30 e 22h30) ajudam a aproximar os formatos. Isso gerou certa con-
fusão, alimentada pela própria emissora, que utilizou as nomenclaturas
série, minissérie e seriado para definir sua produção. Sabe-se que, na
esfera acadêmica, os termos série, minissérie e seriado contêm suas
particularidades e distinguem-se entre si. Longe de querer atribuir uma
classificação específica para o produto, este trabalho mostra que, devido
ao hibridismo narrativo (formal, estrutural e conteudista), a aproximação
entre A Garota da Moto e segmentos da ficção seriada já consagrados
em território brasileiro e conhecidos do grande público torna plausível
a comparação metodológica com Totalmente Demais.

3
Em sua exibição original no SBT, a primeira temporada da série estreou em 13 de julho de
2016 e finalizou em 17 de agosto do mesmo ano (26 episódios); a segunda temporada estreou
em 6 de março de 2019 e finalizou em 9 de abril do mesmo ano (25 episódios). Neste capítulo,
abordamos somente a primeira temporada.

65
1.2 Globo e Totalmente Demais

Escrita por Rosane Svartman e Paulo Halm, e produzida e exibida


pela Globo entre novembro de 2015 e maio de 2016 no horário das 19h,
Totalmente Demais foi definida pela emissora como “um conto de fadas
moderno” (Plano..., 2015) e tem como trama principal a história de Eliza
(Marina Ruy Barbosa), jovem de origem humilde que, após ser assediada
pelo padrasto, foge da fictícia Campo Claro, no interior do Rio de Janei-
ro, para a capital fluminense, onde conhece Jonatas (Felipe Simas), um
vendedor de balas em semáforos. Com a ajuda do rapaz, ela começa a
vender flores e reencontra Arthur (Fábio Assunção), dono de uma agência
de modelos que pouco tempo antes ajudara a menina a se livrar daquela
situação de assédio inicial, mas ele não a reconhece. Arthur é um bon
vivant e vive um jogo de sedução com Carolina (Juliana Paes), editora
da revista Totalmente D+ e promotora do concurso Garota Totalmente
D+, com quem mantém um relacionamento casual. Arthur aposta com
Carolina que é capaz de transformar Eliza na ganhadora do concurso,
mas a menina só aceita o desafio porque precisa do prêmio para realizar
o sonho de levar a mãe e os irmãos para morar com ela. Arthur investe
pesado na transformação da garota; ela acaba dividida entre o amor por
ele – que também se apaixona por ela – e por Jonatas e se vê envolvida
nas muitas armações de Carolina, que não mede esforços para afastar a
jovem do empresário. Em torno dessa história, várias outras ocorrem,
envolvendo personagens direta ou indiretamente ligados ao quarteto
principal.
A novela aposta numa narrativa de estrutura mais simples e tradi-
cional que, embora atualizada, aproxima-se de contos populares – como
o da Cinderela – e dialoga com o telespectador a partir da atualização
de mitos e arquétipos que se manifestam através de anseios universais e
atemporais expressos pelas protagonistas, como o desejo de amar e ser
amado, a preservação da família, a busca por reconhecimento e a vontade
de ascender socialmente (Duarte, 2016).
Com inspiração declarada no texto teatral Pigmalião (George Ber-
nard Shaw, 1913) e no filme My Fair Lady (George Cukor, 1964), o conto

66
da menina pobre que se transforma numa linda e elegante dama é recriado
no contexto do universo sedutor da moda e combina as características
que lhe são peculiares – beleza, glamour, elegância. A atualização da
fábula concretiza-se com igual força na construção das protagonistas:
cada uma a seu modo, Eliza e Carolina são mulheres fortes, corajosas,
independentes e decididas; ainda assim, preservam conexão com os
contos populares por meio da relação com os personagens masculinos.

2 Sobre a construção de mundos

Nos últimos anos, os estudos das narrativas transmídia expandiram


seu campo de investigação para uma perspectiva mais ampla sobre a
narrativa e seus elementos, concentrando-se mais na criação de mundos
ficcionais e no processo de construção de mundos que no caráter trans-
mídia das tramas (Fast; Örnebring, 2015, p. 2). Wolf (2012) conecta a
transmidiação aos conceitos de mundos imaginários e construção de
mundos e apresenta a noção de mundos primário, que diz respeito ao
mundo real, e secundário, que trata do mundo ficcional. O autor também
argumenta sobre a necessidade de manutenção da lógica e da estética do
mundo criado em todas as mídias em que a narrativa for distribuída, a fim
de que o mundo ficcional se mantenha familiar ao espectador. Nesse sen-
tido, não apenas a narrativa, mas também as personagens e os elementos
de composição visual devem se mover entre as diferentes plataformas.
De acordo com Jenkins (2009, p. 376), a construção de mundos
diz respeito ao “processo de planejamento de um universo ficcional
[...] detalhado o bastante para permitir o surgimento de muitas histórias
diferentes, porém suficientemente coerentes para que cada história dê
a impressão de se ajustar às outras”. Em sintonia com essa visão, Boni
(2017) argumenta que o mundo é um sistema de referências, uma fonte
para a extração de materiais e elementos que são transferidos para outros
mundos via compartilhamento, e construída coletivamente por “redes
de especulações, interpretações e usos sociais, tornando-se assim uma
visão de mundo compartilhada” (Boni, 2017, p. 10, tradução nossa). Com
base nessa noção, é possível analisar, por exemplo, a capacidade de os

67
mundos criados por agentes produtores serem ampliados, transformados
e compartilhados por sua audiência.
Freeman (2017) argumenta que os “textos midiáticos não apenas
forjam histórias ou personagens; eles constroem mundos a serviço de
forjar personagens e histórias” (FREEMAN, 2017, p. 93, tradução nossa).
A partir dessa perspectiva, observaram-se três variáveis pertinentes à
construção dos mundos de A Garota da Moto e Totalmente Demais, que,
por sua vez, têm fundamental contribuição à criação das personagens
e ao desenvolvimento de suas tramas. São elas: instituições ficcionais,
exploração dos espaços e influência de referências provenientes de
mundos midiatizados.
Johnson (2009) trata da criação ficcional de entidades – empresas,
marcas e bens de consumo – com a finalidade única de construir o
mundo ficcional e apoiar o desenvolvimento da trama. Também analisa
como essas entidades se tornam fundamentais e relevantes à narrativa a
ponto de transcenderem a história e passarem a interagir com o público,
preenchendo espaços e experiências da vida cotidiana. Com esse olhar,
procurou-se compreender o modo como as instituições ficcionais inte-
gram os mundos da série e da novela que formam o corpus deste estudo.
O espaço geográfico também desponta como elemento relevante
à construção de mundo dos produtos analisados. De acordo com Boni
(2017, p. 14), “detalhes visuais contribuem para atribuir consistência ao
mundo e ajudam a audiência a se familiarizar com ele”. Nesse sentido,
buscou-se identificar o modo como o uso do espaço, especialmente das
grandes cidades, apresenta elementos que podem provocar o espectador
a se conectar com o mundo ficcional da série e da novela.
Freeman (2017), em estudo sobre a Disney, destaca a intertextuali-
dade como um dos dois conceitos presentes no processo de construção
de mundo do universo de Mickey Mouse.4 É possível traçar um paralelo
com os produtos aqui analisados no sentido de que a intertextualidade
também se revela como parte do processo de criação tanto da série quanto

4
O segundo conceito utilizado por Freeman (2017, p. 101-103) na análise da construção de
mundo da Disney é o da imersão, que diz respeito ao engajamento da audiência em relação
às histórias.

68
da novela, porém com uma função diferente: a de atribuir um caráter
midiatizado aos mundos criados.

3 O mundo de A Garota da Moto

3.1 O mundo midiático

A Garota da Moto traz semelhanças com o melodrama clássico.


Entre os principais aspectos, é possível listar: a delimitação clara da
mocinha e da vilã; a família colocada como centro das ações; a neces-
sidade materna de proteção; o par romântico heterossexual; a presença
do final feliz.
Existe na produção do SBT uma notória influência das produções
latino-americanas, sobretudo telenovelas mexicanas, tendo em vista a
parceria com a Televisa e a constante exibição de produtos importados.
Nesse sentido, as diretrizes melodramáticas – como a utilização da sim-
plificação, do apelo às emoções, da caracterização de um mundo mani-
queísta, com heroína e vilã num antagonismo irredutível (Brooks, 1976,
p. 4, 29-36, 41) – marcam presença constante em A Garota da Moto. Sua
temática, embora inovadora para o SBT, traz um enredo semelhante a
fenômenos clássicos da emissora. Ao comparar a primeira temporada da
série com produções mexicanas e brasileiras que priorizam o melodra-
ma sentimentalista e que se tornaram marcantes para o SBT, é possível
perceber diversas tendências em comum em suas tramas, conforme se
pode constatar no Quadro 1, a seguir:

69
Quadro 1 – Comparação de A Garota da Moto com outras produções
exibidas e/ou produzidas pelo SBT

Marisa Maria do
A Garota da Marimar Marisol
Mercedes Bairro
Moto (2016) (1994) (2002)
(1992-1993) (1995-1996)
Sobre a
Maria Mer- Marimar é Maria Hernán-
protago- Joana é pobre Marisol é pobre
cedes é pobre pobre dez é pobre
nista
Sobre a
Bernarda é Malvina é Angélica é
antago- Soraya é rica Amparo é rica
rica rica rica
nista
Ativi- Maria traba-
Maria traba- Marimar
dade Joana traba- lha como Marisol trabalha
lha vendendo trabalha com
exercida lha como catadora de vendendo flores
bilhetes de atividades de
pela mo- motogirl para materiais no trânsito
loteria para pesca para
cinha no sustentar a recicláveis para sustentar a
sustentar a sustentar a
início da família para sustentar família
família família
história a família
Angélica não Amparo não
Bernarda Malvina, que suporta a ideia Soraya admite a ideia
descobre que seria herdeira de conviver percebe que de que o filho
o marido a do irmão rico, com uma pes- sua paixão de namore uma
Motivo traiu com Joa- vê a fortuna soa humilde infância, Luís mulher pobre;
do ódio na, deixando- sendo desti- e tem sua ira Fernando, depois ainda
da vilã a grávida – e nada a Maria, aumentada nutre interesse descobre que
com um filho quando ela se quando Ma- conjugal por Marisol é
para receber casa com o rimar começa Maria, com filha legítima
herança homem a namorar o quem se casa do “pai” de seu
enteado filho
Há diversas
tentativas de Há diversas Há diversas
assassinato, tentativas Há diversas tentativas
Há diversas
tanto mirando de assassi- maldades de assassi-
Ações maldades real-
Joana como nato, mirando realizadas, nato, mirando
fatídicas izadas, mirando
Nico, seu Maria; todas, mirando Mari- Maria; todas,
Marisol
filho; todas, porém, são mar porém, são
porém, são frustradas frustradas
frustradas
Maria entra
em depressão
O menino se
Uma das Após ser pós-parto e O filho legítimo
torna alvo de
Rela- filhas gêmeas presa, Mari- entrega o filho é roubado e
ataque, sendo
ção da morre no mar se torna a uma descon- ambos só se
sequestrado,
mocinha parto, au- empregada hecida; mas o reencontram
dentre outras
com o mentando o doméstica reencontra 17 18 anos depois;
coisas, mas
filho sofrimento de para cuidar de anos depois, a filha adotiva
termina junto
Maria sua filha vendendo bil- morre com HIV
da mãe
hetes de loteria
ana rua
Fonte: elaboração própria

70
Portanto, os elementos presentes nas telenovelas produzidas e/ou
exibidas pelo SBT não destoam do que se assiste em A Garota da Moto.
A presença de planos fechados, priorizando primeiros e primeiríssimos
planos, sobretudo em cenas de alto impacto (revelações e ameaças); as
maquiagens fortes, especialmente o batom vermelho da vilã e os olhos
delineados da mocinha; a trilha sonora enfática, não apenas no aspecto
musical como também nos efeitos de sonoplastia; e as frases de efeito,
presentes principalmente nos monólogos da protagonista e da antagonista
– que, inclusive, resgatam a oralidade, por meio de falas e diálogos, como
mecanismo indispensável para os produtos audiovisuais do SBT – são
alguns exemplos dos componentes narrativos dessa série.
Algumas vezes por episódio as protagonistas surgem fora do espaço
tridimensional: à frente de um fundo infinito, Joana e a vilã Bernarda
dirigem-se para a câmera e interpelam os espectadores. Elas tecem
comentários sobre os acontecimentos que acabaram de ser vistos ou
os que se seguirão, falam dos próprios sentimentos e intenções, além
de emitirem, direta e explicitamente, seus julgamentos morais sobre o
mundo, na tradição do melodrama (Brooks, 1976, p. 36-38).
Bernarda, assim como muitas das vilãs latino-americanas, é a
representação do glamour e da luxuosidade, características que criam
laços intertextuais. Quando Bernarda aparece em programas de entre-
vista – sempre vista, pelo televisor do bar, com encantamento por Pam,
a companheira do pai de Joana – parece existir uma interseção entre a
estilização e a paródia, aludindo tanto a programas do próprio SBT como
de outras emissoras.
No início do episódio 4, por exemplo, é possível ver Bernarda no
programa Ricas & Glamurosas. O título, por si, assinala a paródia do
programa Mulheres Ricas (Band, 2012), reality show focado em registrar
o cotidiano de mulheres que são famosas unicamente pelo dinheiro que
possuem. Entende-se que a paródia é, “na sua irônica ‘transcontextualiza-
ção’ e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação
crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora,
distância geralmente assinalada pela ironia” (Hutcheon, 1989, p. 48).
Conforme observado, A Garota da Moto apresenta midiatização
discreta, em referências a obras audiovisuais, por vezes lançando um olhar

71
crítico para o conteúdo veiculado pela televisão brasileira. O enlaçamento
mais potente, em termos de construção de narrativa, encontra-se no tipo
de estrutura que sustenta a série: melodramática, com viés sentimentalista,
bastante similar a telenovelas já produzidas e/ou exibidas pela emissora.

3.2 Instituições

Em fuga da cidade do Rio de Janeiro, Joana passa a morar na casa de


seu pai, em São Paulo. Para sustentar-se e sustentar seu filho, mantendo-
se anônima na metrópole, ela trabalha de “motofretista” numa empresa
vizinha à nova residência: a Motópolis, especializada em entregas. À
primeira vista, pode parecer uma firma ordinária, minúscula, com pla-
ca na fachada, galpão para atendimento e permanência ocasional dos
motoboys, com os demais recintos internos apertados e uma dezena de
empregados. O comando está nas mãos de Val, mulher autoritária que a
princípio pode passar por dona do negócio. Ela conta com o secretário
Bactéria, que atende a freguesia e distribui trabalho aos entregadores.
Por experiência pessoal ou lembrança de notícias sobre São Paulo, os
espectadores podem entender o sentido de firmas como essa, dado o gi-
gantismo da cidade e o trânsito sobrecarregado, que impede locomoções
rápidas de automóveis particulares e de veículos para entregas que não
sejam as motocicletas.
A Motópolis fica na Barra Funda, identificável por placas de rua
(por exemplo, no episódio 4). Cenário de contos de Brás, Bexiga e Barra
Funda, de Antônio de Alcântara Machado, publicado em 1927, o bairro
foi e ainda é uma área humilde em que residem trabalhadores. No mundo
de A Garota da Moto, essas características permanecem. Não há luxo
nas ruas, nas casas, no bar da esquina e, como dito, na Motópolis. Tanto
é assim que, ao aparecer uma cliente com aparência fina (episódio 5), o
pessoal da firma se espanta e, de início, a trata como uma pessoa da alta
sociedade, o que na verdade ela não é.5

5
Os episódios analisados são sempre da primeira temporada.

72
Joana é caracterizada como bela, qualificação repetida por perso-
nagens como o cliente artista plástico que, com segundas intenções, diz
querer transformá-la em modelo (episódio 1). Nela se detectam traços de
uma extração social de classe média ou classe média baixa, em contraste
com seus colegas de trabalho, que são construídos como homens do povo:
figurino, palavreado, atitudes e até os próprios instrumentos de trabalho
(que, ao contrário da moto de Joana, não têm design e potência notáveis)
possuem os traços da simplicidade popular. Na metrópole mais rica do
país, seu emprego é humilde. Com o que ganham, ela e os motoboys
mal conseguem pagar o prato feito do almoço diário no bar, por vezes
substituído por sanduíche ou coxinha.
Entretanto, em A Garota da Moto os motoboys não levam exata-
mente uma vida como a de seus congêneres do mundo primário (Wolf,
2012). Para começar, tudo indica que não correm diariamente o risco
de perder a vida no trânsito, mal endêmico de São Paulo. A Motópolis
é, na verdade, uma filial de uma grande empresa, cuja matriz interfere
com frequência na vida dos funcionários. Ainda que com poderes para
assediar sexualmente seus motoboys favoritos, Val é apenas a chefe. Da
matriz provêm o consultor para avaliar o desempenho dos motoboys, com
o objetivo de levar a empresa ao “next level” de produtividade (episódio
3), e os gêmeos que, simulando serem apenas motoboys, fazem tantas
entregas que podem provocar a demissão de todos e o fechamento da
Motópolis (episódio 12). Em suma, há um poder central, em algum lugar
da cidade ou fora dela, tentando definir a vida de cada um.

3.3 Espaços

Diferentemente de outros espaços empresariais da ficção televisiva,


a Motópolis não existe apenas com uma fachada e entre quatro paredes.
Sua entrada é um vão que não apenas deixa entrar e sair os motoboys,
clientes e amigos dos funcionários, como também permite que o espaço
externo seja visualizado. Por ali se veem a calçada, a ciclovia vermelha,
os carros estacionados e os que estão em trânsito, as casas do outro lado
da rua. Da mesma forma, o bar de Rei fica numa esquina e proporciona a

73
visão do cruzamento, das casas e firmas vizinhas, de pedestres e veículos
em circulação. Tudo isso foge do velho esquema de sitcoms e outros
produtos televisivos em que os espaços são produzidos em estúdio quase
sempre fechados, como será visto na análise de Totalmente Demais.
A Barra Funda vista em A Garota da Moto apresenta poucas cone-
xões com o mundo primário. Suas ruas são tranquilas e crianças brincam
na calçada (ainda que um menino seja atropelado pelo único automóvel
visto por ali em alta velocidade, no episódio 9). Árvores ornamentam o
ambiente, não há sujeira no chão, nem pedintes nos cruzamentos ou sem-
-teto dormindo na calçada. Em suma, é um local aprazível. Ainda assim,
não há dúvida de que é o bairro citado, tanto que numa cena os motoboys
conversam longamente tendo ao fundo a fachada do histórico Teatro São
Pedro, remanescente de épocas abastadas da região (episódio 5).
Sem dúvida, o que amplia o mundo de A Garota da Moto é o
percurso diário de Joana e dos motoboys através da metrópole. Os per-
sonagens se postam diante de Bactéria, que lhes entrega as ordens de
serviço. É quase um game show, atração comum na grade da emissora.
O funcionário até poderia dizer: “Vocês têm x minutos para chegar do
outro lado da cidade. Va... lendo!”. Saem a moça e os rapazes, sobem nas
motos e disparam por todos os lados, num processo visual hiperbólico
de ação, correria e emoção. Episódio após episódio, avolumam-se as
cenas em que cada um deles circula no vai e vem infernal dos entrega-
dores. Curiosamente, pouco aparecem os pontos mais conhecidos de
São Paulo, como o MASP, o obelisco do Ibirapuera, a Av. 23 de Maio
e outros que estão com frequência nos noticiários televisivos nacionais
e, portanto, são familiares a espectadores de outras cidades ou estados.
Por exemplo, sucedem-se no episódio 4: Ponte Estaiada, Av. 9 de Julho
e seus viadutos, Av. Prestes Maia, Viaduto Santa Ifigênia, Av. Ipiranga
com São João, Largo São Bento e a igreja do Mosteiro de mesmo nome,
além do estacionamento do Shopping Boulevard Tatuapé, nomeado numa
placa. Note-se que alguns desses lugares são nacionalmente conhecidos
por letras de músicas populares, mas nem tanto por sua imagem. Mesmo
quando se trata de pontos cuja visualização é recorrente na televisão, eles
não são mostrados pelos ângulos mais notórios, caso do Viaduto do Chá

74
(episódio 5), do Centro Velho (episódio 6) e daquele que é atualmente
o maior cartão postal da cidade, a Av. Paulista (episódio 6), parecendo
por isso lugares como outros quaisquer, sem glamour. Por vezes, são
planos curtos, em torno de um segundo de duração, o que dificulta ainda
mais o reconhecimento.
Contudo, a pretensão a um espaço realista do mundo secundário é
com frequência sabotada pelo confronto com o mundo primário. Em A
Garota da Moto, a São Paulo de Joana e dos motoboys certamente não
é um microuniverso, fechado e contido; ao contrário, há sempre indica-
ções do gigantismo da metrópole. Por outro lado, nada se vê dos males
crônicos de São Paulo que estão no dia a dia de quem percorre a cidade:
na série, ruas e avenidas raramente têm o trânsito parado e muito menos
há filas infinitas a produzir a imagem de um mar de carros; exibem-se as
Marginais do Tietê e Pinheiros, porém não se veem os rios, verdadeiros
esgotos a céu aberto; não surgem favelas ou espaços degradados (com
exceção do beco fabril a que a motoqueira da gangue oriental leva Joana
e um motoboy para intimidá-los (episódio 10)). As multidões de pedintes
e ambulantes dos semáforos paulistanos não atravessam a frente das mo-
tos, assim como inexiste na série o perigo constante de motos avançando
entre veículos em alta velocidade. A São Paulo de A Garota da Moto é
quase sempre um espaço limpo, ordenado e seguro. Decisivamente, esse
mundo secundário, ainda que não seja um universo radicalmente diverso,
não se identifica ponto a ponto com o mundo primário.

4 O mundo de Totalmente Demais

4.1 O mundo midiático

A intertextualidade constitui parte importante de Totalmente Demais


e atribui um caráter midiatizado ao mundo criado na telenovela. A re-
lação intertextual com produtos fílmicos e dramatúrgicos é uma prática
evidente que está a serviço da criação de curtos arcos narrativos que
movimentam a trama principal do folhetim, a exemplo da analogia que

75
se estabelece entre os casais protagonistas de Luzes da Cidade (Charlie
Chaplin, 1931) e da novela.
O longa-metragem é introduzido na trama do folhetim através de
sua própria exibição no cinema abandonado onde Eliza e Jonatas moram
(capítulo 22). Eliza está de mudança para a casa de Arthur, e, na noite em
que se despede de Jonatas, o rapaz surpreende a moça com a projeção de
Luzes da Cidade. Enquanto assistem, eles comparam sua própria história
com a do casal do filme, mas a exibição é interrompida e os dois ficam
sem saber como termina a história, levando Jonatas a indagar Eliza so-
bre a relação deles próprios: “[…] e se fosse a nossa história, você acha
que a florista ia ficar com o vagabundo?”, ao que Eliza afirma que sim.
Nesse contexto, a analogia que se estabelece entre o casal do filme e o
da novela tem a função dramática de intensificar a tensão amorosa entre
Eliza e Jonatas, mas, de outro lado, o filme de Chaplin atua também como
uma espécie de catalizador da atração que surge entre Arthur e Eliza.
Com o objetivo de fazer a garota relaxar às vésperas da primeira etapa
do concurso, Arthur sugere assistirem um filme e Eliza escolhe Luzes da
Cidade. Ela descobre o que acontece no final da história, emociona-se e
é amparada por Arthur. Uma troca de abraços e olhares entre os dois e o
comentário da empregada que os observa sem ser vista sugere o início
da atração entre Arthur e Eliza.
O filme configura-se, portanto, como uma representação midiatizada
do amor de Eliza e Jonatas, mas também faz a história mover-se adiante
ao ser utilizado como base para a aproximação afetiva entre a menina e
Arthur, ação que dá início a um dos principais conflitos que se sustenta
até o último capítulo da novela e engaja os telespectadores nas redes
sociais através de uma pergunta: com quem Eliza fica no final?
O diálogo intertextual com Luzes da Cidade diferencia-se por sua
presença prolongada na novela6 e pelos diferentes modos de articular o
texto fílmico e o do folhetim7, mas referências em outros moldes também

6
Do capítulo 22 até o capítulo 62. No entanto, sua primeira menção ocorre no capítulo 5,
quando o cinema abandonado é introduzido na história e o pôster de Luzes da Cidade pode ser
visto na parede ao lado de outros filmes.
7
Desde o uso de seu pôster como parte da mise-en-scène até a própria analogia que Eliza e
Jonatas fazem sobre seu romance e a história do filme.

76
se somam a Totalmente Demais, como o crossover com o seriado brasi-
leiro Carga Pesada (Rede Globo, 1979-1981 e 2003-2007) e a citação da
novela Verdades Secretas (Globo, 2015). No primeiro exemplo, a ação se
dá com a presença do personagem Bino (capítulo 2). Após sua fuga de
Campos Claros, Eliza se vê sozinha e em desespero. Ajoelhada à beira
da estrada, reza para o próprio pai – segundo sua mãe, um caminhoneiro
já falecido, cuja morte Eliza recusa-se a aceitar – e pede por ajuda. Um
caminhão para no acostamento. Eliza abre a porta, Bino é o condutor. Ela
pede carona e ele a leva para o Rio de Janeiro. Quando ela está prestes
a descer do caminhão (capítulo 3), Bino recomenda uma pensão onde a
menina pode ficar e, finalmente, menciona o próprio nome: “[…] você
vai encontrar uma pensão, da Fátima, uma amiga minha, é de confiança.
Diz pra ela que foi o Bino que mandou […]”.
Diferentemente do crossover com Carga Pesada, situação dramá-
tica em que as personagens não têm consciência sobre as referências
midiatizadas envolvidas na cena, a citação indireta a Verdades Secretas
tem sentido oposto. Os breves diálogos em que se faz alusão à novela
demonstram que as personagens o fazem com a consciência de que se
trata de um produto de ficção com algum nível de aproximação com a
realidade e que, portanto, permite fazer comparações com determinados
acontecimentos de suas próprias vidas. É o caso da frase de Eliza que põe
fim a uma de suas conversas com Arthur, quando ele tenta convencê-la a
aceitar seu convite para ser modelo: “[…] é daquela novela que passou,
né? Eu não sou dessas, não!”, reage a menina referindo-se ao fato de não
ser uma garota de programa como as modelos retratadas em Verdades
Secretas. O nome da novela não é citado em nenhum momento; aposta-se
no fato de que, além de ter sido exibida em data muito próxima à estreia
de Totalmente Demais, ainda conquistou grande repercussão de público,
o que levaria a crer que a polêmica novela já fizesse parte do imaginário
coletivo e, portanto, os telespectadores – ou espectadores críticos, como
define Eco (1989, p. 126) – já teriam domínio sobre essa referência a
ponto de compreender a cena sem prejuízos.

77
4.2 Instituições

Assim como no mundo primário, a ação das personagens da teleno-


vela se entrelaça à existência das instituições. O principal exemplo dessa
dinâmica está na relação entre a revista Totalmente D+ e a indústria de
cosméticos Bastille.
Totalmente D+ é uma revista voltada ao público feminino que, no
início da novela, demonstra estar em pleno processo de reposicionamento
de seu editorial, passando de um formato em que predominam pautas
de comportamento para um modelo em que editoriais de beleza e moda
são centrais, aproximando-se assim das revistas desse gênero – numa
comparação breve e superficial com o mercado editorial brasileiro, seria
algo como a revista Claudia transformando-se em Elle ou Vogue. Esse
contexto é oferecido ao telespectador na primeira cena em que se apre-
senta a instituição (capítulo 1), durante uma reunião de pauta – ritual
pertinente a uma redação de revista. A exposição feita por Carolina para
sua equipe revela o panorama da revista no contexto da diegese:

Me apaixonei por um mendigo, como sair de casa sem o


filtro do Instagram ou meu artigo favorito, como virei uma
dominatrix. Nossa querida revista Totalmente D+ sempre
viveu de artigos e matérias como essas, mas as nossas leitoras
querem mais. Elas querem mais moda, mais sofisticação. E
eu também quero. Nós nunca competimos com as grandes
revistas de moda do Brasil, mas agora isso vai mudar […].

Apresentada como “uma das maiores indústrias de cosméticos do


país”, a Bastille é a maior anunciante da revista, com a qual estabelece
uma parceria para revelar a “nova cara” da empresa: “a gente vai procurar
uma menina linda, mas com cara de gente, não com cara de modelo. […]
Uma beleza natural e que usa maquiagem porque gosta, porque ressalta
o que ela tem de real”, diz Lili (Viviane Pasmanter), herdeira da Bastille.
Esse discurso, além de viabilizar a participação de garotas comuns como
Eliza no concurso, reproduz um posicionamento que é comum entre
indústrias reais de cosméticos desde meados dos anos 2000, quando

78
uma grande marca passou a falar mundialmente sobre “real beleza”
(Baldissera; Araújo, 2007). Nota-se, portanto, que a instituição ficcional
tem lastro coerente nas corporações reais.
Totalmente Demais aposta na convivência entre marcas ficcionais
e reais em torno do concurso Garota Totalmente D+. Ao ser organizado
pela revista, o concurso torna-se uma extensão dela e compartilha da
mesma capacidade de atrair patrocinadores, especialmente daqueles
que produzem bens de consumo voltados ao mercado de moda e beleza,
como indústrias de vestuário, calçados, cosméticos e outros. Apresenta-
-se, então, como uma vitrine em que diferentes marcas podem conviver,
sejam elas reais ou fictícias, exatamente como ocorre, por exemplo, com
Sambrini e Vizzano – a primeira, uma instituição ficcional de vestuário
e a segunda, uma indústria brasileira real de calçados. As duas empresas
têm igual função na narrativa: são patrocinadoras do concurso Garota
Totalmente D+, e sua presença em cena está diretamente associada às
vestimentas das personagens para ocasiões especiais, como o evento
em que se realiza a prova prática da segunda etapa do concurso. Nesse
sentido, e observando outros tantos produtos e marcas que se misturam
à narrativa, é provável que o telespectador se pergunte: o que é real e o
que é ficção?

4.3 Espaços

Passarela, estúdio fotográfico, set de filmagem. Esses são alguns


exemplos dos principais espaços de circulação dos personagens da trama
central da novela, que se configuram em ambiência de maior relevância à
construção de mundo. Apesar da promessa de “retratar diferentes facetas
da cidade do Rio de Janeiro, da simplicidade criativa da vida nas ruas ao
luxo do mundo da moda […]” (Plano..., 2015), enfatizam-se muito mais
os espaços relacionados ao mundo da moda, nos quais predominam os
ambientes interiores.
A exploração do espaço natural é destinada principalmente aos pri-
meiros capítulos, que amparam a fuga de Eliza, sua chegada ao Rio de
Janeiro, o encontro com Jonatas e o trabalho nas ruas. Enquanto isso, na

79
Austrália, Hamilton Island, Whitehaven e os principais pontos turísticos
de Sidney servem de locação e se contrapõem à situação de Eliza no Rio
de Janeiro. As cidades australianas são apresentadas à luz do dia através
de planos gerais e abertos que privilegiam a amplitude e entregam beleza
ao telespectador, um atributo essencial ao universo fashion. De outro lado,
a chegada de Eliza à capital fluminense e sua circulação pelas ruas do
centro da cidade são marcadas pela escuridão noturna e pela alternância
entre o primeiro e o primeiríssimo plano, que valorizam muito mais a
ação da personagem que a paisagem que a cerca. Ainda assim, é possível
observar sinais de interferência no espaço natural, como na cena em que
Eliza dorme numa rua. Curiosamente, tudo é limpo, não há mendigos
ou animais abandonados, o lixo está bem embalado e os poucos papéis
espalhados pelo chão parecem ter sido cuidadosamente colocados ali.
Para Cardoso (2004), as interferências, sejam elas de ordem física
ou técnica (enquadramentos ou movimentos e câmera, por exemplo), são
o que transformam uma locação em cenário, de modo a contribuir para
o texto montado. Nesse sentido, percebe-se um controle sobre o espaço
natural e sobre os aspectos que possam comprometer o padrão estético
que é próprio da emissora, mas também o conceito da telenovela, que
se apoia num conjunto de códigos do universo da moda, entre os quais
se destacam beleza, luxo e elegância.
À medida que se avança nos capítulos, os espaços internos passam
a ser prioritários e as cenas em locações são reservadas para momentos
específicos, como duas das dez provas do concurso Garota Totalmente
D+. Ressalta-se que, nesse contexto, os espaços naturais servem apenas
como moldura, pois o objetivo é produzir cenas com características de
ensaios fotográficos.

5 Considerações finais

Em relação à construção de mundos, observou-se que as emissoras


mantiveram-se alinhadas aos seus padrões de teledramaturgia. Ainda
que as protagonistas da série e da novela guardem certas semelhanças
entre si, o mundo de A Garota da Moto privilegia a estrutura narrativa

80
calcada no melodrama sentimentalista – coerente com a teledramaturgia
do SBT – e a exploração do espaço geográfico – coerente com o conceito
da série, que tem como protagonista uma motogirl. Já em Totalmente
Demais, destacam-se a relação com o mundo midiático ancorado na
intertextualidade e a criação de instituições ficcionais, que convivem em
harmonia com marcas reais a fim de sustentar os objetivos comerciais
de uma novela.
Quanto ao compartilhamento de mundos, observou-se que o SBT
teve uma ação tímida em suas redes sociais na intenção de provocar o
público a expandir o mundo construído na série. O espaço geográfico,
um dos mais fortes elementos narrativos da série, por exemplo, não está
presente em nenhuma citação nas redes oficiais da emissora.
De outro lado, a estratégia de Totalmente Demais baseou-se, prin-
cipalmente, na relação entre a telenovela – produto principal – e seus
derivados. Aqui, observou-se um esforço no desenvolvimento de produtos
transmidiáticos, mas não necessariamente no diálogo com o público a
fim de provocá-lo a expandir o mundo construído na telenovela.

Referências

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81
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82
TOTALMENTE Demais. Novela de: Rosane Svartman e Paulo Halm. Rio de
Janeiro: Rede Globo, 2015. 175 capítulos.
WOLF, M. J. P. Building imaginary worlds: the theory and history of subcre-
ation. New York and London: Routledge, 2012.

83
Segunda Parte

Mundos da recepção /
Mundos dos fãs
Criadoras de mundos dos casais adorados nas
fanfictions de telenovelas: prazer de amar e narrar

Maria Carmem Jacob de Souza


Rodrigo Lessa
Maíra Bianchini
Hanna Nolasco
Bárbara Souza
Genilson Alves
João Araújo

Introdução

Na esteira dos estudos do núcleo baiano do Obitel Brasil ao longo


dos últimos dois biênios (Souza et al., 2015, 2017), este artigo segue
se debruçando sobre as fanfictions de telenovelas brasileiras, aqui en-
tendidas na perspectiva de nossas pesquisas anteriores como produções
autônomas de fãs, em geral escritas, associadas a um ou mais textos da
cultura midiática. Como já viemos estabelecendo em nossas investiga-
ções, nota-se ainda que via de regra as histórias narradas nas chamadas
fanfictions, fanfics ou fics ultrapassam os limites do texto original ao
continuá-lo, expandi-lo, interrompê-lo, modificá-lo, recriá-lo ou ao in-
serir nele novos elementos oriundos de outros produtos culturais. Nesse
sentido, cabe pontuar também que é característico dessas produções o
fato de enfatizarem os casais adorados pelos fãs (casais shippados) e
serem quase sempre sem fins lucrativos (Jamison, 2013).
Nas nossas últimas duas pesquisas para o Obitel, o foco foi a cons-
trução de bases de dados que mapeassem as fanfics dedicadas a quase
todas as telenovelas brasileiras exibidas originalmente entre 2010 e
2015 (excetuando-se apenas algumas produções infanto-juvenis). Nes-

87
se sentido, as bases produzidas nelas totalizaram 1.764 fics, que foram
extensivamente tratadas do ponto de vista qualitativo e quantitativo nos
livros produzidos pelo Obitel Brasil nos últimos dois biênios (Souza
et al., 2015, 2017). Agora, voltamos àquelas entre as fanfics mapeadas
que tiveram o maior número de publicação de capítulos e de interações
suscitadas entre suas leitoras e comentadoras, realizando um mergulho
maior: 1) nas dinâmicas de partilha afetiva entre as autoras das fics e tais
leitoras; e 2) de recriação dos mundos ficcionais de telenovelas operadas
nos próprios textos das fanfics. Aqui, o prazer pela escrita de histórias de
amor inspiradas pelas personagens eleitas dos mundos das telenovelas
mais vistas tornou tais fics especiais para nossa inquietação científica.
Face a isso, inicialmente recuperamos as informações sobre as fics
e interações geradas por 12 escritoras que se destacaram sobretudo na
base de dados produzida no biênio anterior (2016-2017): Isis_M, Clara
Meirelles Fernandes e Mrs Silva (dedicadas à novela Em Família);
Steh (Império); Manuella Rosie (Amor à Vida); garotadeontem (Amor à
Vida, Império); WaalPomps (Sangue Bom); Davily, Lizzy Darcy e Lab
Girl (Geração Brasil); maluquinha_das_fanfics (I Love Paraisópolis);
e Gaúcha (A Regra do Jogo).
A clareza da fugacidade da presença das escritoras e das fanfics
nas redes on-line de publicação imprimiu o cuidado de atualizar os
dados dessas escritoras que se destacaram, para assim identificar as que
resistiram e se mantiveram autoras de fanfics nesses últimos anos. Para
tanto, as buscamos nos sites Nyah! e Spirit, que servem de repositórios
de fanfics, com o intuito de desvendar quais delas ainda escreviam fics
de telenovelas ali após o período abrangido por nossas últimas pesquisas
junto ao Obitel. Nesse momento, verificaram-se quatro criadoras que se
mantiveram nessa função, e o grupo passou a se dedicar a entender as
fics produzidas por elas em maior detalhe com o intuito de observar as
interações e partilhas geradas por esses textos e os modos como eles se
aproximam dos mundos ficcionais das telenovelas. Como abordagem me-
todológica, nos utilizamos da entrevista semiestruturada em questionário

88
aberto por e-mail e da análise interna das fics publicadas por elas. As
quatro autoras que selecionamos para a análise estão na faixa etária dos
20 a 30 anos e, à exceção de uma, revelaram em entrevista que possuíam
a ambição de ser escritoras, sendo que uma delas, chamada WaalPomps,
já chegou a esse patamar atualmente. 
Já outra, que atende on-line por Lab Girl, se descreve como uma
“ficwriter compulsiva”, “que ama seriados e novelas”.1 Em entrevista
concedida para nossa pesquisa, a autora afirmou que sempre gostou
de escrever histórias e que se inseriu no mundo das fanfics a partir de
seu interesse pelo seriado Arquivo X. Na plataforma Nyah!, onde está
cadastrada desde 2013, Lab Girl possui 16 fanfics escritas, sendo 12 de
telenovelas. Ressaltamos aqui a relevância do ship Humbelle – composto
pelos atores Isabelle Drummond e Humberto Carrão – para essa autora,
que não só os identifica entre seus interesses em redes sociais, como tam-
bém produz fanfics sobre casais ficcionais interpretados por esses atores.
Selecionamos, para nosso corpus de análise, cinco fanfics dessa autora
sobre a telenovela Geração Brasil que trazem o ship Megavi, composto
pelos atores supracitados, intituladas Unfolding Like a Flower, Versos
de Orgulho, Love me Harder, Interlúdio e Final Feliz.
Já Manuella Rosie, outra das quatro autoras com que trabalhamos
mais detidamente, apesar de escrever histórias desde muito jovem, co-
nheceu o universo das fanfics apenas aos 24 anos, quando passou a fazer
parte de um grupo de fãs do casal formado pelos personagens Félix e
Niko (ou Feliko), da telenovela Amor à Vida. No total, ela escreveu sete
fanfics sobre a telenovela (uma delas em coautoria), sendo seis durante os
anos de 2014 e 2015, após o final da obra televisiva, e a última publicada
entre dezembro de 2016 e dezembro 2017, cerca de três anos depois do
final da história canônica. Segundo a autora, a abordagem de um casal
formado por dois homens, retratados de forma carismática e envolvente
na telenovela, foi um fator importante para a sua investida na criação de
fanfics, em conjunto com sua vontade de construir mundos de possibi-
lidades por meio da ficção. Formada em Letras, Manuella Rosie deseja

1
Descrições presentes em sua fan page do Facebook e em seu perfil no Nyah! Fanfiction.

89
ser reconhecida como uma escritora, tendo já investido em histórias
originais publicadas em sites brasileiros que servem como repositórios
de publicação e distribuição de fics, como o Nyah!.
Nesse sentido, nota-se que WaalPomps também começou a escre-
ver histórias ainda criança, retratando aventuras do Ursinho Pooh e das
princesas da Disney. A primeira fanfic foi escrita na adolescência, quando
se encantou pela série de livros de Harry Potter. A autora tem na escri-
ta uma ambição profissional: formada em Jornalismo, tem dois livros
publicados (Amor aos 16 e Natal para Sempre) e a participação em um
terceiro, além de publicar suas histórias originais no Wattpad.2 Nunca
tinha escrito fanfics de telenovelas, até se interessar pelo casal Fabine
(Isabelle Drummond e Humberto Carrão), de Sangue Bom. A química
entre os personagens, que achou interessante, porém mal aproveitada,
motivou a autora a escrever diversas histórias sobre o casal em questão,
que agradaram bastante o público e a levaram a se estimular desde então
na escrita de fanfics de outras telenovelas brasileiras.
Entre as quatro escritoras analisadas neste estudo, Gaúcha é a única
que não demonstrou interesse em seguir de alguma forma uma carreira
profissional na literatura. Enquanto as demais autoras já escreviam fanfics
sobre séries de TV ou produtos midiáticos, Gaúcha teve sua primeira
experiência com a escrita aos 25 anos, com Lave, Leve, Love, uma fanfic
sobre a telenovela Império. Embora tenha produzido outras três fanfics
sobre A Regra do Jogo, é a sua fanfic intitulada Na Luta do Bem contra o
Mal, Quem Vence o Amor? que entra para o nosso corpus, em função da
shippagem dos personagens interpretados pelos atores Alexandre Nero e
Giovanna Antonelli, de quem a autora é fã. Convém destacar ainda que
Na Luta do Bem contra o Mal... surge como uma fanfic autocontida/de
um único capítulo e se ramifica em outras duas histórias, a saber: Des-
venturas em série e Destinados.
Como buscamos demonstrar ao longo do artigo, a análise das fanfics

2
Wattpad é uma plataforma digital que se autointitula um espaço onde as histórias ganham
vida, por possibilitar que os usuários publiquem e consumam gratuitamente histórias de autores
conhecidos e desconhecidos. Escritores inexperientes – inclusive as autoras de fanfics – têm no
Wattpad uma ferramenta para publicação dos seus trabalhos e transição para o mercado editorial.

90
criadas pelas quatro autoras revela um esforço para a manutenção de
laços afetivos das escritoras com suas leitoras por meio de estratégias
como a emulação nas narrativas das fics e de estratégias melodramáticas
centradas na experiência amorosa dos personagens e sentimental das
espectadoras, acionados nas obras derivadas das matrizes novelescas.
Além disso, identificamos também um ímpeto de conservação de mui-
tos dos elementos narrativos das telenovelas que inspiraram as fanfics,
como padrões de caracterização dos personagens ou mesmo eventos
do enredo.

Afetos e partilhas

As fanfictions ocupam um lugar privilegiado no ambiente de rela-


cionamentos afetivos e trocas simbólicas que definem as comunidades de
fãs que se conectam pelo consumo partilhado de um ou mais produtos da
cultura midiática. Efetivamente, a escrita e leitura dessas histórias permite
que se prolongue e renove a apreciação das obras culturais adoradas e se
cultive o engajamento afetivo entre fãs ativos em comunidades e grupos
de partilha dedicados a um produto midiático. Nessa direção, se por um
lado há diversas autoras de fics preocupadas com o apuro textual, em
outros casos a falta de esmero na construção das histórias é muitas vezes
compensada pela sociabilidade gerada nos espaços em que se publicam
e leem as fics, algo que já demonstramos marcar significativamente a
ecologia de produção de fanfics de telenovelas brasileiras (Souza et al.,
2015). Isso, por sua vez, deixa claro que as produções dos fãs necessitam
de um olhar preocupado tanto com os modos como a criação textual
reconstrói os mundos narrativos de obras matrizes quanto com as dinâ-
micas de distribuição e recepção dessas criações.
No caso específico da recepção das fics, as experiências dos fãs,
pensadas como modos subjetivos da construção de identidades e da
criação de laços afetivos (Sullivan, 2013), enfatizam o exame das redes
de relações e sentidos dentro de comunidades que compartilham o con-
sumo de certas obras culturais. Essa perspectiva direciona a análise para
as relações entre as práticas e regularidades no consumo midiático e nas

91
partilhas de afetos em torno das obras midiáticas e fics delas derivadas,
bem como para as partilhas entre os fãs que tendem à criação e a vínculos
mais fortes (Hills, 2005).
Nossas pesquisas anteriores (2013 a 2017) mostram que as ambi-
ências de recepção de fãs de telenovelas dedicadas à escrita, publicação,
distribuição, leitura e compartilhamento de fanfictions se constituem
como um locus de intensa partilha sensível de interpretações e reinter-
pretações criativas das tramas das telenovelas, de conexão afetiva e de
autorreflexividade dos fãs. No que concerne às escritoras das fanfics que
se reconhecem como autoras, destacamos ainda o contínuo esforço textual
de reescritura de segmentos das histórias que se concentram em torno
da vida amorosa e familiar dos casais, sintonizadas com as imaginações
e afetos de suas autoras e com a busca em atender também às demandas
das leitoras que, em diversas ocasiões, são solicitadas a expressar seus
anseios quanto à expansão das histórias e suas preferências de leitura.
Nesse quesito, essa preocupação das autoras de fanfics em compor
histórias que possam promover o engajamento contínuo das leitoras
revelou ao longo de nossas pesquisas a importância de elas maneja-
rem por meio das estratégias textuais o atendimento das expectativas
compartilhadas entre elas e seu público. Como os desejos das leitoras
deviam ser atendidos, o ato da escrita estava constantemente associado
às respostas do público por meio de comentários, o que afetava até
mesmo a regularidade das postagens, em um movimento que reforçava
e ampliava os vínculos entre as fãs durante a exibição das telenovelas e
que podia se expandir por muitos meses após o seu encerramento, por
vezes mostrando até mesmo um engajamento preferencial com figuras
que não eram centrais no texto matriz.
O caso de uma das nossas informantes, Lab Girl, torna isso patente.
Em suas interações com o público, ela demonstra especial preocupação
com as possibilidades de desdobramentos relativos à vida amorosa de
personagens pouco exploradas nas novelas, indicando também em entre-
vista cedida a nós o seu interesse maior em construir alguns personagens
na novela envolvidos em enlaces românticos de modo a trazer a evolução
de cada um deles e do par como uma unidade afetiva, explorando aspectos

92
psicológicos das figuras dramáticas capazes de cativar as leitoras, reco-
nhecendo a partir de sua própria posição como consumidora a eficácia
desse recurso narrativo.
Em uma direção semelhante, nossas entrevistas com Lab Girl
também ajudam a demonstrar a perspectiva das próprias fãs sobre o
fato de que esses laços afetivos e partilhas midiáticas perduram mesmo
muito após o fim das novelas. Segundo ela, que continuou a escrever
capítulos de sua fanfic sobre Geração Brasil quatro anos após o término
da telenovela, a motivação para esse retorno à obra vem de um carinho
pelos personagens e um desejo de desenvolver outras possibilidades
concernentes às suas vidas. Em uma direção semelhante, a autora cha-
mada Gaúcha destacou a escrita como estratégia para anular a frustração
de um encerramento insatisfatório da trama, imaginando outros futuros
possíveis para esses personagens.
No mesmo sentido, notamos que um caso especial para nossa
pesquisa vem de Manuella Rosie, que já escreveu sua primeira fanfic
de Félix e Niko em Amor à Vida após o encerramento da telenovela.
Nos comentários de uma de suas fanfictions, chamada Make a Memory,
escrita quase três anos após o término da obra, Manuella Rosie declara
a sua saudade do casal formado pelos personagens Félix e Niko como
motivação para retornar à escrita de fanfics. De modo similar, na seção
de comentários da fanfic, postada no repositório Nyah! Fanfiction, Rosie
escrevia:

Dá pra imaginar o que houve com o Félix né? Qual será a


reação dele quando ver o seu amado carneirinho? [em resposta
à usuária CarolBHMG, no Capítulo VI].

Mas, essa curiosidade do agora “Cristiano” sobre o Niko,


querendo saber quem ele é, sei não hein? Será que o ♥ vai falar
mais alto? [em resposta à usuária Natymsvc, no Capítulo X].3

3
Make a Memory. Seção de comentários. Disponível em: https://fanfiction.com.br/reviews/
historia/718798/. Acesso: 10 jul. 2019.

93
Em entrevista, ela confirmou que o engajamento afetivo com a
narrativa da telenovela e com os personagens foi o motor principal para
sua dedicação à escrita de fanfics que promovem a continuidade da
relação entre as espectadoras e a obra: “Minha motivação foi a vontade
de continuar uma história que foi muito bem contada na TV e que eu
não queria que acabasse”. Chama atenção também a dedicação dela às
histórias: na fanfic Make a Memory, a autora escreveu 37 capítulos e um
prólogo, publicados ao longo de, exatamente, um ano e um dia (de 17
de dezembro de 2016 a 18 de dezembro de 2017).
Por fim, as publicações de WaalPomps, que também destaca a
nostalgia como um motivo para retorno à obra mesmo muito após seu
término, são outro caso exemplar. WaalPomps publicou uma extensa
produção sobre o casal Fabine em Sangue Bom, totalizando 14 fanfics,
algumas com mais de 40 capítulos. Via de regra, as histórias contadas pela
autora trazem uma expansão do universo da obra, explorando o que ela
gostaria de ter visto acontecer com o casal na telenovela e não pôde pelo
fato de a obra ter tomado rumos diferentes. Nesse sentido, observamos
também uma preocupação com um final feliz dos personagens e com o
desenvolvimento da vida em casal com filhos. Em oito das 14 fanfics
de Pomps que analisamos, Giane acaba contemplando a ideia de uma
gravidez, se vendo grávida ou já com filhos. Essa escolha é coerente,
dada a preferência da autora por acompanhar os finais de telenovelas,
que nos foi sinalizada em entrevista, e sua insatisfação de forma geral
com encerramentos. Pomps sinaliza que gosta de dar finais felizes aos
personagens que ama, independentemente de seus desfechos na obra.

Eu nunca me contentei com o final das coisas, sempre acho


que fica aberto, dando margem para novas ideias. Mas
também sou muito crítica e nunca encontro fanfics que me
agradam. Então escrevo minhas próprias versões. Pego os
personagens que amo e dou finais felizes, seja de acordo com
a obra original ou não. Eu sempre me interesso por um casal,
mais especificamente, e desenvolvo as histórias nesse gosto. 

94
Longe de parecer um caso isolado, estudos hoje já clássicos, como os
de Ang (1985) e de Livingstone (1991), mostram que essa preocupação
com os aspectos psicológicos dos personagens, os enlaces amorosos e a
partilha social de afetos do público decorrem fortemente das estratégias
dos gêneros que operam em ficções populares seriadas diárias como
as soap operas e telenovelas, pois são elementos centrais para garantir
vitalidade a essas obras e capturar a atenção dos apreciadores a partir de
um conjunto de prazeres próprios a esses gêneros de teledramaturgia.
Afinal, a matriz melodramática na base das telenovelas (Martín-
Barbero, 1987; Lopes et al., 2002) é, há muito, vista como afeita à
construção de narrativas amorosas e sentimentais que tendem a mediar
as relações dos telespectadores com esses produtos, entre eles mesmos e
até mesmo entre tais telespectadores e os autores de telenovelas, o que ao
nosso ver se repete em algum nível nas dinâmicas entre as escritoras de
fanfics dedicadas a essas obras e suas leitoras. Nesse sentido, acreditamos
que a fanfic tende a ser lida de modo similar àquele como a telenovela
é assistida – ou seja, com forte ênfase nos enlaces amorosos, aspectos
psicológicos e partilhas sociais –, ao menos para as fãs que se dedicam
a construir um vínculo afetivo tanto com a obra original quanto com as
histórias autônomas escritas por outras fãs.
Cientes dessas relações – pois são simultaneamente telespectadoras
de novelas e criadoras de textos midiáticos –, as escritoras de fanfics
buscam tramar as histórias em que almejam engajar afetivamente suas
leitoras justamente em torno da construção de afetos e nostalgias parti-
lhados e de narrativas amorosas, explorando as desventuras dos casais
e seus encontros e desencontros de modos muito similares àqueles
presentes nas telenovelas, no que importa também o grau de adesão do
público aos próprios casais que acabam por protagonizar as fics. Nessa
perspectiva, por exemplo, WaalPomps identificou prontamente a simpatia
pelo casal Fabinho e Giane como motivador para a escrita de narrativas
inspiradas em obras seriadas nacionais: “Eu sempre escrevi [fanfics] de
obras internacionais, até me interessar pelo casal Giane e Fabinho. Achei
a química interessante, o casal com potencial e muito mal aproveitado.
Resolvi dar meu toque especial e o pessoal gostou”.

95
Ademais, além da extensa produção, WaalPomps interage bastante
com os leitores e faz comentários antes e depois dos capítulos, justifi-
cando a demora de postar alguma fic, comentando sobre o capítulo da
telenovela e pedindo a participação e a opinião do público, que interage
ativamente. De maneira notável, a autora também se mostra aberta à
contribuição das leitoras. A título de ilustração, a fanfic Aprendendo a
Viver Juntos, que conta com 13 capítulos e antecede – não em data de
publicação, mas sim em termos de cronologia narrativa – as fics 9 Meses
e Aprendendo a Ser Uma Família, foi publicada a pedido das leitoras
que gostariam de ler uma história sobre Giane e Fabinho escrita por ela
em que não estivessem cuidando dos filhos do casal.
Na mesma perspectiva de recurso à matriz melodramática para
mobilizar as leitoras, cabe evocar outra vez o exemplo de Lab Girl. Para
garantir que o apreciador se engajasse com sua história de amor, Lab
Girl buscou demonstrar narrativamente, em suas fanfics de Geração
Brasil, como os personagens eram feitos um para o outro. Megan e Davi
foram apresentados com suas características-base: Davi, um batalhador
que nasceu pobre, e Megan, uma garota rica e mimada. Há, porém, a
estratégia de explorar desde o início a ideia de que a pose de patricinha
de Megan é somente uma fachada de autoproteção, suavizando carac-
terísticas normalmente lidas como negativas para dar ao seu público já
disposto a torcer pelo casal motivos para crer, dentro de uma moralidade
melodramática, que Megan é de fato uma pretendente melhor para o
rapaz do que Manuela – uma personagem com a qual se aproxima mais
em profissão, personalidade e moral, e com quem termina efetivamente
na telenovela. Consideramos essa estratégia importante para uma maior
interação e engajamento do público com as fics criadas pela autora. 
Já no que concerne especificamente aos ambientes midiáticos
onde se dão essas interações, nossas pesquisas junto ao Obitel Brasil
vêm indicando que as plataformas on-line de publicação e distribuição
especializadas em fanfics têm se mostrado uma ambiência privilegiada
nesse sentido, ainda que haja fics publicadas em diversas outras plata-
formas de mídia, como blogs e sites de redes sociais (Souza et al., 2015,
2017). Ao nosso ver, isso se dá ao menos em parte porque as ferramentas

96
disponíveis nessas plataformas especializadas permitem que as autoras
observem como sua criação está sendo recebida pelo público e, caso de-
sejem, estabeleçam conversações com as leitoras. Em tais conversações,
é bastante comum, inclusive, que as autoras perguntem às suas leitoras
se estão gostando da história ou o que gostariam de ver nos próximos
capítulos, atendendo a alguns dos desejos de seu público – como fez a
própria WaalPomps.
Um outro exemplo nesse sentido é o da autora Gaúcha, que revelou
em entrevista à nossa equipe que sua motivação para escrita de fanfics,
de um modo geral, foi a frustração com o desfecho dado em Império ao
comendador José Alfredo, morto no fim da telenovela. Marcadamente,
as interações de Gaúcha com as leitoras da fanfic chamada Na Luta do
Bem contra o Mal, Quem Vence o Amor? evidenciam que a aprovação das
leitoras e as suas demandas configuram um grande motivador para sua
escrita, o que só reforça o papel das dinâmicas interacionais na ecologia
midiática que se conforma em torno das fics.
Em tal ecologia, outro fator notável é que as próprias escritoras
definem a periodicidade de publicação que desejam: podem passar
meses ou anos publicando capítulos, fazendo com que as seções de
comentários ou notas de abertura/fechamento dos capítulos se tornem
espaço de compartilhamento de ideias e de desejos. Assim como nas
telenovelas, aqui as narrativas amorosas mobilizam os afetos das leitoras,
em especial aquelas sobre a jornada de um casal que deveria ficar junto
ao final. Os conflitos amorosos vividos pelos casais repercutem, pois, nas
fanfictions, principalmente quando escritas e lidas durante a exibição das
telenovelas. Não é coincidência, portanto, a massiva presença nas fanfics
de telenovelas de sagas de casais apaixonados adorados pela audiência,
fenômeno chamado de shipping ou shippagem. Em Souza e coautores
(2017), vimos que 95,3% das fanfics de telenovelas publicadas entre
2013 e 2015 eram justamente baseadas nos chamados “ships”. Fica evi-
dente, assim, que as fanfics são escritas e lidas com o intuito de ampliar
a experiência de recepção iniciada na telenovela, a partir de histórias
que focam o casal adorado, os relacionamentos basilares de suas com-
posições sociais e familiares, e os ambientes em que eles circulam. Tais

97
elementos apresentados no mundo ficcional das telenovelas, à exceção
dos ambientes, encontram-se presentes até em raras situações quando
as mais imaginativas histórias de fãs levam o casal amado para viver
aventuras em outras circunstâncias e locais, como invasões de zumbis
ou viagens no tempo. Em geral, porém, essas grandes mudanças não
ocorrem: há um grande esforço de adesão ao chamado “cânone” da obra
matriz, como vemos a seguir.

Canonicidade e transduções

Conforme mencionamos anteriormente, as fanfics são um fenômeno


complexo que pede que se atente não apenas para as dinâmicas de distri-
buição, recepção e partilha impulsionadas por essas obras, mas também
aos modos como a criação textual delas reconstrói os elementos narrati-
vos dos produtos matrizes. Nesse sentido, com o intuito de entender os
recursos narrativos das fics, recorremos à noção de mundos ficcionais,
aqui compreendidos na esteira de autores como Doležel (1998), como
constructos midiáticos que têm as suas propriedades internas nascidas
das próprias texturas formais da linguagem de uma mídia, sendo macro-
estruturas narrativas compostas pelos personagens, ambientes e eventos/
enredos de uma obra.
Não se pode, contudo, esquecer que no caso das fics estamos falando
de mundos narrativos que recriam aqueles projetados em obras anterio-
res – nesse caso, as telenovelas que inspiram as escritoras de fanfics a
produzir os seus próprios materiais midiáticos. Logo, cabe evocar aqui
não apenas a noção de mundo, mas também a de universo ficcional.
Como nota Pavel (1986), tais universos podem ser compreendidos como
conjuntos de mundos agrupados conforme um critério lógico estabelecido
– no nosso caso, o mundo-base composto pelos enredos, personagens e
ambientes de uma telenovela e os vários outros produzidos em reapro-
priações narrativas dele feitas em fics.
Enfim, para pensar os modos de reescritura narrativa dos mundos
projetados nas telenovelas pelas fãs autoras de fanfics, outro conceito
que merece foco é o de transdução. Conforme Doležel (1998), toda

98
forma de reescrita de uma obra pode ser pensada como uma transdução,
desde as traduções interlinguais até as livres adaptações e reescrituras
modernistas de textos clássicos. Nessa medida, argumentamos que as
reescrituras de mundos narrativos feitas pelas produtoras de fanfics
também configuram formas de transdução (Souza et al., 2015; Lessa;
Araújo; Lima, 2014). O exame de tais transduções pressupõem, assim,
atenção àquilo que Goodman (1995) chama de dinâmicas de decompo-
sição, recomposição, supressão, completação, deformação e ênfase nos
elementos de um mundo pré-existente quando se cria outro a partir dele.
Isto é: no exame textual de fanfics, além de dar peso a elementos como
os personagens, ambientes e enredos das histórias, também é preciso
pôr em relevo o modo como esses elementos, conforme aparecem em
uma obra matriz como uma telenovela, são decompostos, recompostos,
suprimidos, completados, deformados e enfatizados de forma a organizar
um universo narrativo no qual alguns elementos dos mundos variam
mais e outros menos.
Aqui, um último conceito que merece relevo é o de cânone do mundo
ficcional, entendido por Wolf (2012) como um conjunto de elementos
considerados verdadeiros sobre o mundo imaginário. Conforme o autor,
é tida como canônica a existência de um certo grupo de personagens,
ambientes e eventos, por exemplo, tanto que há fics que lidam apenas
com personagens “canônicos” e outras que criam as suas próprias figuras
dramáticas. É preciso atentar, porém, para o fato de que Wolf repara que
um exame da canonicidade de certos elementos precisa ser graduado, e
não absoluto, além de levar em conta dinâmicas de recepção específicas.
Portanto, mais do que trabalhar com absolutos, o exame dos níveis de
canonicidade abraçados em produções alternativas, como aquelas produ-
zidas por fãs, precisa considerar os graus de rigidez com que são tratados
certos elementos do mundo ficcional e os graus de lassidão com que se
interpretam outros. Nos casos das fics de telenovelas que analisamos, no
mais das vezes os casais que protagonizam as estórias e mesmo vários de
seus eventos tendem a ser canônicos. Todavia, no nível de contato físico
e sexual entre eles, no grau de detalhamento dos seus estados internos

99
e em certos cursos de ação há maior flexibilidade quanto ao cânone,
sobretudo quando ele é considerado insatisfatório.
Em muitas de suas fanfics, por exemplo, a escritora Lab Girl parte
de cenas canônicas da telenovela para desenvolver alternativas de ação
dos personagens ou explorar seus pensamentos e sentimentos. A título
de ilustração, em Unfolding Like a Flower, uma fic de Geração Brasil
com um único segmento textual/capítulo, Lab Girl parte de uma breve
cena da telenovela em que o personagem Davi vê um documentário so-
bre a vida de Megan para desenvolver um texto sobre como o rapaz se
sente na ocasião e como ele teria começado a enxergar um lado íntimo
da moça que se escondia por trás da fachada de garota festeira e mima-
da. Já em Versos de Orgulho, a autora traz uma reinterpretação de uma
cena canônica de briga do casal, que na telenovela é um dos elementos
que os distancia, trazendo para seus leitores uma alternativa em que, ao
contrário da versão televisiva, há um fortalecimento do casal conhecido
como “Megavi”. 
Conforme Lab Girl atesta em entrevistas a nós, essas escolhas se
devem a uma preocupação com a consumação dos afetos do casal, con-
trariamente ao que ocorreu na telenovela, com o objetivo de satisfazer
frustrações pessoais que foram compartilhadas por outros fãs leitores.
A autora afirma: “as fanfics se tornaram minha forma de compensar a
frustração com a novela e brindar os fãs que, assim como eu, ficaram a
ver navios”. Para ela, contudo, a despeito desse esforço de consumar as
relações afetivas com mais força do que a obra matriz, é crucial compre-
ender a construção que a telenovela faz dos personagens para que possa
recriá-los de forma consistente com o cânone, ainda que “levando-os a
explorar outros rumos e às vezes até a passar por uma certa evolução não
vista na obra mãe”. Ela afirma se preocupar em manter as características
essenciais dos personagens, como os maneirismos e gostos, preocupação
perceptível quando, em suas fanfics, ela traz na escrita a mistura dos
sotaques inglês e português que marcam a personagem Megan na versão
televisiva, por exemplo.
Algo semelhante se dá nas fanfics da WaalPomps escritas a par-
tir da telenovela Sangue Bom. Nelas, o casal Giane e Fabinho, sobre

100
quem as histórias se debruçam, vem da própria novela, assim como
alguns aspectos vistos como centrais na criação dos personagens. Ali,
assim como na telenovela, Giane é apaixonada por futebol e fotografia,
fanática pelo Corinthians e tem um jeito durão sem muita vaidade. Já
Fabinho se interessa por publicidade, é torcedor do São Paulo e tem uma
personalidade rebelde. Na mesma direção, é frequente ainda o uso dos
apelidos utilizados por eles na novela: por exemplo, no prólogo da fanfic
Aprendendo a Viver Juntos, ele a chama de “tranqueira”, e ela responde o
chamando de “fraldinha”, apelidos recorrentes na trama, algo consistente
com outras fanfics. Câmbios, porém, não deixam de ser vistos. É notável,
por exemplo, que nem sempre o casal vive no bairro da Casa Verde, como
na novela, ainda que outros ambientes sejam menos variáveis.
Já a fanfic Make a Memory, escrita pela autora Manuella Rosie
a partir da telenovela Amor à Vida, funciona como uma grande “cena
deletada” da obra televisiva. Na fic, a escritora realiza uma expansão da
narrativa buscando posicionar temporalmente tal expansão de maneira
fiel à cronologia do final da telenovela, quando Félix e Niko já são um
casal, mas ainda não moram juntos. Na história de Rosie, após uma
briga em que Félix acusa o pai de desejar que ele tivesse morrido, e não
um irmão seu que morrera afogado quando criança conforme a própria
obra matriz, Félix acaba sofrendo um acidente de carro. A partir daí, ele
perde as memórias e passa a acreditar que é Cristiano, esse irmão que
morrera segundo a própria narrativa da novela. O evento que motiva a
fic, assim, nasce da imaginação de sua criadora, mas o posicionamento
dele em relação à obra que inspira Manuella segue uma cronologia ri-
gidamente canônica. Não só isso, mas o esquecimento de Félix é usado
como pretexto narrativo na fic para visitar acontecimentos importantes
do casal na obra matriz, como o primeiro encontro, a (re)descoberta do
amor entre eles, a decisão de se tornarem uma família e assim por diante.
Além disso, o processo de recuperação das memórias de Félix
também remete a acontecimentos canônicos: após uma briga com Cé-
sar, por exemplo, Félix sai de casa a pé e tenta chegar ao restaurante
de Niko, mas se perde no caminho, passa a noite na rua, é assaltado,
agredido e deixado dentro de uma caçamba de lixo, onde recupera a

101
lembrança de ter abandonado a bebê da irmã no lixo, como é retratado
na novela. Enfim, a fanfic também se utiliza amplamente de expressões
ditas canonicamente por Félix: ele chama Niko de “carneirinho” (e usa
termos como “criatura”, “lacraia”, “pelas contas do rosário”, “devo ter
salgado a santa ceia”, “devo ter colado chiclete na cruz”, “devo ter feito
permanente na peruca de Sansão” e afins).
A fanfic Na Luta do Bem contra o Mal, Quem Vence o Amor?, dedi-
cada por Gaúcha à telenovela A Regra do Jogo, por seu turno, apresenta
o casal Atena e Rômulo, que tem uma relação amorosa conturbada e
conflituosa envolvendo chantagens, mentiras e ameaças – assim como na
telenovela. Tanto na obra matriz quanto na fic que ela inspira, os proble-
mas do casal decorrem dos modos de vida dos personagens, que são dois
trambiqueiros que costumam se passar por outras pessoas para aplicar
golpes em curto prazo (caso de Atena) e longo prazo (caso de Romero
Rômulo). Notavelmente, o modo como os personagens são apresentados
na fic pressupõe um conhecimento prévio do mundo ficcional de A Regra
do Jogo: a autora cita personagens, instituições e acontecimentos que
demandam informações fornecidas no texto original da trama.
Tudo isso posto, fica claro como nos textos das distintas autoras o
cânone é evocado a partir de perspectivas que se tocam em alguns pontos
e se distanciam em outros, mas invariavelmente buscam marcar um alto
grau de adesão a despeito dos eventuais câmbios realizados em relação
aos elementos que balizam a telenovela. Assim, busca-se marcar uma
consistência com os elementos que caracterizam as personagens mesmo
quando elas agem de maneiras distintas ou mais detalhadas que na obra
matriz – como ocorre nas fics mencionadas de Lab Girl e WaalPomps
dedicadas respectivamente a Geração Brasil e Sangue Bom. Por outro
lado, fics que criam eventos mais claramente próprios ou reinterpretam
de modo significativo os que marcam a telenovela, como as citadas cria-
ções de Manuella Rosie sobre Amor à Vida e de Gaúcha sobre A Regra
do Jogo, tendem a reforçar que, a despeito dos seus desvios, ainda se
balizam densamente pelas histórias das telenovelas, recuperando eventos,
modos de falar dos personagens e até mesmo a cronologia das tramas.
O grau de adesão ao cânone, assim, busca se marcar como amplo nessas

102
produções, mesmo quando elas realizam desvios. Nota-se, porém, que, a
ênfase em uma forte matriz melodramática, conforme recuperada na tele-
dramaturgia, é uma regra quase inquebrável: apesar dos desvios, o casal
deve sempre terminar junto, permitindo que o enlace amoroso prospere.

Conclusão

As reflexões delineadas neste artigo representam o resultado de


seis anos de pesquisa contínua empreendida pelo grupo A-Tevê/UFBA
no âmbito do Obitel Brasil, contemplando três biênios consecutivos de
dedicação ao fenômeno de criação, publicação, distribuição e consumo
de fanfictions de telenovelas brasileiras exibidas integralmente entre os
anos de 2010 e 2015. Ao longo do caminho, abordamos os modos como
as escritoras de fics se apropriam de múltiplas plataformas de publicação
de conteúdo nas redes digitais – desde aquelas especialmente desenhadas
para o compartilhamento e a interação em torno das histórias de fãs até
sites de redes sociais de utilização mais ampla e diversificada do público,
como blogs, Facebook e Instagram –, a formação de comunidades de
interesse e de consumo em torno das reapropriações agenciadas pelas
autoras de fics em relação aos mundos ficcionais construídos pelas
telenovelas (particularmente em torno de pares românticos admirados
pelos grupos de fãs) e as negociações com as obras matrizes televisivas
que inspiraram as investidas das autoras de fanfics em suas narrativas.
Tendo contemplado diversos eixos desse fenômeno nos biênios
anteriores, nossa jornada de pesquisa sobre as fanfics culminou na aná-
lise interna dos produtos criados por algumas das (muitas) escritoras
identificadas em nossa base de dados e na realização de entrevistas com
elas, com foco detido nas autoras que se destacaram na intersecção entre
volume de produção (quantidade de capítulos postados) e repercussão
positiva com suas leitoras (total de interações nas plataformas).
Aqui, demonstramos analiticamente as escolhas das autoras Lab
Girl, Manuella Rosie, WaalPomps e Gaúcha acionadas em suas obras
na negociação com os cânones estabelecidos nos mundos ficcionais
das telenovelas Geração Brasil, Amor à Vida, Sangue Bom e A Regra

103
do Jogo, respectivamente, com destaque à apropriação de situações e
eventos relativos aos casais adorados pelas fãs e na (re)construção das
narrativas românticas e sentimentais do amor entre esses personagens. É
interessante destacar como as transduções efetuadas pelas escritoras em
suas fanfics são moduladas a partir do engajamento efetivo e da experi-
ência compartilhada entre os grupos de fãs interessados na apreciação
do envolvimento romântico de determinados casais, inclusive emulando
programas de efeitos internos das obras calcados em matrizes melodra-
máticas e românticas tradicionais do gênero novelesco.
A investigação mais aproximada dessas autoras e de suas criações
possibilitou preenchermos uma lacuna sentida ao longo dos anos de
pesquisa sobre o fenômeno das fanfictions de telenovelas brasileiras: as
partilhas afetivas entre autoras e leitoras de fics e as próprias histórias
que recriam os mundos das telenovelas. Essas aproximações, ainda que
embrionárias, mostram-se úteis para o subcampo de investigação de
transduções de mundos ficcionais operados por fãs e suas fanfictions,
mesmo em contextos muito distintos dos das telenovelas. Acreditamos
que, embora haja muito de específico no contexto apresentado por nossas
pesquisas nos últimos seis anos, há também muito de universal na forma
como as escritoras de fanfics se veem e veem seu ofício e, por consequ-
ência, nos modos como elas recriam os mundos e personagens adorados.

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WOLF, M. J. P. Building imaginary worlds: the theory and history of subcre-
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105
106
A construção de mundos ficcionais pelo fandom
Limantha, de Malhação: Viva a Diferença

Gabriela Borges
Maria Cristina Brandão de Faria
Daiana Sigiliano
Leony Lima
Pedro Martins
Matheus Soares
Lucas Vieira

Introdução

Esta pesquisa investiga o mundo ficcional construído por Cao


Hamburger em torno do arco narrativo do casal Lica (Manoela Aliperti)
e Samantha (Giovanna Grigio) e discute o modo como o fandom das
personagens ampliou e ressignificou esse mundo ficcional no Twitter.
Nesse sentido, procuramos questionar a inter-relação entre a produção
e o consumo de narrativas ficcionais, com base nos estudos sobre a lite-
racia midiática, a partir da análise dos recursos técnico-estéticos do arco
narrativo das personagens que foram expandidos pelos fãs do shipping
Limantha na rede social.

1 A construção de mundos pelos fandoms

Os “mundos possíveis” são uma construção cognitiva do leitor que,


de acordo com Eco (1986), constrói o seu próprio sentido à medida que
uma narrativa avança. A partir de seu conhecimento enciclopédico, o
leitor constrói hipóteses que se confirmam, ou não, no desenrolar do
enredo. Os mundos possíveis se referem às possibilidades de eventos

107
que se abrem em uma narrativa, que podem ser desdobrados pelo autor
e/ou imaginados e interpretados pelo leitor.
Scolari (2011) retoma Eco para refletir sobre a ficção televisiva
contemporânea, afirmando que atualmente esse fenômeno se dá de forma
diferente, já que essa construção hipotética de mundos possíveis deixou
de ser individual e se tornou um processo coletivo, que se desenvolve nas
redes sociais. Autores como Jenkins et al. (2014) também pontuam que
as narrativas já não se restringem a uma plataforma e exploram diversas
mídias e linguagens, configurando o que denominam “construção de mun-
dos”. Nesse sentido, temos a criação de um mundo ficcional expandido
que estimula a participação dos telespectadores interagentes (Sigiliano;
Borges, 2019), que, por sua vez, criam outros mundos possíveis, em forma
de micronarrativas intersticiais, histórias paralelas, histórias periféricas
e conteúdo gerado a partir de conversações em rede (Scolari, 2018).
Segundo Jenkins et al. (2014) e Sandvoss (2005), os fandoms são
um ponto de referência importante nos estudos sobre a produção e o
consumo da cultura popular contemporânea. O estudo da cultura de fãs
deslocou o entendimento do aficionado como alguém sem senso crítico
para o papel ativo das audiências até definir a identidade do fã através
do seu comportamento, que impacta e transforma as relações sociais,
econômicas e culturais em nível global (Herrero-Diz, 2017).
Hellekson e Busse (apud Mihailidis, 2014, p. 928) classificam dois
tipos de fãs: os afirmativos, que colecionam, assistem, jogam, discutem,
analisam e criticam; e os transformadores, que criam seus próprios mun-
dos e personagens por meio da contação de histórias, cosplaying, artworks
ou do engajamento ativo. Porém Jenkins et al. (2014) pontuam que os
fãs afirmativos também podem ser transformadores e vice-versa, pois
os papéis se intercambiam e potenciam novas formas de reflexão sobre
o mundo ficcional, que se refletem em diferentes formas de interação.
Além disso, a avaliação, a valorização, a crítica e a distribuição de con-
teúdo mostram papéis importantes e ativos dos fãs, que não devem ser
desmerecidos em relação à produção de conteúdo (Jenkins et al., 2014).
Portanto, podemos relacionar os estudos das práticas de fãs e da
literacia midiática, uma vez que tanto os fãs afirmativos quanto os

108
transformadores expressam de forma diferente suas habilidades críticas
e criativas. Hirsjärvi (2013) sugere que os fãs fazem uma leitura atenta
das histórias, analisam cada detalhe da composição imagética e estimu-
lam o desenvolvimento de conteúdos que reforçam e ressignificam os
arcos narrativos. Sendo assim, o domínio de habilidades e o engajamento
dos fandoms abrangem também a leitura crítica e criativa dos mundos
ficcionais.
Hirsjärvi (2013) afirma que as atividades de um fandom permitem
observar uma multiplicidade de competências em operação e o desenvol-
vimento de novas possibilidades de aprendizado. Mihailidis (2014) define
cinco habilidades para a literacia midiática: a curadoria (capacidade de
organizar e sistematizar conteúdos multimídia), a compreensão crítica
(capacidade de analisar e compreender criticamente os conteúdos em
rede), a participação (capacidade de comentar, editar e propagar publica-
ções em diferentes plataformas), a colaboração (capacidade de produzir,
de modo colaborativo, conteúdos relevantes) e a criação (capacidade de
produzir, remixar e compartilhar conteúdos em plataformas on-line).
Nesse contexto, ressaltamos ainda que “[...] o fandom é formado
de maneira diversa e pode significar muitas coisas em distintos micro-
contextos, diferentes momentos de interação social, e até mesmo em
plataformas distintas” (Hills, 2015, p. 149). Dessa forma, as práticas e,
consequentemente, as habilidades relacionadas à literacia midiática em
operação no fandom devem ser analisadas considerando sua multiplici-
dade e suas idiossincrasias. Em outras palavras, a compreensão crítica e a
produção criativa dos fãs, mesmo partindo de um único mundo ficcional,
podem apresentar significativas variações.
Por isso, nesta pesquisa, o fandom analisado se caracteriza a partir
dos recursos de individualização e das camadas estruturais de informação
(Recuero et al., 2015; Bruns; Moe, 2013). Apesar da pluralidade do fluxo
conversacional do Twitter, os perfis que integram o fandom são pautados
por características e perspectivas convergentes.

109
2 Malhação: Viva a Diferença

Criada por Cao Hamburger, a 25ª temporada de Malhação (Globo,


1995-atual), intitulada Viva a Diferença (2017-2018), gerou consideráveis
índices de audiência e mobilizou os telespectadores nas redes sociais.
Com o sucesso da trama, a Globo voltou, após 13 anos, a exportar a
atração para o mercado internacional, além de ganhar o prêmio de melhor
série no Emmy Internacional Kids. Pela primeira vez, em 25 anos de
exibição, a novela infantojuvenil foi protagonizada por cinco mulheres.
O principal arco narrativo se desdobra após as adolescentes Keyla (Ga-
briela Medvedovski), Benê (Daphne Bozaski), Tina (Ana Hikari), Lica
(Manoela Aliperti) e Ellen (Heslaine Vieira), de origens e personalidades
diferentes, ficarem presas no mesmo vagão de metrô durante uma pane
elétrica. O plot tem início quando Keyla entra em trabalho de parto e
as personagens se unem em solidariedade para ajudá-la no nascimento
do bebê. Ao longo de seus 222 capítulos, a atração tratou de questões
como racismo, diversidade, síndrome de Asperger, feminismo, assédio
sexual e homofobia. Outro arco narrativo inédito foi o casal Lica e Sa-
mantha, que, pela primeira vez na novela, mostrou um beijo entre duas
meninas bissexuais. A cena, exibida em dezembro de 2017, repercutiu
de maneira instantânea nas redes sociais e as personagens ganharam fãs
no mundo todo.
A multiplicidade de microcontextos destacada por Hills (2015) pode
ser observada nas práticas do fandom Limantha. Além das idiossincrasias
implícitas da arquitetura informacional das plataformas, da linguagem
e do formato, a perspectiva e o modo de organização dos fãs também
reforçavam as peculiaridades dos microcontextos. Por exemplo, as fanfics
produzidas pelos telespectadores interagentes eram construídas, em sua
maioria, a partir do núcleo familiar de Samantha e discussões sobre a
homofobia. Em contrapartida, os vídeos on crack tinham como princi-
pal viés o humor. As cenas da trama eram intercaladas com memes que
ironizavam os acontecimentos da novela e, principalmente, a atitude das
personagens (Observatório da Qualidade no Audiovisual, 2018). Dessa
forma, essa análise dos contextos conversacionais não se refere a uma

110
compreensão do fandom Limantha em sua totalidade, mas às discussões
recorrentes de um grupo específico de fãs no Twitter. Apesar de partirem
do mesmo mundo ficcional e convergirem em vários aspectos, cada
prática reflete os seus microcontextos e se opõe a uma compreensão
homogênea do fandom.
As ações transmídia criadas pela Globo começaram antes da estreia.
No site da atração era possível assistir a episódios centrados em cada
uma das cinco protagonistas da temporada. O episódio1 de Lica, por
exemplo, apresentava ao telespectador traços importantes da personali-
dade da adolescente e a relação com os seus pais, plots esses que seriam
norteadores para o arco narrativo da personagem ao longo da novela.
Durante a exibição, as ações transmídia partiam da hashtag #Malha-
çãoemTodasasTelas, que aprofundava e ampliava os arcos narrativos da
novela por meio dos perfis nas redes sociais, vídeos e lives no GShow.

Figura 1 – Imagem divulgada pela Globo sistematizando as ações


transmídia de Malhação: Viva a Diferença

Fonte: GShow (2017)


No Twitter, especificamente, o canal destacava as cenas que estavam
no ar, postava memes, estimulava a participação dos telespectadores
interagentes através hashtags e enquetes. Entretanto, apesar das ações

1
Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5836467/. Acesso em: 6 jul. 2019.

111
da Globo no microblog, os fãs optaram por interagir a partir de indexa-
ções criadas pelos fandoms dos personagens e compartilhar conteúdos
produzidos por perfis não oficiais, dedicados às protagonistas, aos ships
e à temporada.
A shippagem2 abrangeu a maioria dos arcos narrativos da novela.
Todas as protagonistas da trama integravam um ship: Tina (Tinderson),
Benê (Gunê), Ellen (Jotaellen) e Keyla (Keyto). Apenas Lica compunha
dois ships; nos arcos iniciais da atração, ela integrava o Felica (com Feli-
pe) e, posteriormente, o Limantha (com Samantha). Graças à mobilização
dos fãs em torno dos casais, os ships acabaram sendo incorporados às
ações da Globo. Além de adotar os acrônimos criados pelo fandom em
postagens em suas redes sociais3, a emissora também promovia enquetes
para escolher o melhor ship da novela.4

3 Percurso metodológico da análise do fandom Limantha

Os conteúdos produzidos pela Globo na construção no mundo


ficcional de Limantha foram monitorados no site oficial5 e nos perfis do
Twitter6, Instagram7, Facebook8 e Pinterest9 gerenciados pela emissora.
O monitoramento teve início em 21 de dezembro de 2017 e se estendeu
até 5 de março de 2018, abrangendo a captura das cenas envolvendo as
personagens Lica e Samantha e as postagens nas plataformas digitais.
A abordagem metodológica de monitoramento, coleta, apresentação
e análise dos dados adotada na investigação do fandom Limantha foi
composta por quatro etapas (Recuero et al., 2015; Sigiliano; Borges,

2
Shippar é o ato de torcer pelo casal em questão e shippers são as pessoas que fazem a
shippagem (Jamison, 2017). Geralmente os shippers se referem ao casal pelo qual torcem
utilizando acrônimos
3
Disponível em: https://tinyurl.com/y5fy87mv. Acesso em: 6 jul. 2019.
4
Disponível em: https://tinyurl.com/y3a2ue7nl. Acesso em: 6 jul. 2018.
5
Disponível em: https://tinyurl.com/yxhz58ds. Acesso em: 20 maio 2019.
6
Disponível em: https://twitter.com/malhacaogshow; https://twitter.com/gshow; https://twitter.
com/RedeGlobo. Acesso em: 5 mar. 2018.
7
Disponível em: https://tinyurl.com/y5lm4t44. Acesso em: 20 maio 2019.
8
Disponível em: https://www.facebook.com/malhacao/. Acesso em: 20 maio 2019.
9
Disponível em: https://br.pinterest.com/portalgshow/. Acesso em: 20 maio 2019.

112
2019). A primeira etapa, realizada em dezembro de 2017, consistiu na
definição das páginas a serem monitoradas. Inserimos na barra de busca
do Twitter, vinculada à sua API, palavras-chave e hashtags relacionadas
ao mundo ficcional. Com base nos resultados10, os perfis foram selecio-
nados a partir dos recursos de individualização (avatar, capa, username
e descrição) e das camadas estruturais de informação (Recuero et al.,
2015; Bruns; Moe, 2013). Dessa forma, os perfis tinham que apresentar
recursos estéticos e de conversação referentes ao casal. Em relação às
camadas estruturais de informação, que definem os diferentes níveis de
conversação do Twitter (micro11, meso12 e macro13), observamos se os
conteúdos, as menções e as indexações postadas faziam referência ao
ship. A partir dessa filtragem, selecionamos 4014 perfis ativos relacionados
ao mundo ficcional de Limantha.
A segunda etapa consistiu no monitoramento e na extração dos
tweets e se dividiu em dois momentos: durante a exibição dos capítulos
que abordavam o arco narrativo de Limantha, de dezembro de 2017 a
março de 2018, e após o encerramento da trama, de março de 2018 a
maio de 2019. Para visualizar os tweets postados durante a exibição dos
capítulos relacionados à história, que teve início em 21 de dezembro
de 2017, usamos o aplicativo TweetDeck e capturamos os conteúdos
com o Snagit (Borges et al., 2017; Sigiliano; Borges, 2019). No fim da
temporada, em 5 de março de 2018, o monitoramento foi ampliado e
os perfis foram acompanhados de modo ininterrupto, de acordo com os
conteúdos gerados nas páginas.
A terceira etapa consistiu na codificação dos tweets extraídos durante
o monitoramento. Foram coletadas 392 mil postagens de 21 dezembro
de 2017 a 7 de maio de 2019. Nessa fase, os tweets foram identificados,
descritos e categorizados manualmente, isto é, cada publicação foi anali-

10
Foram identificados 209 perfis ativos no Twitter.
11
A comunicação interpessoal do interagente, ou seja, as menções que ele faz no Twitter, os
usuários com quem ele troca mensagens etc. (Bruns; Moe, 2013).
12
A rede de seguidores do interagente e todos os desdobramentos conversacionais que envolvem
essa questão (Bruns; Moe, 2013).
13
As hashtags usadas pelos interagentes e as comunidades momentâneas que são formadas em
torno delas (Bruns; Moe, 2013).
14
Disponível em: https://tinyurl.com/y2xebrel. Acesso em: 7 jul. 2019.

113
sada de forma individual, sem a ajuda de software (Recuero et al., 2015;
Sigiliano; Borges, 2019). O objetivo era selecionar os tweets publicados
pelo fandom Limantha que estabeleciam uma relação direta com os re-
cursos técnico-estéticos do arco narrativo envolvendo as personagens,
isto é, que partiam de momentos específicos do cânone, criando uma
nítida inter-relação entre a produção e o consumo.
Devido ao volume e à complexidade dos tweets, a codificação foi
dividida em duas fases: macrocodificação e microcodificação. Inicial-
mente categorizamos as postagens a partir do tema central da publicação.
Identificamos 15 categorias, como, por exemplo, nostalgia, questões
sociais, interação com o elenco da novela etc. Na microcodificação, a
categorização é norteada pelo conteúdo específico de cada contexto.
Identificamos 23 categorias a partir das 15 categorias da macrocodifica-
ção, totalizando 98 mil tweets. As categorias da microcodificação não
são excludentes; sendo assim, um único tweet pode constar em mais de
uma categoria.

Figura 2 – Contextos conversacionais das 15 categorias de


macrocodificação e respectivas 23 categorias de microcodificação

Fonte: elaboração dos autores

A quarta etapa consistiu na análise das publicações a partir dos ques-


tionamentos teóricos apresentados neste capítulo. As discussões sobre
os conteúdos postados no Twitter pelo fandom do casal Lica e Samantha
serão norteadas pelas reflexões de Jenkins (2012) e Scolari (2018).

114
4 Análise do fandom Limantha

Jenkins (2012) afirma que, no âmbito das fanfics, é possível iden-


tificar pelo menos cinco elementos básicos que motivam as ampliações
e as ressignificações dos fãs. São eles: as sementes, os buracos, as
contradições, os silêncios e os potenciais. Neste estudo adaptamos as
categorias propostas pelo autor para analisar a atividade do fandom
Limantha no Twitter. A escolha desse referencial teórico se justifica
porque nos permite refletir sobre as relações entre o cânone e a prática
dos fãs por meio de pontos específicos da trama, dialogando assim com
o problema desta pesquisa. Além disso, o autor ressalta que é possível
observar nesse processo a leitura crítica e criativa dos fãs, estabelecendo
uma clara relação com os estudos da literacia midiática.
Scolari (2018) discute a capacidade narrativa e estética do público,
isto é, a interpretação crítica de um mundo ficcional, o reconhecimento
e a descrição das semelhanças e diferenças das plataformas digitais e a
produção de conteúdo. Nesse contexto, as reflexões do autor auxiliam
na discussão sobre os contextos conversacionais das categorias de mi-
crocodificação presentes nas publicações compartilhadas pelo fandom
analisado.

4.1 As sementes

De acordo com Jenkins (2012, p. 16), as sementes são “[...] pedaços


de informação introduzidos na narrativa para indicar um mundo maior que
não é completamente desenvolvido na própria história”. O autor pontua
também que as sementes geralmente afastam o fã “[...] do enredo central e
introduzem possibilidades de histórias a explorar” (Jenkins, 2012, p. 16).
Os tweets compartilhados pelos fãs do casal Lica e Samantha ex-
ploravam distintas sementes do paratexto. As publicações repercutiam
acontecimentos relacionados ao cotidiano das personagens, como, por
exemplo, a reprodução da interface dos smartphones das adolescentes e
os relatos de situações cotidianas nos perfis fictícios, ampliando no Twit-
ter as sequências que foram ao ar na TV. Nesse contexto, os conteúdos

115
traziam verossimilhança para o mundo ficcional, como se as personagens
existissem de fato e tivessem os mesmos hábitos de qualquer jovem da
sua faixa etária.
No capítulo 205, Samantha comenta com Felipe (Gabriel Calamari)
que quer fazer uma viagem pelo Brasil. Minutos após a exibição da sequ-
ência, o perfil @MVADasSpotify publicou uma imagem que simulava a
interface do smartphone da personagem mostrando as últimas pesquisas
feitas no Google. Entre as buscas estava “turismo pelo Brasil”. As outras
abas do navegador também faziam referências aos arcos narrativos da
novela, como, por exemplo, “sabonetes franceses”, que está relacionado
ao capítulo em que Samantha passa a noite na casa de Lica, e “livros de
ficção científica”, que faz alusão à cena em que a adolescente comenta
com Juca (Mikael Marmorato) sobre sua paixão pelo gênero.

Figura 3 – À esquerda, a sequência do cânone em que Samantha fala


sobre seu desejo de fazer um mochilão pelo Brasil; à direita,
a fã amplia o arco a partir da semente do paratexto

Fonte: Globo/Twitter (2018)



A transposição da semente para o Twitter ressalta não só o enten-
dimento apurado do telespectador interagente sobre o mundo ficcional
da novela, mas também a produção criativa através da reprodução da
interface do smartphone e do navegador. O fã interpreta o arco narrativo
compreendendo as expectativas e a curiosidade presentes nas entrelinhas,
que envolvem o desejo de Samantha de viajar, além de reunir informações

116
disponibilizadas no site da novela, tais como as entrevistas do elenco e os
comentários exibidos nas ações transmídia. Em outras palavras, o trecho
exibido na novela é ampliado para o cotidiano da adolescente, como se
a conversa com Felipe já partisse e/ou se desdobrasse em uma busca
detalhada na internet. Ao reproduzir as abas do navegador de Samantha,
o fã assimila, além dos temas, os elementos visuais que compõem o
navegador e o site de buscas.
Conforme discutimos anteriormente (Brandão et al., 2015; Borges et
al., 2017), a criação de perfis fictícios dos personagens no Twitter é uma
prática recorrente entre os fãs de novela. As páginas não só reforçam o
mundo ficcional das tramas, mas também exploram novos desdobramen-
tos da história. Durante a exibição de Malhação foram criados dez perfis
fictícios dos personagens, aprofundando questões que não eram desen-
volvidas na novela (Sigiliano; Borges, no prelo). O perfil de Samantha,
o @lambertiniSmantha, detalhava, entre outros temas, o relacionamento
com Lica e o medo de falar sobre a sua orientação sexual com os pais,
além de preencher outras lacunas presentes no cânone.
A cena exibida no dia 5 de janeiro de 2018 foi aprofundada e res-
significada pelo fandom Limantha. Na sequência, Lica diz a Samantha
que adora andar de bicicleta na Av. Paulista, em São Paulo. Instantane-
amente o fandom começou a repercutir no Twitter como seria o passeio
das personagens, sobre o que elas conversariam, os lugares que inte-
grariam sua rota, a trilha sonora etc. Entretanto, apesar da empolgação
de Samantha ao ouvir o hobby da namorada e da expectativa dos fãs, o
passeio nunca se concretizou na TV. Dois meses após o encerramento da
novela, em maio de 2018, a assistente de direção Alexia Malter postou
em seu perfil15 no Twitter uma foto sugerindo a tão esperada sequência
das personagens. Além ser retuitada milhares de vezes, a imagem ga-
nhou diversas abordagens no microblog. O perfil fictício de Samantha
reproduziu uma postagem da personagem relatando que tinha saído para
pedalar com Lica. O perfil fictício da namorada também interagiu, dando
continuidade ao contexto conversacional.

15
Disponível em: https://tinyurl.com/y55aq6gl. Acesso em: 22 maio 2019.

117
Figura 4 – À esquerda, durante o capítulo de Malhação, Lica conta
para Samantha que adora andar de bicicleta na Av. Paulista;
à direita, o perfil fictício de Samantha relata o passeio a partir da
imagem publicada pela assistente de direção da trama

Fonte: Globo/Twitter (2018)

O passeio de Limantha ganhou outro desdobramento em um vídeo


publicado no microblog. O conteúdo compartilhado no perfil @isalipertin
partiu de trechos do portfólio de Alexia Malther, que foi descoberto pelo
fandom. Entre as sequências divulgadas pela assistente de direção em sua
página pessoal no Vimeo16 estava uma cena, com cerca de oito segundos
de duração, de Lica e Samantha andando de bicicleta. Rapidamente o
link17 com o conteúdo se espalhou entre o fandom e os telespectadores
interagentes se reuniram virtualmente para editar o conteúdo. O vídeo
compartilhado no Twitter juntava os trechos da novela em que as perso-
nagens falavam sobre o possível passeio de bicicleta por São Paulo com
as cenas do Vimeo, como se todas as imagens integrassem o cânone.
Nesse contexto, podemos observar não só o conhecimento aprofun-

16
Disponível em: https://vimeo.com/alexiamaltner. Acesso em: 30 maio 2019.
17
Em entrevista ao Observatório da Qualidade no Audiovisual, realizada em 17 de junho de
2019, Alexia Malther disse que a foto postada no Twitter não integra a cena em que Lica e
Samantha passeiam de bicicleta pela Av. Paulista. Na verdade, a imagem é uma captura de
outra versão, não exibida na TV, do clipe de Gente Aberta, gravada pela assistente de direção.

118
dado que os fãs têm das nuances da história, ao identificar o possível des-
dobramento da cena e encaixar a sequência “extra” no mundo ficcional,
mas também o trabalho colaborativo em rede. Ao unir os dois vídeos, o
fandom ressalta ainda a compreensão das especificidades relacionadas
ao conteúdo veiculado na televisão e ao que foi disponibilizado na pla-
taforma de vídeos, sugerindo na edição que ambos poderiam pertencer
ao mesmo arco narrativo.

4.2 Os buracos

A segunda motivação proposta por Jenkins (2012) são os buracos.


De acordo com o autor (2012), os buracos são elementos da história dos
quais o público sente falta e que são importantes na compreensão dos
personagens. As questões ligadas à comunidade LGBTI+ integram alguns
desdobramentos do arco narrativo de Limantha, como, por exemplo, a
cena em que Rafa (Marcelo Arnal) agride verbalmente o casal na rua e a
sequência em que Edgar (Marcello Antony) é contra o namoro da filha,
Lica. Entretanto os assuntos não são tratados de maneira direta; na atração
eles estão sempre acompanhados de outras temáticas, funcionando como
subplots. Essa abordagem do tema foi questionada pelos telespectadores
interagentes em distintas práticas do fandom Limantha.
De acordo com Jamison (2017), essa ampliação de tramas envolven-
do, especificamente, personagens LGBTI+ é um processo recorrente na
cultura de fãs. A autora ressalta que as discussões propostas nos conteúdos
produzidos tendem a aprofundar os arcos ligados não só à sexualidade,
ao preconceito e à homofobia, mas também ao romance. A partir dos
questionamentos dos buracos da novela, os tweets problematizavam a
abordagem dos casais homossexuais em relação aos heterossexuais e
ironizavam o pudor com que a sexualidade das adolescentes era tratada
em cena.
Durante a exibição de Malhação, os fãs reclamavam no Twitter
sobre a forma como a troca de carícias dos casais heterossexuais era di-
ferente da abordagem das cenas de Lica e Samantha. Segundo o fandom,
enquanto os ships Jotellen e Tinderson, por exemplo, davam beijos arden-

119
tes, as adolescentes no máximo trocavam um selinho. A insatisfação dos
telespectadores interagentes mobilizou várias ações na rede social, tais
como a criação de hashtags de protesto e menções aos roteiristas Mário
Viana e Renata Martins. Ao longo da novela, a constante reclamação
sobre os típicos selinhos de Lica e Samantha se tornou uma espécie de
piada interna do fandom, e os fãs ironizavam a distância das personagens
durante os beijos, a impessoalidade, a ausência da troca de carícias etc.
Publicada no site de Malhação no dia 7 de fevereiro de 2018, a re-
portagem18 da seção “Vem Por Aí” divulgava os próximos acontecimentos
da atração. A matéria destacava o preconceito da mãe de Ellen, Nena
(Roberta Santiago), ao ver Lica e Samantha se beijando. Porém, ante-
cipando que o beijo das adolescentes na cena não passaria de um breve
selinho, o fandom fez uma montagem da manchete da notícia publicada
no site. O título representava o que os fãs gostariam que acontecesse na
trama: em vez de se incomodar com o beijo do casal, Nena se revoltaria,
assim como o fandom, por ser um selinho e não um “beijão”.

4.3 Os silêncios

Os silêncios são conceituados por Jenkins (2012) como elementos


sistematicamente excluídos do mundo ficcional com consequências ide-
ológicas. Conforme ressaltamos anteriormente, as questões relacionadas
à comunidade LGBTI+ estavam implícitas no desenvolvimento do arco
narrativo de Limantha. Porém, devido ao assunto ainda ser tratado como
tabu na televisão aberta nacional e à faixa etária recomendada, as nuances
do relacionamento das personagens não foram aprofundadas. As críticas
dos fãs eram unânimes no Twitter: o público pedia que Lica e Samantha
falassem abertamente de sua sexualidade e que os beijos e as trocas de
carícias entre as adolescentes fossem retratados da mesma forma como
os dos casais heterossexuais. Esses silêncios do cânone reverberaram no
microblog através não só da produção criativa do fandom, mas também
de protestos durante a exibição da novela, como, por exemplo, a criação

18
Disponível em: https://tinyurl.com/y53r977v. Acesso em: 23 jun. 2019.

120
de hashtags que pediam maior visibilidade ao arco narrativo e que cri-
ticavam o modo como o plot era abordado. Também foram publicadas
no Twitter fanarts que ampliavam as cenas e exploravam a sexualidade
das personagens.
Desde o início do desenvolvimento do arco narrativo protagonizado
por Lica e Samantha, em dezembro de 2017, os fãs se mobilizaram em
torno de hashtags específicas para comentar os desdobramentos do casal
na rede social. As indexações criadas pelo fandom faziam alusão ao prin-
cipal acontecimento envolvendo as personagens no capítulo que estava
no ar. A escolha das hashtags era mediada pelo perfil @TagsLimantha
a partir de uma enquete.
Entretanto, à medida que o relacionamento de Limantha foi sendo
explorado na história, os fãs passaram a usar as hashtags para protestar
contra os silêncios do paratexto. Um exemplo é a indexação #Liman-
thaSemCensura, usada no dia 15 de fevereiro de 2018, em que o fandom
chamou a atenção para as diferenças entre as cenas de Lica e Felipe e
Lica e Samantha. Segundo os fãs, nas sequências com o ex-namorado,
a adolescente se aproximava e tocava nos ombros e nas mãos de Felipe.
Em contrapartida, a interação com Samantha não tinha toque, apenas
uma breve troca de olhares. A indexação gerou cerca de 31 mil tweets e
ocupou a quarta posição nos Trending Topics (Brasil). Lançada no dia
22 de fevereiro de 2017, a hashtag #LGBTMereceRespeito também
problematizava o modo como o arco narrativo das personagens era
conduzido pela Globo. A mobilização do fandom foi repercutida por
sites especializados como o Observatório do Cinema19, que destacava a
inviabilização da bissexualidade.
A partir desses silêncios, os fãs ampliaram o arco, explorando
perspectivas inéditas. Publicadas no Twitter, as fanarts do capítulo 181
aprofundavam a sequência em que Samantha dorme na casa da Lica. As
produções dos fãs eram norteadas pelo viés sexual, que não estava pre-
sente na trama. Um exemplo é a cena em que Lica conta para Samantha
que Tina brigou com a mãe por causa do acidente com Anderson e terá
que dormir na sua casa. A fanart se desdobra de um modo diferente da

19
Disponível em: https://tinyurl.com/y5uot9bd. Acesso em: 29 jun. 2019.

121
apresentada na novela, assim como a cena em que Tina divide a cama
com o casal.

Figura 5 – No topo, a ampliação que o fã faz a partir


da cena em que as personagens conversam; abaixo,
Lica dorme abraçada com Samantha

Fonte: Globo/Twitter (2018)

Além de reproduzirem os elementos estéticos da sequência, tais


como enquadramento e figurino, os fãs expressavam como eles gosta-
riam que o arco narrativo das personagens fosse trabalhado no cânone.
Os silêncios da história também foram repercutidos no Twitter por
meio de menções feitas ao perfil do roteirista Mário Vianna.20 Nas posta-
gens o fandom Limantha criticava, principalmente, o desdobramento do
plot envolvendo Juca e Lica. Na trama, a personagem beija o amigo para
acabar com uma aposta feita pelos alunos do Cora Coralina, porém os
fãs afirmaram que a atitude da adolescente reforçava o estereótipo de que
a bissexualidade está ligada à indecisão e à infidelidade, já que durante
a aposta Lica estava se envolvendo com Samantha. Os telespectadores
interagentes cobraram explicações sobre os próximos acontecimentos

20
Disponível em: https://twitter.com/mvianinha. Acesso em: 30 jun. 2019.

122
da história e indicaram fanfics ao roteirista. Segundo eles, as tramas pu-
blicadas no Nyah! e no Spirit tratam o plot de forma mais “aprofundada
e responsável”.

4.4 As projeções

Descrito por Jenkins (2012) como projeções sobre o que pode-


ria ter acontecido além dos limites do mundo ficcional, os potenciais
abarcaram, sobretudo, os tweets publicados após a exibição do último
capítulo de Malhação: Viva a Diferença. As postagens do fandom davam
continuidade aos arcos deixados em aberto no encerramento da trama.
Nesse contexto, os fãs elaboravam coletivamente os possíveis destinos
do mochilão das personagens e quais seriam suas escolhas profissionais.
Enquanto a trama estava no ar, os arcos potenciais desenvolvidos
pelo fandom Limantha tinham como base a análise dos frames das lives
promovidas por Alexia Maltner, em seu perfil pessoal21 no Instagram.
Por serem transmitidas da ilha de edição do programa, mesmo que
indiretamente, era possível observar nos monitores, em segundo plano,
os trechos das cenas que iriam ao ar no dia. A partir das imagens que
apareciam nos vídeos, os fãs se mobilizavam no Twitter para elaborar
projeções sobre o que iria acontecer no mundo ficcional. Por exemplo,
na live transmitida no dia 2 de março de 2018, os fãs questionaram o
cenário em que Lica estava. A captura da imagem foi sistematicamente
analisada pelo fandom e os argumentos ressaltados nos tweets eram
pautados tanto pelo desdobramento do paratexto quanto pelos elementos
da composição imagética. Sendo assim, para elaborar as projeções, os
telespectadores interagentes não só consideravam as possíveis consequ-
ências narrativas do plot que estava no ar, mas também identificavam, a
partir da mise-en-scène, quais personagens estariam em cena, em qual
cenário se passava a sequência etc.

21
Disponível em: https://tinyurl.com/y3nlr7go. Acesso em: 30 jun. 2019.

123
Figura 6 – A partir das lives feitas por Alexia Maltner no Instagram, o
fandom elaborava projeções do universo ficcional da telenovela

Fonte: Twitter (2018)

As postagens que especulavam sobre o que poderia acontecer


nos próximos capítulos da atração reverberavam em outras práticas do
fandom, como, por exemplo, nos vídeos on crack e nos memes. Nesse
contexto, mesmo que muitas projeções feitas pelos fãs não chegassem
a se concretizar no cânone, elas incentivavam outras produções. Apesar
de não partirem das lives feitas no Instagram, as especulações sobre o
futuro profissional de Lica e Samantha inspiraram diretamente a trama das
fanfics. As histórias exploravam elementos que não estavam no mundo
ficcional do arco narrativo de Limantha, mas que foram estimulados
pelos potenciais identificados e interpretados nas postagens do microblog.
Intitulada pelos telespectadores interagentes Ask Limantha, a ação
promovida por @TagsLimantha propunha uma discussão coletiva no
fandom. O perfil publicava uma pergunta e os fãs respondiam com base
apenas nos potenciais da trama, usando a hashtag #asklimantha. Por
exemplo, qual faculdade Lica e Samantha estão fazendo? Depois de
compartilharem trechos da trama e argumentarem sobre os principais
interesses e aptidões das adolescentes, os fãs chegaram à conclusão de que
Lica cursa Artes Plásticas e Samantha, Arquitetura. As reflexões propostas
no Twitter também reverberaram nas fanfics, cujas tramas apresentam
capítulos que se passam anos após a temporalidade do cânone, em que
as personagens já estão formadas e morando fora do Brasil.

124
Um ponto importante nas discussões sobre os potenciais do arco
narrativo de Limantha é que a elaboração das projeções, que vão além
do mundo ficcional, é coletiva. A partir de um questionamento, os fãs se
mobilizam para refletirem juntos, com base no metatexto, sobre quais
seriam as melhores possibilidades. No capítulo final de Malhação Lica
e Samantha decidem fazer uma viagem pelo Brasil. Após o término da
trama, os fãs deram continuidade ao plot, refletindo não apenas sobre as
cidades que as personagens estavam visitando, mas também sobre como
estaria a relação delas com os amigos.
Os destinos que integravam a rota de Lica e Samantha foram re-
percutidos de diversas formas no Twitter. As publicações reproduziam
a interface de dispositivos móveis, como se as personagens estivessem
compartilhando fotos no Instagram, postavam playlists fictícias com a
temática da viagem etc. Criada com a ajuda de outros fãs, que sugeriam
as cidades a serem visitadas, a thread Limantha on the Road, do perfil
@ffrraannn_, era composta por dez capítulos. Os desenhos ressaltam as
características físicas de Lica e Samantha e o ponto turístico dos lugares
pontuados pelos telespectadores interagentes, indo além do arco narrativo
apresentado no final da novela.

Figura 7 – Na série Limantha on the Road, os potenciais da telenovela


foram explorados por meio de desenhos

Fonte: Twitter (2018)

125
4.5 As contradições

As contradições são caracterizadas por Jenkins (2012) como ele-


mentos na narrativa (intencionais ou não) que sugerem possibilidades
alternativas para os personagens. Os tweets do fandom imbricavam o
mundo ficcional da novela com contextos externos à história. Um exem-
plo é a piada interna dos fãs em que a atriz Manoela Aliperti morava
em uma caverna e, por isso, não postava nas redes sociais associada à
cena em que Lica faz uma instalação chamada “Caverna do Futuro”, ou
ainda os crossovers fictícios entre o arco narrativo envolvendo o núcleo
familiar de Samantha e a personagem Marina (Tainá Müller), de Em
Família (Globo, 2014).
Por se tratar de um programa voltado para o público infanto-juvenil,
a participação do elenco nas redes sociais era um ponto importante para
os fãs. Ao longo da atração os telespectadores interagentes criaram perfis
que faziam a curadoria das postagens dos atores e atrizes no Twitter e no
Instagram. Nesse contexto, bastava um integrante do elenco se ausentar
brevemente das redes sociais para os fãs repercutirem nos grupos de
discussão.
Apesar de ter um perfil pessoal no Instagram, a atriz Manoela Aliperti
(Lica) não era ativa na plataforma e raramente postava fotos ou comparti-
lhava stories. A esporadicidade dos posts da atriz começou a ser debatida
pelo fandom desde o início da trama e acabou se transformando em uma
piada interna. Para os fãs, a explicação era que a atriz morava em uma
caverna e, por isso, o sinal do Wi-Fi era fraco, o que impossibilitava as
publicações. A ironia do fandom, que reverberava nos comentários deixa-
dos no feed da atriz e nas teorias criadas pelos fãs, acabou gerando uma
correlação indireta com o cânone. Na semana final da novela, o arco de
Lica tem como subplot a criação de uma instalação artística para a feira
do Cora Coralina. Porém, para a surpresa dos fãs, a obra da personagem
era uma caverna. Durante as sequências, exibidas entre os dias 1 e 2 de
março de 2018, a adolescente explica que a “Caverna do Futuro” tem
o objetivo de guardar mensagens que possam ser lidas futuramente. Ao
assistirem às cenas, os fãs instantaneamente relacionaram a piada interna
do fandom com a instalação de Lica.

126
Figura 8 – Os fãs estabelecem uma correlação entre os hábitos da atriz
Manoela Aliperti e a cena da trama

Fonte: Twitter (2018)

Em sua maioria, os tweets exploravam os memes estabelecendo vá-


rias camadas interpretativas. Um exemplo é a publicação em que uma fã
afirma ironicamente que está na dúvida sobre como a cena fora gravada
na casa da atriz. Para ressaltar a suposta incoerência, uma fã posta uma
imagem que reproduz o famoso meme da vilã Nazaré Tedesco (Renata
Sorrah), de Senhora do Destino (Globo, 2004-2005). As possibilidades
alternativas geradas a partir do subplot também ressignificaram trechos
da sequência exibida na TV. Os fãs compartilhavam uma captura de tela
e inseriam diálogos fictícios, como se Lica estivesse apresentando sua
caverna para a namorada.
A memória afetiva dos telespectadores é um contexto conver-
sacional recorrente no backchannel dos fãs de novela (Brandão et al.,
2016; Borges et al., 2017). Independentemente da trama e do público-
-alvo, os telespectadores interagentes fazem referência aos programas
que já foram ao ar, correlacionando temas, desdobramentos narrativos,
autores, elenco e personagens. No arco narrativo de Limantha, as corre-
lações feitas pelos fãs exploraram possibilidades alternativas no cânone,
imbricando as histórias de distintas produções.
A partir das sementes da trama, os fãs supriram a ausência do plot
relacionado ao núcleo familiar de Samantha com elementos do paratexto
de Em Família, como se ambas as atrações integrassem o mesmo mundo
ficcional. Os tweets postados durante o período de monitoramento par-

127
tiam do argumento de que os pais de Samantha não apareciam na atra-
ção porque, na verdade, a adolescente era filha do casal Marina e Clara
(Giovanna Antonelli). Por meio de montagens, o fandom comparava a
mise-en-scène e a personalidade das personagens “provando” que elas
tinham um parentesco. Por exemplo, as cantadas de Marina, segundo os
fãs, eram sem pudor assim como as de Samantha. A repercussão dos fãs
gerou tanto buzz no Twitter que a atriz Tainá Müller publicou em seu
perfil pessoal no Instagram uma foto com Giovanna Grigio acompanhada
da seguinte legenda: “Minha filha perdida!”.

Figura 9 – À direita, as montagens correlacionando o comportamento


do casal de em Família com o de Samantha; à esquerda, Tainá Müller
ressalta o buzz do Twitter

Fonte: Twitter (2018)



5 Considerações finais

Os conteúdos compartilhados pelo fandom Limantha no Twitter


ressaltam a correlação entre a compreensão crítica e a produção criativa
dos fãs na rede social. Ao analisarmos os recursos propostos por Jenkins
(2012) e a capacidade narrativa e estética discutida por Scolari (2018),
é possível refletir sobre o modo como os aspectos técnico-estéticos são
ampliados e ressignificados. Nesse contexto, é importante destacar que
esse engajamento no microblog parte de um profundo entendimento dos

128
fãs sobre o mundo ficcional. Seja através das sementes, dos buracos, dos
silêncios, dos potenciais ou das contradições, toda a produção é norteada
pela constante análise e reassistência dos arcos narrativos. Além disso,
os conteúdos são formatados considerando a arquitetura informacional
e operacional do Twitter, ou seja, a temporalidade always on, o foco da
interação social, a indexação de ideias em torno das hashtags, a limitação
do espaço textual e os aspectos multimodais.
Por se tratar de um fandom, as discussões e as principais questões que
norteiam os conteúdos produzidos são construídas coletivamente. Essa
teia colaborativa abrange desde as enquetes para a escolha das indexações
até a edição de imagens que serão postadas na timeline. Dessa forma,
observamos que os modos de compreensão do arco narrativo envolvendo
Lica e Samantha perpassam várias práticas do fandom. Apesar de suas
idiossincrasias, as fanfics, os tweets, as fanarts, os vídeos on crack têm
como cerne um repertório crítico compartilhado pelos fãs. Outro ponto
importante é o modo como os conteúdos são construídos. Cada desmem-
bramento do cânone, mesmo que distante da proposta original da novela,
mantinha características pontuais do enredo, tais como a mise-en-scène,
o modo de falar dos personagens, a cronologia das cenas, entre outras.
Ao ampliar e ressignificar os recursos técnico-estéticos do arco
narrativo de Limantha no Twitter, o fandom criava um mundo ficcional
paralelo ao enredo, que integrava os desejos e as projeções dos fãs. Esses
novos mundos ficcionais engendram novas possibilidades à experiência
televisiva contemporânea, propondo novas formas de analisar critica-
mente os conteúdos midiáticos e, a partir disso, reimaginar a novela e
projetar diversos caminhos narrativos, mostrando que os desdobramentos
no cânone não são os únicos existentes.

Referências

BORGES, G. et al. Fãs de Liberdade, Liberdade: curadoria e remixagem na


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No prelo.

131
Terceira Parte

Expansões dos mundos da ficção /


Mundos transmídia
Ações socioeducativas nos mundos da telenovela trans-
mídia: um estudo a partir da abordagem de questões
LGBTQIA+

Yvana Fechine
Cecília A. R. Lima
Diego Gouveia Moreira
Gêsa Cavalcanti
Marcela Chacel1

Introdução: “mundos possíveis” e telenovela transmídia

Toda narrativa cria, a partir de estruturas definidas pelo autor, um


mundo que lhe é próprio dentro do qual o leitor pode imaginar alternativas
possíveis, seja em relação ao curso dos eventos, seja em relação à conduta
dos personagens. É essa previsão interpretativa em relação aos desenvol-
vimentos possíveis de uma narrativa que Umberto Eco (1986) denomina
“mundos possíveis”. Partindo desses pressupostos da semiótica textual
de Eco, autores como Semprini (2006) alarga a noção e passa a associá-
la ao imaginário e ao leque de valores instaurado por toda narrativa. Fi-
liado à mesma tradição teórica, Scolari (2011) ressalta que a construção
de mundos possíveis deixou de ser um comportamento proposicional
individual para se converter em um processo interpretativo coletivo que
se desenvolve nas redes sociais digitais a partir da transmidiação, um
modelo de produção que explora a associação e complementaridade entre
conteúdos distribuídos por distintas mídias, apostando no trabalho dos
destinatários da comunicação para articulá-los e interpretá-los.

1
Colaboração de Ayrton Hascemberg, Carla Nogueira, Gabriel Pedroza, Rayanne Elisã e
Sarah Rêgo.

135
Compreendida em uma acepção ainda mais ampla nesse contexto
da transmidiação, a noção de “mundos possíveis” aproxima-se da ideia
de “construção de mundos”, expressão também utilizada por Jenkins
(2008) para designar o esforço dos produtores para oferecer histórias
interconectadas e espalhadas por diferentes meios/plataformas. Mais
do que pressuposições interpretativas, os “leitores” da era transmídia
encontram agora mundos não apenas possíveis em sua imaginação, mas
efetivamente “construídos” – contando inclusive com sua colaboração2 –
a partir de desenvolvimentos e desdobramentos em outros meios de
uma narrativa principal veiculada em uma mídia de referência. A oferta
desse mundo ficcional ampliado e pervasivo estimula o envolvimento
dos consumidores com as narrativas a tal ponto que, não raro, são convi-
dados a transportá-lo para seu cotidiano e espaços reais. A transposição
de elementos do mundo ficcional para o real corresponde ao fenômeno
que Jenkins (2008) denominou “extração”, apontando-o como um dos
princípios caracterizadores das narrativas transmídias.
Quando introduz essa ideia ao tratar das estratégias transmídias
nas séries norte-americanas, Jenkins (2008) refere-se, por um lado, ao
consumo material de objetos extraídos do universo diegético, o que
envolve uma gama variada de produtos licenciados (roupas e utensílios
semelhantes aos usados pelos personagens, por exemplo), e, por outro,
a eventos espontâneos ou criados pelo marketing das marcas a partir do
mundo ficcional (performances ou convenções de fãs, por exemplo).
Nada nos impede, porém, de considerar as extrapolações envolvidas
nas ações socioeducativas como um outro modo de extração no qual
o que se “vende” e se leva de um âmbito ao outro são ideias, valores,
comportamentos. As ações socioeducativas estão relacionadas, afinal,
ao que diversos autores chamam de merchandising social3, definindo-o
como a incorporação intencional de temáticas sociais específicas, por
meio de personagens ou enredos, com fins pedagógicos.
Na passagem da noção de mundos possíveis – cujo modo de exis-
tência é meramente potencial (imaginada) – à de construção de mundos –

2
Um bom exemplo disso são as fanfictions.
3
Cf., por exemplo, Lopes (2009) e Schiavo (1995).

136
dotados de uma existência atualizada (concreta) graças à transmidiação –,
a ideia de extração, ao convocar para a cena argumentativa o mundo
real, torna-se um conector essencial entre esses dois modos de pensar
os transbordamentos narrativos inerentes à cooperação interpretativa
demandada, de um modo ou outro, por todo texto.
Assim como na extração de Jenkins (2008), o mundo possível de
Eco (1986) pressupõe, de alguma forma, a existência de uma superpo-
sição entre o ficcional e o mundo real e enciclopédico4 do leitor (motor
do seu jogo imaginativo), o que envolve uma dinâmica de represen-
tações e crenças em que todos esses mundos precisam ser pensados
como construtos culturais diante dos quais autores e leitores negociam
sentidos. Um mundo possível geralmente toma emprestado indivíduos
e as propriedades de um mundo real, que lhe serve de referência (Eco,
1986). Nesse processo, a hipótese sobre o gênero da narrativa tem um
papel decisivo. A telenovela brasileira – notadamente as da Globo5 –
distinguiu-se das demais pelas interseções entre o mundo ficcional e o
mundo real, promovendo, ao seu modo, um tipo de extração que, nesse
gênero televisivo específico, se manifesta sobretudo pela deliberação de
levar para fora das telas conflitos e debates de valores presentes na narra-
tiva. Isso ocorre na relação interdiscursiva com a situação sociopolítica
do país no momento em que a novela está sendo produzida bem como a
partir das ações socioeducativas.
Com o processo de transmidiação da novela, as ações socioedu-
cativas também passaram a contar com manifestações não apenas na
TV, mas também nos conteúdos lançados pela emissora em múltiplas
plataformas. O boca a boca da era digital, propiciado pelo estímulo à
cultura participativa6 e também pela TV social7, é essencial como meio de

4
Cada leitor interpreta os textos com base no conhecimento que compartilha com grupos e
ambientes sociais. O complexo de conhecimentos e crenças sobre o mundo corresponde à
enciclopédia de um indivíduo ou grupo de indivíduos, armazenada na semântica da linguagem.
5
Cf. Lopes (2003).
6
Conjunto variado de possibilidades abertas aos consumidores de maior acesso, produção e
colocação em circulação de conteúdos midiáticos, a partir da digitalização e convergência dos
meios (Fechine et al., 2015).
7
Conversação em rede e em ato em torno de conteúdos televisivos, realizada por meio de
plataformas/tecnologias interativas, atreladas a estratégias das indústrias televisivas e/ou de

137
garantir que o tema abordado na novela seja discutido também nos outros
espaços acessados pelo público, como redes sociais on-line e aplicativos.
Como os temas selecionados para as narrativas ficcionais geralmente
são assuntos sobre os quais não existe consenso na sociedade – como, por
exemplo, homossexualidade, racismo ou estupro –, eles provocam um
debate social capaz de extrapolar as fronteiras da ficção, dando-lhe maior
alcance. As posições e os julgamentos acerca dos temas apresentados por
meio das personagens são frequentemente objeto de controvérsias que
envolvem, inclusive, quem admite em seus comentários não assistir à tele-
novela.8 A produção de controvérsias nos ambientes digitais transforma-se,
assim, em uma das principais estratégias transmídias no agendamento de
temáticas, que, ao se tornarem objeto de ações socioeducativas, dão lugar
a outro modo de experiência de extração nessa era transmídia.
Partindo desses pressupostos, assumimos aqui como desafio entender
as ações socioeducativas como parte integrante dos mundos construídos
pela telenovela e, ainda mais especificamente, como promotoras de ex-
periências de extração dentro do quadro geral das estratégias transmídias
que vêm sendo adotadas pela ficção seriada na Globo. Trata-se de uma
pesquisa de natureza exploratória que, como tal, envolve não só levan-
tamento bibliográfico, mas um esforço para aprofundar o conhecimento
sobre motivações, atitudes, comportamentos e percepções de grupos
sobre um dado assunto (Hair et al., 2014). Em nosso caso, o objetivo foi
compreender as percepções – e, a partir destas, possíveis experiências
de extração – sobre as ações socioeducativas da Globo relacionadas ao
grupo LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, que-
ers, intersex, assexuais e outras possibilidades)9, tomando como objeto
específico a telenovela Segundo Sol (2018). Optamos por essa produção
considerando que a novela estava sendo exibida na faixa das 21h, na qual
costumam ser abordadas temáticas sociais mais controversas, e sua trama
contava com um casal homoafetivo. Como a realização de um grupo

desenvolvimento de software, capazes de proporcionar a experiência de assistir junto a algo.


8
Cf. Lima (2018) e Fechine et al. (2017).
9
Daqui por diante, utilizaremos apenas essa sigla para qualificar todas as referências a esse
segmento social.

138
focal permite aprofundar o conhecimento sobre um tema comum aos
participantes, a partir da sua interação e pluralidade de olhares (Costa,
2011), usamos esse instrumento de pesquisa e reunimos oito integran-
tes de organizações e movimentos sociais pernambucanos engajados à
causa. Concebemos a amostra da pesquisa de forma proposital, ou seja,
selecionamos pessoas consideradas especialistas sobre o tema do estudo
(Hair et al., 2014), como mostra o Quadro 1.

Quadro 1 – Identificação e perfil dos participantes do grupo focal


Identificação Perfil
Homem cis branco, 20 e poucos anos, homossexual. Participa da produção
Participante 1
de um programa de TV que trata sobre visibilidade de LGBTQIA+.
Mulher cis branca, 30 e poucos anos, homossexual. É militante em várias
Participante 2
organizações e envolvida com produção cultural.
Homem cis branco, 30 e poucos anos, homossexual. É advogado e pesqui-
Participante 3
sador do tema.
Mulher de gênero fluido, parda, 20 e poucos anos, homossexual. É organi-
Participante 4
zadora de um evento dirigido a LGBTQIA+.
Mulher cis negra, na faixa dos 50 anos. É professora universitária e pesqui-
Participante 5
sadora do tema.
Mulher trans negra, na faixa dos 30 anos. Atua na diretoria LGBT de uma
Participante 6
instituição de ensino superior.
Participante 7 Mulher cis branca, 20 e poucos anos, homossexual. É artista e ativista.
Participante 8 Mulher cis negra, 40 e poucos anos, homossexual. É pesquisadora do tema.
Fonte: os autores (2018)

O grupo focal foi realizado no dia 19 de outubro de 2018, das 15h20


às 17h, em uma sala da Universidade Federal de Pernambuco. Foi elabo-
rado, previamente, um roteiro semiestruturado com dez questões10 sobre
as ações socioeducativas das telenovelas da Globo, mas com foco mais
específico sobre as personagens Maura (Nanda Costa) e Selma (Carol
Fazu), casal homoafetivo de Segundo Sol.
Para obter mais dados em relação à recepção do casal, optamos
por uma segunda fase do estudo, utilizando como instrumento um
questionário eletrônico, um meio que possibilita uma boa diversidade
de perguntas bem como o anonimato para o respondente. O questionário

10
Durante a realização do grupo focal, outras questões foram introduzidas a partir das falas
dos participantes.

139
circulou nas redes sociais Facebook, WhatsApp e Twitter, sendo enviado
diretamente para pessoas que haviam emitido opiniões sobre a telenovela
nessas plataformas. A circulação também contou com a ajuda de críticos
e colunistas televisivos, como Nilson Xavier (@Teledramaturgia), que
compartilhou para seus seguidores o link de resposta ao questionário. No
total, houve 127 respostas válidas. A amostra não pretende representar a
audiência da telenovela como um todo, mas obter insights e percepções
sobre a população conectada que assistiu à novela.
Em um terceiro momento, a pesquisa contou com a observação dos
perfis da Globo nas redes sociais digitais, bem como dos espectadores de
Segundo Sol em ambientes públicos como Twitter e Instagram, a fim de
verificar as conversações propostas pela emissora sobre o casal homo-
afetivo. Os dados coletados nortearam a análise que propusemos, cujo
percurso exige, inicialmente, uma breve discussão sobre o merchandising
social nas telenovelas da Globo.

1 Merchandising social no mundo das telenovelas

Na telenovela brasileira, a construção de um mundo ficcional que


dialoga diretamente com a realidade objetiva dos seus telespectadores
começa com Beto Rockefeller (1968), da TV Tupi, a partir da qual foram
introduzidas tramas mais críveis e próximas da realidade dos espectadores
(Lopes, 2003). Com Meu Pedacinho de Chão (1971), tratando de anal-
fabetismo de adultos, vacinação e desidratação infantil, a Globo também
começa a incluir nos enredos temáticas sociais e, a partir daí, o mesmo
procedimento é adotado em outras novelas de sucesso ao longo dos anos
1970-1990, chegando até os dias atuais. Balogh (1998, p. 12) considera
que os mundos da telenovela contemporânea funcionam “dentro de uma
espécie de twilight zone entre o real e o ficcional, entre o informativo e
o ficcional”, apostando em um jogo interpretativo que embaça delibe-
radamente essas fronteiras. O merchandising social tornou-se um meio
ainda mais direto de estabelecer essa relação entre a teledramaturgia e o
mundo real, com a clara intenção de difundir conhecimentos, promover
valores e princípios éticos e universais, estimular a mudança de atitudes

140
e a adoção de novos comportamentos e pautar questões de relevância
social, incentivando o debate pela sociedade (Lopes, 2009).
O merchandising social popularizou-se especialmente a partir dos
anos 1990 (Czizewski, 2010). A inclusão de diversas temáticas sociais
nos enredos da teledramaturgia da Globo dão exemplos disso: trabalha-
dores sem-terra (O Rei do Gado, 1996); crianças desaparecidas (Explode
Coração, 1996; Amor Eterno Amor, 2012); doação de órgãos (De Corpo
e Alma, 1992; A Vida da Gente, 2011; Em Família, 2014); dependência
química (Vale Tudo, 1988; O Clone, 2001; Mulheres Apaixonadas, 2003);
violência contra a mulher (Mulheres Apaixonadas, 2003; A Favorita,
2008; Fina Estampa, 2011); direitos dos idosos (Mulheres Apaixonadas,
2003); direitos das empregadas domésticas (Cheias de Charme, 2012);
tráfico de humanos (Salve Jorge, 2012); transfobia (A Força do Querer,
2017); entre outros. Segundo Czizewski (2010), a virada do século fez
com que o merchandising social se tornasse praticamente uma condição
sine qua non das telenovelas, tanto que, em 2011, foi criada a área de
Responsabilidade Social da Globo, que assumiu o desenvolvimento das
ações socioeducativas como uma de suas principais tarefas. A partir daí,
as inserções de cenas com temáticas sociais nas telenovelas se intensi-
ficaram, chegando, em 2017, a 1.591 quadros, dos quais 497 tinham
caráter pedagógico explícito.11
A área de Responsabilidade Social da Globo planeja suas ações
priorizando três grandes temas: educação, direitos humanos e susten-
tabilidade ambiental. Segundo Azeredo (2019, s.p.), as iniciativas “são
sempre articuladas em parceria com organizações e pessoas de referência
nos diversos temas, para garantir que estamos endereçando as questões
centrais dentro de cada agenda”. Embora a curadoria de temáticas en-
volva um esforço de articulação com representantes de grupos sociais
e organizações não governamentais, a cargo desse setor, a prerrogativa
para sua inserção nos enredos é inteiramente dos autores.

Os autores e roteiristas possuem liberdade para escolher tanto


as temáticas que desejam levar ao ar quanto a maneira como

11
Informação dada pela diretora de Responsabilidade Social da Globo, Beatriz Azeredo, no VI
Encontro Obitel Brasil, realizado em 6 de dezembro de 2017, em São Paulo.

141
elas serão abordadas na trama. No entanto, a Responsabilidade
Social está sempre à disposição e buscando oportunidades
para contribuir com as abordagens que envolvem temas
sociais relevantes (Azeredo, 2019, s.p.).

Embora não haja um direcionamento temático institucional12, é


notório o investimento sistemático da Globo em ações socioeducativas
relacionadas a questões de gênero e sexualidade em sua teledramaturgia.
Para se ter uma ideia, entre 2011 e 2018, 33 telenovelas possuíam per-
sonagens LGBTQIA+, sendo a maioria homens gays. A maior atenção
dada a essa temática começou a partir dos anos 2000, quando se observa
também um maior reconhecimento dos movimentos sociais com atuação
nas questões de gênero e sexualidade. Além de maior visibilidade, a cons-
trução dos personagens no espectro LGBTQIA+ passa a ser orientada pela
preocupação em evitar as representações caricaturais do passado, mas
nem sempre escapa dos estereótipos. O relacionamento homoafetivo das
personagens Maura e Selma, na novela Segundo Sol, é um caso curioso
para pensarmos as representações relacionadas a LGBTQIA+ dentro de
uma ação socioeducativa que busca tirar proveito da transmidiação para
extrair das situações apresentadas no mundo ficcional elementos que
promovam discussões construtivas no mundo real.

2 Ações socioeducativas em Segundo Sol: temática LGBTQIA+ em cena

Segundo Sol foi uma novela das 21h exibida entre 14 de maio e 9 de
novembro de 2018, escrita por João Emanuel Carneiro, com colaboração
de Márcia Prates, Fábio Mendes, Lílian Garcia e Eliane Garcia. Ambien-
tada na Bahia, conta a história de um cantor de axé que vê sua carreira
decolar após ser dado como morto. Na trama, Maura é uma policial civil
que mora com os pais e com a irmã, Rosa, uma das protagonistas. Em
segredo, ela mantém um caso com a vizinha, Selma. Quando o marido
de Selma morre, elas passam a planejar uma vida juntas, mas isso exige

12
Na entrevista, Beatriz Azeredo negou qualquer privilégio à temática LGBTQIA+ e atribuiu
sua abordagem à sensibilidade da empresa às mudanças sociais. 

142
que revelem à família sua orientação sexual. É em torno dessa revelação
e dos conflitos que Maura enfrenta nesse processo que se concentram as
cenas com objetivo socioeducativo mais direto. Quando Maura fala da
sua orientação sexual para a irmã, as personagens protagonizam cenas
de aceitação. Mas quando a mãe, Nice, descobre o relacionamento dela
com Selma, a novela retrata a frequente rejeição familiar e esforça-se
para, através da dramaticidade da cena, sensibilizar os espectadores sobre
o sofrimento imposto aos filhos por pais preconceituosos (Figura 1). O
caráter socioeducativo da situação fica ainda mais evidente depois que,
no decorrer da trama, a mãe muda de atitude e apoia a filha.

Figura 1 – Transcrição da cena de 5 de julho de 2018

Fonte: novela Segundo Sol (2018)

Outro momento de tensão na narrativa de revelação acontece quando


o pai de Maura, Agenor, recebe, por terceiros, a informação de que a
filha é lésbica e reage violentamente. Ele vai até o local de trabalho de
Maura e a humilha publicamente. Transtornado, diz que a filha “é uma
fanchona, uma mulher macho”.13 Apesar dos protestos da esposa, Agenor
expulsa a filha de casa, e ela finalmente vai morar com Selma.

13
Trecho de cena que foi ao ar no capítulo exibido em 13 de julho de 2018.

143
Rosa tenta ajudar os pais a aceitarem a orientação sexual da irmã,
numa cena que tem claramente uma finalidade “pedagógica” (Figura 2),
chamando atenção para as liberdades individuais. A finalidade socioe-
ducativa é reforçada ainda porque a “defesa” de Maura é assumida por
uma das principais e mais carismáticas personagens da novela. Com suas
posições em favor da irmã, Rosa torna-se uma espécie de porta-voz da
causa LGBTQIA+ na novela.

Figura 2 – Transcrição da cena de 17 de julho de 2018

Fonte: novela Segundo Sol (2018)

Quando as cenas relacionadas à revelação da orientação sexual de


Maura, como as exemplificadas aqui, foram apresentadas aos partici-
pantes do grupo focal, eles foram unânimes no reconhecimento do seu
potencial para fomentar o debate social, na medida em que davam visibi-
lidade ao tema. Mas a maior parte demonstrou desconfiança em relação
ao seu impacto socioeducativo. As desconfianças remetiam ao modo de
representação das personagens, que, apesar do esforço para derrubar es-
tereótipos, poderiam estar involuntariamente alimentando-os. As críticas

144
dirigiram-se, sobretudo, ao vitimismo na construção das personagens
homossexuais e ao seu aprisionamento nesse papel temático. O processo
de revelação de Maura se deu de modo principalmente passivo – irmã,
mãe e pai descobriram a orientação sexual à sua revelia – e negativo.
Na opinião do grupo, personagens LGBTQIA+ nas novelas são
definidos unicamente em função de sua identidade sexual, sem outro
papel na trama, o que produz um certo exotismo na representação da
orientação sexual, sempre tratada como algo incomum. Nesse sentido,
o participante 4 afirmou: “todo o roteiro é baseado nesse fato, não se
complexifica a vida daquela pessoa. [...] O drama vai ser sobre ela ser
lésbica e o quanto é sofrido e complicado. [...] Apresentar essas pessoas
com uma ‘vida comum’ seria mais efetivo.
Outro ponto destacado na construção das personagens foi a sua
obediência ainda a certos padrões normativos: “[...] as lésbicas que
aparecem nas novelas elas são aquele estereótipo do que se chamava a
‘lésbica chique’ [alguém interrompe: ‘Lésbica gourmet’. Todos riem.]
[...] Tem modelos de como se pode ser [homossexual]” (participante 5);
“pode ser gay, mas não pode ser afeminado. Pode ser sapatão, mas não
precisa ser macho” (participante 7).
De modo geral, os participantes também mostraram posições
cambiantes sobre o realismo das cenas de revelação. Ao mesmo tempo
que elogiaram a proximidade com o mundo real na ficcionalização dos
conflitos familiares envolvidos no processo de revelação da orientação
sexual, também fizeram críticas à ênfase dada às situações e julgamentos
negativos. Mesmo que colaborem para sensibilizar, as representações
dos comportamentos preconceituosos costumam ganhar tanto espaço na
trama que acabam relegando a um segundo plano as situações de acolhi-
mento, cuja encenação, embora dotada de menor dramaticidade, poderia
“educar” para a aceitação. Constatou-se no grupo, de modo geral, uma
hesitação entre a exigência de um certo “didatismo” nas encenações e
de fidedignidade ao cotidiano.
Essa tensão acerca dos limites entre o “realismo” e “o didatismo”
em uma encenação que pretende ser socioeducativa reapareceu na con-
trovérsia provocada por um desdobramento curioso da trama. Maura

145
envolve-se com Ionan, seu amigo e doador de sêmen para o casal, que
sonhava em ter filhos, formando com ele, durante certo momento, um
controverso triângulo amoroso. Embora alguns participantes do grupo
tenham considerado importante dar visibilidade a orientações sexuais
mais fluídas, outros lembraram que o relacionamento de Maura com
Ionan poderia sugerir uma espécie de “cura gay”, pois o que faltava para
ela deixar de ser lésbica era “encontrar o homem certo”. De modo geral,
o grupo considerou a situação “pouco didática”: “Pro povão [...] vai ser
uma bagunça né [risos]... ser sapatão... ser bi, pior ainda, e agora um o
casal a três, aí é que piorou a situação. Acho que confunde a cabeça das
pessoas” (participante 6).
Embora, no final, Maura e Selma terminem juntas, o triângulo
amoroso também provocou controvérsias nas redes sociais entre os
espectadores da novela. Os posicionamentos revelam, igualmente, a
mesma preocupação com a incompreensão social da situação retratada
pela novela, já que a personagem foi apresentada desde o início da trama
como lésbica, e não como bissexual (Figura 3).

Figura 3 – Conversação no Twitter discute


o papel socioeducativo da telenovela

Fonte: Twitter (2018)

146
Em meio às controvérsias que provocou – e em função delas próprias –,
a história de Maura e Selma, especialmente na primeira fase do arco
narrativo, deixa evidente o caráter socioeducativo dessas representações
nas telenovelas e sua potencialidade para agendar temáticas de interesse
público e promover experiências de extração. O próprio comportamento
dos participantes do grupo focal demonstrou esse potencial, pois fre-
quentemente passavam do comentário das cenas exibidas ao relato de
suas experiências pessoais, mesclando, ainda que momentaneamente e
em uma situação controlada por pesquisadores, o mundo ficcional ao
mundo real. Além das conversações on-line – monitoradas de modo
exploratório, mas ao longo de toda a exibição da trama –, o questionário
eletrônico, aplicado após o término da novela, confirmou nossa postu-
lação acerca do merchandising social como um recurso que favorece o
exercício de extração.
Entre as 127 respostas válidas, 87,4% concordam com a ideia de
que a história de amor de Maura e Selma é algo que acontece na vida
real. Nesse sentido, grande parte afirmou que a trama ajudou a sentir
algum grau de empatia por casais do mesmo sexo (70%) e que as ce-
nas da narrativa de revelação produziram um efeito de sensibilização
(72,4%). Para a maioria da amostra (92,1%), o preconceito sofrido por
Maura despertou um processo de reflexão sobre como aquilo acontece
na vida real. Esse processo, para 51,18% dos entrevistados, também foi
percebido nos familiares e amigos que assistiram à história do casal.
Entre os respondentes, 71,9% se identificam com o gênero feminino,
enquanto 25,8% com o gênero masculino. Com relação à faixa etária,
os respondentes se concentram em três principais grupos: 50% têm entre
18 e 25 anos; 20,3% têm entre 26 e 30 anos; e 14,8% têm entre 31 e 35
anos. A maior parte afirmou ter contato direto com a comunidade LGB-
TQIA+; apenas 13,3% dos respondentes disseram não ter essa vivência.
Segundo 4,72% dos respondentes, histórias como a de Maura e Selma
não deveriam passar na televisão; a grande maioria da amostra (91,33%),
no entanto, discorda dessa ideia.
A efetividade das ações socioeducativas é de difícil aferição porque
envolve muitas mediações sociais em diferentes tempos e lugares, mas
as respostas são indícios de que essas iniciativas podem contribuir, ainda

147
que de modo efêmero e pontual, para o debate público. Para a Globo, o
balizador e o “termômetro” do impacto dessas ações, segundo Azeredo
(2019), é a repercussão nas suas redes sociais, os contatos na Central de
Atendimento ao Telespectador e o retorno dos parceiros. São exemplos
desses indícios: o crescimento no número de doações de órgãos após a
abordagem da temática em De Corpo e Alma (1992) e Em Família (2014);
o aumento da demanda por exames preventivos de câncer de mama des-
tacados por História de Amor (1995); a campanha de Explode Coração
(1995) que ajudou a localizar mais de 60 crianças desaparecidas; e a
aprovação do Estatuto do Idoso a partir da pressão popular influenciada
por Mulheres Apaixonadas (2003). A proposta de estimular debates sobre
temas de interesse público – movida pela expectativa de que estes tenham
impactos sociais – encontra nas estratégias transmídias adotadas pelas
telenovelas um importante aliado, não apenas por propiciar o seu agen-
damento em diferentes meios, mas também por permitir o envolvimento
dos telespectadores nas discussões a partir das redes sociais digitais.

3 Ações socioeducativas e estratégias transmídias em Segundo Sol

Para ampliar a discussão sobre as temáticas de interesse social


agendadas pelas telenovelas, Azeredo (2019) assegura que o setor de
responsabilidade social trabalha com o que denomina “metodologia
360°”, cuja operacionalização depende do modelo de produção trans-
mídia que já vem sendo adotado sistematicamente pela emissora. Esse
modelo envolve estratégias de expansão e propagação14 nas plataformas
digitais de conteúdos associados ao enredo e personagens da novela à
medida que os capítulos vão sendo exibidos na TV. A metodologia 360°
envolve também a oferta dos conteúdos socioeducativos nos programas
jornalísticos e de entretenimento da emissora, além de campanhas espe-
cíficas sobre o tema em variados meios e formatos. O acompanhamento

14
As estratégias de propagação repercutem ou reverberam o texto de referência (a novela, no
caso) em outras mídias/plataformas, retroalimentando o interesse de quem o acompanha. Já as
estratégias de expansão envolvem procedimentos/ações que desdobram a narrativa em outros
meios (Fechine et al., 2013).

148
das ações socioeducativas relacionadas à temática LGBTQIA+ em
Segundo Sol mostrou que sua operacionalização ocorreu, sobretudo, a
partir estratégias transmídias de propagação, empregando os perfis da
emissora no Twitter e no Facebook.
Nas ações de live tweeting, nas quais os perfis @Gshow e @rede-
globo comentam os eventos narrativos em sincronia com a exibição da
telenovela, essas contas institucionais assumem a personalidade de um
telespectador. Nas cenas que envolviam Maura e Selma, as publicações
demonstravam empatia com o casal, comemorando as conquistas e
solidarizando-se com os momentos de sofrimento (Figura 4). A emissora
realizou ainda transmissões ao vivo no Facebook com as atrizes Carol
Fazu (Selma) e Nanda Costa (Maura), nas quais discutiram a trama e o
futuro do casal e responderam a perguntas dos espectadores (Figura 5).
As matérias de bastidores da telenovela exploraram a relação entre ficção
e realidade, de modo a permitir a discussão da temática. A atriz Nanda
Costa, durante a exibição da telenovela, assumiu sua orientação sexual
e seu relacionamento com a percussionista Lan Lanh. As duas estiveram
no programa Conversa com Bial em 3 de agosto de 2018 para contar sua
história de amor da vida real. No Encontro com Fátima Bernardes de
11 de outubro, Carol Fazu comentou o processo de reconciliação entre
Maura e Selma, discutindo os relacionamentos homoafetivos de forma
naturalizada, ainda que de modo superficial (Figura 6).

Figura 4 – Live tweeting: Rosa conversa com Nice e oferece apoio


incondicional a Maura; Globo se emociona

Fonte: perfil da Globo no Twitter (2018)

149
Figura 5 – Chat com elenco: a atriz Carol Fazu participou de transmis-
são ao vivo e respondeu a perguntas de fãs

Fonte: perfil da Globo no Facebook (2018)

Figura 6 – Encontro com Fátima Bernardes: a atriz Carol Fazu co-


menta o momento de Maura e Selma na trama

Fonte: Perfil de Encontro com Fátima Bernardes no Twitter (2018)

Em outros programas da grade não foi observada a discussão da


temática de modo articulado com a telenovela. Esse aspecto também
não passou desapercebido aos participantes do grupo focal. Eles foram
unânimes ao registrarem a importância de as ações socioeducativas es-
tabelecerem uma relação interdiscursiva com outros produtos, inclusive
não ficcionais, da grade de programação, de tal modo que a legitimação
de direitos integre todo o discurso da empresa: “De nada adianta o esforço

150
de uma telenovela em conscientizar as pessoas contra a LGBTfobia se
os demais programas da grade seguem reforçando estereótipos ou dando
espaço para figuras preconceituosas” (participante 4).

[...] Precisa de um investimento da própria emissora para


que não fique apenas no caso que é retratado na própria no-
vela. [...] O debate poderia acontecer em outros programas,
nas ações transmídias etc. O problema é que eu penso que
isso não é muito utilizado, utiliza mais a polêmica do que o
conteúdo em si. Apresentar questões lésbicas, gays, questões
da sexualidade, a maior parte das novelas apresenta, agora o
que é que se faz com isso? (participante 5).

Vale destacar ainda que os conteúdos publicados pela Globo tiveram


predominantemente um caráter mais descritivo, dando visibilidade à te-
mática LGBTQIA+ nas redes, mas aprofundando pouco a abordagem so-
cioeducativa nos ambientes digitais. Quando a novela tratou da revelação
da orientação sexual de Maura, os perfis oficiais da Globo aumentaram
as publicações, provocando controvérsias que envolveram, inclusive,
pessoas que admitiam em seus comentários que não assistiam à teleno-
vela. Ainda que não tenhamos observado provocações tão constantes e
diretas aos espectadores, como ocorreu em outras produções posteriores
da emissora15, pelo caráter inerentemente controverso da temática LGB-
TQIA+, as cenas envolvendo Maura e Selma deram origem a uma disputa
de valores e discussões morais que configuravam uma experiência clara
de extração. Essas controvérsias, sustentadas pelo universo ficcional
transmídia da telenovela (Lima, 2018), testemunhavam um contínuo
deslocamento do mundo ficcional para o mundo real, dando lugar ao
questionamento de comportamentos e valores, que é a matéria-prima de
toda ação socioeducativa. Portanto, o acionamento dessas temáticas nos
ambientes digitais mobilizou os próprios espectadores em torno dessas
discussões com o objetivo de persuadir pessoas com sistema de valores

15
Um bom exemplo foram as ações socioeducativas em Malhação: Vidas Brasileiras (2018-
2019), temporada que incluiu personagens gays, trans e bissexuais.

151
contrário (conservadores, intolerantes, homofóbicos etc.), concretizando
o caráter socioeducativo da ação. Por vezes, o tom dessas conversações
ganhou contornos de agressividade e ofensa, o que também é uma ca-
racterística das interações controversas nas redes sociais. Destacamos
alguns desses comentários nas figuras 7, 8 e 9.

Figura 7 – Reações à cena em que Agenor


descobre a sexualidade de Maura

Fonte: perfil da Globo no Facebook (2018)

Figura 8 – Reações à descoberta de Nice

Fonte: perfil da Globo no Facebook (2018)

152
Figura 9 – Reações à cena de declaração de amor de Maura a Selma

Fonte: perfil da Globo no Facebook (2018)

Considerações finais

Ao estimular a participação dos espectadores pelas plataformas di-


gitais interativas e promover a articulação de conteúdos entre diferentes
plataformas, o modelo de produção transmídia demonstra um potencial
para enriquecer e reforçar o impacto das ações socioeducativas (ou mer-
chandising social), que se tornaram um marco da telenovela brasileira
popularizada pela Globo. Esse potencial está diretamente ligado ao modo
como as estratégias transmídias ampliam o universo narrativo para além
da tela da TV, ofertando conteúdos complementares e/ou associados à
telenovela e favorecendo, com isso, o envolvimento dos espectadores
com o universo imaginário que seu enredo propõe. Quando esse mundo

153
ficcional envolvente e pervasivo explora estrategicamente temáticas que
mobilizam os espectadores no seu mundo real, são dadas condições mais
favoráveis para que esses construam suas proposições interpretativas,
extraindo elementos de uma dimensão da experiência a outra. Em um
cenário como esse, as ações socioeducativas encontram um terreno fértil
para produzir o impacto social que almejam. Foi à luz desses pressupostos
que observamos as ações socioeducativas na telenovela Segundo Sol, que
colocou em cena um curioso relacionamento homoafetivo e, por meio
deles, pautou a temática LGBTQIA+.
As ações socioeducativas na telenovela contribuíram para a discus-
são do tema, embora não haja meios de garantir que a intenção peda-
gógica produziu efeitos reais. O conjunto de iniciativas descrito atesta
a circulação dos temas para além do que estava sendo apresentado na
narrativa principal do produto na TV, mas as controvérsias provocadas
pelo relacionamento entre as personagens Maura e Selma deveram-se
mais a iniciativas dos próprios espectadores do que a uma atuação mais
direta e provocativa da Globo nas redes sociais. O realismo das cenas
de conflito e sofrimento em torno da revelação da orientação sexual
de Maura foi responsável pelos momentos mais mobilizadores. Entre
os participantes do grupo focal houve, no entanto, a percepção de que,
para atender à finalidade socioeducativa pretendida, a novela deveria
investir menos na encenação das posições homofóbicas, que ocuparam
mais tempo e foram dotadas de maior dramaticidade, e enfatizar mais
os momentos em que os preconceitos eram rebatidos e as liberdades in-
dividuais eram defendidas. Ficou evidente nas discussões a necessidade
de se buscar, nas ações socioeducativas, a justa medida entre o realismo
(que pode reforçar argumentos homofóbicos ao encená-los) e o didatismo
(que pode provocar o desinteresse pela trama).
Os participantes do grupo focal enfatizaram ainda a necessidade de
coerência no discurso em defesa de direitos entre os programas e nos mais
diversos gêneros televisuais, incluindo o telejornalismo, especialmente se
o propósito socioeducativo é uma premissa assumida pela emissora. Essa
necessária interdiscursividade realçada pelo grupo aponta para o potencial
que as propostas de extração, caracterizadoras dos projetos transmídias,
podem ter no desenvolvimento de ações socioeducativas (campanhas ou

154
eventos associados ao tema, por exemplo), o que justificaria um maior
investimento nesses procedimentos. Apesar das limitações apontadas, a
contribuição dessas ações para tornar os LGBTQIA+ mais presentes no
cotidiano dos segmentos sociais mais conservadores foi reconhecida.
Os resultados obtidos nas entrevistas também são um indicativo
da repercussão produzida pelas cenas de caráter socioeducativo, já que
a grande maioria dos respondentes (92,1%) afirmou que o preconceito
sofrido por Maura despertou um processo de reflexão sobre situações
semelhantes que ocorrem na vida real. Destacamos, por fim, o modo como
a participação dos espectadores nas controvérsias desencadeadas pela
trama nas redes sociais e as experiências de extração vivenciadas a partir
dessas discussões confirmam a potencialidade do modelo de produção
transmídia no desenvolvimento de ações socioeducativas ao transformar
as possibilidades interpretativas oferecidas pelo enredo e personagens
das telenovelas no motor da participação do público. Nesse modelo, a
“construção de mundos” operada por toda telenovela pode ganhar ainda
mais potência. Cabe aos produtores explorá-la.

Referências

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Janeiro, 26 de fevereiro 2019. Entrevista concedida por e-mail.
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Olhares, n. 1, v. 1, 1998.
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CZIZEWSKI, C. C. Telenovela, agendamento e temáticas sociais: uma relação
sistêmica e progressiva. Revista Temática, v. 7, n. 10, 2010. Disponível em: http://
www.insite.pro.br/2010/outubro/telenovela_agendamento_tematicas.pdf. Acesso
em: 20 jan. 2019.
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M. I. V. (Org.). Estratégias de transmidiação na ficção televisiva Brasileira. Porto
Alegre: Sulina, 2013.

155
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FECHINE, Y. et al. TV social como estratégia de produção na ficção seriada
da Globo: a controvérsia como recurso. In: LOPES, M. I. V. (Org.). Por uma teoria
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HAIR, J. F. et al. P. Fundamentos de pesquisa de marketing. Porto Alegre:
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das controvérsias. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2018.
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LOPES, M. I. V. Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Comu-
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SEMPRINI, A. A marca pós-moderna: poder e fragilidade da marca na so-
ciedade contemporânea. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2006.

156
Design ficcional, mundos possíveis e narrativas
transmídia: modalidades de recepção inclusiva na
série Sob Pressão

João Massarolo (coord.)


Dario Mesquita (vice-coord.)

Colaboradores1:
Naiá S. Câmara
Gustavo Padovani
Anna P. T. Araújo
Luiz E. M. Cunha
Danilo Mecenas
Júlio C. R. Santos
Yan M. Nicolai

Introdução

Historicamente, a televisão é um aparelho usado para assistir à


programação das emissoras enquanto fazemos nossas atividades diárias,
seja na hora do jantar ou entre as conversas familiares. Ao contrário do
cinema e do teatro, que dependem do ritual da sala escura para criar
uma experiência imersiva, à parte do cotidiano, a televisão é integrada
ao dia a dia e não requer nenhum ritual específico para seguir a sua pro-
gramação. Para Martín-Barbero (2009, p. 297), a televisão dialoga com
o telespectador, exibindo rostos que não são nem “próximos, amigáveis;
nem fascinantes, nem vulgares”, usando um discurso que “familiariza
tudo e torna ‘próximo’ até o que existe de mais remoto e assim se torna
incapaz de enfrentar os preconceitos mais familiares”.

1
Pesquisadores do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS/
UFSCar).

157
A coexistência entre a realidade cotidiana e o mundo televisivo
torna-se intensa quando o seu conteúdo começa a circular para além da
sala de TV. Esse processo começou nos anos 1980, quando as extensões
de tela se tornaram “uma parte essencial das novas mídias, seguindo uma
trajetória que continuaria nas próximas décadas. Entre as expansões,
encontramos a conexão do aparelho de televisão com o videocassete e o
console de videogame” (Casetti, 2015, p. 161). A produção e a propagação
de conteúdos televisivos nas plataformas2 (como as redes sociais e os
serviços de vídeo sob demanda) aproximam a televisão das empresas de
tecnologia, que buscam oferecer uma recepção imersiva para o público,
principalmente pelo incentivo às maratonas e o uso estratégico de tec-
nologias de monitoramento. No entanto, a televisão conectada expande
essa noção pelas interfaces das plataformas sociais, que atuam como
extensões auxiliares dos programas.
Para Gillespie (2010, p. 348), a convergência entre conglomerados
tradicionais de comunicação e as empresas de tecnologia permite que
plataformas ofereçam “serviços on-line de intermediários de conteú-
do” capazes de gerenciar os grandes fluxos de informações e de trocas
(comerciais, culturais, subjetivas). Para se inserir nesse novo cenário,
a Globo criou a sua plataforma televisiva, a Globoplay.3 Como explica
Jorge Nóbrega, diretor-executivo da emissora, em entrevista ao Valor
Econômico, “hoje não importa só a qualidade do conteúdo, mas também
a experiência do espectador: como consome, onde consome, associado
a quê” (Rosa, 2019, s.p.).
Para Gauthier (2018, p. 14), essa nova prática de consumo, deno-
minada recepção inclusiva, “torna possível a coexistência de mundos (a
realidade cotidiana do sujeito e o mundo ficcional) e permite conectá-los
por meio das interfaces das redes sociais”. Nas práticas transmídia, a

2
Para Nick Srnicek (2017), plataformas são aplicações que proveem uma infraestrutura básica
para a mediação entre dois grupos diferentes e funcionam como intermediários entre agentes
diversos: consumidores, publicidade, prestadores de serviços, produtores, fornecedores e ainda
objetos físicos.
3
Serviço de vídeo sob demanda criado em 2015 pela Globo, transpondo sua grade de progra-
mação para a internet, com acesso gratuito para programas jornalísticos e pago (por assinatura)
para os vídeos integrais de demais programas.

158
relação de coexistência entre mundos ocorre pelo uso estratégico que o
público faz de perfis de personagens nas redes sociais para criar novas
formas de diálogo com a obra, não apenas para as personagens exporem
sua vida íntima nas plataformas sociais, mas também para “comentarem
assuntos atuais e fenômenos culturais contemporâneos” (Gauthier, 2018,
p. 14).
A recepção inclusiva, ao preconizar a coexistência de mundos,
complementa e expande a definição de Boni (2017, p. 10) para recepção
transmídia: “um mundo é construído por redes de especulações, interpre-
tações e usos, tornando-se assim uma visão de mundo compartilhada”.
Em 2009, a Globo lançou blogs de personagens nas telenovelas Caminho
das Índias (2009)4 e Viver a Vida (2009-2010)5 e, mais recentemente,
na telenovela A Dona do Pedaço (2019) – um perfil no Instagram da
personagem Vivi Guedes (Paolla Oliveira).6
Nesse sentido, este capítulo faz um estudo sobre as modalidades de
recepção inclusiva da série médica Sob Pressão (Globo, 2017-2019)7,
em especial a terceira temporada, adaptada livremente do livro Sob
Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro (2014), de autoria
do cirurgião Márcio Maranhão e Karla Monteiro.8 Sob Pressão é uma
série médica e, como tal, é influenciada pela estrutura procedural9 dos
seriados médicos norte-americanos, tais como Plantão Médico (NBC,
1994-2009) e Grey’s Anatomy (ABC, 2005-atual), com a qual compartilha
a exibição de situações peculiares, exploração de dramas pessoais dos
médicos e casos emergenciais.

4
O blog pertencia ao personagem Indra (André Arteche), um carioca apaixonado pela cultura
indiana.
5
Em “Sonhos de Luciana”, a personagem interpretada pela atriz Aline Moraes relata seu dia a
dia como tetraplégica após um acidente de ônibus.
6
Disponível em: https://www.instagram.com/estiloviviguedes/.
7
A primeira temporada da série Sob Pressão estreou em horário nobre na Globo em 2017, numa
coprodução com a Conspiração Filmes, com roteiro de Jorge Furtado e direção de Andrucha
Waddington.
8
O livro foi publicado pela editora Globo Livros em 2014.
9
Melina Meimaridis (2017, p. 43) define o formato procedural como “um modelo narrativo
onde os episódios da série apresentam narrativas independentes umas das outras. Cada episódio
contém uma situação específica que os personagens principais devem solucionar até o seu fim.
Modelo geralmente associado ao gênero dos workplace dramas.

159
De certo modo, o piloto da série foi desenvolvido em 2016, quando
o mundo ficcional que retrata a trajetória do jovem médico Evandro e sua
equipe foi transposto para o filme Sob Pressão (2016)10, uma coprodução
com a Conspiração Filmes, com roteiro de Jorge Furtado e direção de
Andrucha Waddington. Na perspectiva da prática transmídia, os mundos
possíveis subjacentes ao mundo ficcional do filme possibilitam ao Dr.
Evandro vivenciar experiências significativas da rotina de uma equipe
médica que, como nas situações relatadas no livro, vive os conflitos e dra-
mas da saúde pública no Brasil, concomitante com seus dramas pessoais.
Pretende-se, assim, analisar as modalidades de recepção inclusiva,
explorando o potencial dos mundos possíveis de expansão das frontei-
ras da ficção para o campo das narrativas transmídia. Busca-se também
verificar a contribuição dos objetos de design para a construção de uma
lógica interna do mundo ficcional da série médica Sob Pressão.

1 Modalidades de recepção inclusiva e os mundos sob pressão

Segundo Ryan (2005, p. 449), mundos possíveis são espaços de cons-


trução das relações de acessibilidade entre o mundo ficcional e o mundo
real, mas essas relações dependem “não apenas dos princípios lógicos,
mas também das leis físicas e da causalidade material”. Dessa perspec-
tiva, mundos ficcionais podem ser realistas ou fantásticos, dependendo
se os eventos que eles relacionam podem ou não ocorrer fisicamente no
mundo real. A estética realista do mundo ficcional da série Sob Pressão
organiza e ordena o que é necessário existir no mundo para que ele seja
crível e verossímil. Nessa perspectiva, uma série de enunciados factíveis
povoam as margens do mundo ficcional, o que ajuda a explicar ou retificar
as práticas sociais da série.
O mundo ficcional de Sob Pressão possui existência própria e au-
tônoma, transitando entre o mundo concreto e as formas de vida de um
médico da saúde pública brasileira e sua rotina em hospitais. O formato

10
O filme encontra-se disponível para aluguel no Net Now no endereço: https://www.nowonline.
com.br/filme/sob-pressao/76930.

160
procedural da série contribui para criar relações de acessibilidade entre
o verossímil e o inverossímil dos mundos possíveis, evocando referên-
cias que configuram as possibilidades físicas e históricas dos hospitais
públicos brasileiros: cenários, práticas médicas e pacientes.
Dessa perspectiva, os mundos possíveis construídos estabelecem
as relações de acessibilidade entre o mundo ficcional e a realidade con-
creta, tal como o público a experimenta. Assim, os mundos possíveis
de Sob Pressão, ao serem mobiliados com os dados das experiências
brasileiras com a saúde pública, propiciam práticas de ressignificações
das experiências sociais e políticas do público em seu cotidiano. Essas
estratégias criam o efeito de metalepses, provocando, segundo Genette
(1972, p. 245), a ultrapassagem da “fronteira movediça, mas sagrada,
entre dois mundos: aquele em que se conta e aquele de que se conta”.
O efeito metalepses cria uma impressão da presença real dos mundos
fictícios de uma narrativa, gerando um efeito de inversão: se antes as
estruturas dos mundos ficcionais convencionais retratavam a realidade,
com as práticas de recepção inclusiva é o mundo ficcional que atravessa
a vida cotidiana.
A construção do mundo Sob Pressão inicia-se pela publicação do
livro que descreve a formação profissional do médico Márcio Maranhão,
em relato à jornalista Karla Monteiro, narrando a sua experiência na
saúde pública na cidade do Rio de Janeiro até o momento de sua exo-
neração. No entanto, não há uma relação direta entre o livro, o filme e a
série – personagens como Evandro e Carolina aparecem apenas no filme
e na série, mas assim mesmo apresentam linhas temporais distintas. No
primeiro episódio da série, por exemplo, os personagens se desconhecem
e são reapresentados ao público.
O livro apresenta uma narrativa híbrida, mescla de discurso jorna-
lístico e romance autobiográfico para reconstruir experiências de vida
no passado, enquanto no presente a estrutura narrativa se assemelha a
uma entrevista jornalística. Por outro lado, na série, a complexidade de
personagens ganha relevo e destaque narrativo, como, por exemplo, as
cenas de automutilação da personagem Carolina. A série organiza-se
com a mesma estrutura do filme: um arco narrativo principal que gira

161
em torno da linha narrativa do protagonista (Evandro), que se desenrola
ao longo dos episódios, além dos casos médicos de cada episódio e o dia
a dia do hospital. No filme e na série, observa-se, em alguns diálogos
e nas cartelas inseridas entre os créditos finais de orientações à saúde,
uma lógica de merchandising social, entendido como um espaço em que
o público “irá procurar expressar a sua opinião, provocando mudanças
no debate público, controlado pelas grandes corporações de mídia.”
(Massarolo; Padovani, 2018).
Desse modo, os mundos possíveis configuram para o público uma
realidade social subjacente ao mundo ficcional, que direciona as suas
experiências, fazendo referências a aspectos históricos, políticos, econô-
micos e sociais, que criam pistas de acessibilidade ao mundo real. Para
a compreensão desses processos são mobilizados regimes de crenças
(fazer-crer), bem como o contrato fiduciário que reforça a dinâmica da
realidade concreta.

2 Objetos de design ficcional sob pressão

A noção de construção do mundo ficcional é importante para com-


preender os processos de criação nas plataformas, caracterizado pela
fluidez e a fragmentação dos ambientes midiáticos, que são mantidos
em equilíbrio “pela crescente relevância dos fenômenos de agregação,
serialização e de franquia” (Boni, 2017, p. 9). O uso generalizado do
termo mundo deve-se, em grande parte, às discussões sobre o conceito de
construção de mundo, preconizado por Jenkins, como um dos elementos
fundamentais das narrativas transmídia. Para Jenkins (2008, p. 158),
“cada vez mais, as narrativas estão se tornando a ‘arte da construção de
mundos’, à medida que os artistas criam ambientes atraentes que não
podem ser completamente explorados ou esgotados em uma única obra,
ou mesmo em uma única mídia”.
Na prática transmídia, a construção de um mundo ficcional agrega
conceitos de design ficcional que alteram e modificam a narrativa con-
vencional, criando mundos com características próprias em termos de
cultura, vestuário, alimentação, religião, entre outras. O termo design

162
ficcional surge no campo tecnológico e é apropriado pelo campo de
estudos da Interface Humano-Computador (IHC). Para Coulton et al.
(2017), o design ficcional se refere a protótipos de objetos imaginários e
como as suas propriedades interferem em um contexto ficcional. Aplicado
à construção de mundos, o design ficcional compartilha uma “coleção
de artefatos que, quando visualizados juntos, constroem um mundo
ficcional” (Coulton et al., 2017, p. 16), estabelecendo uma coerência
interna de como esses objetos de design diegéticos interagem com os
personagens, em função de uma narrativa a ser desenvolvida.
No longa-metragem Sob Pressão (2016), de Andrucha Waddington,
a trama do filme se desenvolve num hospital público, localizado ao lado
do ficcional Morro da Convenção, no Rio de Janeiro, e é mobiliado por
objetos hospitalares, porém, em condições precárias. Na cirurgia de
emergência de um traficante, por exemplo, a médica Carolina (Marjorie
Estiano) utiliza uma luva de látex de forma improvisada como torniquete
para encontrar uma veia no paciente e aplicar a anestesia (Figura 1).

Figura 1 – Luva de látex é utilizada no lugar do torniquete

Fonte: reprodução/Globo

No clímax do filme, o diretor do hospital, Samuel Oliveira Filho


(Stepan Nercessian), sofre um ataque cardíaco após confrontar dois
traficantes. Para salvar o colega, que precisa passar por uma cirurgia
complexa, o médico Evandro (Júlio Andrade) toma a decisão de recu-
perar uma antiga máquina de circulação extracorpórea (Figura 2), para
substituição temporária da função do coração e dos pulmões durante o
procedimento cirúrgico. A máquina encontra-se desativada no depósito

163
do hospital, em péssimas condições, com vazamento de ar na tubulação,
mas, mesmo assim, o equipamento é utilizado com sucesso na cirurgia.

Figura 2 – Antiga máquina de circulação extracorpórea

Fonte: reprodução/Globo

As soluções improvisadas marcam também a série de TV. No epi-


sódio de estreia, antes de uma cirurgia, o médico Evandro improvisa
uma mangueira de jardim para realizar a drenagem de sangue em uma
grávida vítima de atropelamento (Figura 3).

Figura 3 – Médico Evandro utiliza um pedaço de mangueira de jardim


para realizar uma drenagem de sangue

Fonte: reprodução/Globo

No terceiro episódio da terceira temporada, exibida em 2019, Dr.


Evandro faz uma cirurgia para salvar a vida de uma paciente esfaqueada
pelo marido e recorre a um motociclista de entrega rápida para conseguir
comprar enxerto arterial, enquanto a médica Carolina utiliza as próprias
mãos para conter temporariamente uma hemorragia interna (Figura 4).
Essa situação dramática perdura todo o primeiro bloco do episódio.

164
Figura 4 – Médica Carolina estanca a hemorragia interna

Fonte: reprodução/Globo

As improvisações podem ser vistas como gambiarras médicas


utilizadas em detrimento da precariedade dos objetos que mobíliam o
mundo ficcional de Sob Pressão, com a função de organizar as situações
dramáticas do filme de uma maneira informal. Segundo Boufleur (2006,
p. i), a gambiarra se relaciona ao modo como o brasileiro vê sua cultura e
identidade, relacionando-se à ideia do “jeitinho brasileiro”, “numa visão
que busca enfatizar, em seu próprio povo, uma propensão ao espírito
criativo, à capacidade inventiva e inovadora, à inteligência e dinâmica da
cultura popular, levando em consideração a conjuntura de adversidades”.
Em Sob Pressão, soluções improvisadas através das gambiarras médicas
salvam inúmeras vítimas e, assim, os objetos de design improvisam uma
realidade que existe não somente no mundo ficcional, tornando também
crível e verossímil a existência de mundos possíveis.11
Dessa forma, as gambiarras médicas participam da construção dos
enunciados factíveis ao mostrar os bastidores de uma guerra urbana,
que foge do controle dos agentes de saúde, que carecem de recursos
apropriados para administrar um hospital que enfrenta a violência que
o cerca. Os mundos possíveis que organizam os pontos de acesso ao
mundo ficcional de Sob Pressão criam as condições para o público
conhecer mais de perto a precariedade dos serviços públicos de saúde

11
Apesar da ligação cultural e de integrar a temática da saúde pública em Sob Pressão, os
improvisos e as gambiarras estão presentes nas series médicas procedurais e fazem parte do
cotidiano de Dr. Murphy (Freddie Highmore), em The Good Doctor (ABC, 2017-), Dr. Con-
rad (Matt Czuchry), em The Resident (Fox, 2018-), Dr. Jack (Matthew Fox), em Lost (ABC,
2004-2010), e Dr. Owen (Kevin McKidd), em Grey’s Anatomy (ABC, 2015-), entre outras.

165
no país, permitindo que essa realidade seja ressignificada pela interação
dos usuários nas plataformas sociais.

3 Hibridismo serial sob pressão

A série Sob Pressão reproduz a estrutura procedural na maioria


dos seus episódios na terceira temporada. Normalmente, no início de
cada episódio, um morador da periferia é internado no hospital público,
localizado ao lado do ficcional Morro da Convenção, no Rio de Janeiro.
Nos 40 minutos de duração do episódio, acompanhamos Dr. Evandro e
sua equipe realizarem diversos procedimentos para cuidar dos pacientes.
Ao fim do episódio, Evandro, com ajuda da equipe e das gambiarras,
salva o paciente.
A estrutura narrativa da série possui dois grandes grupos de perso-
nagens: a equipe médica e os pacientes. A equipe médica é composta por
Dr. Evandro Moreira, Dr.ª Carolina Alencar, Dr. Décio Guedes (Bruno
Garcia), Dr. Charles Garcia (Pablo Sanábio), Enf.ª Keiko Yamada (Julia
Shimura), Dr.ª Vera Torres (Drica Moraes) e Dr. Gustavo Lemos (Marcelo
Baptista). Os pacientes mudam a cada episódio, mas as linhas narrativas
dos médicos evoluem, abordando as relações entre si e entre os pacientes.
A análise da estrutura narrativa dos 11 primeiros episódios da terceira
temporada (Gráfico 1) evidencia as seguintes principais linhas narrativas:
a) atendimentos emergenciais (presentes em todos os episódios); b) o
relacionamento entre Evandro e Carolina (presente em todos episódios,
exceto o primeiro); c) incidentes diversos (ações que envolvem médicos
e/ou pacientes, presentes em cinco episódios). A série exibe uma média
de dois casos clínicos emergenciais por episódio, chegando a quatro
atendimentos emergenciais por episódio.

166
Gráfico 1 – Análise dos episódios 1 a 11
com as três linhas narrativas de Sob Pressão

Fonte: Obitel UFSCar

As linhas narrativas relacionadas aos atendimentos emergenciais,


onipresentes em todos os episódios, se constituem, muitas vezes, em
linhas narrativas autoconclusivas, conforme a estrutura procedimental
de séries médicas norte-americanas, como Plantão Médico (ER, 1994-
2002), exibida pela NBC. Outras linhas narrativas são expandidas por
diversos episódios, como, por exemplo, o relacionamento conturbado
de Evandro e Carolina, que termina numa gravidez de risco. Esse arco
narrativo se estende do segundo até ao 11º episódio, enquanto o incidente
entre policiais e milicianos se concentra em dois episódios. Para Mitell
(2011, s.p.), as séries contemporâneas possuem um número maior de
arcos e personagens, culminando numa estrutura narrativa híbrida em
que “cada episódio é estruturado para entregar engajamento narrativo
para beats e ameaças, tornando difícil isolar ou identificar características
de um único episódio”.

4 Distribuição multiplataforma

A exibição da série Sob Pressão seguiu uma estratégia multiplatafor-


ma de distribuição dos conteúdos da emissora. No canal aberto da Globo,
os episódios da terceira temporada foram exibidos às quintas-feiras e,
simultaneamente, disponibilizados na plataforma Globoplay. Esse pro-

167
cedimento se repetiu até o sexto episódio; em diante, novos episódios
foram disponibilizados uma semana antes da exibição, exclusivamente
para assinantes da plataforma. A estratégia do digital first direciona o
conteúdo para as plataformas de vídeo sob demanda e depois nos meios
tradicionais.
Excepcionalmente, devido à transmissão do jogo Brasil x Uruguai
pela Copa América 2019, marcado para quinta-feira, 27 de junho, no
mesmo dia e horário de exibição da série, o programa foi remarcado
para exibição no dia anterior, quarta-feira, dia 26 de junho. Assim, no
dia 26 de junho, o nono episódio de Sob Pressão foi exibido no lugar dos
programas Cine Holiúdi e Sessão Globoplay.12 Os dois episódios foram
exibidos na programação da rede aberta em sequência, promovendo o
sequenciamento narrativo dos episódios 9 e 10. A estratégia de exibir
esses episódios seguidamente na TV aberta registrou a maior audiência
até então, segundo o Ibope: 24,3 pontos em São Paulo e 21,4 pontos na
média das 15 praças das capitais monitoradas.

Gráfico 2 – Audiência domiciliar de Sob Pressão na Grande São Paulo

Fonte: Ibope

A exibição dos episódios também obteve o maior número de tweets


(3.297), com a hashtag #sobpressão, coletados através do Netlytics no
período entre a exibição do episódio na TV aberta (26 de junho) até o
dia 3 de julho. A coleta dos comentários no Twitter para análise neste
capítulo foi realizada no período da exibição dos dez primeiros episódios,

12
O programa estreou uma semana antes do episódio duplo de Sob Pressão, no dia 18 de
junho, com a exibição do primeiro episódio da série Shippados e, no dia 3 de julho, da série
Aruanas. A exibição de conteúdos exclusivos da plataforma na TV aberta tem o intuito de
estimular novos assinantes.

168
monitorando os termos “Sob Pressão AND Série”. Ressalta-se que, pelo
fato de a coleta ter sido realizada pelo Netlytics13, um aplicativo não na-
tivo do Twitter, as informações analisadas não representam a totalidade
das impressões na rede social.
Entre 2 de maio e 5 de julho de 2019, foram coletados 9.653 tweets
sobre a série e, como os episódios eram exibidos em fluxo televisivo,
houve um direcionamento de tweets para um episódio específico, entre
a sua exibição até o dia do próximo. O número significativo de tweets e
retweets concentrados sobre os episódios 9 e 10 evidenciam a importância
dos protagonistas e acontecimentos.

Gráfico 3 – Comentários no Twitter sobre a série


Sob Pressão #sobpressão – 2/5 a 4/7/2019

Fonte: Netlytics com base no Twitter

Entre os 3.297 tweets coletados sobre os episódios 9 e 10, 947 fo-


ram gerados pelos usuários (Tabela 1). A atuação de Marjorie Estiano é
bastante elogiada em 208 tweets em que é mencionada. Em 98 menções
da personagem Carolina, mais da metade (49) refere-se ao risco de ela
perder o filho devido ao incidente no décimo episódio (Figura 5).

13
Ferramenta on-line de monitoramento e análise de redes sociais, tais como Twitter, YouTube
e Facebook, criada pelo Social Media Lab, da Ryerson University (Canadá). É disponibilizada
gratuitamente para pesquisas de pequeno porte (até 10 mil dados armazenados), com planos
anuais pagos para pesquisas de grande porte. Disponível em: https://netlytic.org.

169
Tabela 1 – Filtro de termos nos tweets sobre os episódios 9 e 10
Termos nos tweets Incidência
Série Sob Pressão 250
Marjorie Estiano 208
Carolina 98
Bebê 49
Plano-sequência 21
Evandro 16
Fonte: Netlytics com base no Twitter

Figura 5 – Tweets sobre o risco da perda do bebê de Carolina

Fonte: Twitter

No episódio 10, após ficar ferido em confronto com a polícia, o


chefe de milícia Aristeu (Cesar Ferrario) invade o hospital e obriga Ca-
rolina a atendê-lo. Ao final, a polícia descobre o paradeiro do miliciano,
iniciando uma intensa troca de tiros dentro hospital, momento no qual
Carolina bate violentamente sua barriga contra uma maca. O episódio
deixa em suspenso a questão do aborto, mas alguns usuários afirmam
categoricamente que ela o perdeu – o que significa que alguns já tinham
assistido ao episódio no Globoplay na ocasião, ou estariam apostando
na sugestão narrativa (Figura 6).

Figura 6 – Tweet que comenta sobre o aborto acidental de Carolina

Fonte: Twitter

170
Em relação à temática do episódio 10, o plano-sequência é o se-
gundo termo mais comentado pelos usuários, depois do bebê, com 21
menções em que a qualidade técnica do episódio é reconhecida pelo
público (Figura 7).

Figura 7 – Tweets sobre a qualidade técnica do episódio 10

Fonte: Twitter

5 Sob pressão nas redes

Os enunciados do mundo ficcional que sustentam a produção de


comentários na plataforma Twitter são majoritariamente retweets e,
para fazê-los, servem-se de formulações linguísticas relativamente
estabilizadas numa formação discursiva de fãs e do público em geral.
No entanto, como em toda e qualquer formação discursiva, não existe
homogeneização – deixando clara a divisão entre os que torcem por um
romance e os que se calam diante da apologia ao aborto – o que não
supõe, entretanto, relativa estabilidade.
Tal como a série Sob Pressão, as plataformas sociais comentam
a realidade social, fazendo com que o usuário não se sinta imerso no
mundo fictício porque os elementos fictícios já fazem parte da sua re-
alidade cotidiana. A interação entre os usuários e as personagens dilui
as fronteiras do mundo ficcional ao apresentar-se não mais como um
mundo separado, mas como integrante do mundo cotidiano (Gauthier,

171
2018). A hiperdiegese14 de Sob Pressão permite que os usuários citem
personagens e episódios como se fizessem parte de seu dia a dia e criem
mundos sectários onde podem jogar e compartilhar aspectos dos mundos
ficcionais com os outros (Eco, 2008).
A possibilidade de levar para a vida cotidiana o mundo ficcional
das narrativas transmídia organiza as relações de acessibilidade entre
o mundo ficcional e a realidade, tal como o espectador a experimenta.
Nesse contexto, as plataformas sociais são utilizadas para falar, avaliar
ou produzir conteúdo relacionado ao mundo ficcional da série Sob Pres-
são, motivo pelo qual é importante analisar as interações dos usuários
para compreender o comportamento em rede, não apenas pelo Twitter.
O site Banco de Séries15, por exemplo, é uma plataforma de datafi-
cação de séries; segundo os dados disponibilizados, Sob Pressão é um
programa visualizado por 1.29516 usuários ativos, enquanto outras séries
de destaque como Chernobyl17 (HBO, 2019) e Game of Thrones18(HBO,
2011-2019) possuem respectivamente 7.427 e 15.963 usuários. No
ranking de séries mais pontuadas em 2018 e 201919, a terceira temporada
de Sob Pressão aparece em 11º lugar. Com a pontuação de 9,06 – média
de 5.334 votos –, a série Sob Pressão aparece na frente de séries mais
assistidas como Game of Thrones (em 234º, com nota 8,1 e média de
40.690 votos) e logo atrás de Chernobyl (2º, com 9,31).
Entre as cinco séries nacionais mais bem avaliadas pelo site, Sob
Pressão lidera, seguida por Coisa Mais Linda20 (Netflix, 2019), Assédio21

14
Hiperdiegese refere-se à criação de um amplo, vasto e detalhado espaço narrativo, onde
existe apenas uma fração do que é visto diretamente ou encontrado no texto, mas que parece
funcionar de acordo com os princípios da lógica interna da extensão. O mundo hiperdiegético
pode, como Jenkins (1992) sugere, recomendar releitura devido à sua riqueza e profundidade
(Hills, 2002, p. 137).
15
Disponível em: https://www.bancodeseries.com.br.
16
Número coletado em 1 de julho de 2019, disponível em: https://bancodeseries.com.br/index.
php?action=ss&serieid=12673.
17
Disponível em: https://bancodeseries.com.br/index.php?action=search&pattern=Chernobyl.
18
Disponível em: https://bancodeseries.com.br/index.php?serieid=1658&action=ss.
19
Disponível em: https://bancodeseries.com.br/index.php?action=topEpisodes&year=2018
&top=10.
20
Disponível em https://bancodeseries.com.br/index.php?action=ss&serieid=14114.
21
Disponível em https://bancodeseries.com.br/index.php?action=ss&serieid=15049.

172
(Globo, 2018), Shippados22 (Globo, 2019) e Bandidos na TV23 (Netflix,
2019), como se vê na Tabela 2.

Tabela 2 – Séries nacionais mais bem avaliadas


do site Banco de Séries
Usuários Ranking de Número Ranking
Séries nacionais Nota
ativos séries nacionais de votos geral
Sob Pressão 1.295 1 9,06 5.334 11
Coisa Mais Linda 4.660 2 8,94 11.751 20
Assédio 605 3 8,83 2.193 40
Shippados 367 4 8,63 1.203 108
Bandidos na TV 711 5 8,58 1.917 125
Fonte: Banco de Séries (3 jul. 2019)

Tanto no Twitter (Gráfico 3) quanto no Banco de Séries, o episódio


10 foi o mais comentado (Gráfico 4) da terceira temporada.

Gráfico 4 – Comentários por episódio da terceira temporada de Sob


Pressão no Banco de Séries

Fonte: Banco de Séries (3 jul. 2019)

Os comentários constitutivos de Sob Pressão nas plataformas Twitter


e Banco de Séries são subjacentes ao mundo ficcional – condição para a
criação de mundos possíveis. Para Jenkins, Ito e Boyd (2016), o público
reconhece o mundo ficcional das narrativas transmídia e, mesmo assim,
sente-se um criador que quer expandi-lo a partir de detalhes, com a
pretensão de atualizá-lo segundo as configurações alternativas. Dessa

22
Disponível em https://bancodeseries.com.br/index.php?action=ss&serieid=16078.
23
Disponível em https://bancodeseries.com.br/index.php?action=ss&serieid=16720.

173
perspectiva, ao explorar os mundos possíveis subjacentes ao mundo
ficcional, o receptor torna-se também um criador e faz uma série de alu-
sões a respeito das personagens, como especulações em torno do aborto
acidental de Carolina ou, de modo mais marcante ainda, na reconfiguração
da personagem “numa vibe sapatão”.

6 Plano-sequência e a estética realista em Sob Pressão

O décimo episódio começa com o noticiário de uma televisão sobre


um confronto entre a polícia e milicianos próximo ao hospital, enquanto
um mutirão de atendimento hospitalar está acontecendo em seu pátio.
Em meio à correria de atendimentos, Carolina é surpreendida sozinha
por Aristeu, chefe da milícia, baleado no pescoço e acompanhado por
um comparsa, exigindo atendimento sem registro, caso contrário ela e as
pessoas no pátio seriam mortas. No caminho para s sala de atendimento,
Evandro surge e também se torna refém do miliciano e seu comparsa.
Ao socorrer Aristeu, a linha narrativa irá amarrar os eventos do episódio
e o plano inicial da televisão, que não havia sofrido cortes: revela-se um
plano-sequência de 13 minutos, interrompido pela entrada da vinheta, para
ser retomado por mais 24 minutos, num crescente dramático ainda maior.
O plano-sequência reforça o realismo estético da série ao evidenciar
a concretude dos mundos possíveis. No plano-sequência, os personagens
que estão diante da câmera estabelecem um centro dêitico, criando um
dispositivo para que o espectador se sinta próximo da cena, incorporando
na imagem uma percepção espacial em relação aos personagens. A ideia
de centro dêitico na literatura busca o estabelecimento de uma âncora
temporal e espacial para o leitor através das palavras. No plano-sequência,
a movimentação e o ponto de vista da câmera convocam seu destinatário
“para que dirija o seu olhar e, mais amplamente, a sua atividade de busca
perceptual”, valendo-se dos atores para complementar “a orientação do
destinatário a respeito dos detalhes da situação” (Bühler, 1934, p. 105-
106 apud Ciulla; Martins, 2017, p. 81).
Nos primeiros 13 minutos de Sob Pressão, o grande centro dêitico
é estabelecido alternadamente entre Carolina e Evandro. Depois da

174
abordagem agressiva de Aristeu, Carolina o conduz até a sala de cirur-
gia. Assim que entra no elevador, a câmera se movimenta à esquerda
para mostrar a chegada atrasada de Evandro, que é obrigado a subir as
escadas. Essa movimentação serve para efetivar a inserção do médico
na ação e instaura nele um novo centro dêitico, permitindo que a câmera
suba as escadas atrás do personagem e o acompanhe até o encontro com
Carolina e Aristeu (Figura 8).

Figura 8 – Desencontro entre Evandro e Carolina reorganiza


a ação no plano-sequência

Fonte: reprodução/Globo

Depois da vinheta de abertura da série, o segundo plano-sequência


tem o centro dêitico em Décio (Bruno Garcia), diretor do hospital. Ele
parte em busca de Evandro e Carolina, que estão desaparecidos, e os
encontra na sala de cirurgia junto com Aristeu e seu comparsa. O hospital
está cheio de policiais, e o chefe da milícia agora precisa sair do local.
Após uma discussão tensa e ameaças de morte, é decidido que Décio
irá pedir uma ambulância para a fuga de Aristeu, que será dirigida por
Evandro, enquanto o outro miliciano fica no hospital para garantir que
ninguém irá denunciar o plano (Figura 9).

175
Figura 9 – Movimento dos personagens entre um andar e outro

Fonte: reprodução/Globo

A fuga fracassa quando um carro da polícia chega e cerca o veículo


antes de ele deixar o hospital. Inicia-se um tiroteio que atinge um pacien-
te com hemofilia, o que impede a coagulação do sangue, necessitando
urgente de plasma do banco de sangue. Ao buscar o plasma no meio do
tiroteio, Carolina é atingida na barriga por uma maca que estava sendo
levada por policiais, mas ainda assim ela segue seu plano. Após os
procedimentos cirúrgicos para salvar a vida do paciente baleado e o fim
do tiroteio, Carolina vai para uma outra sala para utilizar em si mesmo
um detector fetal portátil, capaz de detectar os batimentos cardíacos da
criança na barriga da mãe para avaliar o que a pancada fez com o seu
bebê. Assim, o episódio se encerra com um forte gancho dramático:
Carolina chora compulsivamente enquanto tenta ouvir os batimentos
cardíacos do feto.
Dessa forma, os centros dêiticos permitem que a estética realista do
plano-sequência capture amplos aspectos da realidade em seus fluxos
contínuos. De um lado, o plano-sequência preserva a unidade espaço-
temporal dos acontecimentos e, de outro, os centros dêiticos reforçam o
realismo dramático do cotidiano de um hospital público.

176
Considerações finais

Neste capítulo, procuramos analisar as modalidades de recepção


inclusiva que permitem à ficção adentrar a vida cotidiana, observando
a importância dos objetos de design para a concepção de mundo da sé-
rie Sob Pressão. Pôde-se verificar, a partir da interação do público nas
plataformas sociais, que os mundos possíveis ativam e organizam as
relações de acessibilidade entre o mundo ficcional e o mundo concreto.
Nesse contexto, a multiplicação de telas estimula a participação de
públicos que buscam espaço para se expressar como forma de resistên-
cia e debate social. O público formado pelos consumidores de mídia e
articulados coletivamente assume, assim, o lugar da audiência produzida
“por atos de mediação e vigilância” (Jenkins; Green; Ford, 2014, p. 209).
A passagem da noção de audiência para o público “dirige a atenção de
forma ativa para as mensagens que valoriza” (Jenkins; Green; Ford, 2014,
p. 209), promovendo a socialidade compartilhada.
Constatou-se também que o modelo de recepção imersiva da mídia
convencional, articulado de cima para baixo, apenas substitui uma con-
cepção de mundo por outra, criando realidades distintas e paralelas: de
um lado, o mundo concreto do público e, de outro, o mundo ficcional.
Em contrapartida, o modelo de recepção inclusiva contempla, além da
coerência narrativa e coexistência de mundos, as práticas do público nas
plataformas sociais, não se fixando nos aspectos canônicos das extensões
transmídia.
É importante apontar que, no levantamento nas redes sociais refe-
rente aos episódios analisados, coube a Carolina o protagonismo da série,
em detrimento do papel principal ocupado por Evandro na TV aberta.
Esse fato se deve, em grande parte, à mescla de realismo e melodrama
exibida em sequência nos dois episódios, em especial no décimo, ao tratar
de um tema delicado e emocional como o aborto acidental. Tal contexto
dramático é tecido desde os primeiros episódios da série, quando Evan-
dro manifesta seu interesse em ser pai e Carolina hesita. Contudo, ela
acaba engravidando por acidente e perdendo seu bebê de forma trágica.
A série retoma assim um tema clássico da teledramaturgia brasileira e

177
latino-americana, ao trazer à tona o sofrimento de uma mãe diante da
perda de seu filho.
Uma das conclusões que emerge do estudo sobre as modalidades de
recepção inclusiva da série Sob Pressão é que as plataformas sociais se
estruturam cada vez mais como interfaces que organizam e ordenam a
relação entre a realidade e a ficção, eliminando barreiras que limitavam
o acesso do público à obra. Dessa perspectiva, a relação entre mundos
ficcionais e as plataformas sociais permite a coexistência de dois mundos:
o da realidade cotidiana do público e o mundo ficcional que é consumido.
No entanto, os mundos possíveis não são uma representação da rea-
lidade, nem uma extensão do mundo real, mas uma instância de mediação
de elementos do mundo ficcional que são reconhecidos pelo público
como integrantes de seu cotidiano. O processo de reconhecimento dessa
instância ocorre principalmente nas plataformas sociais. Os comentários
e críticas postadas pelo público contribuem para a construção de uma
lógica interna da realidade do mundo ficcional. Conclui-se, por fim, que
no contexto da recepção de narrativas seriadas audiovisuais a investigação
dos mundos possíveis se tornou um objeto de estudos que contempla as
práticas do público nas plataformas sociais.

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180
Quarta Parte

Mundos narrativos da nação

181
182
Construções de mundo: o popular da narrativa
à recepção

Nilda Jacks (coord.)


Daniela Schmitz (vice-coord.)

Daniel Pedroso
Denise Alves
Erika Oikawa
Fabiane Sgorla
Guilherme Libardi
Laura Wottrich
Lírian Sifuentes
Lourdes Silva
Sara Feitosa
Valquiria John

Consoante à ideia de observatório, ou seja, observação de caráter


longitudinal, a proposta neste capítulo é retomar telenovelas já analisadas
(Jacks et al., 2013, 2015, 2017) para identificar a construção de mundos
tanto no âmbito da produção como no âmbito da recepção, enfocando a
questão na cultura popular. Esta entendida à maneira dos autores, que a
concebem a partir das proposições de Antonio Gramsci, ou seja, tanto
do ponto de vista de sua multiplicidade – portanto o mais adequado
seria o emprego no plural – quanto de sua subalternidade em relação
à cultura hegemônica, em uma relação dialética (Coelho, 1997). Para
Martín-Barbero (2004), a televisão tem papel importante nesse processo;
a telenovela, por exemplo, se apropria costumeiramente da noção do
popular para produzir sua narrativa.

183
Ao revisitarmos os dados da audiência coletados durante a exibição
de Avenida Brasil (2012), Império (2015) e Velho Chico (2016)1 e de suas
respectivas narrativas, o objetivo é identificar como essas telenovelas
construíram o mundo popular ficcional por meio de vários elementos
constitutivos da trama. Também investigamos como os receptores se
relacionaram com as categorias formais, estéticas e de conteúdo que
circulam nas redes sociais digitais, seja em relação a uma telenovela ou
ao atravessamento dos três títulos. Em outras palavras, buscamos identi-
ficar como o “popular-massivo” (Martín-Barbero, 2003) foi apropriado,
a partir de quais temas, gramáticas e formatos.
Parte-se do conceito de cultura popular operacionalizado pela pers-
pectiva da “construção de mundos”, ou seja, seu modo de representação
e como é percebido pelas audiências. Estas, sobretudo, nas plataformas
digitais, cujos modos de significação podem tensionar “mundos possí-
veis”, no sentido de como são elaborados pelo próprio público.
Retomam-se procedimentos teóricos e metodológicos que pos-
sibilitaram a comparação e o acompanhamento sistemático e crítico
sobre a produção midiática e sua relação com a audiência em múltiplas
plataformas (Jacks et al., 2015). Para atender aos propósitos do foco no
popular, foram eleitas sete categorias analíticas que balizaram a recons-
trução das narrativas e a exploração dos dados das audiências (opiniões,
elogios, críticas etc.) nas plataformas digitais. A partir, então, da trama,
temáticas, personagens, cenários, figurino, linguagem audiovisual2 e trilha
sonora, compilamos informações e elementos que constroem “o mundo
popular” em cada uma das telenovelas3 e em manifestações postadas
pelas audiências.
A exploração das postagens foi realizada no software NVivo, com
base nas categorias, na busca por aspectos formais, estéticos e de conteúdo

1
Embora Passione (2010) também tenha sido analisada, foi excluída por não recuperarmos a
totalidade dos dados da audiência.
2
A coleta baseou-se em entrevistas e materiais de divulgação fornecidos pelas equipes envol-
vidas na produção.
3
Dados coletados entre outubro e dezembro de 2018: GShow; Memória Globo, sites sobre
as telenovelas; blogs e sites como Teledramaturgia e Maurício Stycer; O Globo, Folha de S.
Paulo, Zero Hora, O Estado de S. Paulo; e material organizado em canais de fãs no YouTube.

184
que remetessem ao popular. A primeira etapa consistiu na organização
do material coletado em edições anteriores do Obitel Brasil, proveniente
de plataformas como Orkut, Facebook, Twitter e blogs, sendo que para
cada telenovela havia um conjunto distinto de discursos. Para a explo-
ração no NVivo, foram elencadas palavras-chave4 além da que nomeia
cada categoria: trama; temática (de acordo com cada narrativa); perso-
nagens do núcleo popular (nomes); cenários (casa, apartamento, pátio,
rua); figurino (roupa, moda, saia, vestido, sapato, blusa etc.); estética
audiovisual (fotografia, luz, imagem); trilhas sonoras (música, som,
dança), popular (classe, pobre, rico, favela, laje, vila, morro etc.). Em
cada telenovela também foram utilizados termos que tivessem conexão
com a trama exibida.

“Mundos possíveis”: construção e apropriação do popular

A noção de “mundos possíveis” traz diversas possibilidades


analíticas, estabelecendo uma relação mais estreita com a filosofia e
a literatura. Na primeira, mais especificamente no âmbito da lógica
modal e da metafísica, é uma situação contrafactual, ou seja, que não
ocorreu, mas é perfeitamente cabível em termos lógicos, pois poderia
ter acontecido. A análise da construção de mundos na telenovela estabe-
lece uma relação mais estreita, porém, com a perspectiva da literatura.
Nesta, a proposição conceitual é mais fácil e, em larga medida, mais
aceitável, pois o que constitui o âmbito do fazer literário (e ficcional) é
a possibilidade de levar ao leitor (ou telespectador) mundos diversos,
que serão apreendidos por sua capacidade mental, também de diversas
formas e em múltiplos entendimentos. Entre leitor e texto, sobretudo o
ficcional, estabelecem-se conexões e interações ainda difíceis de serem
compreendidas. Como afirma Bruner (1997, p. 5), “os linguistas literá-
rios e gerais sempre insistiram em que nenhum texto, nenhuma história
pode ser entendida em um único nível”. Apoiando-se na perspectiva de
Jakobson, Bruner destaca que “todo sentido é uma forma de tradução e

4
Dependendo da palavra, partiu-se do termo exato ou de derivações para ampliar as buscas.

185
que a tradução múltipla (polissemia) é mais a regra do que a exceção”,
enfatizando como essa relação entre leitor e texto é pouco conhecida e
compreendida psicologicamente.
No caso da literatura, só há mundos possíveis porque há sujeitos
capazes de lhes dar sentido e existência, ou seja, representá-los: “a
linguagem é nossa ferramenta mais poderosa para a organização de
experiência e, de fato, para constituir ‘realidades’” (Bruner, 1997, p. 8).
Uma telenovela, ainda que outro tipo de texto, com conexões e interações
mentais distintas, também estabelece conexões, as mais diversas, com
seus receptores. Pensar cognitivamente a interação sujeito-telenovela a
partir da perspectiva leitor-texto literário indica um cenário analítico de
“mundos possíveis”. Desse modo, pensar a construção de mundos na tele-
novela é discutir sua dimensão estética, aspectos que envolvem a relação
entre os mundos que ela constrói e os mundos percebidos pelo público.
Para Cauquelin (2011, p. 70), “enquanto via de escape do único
mundo que realmente existe, a ficção [incluindo a telenovela] propõe
pontos de vista que a experiência não nos oferece espontaneamente”.
Em outras palavras, a ficção é arte fatual e, enquanto tal, possui suas
regras, suas limitações, sua área de aplicação.
Também do ponto de vista narrativa-sujeito, Eco (1986, p. 109) diz:
“dado que esse curso de eventos não é real, mas absolutamente possí-
vel, ele deve depender dos comportamentos proposicionais de alguém,
que o afirma, nele acredita, com ele sonha, deseja-o, o prevê, etc”. É,
então, na possibilidade de analisar a relação entre o leitor e a narrativa
que devemos entender os mundos ficcionais (ou outros mundos) como
constructos culturais. Um mundo possível é, para Eco, sempre um
constructo cultural, e o “mundo real” com o qual dialoga também é.
Essa compreensão encontra-se em sintonia com a de Benjamin (1994),
quando reconhece a narrativa como fenômeno sociocultural. Falar de
construção de mundos em uma telenovela, seguindo essa perspectiva, é
falar da relação que se estabelece entre o mundo construído na narrativa
e o mundo possibilitado pelo repertório do mundo real dos sujeitos que a
assistem, mesmo em se tratando da novela das 21h, considerada a mais
realista no Brasil (Hamburger, 2005).

186
Como aponta Eco (1989, p. 166), “naturalmente cada obra narra-
tiva – até a mais realística – delineia um mundo possível enquanto este
apresenta uma população de indivíduos e uma sequência de estados de
fato que não correspondem aos do mundo da nossa experiência”. Assim,
o mundo real, ou mundo normal, é aquele no qual vivemos ou supomos
viver. Sobre a relação entre o mundo real e os mundos da ficção, a
perspectiva de Eco nos ajuda a pensar que “os mundos ficcionais são
parasitas do mundo real. Não existe nenhuma regra relativa ao número
de elementos ficcionais aceitáveis numa obra” (Eco, 2006, p. 85).
Para Scolari (2011), em experiências de consumo ficcional, criamos
mundos possíveis e hipóteses que podem ou não se confirmar.

Os mundos possíveis são uma construção cognitiva do leitor


ou espectador. [...] Basta terminar a emissão de um episódio
de uma série televisiva para que, poucos minutos depois,
os fóruns e páginas web entrem em estado de agitação. Os
espectadores discutem o texto que acabaram de ver, analisam
suas possíveis continuações e debatem sobre os personagens
e a trama do episódio [...]. A construção de mundos possíveis
se desenvolve nas redes sociais (Scolari, 2011, p. 131).

Na perspectiva de Ryan (1991), as aproximações entre mundo real


e mundo projetado estabelecem maior acesso aos mundos possíveis,
entendidos aqui como sinônimo de acessibilidade. Por isso, “quanto
mais semelhança entre o ‘mundo real’ e o ficcional, mais ‘acessível’ este
último mundo estará aos sujeitos” (John, 2014, p. 176).
Hoje é praticamente impossível não relacionar a construção de
mundos ficcionais à transmidiação (Jenkins, 2008). Massarolo (2011)
argumenta que ela transforma o modo de contar histórias, na medida em
que as extensões diegéticas da narrativa passam a gerar conteúdos que
circulam por diferentes telas, do cinema à televisão, dos computadores
aos dispositivos móveis. Essa narrativa é possível, por outro lado, pela
forma como a audiência se engaja, o que faz da cultura participativa um
dos componentes centrais dos mundos ficcionais.

187
Segundo Martín-Barbero (2003), os recursos técnicos, o que inclui
os transmidiáticos, não remetem apenas aos formatos industriais, mas
também a outros modos de narrar. Constata que o “outro lado” da indústria
de narrativas é o que possibilita acesso ao processo de circulação cultural,
isto é, “um novo modo de existência cultural do popular” (Martín-Barbero
2003, p. 160). E tanto Martín-Barbero (2003) quanto Hall (2003) enten-
dem o popular com um espaço de subversão, de resistência, de conflito.
Martín-Barbero situa o melodrama como lugar de chegada de uma
memória narrativa e gestual que recupera as primeiras formas do narrar.
O melodrama tem proximidade com os temas da literatura oral, é “escri-
to para os que não sabem ler” (Martín-Barbero, 2003, p. 170), daí sua
íntima relação com as classes populares. A cumplicidade desse público
com o gênero tem origem na identificação dos “in-cultos” com as cenas
repletas de ação e paixão, escritas com “esse forte sabor emocional”
(Martín-Barbero, 2003, p. 159).
Para o autor, o popular é comumente caracterizado pela negação,
como uma identidade reflexa, “daquele que se constitui não pelo que
é mas pelo que lhe falta” (Martín-Barbero, 1995, p. 25). Nessa estei-
ra, Ronsini (2011) indica que, nas telenovelas, os valores das classes
populares são praticamente todos aqueles que estão em oposição aos
das classes dominantes. O estilo de vida popular é representado como
espontâneo, sem formalismos, comunitário, emocional, corporal e não
intelectual. Mesmo assim, predominantemente, foi representado de forma
estereotipada: os bairros periféricos foram quase sempre mostrados como
“lugar da barbárie, do tráfico de drogas e da violência, representando o
oposto que se mostrava sobre o modo de vida da classe média” (Grijó,
2011, p. 7). A partir da década de 1990, esse cenário começa a apresentar
transformações que estão diretamente relacionadas ao poder de consumo
desta camada social.
***
A seguir, a descrição e análise do popular nas três telenovelas, no
âmbito tanto da produção como da recepção nas redes sociais.5

5
As postagens analisadas podem ser consultadas em http://hdl.handle.net/20.500.11959/1197.

188
a) Avenida Brasil6 (2012)
O universo popular é o centro da narrativa, sendo coadjuvante o
da elite. A maior parte da trama passa-se no subúrbio, no bairro fictício
Divino, que, junto com o lixão, constitui a ambientação popular. Quan-
to às temáticas, a vida no subúrbio é desdobrada em vários subtemas:
futebol e a decorrente ascensão social; o bar, espaço de convivência
predominantemente masculino, e o salão de beleza, espaço feminino –
esses com a função de disseminar comentários e fofocas sobre a vida
da comunidade. As temáticas são clássicas do folhetim: amor, traição,
vingança, abandono. 
O Divino pode ser visto como um microcosmo do Brasil, no qual
o autor brinca com as nuances simbólicas de ricos e pobres, criticando
a sociedade, seja através da grã-fina da Zona Sul que fazia pouco caso
do suburbano, ou do novo-rico que zombava da elite (Xavier, [201-]).
Segundo Faria (2013), foi priorizado o subúrbio como cenário principal
devido à ascensão social e econômica da “nova classe média”, ou “nova
classe C”. Nesse sentido, boa parte da trama girou em torno da família
do ex-jogador Tufão, que, apesar de rica, morava em uma mansão em
um bairro periférico.
O popular centrava-se na representação do cotidiano suburbano,
refletida não apenas na trama, mas também nos aspectos técnicos e nas
transformações estéticas da telenovela.

Gravada com uma iluminação surpreendente, capaz de ir


além da mera função prática e construir efeitos de sentido,
Avenida Brasil apresenta um ritmo bem mais acelerado no
desenvolvimento da história, fato em parte decorrente da
constante comutação de lugares e, também, responsável
pelo surgimento de novos nós, atados e desatados quase
vertiginosamente quando se consideram as telenovelas de
tempos remotos e mesmo as do passado recente (FISCHER;
NASCIMENTO, 2013, p. 12).

6
Autor: João Emanuel Carneiro; direção: Amora Mautner e José Luiz Villamarim; 179 capítulos.

189
No figurino e nos adereços, estavam presentes elementos de status de
cada um dos períodos da novela (1990 e 2010): Carminha usava pochete
e relógio; Max vestia camisas de seda muito estampadas; Rita carregava
mochila jeans; e Verônica exibia cabelo “chapado”; Cadinho, seu marido
e empresário, carregava uma TV portátil. No começo, entretanto, Car-
minha se vestia mal e era desleixada; na segunda fase, já rica, torna-se
uma mulher elegante, com roupas claras e leves e muitos acessórios. O
estilo de craques – cabelo, joias e roupas – é usado para criar o visual
dos jogadores de futebol. Trajes esportivos, tênis, moletons e camisas
coloridas compunham o guarda-roupa desses atletas. 
Para os tipos populares, os figurinistas mergulharam no mundo
do charme, do rap e do hip-hop, criando visuais sensuais para grande
parte do núcleo do Divino: jeans, brilhos, saltos e muita cor nas roupas
justas. No caso do lixão, recriaram cabelos amarelados, unhas e dentes
maltratados, manchas na pele e suor frequente no rosto. As roupas eram
escurecidas e desbotadas, vestidas umas por cima das outras para “pro-
teger” os moradores do lixo.
Os cenários também demarcaram a ascensão social: a mansão de
Tufão possuía piscina, edícula e colunas de mármore na fachada; am-
bientes internos com dourados e detalhes em veludo, modo recorrente de
representar o popular que ascende economicamente, associando-o a uma
estética kitsch. Evidencia-se, portanto, uma distinção (Bourdieu, 2007)
entre o refinamento da elite e o mau gosto popular, mesmo com posses.
Desse modo, pode-se supor que a construção de “mundos populares” está
relacionada a práticas sociais, e não à condição econômica.
Ao considerar cenografia, direção de arte, figurino e toda a caracteri-
zação, é possível afirmar que a estética dominante foi realista. Do ponto de
vista da fotografia, observa-se um cuidado com os planos e movimentos
de câmera que valorizam a interpretação. Por fim, a trilha sonora nacional
foi composta de vários gêneros populares: samba, sertanejo, funk, forró
e MPB. As cenas no Divino possuíam marca sonora tanto na trilha como
nos constantes diálogos aos gritos durante discussões e comemorações.

190
Avenida Brasil teve grande repercussão e engajamento nas redes
sociais 7, acima dos demais títulos aqui analisados, e relacionava-se de
modo mais amplo com o popular, pois a temática atravessava cenários,
figurino, linguajar e, especialmente, a história na periferia. Discutia
uma questão emergente no período, projetando um sentido de popular
específico do contexto social de ascensão da classe C.
Em relação à trama, aos cenários e figurinos, o lixão foi citado com
distintas marcas pelos receptores. O cotidiano do lugar, por exemplo, é
relembrado relacionado à história de amor vivida por Rita e Jorginho: “...
isso é fato...AMOR QUE FICA É AMOR DE lixão!! rsrsrsrs”. Também
foi apropriado como sinônimo de desordem: “O meu quarto tá igual à
casa da mãe lucinda kkkkk quer dizer tá igual ao LIXÃO de #Avenida-
Brasil”. Ou ainda: “minha casa tá parecendo o lixão de #AvenidaBrasil,
daqui a pouco encontro o Jorginho por aqui! HAHAAHAHAH”. Outras
apropriações do lixão tomam um sentido irônico: “aff essa **** ainda
n achou o caminho dela no lixão?”; “NAO PQ LIXAO É TENDENCIA
NE AMIGO KKKKK #AvenidaBrasil”.
Quanto ao cenário, o popular também esteve presente em comentá-
rios sobre as mesas de jantar, a decoração das casas, os estabelecimentos
comerciais e as ruas em que a história acontece. Um dos cenários lembra-
do foi o salão de beleza da personagem Monalisa, palco para o encontro
das mulheres do bairro: “Carminha hoje está divando na propaganda!!
Quebrando tudo no salão da Monalisa ♥ #AvenidaBrasil”.
O popular no figurino foi destacado especialmente no estilo das
mulheres: “bocão”, “bocão vermelho”, “bocão vermelhão”. Outra re-
ferência são as críticas ao cabelo de Nina contrapondo à expectativa
da “piriguete”, estética adotada para muitas personagens: “Onde esses
homens veem beleza naquela cara de songa-monga da nina? Ela é magra
(até demais...), ela é feia (parece um homem com aquele cabelo...) ela é
baixa, ela é esquisita! Fala sério!”.
A ascensão social foi identificada pelo uso de marcas e contraposta
à personagem que, por se vestir de modo simples, foi associada à mo-

7
Dados do Facebook (15.870), Twitter (4.349), blogs (840), Orkut (1.559) e em sites da Globo
(1.471) (de 11 a 24 de junho de 2012).

191
radora do lixão: “Jorginho usa uma Calvin Klein hoje #phyno Mas essa
namorada dele é a própria saída do lixão #avenidabrasil”. Em outra
perspectiva, houve comentários sobre a caracterização de personagens
relacionada com a vida no lixão: “Essa barba tá muito grande mesmo...
mas se era esse o objetivo, causar essa sensação de ‘morador do lixão”
então conseguiu mesmo usando essa barbona”.
O popular se apresentou também nas trilhas sonoras ouvidas e dan-
çadas em bailes que aconteciam no Divino. São destaques o sertanejo,
funk, pagode, samba e charme: “TODOS os lugares que fui nesse fds
estavam tocando Charme...não escutei UM funk. Estão assistindo mt
#AvenidaBrasil hahah” ou “Música do baile Charme do Divino tocando
na redação. #AvenidaBrasil”. Vale destacar que a música de abertura,
com estilo kuduro, originou a hashtag #oioioi, muito repetida pelos
receptores nas redes sociais digitais: “OI OI OI OI para tudo começou
AV Brasil oi oi oi oi”.

b) Império8 (2015)
Narra a trajetória de José Alfredo de Medeiros, o homem de preto,
dono de uma rede de joalherias. O Comendador, como era conhecido,
tinha três filhos e um casamento por interesse com a aristocrata falida
Maria Marta Mendonça e Albuquerque, de quem se separa. José Pedro,
Maria Clara e João Lucas disputam a herança construída pelo pai. Sua
ascensão se dá pela exploração de pedras preciosas, inclusive no mercado
de contrabando. José Alfredo tem uma amante, Maria Ísis, uma ninfeta
preparada pelos pais para tirar dinheiro dele. A trama conta ainda com
Cristina, jovem corajosa e batalhadora que leva uma vida humilde e re-
pleta de obstáculos. É filha do grande amor do passado do Comendador
e carrega a dúvida sobre isso.
A ascensão econômica de José Alfredo envolve um aspecto mágico:
o diamante rosa da África do Sul, símbolo de status e poder, escondido
no Monte Roraima. A queda do império começa quando este talismã
desaparece. Em sua visão mística, acredita que tudo vai por água abaixo

8
Autor: Aguinaldo Silva; direção: Rogério Gomes, Pedro Vasconcelos e André Binder; 203
capítulos.

192
caso ele não encontre a sua pedra preciosa e se livre de um falso brilhante
que ficou no lugar.
Império é um típico drama folhetinesco cuja temática repete outros
trabalhos do autor, em um resgate da origem clássica da novela, com
ingredientes do melodrama. Dos três títulos, foi a que menos tratou do po-
pular. Contribuem para isso o título Império, a designação do personagem
central como Comendador e elementos geográficos não comuns, como
Monte Roraima, local de difícil acesso. Contudo, o núcleo de Cristina
constitui-se do principal espaço de expressão popular. Enquanto o núcleo
de José Alfredo oscila entre a representação da elite falida (materializada
na história de Maria Marta) e o popular que ascende economicamente
(encarnado no protagonista), Cristina representa o popular carioca da
região de Santa Teresa. Completam esse universo os personagens do
núcleo de Xana Summer, dono de uma pensão e do salão de beleza no
bairro, com características que remetem ao nordeste brasileiro. Além do
bairro, o camelódromo também é um ponto popularesco.
A cenografia buscou a veracidade dos ambientes, mantendo um
traço das telenovelas das 21h, ou seja, o realismo, conjugada com outros
elementos da direção de arte como figurino, fotografia e iluminação.
No figurino, o contraponto entre o núcleo abastado do Comendador
e o simples de Cristina se dá pelo corte das roupas de alfaiataria, vestidos
geométricos, joias tradicionais, cores sóbrias e o tom escuro dos trajes de
José Alfredo versus as peças simples e com estampas, ainda que discre-
tas, de Cristina. O anel de formatura da personagem foi um importante
símbolo da possibilidade de ascensão, que “pode ser interpretado como
a porta de entrada da classe C ao mundo de luxo da Império” (Mauro,
2017, p. 144).
A linguagem audiovisual não destoa do padrão do horário: prio-
ridade à interpretação naturalista, corte das cenas muito similar ao de
outras novelas, assim como a iluminação e o tratamento de cor. A trilha
sonora foi composta de hits e contou com diversidade de gêneros, desde
músicas pop românticas internacionais, pop/rock nacional, funk e indie.

193
Nos 6.900 comentários coletados no Twitter9, uma micromídia (San-
taella; Lemos, 2010), repete-se o pouco espaço que o popular recebeu na
trama, talvez por sua natureza mais noticiosa que outras redes. Entre as
categorias identificadas, apenas o cenário e o figurino trazem marcas do
popular. É o caso dos quase 150 comentários sobre o Monte Roraima,
cenário mais citado, cujo exotismo e difícil acesso (só por helicóptero
ou escalando) podem indicar o distanciamento dos mundos populares:
“Acho chique a pessoa que não usa carro e usa helicóptero, mas não
entro num troço desse POR NADA NESSE MUNDO. #Imperio”; “Esse
helicóptero do comendador deve ter algum bagageiro extra! Como é que
cabe tanta coisa num helicóptero desses? #Imperio”; “Gnt, so chegam
nesse monte de helicóptero. Como q levaram casa pré moldada, mesa
c 6 cadeiras, sofá e geladeira?!confusa #Imperio”. Outra possibilidade
foi a leitura do popular no comparativo entre o que seria uma prática de
classe sobre o figurino: “Maria Marta podia desfrutar um pouco da sua
fortuna e ir a um cabeleireiro, pq esse cabelo dela tá horrível #Imperio”.

c) Velho Chico10 (2016)


Marcou a volta de tramas com temáticas rurais/regionais, mudando
a paisagem e o sotaque do horário nobre, e tratou de questões sociais
importantes, relacionadas ao Rio São Francisco, à agricultura, ao meio
ambiente e à sustentabilidade, bem como ao coronelismo e à política.
Dividida em duas fases, a novela começou em 1960 na fictícia Grotas
de São Francisco, mostrando a disputa por terras e poder entre os De Sá
Ribeiro e os Dos Anjos, em meio à luta pelo renascimento do Rio São
Francisco, o Velho Chico.
A ascensão social ou o binarismo entre núcleos mais abastados e
os de menor poder aquisitivo não foi tão proeminente, ainda que hou-
vesse disputas de poder ocupando a centralidade da trama. Ambientada
no Nordeste, evoca elementos que retratam importantes fundamentos

9
Única plataforma que compõe o corpus.
Autor: Benedito Ruy Barbosa; direção: Gustavo Fernandez, Philippe Barcinski e Antonio
10

Karnewale; 172 capítulos.

194
populares da região: a religiosidade, a relação com o Rio São Francisco,
as dificuldades com a seca, o coronelismo.
Os personagens do universo popular foram Beatriz, filha de dois
lavradores que serviam ao coronel Afrânio, que estudou para buscar outro
destino; Zé Pirangueiro, pescador, líder da comunidade que tenta salvar
o Velho Chico; e Josefa, companheira de Zé, lavadeira, ribeirinha, mãe
de três filhos, que jamais perde as esperanças.
O figurino foi tratado por processo artesanal, com a descoloração e
o envelhecimento dos tecidos: exposição ao sol, aplicação de cera, des-
gaste com lixas, pedras e, em alguns casos, foi usada a terra do sertão.
Na primeira fase, destaque para os tons pastel dos sertanejos e tons mais
saturados para os que viviam em Salvador. A maquiagem dos personagens
foi mínima, seguindo o conceito de realismo.
A fotografia contou com planos diferenciados que valorizam a atu-
ação e as locações: planos fechados, que carregam na dramaticidade, e
abertos, que localizam o sertão nordestino. O tratamento das imagens
teve importante destaque: a direção de arte, detalhista e diversificada em
cores e formas que remetem à estética simples, forte e dura do sertão
nordestino (tons terrosos, figurinos sertanejos, maquiagem imitando
transpiração e calor, cenários com objetos da região etc.).
Por outro lado, a direção de atuação primou pela valorização do
sotaque nordestino e por certo exagero na dramaticidade. A edição, em
alguns momentos, fugiu do campo/contracampo11, incorporando apro-
ximação poética e enfatizando a função semântica, ou seja, a produção
de significados denotativos e conotativos através de longos planos de
composição sem diálogos. Velho Chico trouxe inovações estéticas ao
aproximar a fotografia da linguagem cinematográfica, ao explorar os
excessos da estética barroca e ao adotar um ritmo narrativo lento e pau-
sado (Junqueira, 2016).
A trilha sonora trouxe várias marcas de construção do popular, com
incidência de temas e artistas que se identificam com o ambiente rural,
integrantes da MPB e de inserção regional.

11
O campo é o espaço que é focalizado pela câmara. Contracampo é uma sucessão de tomadas
ou planos mostrando ora um, ora outro interlocutor de um diálogo (Aumont; Marie, 2011).

195
No âmbito da recepção12, as dimensões privilegiadas sobre o popular
foram a temática (Nordeste, regional, sertão), a trama (coronelismo) e a
linguagem audiovisual (cenário/personagens, temporalidades).
Na identificação das temáticas populares, há associação da ambien-
tação com a regionalidade, focada nos valores e na cultura do Nordeste,
com ressalvas para a cultura do recôncavo baiano:

Eu sou do Sertão baiano e sinto mais vivo e vibrante em mim


a nossa cultura sertaneja. Quanto a Salvador e o recôncavo
baiano eu pensava que só eu observava isso. A cultura ser-
taneja é própria do sertão nordestino do sertanejo que luta a
peleja diária do nosso sertão sofrido, pois pra mim essa é a
cultura que mais liga e unifica o nordeste. Cada capital tem
sua própria cultura distinta, já o sertão nordestino transpõe
essas barreiras políticas, podemos dizer que o sertão nordes-
tino fosse como uma nação ou região inserida noutra região.

Elementos vinculados ao Nordeste foram aclamados, em especial a


cultura sertaneja, ribeirinha e rural. Entretanto, foram percebidos alguns
conflitos a respeito das representações: “Acho que a produção desta no-
vela tem que passar mais tempo no Nordeste, pra vê se aprende alguma
coisa sobre o povo nordestino...”.
Em relação à trama, o embate entre o coronelismo e os setores
populares trouxe muitas críticas e comentários. Se parte dos receptores
parabenizou a emissora pela visibilização do Nordeste em horário nobre,
outro segmento mostrou-se decepcionado com a qualidade dessas repre-
sentações: “Sério que a figura do pré-histórico Coronelismo explorador,
escravagista e assassino de pobres está sendo veiculado em rede nacional,
na emissora do GOLPE, no ano do GOLPE, e todos estão achando tudo
natural e normal”; ou ainda: “O tema de esquerda que já não emplaca.
O Brasil está cansado dessa história de só quem é pobre que presta!”.
Em torno das representações da pobreza, gravitam associações com
o regional e com a linguagem audiovisual, em especial críticas à dissocia-

12
Comentários coletados no Twitter (102.659), blogs (60), Facebook (20.039) e YouTube (9.267).

196
ção entre mundo real e ficcional do popular: “Mulheres suadas, homens
maltrapilhos, ambientes parados no tempo! O que esse povo pensa que
somos? Sou ribeirinha, sou sertaneja, nordestina! Sou barranqueira e
não somos isso aí NÃO! !!!!”; “Eita caricatura do nordeste! isso e mais
coroné bodejando, as roupas que nem pobre, nem rico usa (parecem um
teatro de mamulengo de gente), esse tom, ‘nossa, o nordeste eh quente,
eh sofrido, mas eh poesia, eh forte, eh colorido’”.
Ainda nos desencontros entre os mundos possíveis da produção
e recepção, a caracterização dos cenários/personagens foi considerada
inadequada: “Nunca sei se é manha, tarde ou por do sol ou noite... À luz
é sempre a mesma, os personagens têm tudo a mesma cor! Sem contar
que o povo está sempre com cara de suado e sujo...”.

Não aguento ver aquela cozinha ridícula da casa do coronel.


De que adianta ser rico e ter uma cozinha pobre, apertada,
com a tinta da porta descascada.... (...) Ainda bem que ela só
faz mexer panela. imagine se a mulher tivesse que cortar uma
carne, uma verdura... onde ela ia fazer isso? Se tirasse uma
batata frita do fogo, ia por onde?

O âmbito da recepção evidenciou disputas de sentidos em torno


das representações do coronelismo e das representações do Nordeste, do
rural, do sertão e da pobreza a partir da linguagem visual da narrativa,
o que também incluiu estranhamentos em torno da sua não linearidade.

Considerações finais

De uma forma geral, a cultura popular foi retratada nas três narra-
tivas, ainda que com distintos enquadramentos e intensidade. Em Velho
Chico, esteve voltada para o contexto rural da região Nordeste; em
Avenida Brasil, foi trabalhada a partir das representações da periferia
dos grandes centros urbanos; em Império, praticamente ficou circuns-
crita ao núcleo de uma das personagens suburbanas, a filha bastarda do
Comendador.

197
Cabe destacar que, em Império, ainda que não houvesse uma forte
representação do popular na trama, práticas associadas a essa camada so-
cial estiveram presentes nos comentários dos receptores, nas associações
em que se exigia maior cuidado estético de uma personagem em função
de sua classe, ou ainda nas críticas à cozinha do coronel de Velho Chico,
sem o porte ou a manutenção que a situação financeira possibilitaria.
Comentários da mesma ordem também foram identificados em Avenida
Brasil, quando os receptores indicavam que as práticas suburbanas –
pouca educação ou mau gosto – mantinham-se a despeito da situação
econômica privilegiada. As associações realizadas pelos receptores
remetem a Lopes (1990, p. 55) quando enuncia que “a cultura popular
não se determina por sua origem, mas por suas práticas”, questão que
identificamos tanto na produção quanto na recepção.
Assim, ao analisarmos dados dos mundos populares ficcionais das
três telenovelas a partir das categorias trama, temáticas, personagens,
cenários, figurino, linguagem audiovisual e trilha sonora, percebemos
que há distintas formas, investimentos e apropriações dessas construções
do popular. Viu-se que, entre as categorias analisadas, os personagens –
especialmente nas marcas identitárias de suas práticas e pelo figurino – e
a cenografia são importantes instâncias em que se compõem os núcleos
populares e suas histórias, tomadas aqui como “modelos para a redes-
crição do mundo” (Bruner, 1997, p. 7). No investimento da produção
em recriar uma série de “marcas populares”, foi possível compreender
o quanto o produto telenovela está consubstanciado na ideia de ser um
equivalente do mundo, ainda que não seja idêntico ao nosso, como frisa
Cauquelin (2011).
Com base no corpus, percebeu-se que quanto mais essa camada
social está articulada à trama, maior é a reverberação que se identifica
entre os receptores – o que ficou claro na análise de Avenida Brasil e
seu investimento nas representações de periferia, questão central na nar-
rativa. Entre as três telenovelas analisadas, essa é a que se relaciona de
modo mais amplo com a abordagem do popular, em um atravessamento
transversal entre a narrativa, o contexto sociocultural (ascensão da classe
C) e a produção dos receptores nas redes analisadas. Vale observar que

198
essa foi “a primeira novela coqueluche da internet” (Xavier, [201-]), o
que justifica a grande mobilização nas redes, relacionada aos “mundos
populares”, ao carisma dos personagens ou às inovações da linguagem.
Destaca-se o constante replicar do refrão da trilha de abertura #oioioi
(música de ritmo popular), ou mesmo os memes, gifs e bordões da vilã
Carminha que circularam amplamente, aspectos anteriormente abordados
(Oikawa; John; Avancini, 2012; Jacks et al., 2013). Assim, percebe-se a
importância da participação ativa dos receptores na criação de mundos
possíveis ficcionais, conforme já apontados por Jenkins (2008), Massaro-
lo (2011) e Scolari (2011), sendo as redes sociais um espaço privilegiado
de conversa acerca das tramas, mas também de construção, legitimação
ou questionamento dos mundos possíveis.
Sobre esse último ponto, o de contestação, o caso de Velho Chico é
ilustrativo: há registros de conflitos entre as representações e apropriações
do rural nordestino, especialmente na caracterização dos personagens e
na ambientação. A decepção de alguns espectadores possivelmente se deu
pelo embate na atribuição de sentidos entre os mundos já existentes na
mente do sujeito e os propiciados pela narrativa, confrontos já discutidos
por John (2014). Interessante registrar que um trabalho anterior do grupo
(Jacks et al., 2017) indicou outro desalinhamento entre as instâncias aqui
enfocadas, pois muitos telespectadores não acompanharam as transições
temporais da trama e identificaram Velho Chico como uma telenovela
marcadamente de época.
Desse modo, ainda que o telespectador esteja ciente do caráter fic-
cional desse gênero, as telenovelas são encaradas pelo público, muitas
vezes, como um retrato do que se vive na realidade, e exatamente por
isso promovem o envolvimento das audiências. Como explica Silva
(2015, p. 20),

se existe um “mundo real”, ele só tem sua existência pos-


sibilitada graças a essas construções. Não existe realidade
anterior ao discurso que a constitui, seja este os enunciados
que permeiam a vida cotidiana e as relações interpessoais
e coletivas, seja este discurso um trabalho científico como
a etnografia, seja ele um produto artístico como o cinema.

199
Por fim, cabe retomar as concepções de Martín-Barbero (2003) sobre
o popular, espaço primordial de reflexão, processo em que a televisão
tem um papel histórico. A telenovela se apropria costumeiramente da
noção do popular para produzir sua narrativa, o que fica evidente nos
três títulos analisados, mas não só. O próprio gênero e a cumplicidade do
público a ele têm origem nas marcas e matrizes da oralidade que carrega,
remetendo às primeiras formas do narrar do melodrama. Certeau (1994)
vê a subversão do popular a partir das práticas cotidianas e afirma que
os desafios imediatos são respondidos como lugar de invenção, ou seja,
os mundos populares reais e ficcionais são plurais, ainda que em muitos
momentos reforcem alguns estereótipos.

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202
Mundos ficcionais e representação da política:
a ditadura militar nas séries da Globo

Ana Paula Goulart Ribeiro


Igor Sacramento
Patrícia D’Abreu
Tatiana Sciliano
Lilian Durães
Gabriela Pereira da Silva

Qualquer ficção televisual é uma representação da vida social que


produz e dinamiza memórias sobre o mundo. Mas há um tipo de produção
televisiva que se compromete com o real, construindo referencialidades
pela reconstituição de personagens, ambientes, eventos e processos
reconhecidos como parte de experiências comuns. Os exemplos mais
evidentes são as tramas históricas ou biográficas: imagens, sons e diálogos
constituem uma forma bastante específica de uso do passado e de escri-
tura da história, que estabiliza sentidos e constrói memórias coletivas.
Entendendo que a memória é sempre uma construção de sujeitos,
grupos e instituições, nos propomos a discutir como são organizados
os discursos televisivos de inspiração histórica, sobretudo os que pri-
vilegiam o passado recente do país –especificamente a ditadura militar
(1964-1985).1 Para isso, analisamos duas produções ficcionais da Glo-

1
A ditadura militar é um período histórico bastante estudado no Brasil. A produção acadêmica
sobre o assunto é expressiva e ganhou ainda maior impulso com a proximidade do aniversário
de 50 anos do golpe. O assunto também ganhou destaque com a implementação de políticas
de memória, como a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em maio de 2012. Na
literatura, o tema inspirou uma vasta produção tanto memorialista quanto ficcional (Perlatto,
2017). E há ainda uma grande filmografia sobre o assunto, dividida entre documental e ficcional.
Em termos de ficção televisiva, entretanto, existem poucas obras que focam o período. O SBT
produziu a novela Amor e Revolução, de Tiago Silva, exibida entre 5 de abril de 2011 e 13 de
fevereiro de 2012; e a Globo, as duas séries que analisaremos neste trabalho, Anos Rebeldes
e Os Dias Eram Assim.

203
bo: Anos Rebeldes (1992) e Os Dias Eram Assim (2017). Buscamos
entender como o contexto político da repressão foi representado. Que
imagens e discursos foram selecionados, construídos e reforçados? Que
enquadramentos, silenciamentos e esquecimentos (Pollak, 1989) foram
propostos? Procuramos também analisar a forma de circulação desses
produtos, que foram construídos em dois cenários distintos: o início dos
anos 1990 e o final da década de 2010.
Ao estudar os processos de representação do passado pela tele-
dramaturgia, buscamos entender como se dá o trabalho televisivo da
memória, que, nesse caso, envolve a construção narrativa de mundos
sociais. Partimos do princípio de que a linguagem nunca se funde com
a realidade que procura descrever e que a representação possui uma di-
mensão necessariamente pragmática, uma vez que constrói certos mundos
em detrimento de outros possíveis. No caso de realidades históricas, as
representações sobre o passado fundamentam nossas percepções e jul-
gamentos, interferindo em nossas maneiras de dizer e agir no presente,
assim como nas formas de projetarmos e imaginarmos nossos futuros.

Construção de mundos e memória coletiva

A construção de mundos (world building) é prática intrínseca à es-


truturação de narrativas. Embora isso tenha sido explorado em estudos
sobre a ficção científica (cf., por exemplo, Saler, 2012; Sodré, 1973;
Williams, 2011; Wolf, 2012), as reflexões sobre narrativas transmídia
ampliaram essa abordagem para a compreensão sobre como determinados
produtos criam ambientes que não podem ser totalmente explorados ou
exauridos em um único trabalho ou mídia. Para Henry Jenkins (2009),
o mundo construído é maior do que a narrativa que o produz, já que as
especulações e elaborações de fãs o expandem. É preciso considerar a
cumplicidade entre os mundos e a mídia, levando em conta modelos
teóricos, estratégias econômicas e industriais, elementos estilísticos e
usos dos fãs. A mídia pode ser definida, assim, como articulações mu-
táveis de ambientes tecnológicos com usos socioculturais, que devem
ser concebidos como instrumentos de transmissão, como nos canais de

204
mídia de cima para baixo, mas também como um conjunto simbólico-
material que contribui para o ativo processo de construção de mundos.
A partir do circuito descrito por Jenkins, buscamos desenvolver
nosso estudo sobre a construção dos mundos na ficção televisiva. Anali-
samos a produção e a circulação das narrativas, entendendo que o assistir
televisivo hoje constitui uma experiência radicalmente diferente daquela
anterior aos anos 1990. Optamos por uma abordagem que permitisse
observar os modos de construção do passado e o trabalho de memória
configurado nas duas séries: como as narrativas, em suas tessituras,
selecionam alguns fatos do passado, silenciam e esquecem outros, pro-
duzindo enquadramentos e modos de ver.
A memória, como campo de reflexão, tem crescido significativamen-
te no interior dos estudos sobre a mídia nos últimos anos. A maioria das
reflexões parte da constatação de que os meios de comunicação ocupam
um lugar privilegiado na dinamização da cultura da memória (Huyssen,
2000). O culto ao passado perpassa a sociedade como um todo, inclusive
as práticas pessoais mais cotidianas, mas é na mídia que ele ganha maior
visibilidade e poder de agendamento social. Há uma intrínseca relação
entre cultura da memória e cultura da mídia (Ribeiro, 2012, 2014).
Nesse sentido, o audiovisual tem sido um objeto de muitas reflexões
(Holdsworth, 2011; Splenger, 2011; Landy, 2000; Beail; Goren, 2015).
No Brasil, tem-se apontado para a diversidade das formas como narra o
passado e a nação (Sobchack, 1996; Lopes, 2009).
Compreendemos, conforme Mônica Kornis (2003, 2011, 2015), que
alguns produtos da ficção seriada elaboram uma visão sobre o passado
do país e seus cidadãos, trabalhando e reelaborando imaginários e reper-
tórios coletivos. Interessa-nos, pois, investigar como o presente recria
um passado (Kornis, 1996; Motter, 2001). As imagens e narrativas da
teleficção devem ser interpretadas levando em consideração o olhar que
as organiza. Além disso, é preciso considerar que, ao circularem, essas
narrativas deixam seus vestígios e rastros como documentos-monumentos
(Le Goff, 1990), pois podem ser acessadas no futuro como registro de
um passado.
Tentamos mostrar como a história da ditadura militar foi cons-
truída e dada a ler pelas séries Anos Rebeldes e Os Dias Eram Assim,

205
considerando os contextos sociais de produção e circulação. Buscamos
compreender as articulações entre o discurso e o mundo social ao qual
pertence e analisar os processos de negociação, disputa e acomodação
de sentidos sobre o passado. Procuramos identificar os elementos narra-
tivos (visuais, sonoros e textuais) que mostram como a memória sobre a
ditadura militar foi enquadrada. Como foram elaboradas representações
sobre o passado recente e sobre o que aconteceu no país durante o go-
verno militar? De que forma foram configuradas narrativas históricas e
mobilizadas ideias de nação? Como se deu o apelo ao passado? De que
elementos esses produtos lançaram mão? Como as experiências preté-
ritas foram enquadradas? A que significações remetem? Que diferentes
performatividades produzem?
Nosso objetivo também foi dar conta de formas de circulação, que
entendemos aqui – baseados em Scolari (2011) – como dimensões in-
trínsecas dos processos de construção de mundo das séries. Analisamos
o noticiário e críticas que foram publicadas no período de exibição de
Anos Rebeldes nos jornais O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S.
Paulo e na revista Veja. Analisamos também textos saídos nesses mesmos
periódicos sobre Os Dias Eram Assim, assim como material produzido
por grupos criados em redes sociais sobre a série. Esses dois contextos
midiáticos distintos e suas diferenças é o que nos interessa.

Anos Rebeldes

Anos Rebeldes conta a história de um grupo de estudantes que viveu


a efervescência cultural e política dos anos 1960 no Rio de Janeiro. Es-
crita por Gilberto Braga e Sérgio Marques, com colaboração de Ricardo
Linhares e Angela Carneiro, e direção geral de Dennis Carvalho, com
colaboração de Ivan Zettel e Sílvio Tendler, foi exibida em 20 capítulos,
de 14 de julho a 14 de agosto de 1992.
Para reproduzir o clima político e cultural da época, os autores
usaram como referência os livros 1968: O Ano que Não Terminou, de
Zuenir Ventura, e Os Cabornários, de Alfredo Sirkis. Algumas partes
desses livros foram quase roteirizadas na minissérie. A juventude é a

206
protagonista do cenário revolucionário e de contestação, a partir de al-
guns personagens, como os que aderiram à luta armada e os que optaram
pela contracultura.
Vale ressaltar que, desde o primeiro capítulo, Anos Rebeldes é re-
pleta de referências ao cinema. Os diálogos citam a revista Cahiers du
Cinema, movimentos artísticos como a Nouvelle Vague, os cineastas
Godard, Fellini, Truffaut, Visconti e Glauber Rocha e os filmes Deus
e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas, Jules et Jim, Hiroshima mon
Amour e Bonnie e Clyde. A trilha sonora é composta por clássicos do
MPB da época. Além de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, que abre
a minissérie, há canções que vão desde a Bossa Nova, como Meditação,
de Tom Jobim e Newton Mendonça, até engajadas ao projeto do Centro
Popular de Cultura (CPC), como a Canção do Subdesenvolvido, de Car-
los Lyra e Chico de Assis. Fala-se do show Opinião, de sambistas como
Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Nelson Cavaquinho e do Festival
Internacional da Canção, com destaque para a disputa entre Sabiá, de Tom
Jobim e Chico Buarque, e Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de
Geraldo Vandré. Também há espaço para sucessos internacionais como I
Can´t Take my Eyes off You (Bob Crewe e Bob Gaudio), Call Me (Tony
Hatch) e Senza Fine (Gino Paoli).
Os acontecimentos políticos têm papel central. Não servem apenas
como pano de fundo para o romance dos protagonistas. São os fios con-
dutores da história. Do golpe de 1964 até a volta dos exilados, são quase
todos exaustivamente listados e ilustrados. A narrativa é entremeada por
painéis documentais, produzidos pelo cineasta Silvio Tendler. Imagens
em preto e branco dos personagens também foram usadas, dando a
sensação de serem imagens de época. O uso de elementos históricos ou
documentais (imagens de arquivo, jornais, canções, fotografias, citações
de filmes, peças e outros) contextualizou a trama, dando-lhe uma anco-
ragem factual, produzindo ao mesmo tempo um efeito de pastness e de
real (Jameson, 1991; Barthes, 2004).
O excesso de referências históricas na reconstituição da época foi,
entretanto, alvo de crítica de Marcelo Coelho. Segundo o jornalista, a
busca pelo realismo transformou o universo da minissérie num mundo

207
“tão tipicamente anos 60” que soava falso. Mas as referências de época
ajudaram o espectador, sobretudo os mais jovens, a se identificar com
aquela época, reconstruída romanticamente como heroica. É curioso
lembrar que os protestos estudantis do movimento Fora Collor usaram
como hino Alegria, Alegria, a música tema da série.
A canção suturou as múltiplas temporalidades apresentadas na tela.
A obra abre no ano de 1968 com uma cena de um assalto a banco para
financiar guerrilhas, presenciado pela protagonista Maria Lúcia (Malu
Mader) e por sua tia Dolores (Denise Del Vechio). À noite, Maria Lúcia
critica, para o namorado João Alfredo (Cássio Gabus Mendes), o uso da
violência como forma de resistência política, afirmando que aquilo “não
era normal”. Ao que ele responde: “Quem está vivendo em condições
normais?”. Ele promete jamais se envolver em atos de violência. Mas, na
cena seguinte, João aparece usando um revólver numa ação similar. Em
seguida, o personagem aparece em março de 1964, na aula de história do
Colégio Pedro II, e uma cartela identifica que eram os “anos inocentes”,
período de 1964 a 1965, que se estenderá até o capítulo 6.
Depois são tematizados os “anos rebeldes”, dos capítulos 7 ao 13,
correspondendo aos anos 1966 e 1967. E dos capítulos 14 ao 20, são
retratados os “anos de chumbo”, referentes ao período de 1968 a 1970. As
cenas sobre os conflitos entre militantes e polícia e o funcionamento dos
aparelhos são retiradas do romance autobiográfico de Alfredo Sirkis, Os
Carbonários, e da vivência do coautor da minissérie Sérgio Marques. A
atmosfera da época se inspirou no livro 1968: O Ano que Não Terminou,
de Zuenir Ventura, e nas memórias de Gilberto Braga. No capítulo final,
há um salto temporal para 1979, após várias imagens sequenciais, em
preto e branco, com acontecimentos de 1974 a 1979: no desembarque
no Galeão, os amigos de Pedro II aguardam os que retornam do exílio;
entre eles está João, que reencontra Maria Lúcia.
Maria Lúcia, João Alfredo e Edgar (Marcelo Serrado) protagonizam
um triângulo amoroso. Maria Lúcia e João Alfredo vivem o conflito
provocado pelas diferentes visões de mundo que têm, apesar da forte
atração que sentem, do ethos geracional que partilham e da oposição à
ditadura. Ela, porém, não aprova o engajamento dele com a militância

208
radical. Maria Lúcia não é indiferente aos abusos do regime militar, mas
não se identifica com a postura revolucionária e quer segurança financeira,
casamento e filhos. Seu projeto individualista se choca com o de João
Alfredo: despreocupado com bens materiais e conforto ou privacidade,
sua preocupação é social e coletiva. Edgar, seu melhor amigo, também
se apaixona por Maria Lúcia e se dispõe a ser um porto seguro para a
moça. A paixão entre João Alfredo e Maria Lúcia não arrefece com os
anos, mas não é suficiente para sustentar o relacionamento entre eles. No
retorno de João do exílio, Maria Lúcia passa uma noite com ele, mas,
no dia seguinte, ela percebe que ele continua mobilizado pela política.
Com o fim da ditadura, novas lutas se desenhavam.
Além da história de amor, a minissérie fala sobre a amizade de
quatro rapazes que se separaram por trilharem caminhos distintos e se
tornarem pessoas com diferentes visões de mundo: João opta pela luta
armada e é exilado; Edgar torna-se executivo; Galeno (Pedro Cardoso),
inicialmente sem rumo definido, torna-se teledramaturgo; Waldir (André
Pimentel), filho de um porteiro e ajudado pelos amigos, se transforma
em um carreirista a serviço do empresário Fábio (José Wilker), que
apoiou a ditadura.
Entre as personagens femininas, está Heloísa (Cláudia Abreu),
que simboliza ao máximo os “anos rebeldes”. Milionária espevitada e
contestadora dos costumes, adquire consciência política, se engaja na
luta armada e é assassinada pela polícia, deixando uma filha do relacio-
namento com o militante Marcelo (Rubens Caribé). Numas das cenas
fortes da minissérie, Heloisa abre sua blusa e mostra a Fábio, seu pai, as
marcas da tortura que sofreu na prisão, ao mesmo tempo que confessa
ser uma militante de esquerda. A tensão entre Heloisa e Fábio define um
lugar para a personagem do empresário na trama: o de vilão conivente
com o trágico assassinato da filha.
Em entrevista ao Memória Globo, Gilberto Braga disse que Anos
Rebeldes foi uma solicitação, com título e tudo, dos espectadores de Anos
Dourados (1986), que pediram uma continuação de uma história de época
tendo como pano de fundo a ditadura militar. Se em Anos Dourados Gil-
berto Braga quis discutir a hipocrisia de um tempo (a década de 1950),

209
em Anos Rebeldes a ideia era denunciar o autoritarismo simbolizado pela
ditadura militar. Para o autor, falar do passado era importante para que
os erros não se repetissem.

Reações rebeldes: a ditadura na década 1990

Na época em que a minissérie foi produzida, estava em curso o


impeachment do presidente Fernando Collor, e os jovens, conhecidos
como “caras-pintadas”, se destacaram como protagonistas no processo.
A analogia entre o que estava sendo exibido nas telas e experimentado
nas ruas foi muito destacada pela imprensa da época, que creditou à
televisão um grande poder de mobilização.
A série teve uma grande repercussão e gerou também controvérsias.
Nos periódicos, foram tratados os seguintes temas:
a) a satisfação de ex-militantes que acharam a narrativa da série veros-
símil; críticas do público e de jornalistas alegando que a emissora
usou o fato histórico como pano de fundo para uma história de
amor e que a narrativa, suavizada, não informava os jovens sobre
os horrores da ditadura;
b) o tom saudosista da série, que evocava a rebeldia, a juventude, a
agitação e a ousadia da década de 1960 e que teria sido utilizado
para inflamar as manifestações contra o governo Collor;
c) a negação, pelos militares, da existência de um período obscuro na
história brasileira, que por eles é chamado de “revolução democrática
de 64”.
No período de exibição da série, a imprensa se apropriou da ex-
pressão “anos rebeldes” para se referir a diferentes movimentos contes-
tatórios relacionados à juventude. A matéria “Estudantes revivem ‘anos
rebeldes’ na USP”, da Folha de S. Paulo, de 17 de julho de 1992, relatou
protestos liderados pela UNE contra a relação universidade-empresa. Em
“Estudantes vão às ruas pelo impeachment”, de 12 de agosto de 1992, no
mesmo jornal, a expressão “anos rebeldes” nomeia a atmosfera de uma
passeata de estudantes contra Fernando Collor, na qual a música Alegria,
Alegria, de Caetano Veloso, era entoada. No texto, há o depoimento de

210
uma estudante de 14 anos que disse não se envergonhar de desconhecer
os acontecimentos políticos exibidos na série.
O Jornal do Brasil, em 18 de julho de 1992, noticiou críticas do Exér-
cito contra Anos Rebeldes, que, de acordo com a instituição, deturpava
os fatos ao acusar as Forças Armadas de cometer crimes hediondos. Os
estudantes não tinham sido heróis, mas “presas fáceis” do “banditismo
irresponsável”. O Jornal do Brasil, embora tenha se oposto à postura
negacionista do Exército, também não poupou críticas à falta de fideli-
dade ao passado da série e apontou uma série de imprecisões históricas:

[...] Brigitte Bardot não desembarcou no Brasil em pleno


golpe militar. [...] A orla marítima da Zona Sul carioca era
bem diferente da atual. Nela não se podia avistar o edifício do
Hotel Meridien, como se via pelas amplas janelas do terraço
do Hotel Miramar, onde os protagonistas João Alfredo (Cássio
Gabus Mendes) e Maria Lúcia (Malu Mader) foram dançar
num dos primeiros capítulos. [...] Can’t take my eyes off you,
de Bob Crewe e Bob Gaudio, foi lançada em 1967. Ela não
poderia ter sido tocada na festa de formatura de Maria Lúcia,
que se passa em 1964. There’s a kind of hush, de Les Reed e
Geoff Stevens, foi gravada pelo Herman’s Hermits em 1966
e tampouco poderia ter sido fundo musical da paquera entre
Heloísa (Cláudia Abreu) e seu professor de violão (Tales Pan
Chacon) (Martins, 1994, p. 1).

Conforme o jornalista Luís Antônio Giron, na Folha de S. Paulo, em


16 de agosto de 1992, a obra veiculada na Globo “contou uma história
e inspirou outra”: a ficção pautou o noticiário. Gilberto Braga contou
ter visto “um cartaz carregado pelos cara-pintadas onde estava escrito:
‘Anos Rebeldes, último capítulo: Fora Collor’” (Giron, 2010, p. 30-31).
De acordo com o autor, os jornais queriam que ele assumisse que a mi-
nissérie tinha influenciado as manifestações políticas contra o presidente
e que, por isso, não participou de debates com estudantes.
Segundo Rebecca Atencio (2011), Anos Rebeldes teria inaugurado
um tipo diferente de merchandising social: em vez de violência domés-

211
tica, crianças desaparecidas, drogas, transplante de órgãos e desamparo
à velhice, a minissérie enfatizou a importância da memória política do
país. Para autora, a Globo fez um merchandising de memória e enquadrou
as versões do passado que desejava transmitir.

Ditadura, didatismo e melodrama em 2017

A série Os Dias Eram Assim foi ao ar 25 anos depois de Anos Rebel-


des, entre 17 de abril e 18 de setembro de 2017, com 88 capítulos. Escrita
por Ângela Chaves e Alessandra Poggi, inicia em 1970, em plenos anos
de chumbo. A história gira em torno do amor de Renato Reis (Renato
Góes) e Alice (Sophie Charlotte), que se conhecem no final da Copa do
Mundo. O cenário é o Rio de Janeiro e, apesar de ambos morarem na zona
sul carioca, suas famílias vivem em condições distintas. Ele mora com a
mãe, Vera (Cássia Kiss), dona de uma livraria, e com os irmãos Gustavo
(Gabriel Leone) e Maria (Carla Salle). Médico recém-formado e idealista,
começa a se destacar na profissão. Ela, bonita e um tanto rebelde, mora
com o pai, o empresário ganancioso Arnaldo (Antonio Calloni), a mãe
submissa, Kiki (Natália do Valle), e a irmã, Nanda (Letícia Braga e Julia
Dalavia). Superprotegida, Alice questiona o conservadorismo dos pais.
Os destinos de Alice e Renato se cruzam também por três coincidên-
cias. Durante um parto difícil, Renato salva a vida de Monique (Letícia
Spiller), que é casada com Antônio (Marcos Palmeira), tio de Alice. Ao se
manifestar contra o apoio de Arnaldo à ditadura, Gustavo se vê envolvido
em um ataque a bomba contra a empresa Amianto, de propriedade do
pai de Alice. Mais tarde, Maria se casa com Antônio. Mas o que sela o
destino dos apaixonados Renato e Alice é o ódio de Arnaldo. Apoiador
da repressão, ele financia o delegado corrupto Amaral (Marco Ricca), que
persegue, tortura, mata e oculta os corpos de opositores do regime militar.
Ajudado pelo inescrupuloso pupilo Vitor (Daniel de Oliveira), Arnaldo
exige que Olavo capture Gustavo em uma perseguição que culmina com
a fuga e o exílio de Renato no Chile e a dramática prisão de seu irmão.
Para que o rapaz não seja assassinado na cadeia por Amaral, Vera faz
um acordo com Arnaldo para separar o exilado Renato e a desesperada
Alice, que, esperando um filho do jovem médico, acaba se casando com

212
Vitor por pensar que seu amor está morto. Como as cartas apaixonadas
de Renato para Alice são interceptadas por Vera, ele, pensando que a
moça o esqueceu, se casa com Rimena (Maria Casadevall).
Uma década depois, durante a anistia política brasileira, nos anos
1980, Renato volta para o Brasil com a família que formou no Chile. Em
uma manifestação do movimento Diretas Já, ele reencontra Alice, então
fotógrafa e mãe de dois filhos: um menino, filho dele, e uma menina,
fruto do casamento dela com Vitor. Apesar da dolorosa separação e do
reencontro traumático, o amor entre os dois fala mais alto, o que leva a
uma série de encontros e desencontros, em uma intriga cuja tessitura é
comandada pelo caráter autoritário da sociedade brasileira.
Em Os Dias Eram Assim (2017), a ditadura militar é representada
através de uma rica reconstituição de época, que engloba cenário, figurino,
imagens de arquivo, músicas e diálogos. Na abertura, imagens ficcio-
nais e de época se misturam para mostrar canhões, militares, protestos,
passeatas, estudantes e repressão policial, ao som da canção Como os
Nossos Pais, de Belchior. Os fatos políticos, como em Anos Rebeldes,
costuram a narrativa e, em muitos momentos, é feita uma fusão de ima-
gens históricas e ficcionais.
Na articulação entre a construção do personagem Gustavo e o arco
dramático do casal Alice e Renato, a ditadura militar parece ter funciona-
do mais como pano de fundo para um romance do que articulação crítica
entre ficção narrativa, memória social e conhecimento histórico. Além
de dezenas de personagens não terem envolvimento com a militância
contrária à ditadura militar, a carga de opressão e as maiores violências
da trama são contra a história de amor e a harmonia do ambiente privado
familiar, e não contra a sociedade e a democracia brasileiras. Porém,
mesmo que a militância política (explícita na trama de Anos Rebeldes)
não seja a tônica da composição e da ação dos personagens de Os Dias
Eram Assim, a marca política de arbítrio e abuso de poder que carac-
teriza o período é determinante na constituição dramática das relações
privadas na minissérie.
Aqui, é importante ressaltar a necessidade de inserção de cenas
didáticas, com explicações sobre o período histórico por parte dos
personagens. Mesmo tendo como objetivo a audiência, esse didatismo

213
teve o potencial de combater a falta de conhecimento do público sobre a
ditadura e o esquecimento do brasileiro em relação a questões políticas
importantes da história republicana.
Nesse sentido, a figura da mãe parece muito importante na série. As
imagens e os discursos sobre o período reforçam a ideia de que o envol-
vimento com a política durante a ditadura desestruturava as famílias. Isso
se evidencia com a personagem Vera, que sofre para proteger seus dois
filhos, Gustavo e Renato. Nessa dinâmica das representações da mãe, as
transitividades representam o que passou e a reflexão aponta as exigências
que norteiam a criação. Na representação do passado, mundos sociais são
narrativamente construídos através de uma operação de mediação que
recoloca um objeto ausente na memória. Como um dos símbolos mais
fortes do drama provocado pelos regimes autoritários latino-americanos
na segunda metade do século passado, a figura da mãe representada por
Cássia Kiss pode ser lida como uma analogia às mães da Praça de Maio,
na Argentina, e à estilista Zuzu Angel.
Essa analogia, porém, não se aplica a outras personagens. Kiki sofre
por conta de suas filhas não agirem conforme as regras familiares. Em
contrapartida, a mãe representada por Mariana Lima, a “subversiva”
Natália, é acusada pelo próprio marido de colocar a filha em risco. Já a
mãe negra, Dalva (Ana Miranda), tem seu drama relatado em uma única
cena, sem que o filho, o médico Domingos, se envolva com a política. E
o comportamento sexual pregresso da vilã Cora, representada por Susana
Vieira, parece ser responsável pelo destino de maldades do filho Vítor;
enquanto a liberação sexual da mãe vivida por Letícia Spiller, Monique,
vem a reboque de um hedonismo sem eco na vida política do período
representado.
Enquadrada dessa forma, a figura da mãe parece reforçar:
a) com os dramas de Vera, a ideia de que os jovens que militavam
contra a ditadura militar não só estariam expostos a más compa-
nhias (Gustavo não sabe que o amigo, representado por Caio Blat,
cometeria um atentado contra a construtora Amianto), como também
seriam responsáveis por dramas familiares (uma vez que o irmão,

214
Renato, é obrigado a se exilar e a perder o amor de sua vida, Alice,
por conta de seus atos – como demonstram falas dos personagens) e
se colocariam em risco de morte (já que é torturado pela repressão);
b) com a dor de Kiki, a ideia de que um comportamento livre e ques-
tionador tem como consequência a punição, uma vez que a libertária
Nanda sofre e morre por ter contraído aids;
c) com a tortura sofrida por Natália, a ideia de que a militância contra
o regime não se coaduna ao papel de esposa e mãe, já que seu en-
volvimento com a política não só coloca a família em risco, como
também interfere em seu relacionamento sexual com o marido e em
sua empatia com a filha.
É preciso chamar a atenção para o fato de que Os Dias Eram As-
sim exibiu, pela primeira vez na teledramaturgia, sequências da tortura
praticada por agentes do Estado durante a ditadura militar. Há que se
mencionar que essas sequências foram destaque na série, assim como os
diálogos contundentes sobre os crimes contra os direitos humanos e sobre
outras arbitrariedades ocorridas na época. Nelas, tudo converge para o
incômodo do telespectador: direção de arte, sonoplastia e exposição dos
corpos dos atores a situações, no mínimo, desconfortáveis. Alternando
planos fechados de rostos suados, expressões contorcidas e esgares de
dor, com planos abertos de lugares lúgubres, escuros e claustrofóbicos,
essas sequências também mostravam, com menos intensidade, a ação
de torturadores.
A presença do personagem interpretado por Antonio Calloni, o
empresário Arnaldo Sampaio, chama a atenção: ao assistir as torturas
praticadas, ele parece refletir a conivência da sociedade brasileira com
injustificáveis abusos de representantes da lei – abusos esses cometidos
tanto no período retratado como no contexto brasileiro no qual Os Dias
Eram Assim foi ao ar. O personagem foi inspirado no empresário Albert
Hening Boilesen, presidente do grupo Ultra, que ajudou a financiar
operações repressivas, como a Operação Bandeirante (Oban), contra
grupos de esquerda.

215
Os dias eram assim?

O ano de exibição da minissérie foi conturbado. A presidenta Dilma


Rousseff havia sofrido em 2016 um golpe jurídico-parlamentar. O país
estava ideologicamente dividido. De um lado, manifestantes reclamavam
a legitimidade do mandato da presidenta, que, com mais de 54 milhões de
votos diretos, era acusada de “pedaladas fiscais”. De outro, uma intensa
revolta contra escândalos de corrupção clamava o fim das instituições
democráticas e a intervenção militar. Nesse contexto, no qual o estado
democrático de direito e o desespero intervencionista se chocavam, as
famílias de Renato Reis e Alice Sampaio parecem ter funcionado como
metáfora: Os Dias Eram Assim usou claramente o passado para falar do
presente. As cenas finais da série são, nesse sentido, emblemáticas: diante
do vai e vem das ondas do mar, Alice e Renato, juntos e envelhecidos,
aparecem, nos dias de hoje, refletindo sobre a necessidade de retomarem
a luta pela liberdade.
A série gerou simpatia entre os telespectadores, mas também rejeição
por grupos que contestaram os sentidos propostos pela obra. Na imprensa,
houve pouca controvérsia. A repercussão da série foi pequena se com-
parada à de Anos Rebeldes. A maioria das informações veiculadas eram
de resenhas ou de promoção. Na internet, circularam muitas narrativas.
Chamam atenção as que procuram negar a ditadura e a tortura. Ainda
durante o lançamento, páginas e grupos no Facebook surgiram para
contestar os modos de representação do passado. Um deles foi intitulado
“Os dias não eram assim” (Figura 1).

Figura 1 – Grupo “Os dias não eram assim” no Facebook

Fonte: Facebook (2018)

216
Criado em 7 de janeiro de 2018, o grupo fechado se afirma como
“destinado a todos que apoiam as ideias da direita” e se diz acolher
“monarquistas, bolsonaristas e intervencionistas”. A foto de abertura é
do exército em marcha. Ao positivar as forças armadas, se contrapõe à
série, que apresentou diversos atos contra a dignidade humana promo-
vidos pelos militares.
Outro grupo com o mesmo nome, de 22 de abril de 2017, aparece
sem muita interação para postagens de memes contrários à representação
da ditadura pela série, ou, como nas palavras publicadas no grupo, “a
difamação do regime militar” (Figura 2).

Figura 2 – Grupo Os Dias Nao Eram Assim, no Facebook

Fonte: Facebook (2017)

Nesse grupo, encontramos publicações diretamente contrárias à


série, referida pelo uso da mesma tipografia empregada na sua titulação
em materiais gráfico-visuais (Figura 3). Faz uma oposição entre “os dias
eram assim” e “os dias estão assim”. O tempo da ditadura foi tomado
como o da segurança e da ordem, e o atual, democrático, como sendo
extremamente marcado pela violência e pela desordem.

217
Figura 3 – Postagem no grupo

Fonte: Facebook (2017)

O historiador Henry Rousso (1990) distingue os termos “revisionis-


mo histórico”, que é a atividade consolidada na história de reinterpretação
do passado, e “negacionismo”, que é o fato de negar acontecimentos e
interpretações de processos sociais sem pesquisa histórica consistente,
mas com enorme convicção baseada em crenças e ideologias. Negacio-
nismo se refere à manipulação de fatos históricos para apresentar uma
suposta realidade forjada antecipadamente por razões ideológicas e
políticas. Revisionismo consiste em examinar as ideias historiográficas
tradicionais, questionando-as e introduzindo uma nova interpretação dos
fatos históricos, baseada em novas descobertas. O negacionismo não
“revê” os fatos, mas os nega completamente.
No Brasil, é muito comum que o negacionismo recuse a tortura de
presos políticos, a censura, a perseguição política e a morte de opositores
da ditadura. O período é representado como uma época de prosperidade,
honestidade pública e segurança. O autoritarismo conservador é dado
como saída legítima para as crises brasileiras, rejeitando e estigmatizando
valores liberais ou progressistas (Figura 4).

218
Figura 4 – Postagem no grupo

Fonte: Facebook (2017)

Uma página, criada também em 2017, intitulada Os Dias Não Eram


Assim no Governo Militar, assume a verve nostálgica da ditadura e o
apoio a Jair Bolsonaro. Sobre o estado de exceção, a página diz ter sido
um “período em que bandido não tinha vez e onde o cidadão de bem
era respeitado” (Figura 5). Na imagem de capa, replica o slogan “Brasil,
ame-o ou deixe-o”, utilizado no governo Médici, quando a repressão, a
tortura e o cerceamento à liberdade recrudesceram. A narrativa ufanista
desqualificava os que se opunham à ditadura como não nacionalistas ou
indignos de serem brasileiros.

219
Figura 5 – Página Os Dias Não Eram Assim
no Governo Militar, no Facebook

Fonte: Facebook (2017)

Considerações finais

Anos Rebeldes e Os Dias Eram Assim focam um mesmo período


histórico, mas constroem narrativas diferentes sobre o passado ao lança-
rem mão de distintos recursos dramatúrgicos. Alguns desses recursos –
como edição, iluminação, ritmo dos diálogos, formas de interpretação –
dizem respeito a padrões técnicos e estéticos da época em que as séries
foram produzidas. Outros estão relacionados aos efeitos que se desejava
produzir.
Nas duas séries, apesar da centralidade melodramática das tramas,
focadas em histórias de amor, o contexto político é elemento articulador
fundamental. A política atravessa a vida dos personagens e determina de
forma contundente seus destinos. Anos Rebeldes adota uma perspectiva
romântica ao focar nos sonhos e na angústia de uma geração de jovens
que, em maior ou menor grau, ainda acreditava poder transformar o
mundo e lutar contra as injustiças. Em Os Dias Eram Assim, o tom geral
é mais sombrio e, apesar de também mostrar jovens lutando e resistindo,
seu foco é a força desestruturadora do autoritarismo.

220
Em seus contextos de exibição, as séries tiveram repercussões muito
variadas. Ainda que militares tenham reclamado da forma como foram
representados em Anos Rebeldes, o que sobressaiu foi a ideia de que a
trama teria impulsionado o retorno da atividade política dos estudantes.
Os Dias Eram Assim provocou reações negacionistas em relação à dita-
dura militar e exaltação das práticas autoritárias que a série justamente
procurava criticar. Sobretudo nas redes sociais, o que se viu foi a produção
de discursos conservadores, que procuravam se contrapor àquele da série.
A memória, como sabemos, é um campo de embates. Qualquer
julgamento histórico é aberto e sujeito a revisões no tempo. O consenso
sobre o passado se constrói e se reconstrói continuamente, através de
lutas pelo sentido sobre o que “passou”. Por isso, tem-se atribuído tanta
importância à memória como elemento de conscientização e de produção
de ação política. Relembrar um passado de violência e atrocidades torna-
-se, assim, um imperativo. Nenhuma narrativa é capaz de reconstruir o
passado tal como ele ocorreu, mas pode reelaborá-lo simbolicamente
para as coletividades se prepararem contra seu potencial retorno. Nesse
sentido, gostaríamos de destacar a importância de se veicularem ficções
que discutam acontecimentos da história recente do país e o papel da
televisão como um poderoso agente de memória da sociedade brasileira.

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223
224
Novos formatos teleficcionais e a recepção da televisão
de qualidade no Brasil: um olhar para a supersérie Onde
Nascem os Fortes

Equipe ESPM
Profa. Dra. Marcia Perencin Tondato (coord.)
Profa. Dra. Maria Aparecida Baccega (vice-coord.)

Doutorandos – ESPM
Andrea Celeste Montini Antonacci
Camilla Rodrigues Netto da Costa Rocha
Maria Amélia Paiva Abrão
Mestrandos – ESPM
Carolina Saboia
Doutores – egressos PPGCom-ESPM
Antonio Hélio Junqueira
Fernanda Elouise Budag

A telenovela segue sendo o produto cultural mais consumido no


âmbito da ficção ibero-americana (Piñón, 2018). No entanto, há uma
busca constante de sua renovação e reformulação, especialmente a partir
de novos formatos, nos quais se alteram não apenas a duração e a dis-
tribuição narrativa em números reduzidos de capítulos, mas também as
abordagens culturais, os conteúdos, as estéticas e as técnicas de produção.
Com a proposta de compreender esse cenário, tomamos como objeto de
análise a (denominada) supersérie Onde Nascem os Fortes (Globo, 2018).
Nosso objetivo é refletir sobre os elementos mobilizados na renovação
das séries ficcionais televisivas.
É de nosso interesse ainda investigar em que medida os elementos
ficcionais de Onde Nascem os Fortes se relacionam com a proposição de
um “novo” formato, denominado supersérie (Mungioli; Pelegrini, 2013).

225
É especialmente na reflexão que propomos sobre gêneros, formato e
nomenclatura de supersérie que reside parte de nossa contribuição nesta
pesquisa. Em que pese a impressão primeira da adoção da serialidade
pela indústria cultural visando obter maior lucro, há que se examinar
com cautela a fim de verificar se tais mudanças podem, ao contrário,
vincular-se àquelas percebidas no circuito produção-circulação-distri-
buição-consumo.
Assim, a classificação de Onde Nascem os Fortes como supersérie
pede uma discussão sobre gênero e formato televisivos. Em um comu-
nicado recebido por Guilherme Machado (2018), após comentário sobre
reclassificação de obras como O Astro e Verdades Secretas, previamente
listadas como “novelas” – ganhadoras do prêmio Emmy Internacional
de Melhor Novela, agora denominadas superséries –, a emissora explica
que, em função da liberdade oferecida pelo horário e um volume maior
de investimentos, criou “um produto híbrido”, que combina a história
aberta e longa da telenovela com características de série, como o arco
dramático e os poucos núcleos, que permitem maior desenvolvimento
das personagens.1
Na introdução do Anuário 2016 do Observatório Ibero-Americano
da Ficção Televisiva (Obitel), Lopes e Orozco Gómez (2016, p. 93) resu-
mem a tendência como “a mudança da nomenclatura de telenovela para
série, devido ao status cultural que a série possui” e “uma estratégia de
mercado para atrair novos públicos para a ficção” – que problematizamos
mais à frente. Assim, a supersérie não seria necessariamente um novo
formato, mas quase uma operação de rebranding, estratégia de marketing
que visa formar uma nova identidade para um produto, que nesse caso
é a telenovela latino-americana.
Convém enfatizar que investigação sobre gêneros se dá no sentido
de compreender pactos de teleassistência entre produtores e receptores;
ou melhor, se há de fato um novo pacto, rompendo com a familiaridade
proposta historicamente pela telenovela.

1
Por que a Globo reclassificou todas as suas novelas das 23h como séries. Disponível em:
https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/16/por-que-a-globo-reclassificou-
-todas-as-suas-novelas-das-23h-como-series.htm. Acesso em: 25 abr. 2018.

226
Onde Nascem os Fortes

A telenovela2 das 23h Onde Nascem os Fortes foi produzida e


exibida no Brasil pela Globo entre 23 de abril e 16 de julho de 2018,
somando 53 capítulos, exibidos de segunda a sexta-feira, excluindo-se
as quartas-feiras, dedicadas tradicionalmente à exibição de jogos de fu-
tebol. A obra teleficcional é de autoria da dupla George Moura e Sergio
Goldenberg, em seu sexto trabalho conjunto, sob a direção de Walter
Carvalho e Isabella Teixeira, direção-geral de Luísa Lima e direção
artística de José Luiz Villamarim. Na concepção estética desse produto,
é relevante destacar, ainda, a contribuição de seu diretor de fotografia,
Walter Carvalho.
Totalmente ambientada no sertão nordestino brasileiro, a trama de
Onde Nascem os Fortes se desenrola em torno dos trágicos acontecimen-
tos que tomaram a vida dos gêmeos Maria (Alice Wegmann) e Nonato
(Marco Pigossi), em uma fictícia cidade cujo nome já reflete uma genérica
referência ao tipo de ambiente agreste, vazio e carente do interior do
Brasil: Sertão. Na busca de desvendar o mistério do sumiço do irmão,
Maria passará a enfrentar uma saga pessoal marcada por marginalidade,
banditismo, poderes, mandos e desmandos do “coronelismo” ainda latente
no nordeste brasileiro. O desaparecimento e a morte de Nonato sugerem
uma punição do mandonismo machista frente a uma tentativa de sedução
da amante do empresário local Pedro Gouvea (Alexandre Nero). O enre-
do traz, progressivamente, revelações surpreendentes do caráter de seus
principais personagens, especialmente do juiz Carlos Ramiro Castro, de
alcunha Ramiro Curió (Fábio Assunção). Cássia (Patrícia Pillar), a mãe
dos gêmeos – originária de Sertão, de onde fugira ainda moça devido a
trágicos acontecimentos que serão revelados ao longo dos capítulos –,
transitará amorosamente entre os dois polos masculinos sempre em
disputa: Pedro Gouvea e Ramiro.

2
Deste ponto em diante, adotamos o termo telenovela, assumindo que a produção da Globo
não é uma supersérie, mas uma telenovela.

227
Televisão de qualidade: em busca de um conceito

No contexto dos processos, relações, dinâmicas e cultura das mídias


audiovisuais, a discussão sobre uma televisão de qualidade – particu-
larmente no que se refere às telenovelas e minisséries – é tema amplo e
plural que se desdobra em múltiplas vertentes analíticas possíveis, nem
sempre consensuais. Beatriz Becker (2010) sistematiza algumas dessas
principais possibilidades, destacando a conquista da qualidade como:
(i) abordagem inovadora da linguagem televisiva, do ponto de vista
tanto técnico quanto estético; (ii) condições conjunturais de recepção
e participação da audiência; (iii) agência para a construção de valores
sociais como cidadania, solidariedade, interesses coletivos, ou garantia
de direito de expressão de minorias excluídas, e (iv) formas cada vez
mais amplas e abertas do fazer televisivo, estimulando a diversidade na
oferta de gêneros e experiências multiculturais.
Cabe destacar que o conceito de televisão de qualidade consolidou-
se especialmente a partir do livro seminal de Jane Fauer, Paul Kerr e
Tise Wahimagi (1984), MTM quality television, publicado em Londres,
no qual os autores analisam os modos e os formatos com que a MTM
Entertainment introduziu, a partir da década de 1970, mudanças para-
digmáticas no fazer televisivo internacional, com renovação criativa
de conteúdos, novos formatos, uso de locações externas, utilização de
textos literários complexos e profundos (Muanis, 2015) e de elenco com
elevada reputação (Thompson, 1997).
As novas produções passaram a constituir um gênero específico,
interno à própria televisão, capaz de atrair e fidelizar um novo público,
seleto, sofisticado, instruído, refinado e formador de opinião (Muanis,
2015). Contudo, a construção de uma televisão de qualidade, desde
então, não tem se limitado apenas à revolução de gêneros e conteúdos.
Constituíram-se em elementos fortes da sua elaboração, também, os
cuidados atenciosos com a forma e com as técnicas do fazer teleficcio-
nal, que vieram a consolidar uma nova televisualidade e sua própria
autorreferencialidade (Caldwell, 1995; Sarlo, 2004), ainda que muitos
autores, de diferentes tradições de pesquisa, insistam em considerar que a
televisão de qualidade não represente mais do que uma mera transposição

228
dos conceitos e técnicas do cinema de arte para a televisão.
Alinhamo-nos à identificação da qualidade do fazer teleficcional
como a abordagem que visa à quebra das regras temáticas e discursivas
na elaboração de seus produtos culturais, capazes de estimular novos
formatos para a conquista e retenção da atenção das audiências, instau-
rando espaços para a práxis, reflexão e pensamento crítico, nas brechas
abertas no cotidiano útil e pragmático. Uma teleficção que, sem cair na
superficialidade do didatismo simplista e infantilizante, se torne apta à
mediação da mudança social, influenciando a formação da consciência,
de novas formas de apreensão da realidade-mundo e da construção de
agendas políticas para a nação.
Discutimos os marcos técnicos, estéticos e narrativos que configu-
ram os diferentes períodos de consolidação da televisão de qualidade a
partir da produção, distribuição e consumo de séries teleficcionais que
angariaram prestígio e reconhecimento de público e crítica. Elaborada
a partir da evolução do fazer televisivo das séries norte-americanas, e
constantemente sujeita a revisões, a periodização da televisão de quali-
dade é, tradicionalmente, apontada em três “eras” (Hammond; Mazdon,
2005; Castellano; Meiramadis, 2016): a primeira, “Era de Ouro”, que se
refere aproximadamente ao período entre 1947-1960, consolida a ideia
de que a televisão poderia ser levada a sério, reduzindo a rejeição por
parte de críticos e intelectuais, especialmente devido ao elevado número
de adaptações de obras literárias e teatrais que caracterizou o período
(Thompson, 1997), embora as produções de então sejam consideradas,
em sua maioria, de baixo padrão; a segunda, entre 1981 e 1998, consoli-
dou a inovação de forma, linguagem e técnica, especialmente a partir da
série Twin Peaks (ABC, 1990-1991); a terceira, a partir de 1999 (Maio,
2009, 2011), ensejou a criação do conceito de “televisão de prestígio”,
no interior da qual a alta qualidade passa a ser regra, com o progressivo
e definitivo distanciamento das estéticas e técnicas tradicionalmente
associadas à teleficção seriada, quase sempre consideradas de baixa
complexidade narrativa (Mittell, 2012). O período evidenciou, ainda, a
importância do streaming na consolidação da produção, distribuição e
consumo audiovisual.

229
Recepção no cenário digital

Como parte da proposta de investigar novos formatos ficcionais,


empreendemos também uma observação sistemática sobre a recepção
da série Onde Nascem os Fortes do ponto de vista da repercussão no
universo digital. Trata-se de um movimento feito com base em Scolari
(2011, p. 131), para quem “em muitos casos a construção de mundos
possíveis deixou de ser um processo individual para converter-se em um
processo coletivo que se desenvolve nas redes sociais”. Abordamos a
repercussão da série no Facebook, explorando o que foi compartilhado
na rede sobre a narrativa e os relatos de entrevistados. Especificamente,
refletimos sobre excertos de textos e comentários reativos, produções
textuais e visuais criativas e interações comunicativas do público-alvo
com os conteúdos expostos e publicados em fan pages do Facebook, a
saber: Onde Nascem os Fortes3 (Novela), com 9.159 membros em 28
de maio de 2018, e Onde Nascem Os Fortes4, que contava com 767
membros na mesma data.
A produção de Onde Nascem os Fortes não se situa no contexto
da convergência midiática estimulada pela Globo ao longo dos últimos
anos. Ainda assim, consideramos oportuna a possibilidade de exploração
das manifestações dos telespectadores e fãs nas mencionadas páginas
da rede social Facebook. No entanto, os resultados não se mostraram
tão produtivos para a análise do fenômeno da recepção, com baixo nível
de interação do público com temáticas relevantes postas em circulação
pelo produto audiovisual.
No âmbito do interesse pela construção de mundos imaginários
do ponto de vista de um estudo de recepção, mencionamos Domènech
(2011, p. 26), para quem “todas as imagens nos fazem pensar”, ao dis-
correr sobre a aproximação do real a partir da imagem. Na perspectiva
do objetivo de verificar qual(is) foi (foram) a(s) representação(ões) de
sertão nordestino trabalhada(s) na produção Onde Nascem os Fortes,
esperava-se que, com o desenrolar da trama, os seguintes tópicos fossem

3
Disponível em: https://www.facebook.com/groups/1116477585051914/
4
Disponível em: https://www.facebook.com/groups/1682279415425512/

230
abordados com alguma intensidade e relevância por telespectadores e fãs:
1) questões de gênero: machismo, violência contra a mulher, submissão
feminina; 2) questões ecoambientais: exploração de minérios, invasão
de áreas de proteção ambiental, envenenamento de lagoas; 3) violência
e corrupção policial: conivência corrupta entre poderes (judiciário, po-
licial, político); 4) messianismo nordestino; 5) questões decorrentes de
ações socioeducativas (proteção de cavernas de interesse arqueológico;
doença lúpus). Trabalhamos tais hipóteses em vista do destaque dado ao
merchandising social no contexto midiático contemporâneo, em especial
pela Globo (Dourado, 2011).
Contudo, realizado acompanhamento5 das fan pages antes men-
cionadas seguindo os princípios de verificação da constituição de uma
comunidade on-line altamente ativa, heterogênea, interativa e profun-
damente engajada no debate de temas de interesse mútuo, partilhando
experiências e visões de mundo, verificamos que isso não ocorreu. Esse
fato nos levou a pressupor alguns tópicos de interesse investigativo: (i)
o público que efetivamente aprecia e desfruta integralmente do produto
cultural da “televisão de qualidade” tem maiores níveis de competência
cultural para a sua recepção, porém participa menos intensamente (ou
não participa) de redes sociais digitais, em suas páginas temáticas, como
as do Facebook; (ii) o público que efetivamente participa dessas redes
assiste a telenovelas exibidas no prime time da TV, porém não assiste
(ou assiste menos) a superséries e outros produtos exibidos nos horários
mais tardios de exibição, que normalmente são reservados para produtos
considerados de qualidade apurada e cuidados de produção e, portanto,
mais exigentes em competências culturais para recepção.
Por outro lado, enquanto os comentários e críticas foram poucos e
de baixo índice de relevância quanto aos conteúdos, foram mais amplos e
significativos em relação aos formatos narrativos e estéticos. Nesse caso,
foi possível avaliar o estranhamento do público em relação ao próprio
formato proposto pela “supersérie”, em termos tanto de duração quanto
de ritmo narrativo. Também, de modo semelhante ao que foi observado
em Velho Chico (Junqueira, 2017, 2018, 2019; Junqueira; Baccega,

5
Período de observação: maio a junho de 2018.

231
2017), muitas críticas e elogios se entrechocaram em relação às propostas
estéticas de enquadramento visual das cenas, luz (excessos), cenários e
paisagens. Conexões foram feitas, por exemplo, em relação a estéticas
do western norte-americano.

Fragmentos de uma recepção especializada

Para uma exploração de detalhes sobre a realidade em estudo


(Duarte, 2011, p. 62), realizamos uma entrevista em profundidade com
o administrador de uma das páginas de fãs da supersérie alocada no
Facebook.6 Essa escolha se deu em função de entendermos o moderador
do grupo também como produtor de conteúdo, na medida em que suas
postagens representam uma intermediação entre a produção e o processo
de atribuição de sentido da parte de seus seguidores.
Nosso interesse foi captar as percepções pessoais do entrevistado
sobre a supersérie enquanto receptor privilegiado, moderador de um
verdadeiro observatório que é seu grupo no Facebook, tanto quanto (e
sobretudo) ter as impressões do entrevistado, novamente sobre a super-
série, a respeito da recepção do público por ele moderado e os tipos de
interações desses participantes na rede social monitorada.
Temos ciência da fragilidade de um aspecto em particular que envol-
veu o processo da entrevista empreendida: por ter sido realizada “após
o término” de Onde Nascem os Fortes, exigiu um esforço de resgate da
memória do entrevistado. Temos ciência de que o entrevistado recoloca
“[...] os diversos detalhes [do passado] em outro conjunto, constituído
por nossas representações do presente” (Halbwachs, 2003, p. 37). Ainda
assim, dessa vulnerabilidade emerge um ponto positivo: os elementos
que permanecem em sua fala – seja espontânea ou estimulada –, são os
que marcaram de alguma forma e dizem sobre essa produção em questão
e seu contexto de recepção.

6
Um dos grupos usados como locus de observação na netnografia. 9.159 membros.
ONDE NASCEM OS FORTES (NOVELA). Disponível em: <https://www.facebook.com/
groups/1116477585051914/>. Acesso em: 28 mai. 2018.

232
Na entrevista foram levantadas algumas temáticas que despertaram
interesse do público quando do início da série: (i) ousadia na proposta
estética; (ii) vingança (justiça sem intervenção estatal); (iii) questão de
gênero e sexualidade (personagem Ramirinho, interpretado por Jesuíta
Barbosa); e (iv) corrupção da polícia. O entrevistado ressaltou que as
locações realizadas no País, na região Nordeste, causaram grande em-
polgação no público que aprecia a valorização do território nacional na
produção. Merece destaque ainda a forma como foi retratado o sertão:
“[...] atual, moderno, não foi nada muito brejeiro nem muito antigo. O
personagem mesmo do Jesuíta é um personagem bem moderno pra ser
retratado no Nordeste”, além da incorporação de importantes elementos
da cultura popular da região como, por exemplo, o forró e o sotaque das
personagens.
Onde Nascem os Fortes potencializou o sertão brasileiro por meio
de uma direção de fotografia ousada e “diferenciada”, de acordo com o
entrevistado. Segundo entende, essa fotografia começa como um traço
das superséries, porém, atualmente, é uma marca dos diretores que
emplacam tais ousadias nas telenovelas da Globo dos demais horários,
como, por exemplo, Velho Chico.
Em consonância com séries contemporâneas, que trocam estúdios
por locações externas (Muanis, 2015), o entrevistado situou que o fato de
grande parte das gravações terem sido feitas no próprio sertão contribuiu
para o resultado estético final. Nessa direção, a supersérie, mimetizando
o real do sertão brasileiro com sua aridez, opera dentro dos princípios
da verossimilhança (Ricoeur, 1994). sendo também impulsionada, na
percepção do entrevistado, pela abordagem de “assuntos cruciais quan-
to à sociedade de agora”, citando as questões de identidade de gênero
e sexualidade, na figura do personagem Ramirinho (Jesuíta Barbosa).
Quando questionado acerca das representações trabalhadas pela
supersérie, o entrevistado destaca a força das personagens femininas, em
especial de Maria, Rosinete e Joana, vividas respectivamente por Alice
Wegmann, Débora Bloch e Maeve Jinkings. Apontou também o lugar
que a protagonista Maria ocupou na trama, diferenciando-se do papel de
uma “mocinha tradicional”. Retomando as considerações do ponto de

233
vista da repercussão no Facebook, percebemos por parte de Onde Nascem
os Fortes a continuada tentativa de desconstruir estereótipos, tal como
o da boa moça. Maria foi uma personagem com atributos normalmente
dissociados quando da construção de uma suposta “feminilidade”, o que
chamou a atenção do entrevistado: “ela brigava, lutava, isso achei bem
legal da parte dela, no sentido de ousar de ser uma mocinha quebrando
paradigmas de uma mocinha tradicional”. Assim, a série estaria atuando
no que Hall (2016), estudando a estereotipagem racial, localiza como
uma terceira via de estratégias para contestar regimes de representação
hegemônicos.
Quanto ao formato supersérie, o entrevistado chamou atenção para
a polêmica em torno do termo que designa a trama do horário das 23h.
Em sua concepção, a despeito das tentativas da emissora de emplacar o
termo supersérie, percebe-se por parte do público uma continuidade na
apropriação desse horário como telenovela. Em seu grupo do Facebook,
nota uma diferença entre os públicos que acompanham as tramas dos
diferentes horários: “[...] o público que procura novela das 23h é um
público mais aberto; das 21h, pelo que vejo, é tradicional”.
O entrevistado, regular moderador de fan pages no Facebook,
aponta que, entre todas as tramas das 23h, a única que se sobressaiu foi
Verdades Secretas. Todas as demais não suscitaram tanto engajamento
e debate em seus grupos do Facebook como suscitam outras novelas de
outros horários. Segundo nos conta, no caso de Onde Nascem os For-
tes, o público precisava ser estimulado a participar; caso contrário, não
haveria tanto conteúdo na página – diferentemente do que acontece em
grupos de telenovelas dos outros horários. Na concepção dele, o baixo
engajamento deveu-se a três fatores: horário, público reduzido e ritmo
lento da narrativa.
Com as condições de produção (Orlandi, 2007, p. 30) favorecendo,
nesse caso sublinhadas pela maior abertura da classificação indicativa
de faixa etária no horário das 23h, as superséries teriam virtual potencial
para trabalhar temas mais intensos, como violência e sexo, que podem
motivar mais audiência. Segundo o entrevistado, parece que esse foi o
caso com Verdades Secretas e não tão bem-sucedido em Onde Nascem
os Fortes; diminuindo consequentemente as interações on-line.

234
Produção e circulação de conteúdo na era streaming

Como próximo passo de nossa investigação, é necessário perscrutar


como as transformações sociais e tecnológicas têm (re)configurado a
indústria cultural, seus processos de produção, transmissão e recepção.
Busca-se compreender como as empresas que surgem no ambiente digital
reestruturam o mercado audiovisual e provocam sismos necessários para
que grandes empresas se remodelem.
Vale ressaltar que a produção e circulação de conteúdos via stre-
aming têm relação direta com novas formas de produzir e de assistir
televisão. O streaming tem se revelado um grande berço para a criação
de séries. Tem movimentado o mercado e motivado a Globo, grande
produtora de conteúdo aberto, a investir em sua própria plataforma digital
(Globoplay) e buscar distintas formas narrativas, caso de Onde Nascem
os Fortes. Como analisado por Mungioli, Ikeda e Penner (2018), há uma
estratégia de complementariedade de conteúdo para angariar audiência.
No mesmo artigo, os autores ressaltam que Onde Nascem os Fortes foi
lançada via streaming em 16 de abril de 2018, dias antes do lançamento
em TV aberta, que ocorreu em 23 de abril – uma clara estratégia de se
fazer presente tanto no modelo tradicional quanto no modelo streaming.
No Brasil, duas plataformas streaming são amplamente conhecidas
e utilizadas pelos brasileiros desde o início dos anos 2000: YouTube e
Netflix. Entretanto, a primeira não será objeto de análise, uma vez que é
uma plataforma de produção e compartilhamento de conteúdo entre os
usuários, ao contrário da segunda.
A Netflix surge em 1997 como uma locadora de vídeos on-line,
presente em 190 países. Em 2007, a tecnologia streaming é iniciada,
permitindo que seus usuários assistam a filmes e séries no computador.
O streaming e, em especial, a Netflix reestabelecem novas formas de
produção e circulação de conteúdo, que já não se interligam às grades de
programação, aos patrocinadores, ao horário nobre, mas aos hábitos e às
vivências de seus múltiplos receptores/consumidores. Hábitos estes que
são mensurados, quantificados e analisados a partir dos algoritmos – em
procedimentos constantemente aprimorados. Sem importar a extensão da

235
série, do filme, ou de qualquer outro conteúdo disponibilizado, é por meio
da análise dos algoritmos que a empresa conhece os vários receptores/
consumidores e usa esses dados para oferecer uma gama de produtos de
maneira diferenciada.
Desde o lançamento de House of Cards (Netflix, 2013), a empresa
se posiciona como produtora de conteúdos digitais de qualidade (Bur-
roughs, 2018, 2019; Stürmer; Silva, 2015). Atenta às mudanças sociais
e aos modos como seus receptores consomem filmes e séries, lançou e
desenvolveu produtos que agradassem uma maior variedade de consu-
midores. Disponibilizou em sua plataforma temporadas completas de
séries, que impulsionaram as maratonas (binge watching). Dessa forma,
criou-se um processo de enculturação entre os receptores que, ao assistir a
um conteúdo por inteiro, mantêm as conversações em suas comunidades
interpretativas nas mídias digitais.
Se a Netflix reúne uma vasta experiência na distribuição e mais
recentemente na produção de conteúdo digital, o corolário inevitável de
sua expansão e a transformação da indústria audiovisual é o surgimento
de novas plataformas de VoD e a (re)estruturação de empresas de mídia
já consolidadas, que se viram ameaçadas pela perda de audiência e pelo
cancelamento de assinaturas da televisão a cabo.
Seja no Brasil ou fora dele, identificamos uma multiplicidade de
empresas atuando via streaming, empresas que iniciaram suas operações
digitalmente, e empresas do audiovisual, como HBO, NET e Globo.
Chama-nos a atenção a empresa Hulu, ainda não atuante no Brasil, po-
rém que vem crescendo no mercado norte-americano e com um modo
operante diferente da Netflix.
Controlado pela Walt Disney Company, o Hulu foi lançado em 2008,
ofertando serviços de streaming ao vivo e on demand. Chega a 2019 com
28 milhões de assinaturas7, sendo a quarta maior empresa de VoD dos
Estados Unidos, atrás da Netflix, YouTube e HBO Now.

7
Disney agora é dona de toda a Hulu após fechar acordo com Comcast. Disponível em: https://
www.tudocelular.com/mercado/noticias/n141572/disney-agora-e-dona-de-100-por-cento-do-
-hulu.html. Acesso em: 24 jun. 2019.

236
Um principal componente diferenciador da rede Hulu são as pro-
pagandas. Com base no início das operações, quando o Hulu oferecia o
serviço gratuitamente, Meyers (2012) argumenta que a rede tenta repli-
car a versão comercial do broadcasting. Hoje, entretanto, oferece dois
pacotes: o básico, que consiste em séries, filmes e produções próprias; e
o premium, em que são incluídos diversos canais e transmissão ao vivo.
As propagandas fazem parte dos dois pacotes, porém, em uma estratégia
de suplantar o que eventualmente poderia incomodar seus usuários, o
usuário tem a opção de um plano sem publicidade para a exibição das
produções do Hulu, ou seja, nas transmissões ao vivo e nos canais de
outras operadoras que são transmitidos na plataforma, o intervalo pu-
blicitário permanece, conforme a programação de cada canal. O Hulu
cresce no mercado norte-americano sob o slogan: The largest streaming
library + live TV.8
É nesse ambiente tecnológico e algorítmico que o Grupo Globo lança
o Globoplay, em 2015. No ano seguinte, disponibiliza, em primeira mão,
a série Supermax (Globo, 2016), exceto o último capítulo, de forma a
atingir os públicos via streaming e TV aberta (Pucci et al., 2017). No
início de sua operação, distribuía somente conteúdos produzidos pela
Globo, pertencente ao mesmo grupo. Hoje os conteúdos distribuídos já
não se restringem às produções do Grupo Globo. Resultado de parcerias
internacionais, o Globoplay oferece a seus assinantes uma numerosa
quantidade de produtos, tendo como objetivo a inclusão de 100 séries
ao catálogo até o final de 2019.9

Séries, minisséries e superséries: a televisão brasileira em busca de


novos formatos

Durante a década de 1970, a Globo manteve até quatro telenovelas


no ar nos horários das 18h, 19h, 20h e 22h, mas em 1979 o horário das
22h foi extinto em decorrência da baixa audiência (Ortiz; Borelli; Ramos,

8
Tradução livre: A maior biblioteca streaming + TV ao vivo.
9
Para concorrer com a Netflix, Globoplay estreia em junho três séries canceladas. Disponível
em: http://bit.ly/2XWQ7Jv. Acesso em: 5 jun. 2019.

237
1991). As minisséries começaram a ser produzidas pela empresa na dé-
cada de 1980, a partir de três produtos teleficcionais comemorativos dos
20 anos de existência da emissora: O Tempo e o Vento (baseado na obra
homônima de Erico Verissimo), Tenda dos Milagres (de Jorge Amado)
e Grande Sertão: Veredas (de Guimarães Rosa).
Passados 32 anos, a emissora retomou o quarto horário, dessa vez
às 23h, com a transmissão do remake de O Astro (Globo, 2011), um
clássico de Janete Clair. Por quatro anos consecutivos os remakes foram
as obras produzidas para o horário, entre elas: Gabriela (Globo, 2012),
Saramandaia (Globo, 2013) e O Rebu (Globo, 2014). Em 2015, a emis-
sora lançou Verdades Secretas (Globo, 2015), de Walcyr Carrasco, com
temas polêmicos, como a relação entre o mundo da moda, das drogas,
a prostituição e o incesto. A telenovela foi um sucesso de audiência,
alcançando a média geral de 19.81 pontos.10
Como produtos culturais, as minisséries se consolidaram no âmbito
da teledramaturgia brasileira como: (i) produtos preferencialmente adap-
tados de autores e romances consagrados da literatura nacional; (ii) obras
de elevado esmero dramatúrgico do ponto de vista narrativo e estrutural;
(iii) resultados de alta qualidade tecnoestética de produção, decorrentes
de aplicações de elementos e instrumentos tecnológicos inovadores e
de última geração; (iv) construções mais longas do que suas congêneres
estrangeiras que só são exibidas após a conclusão completa da sua pro-
dução; e (v) reconstruções fidedignas do tempo histórico representado
(Balogh, 2006).
De modo geral, o alvo é um público diferenciado em relação aos usu-
ais consumidores das telenovelas, do qual se diferencia por se caracterizar
como detentor de repertórios culturais mais diversificados e exigentes em
relação à qualidade estética e narrativa. Nesse aspecto, é no espaço das
minisséries que a organização vê a oportunidade de exploração de novos
formatos do audiovisual, com novas possibilidades para os processos da
recepção e da produção social dos sentidos, introduzindo roteiros mais
complexos e contundentes e personagens mais densos, multifacetados,

Audiência detalhada – Verdades Secretas. Disponível em: https://bit.ly/audienciaVS2015.


10

Acesso em: 25 maio 2019.

238
psicologicamente ricos, profundos e ambíguos do que os mostrados nas
telenovelas e outros produtos de formatos tradicionais.
Em 2017, Os Dias Eram Assim (Globo, 2017) entra ao ar como uma
supersérie das 23h, firmando essa nomenclatura com o lançamento de
Onde Nascem os Fortes (Globo, 2018). No mesmo ano, o Globoplay che-
ga a reclassificar todas as telenovelas das 23h como supersérie, inclusive
O Astro e Verdades Secretas, que conquistaram o Emmy Internacional
na categoria Telenovela.
Analisando alguns produtos latino-americanos que trocaram sua
nomenclatura para supersérie, Lopes e Orozco Gómez (2016, p. 93)
perceberam que há um fenômeno em decorrência do “status cultural que
a série possui”, além de ser “uma estratégia de mercado para atrair novos
públicos para a ficção”. Burroughs (2018) aborda o conceito de industry
lore, que é o senso comum dentro das empresas de mídia sobre o que
os consumidores desejam ou as novas tendências de mercado, e afirma
que a presença desse “discurso comum” é mais visível em momentos de
rupturas. Ou seja, vemos um discurso comum em torno da visibilidade
das séries nos mercados, principalmente via streaming e voltado para
os jovens, e da necessidade de adaptação dos produtos para esse mer-
cado. Porém percebemos que esses discursos foram sendo construídos
a partir das estratégias das empresas de audiovisual latino-americanas,
como a Telemundo, com o objetivo de expandir seu share de mercado,
conquistando a comunidade latina nos Estados Unidos.11
Visando adentrar no mercado hispano-norte-americano, as emissoras
reformularam as clássicas telenovelas e criaram as narconovelas – cen-
tradas no universo das drogas – e as superséries, nas quais a serialidade
é trabalhada como na telenovela, mas dentro de múltiplas temporadas,
estruturadas em episódios e não capítulos, sem a necessidade de ganchos
como estratégia para manter o suspense e dar continuidade à narrativa.
Os latinos representam 21% da população millennials dos Estados
Unidos, porém esses jovens não cresceram na cultura da telenovela,
embora vivam em um ambiente multicultural e bilíngue. Assim sendo,

11
Telemundo presenta Dueños del Paraíso en Natpe Miami. Disponível em: http://bit.
ly/2LjZNaT. Acesso em: 25 maio 2019.

239
as empresas latino-americanas observaram um potencial de mercado a
ser conquistado junto a esse público e criaram as superséries, um formato
entre as telenovelas e as séries.12
A Globo tem uma longa tradição na produção e distribuição de
minisséries, séries – incluindo as humorísticas (sitcom) – e telenovelas.
Seus produtos são exportados para todos os continentes, tendo recebido
diversas premiações no Brasil e no exterior. Nesse sentido, vemos a
mudança da denominação telenovela das 23h para supersérie como uma
estratégia de marketing baseada no industry lore, e não na reconfiguração
do formato e consequente demanda de exportação do produto, pois, con-
forme informado pela própria empresa, “no caso do Emmy Internacional,
continuamos a inscrever as superséries na categoria de telenovela, pois
pelo edital do prêmio é a que mais se adequa às características desta
produção, já que não existe a categoria supersérie”.13
A supersérie brasileira se distancia do formato daquela produzida
pelos demais países latino-americanos. No formato brasileiro, entre as
minisséries e telenovelas brasileiras, a maior distinção é a redução do
número dos capítulos; uma das transformações, entretanto, que o próprio
formato telenovela vem sofrendo nos últimos anos. A história não se
desenvolve mais sobre tramas longas e lentas, que se arrastam ao longo
dos meses, mas com acontecimentos e demandas que surpreendem seu
público com o passar dos dias, ou seja, “diversas inovações no formato,
como a exploração do gênero suspense [...] e a narrativa de ritmo intenso”
(Lopes et al., 2016, p. 173), já se fazem presentes há algum tempo nas
telenovelas brasileiras.
Durante a transmissão de Onde Nascem os Fortes, o termo supersérie
era frequentemente substituído por novela ou minissérie nos grupos e
páginas do Facebook destinados à narrativa. Essa confusão também per-
passava as páginas de críticos de ficção seriada, que sempre se referiam

12
The billennial generation: how bilingual millennials are changing Spanish-language TV.
Disponível em: https://lat.ms/2NQVZA9. Acesso em: 25 maio 2019.
13
Por que a Globo reclassificou todas as suas novelas das 23h como séries. Disponível em:
http://bit.ly/2LhMmIS. Acesso em: 25 abr. 2018.

240
a ela usando as duas nomenclaturas, como Cristina Padiglione: “[...] a
nova novela das onze (ou supersérie, como prefere a Rede Globo) [...]”.14
As mudanças de um formato devem acompanhar as transforma-
ções sociais, culturais e tecnológicas da sociedade. A telenovela vem
presenciando essas transformações – das longas narrativas, gravadas
apenas em estúdios, às cenas externas, do videotape ao streaming, ao
vivo e VoD, mudanças essas que afetam sua produção e circulação. Para
Brown (1994), mais do que um produto comercial, um novo formato
deverá “vender” uma cultura nacional e um sistema ideológico que res-
peite as demandas culturais mais amplas da sociedade. Nesse enfoque,
a telenovela das 23h é um formato que vem adquirindo novos contornos
conforme a demanda social.

Conclusão

A reformulação do modelo de produção e consumo de teleficção


seriada na Ibero-América, que resulta em produções como Onde Nascem
os Fortes, ocorre em um ambiente de crescente ameaça concorrencial
aportada pelos serviços de video on demand (VoD) e sua distribuição
em diferentes plataformas digitais e móveis.
Para o pesquisador Juan Piñón (2018), a crescente oferta do modelo
teleficcional denominado supersérie na América Latina e junto às comu-
nidades ibero-americanas dos Estados Unidos está baseada nas estratégias
de conquista de públicos masculinos mais jovens do que os habitualmente
consumidores das telenovelas tradicionais. Nesse contexto, aumenta a
oferta de produtos culturais “com menos capítulos, repletas de ação, com
altos investimentos em produção e tramas que se afastam da tradicional
história romântica do melodrama, exemplificada pelo surgimento das
superséries” (Piñón, 2018, p. 254, tradução nossa).
No caso brasileiro, os produtos desenvolvidos para os serviços de
streaming e para as telenovelas das 23h agregam outras vantagens e

“Os sertões”, de Euclydes da Cunha, é forte referência para a nova novela das onze da Globo.
14

Disponível em: http://bit.ly/2JEUtf5. Acesso em: 25 maio 2019.

241
desafios, haja vista que ficam liberados das amarras das classificações
indicativas de faixa etária, o que permite maiores investidas em conteúdos
com maior teor de violência, sexo e drama, limitados para a exibição no
horário das 21h. Especificamente sobre a produção ficcional da Globo e/
ou conteúdos advindos do Globoplay, este horário contempla a proposta
de ousadia aderente a produtos de qualidade, caracterizados por uma
construção artística com características estéticas e narrativas distintas
da tradicional produção teleficcional.
Por fim, reiteramos que, mobilizando representações mais arejadas –
um dos preceitos da televisão de qualidade –, Onde Nascem os Fortes
estaria contribuindo para uma formação de consciência. Isso, somado ao
trabalho estético e fotográfico que foge do lugar comum em termos de
linguagem televisiva, permite ao espectador da supersérie expandir seus
horizontes. São modos de produzir que possibilitam outras experiências
de recepção. A telinha flerta com o cinema, mas busca nas produções
seriadas, que ganharam mercado com o modelo de negócios streaming,
um outro lugar de consumo.

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245
246
Sobre os autores e colaboradores

Ana Márcia Andrade


Docente dos cursos RTVI, RP e PP da Universidade Anhembi Morumbi. Mestre
e doutoranda em Comunicação (UAM). Membro do GP Inovações e Rupturas na
Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). E-mail: anacherulli@gmail.com.

Ana Paula Goulart Ribeiro


Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, professora do PPGCom/UFRJ
e coordenadora da equipe Obitel Brasil/UFRJ. E-mail: goulartap@gmail.com.

Anderson Gonçalves
Docente do curso Rádio, TV e Internet (UAM). Mestre em Comunicação (UAM)
e graduado em Rádio, TV e Internet (UAM). Membro do GP Inovações e Rupturas
na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). E-mail: andybarac@hotmail.com.

Andréa C. M. Antonacci
Doutoranda do PPGCom ESPM, mestre na mesma instituição e graduada em
Comunicação Social – Jornalismo pela Unesp. Docente UAM. Pesquisadora do GP
CNPq: Comunicação, Consumo e Arte (ESPM). E-mail: aantonacci71@gmail.com.

Andreza Almeida dos Santos


Doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Mestre em Ciências
Sociais e bacharel em Comunicação, ambos pela UFRRJ. Pesquisadora do Centro
de Estudos de Telenovela (CETVN) e do Observatório Ibero-Americano da Ficção
Televisiva (Obitel). E-mail: andrezapas@usp.br.

Anna P. T. Araújo
Mestranda em Imagem e Som pela UFSCar e especialista em Planejamento
Estratégico e Concepção de Branded Content (2018) pelo Senac Ribeirão Preto.
Membro do GEMInIS e do Obitel Brasil/UFSCar. E-mail: annapaula.ta@gmail.com.

Antonio Hélio Junqueira


Doutor em Comunicação, ECA/USP. Pós-doc, PPGCom ESPM. Prof. colab.
Mestrado Profissional da UAM. Pesquisador nos GPs CNPq: Comunicação, Educa-
ção e Consumo (ESPM) e Observatório da Cultura Digital (USP). E-mail: helio@
hortica.com.br.

247
Bárbara Souza
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Con-
temporâneas (UFBA) e mestre pela mesma instituição. Pesquisadora do A-Tevê
(Laboratório de Análise de Teleficção). E-mail: barbarafvsouza@gmail.com.

Camila Souto
Mestranda em Comunicação (UAM). Bacharel em Comunicação Social – Re-
lações Públicas (Faculdade Cásper Líbero). Membro do GP Inovações e Rupturas
na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). E-mail: camila_souto@outlook.com.

Camilla R. N. da Costa Rocha


Mestre pelo PPGCom ESPM, doutoranda na mesma instituição. Bolsista
Capes-Prosup integral. Integrante do GP CNPq História, Comunicação e Consumo.
E-mail: camilla@costarocha.com.br.

Carolina T. de N. Saboia
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de
Consumo ESPM. Bolsista Capes. Integrante do GP CNPq Gruscco, sob orientação
da Profa. Dra. Gisela Castro. E-mail: carolsaboia66@gmail.com.

Cecília Almeida
Jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFPE.
Autora de Telenovela transmídia: o papel das controvérsias (2018). E-mail: cecilia.
almeidarl@gmail.com.

Daiana Sigiliano
Doutoranda e mestre em Comunicação pela UFJF. Membro do grupo do Grupo
de Pesquisa em Comunicação, Arte e Literacia Midiática da UFJF. Pesquisadora do
Observatório da Qualidade no Audiovisual e da equipe Obitel Brasil/UFJF. E-mail:
daianasigiliano@gmail.com.

Daniel Pedroso
Professor nos cursos de Jornalismo e Realização Audiovisual da Unisinos.
E-mail: dspedroso@gmail.com.

Daniela Ortega
Jornalista, bacharel em letras, mestranda em Comunicação pela ECA-USP.
Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP) e do Ob-
servatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (Obitel). Bolsista CNPq. E-mail:
mensagemparadani@gmail.com.

248
Danilo Mecenas
Mestrando em Imagem e Som pela UFSCar. Membro do grupo de pesquisa
GEMInIS e da equipe Obitel Brasil/UFSCar. E-mail: danmecenas@gmail.com.

Dario Mesquita
Doutorando em Design pela Universidade Anhembi Morumbi. Mestre em
Imagem e Som pela UFSCar. Professor do curso de Imagem e Som da UFSCar.
Membro do grupo de pesquisa GEMInIS e do Obitel Brasil/UFSCar. E-mail: dario.
mirg@gmail.com.

Denise Alves
Professora adjunta no curso de Relações Públicas da Faculdade de Bibliote-
conomia e Comunicação da UFRGS. E-mail: deniseavancinialves@yahoo.com.br.

Diego Gouveia
Jornalista e professor do Núcleo de Design e Comunicação do Centro Acadê-
mico do Agreste da UFPE. Doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UFPE. E-mail: dgmgouveia@gmail.com.

Erika Oikawa
Coordenadora do curso de Publicidade e Propaganda do Centro Universitário
do Estado do Pará (Cesupa). E-mail: erikaoikawa@gmail.com.

Fabiane Sgorla
Professora adjunta no curso de Relações Públicas da Faculdade de Biblioteco-
nomia e Comunicação da UFRGS. E-mail: fabianesgorla@gmail.com.

Fernanda Elouise Budag. Doutora em Comunicação, ECA/USP. Mestre em


Comunicação e Práticas de Consumo, ESPM. Pós-doc no PPGCom ESPM. Coor-
denadora do grupo de estudos Narrativas, Consumo e Marcas. Docente na Fapcom
e USJT. E-mail: fernanda.budag@gmail.com.

Gabriela Borges
Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
UFJF. Coordenadora brasileira da Rede Alfamed e do Observatório da Qualidade no
Audiovisual. Líder do grupo de pesquisa Comunicação, Arte e Literacia Midiática.
E-mail: gabriela.borges0@gmail.com.

Gabriela Pereira da Silva


Graduanda em Comunicação Social pela UFRJ.

249
Genilson Alves
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
Contemporâneas (UFBA) e mestre pela mesma instituição. Pesquisador do A-Tevê
(Laboratório de Análise de Teleficção). E-mail: genilson.falves@gmail.com.

Gêsa Cavalcanti
Publicitária, mestre e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comu-
nicação da UFPE. E-mail: gesakarla@hotmail.com.

Guilherme Libardi
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação
(UFRGS). E-mail: gblibardi@gmail.com.

Gustavo Padovani
Doutorando em Multimeios pela Unicamp. Mestre em Imagem e Som pela
UFSCar. Membro do grupo de pesquisa GEMInIS e da rede de pesquisadores Obitel
Brasil/UFSCar. E-mail: guspado@gmail.com.

Hanna Nolasco
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Con-
temporâneas (UFBA) e mestre pela mesma instituição. Pesquisadora do A-Tevê
(Laboratório de Análise de Teleficção). E-mail: hannanfl@gmail.com.

Igor Sacramento
Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, professor do PPGCom/UFRJ
e do PPGICS/Fiocruz e coordenador da equipe Obitel Brasil/UFRJ. E-mail: igor-
sacramento@gmail.com.

João Araújo
Doutor e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Póscom/UFBA).
Pesquisador do A-Tevê (Laboratório de Análise de Teleficção). E-mail: jesilvaraujo@
gmail.com.

João Massarolo
Cineasta e roteirista. Professor associado da Universidade Federal de São
Carlos. Doutor em Cinema pela Universidade de São Paulo. Coordenado do grupo
GEMInIS e da rede de pesquisadores Obitel Brasil/UFSCar. E-mail: massarolo@
terra.com.br.

250
João Paulo Hergesel
Pós-doutorando em Comunicação e Cultura (Uniso), doutor em Comunicação
(UAM) e mestre em Comunicação e Cultura (Uniso). Membro do GP Inovações
e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). E-mail: jp_hergesel@
hotmail.com.

Júlio C. Ribeiro
Mestre e doutorando em Linguística (PPGL-UFSCar). Membro do grupo de pes-
quisa Leetra-CNPq. Agência de fomento: Capes. E-mail: j.ribeiro90@hotmail.com.

Larissa Leda Rocha


Pesquisadora de Pós-Doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP,
no Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP). Professora adjunta da
UFMA. Vice-coordenadora do GP Ficção Seriada da Intercom. Coordenadora do
Observatório de Experiências Expandidas em Comunicação (ObEEC/UFMA).
Bolsista CNPq. E-mail: larissaleda@gmail.com.

Laura Wottrich
Professora adjunta da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFR-
GS. E-mail: lwottrich@gmail.com.

Ligia Prezia Lemos


Pesquisadora de Pós-Doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP,
bolsista Capes. Coordenadora do GP Ficção Seriada da Intercom. Vice-coordenadora
do Centro de Estudos de Telenovela, ECA-USP; do Obitel e da Rede de Pesquisadores
Obitel Brasil. E-mail: ligia.lemos@gmail.com.

Lilian Durães
Graduada em Comunicação Social pela UFRJ. Integrante da rede de pesquisa-
dores Obitel Brasil/UFRJ. E-mail: duraes.lilian91@gmail.com.

Lírian Sifuentes
Doutora e pós-doutora em Comunicação pela PUCRS. Jornalista da TVE-RS.
E-mail: lisifuentes@yahoo.com.br.

Lourdes Silva
Professora do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade
Santo Amaro e dos cursos de Publicidade e Propaganda e Rádio e Televisão. E-mail:
lourde_silva@hotmail.com.

251
Lucas Martins Néia
Roteirista, dramaturgo e diretor teatral. Doutorando em Ciências da Comuni-
cação pela ECA-USP. Pesquisador do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/
ECA-USP). Bolsista Capes. E-mail: lucas_martins_neia@hotmail.com.

Lúcia Loner Coutinho


Mestre e doutora em Comunicação pela PUCRS, com bolsa-sanduíche na
Universidade do Minho (CNPq). Pós-doutorado em Comunicação (UFSM). Bacharel
em Jornalismo pela PUCRS. Pesquisadora da equipe Obitel Brasil/UFSM. E-mail:
lucialoner@gmail.com.

Luiz E. M. Cunha
Mestrando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Bolsista Capes. Membro do grupo de pesquisas GEMInIS. Graduado em
Comunicação Social pela UniToledo. E-mail: mauescunha.luizeduardo@gmail.com.

Luiza Betat Corrêa


Mestre em Comunicação Midiática (UFSM) e bacharel em Comunicação
Social – Produção Editorial (UFSM). Pesquisadora da equipe Obitel Brasil/UFSM.
E-mail: betatluiza@gmail.com.

Maíra Bianchini
Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Póscom/UFBA). Mes-
tre em Comunicação Midiática (UFSM). Pesquisadora do A-Tevê (Laboratório de
Análise de Teleficção). E-mail: mairabianchini@gmail.com.

Marcela Costa
Professora adjunta do Departamento de Comunicação da UFRN. Pesquisa
temas como audiência, transmidiação, televisão e consumidor. E-mail: marcelapup@
gmail.com.

Marcia Perencin Tondato


Docente titular PPGCom ESPM. Doutora em Comunicação pela ECA/USP.
Líder do GP CNPq Comunicação, Consumo e Identidades Socioculturais (CiCO).
Coordenadora do grupo Obitel Brasil/ESPM. E-mail: mptondato@gmail.com.

Maria Amélia P. Abrão


Doutoranda em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM. Doutorado
sanduíche (PDSE) no Departamento de Comunicação do Boston College. Integrante
do GP CNPq Comunicação, Consumo e Identidades Socioculturais (CiCO). E-mail:
amelia.abrao@gmail.com.

252
Maria Aparecida Baccega
Docente PPGCom-ESPM, livre-docente pela ECA/USP. Líder do GP CNPq Co-
municação, Educação e Consumo: As Interfaces da Teleficção. Obras: Comunicação
e culturas do consumo; Palavra e discurso; entre outras. E-mail: mbaccega@espm.br.

Maria Carmem Jacob de Souza


Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Con-
temporâneas da UFBA. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP e mestre em
Educação pela UFF. Coordenadora do A-Tevê (Laboratório de Análise de Teleficção).
E-mail: mcjacobsg@gmail.com.

Maria Cristina Brandão de Faria


Mestre e doutora em Teatro pela Unirio. Professora aposentada da Faculdade
de Comunicação da UFJF. Pesquisadora da equipe Obitel Brasil/UFJF. E-mail:
cristinabrandao49@yahoo.com.br.

Maria Immacolata Vassallo de Lopes


Professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. Bolsista de
produtividade do CNPq 1A. Editora da revista MATRIZes. Cocoordenadora do Ob-
servatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel). Coordenadora da Rede
Obitel Brasil e do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP). E-mail:
immaco@usp.br.

Maria Ignês Carlos Magno


Docente do PPGCom da Universidade Anhembi Morumbi. Doutora em Ciências
da Comunicação (USP), com pós-doutorado na ESPM/SP. Líder do GP Inovações
e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). Coordenadora da rede
de pesquisadores Obitel Brasil/Anhembi Morumbi. E-mail: unsigster@gmail.com.

Mariana Lima
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.  Doutoranda em Ciências
da Comunicação pela ECA-USP. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela
(CETVN-ECA/USP) e da rede de pesquisadores do Observatório Ibero-Americano
de Ficção Televisiva (Obitel). Bolsista Capes. E- mail: marit.mlima@gmail.com.

Naiá S. Câmara
Pós-doutoranda em Comunicação e Artes pela UFSCar. Doutora pela Unesp.
Membro do grupo de pesquisa GEMInIS e do Obitel Brasil/UFSCar. Professora de
Comunicaçao Unaerp e Uni-Facef. E-mail: naiasadi@gmail.com.

253
Patrícia D’Abreu
Doutora em Comunicação Social pela UFF e professora do Departamento de
Comunicação da Ufes. Integrante da rede de pesquisadores Obitel Brasil/UFRJ.
E-mail: patriciadabreu@gmail.com.

Renan Villalon
Mestre e doutorando em Comunicação (UAM). Bacharel em Comunicação
Social – Rádio e TV (Universidade São Judas Tadeu). Membro do GP Inovações
e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). E-mail: renan.villalon@
gmail.com.

Renato Luiz Pucci Jr.


Docente do PPGCom da Universidade Anhembi Morumbi. Doutor em Ciências
da Comunicação (USP), com pós-doutorado na Universidade do Algarve/Portugal.
Membro do GP Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq).
Bolsista PQ/CNPq. E-mail: renato.pucci@gmail.com.

Rodrigo Lessa
Professor do Centro Universitário UniRuy Wyden. Doutor e mestre em Co-
municação e Cultura Contemporâneas (Póscom/UFBA). Pesquisador do A-Tevê
(Laboratório de Análise de Teleficção). E-mail: lessaro@gmail.com.

Rogério Ferraraz
Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Anhembi Morumbi. Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Vice-líder do
GP Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq). E-mail:
rogerioferraraz@uol.com.br.

Sandra Depexe
Docente do Departamento de Ciências da Comunicação (UFSM). Doutora e
mestre em Comunicação, bacharel em Publicidade e Propaganda (UFSM). Pesqui-
sadora Obitel Brasil/UFSM. E-mail: sandradpx@gmail.com.

Sara Feitosa
Professora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Indústria Criativa
(mestrado profissional) na Universidade Federal do Pampa (POGCIC/Unipampa). E-
mail: sarafeitos99@hotmail.com.

Simone Munir Dahleh


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (UFSM). Bacharel
em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (Unipampa). Pesquisadora
Obitel Brasil/UFSM. E-mail: simonemunird@gmail.com.

254
Tatiana Sciliano
Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ e professora do PPGCom
PUC-Rio. Integrante da rede de pesquisadores Obitel Brasil/UFRJ. E-mail: tatios@
terra.com.br.

Tissiana Nogueira Pereira


Doutoranda em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes
da USP. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN-ECA/USP) e
do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel). Bolsista Capes.
E-mail: tissianapereira@yahoo.com.br.

Valquiria John
Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
UFPR e dos cursos de Jornalismo, Relações Públicas e Publicidade e Propaganda.
E-mail: vmichela@gmail.com.

Veneza Mayora Ronsini


Pós-doutorado na Nottingham Trent University (Capes). Doutora em Sociologia
(USP) com bolsa sanduíche na University of California (Capes). Mestre em Ciências
da Comunicação (USP) e bacharel em Comunicação (UFSM). Pesquisadora do CNPq
e da rede Obitel Brasil/UFSM. E-mail: venezar@gmail.com.

Yan M. Nicolai
Licenciado em Letras (UFSCar-2015), com intercâmbio de estudos
na Universidad de Málaga. Mestre e doutorando em Linguística (PPGL-
UFSCar). Membro do GESeR-CNPq. Agência de fomento: Capes.
E-mail: ymasetto@gmail.com.

Yvana Fechine
Professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da UFPE. Bolsista de produtividade em pesquisa do
CNPq. E-mail: yvanafechine@hotmail.com.

255
Fone: 51 3779.6492

Este livro foi confeccionado especialmente para a


Editora Meridional Ltda,
em Times New Roman, 10,5/14,5 e
impresso na Gráfica Odisseia

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