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FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

Disciplina: Introdução aos Direitos Humanos


Professora: Ana Paula Barbosa-Fohrmann
Doutoranda em estágio: Luana Adriano Araújo
Monitor: Gustavo Cardoso Silva

ATIVIDADE: ESTUDO DIRIGIDO SOBRE “DIREITOS HUMANOS E ARTE”


Leitura principal: HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. Capítulo 1 – Lendo
romances e imaginando igualdade. Editora Companhia das Letras, 2009.

1. Há uma relação entre direitos humanos e arte?


Para Parra Cortés, as possíveis relações entre direito e arte são classificáveis da seguinte
forma:
a) Arte como ferramenta de emancipação social e voltada para a crítica jurídico-política, com
inspiração na Escola de Frankfurt;
b) Arte como ferramenta interdisciplinar e metodológica, que permite, por exemplo, pensar o
direito como gênero literário e formatar teorias estéticas sobre o direito;
c) Arte como parte essencial de uma educação sensível, voltada para a promoção da
solidariedade, da empatia e da democracia;
d) Arte como fato social que explica o nascimento dos direitos humanos, no século XVIII;
e) Arte como direito subjetivo diferente dos direitos culturais e do direito à liberdade de
expressão, chamado de direito à arte1.
De acordo com Hunt2 (2009, 2005), os romances desempenharam um papel fundamental no
surgimento do conceito de direitos humanos na Europa do século XVIII. Foram os romances,
segundo a autora, que incentivaram uma descoberta de uma subjetividade e de uma vida
interior inerente a cada personagem. Assim:

No século XVIII, os leitores de romances aprenderam a estender o seu alcance de


empatia. Ao ler, eles sentiam empatia além de fronteiras socais tradicionais entre os
1
PARRA CORTÉS, Lina Victoria. Relações entre arte e direito: exemplos de arte em processos de protesto,
memória e reparação. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 5,
n. 1, p. 235-252, jun. 2019.
2
HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. Capítulo 1 – Lendo romances e imaginando igualdade.
Editora Companhia das Letras, 2009, p. 35 ss. HUNT, Lynn. O romance e as origens dos Direitos Humanos:
interseções entre história, psicologia e literatura. Varia hist.,  Belo Horizonte ,  v. 21, n. 34, p. 267-288,  July 
2005.
nobres e os plebeus, os senhores e os criados, os homens e as mulheres, talvez até
entre os adultos e as crianças. Em consequência, passavam a ver os outros –
indivíduos que não conheciam pessoalmente – como seus semelhantes, tendo os
mesmos tipos de emoções internas3.

A autora sugere um motivo psicocultural para que a noção de direitos humanos tenha
emergido após a publicação de novelas epistolares – destacando três: Pâmela, de Richardson
(1740); Clarissa (1748) e Júlia (1761), de Rousseau. Nesses três, personagens femininos
passam por situações de “busca da independência”, sendo essa senda imediatamente
provocadora de comoção nos leitores, que então “compreendiam as restrições que essa[s]
mulher[es] inevitavelmente enfrentava[m]”4. Surge, assim, um sentimento que, para a autora,
é essencial para o surgimento dos direitos humanos: a empatia. “Ler romances criou uma nova
experiência individual (empatia), que tornou possível o aparecimento de novos conceitos
políticos e sociais (direitos humanos)”5. (HUNT, 2005, on-line). Apenas quando esses
sentimentos de empatia surgiram é que os direitos humanos puderam florescer, quando então
“as pessoas aprenderam a pensar nos outros como seus iguais, como seus semelhantes em
algum modo fundamental”6.

2. A arte é um direito humano?


A defesa de que existe um direito à arte se pauta especialmente no art. 27 da DUDH. Veja-se:

Artigo 27 da Declaração de Direitos Humanos de 1948


1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios. 
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais
decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor7.

Dois importantes pontos de discussão advindos da declaração de que há um direito humano à


arte são os seguintes: 1) que “fruição” a “que” arte garante o direito a arte?; 2) que critérios
3
HUNT, Lynn. op. cit., 2009, p. 39-40.
4
Id., p. 59.
5
HUNT, Lynn. op. cit., 2005, on-line.
6
HUNY, Lynn. op. cit., 2009, p. 58.
7
Cf. também art. 19, 2, do PIDCP (2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a
liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de
considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro
meio de sua escolha); art. 15, 1, c, do PIDESC (1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada
indivíduo o direito de: c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a
produção cientifica, literária ou artística de que seja autor), art. 13, 1, do Pacto de San José da Costa Rica (1.
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de
buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou
por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha); art. 14, 1, a, do
Protocolo Adicional ao Pacto de San José da Costa Rica (1. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem o
direito de toda pessoa a: a) participar na vida cultural e artística da comunidade);
utilizar para definir a arte que será promovida por meio de políticas públicas?.

3. Há um direito da arte?
O direito da arte diz respeito à regulamentação jurídica da atividade artística. Para Mascaro,
os campos relevantes são a produção da arte, a propriedade da arte, a circulação da arte e a
regulação da arte. Nesse sentido, diz o autor:

O Estado é elemento ativo na intermediação das redes de relações que envolve a arte. Além
dos direitos subjetivos, há uma série de garantias, poderes e deveres relacionados ao tema.
É possível pensar, assim, em estipulações que envolvem a garantia da criação artística, sua
liberdade em relação aos poderes públicos, à religião e outras ideologias constituídas8.

Existem também instrumentos da UNESCO relevantes para pensar sobre os direitos dos
artistas, particularmente a Recomendação da UNESCO sobre o Estatuto do Artista em 1980 9 e
a Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais de 200510. Ataques a locais de importância cultural, ou itens culturais, são
reconhecidos como crimes de guerra em algumas circunstâncias, de acordo com as leis de
conflito armado e o direito penal internacional. Nesse sentido, o art. 8, 2, IX, do Estatuto do
TPI: Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crimes de guerra": ix) Dirigir
intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às
ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem
doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares;

4. Que direitos humanos importam para a arte?


Se considerarmos que obras de arte são expressões de subjetividades, sendo que suas criações
dependem da existência de condições sociais favoráveis para que sejam produzidas e
apreciadas, todos os direitos humanos importam para a arte. Contudo, alguns direitos
específicos têm sido mais frequentemente associados ao debate artístico, especialmente no
que diz respeito aos conflitos entre liberdade artística e outros direitos humanos:
A) O direito à honra, a imagem, a privacidade e à vida privada (art. 5º, X, da CF e art. 20, CC)
podem entrar em atrito com a liberdade de expressão artística, especialmente no caso das
biografias não autorizadas;
B) O direito à herança cultural pode entrar em conflito com o direito de propriedade artística,

8
MASCARO, Alysson. Sobre Direito e Arte. In: MAMEDE, Gladston (eds). Direito da Arte. São Paulo: Atlas,
2015
9
Disponível em: < https://en.unesco.org/creativity/governance/status-artist> Acesso em: 14 mar. 2021.
10
Disponível em: < https://en.unesco.org/creativity/convention> Acesso em: 14 mar. 2021.
especialmente no caso de Museus e Coleções Pessoais cujas obras foram originalmente
saqueadas de suas nações originais – caso da espoliação de obras de arte durante a 2 GM;
C) O direito à tolerância religiosa pode entrar em atrito com o direito à liberdade artística,
especialmente em casos em que a obra refira-se especificamente à símbolos de determinada
religião.

5. Que arte importa para os direitos humanos?


Toda arte é relevante para o tópico de direitos humanos? Podemos responder a essa pergunta
de maneiras bastante diversas, a depender de nossa concepção do que é arte. Quando tomadas
a partir de seu potencial emancipatório, todas as obras de arte – especialmente aquelas
explicitamente engajadas – importam para os direitos humanos. Nesse sentido, a arte pode
narrar os abusos dos direitos humanos (p. ex., arte de denúncia e arte de memória), apoiar
causas de direitos humanos e trazer visibilidade para questões de interesse do campo dos
direitos humanos (p. ex., a arte de protesto).
Contudo, a partir dessa resposta, outras perguntas se impõem: a mensagem relevante para os
direitos humanos precisa estar explícita (p. ex., arte panfletária e arte engajada) para que a arte
se qualifique como socialmente engajada? É possível pensar a arte social fora da
caracterização “engajada”? Vamos analisar três perspectivas diferentes de autores que se
dedicam à análise das obras engajadas:
a) No texto “autor como produtor”, escrito entre 1934 e 1938, Benjamin 11 sugere que toda
obra de arte é relevante para que se analise o contexto em que ela é produzida,
independentemente de ser proveniente de um autor progressista ou autônomo: “Em vez de
perguntar: como se vincula uma obra com as relações de produção da época? É compatível
com elas, e portanto reacionária, ou visa sua transformação, e portanto é revolucionária? (...)
Antes, pois, de perguntar como uma obra literária se situa no tocante às relações de produção
da época, gostaria de perguntar: como ela se situa dentro dessas relações? Essa pergunta visa
imediatamente a função exercida pela obra no interior das relações literárias de uma época” 12.
Em Benjamin, há uma ruptura da contraposição entre qualidade estética e mensagem política
no que diz respeito às obras progressistas, cuja análise deve parte da análise política em
direção à análise da qualidade estética. Quanto mais o intelectual orientar sua atividade para
as tarefas progressistas, “mais correta será a tendência, e mais elevada”13.

11
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I - Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense,
1994. P. 120 ss.
12
Id. p. 122.
13
Id. p. 136.
b) No Prefácio de “Sula”, Toni Morrison declara que a crítica de sua arte insistia em separar
“político” e “estético”, sendo frequentemente julgada apenas pelo primeiro. “A crença comum
é de que ficção política não é arte; que é menor provável que uma obra assim tenha valor
estético porque a política – a política como um todo – é plano de ação e, portanto, sua
presença macula a criação estética. (...) Se o romance era bom, era por ser fiel a certo tipo de
política; se era ruim, era por não ser fiel. A crítica era baseada em ‘os negros são – ou não são
– desse jeito’. (...)”14. Em “Ancestral como Fundação”, aponta: “(…) Se qualquer coisa que eu
faço, na forma de escrever romances (ou o que quer que eu escreva) não é sobre a aldeia ou a
comunidade ou sobre você, então não é sobre nada (…) ou seja, sim, o trabalho deve ser
político. (…) Parece-me que a melhor arte é política e deves poder torná-la
inquestionavelmente política e irrevogavelmente bela ao mesmo tempo”15. Assim, em
Morrison, deve haver uma intenção de engajamento, para que a arte seja explicitamente
política.
c) No texto “Engagement”16, Adorno trabalha especificamente a questão da arte engajada em
contraposição à arte autônoma. Há duas posições objetivas sobre esse debate: 1) Uma obra de
arte comprometida despoja a magia de uma obra de arte que se contenta em ser um fetiche,
um passatempo ocioso para quem quer dormir no dilúvio que os ameaça, num apolitismo que,
aliás, é profundamente político; 2) Uma obra de arte autônoma, contudo, considera o trabalho
da arte engajada como uma abdicação da liberdade imaginativa de fazer arte pautada em uma
“vida da mente”. Ambas essas perspectivas se negam ao negarem a outra. A arte engajada, ao
diluir a diferença entre realidade e arte, nega a própria arte. A autônoma, ao querer ser
pautada em algo completamente interior, nega o a priori da conexão do humano com a
realidade. O que a discussão sobre o engajamento deixa de considerar é que, ao colocar-se a
literatura à serviço de ideias políticas, corre-se o risco de vulgarizar-se a própria
potencialidade literária de resistir ao real. O engajamento declarado, assim, não
necessariamente gera uma maior transformação no mundo, que pode ser provocada por textos
literários sutis, mas esteticamente revolucionários.

6. A arte tem um papel na formação jurídica?


Para Antônio Cândido17, a literatura pode cumprir uma função social pedagógica – desde que

14
MORRISON, Toni. Sula. Trad. de Débora Landsberg. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 13-
19.
15
MORRISON, Toni. Rootedness: The Ancestor as Foundation. In: Black Women Writers (1950-1980): A
Critical Evaluation. NY: Anchor Press/Doubleday, 1984. 339-345.
16
ADORNO, Theodor. Commitment. In: Aesthetics and Politics. Londres: Verso, 1977, p. 177-195.
17
CANDIDO, Antônio. A Literatura e a Formação do Homem. Disponível em:
não seja aquela vinculada à pedagogia “oficial”. Para o autor, “(...) podemos abordar o
problema da função da literatura como representação de uma dada realidade social e humana,
que faculta maior inteligibilidade com relação a esta realidade. Para isso, vejamos um único
exemplo de relação das obras literárias com a realidade concreta: o regionalismo brasileiro,
que por definição é cheio de realidade documentária”18.
No ensaio “Os Poetas como Juízes”19, Nussbaum defende que o contato com a literatura
promove identificação e reações emocionais importantes para o desenvolvimento do exame
equânime.

QUESTÕES:

1) Em 2013, artistas da cidade de Pasárgada fizeram intervenções em um Farol, datado do


século XIX, localizado na periferia. Embora o bem fosse tombado, não era palco de políticas
públicas de acesso à cultura, estando, ademais, em más condições de preservação. De acordo
com a Lei 9.605, art. 65, pichações fazem parte dos crimes contra o ordenamento urbano,
patrimônio cultural e meio ambiente. De acordo com o §2 do artigo, o grafite, embora não
seja crime, deve ser previamente autorizado pelo proprietário do imóvel e, no caso de bem
tombado, pelo órgão cultural responsável.
Perguntas: Há um conflito de direitos humanos nesse caso? Se sim, entre quais?

2) Em 2016, estudante da Universidade Federal de Pasárgada realizou performance intitulada


“Sangue de Crista”. Nela, o performer realizava cortes no próprio corpo, deixando que o
sangue jorrasse sobre um crucifixo posicionado ao meio do palco. A performance, trabalho
final de uma disciplina curricular do Curso de Artes Cênicas, foi gravada e amplamente
divulgada. De acordo com a OAB de Pasárgada, o autor excedeu os limites de sua liberdade
artística, ofendendo símbolos religiosos, além de cometer o crime previsto no art. 208 do CP,
devido à conduta de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.
Perguntas: Há um conflito de direitos humanos nesse caso? Se sim, entre quais direitos?

<http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/118273/1/ppec_8635992-5655-1-PB.pdf>. Último Acesso


em: 15 mar. 2021.
18
Id. P. 85-86.
19
NUSSBAUM, Martha C. Poets as Judges: Judicial Rhetoric and the Literary Imagination. The University of
Chicago Law Review, v. 62, n. 4, p. 1477-1519, 1995.

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