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2019
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MacIntyre chega a propor uma visão de reconhecimento da dependência como virtude pré-
condicionante à racionalidade. Esta – a racionalidade – e outros dois fatores – a dependência e a
animalidade – configuram-se, em sua teoria, como o tripé sobre o qual deve se alicerçar qualquer teoria
ética; contudo, acentua que a filosofia ocidental findou por enfatizar apenas o primeiro destes fatores,
olvidando a centralidade dos demais (1999).
estruturação de uma Justiça importam mais que o procedimento para estruturá-la, como
explicam Nussbaum, no campo da Teoria de Justiça e Amartya Sen, na economia).
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Rawls resolve esse problema, especificamente, com as linhas geracionais. Isto porque as partes na
posição original estariam a representar uma linha contínua geracional, em virtude do que Rawls as
qualifica como “chefes de família que têm, portanto, um desejo de promover pelo menos o bem-estar de
seus descendentes mais próximos” (1997, p. 111).
chamar de um atendimento médico normal. Com relação aos problemas para
os quais a justiça como equidade talvez não tenha uma resposta, há várias
possibilidades. Uma delas é que a idéia de justiça política não abrange
todas as coisas, nem é de se esperar que o faça. Ou o problema pode ser
realmente de justiça política, mas a justiça como equidade não é
apropriada nesse caso, por melhor que seja para outros casos. A
profundidade dessa deficiência é algo que só podemos avaliar quando o caso
específico for examinado. Talvez simplesmente nos falte perspicácia para
descobrir como estender o conceito. Seja como for, não devemos esperar
que a justiça como equidade, ou qualquer concepção de justiça, abranja
todos os casos de certo e errado. A justiça política sempre precisa ser
complementada por outras virtudes. (2000, p. 63-64).
Em suas palestras, Nussbaum critica a teoria do contrato social por negar a participação
de tanto de pessoas com deficiências físicas quanto mentais no grupo daqueles por
quem e para quem os princípios de justiça são eleitos. Segundo Nussbaum, os princípios
das Teorias de Justiça que Rawls fundamenta – bem como os princípios das teorias que
se fundamentam em Rawls – são adequados unicamente para aqueles que os
desenvolveram, negando-se o acesso a determinados sujeitos que não atendem aos
padrões de racionalidade, capacidade moral e capacidade de comunicação. Em Rawls,
basta lembrarmos as características do sujeito com direito iguais da sociedade
organizada, quais sejam: a capacidade de ter senso de justiça – compreendida como a
que possibilita o entender a concepção pública de justiça característica dos termos
equitativos da cooperação social, bem como sua aplicação e a ação a partir e de acordo
com ela – e a capacidade de formar uma concepção de bem – entendida como a que
possibilita ter, revisar e buscar atingir de modo racional uma concepção de bem (1997,
p. 560-561; 2006, p. 26-34). Assim, Nussbaum entende que Rawls posterga a um estado
posterior, de natureza legislativa, a regulamentação das necessidades de pessoas cegas,
surdas, cadeirantes, com doenças mentais graves (incluindo depressão grave) e pessoas
com graves impedimentos cognitivos e outros impedimentos de desenvolvimento.
Para corrigir esses problemas, Nussbaum substituiria a ênfase da teoria do contrato
procedimental por metas de distribuição dos bens, que considerem o real atingimento de
determinadas capacidades. O enfoque das capacidades que propõe “vai direto ao
conteúdo do resultado, o examina, e se pergunta se ele parece compatível com uma vida
de acordo com a dignidade humana (ou, mais tarde, animal)”, permitindo desvelar
questões de justiça ocultas sob o viés do contrato social. Nussbaum constrói, portanto,
uma teoria de correção à Rawls. Pelo menos é o que aponta em início. Contudo,
posteriormente, fala que o enfoque das capacidades amplia a abordagem rawlsiana (p.
97). Dos dois modos – admitindo-se que a autora possa intercambiavelmente visar
qualquer um desses objetivos – não é possível analisar a teoria da Nussbaum sem um
conhecimento pressuposto não só da Teoria de Justiça de Rawls, desenvolvida
especificamente na obra de 1971, mas também seus desenvolvimentos, sobretudo em
Liberalismo Político, publicado mais de 20 anos depois (1993).
Para firmar seu enfoque de capacidades, Nussbaum consigna sua forte conexão com as
teorias contratualistas, sobretudo a partir da crítica ao utilitarismo. Nesse sentido, diz
que “o enfoque das capacidades e o contratualismo são aliados na maioria das questões
de justiça (...). O enfoque das capacidades pode nos ajudar a ampliar a abordagem
ralwsiana a incluir no campo da justiça as três áreas as quais Rawls não sabia se sua
teoria poderia cobrir” (p. 97-98). Suas relações fundamentais com contratualismo, sem
pelo acordo ou pelo desacordo, se estruturam em quatro âmbitos:
Cooperação social: Martha Nussbaum diz que a justiça deve ser um dos nossos
objetivos na vida, e nós limitamos esse objetivo toda vez que entendemos a justiça
como resultado da vantagem mútua decorrente do contrato (p. 107-109). A ficção da
plena cooperação “oblitera muito daquilo que caracteriza a vida humana, e também
elimina a continuidade entre as chamadas pessoas normais e as com impedimentos
permanentes” (p. 158). O enfoque das capacidades nega, assim, que os princípios de
justiça tenham de assegurar a vantagem mútua, de maneira que o argumento em favor
da justiça não deve ser pautado pela expectativa de receber algo (p. 108).
Nussbaum introduz uma lista de dez capacidades básicas que considera “dar forma e
conteúdo à ideia abstrata de dignidade" (p. 90). Propõe, ainda, a ideia de um limiar para
cada capacidade a partir do qual os cidadãos são considerados incapazes de "funcionar
autenticamente" como humano.
2) saúde física
3) integridade física
5) emoções,
7) afiliação,
9) lazer,
Uma das primeiras críticas que se faz à Nussbaum, sobre as capacidades, é a proposição
de apenas uma lista. Alguns autores tem sugerido que, no caso de pessoas com
deficiências intelectuais ou cognitivas, seria necessário formular listas diferentes e
paralelas. Contudo, a autora argumenta que
Ainda, sobre a lista das capacidades, podemos questionar: quais são os critérios para sua
seleção? Trata-se de um rol definitivo?
Primeiramente, veja-se que Nussbaum enfatiza sua lista como abstrata, para ser
especificada de maneira diferente em diferentes sociedades. Estas são "capacidades" - o
que as pessoas podem ser e fazem - não funcionando com mandato para todas as vidas.
Sem pelo menos um nível mínimo de cada capacidade, diz Nussbaum, qualquer vida
carecerá de dignidade humana a esse respeito e, portanto, não valerá totalmente a pena,
nem pode uma sociedade em que algumas pessoas são tão desprovidas de dignidade ser
justa.
Notavelmente Sen argumenta que nenhuma lista está completa, sobretudo considerando
que sempre deve estar sujeita à revisão.
Primeiro, Nussbaum fala que pode variar (“Essa lista é, ela mesma, aberta e tem sofrido
modificações ao longo do tempo; não há dúvidas que sofrerá mais modificações à luz
das críticas” -p. 91). Depois, fala em preservação de conteúdo da lista e, apenas,
individualização particularizada (“Obviamente, as capacidades podem ser
individualizadas em mais de um modo; não deve haver um dogmatismo sobre a forma
precisa que a lista assume, conquanto seu conteúdo seja preservado” – p. 207). Por fim,
acrescenta:
Só há portanto uma lista, não porque as ideias dos cidadãos a respeito da sua
própria realização sejam únicas, mas porque parece ser razoável para as
pessoas concordar com um grupo de direitos constitucionais fundamentais
que forneçam a base para muitos modos diferentes de vida, direito que
parecem inerentes à ideia de dignidade humana (p. 224).
Abordagem aristotélica
- Dignidade aristotélica contra Kant: Nussbaum aponta que a dignidade humana é uma
dignidade de um tipo específico de animal. Para fundamentá-la, Nussbaum se coloca
contra a pessoalidade kantiana advinda da dicotomia profunda entre reino das coisas em
quatro níveis (p. 163-165):
1) Primeiro, esquece Kant que a dignidade humana é apenas uma dignidade de um tipo
específico de animal;
2) A separação entre um reino das coisas e reino dos fins nega que a animalidade possa
ter, ela própria, uma dignidade. Dessa forma, leva-nos a distorcer nossas relações com
outros animais;
3) Essa separação sugere que a nossa pessoalidade é autossuficiente e puramente ativa,
jamais necessitada ou passiva. Ignora que o “fato de que a doença, o envelhecimento e
um acidente podem impedir da mesma forma tanto funções morais e racionais quanto as
demais funções animais.”
4) A divisão nos faz pensar sobre nosso próprio centro como atemporal, vez que a
agência moral (na visão kantiana) parece-se não com algo que cresce, amadurece e
declina, mas, ao invés disso, com algo que é completamente desprovido, em sua
dignidade, desses evento.
Em nota de rodapé elucidativa, sobre o contraste de sua posição com a pessoa kantiana,
explica Nussbaum:
Outra maneira de colocar isso, comum nas discussões sobre Kant, é dizer
que, para Kant, o gênero mais relevante sob o qual classificamos o ser
humano é o do Ser Racional; nossos companheiros de gênero são os anjos e
quaisquer outros seres racionais que existam. Dentro desse gênero, somos as
espécies animais: o animal racional, então, e não o animal racional. Este
problema é exacerbado, é claro, pelo enfoque de Kant em alguns aspectos de
nossa humanidade e não em outros, como o que particularmente constitui seu
valor e dignidade (p. 164).
First, it poses a direct challenge. Here are some of our fellow citizens, and
fellow participants in human dignity. Their needs, real and important, have
not been adequately addressed by previous theories of justice. So the direct
challenge asks us to design theories that address these needs and offer
good normative guidance for societies seeking to do justice to them.
Second, it poses an indirect challenge, by offering a test we can apply to all
candidate theories of justice. We ask of each of the theories how the
principles they suggest would treat the entitlements of people with
cognitive disabilities, and we find fault with theories that, however attractive
in other respects, cannot handle that issue well. By the same token, the
ability of a theory to handle it well is at least one point in favor of such a
theory. (2010, p. 75).
Sesha é filha de Eva Kittay, tendo motivado pessoalmente as teorias desta. Para
entender as diferenças de perspectiva de Kittay e Nussbaum, é importante cotejar as
palavras com as quais as duas a descrevem. Nussbaum fala:
Sesha (...) é uma jovem mulher de vinte e tantos anos. Cativante e carinhosa,
ama música e vestidos bonitos. Responde com alegria ao afeto e admiração
dos outros. Sesha balança ao ritmo da música e abraça seus pais. Mas jamais
poderá andar, falar ou ler. Por causa de uma paralisia cerebral congênita e
retardo mental grave, será sempre profundamente dependente dos outros.
Precisa ser vestida, lavada, alimentada e que a levem para passear pelo
Central Park em cadeira de rodas (2013, p. 117).
E depois:
Considerando tudo isso, ela tem portanto, uma expectativa pequena de
desfrutar o gozo espontâneo da sexualidade e da criação de filhos, e talvez
nenhuma perspectiva de uma vida com atividade política significativa,
iniciada por ela própria. (...) Assim, o que temos claramente de dizer, me
parece, é que algumas das capacidades na lista não serão atingíveis por ela,
mas que isso é extremamente lastimável, não um sinal de que ela esteja
florescendo em uma forma diferente de vida (p. 236).
Esta segunda indagação se destrincha em outras duas: quais os critérios para que se
delimite o âmbito em que há o potencial de desenvolvimento, em oposição ao que não
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Esta postura diferencia-se integralmente da ideia de prevenção albergada pelo modelo de direitos
humanos de deficiência, dado que a prevenção qualificasse como um trabalho que não se pauta em
mensagens negativas acerca da deficiência. Nussbaum aproxima-se da teoria da tragédia pessoal, que
entende que ter uma deficiência sempre é uma tragédia – em seu caso, ter certas deficiência, que impedem
o funcionamento tipicamente humano, sempre é uma tragédia.
há? Quem segura a régua da caracterização da humanidade; ou seja, quem faz a
avaliação da presença de “funcionamentos tipicamente humanos”? A meu ver,
Nussbaum parece cair no que Dawkins chama de “paradoxo da mente descontínua” com
seu conceito de limiar:
Não adianta dizer para essa gente que, dependendo da característica humana
que nos interesse, um feto pode ser “meio humano” ou “um centésimo
humano”. “Humano”, para a mente qualitativa, absolutista, é como
“diamante”. Não existem casas no meio do caminho. As mentes absolutistas
podem ser uma ameaça. Elas causam sofrimento real, sofrimento humano. É
isso que chamo de tirania da mente descontínua. Para certos propósitos, os
nomes e as categorias descontínuas são exatamente aquilo de que precisamos.
Os advogados, aliás, precisam deles o tempo todo. Crianças não podem
dirigir, adultos podem. A lei precisa estipular um limiar, por exemplo o
décimo oitavo aniversário. É revelador o fato de as seguradoras terem uma
posição muito diferente quanto à idade adequada para esse limiar. Algumas
descontinuidades são reais, por quaisquer critérios. Você é uma pessoa e eu
sou outra, e nossos nomes são rótulos descontínuos que indicam corretamente
nossa separação. O monóxido de carbono é de fato distinto do dióxido de
carbono, não existe sobreposição. Uma molécula consiste em 1 átomo de
carbono e 1 de oxigênio, ou 1 de carbono e 2 de oxigênio. Nenhuma tem 1
átomo de carbono e 1,5 de oxigênio. Um gás é letalmente venenoso, o outro é
necessário para as plantas produzirem as substâncias orgânicas das quais
todos dependemos. O ouro é distinto da prata. Cristais de diamante são
realmente diferentes de cristais de grafite. Ambos são feitos de carbono, mas
os átomos de carbono dispõem-se naturalmente de dois modos muito
distintos. Não há intermediários. (...) E quanto às ovelhas e cabras
propriamente ditas? Existem drásticas descontinuidades entre espécies ou
será que elas se fundem umas com as outras como as notas de exame de
primeira e da segunda classe? Se olharmos para os animais sobreviventes, a
resposta normal é: sim, existem drásticas descontinuidades. Exceções como
as gaivotas são raras, mas relevantes, pois traduzem para o domínio espacial
a continuidades que normalmente encontramos apenas no domínio temporal.
As pessoas e os chimpanzés sem dúvida são ligados por uma cadeia contínua
de intermediários e por um ancestral comum, mas os intermediários estão
extintos; o que resta é uma distribuição descontínua. O mesmo se aplica a
pessoas e macacos e a pessoas e cangurus, só que os intermediários extintos
viveram muito tempo atrás. Como os intermediários quase sempre estão
mortos, é comum cometer-se impunemente o erro de supor que existe uma
drástica descontinuidade entre cada espécie e todas as demais. Mas aqui
estamos tratando da história evolutiva dos mortos e dos vivos. Quando
falamos de todos os animais que já viveram, e não só dos que estão vivos
hoje, a evolução nos diz que existem linhas de continuidade gradual ligando
precisamente cada espécie a todas as demais. Quando o assunto é história,
mesmo espécies modernas aparentemente descontínuas como ovelhas e cães
são ligadas, pelo ancestral que elas têm em comum, em linhas ininterruptas
de suave continuidade.
Destaque-se, também, que, neste ponto, Nussbaum assume uma aproximação do modelo
médico de tratamento da incapacidade que, como se sabe, concebe a deficiência como
um problema centralmente individual, afastando-se do modelo social que entende que a
deficiência se origina preponderantemente em causas sociais, em um contexto
interrelação com as barreiras que impedem o pleno gozo de direitos e oportunidades em
igualdade de condições com os demais.
Críticas à Nussbaum:
Por fim, Nussbaum permitiria, diz Cuenca, uma infração forte da autonomia de pessoas
com deficiências “mentais”. Para a autora, obrigar os cidadãos a realizar suas
funcionalidades seria antiliberal e ditatorial (p. 210-211). No entanto, permite-se a
obrigação da realização das funcionalidades no caso de pessoas com "deficiências
mentais". Admite que "em muitos casos" e em "muitas áreas", já que pessoas com as
deficiências mentais "não podem tomar decisões sobre seus cuidados médicos, consentir
em relações sexuais ou avaliar os riscos de um trabalho ou ocupação em particular", o
objetivo "será o funcionamento adequado, e não a capacidade" O perigoso e arriscado
"movimento de capacidades para as funcionalidades " significa não levar em
consideração a vontade e as preferências das pessoas com deficiência e impedi-las de
buscar suas próprias concepções do bem. Na teoria de Nussbaum, as pessoas com
deficiência devem ser levadas ao limiar das capacidades ditadas pela norma da espécie,
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Afirma manter uma noção aristotélica e não-kantiana da idéia de racionalidade que não é uma noção
idealizada e que não é oposta à animalidade (p. 196-197).
por isso não há espaço para algumas pessoas com deficiência expressarem uma
concepção do bem. A vida das pessoas com deficiência intelectual é algo "objetivo" e
estabelecido sem elas.
- Crítica de Michael Stein: Stein aponta que o enfoque das capacidades não é suficiente
para empoderar as pessoas com deficiência no que diz respeito a seu direito de estar no
mundo. Para o autor, o esquema de Nussbaum falha ao reconhecer a dignidade plena
como predicado apenas daqueles cujos funcionamentos ocorrem acima do considerado
mínimo (2007, p. 101-102). Neste sentido, a consideração das capacidades centrais
como elementos estritamente determinantes de uma vida com dignidade pode conduzir
a qualificação como menos dignos dos sujeitos que não as possuem.
- Crítica de Anita Silvers e Leslie P. Francis: Silvers e Francis afirmam que fixar
parâmetros mínimos de capacidade pode conduzir a opressões, derivadas,
primeiramente, da identificação dos que jamais atingiram estes padrões, os anormais,
que poderão vir a ser estigmatizados, e, segundamente, da noção de retribuição aos
recursos alocados para a aquisição do grau mínimo de capacidades, que eventualmente
gera a assimilação de pessoas que não podem ser assimiladas ou para quem a
assimilação é extremamente dolorosa (2005, p. 54-55). Nussbaum entende que o não
alcance das capacidades centrais por parte de um sujeito é um evento extremamente
lastimável, uma vez que, quando alguém não as alcança, essa é uma ocorrência infeliz.
As capacidades constantes em sua lista são realmente importantes e boas. Não ter
aptidão para atingi-las é uma tragédia. Nesse sentido, Nussbaum chega a afirmar que
aqueles indivíduos que não têm uma "expectativa razoável" de alcançar um
desenvolvimento "normal" de qualquer uma das capacidades da lista sofrem "uma
infelicidade terrível" e que sua vida é "infeliz" (p. 236-237). Em relação à abordagem de
Nussbaum, Silvers e Francis apontam que, talvez, em vez de "trabalhar incansavelmente
para levar cada um ao nível mínimo de funcionamento esperado para os cidadãos em
uma sociedade justa", o ideal seria trabalhar incansavelmente para “leve cada um ao
leque de espaços de capacidades que constituem sua concepção personalizada do bem”
(2010, p. 246).
Síntese da obra e crítica
Nussbaum aponta que o enfoque das capacidades é o adequado para tratar a questão da
deficiência dentro da justiça, sendo esta abordagem apta a exigir que os governos
respeitem e implementem garantias humanas centrais, identificadas em uma lista de
capacidades. Para a autora, estas capacidades estão no núcleo do conceito de vida
humana digna, existindo um nível mínimo para cada capacidade, abaixo do qual
considera como inexistentes as condições de possibilidade para um funcionamento
verdadeiramente humano. Parte-se desta ideia para estabelecer uma lista de dez
capacidades vitais como exigências centrais para uma vida digna, estabelecendo um rol
de requisitos mínimos de garantias para a consecução destas capacidades, sem o
adimplemento dos quais uma sociedade não pode ser considerada completamente justa.
Tais capacidades são: vida; saúde física; integridade física; sentidos, imaginação e
pensamento; emoções; razão prática; afiliação; outras espécies; lazer; controle sobre o
próprio ambiente.
A meu ver, objetivo principal de Martha Nussbaum, neste livro, é fornecer uma
fundamentação ética para uma política internacional de desenvolvimento, embora se
negue a reconhecer referida meta. De fato, a autora compreende que o procedimento e a
lista envolvidas no enfoque de capacidades podem “concitar a um acordo amplo,
intercultural, similar aos acordos internacionais relativos aos direitos humanos básicos
que têm sido alcançados” (p. 94). Contudo, mais a frente, afirma que o enfoque das
capacidades “não é uma doutrina política sobre os direitos básicos, nem uma doutrina
moral abrangente”. O ponto central da obra é que sua lista de capacidades seja, na
realidade, considerada pelas ordens nacionais e, concomitantemente, internacionais,
como dentro de um referencial básico de direitos humanos, embora insista que se trata,
mais profundamente, de entender o que é o humano e quais as condições cujo
suprimento garante sua caracterização moral.
Acredito aqui que a efetivação do direito à educação não tem por meta o aprimoramento
de capacidades específicas. Não se quer dizer, com isto, que a educação inclusiva não
gere o desenvolvimento cognitivo; contudo, considerar este objetivo como meta direta
da efetivação da educação consiste em menoscabar a prerrogativa educacional daqueles
que apenas a atingirão limitadamente. Ademais, ao que tudo indica, as duas situações
analisadas por Nusbaum como justificadoras da segregação parecem consagrar não o
viés da inclusão, enquanto um paradigma que demanda a reestruturação da instituição
de ensino para melhor atender às demandas de todos – dos com e sem deficiência.
Nussbaum considera um ambiente em que as opções paradigmáticas são a segregação e
a integração, porquanto o estudante com deficiência tenha que normalizar-se,
angariando as mesmas habilidades cognitivas que os demais, ou segregar-se, em virtude
de seu patente estado de anormalidade.
Por fim, veja-se que, uma vez considerada enquanto base da efetivação do direito à
educação inclusiva uma perspectiva de igualdade advinda do percebido em Rawls ou
Nussbaum, a desigualdade de efetivação dos potenciais educacionais entre pessoas com
deficiência e pessoas sem deficiência, pode ser vista, respectivamente, como um fruto
da condição individual e do malogro dos funcionamentos e capacidades básicas. Estes
dois entendimentos partem de uma concepção bastante clara de valorização da
normalização, enquanto processo de viabilização da posse ou do desenvolvimento de
capacidades específicas atinentes ao projeto capacitista, que coloca a dependência e os
estados não-autônomos enquanto fatores a serem superados.
Outro ponto importante, com o qual tenho fortes divergências com Nussbaum, é o
esquecimento proposital dos apoios e suportes na expressão das capacidades 8 –
8
No capítulo 3 do livro, a seção VI foi traduzida corretamente para o português como “o cuidado e a lista
das capacidades” (no original: care and the capabilities list). No espanhol, traduziu-se “cuidado” como
conceitos profundamente enraizados no texto da Convenção Internacional sobre
Direitos das Pessoas com Deficiência. Ilustro esta divergência em uma assertiva
acentuadamente estereotipada de Nussbaum, que parece olvidar às noções de medidas
de apoio individualizadas e de fornecimento de apoios necessários: “Crianças com
síndrome de Down são normalmente dóceis e fáceis de conviver. Em contrapartida, a
síndrome de Asperger de Arthur, combinada com tiques nervosos da síndrome de
Tourette, incomoda as outras crianças, mesmo quando são encorajadas a serem
compreensivas” (p. 253-254).
Obliterar o papel dos apoios e suportes significa tirar de cena os contextos de realização
das capacidades humanas, compreendendo como externo ao próprio conceito dessas.
Em uma visão aristotélica de florescimento em uma comunidade política, é preciso
considerar a intersubjetividade inerente à convivência, que forma redes de apoios e
interligações dentro das quais o ser humano se realiza. Pensar o ser humano deslocado
destas redes, como realizador de uma capacidade, digamos, para o amor 9, é esquecer
que, neste funcionamento, alguém é amado e alguém ama ou não ama de volta. Na
reciprocidade desse amor, tece-se um laço, uma ligação, que determina a humanidade
em mim, mas que depende de algo externo a mim, como amante: o suporte
intersubjetivo em uma correspondência no amado. As emoções entre dois membros ou
mais de uma comunidade demandam vias não-unilaterais, mas politerais e sobrepostas,
apoiadas, umas nas outras, para sua funcionalidade concreta.
Por fim, não fica claro, para mim, qual a visão de Nussbaum na discussão sobre a
qualificação da pessoa com deficiência cognitiva ou intelectual enquanto dotada do
“assistência”, abrindo espaço para a crítica latino-americana não estivesse tão atenta à inserção dos apoios
e dos suportes – mesmo que interpretado que Nussbaum o teria feito em menos de quatro páginas, nesta
seção. Cuidado, relativo, em resumo, à considerar eticamente a dependência do outro para a determinação
do seu tratamento para com ela, não se confunde, conceitual ou praticamente, com o conceito de
“assistência”, que se relaciona a ajudar o outro a ser o melhor que pode ser (em conexão com os termos
“apoio” e “suporte”).
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A capacidade para amar é incluída na capacidade humana para emoções. Diz Nussbaum: “Ser capaz de
manter relações afetivas com coisas e pessoas fora de nós mesmos; amar aqueles que amam e se
preocupam conosco, sofrer na sua ausência; em geral, ser capaz de amar, de sentir pesar, sentir saudade,
gratidão e raiva justificada. Não ter o desenvolvimento emocional afetado pelo medo e pela ansiedade.
(Apoiar essa capacidade significa apoiar formas de associação humana que podem ser mostradas como
cruciais em seu desenvolvimento) (p.92). Em obra recente, Nussbaum destaca que a capacidade para amar
é integrativa do próprio conceito de cidadão: “It seems clear that in the citizen case too, the citizen who
really feels love of others is very diff erent from the merely law- abiding dutiful citizen, in ways that
make a diff erence to our analysis. Loving citizens are likely to be much more resourceful in action, but
even if this is not the case— even if somehow or other the dutiful citizen were to do all the same things—
we still should admire and prefer the citizen whose imagination and emotions are alive to the situation of
the nation, and of its other citizens” (2013, p. 395).
status de sujeito de direitos ou como membro de uma comunidade pautada por Justiça.
De que forma podemos pensar que esta teoria inclui, de fato, seres humanos que, na
visão de Nussbaum, não têm possibilidade alguma de desenvolvimento dessas
capacidades humanas centrais? Mais profundamente, esses sujeitos seriam ou não
seriam humanos? Se, de toda forma, não forem nem humanos nem alvos das políticas de
desenvolvimentos das capacidades, de que forma sua teoria permite que se forneça
maior bem-estar às suas vidas?