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Relatoria – Fronteiras da Justiça – Martha Nussbaum – 30.04.

2019

PPGFILO – “O Conceito de Justiça” – Prof. Eduardo Moreira

Relatora: Luana Adriano Araújo.

(...) a assistência infantil, aos idosos e às pessoas com


deficiência mental e física correspondem à maior parte do
serviço que precisa ser feito em qualquer sociedade; no entanto,
são fontes de grande injustiça na maioria das sociedades. Toda
teoria de justiça precisa refletir sobre esse problema desde o
começo, na formulação da estrutura institucional básica, e,
particularmente, em sua teoria dos bens primários (p. 158)

Contexto e objetivo da obra

Influenciando fortemente as teorias jurídicas contemporâneas sobre Justiça, conceitos


como racionalidade, independência e autonomia colocam-se, na filosofia política, como
pedras de toque essenciais para a formação de uma sociedade de pessoas iguais, dignas
e mutuamente respeitosas. Como fundamentação metodológica dessa tradição, o
contrato social, concebido como situação hipotética que fundamenta e legitima o
consenso sobreposto, anima as perspectivas de estruturação da noção de Justiça no
século XX, sobretudo em face da teoria mais influente neste campo: a Justiça como
Equidade de John Rawls.

Por outro lado, provocados por preocupações com a vulnerabilidade, a dependência e a


animalidade como estados inerentes ao humano, os críticos de contrato social
propuseram, por um lado, uma ética de cuidado (Eva Kittay, na Teoria de Justiça,
Alisdair MacIntyre, na Filosofia Moral1), e, por outro, uma reformulação da justiça
distributiva a partir da teoria de abordagem das capacidades (na qual os resultados da

1
MacIntyre chega a propor uma visão de reconhecimento da dependência como virtude pré-
condicionante à racionalidade. Esta – a racionalidade – e outros dois fatores – a dependência e a
animalidade – configuram-se, em sua teoria, como o tripé sobre o qual deve se alicerçar qualquer teoria
ética; contudo, acentua que a filosofia ocidental findou por enfatizar apenas o primeiro destes fatores,
olvidando a centralidade dos demais (1999).
estruturação de uma Justiça importam mais que o procedimento para estruturá-la, como
explicam Nussbaum, no campo da Teoria de Justiça e Amartya Sen, na economia).

Especificamente Martha Nussbaum começa a fazer esta crítica no contexto da Tanner


Lectures in Human Values, na Australian National University, quando profere a palestra
intitulada “Beyond the Social Contract: Toward Global Justice”, realizada em
Novembro de 2002 (acessível em: http://philrsss.anu.edu.au/tanner/). Basicamente,
Nussbaum parte de um argumento: há, na teoria do contrato social do liberalismo
político inspirado em Rawls, três questões não endereçadas: as pessoas com deficiência,
os animais e o direito internacional ou transnacional (entre povos). De fato, estes
problemas são reconhecidos por Rawls, em Liberalismo Político, quando diz:

Como partimos da idéia da sociedade enquanto sistema eqüitativo de


cooperação, supomos que os indivíduos, na condição de cidadãos, têm todas
as capacidades que lhes possibilitam ser membros cooperativos da sociedade.
Essa suposição tem por finalidade chegarmos a uma visão clara e ordenada
do que, para nós, é a questão fundamental da justiça política: qual é a
concepção mais apropriada de justiça para especificar os termos da
cooperação social entre cidadãos considerados livres e iguais, membros
normais e plenamente cooperativos da sociedade, ao longo de toda a vida?
Ao considerar esta a questão fundamental, não pretendemos dizer,
evidentemente, que ninguém jamais sofre um acidente nem tem uma doença;
é de se esperar que essas desgraças aconteçam no curso normal da vida, e é
necessário tomar as devidas providências para essas eventualidades. Mas,
dado o nosso objetivo, deixo de lado, por enquanto, essas incapacitações
temporárias e também as permanentes, assim como as doenças mentais
graves a ponto de impedir as pessoas de serem membros cooperativos da
sociedade no sentido habitual. Assim, embora comecemos com uma idéia
de pessoa implícita na cultura política pública, idealizamos e simplificamos
essa idéia de várias maneiras, a fim de nos concentrarmos primeiro na
questão mais importante. (...) Assim, temos o problema de estender o
conceito de justiça como eqüidade de forma a abranger nossos deveres para
com as gerações futuras2, entre os quais se encontra o problema da
poupança justa ampliar o conceito de justiça como equidade de forma a
abranger o direito das gentes, isto é, os conceitos e princípios que se aplicam
ao direito internacional e às relações entre sociedades políticas. Ademais,
como supomos (conforme indicamos acima) que as pessoas são membros
normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida e,
portanto, têm as capacidades necessárias para assumir esse papel, temos a
questão do que é devido àqueles que não conseguem satisfazer essa condição,
tanto temporária (por doença ou acidente) quanto permanentemente, ambas
as situações abrangendo uma grande variedade de casos. Finalmente, há o
problema do que é devido aos animais e ao resto da natureza Embora
quiséssemos responder a todas essas questões, duvido muito que isso seja
possível no âmbito da justiça como eqüidade entendida como uma concepção
política. Acho que essa concepção apresenta respostas razoáveis aos dois
primeiros problemas de extensão: às futuras gerações e aos direitos das
gentes, e a uma parte do terceiro, o problema de prover aquilo que podemos

2
Rawls resolve esse problema, especificamente, com as linhas geracionais. Isto porque as partes na
posição original estariam a representar uma linha contínua geracional, em virtude do que Rawls as
qualifica como “chefes de família que têm, portanto, um desejo de promover pelo menos o bem-estar de
seus descendentes mais próximos” (1997, p. 111).
chamar de um atendimento médico normal. Com relação aos problemas para
os quais a justiça como equidade talvez não tenha uma resposta, há várias
possibilidades. Uma delas é que a idéia de justiça política não abrange
todas as coisas, nem é de se esperar que o faça. Ou o problema pode ser
realmente de justiça política, mas a justiça como equidade não é
apropriada nesse caso, por melhor que seja para outros casos. A
profundidade dessa deficiência é algo que só podemos avaliar quando o caso
específico for examinado. Talvez simplesmente nos falte perspicácia para
descobrir como estender o conceito. Seja como for, não devemos esperar
que a justiça como equidade, ou qualquer concepção de justiça, abranja
todos os casos de certo e errado. A justiça política sempre precisa ser
complementada por outras virtudes. (2000, p. 63-64).

Em suas palestras, Nussbaum critica a teoria do contrato social por negar a participação
de tanto de pessoas com deficiências físicas quanto mentais no grupo daqueles por
quem e para quem os princípios de justiça são eleitos. Segundo Nussbaum, os princípios
das Teorias de Justiça que Rawls fundamenta – bem como os princípios das teorias que
se fundamentam em Rawls – são adequados unicamente para aqueles que os
desenvolveram, negando-se o acesso a determinados sujeitos que não atendem aos
padrões de racionalidade, capacidade moral e capacidade de comunicação. Em Rawls,
basta lembrarmos as características do sujeito com direito iguais da sociedade
organizada, quais sejam: a capacidade de ter senso de justiça – compreendida como a
que possibilita o entender a concepção pública de justiça característica dos termos
equitativos da cooperação social, bem como sua aplicação e a ação a partir e de acordo
com ela – e a capacidade de formar uma concepção de bem – entendida como a que
possibilita ter, revisar e buscar atingir de modo racional uma concepção de bem (1997,
p. 560-561; 2006, p. 26-34). Assim, Nussbaum entende que Rawls posterga a um estado
posterior, de natureza legislativa, a regulamentação das necessidades de pessoas cegas,
surdas, cadeirantes, com doenças mentais graves (incluindo depressão grave) e pessoas
com graves impedimentos cognitivos e outros impedimentos de desenvolvimento.
Para corrigir esses problemas, Nussbaum substituiria a ênfase da teoria do contrato
procedimental por metas de distribuição dos bens, que considerem o real atingimento de
determinadas capacidades. O enfoque das capacidades que propõe “vai direto ao
conteúdo do resultado, o examina, e se pergunta se ele parece compatível com uma vida
de acordo com a dignidade humana (ou, mais tarde, animal)”, permitindo desvelar
questões de justiça ocultas sob o viés do contrato social. Nussbaum constrói, portanto,
uma teoria de correção à Rawls. Pelo menos é o que aponta em início. Contudo,
posteriormente, fala que o enfoque das capacidades amplia a abordagem rawlsiana (p.
97). Dos dois modos – admitindo-se que a autora possa intercambiavelmente visar
qualquer um desses objetivos – não é possível analisar a teoria da Nussbaum sem um
conhecimento pressuposto não só da Teoria de Justiça de Rawls, desenvolvida
especificamente na obra de 1971, mas também seus desenvolvimentos, sobretudo em
Liberalismo Político, publicado mais de 20 anos depois (1993).

Contrato social na perspectiva de Nussbaum

Nussbaum entende que, a despeito de existirem muitas perspectivas de justiça social na


tradição ocidental, a ideia do contrato social – a partir da qual há a reunião de
indivíduos racionais, em um contexto de vantagens mútuas, com o fito de elaboração
das regras primordiais de justiça pelas quais se governarão – tem sido uma das mais
fortes e duradouras, influenciando profundamente o pensamento que se debruça sobre a
questão da justiça e da igualdade na atualidade. Nussbaum aponta que a ideia do
contrato feito no estado de natureza fornece não somente uma explicação do conteúdo
dos princípios políticos, mas, também, um marco referencial de legitimidade política.
Qualquer sociedade cujos princípios básicos estivessem distantes daquilo que seriam
escolhido por pessoas livres, iguais e independentes no estado de natureza seria posta
em questão (NUSSBAUM, 2013, p. 3-14).

Contrastes com o contratualismo:

Para firmar seu enfoque de capacidades, Nussbaum consigna sua forte conexão com as
teorias contratualistas, sobretudo a partir da crítica ao utilitarismo. Nesse sentido, diz
que “o enfoque das capacidades e o contratualismo são aliados na maioria das questões
de justiça (...). O enfoque das capacidades pode nos ajudar a ampliar a abordagem
ralwsiana a incluir no campo da justiça as três áreas as quais Rawls não sabia se sua
teoria poderia cobrir” (p. 97-98). Suas relações fundamentais com contratualismo, sem
pelo acordo ou pelo desacordo, se estruturam em quatro âmbitos:

Circunstâncias de Justiça: contrapõe-se o enfoque das capacidades à necessidade de


haverem condições específicas3 (da situação ideal da posição original) para que se
3
Na justiça como equidade de Rawls, as condições tem inspiração em Hume, sendo classificadas em
subjetivas e objetivas. As objetivas são, sobretudo, relacionadas ao espaço geográfico e à escassez
moderada de recursos. As subjetivas são aspectos relevantes dos sujeitos da cooperação, das pessoas que
trabalham juntas, como a igualdade aproximada (1997, p. 136-137). Nussbaum aponta que esta ênfase em
capacidades correlacionadas à cooperação fundamenta a ideia de que as pessoas só se reúnem e
estabelecem por contrato os princípios políticos básicos quando é possível obter vantagens mútuas;
incluir, portanto, pessoas que “contribuem menos” do que um grau mínimo necessário de capacidades
realize o consenso sobreposto que leva à Justiça. Nussbaum diz que “as questões da
Justiça estão sempre sobre a mesa” (p. 105). Não há, portanto, um momento específico
da condição humana – que sempre é uma condição imbuída na interpessoalidade
política e social – em que as questões de justiça passam a ser relevantes ou passam a
demandar o pensamento reflexivo; portanto, as questões de justiça, no contexto do
humano, sempre foram e sempre serão relevantes. Esta perspectiva é particularmente
condizente com sua teoria, que exige uma atualidade – ou seja, uma realização contínua
– das capacidades, não sendo suficiente que elas se completem em um ponto específico
do tempo – podendo ser esse ponto, por exemplo, o momento em que se dá a
interlocução sobre os princípios de justiça.

Igualdade, independência e liberdade: Nussbaum propõe uma concepção política de


pessoa, aristotélica, que se contrasta, em primeiro lugar, com a noção de liberdade
contratualista. Para ela, o sujeito da teoria de justiça tem profundo interesse na escolha,
incluindo a escolha de um modo de vida e de princípios políticos que a governem (p.
106-107). Por este motivo, se insere a abordagem de capacidades na tradição liberal. Por
outro lado, não há paralelo, no enfoque de capacidades, à ideia de igualdade contratual
em poderes e habilidades, visto que “as pessoas variam enormemente com relação a
suas necessidades de recursos e cuidado, e a mesma pessoa pode ter diversas
necessidades dependendo do momento de vida” (p. 107). Tampouco serão, desta forma,
independentes, dado que, como animais políticos, os interesses das pessoas estão
conectados e seus fins relacionados.

Cooperação social: Martha Nussbaum diz que a justiça deve ser um dos nossos
objetivos na vida, e nós limitamos esse objetivo toda vez que entendemos a justiça
como resultado da vantagem mútua decorrente do contrato (p. 107-109). A ficção da
plena cooperação “oblitera muito daquilo que caracteriza a vida humana, e também
elimina a continuidade entre as chamadas pessoas normais e as com impedimentos
permanentes” (p. 158). O enfoque das capacidades nega, assim, que os princípios de
justiça tenham de assegurar a vantagem mútua, de maneira que o argumento em favor
da justiça não deve ser pautado pela expectativa de receber algo (p. 108).

Motivações das partes: enquanto as partes da posição original buscam o interesse


próprio – a despeito de não saber, sob o Véu da Ignorância, qual especificamente seja –
o enfoque das capacidades pode incluir sentimentos de benevolência desde o começo da
está apto a contribuir ou que têm demandas mais onerosas atenta a lógica contratual.
explicação da relação das pessoas com seus bens. Isto porque a sociabilidade é um
conceito fundamental à teoria de Nussbaum, de modo que a pessoa do enfoque de
capacidades está sempre em um contexto de fins compartilhados (p. 109-110)

Abordagem das capacidades

Distinção capacidades/funcionalidades: A versão de Nussbaum sobre capacidade, assim


como a de Sen, adota uma distinção entre capacidades e funcionalidades 4. No entanto,
devido suas bases marxistas e aristotélicas, Nussbaum se distancia de Sen para afirmar o
que chama de desenvolvimento “verdadeiramente humano” de capacidades. Enquanto
Sen entende as capacidades como oportunidades de fato para a realização de certas
funções, Nussbaum estrutura uma abordagem filosófica daquilo que é singular aos seres
humanos. A ideia intuitiva básica de sua versão da abordagem das capacidades é que se
deve começar com uma concepção da dignidade do ser humano e de uma vida que é
digna dessa dignidade - uma vida que tem disponível nela um “funcionamento
verdadeiramente humano” (p. 89-90). Em ausentes as possibilidades de realização
dessas capacidades, não se trata de uma vida verdadeiramente humana.

A versão de Sen concentra-se na mensuração comparativa da qualidade de


vida, apesar de também estar interessado em questões de justiça social. Eu,
por outro lado, tenho usado essa abordagem para fornecer a base filosófica
para uma explicação das garantias humanas centrais que devem ser
respeitadas e implementadas pelos governos de todas as nações, como um
mínimo que o respeito pela dignidade humana requer (p. 84).

Nussbaum entende a distinção capacidades/funcionalidades como multiplicada - isto é,


enquanto as capacidades são o espaço para a oportunidade de ações particulares, a
maneira pela qual esse espaço é manifestado, através de diferentes ações, é o
funcionamento de uma pessoa.

Mínimo básico de capacidades: Para Nussbaum, as capacidades se articulam dentro de


um contexto de mínimo social básico para uma vida apropriada à dignidade humana,
estando relacionadas àquilo as pessoas de fato são capacidades de fazer e ser (não
necessariamente consiste em uma atividade, podendo consubstanciar, por exemplo, no
estado de saúde como um funcionamento). Prevê, assim, uma “lista de capacidades
humanas centrais”, intuitivamente derivadas ou implícitas na ideia de vida humana
digna. Dessa forma, fixa – de maneira muito similar ao “leque normal de variação” de
4
Assim como Sen, Nussbaum propõe a diferença entre ser e fazer algo (funcionalidade) e as
oportunidades reais para que esse ser e esse fazer sejam alcançados (capacidades). Colocar em prática as
funcionalidades envolve outros valores, para além da distribuição de recursos, como a liberdade, a
autoestima e o respeito mútuo.
Rawls5 – um nível limiar (threshold level) de cada capacidade, abaixo do qual se
sustenta que o funcionamento verdadeiramente humano não está disponível para os
cidadãos; o objetivo social deve ser entendido em termos de colocar os cidadãos acima
desse limite de capacidade.

Lista das capacidades

Nussbaum introduz uma lista de dez capacidades básicas que considera “dar forma e
conteúdo à ideia abstrata de dignidade" (p. 90). Propõe, ainda, a ideia de um limiar para
cada capacidade a partir do qual os cidadãos são considerados incapazes de "funcionar
autenticamente" como humano.

Essas capacidades baseiam-se em uma consideração eticamente valorativa da natureza


humana, "de uma concepção da espécie", selecionando entre as atividades que definem
uma vida "caracteristicamente humana" alguns aspectos que são entendidos como
"normativamente fundamentais”, de forma “que uma vida sem nenhuma possibilidade
de exercer algum deles não é uma vida verdadeiramente humana, uma vida de acordo
com a dignidade humana”, mesmo que os outros estejam presentes” (p.221-222). De
acordo com essa ideia, uma sociedade justa tem a obrigação de fornecer os recursos
necessários para que as pessoas possam desenvolver suas habilidades básicas em um
mínimo necessário, o que lhes permitirá escolher livremente seus próprios planos de
vida. Ou seja, além de ser um conceito de limiar (delimitador de umbrais de
humanidade a serem transpostos), é também uma definição cumulativa (é preciso que o
sujeito ultrapasse, de forma atualizada, todos os níveis mínimos de capacidade, ao
mesmo tempo).

As capacidades humanas centrais (p. 91-93):


5
Esta equivalência dentro de um leque normal de variação permite o estabelecimento de termos
equitativos de cooperação, implicando uma ideia de reciprocidade; ou seja, todos os que estão envolvidos
na cooperação devem beneficiar-se da forma apropriada. A definição do leque normal de variação, feita
em uma nota de rodapé do Liberalismo Político, é bastante esclarecedora quanto à não inclusão das
pessoas com deficiência na ideia de pessoa moral, tanto na concepção quanto na aplicação da teoria
rawlsiana. O autor compreende que, uma vez que o problema fundamental da justiça diz respeito às
relações entre aqueles que participam plena e ativamente da sociedade e que se associam ao longo de sua
vida, é razoável supor que todos têm as necessidades físicas e capacidades psicológicas dentro de um
“leque normal de variação”. Em defesa de Rawls, Barbosa-Fohrmann aponta uma interpretação segundo a
qual todos e todas potencialmente são pessoas morais e cooperativas: “Podemos, ainda assim, intentar
uma defesa do pensamento de Rawls nesse particular, fazendo um liame com o que foi anteriormente
sugerido sobre a possibilidade de todos os indivíduos se tornarem potencialmente pessoas morais por
possuírem um sentido basilar de justiça. Em sociedade, poderia se assumir ainda que todos podem se
tornar potencialmente cidadãos por meio de uma interpretação do significado de full social cooperation”
(2013, p. 80-85).
1) vida,

2) saúde física

3) integridade física

4) sentidos, imaginação e pensamento,

5) emoções,

6) razão prática (no sentido de proteção para a liberdade de consciência e deveres


religiosos);

7) afiliação,

8) outras espécies referindo-se a animais não-humanos),

9) lazer,

10) controle sobre o próprio ambiente político e material

Uma das primeiras críticas que se faz à Nussbaum, sobre as capacidades, é a proposição
de apenas uma lista. Alguns autores tem sugerido que, no caso de pessoas com
deficiências intelectuais ou cognitivas, seria necessário formular listas diferentes e
paralelas. Contudo, a autora argumenta que

(...) usar uma lista diferente de recursos ou mesmo um limite mínimo


diferente de capacidades como a meta social apropriada para pessoas com
deficiências é uma prática perigosa, porque é uma maneira fácil de sair do
controle, assumindo desde o início que nós não podemos ou não devemos
cumprir uma meta que seria difícil e cara de cumprir. Estrategicamente, o
caminho certo parece ser manter-se firme com lista única como um conjunto
de direitos sociais não-negociáveis, e trabalhar incansavelmente para levar
todas as crianças com deficiência ao mesmo patamar de capacidade que
estabelecemos para outros cidadãos (p. 233).

Ainda, sobre a lista das capacidades, podemos questionar: quais são os critérios para sua
seleção? Trata-se de um rol definitivo?

Primeiramente, veja-se que Nussbaum enfatiza sua lista como abstrata, para ser
especificada de maneira diferente em diferentes sociedades. Estas são "capacidades" - o
que as pessoas podem ser e fazem - não funcionando com mandato para todas as vidas.
Sem pelo menos um nível mínimo de cada capacidade, diz Nussbaum, qualquer vida
carecerá de dignidade humana a esse respeito e, portanto, não valerá totalmente a pena,
nem pode uma sociedade em que algumas pessoas são tão desprovidas de dignidade ser
justa.
Notavelmente Sen argumenta que nenhuma lista está completa, sobretudo considerando
que sempre deve estar sujeita à revisão.

Primeiro, Nussbaum fala que pode variar (“Essa lista é, ela mesma, aberta e tem sofrido
modificações ao longo do tempo; não há dúvidas que sofrerá mais modificações à luz
das críticas” -p. 91). Depois, fala em preservação de conteúdo da lista e, apenas,
individualização particularizada (“Obviamente, as capacidades podem ser
individualizadas em mais de um modo; não deve haver um dogmatismo sobre a forma
precisa que a lista assume, conquanto seu conteúdo seja preservado” – p. 207). Por fim,
acrescenta:

Só há portanto uma lista, não porque as ideias dos cidadãos a respeito da sua
própria realização sejam únicas, mas porque parece ser razoável para as
pessoas concordar com um grupo de direitos constitucionais fundamentais
que forneçam a base para muitos modos diferentes de vida, direito que
parecem inerentes à ideia de dignidade humana (p. 224).

Abordagem aristotélica

- Condição de Pessoa: contra Rawls (que se fundamenta, segundo a autora, em uma


visão Kantiana de sujeito moral), o enfoque das capacidades de Nussbaum parte da
concepção aristotélica de ser humano como ser social e político, que se realiza nas
relações com os outros (p. 103). Com isso, Nussbaum também diz propor uma noção de
pessoa “mais parecida com a vida real”. “A concepção aristotélica vê o ser humano
como ‘animal político’, isto é, não apenas como um ser moral e político, mas alguém
que tem um corpo animal e cuja dignidade humana, em vez de oposta a esta natureza
animal, lhe é, assim como sua trajetória temporal, inerente” (p. 106). A concepção
aristotélica de pessoa é, portanto, mais próxima do sujeito real, que jamais abandona sua
condição de animalidade; pelo contrário, nela e por meio dela se realiza.

- Dignidade aristotélica contra Kant: Nussbaum aponta que a dignidade humana é uma
dignidade de um tipo específico de animal. Para fundamentá-la, Nussbaum se coloca
contra a pessoalidade kantiana advinda da dicotomia profunda entre reino das coisas em
quatro níveis (p. 163-165):
1) Primeiro, esquece Kant que a dignidade humana é apenas uma dignidade de um tipo
específico de animal;
2) A separação entre um reino das coisas e reino dos fins nega que a animalidade possa
ter, ela própria, uma dignidade. Dessa forma, leva-nos a distorcer nossas relações com
outros animais;
3) Essa separação sugere que a nossa pessoalidade é autossuficiente e puramente ativa,
jamais necessitada ou passiva. Ignora que o “fato de que a doença, o envelhecimento e
um acidente podem impedir da mesma forma tanto funções morais e racionais quanto as
demais funções animais.”
4) A divisão nos faz pensar sobre nosso próprio centro como atemporal, vez que a
agência moral (na visão kantiana) parece-se não com algo que cresce, amadurece e
declina, mas, ao invés disso, com algo que é completamente desprovido, em sua
dignidade, desses evento.
Em nota de rodapé elucidativa, sobre o contraste de sua posição com a pessoa kantiana,
explica Nussbaum:

Outra maneira de colocar isso, comum nas discussões sobre Kant, é dizer
que, para Kant, o gênero mais relevante sob o qual classificamos o ser
humano é o do Ser Racional; nossos companheiros de gênero são os anjos e
quaisquer outros seres racionais que existam. Dentro desse gênero, somos as
espécies animais: o animal racional, então, e não o animal racional. Este
problema é exacerbado, é claro, pelo enfoque de Kant em alguns aspectos de
nossa humanidade e não em outros, como o que particularmente constitui seu
valor e dignidade (p. 164).

- A questão das pessoas com deficiência intelectual e cognitiva

Para Nussbaum, a presença de pessoas com deficiências cognitivas severas propõe um


duplo desafio às Teorias de Justiça contemporâneas. Assim os descreve:

First, it poses a direct challenge. Here are some of our fellow citizens, and
fellow participants in human dignity. Their needs, real and important, have
not been adequately addressed by previous theories of justice. So the direct
challenge asks us to design theories that address these needs and offer
good normative guidance for societies seeking to do justice to them.
Second, it poses an indirect challenge, by offering a test we can apply to all
candidate theories of justice. We ask of each of the theories how the
principles they suggest would treat the entitlements of people with
cognitive disabilities, and we find fault with theories that, however attractive
in other respects, cannot handle that issue well. By the same token, the
ability of a theory to handle it well is at least one point in favor of such a
theory. (2010, p. 75).

- Conhecendo Sesha sob o olhar de Kittay e de Nussbaum

Sesha é filha de Eva Kittay, tendo motivado pessoalmente as teorias desta. Para
entender as diferenças de perspectiva de Kittay e Nussbaum, é importante cotejar as
palavras com as quais as duas a descrevem. Nussbaum fala:
Sesha (...) é uma jovem mulher de vinte e tantos anos. Cativante e carinhosa,
ama música e vestidos bonitos. Responde com alegria ao afeto e admiração
dos outros. Sesha balança ao ritmo da música e abraça seus pais. Mas jamais
poderá andar, falar ou ler. Por causa de uma paralisia cerebral congênita e
retardo mental grave, será sempre profundamente dependente dos outros.
Precisa ser vestida, lavada, alimentada e que a levem para passear pelo
Central Park em cadeira de rodas (2013, p. 117).
E depois:
Considerando tudo isso, ela tem portanto, uma expectativa pequena de
desfrutar o gozo espontâneo da sexualidade e da criação de filhos, e talvez
nenhuma perspectiva de uma vida com atividade política significativa,
iniciada por ela própria. (...) Assim, o que temos claramente de dizer, me
parece, é que algumas das capacidades na lista não serão atingíveis por ela,
mas que isso é extremamente lastimável, não um sinal de que ela esteja
florescendo em uma forma diferente de vida (p. 236).

A descrição de Kittay, por outro lado, conjuga de uma perspectiva diversa:


How to speak of it? How to describe it? Joy. The capacity for joy. The
babbling-brook laughter at musical joke. The starry-eyed far away look as
she listens to Elvis crooning ‘Love Me Tender’, the excitement of her entire
soul as the voices blare out ‘Alle Menschen weder Brüder’ in the choral ode
of Beethoven’s Ninth Symphony, and the pleasure of bestowing her kisses
and receiving the caresses in turn. All variations and gradations of joy.
Spinoza characterized joy as the increase in our power of self-preservation
and by that standard, Sesha’s is a very well-preserved self. Yet she is so
limited. She cannot speak. She cannot even say ‘Mama’ – though sometimes
we think she says ‘Aylu’ (our translation, ‘I love you’) (…) Given the scope
and breadth of human possibilities and capacities, she occupies a limited
spectrum, but she inhabits it fully because she has the most important
faculties of all. The capacities for love and for happiness. (1999, p. 151-152)

Em Nussbaum, é controverso o entendimento de que, se fosse possível curar Sesha de


forma a trazê-la para um nível mínimo de capacidades, isto deveria ser feito em uma
sociedade de promoção e preservação da dignidade. A autora toca, ademais, no ponto
crucial da bioética da engenharia genética, entendendo que, “se pudéssemos interferir
nos seus aspecto genéticos já no útero, de modo que ela não nascesse com
impedimentos tão graves, então, de novo, isso seria o que uma sociedade digna deveria
fazer” (p. 236-238)6, lembrando fortemente a sociedade distópica de Admirável Mundo
Novo, em que são normatizadas referidas alterações intrauterinas – o que nos faz
questionar: primeiro, até que ponto o viés de realização das capacidades não se associa a
uma maximização da felicidade ou da realização pessoal? Segundo, quais as condições
reais que traçam a linha da necessidade de intervenção genética, em prol do
desenvolvimento possível das capacidades?

Esta segunda indagação se destrincha em outras duas: quais os critérios para que se
delimite o âmbito em que há o potencial de desenvolvimento, em oposição ao que não
6
Esta postura diferencia-se integralmente da ideia de prevenção albergada pelo modelo de direitos
humanos de deficiência, dado que a prevenção qualificasse como um trabalho que não se pauta em
mensagens negativas acerca da deficiência. Nussbaum aproxima-se da teoria da tragédia pessoal, que
entende que ter uma deficiência sempre é uma tragédia – em seu caso, ter certas deficiência, que impedem
o funcionamento tipicamente humano, sempre é uma tragédia.
há? Quem segura a régua da caracterização da humanidade; ou seja, quem faz a
avaliação da presença de “funcionamentos tipicamente humanos”? A meu ver,
Nussbaum parece cair no que Dawkins chama de “paradoxo da mente descontínua” com
seu conceito de limiar:

Não adianta dizer para essa gente que, dependendo da característica humana
que nos interesse, um feto pode ser “meio humano” ou “um centésimo
humano”. “Humano”, para a mente qualitativa, absolutista, é como
“diamante”. Não existem casas no meio do caminho. As mentes absolutistas
podem ser uma ameaça. Elas causam sofrimento real, sofrimento humano. É
isso que chamo de tirania da mente descontínua. Para certos propósitos, os
nomes e as categorias descontínuas são exatamente aquilo de que precisamos.
Os advogados, aliás, precisam deles o tempo todo. Crianças não podem
dirigir, adultos podem. A lei precisa estipular um limiar, por exemplo o
décimo oitavo aniversário. É revelador o fato de as seguradoras terem uma
posição muito diferente quanto à idade adequada para esse limiar. Algumas
descontinuidades são reais, por quaisquer critérios. Você é uma pessoa e eu
sou outra, e nossos nomes são rótulos descontínuos que indicam corretamente
nossa separação. O monóxido de carbono é de fato distinto do dióxido de
carbono, não existe sobreposição. Uma molécula consiste em 1 átomo de
carbono e 1 de oxigênio, ou 1 de carbono e 2 de oxigênio. Nenhuma tem 1
átomo de carbono e 1,5 de oxigênio. Um gás é letalmente venenoso, o outro é
necessário para as plantas produzirem as substâncias orgânicas das quais
todos dependemos. O ouro é distinto da prata. Cristais de diamante são
realmente diferentes de cristais de grafite. Ambos são feitos de carbono, mas
os átomos de carbono dispõem-se naturalmente de dois modos muito
distintos. Não há intermediários. (...) E quanto às ovelhas e cabras
propriamente ditas? Existem drásticas descontinuidades entre espécies ou
será que elas se fundem umas com as outras como as notas de exame de
primeira e da segunda classe? Se olharmos para os animais sobreviventes, a
resposta normal é: sim, existem drásticas descontinuidades. Exceções como
as gaivotas são raras, mas relevantes, pois traduzem para o domínio espacial
a continuidades que normalmente encontramos apenas no domínio temporal.
As pessoas e os chimpanzés sem dúvida são ligados por uma cadeia contínua
de intermediários e por um ancestral comum, mas os intermediários estão
extintos; o que resta é uma distribuição descontínua. O mesmo se aplica a
pessoas e macacos e a pessoas e cangurus, só que os intermediários extintos
viveram muito tempo atrás. Como os intermediários quase sempre estão
mortos, é comum cometer-se impunemente o erro de supor que existe uma
drástica descontinuidade entre cada espécie e todas as demais. Mas aqui
estamos tratando da história evolutiva dos mortos e dos vivos. Quando
falamos de todos os animais que já viveram, e não só dos que estão vivos
hoje, a evolução nos diz que existem linhas de continuidade gradual ligando
precisamente cada espécie a todas as demais. Quando o assunto é história,
mesmo espécies modernas aparentemente descontínuas como ovelhas e cães
são ligadas, pelo ancestral que elas têm em comum, em linhas ininterruptas
de suave continuidade.

Destaque-se, também, que, neste ponto, Nussbaum assume uma aproximação do modelo
médico de tratamento da incapacidade que, como se sabe, concebe a deficiência como
um problema centralmente individual, afastando-se do modelo social que entende que a
deficiência se origina preponderantemente em causas sociais, em um contexto
interrelação com as barreiras que impedem o pleno gozo de direitos e oportunidades em
igualdade de condições com os demais.

Críticas à Nussbaum:

- Alison Jaggar: Nussbaum não dá a devida atenção às relações de poder assimétricas.

- Crítica de Patrícia Cuenca: Cuenca entende que a teoria de Nussbaum é, em muitos


aspectos, promissora para as pessoas com deficiência (considera-as cidadãos e membros
plenamente iguais da comunidade humana; rejeita a ideia de racionalidade 7; critica a
ideia de benefício mútuo e plena cooperabilidade da posição original; contudo, esta
teoria mostra-se menos inclusiva do que declara, sobretudo para algumas pessoas com
deficiências específicas (2012, p. 109-111). Contudo, afirma que, embora Nussbaum se
oponha à idealização da racionalidade de Kant, sua lista de capacidades inclui uma
visão individual e sofisticada da capacidade da razão prática - "ser capaz de formar uma
concepção do bem e refletir criticamente nos planos de vida" - da capacidade de
"sentidos, imaginação e pensamento" - "poder usar os sentidos da imaginação,
pensamento e raciocínio" e fazê-lo "de maneira autenticamente humana", de maneira
informada e cultivada "através de um educação adequada "que inclui, mas não se limita
a alfabetização e formação matemática e científica básica (p. 90-93). Deste modo, as
concepções de dignidade e de autonomia perfeccionista que ela pretende rejeitar
retornam "pela porta dos fundos à sua teoria".

Por fim, Nussbaum permitiria, diz Cuenca, uma infração forte da autonomia de pessoas
com deficiências “mentais”. Para a autora, obrigar os cidadãos a realizar suas
funcionalidades seria antiliberal e ditatorial (p. 210-211). No entanto, permite-se a
obrigação da realização das funcionalidades no caso de pessoas com "deficiências
mentais". Admite que "em muitos casos" e em "muitas áreas", já que pessoas com as
deficiências mentais "não podem tomar decisões sobre seus cuidados médicos, consentir
em relações sexuais ou avaliar os riscos de um trabalho ou ocupação em particular", o
objetivo "será o funcionamento adequado, e não a capacidade" O perigoso e arriscado
"movimento de capacidades para as funcionalidades " significa não levar em
consideração a vontade e as preferências das pessoas com deficiência e impedi-las de
buscar suas próprias concepções do bem. Na teoria de Nussbaum, as pessoas com
deficiência devem ser levadas ao limiar das capacidades ditadas pela norma da espécie,
7
Afirma manter uma noção aristotélica e não-kantiana da idéia de racionalidade que não é uma noção
idealizada e que não é oposta à animalidade (p. 196-197).
por isso não há espaço para algumas pessoas com deficiência expressarem uma
concepção do bem. A vida das pessoas com deficiência intelectual é algo "objetivo" e
estabelecido sem elas.

Similarmente, Barbosa-Fohrmann entende que a inclusão do discurso de Nussbaum


“abrange as pessoas com múltiplas formas de deficiências graves, mas não as extremas
ou profundas que impeçam a pessoa de estabelecer qualquer vínculo com o meio
familiar e social” (2017, p. 751).

- Crítica de Michael Stein: Stein aponta que o enfoque das capacidades não é suficiente
para empoderar as pessoas com deficiência no que diz respeito a seu direito de estar no
mundo. Para o autor, o esquema de Nussbaum falha ao reconhecer a dignidade plena
como predicado apenas daqueles cujos funcionamentos ocorrem acima do considerado
mínimo (2007, p. 101-102). Neste sentido, a consideração das capacidades centrais
como elementos estritamente determinantes de uma vida com dignidade pode conduzir
a qualificação como menos dignos dos sujeitos que não as possuem.

- Crítica de Anita Silvers e Leslie P. Francis: Silvers e Francis afirmam que fixar
parâmetros mínimos de capacidade pode conduzir a opressões, derivadas,
primeiramente, da identificação dos que jamais atingiram estes padrões, os anormais,
que poderão vir a ser estigmatizados, e, segundamente, da noção de retribuição aos
recursos alocados para a aquisição do grau mínimo de capacidades, que eventualmente
gera a assimilação de pessoas que não podem ser assimiladas ou para quem a
assimilação é extremamente dolorosa (2005, p. 54-55). Nussbaum entende que o não
alcance das capacidades centrais por parte de um sujeito é um evento extremamente
lastimável, uma vez que, quando alguém não as alcança, essa é uma ocorrência infeliz.
As capacidades constantes em sua lista são realmente importantes e boas. Não ter
aptidão para atingi-las é uma tragédia. Nesse sentido, Nussbaum chega a afirmar que
aqueles indivíduos que não têm uma "expectativa razoável" de alcançar um
desenvolvimento "normal" de qualquer uma das capacidades da lista sofrem "uma
infelicidade terrível" e que sua vida é "infeliz" (p. 236-237). Em relação à abordagem de
Nussbaum, Silvers e Francis apontam que, talvez, em vez de "trabalhar incansavelmente
para levar cada um ao nível mínimo de funcionamento esperado para os cidadãos em
uma sociedade justa", o ideal seria trabalhar incansavelmente para “leve cada um ao
leque de espaços de capacidades que constituem sua concepção personalizada do bem”
(2010, p. 246).
Síntese da obra e crítica

Nussbaum aponta que o enfoque das capacidades é o adequado para tratar a questão da
deficiência dentro da justiça, sendo esta abordagem apta a exigir que os governos
respeitem e implementem garantias humanas centrais, identificadas em uma lista de
capacidades. Para a autora, estas capacidades estão no núcleo do conceito de vida
humana digna, existindo um nível mínimo para cada capacidade, abaixo do qual
considera como inexistentes as condições de possibilidade para um funcionamento
verdadeiramente humano. Parte-se desta ideia para estabelecer uma lista de dez
capacidades vitais como exigências centrais para uma vida digna, estabelecendo um rol
de requisitos mínimos de garantias para a consecução destas capacidades, sem o
adimplemento dos quais uma sociedade não pode ser considerada completamente justa.
Tais capacidades são: vida; saúde física; integridade física; sentidos, imaginação e
pensamento; emoções; razão prática; afiliação; outras espécies; lazer; controle sobre o
próprio ambiente.

Qual o objetivo real de Nussbaum?

A meu ver, objetivo principal de Martha Nussbaum, neste livro, é fornecer uma
fundamentação ética para uma política internacional de desenvolvimento, embora se
negue a reconhecer referida meta. De fato, a autora compreende que o procedimento e a
lista envolvidas no enfoque de capacidades podem “concitar a um acordo amplo,
intercultural, similar aos acordos internacionais relativos aos direitos humanos básicos
que têm sido alcançados” (p. 94). Contudo, mais a frente, afirma que o enfoque das
capacidades “não é uma doutrina política sobre os direitos básicos, nem uma doutrina
moral abrangente”. O ponto central da obra é que sua lista de capacidades seja, na
realidade, considerada pelas ordens nacionais e, concomitantemente, internacionais,
como dentro de um referencial básico de direitos humanos, embora insista que se trata,
mais profundamente, de entender o que é o humano e quais as condições cujo
suprimento garante sua caracterização moral.

Direito à Educação Inclusiva: os lugares do normal capaz contra o anormal incapaz

Tais aspectos da teoria de Nussbaum determinam o tratamento das políticas de


educação, por exemplo, a partir do enfoque de capacidades. Apesar de assegurar que, no
âmbito da educação de pessoas com deficiência, o respeito a individualidade deve estar
acima de tudo, seu enfoque demanda que a efetivação do direito à educação se estruture
em direção às capacidades pré-determinadas em sua lista. Por isto, aponta a autora que,
caso haja, comprovadamente, mais benefícios para uma pessoa com deficiência na
educação especializada, deverá o estado endossar tal segregação. Citados benefícios
apresentam-se, primeiramente, quando a segregação causar um desenvolvimento
cognitivo maior que a inclusão e, em segundo lugar, quando o comportamento de
crianças com determinadas deficiência possa conduzir à estigmatização e ao ostracismo
(p. 236-238).

Acredito aqui que a efetivação do direito à educação não tem por meta o aprimoramento
de capacidades específicas. Não se quer dizer, com isto, que a educação inclusiva não
gere o desenvolvimento cognitivo; contudo, considerar este objetivo como meta direta
da efetivação da educação consiste em menoscabar a prerrogativa educacional daqueles
que apenas a atingirão limitadamente. Ademais, ao que tudo indica, as duas situações
analisadas por Nusbaum como justificadoras da segregação parecem consagrar não o
viés da inclusão, enquanto um paradigma que demanda a reestruturação da instituição
de ensino para melhor atender às demandas de todos – dos com e sem deficiência.
Nussbaum considera um ambiente em que as opções paradigmáticas são a segregação e
a integração, porquanto o estudante com deficiência tenha que normalizar-se,
angariando as mesmas habilidades cognitivas que os demais, ou segregar-se, em virtude
de seu patente estado de anormalidade.

Por fim, veja-se que, uma vez considerada enquanto base da efetivação do direito à
educação inclusiva uma perspectiva de igualdade advinda do percebido em Rawls ou
Nussbaum, a desigualdade de efetivação dos potenciais educacionais entre pessoas com
deficiência e pessoas sem deficiência, pode ser vista, respectivamente, como um fruto
da condição individual e do malogro dos funcionamentos e capacidades básicas. Estes
dois entendimentos partem de uma concepção bastante clara de valorização da
normalização, enquanto processo de viabilização da posse ou do desenvolvimento de
capacidades específicas atinentes ao projeto capacitista, que coloca a dependência e os
estados não-autônomos enquanto fatores a serem superados.

Enfoque materialista de Nussbaum que esquece os apoios, os suportes e as redes

Outro ponto importante, com o qual tenho fortes divergências com Nussbaum, é o
esquecimento proposital dos apoios e suportes na expressão das capacidades 8 –
8
No capítulo 3 do livro, a seção VI foi traduzida corretamente para o português como “o cuidado e a lista
das capacidades” (no original: care and the capabilities list). No espanhol, traduziu-se “cuidado” como
conceitos profundamente enraizados no texto da Convenção Internacional sobre
Direitos das Pessoas com Deficiência. Ilustro esta divergência em uma assertiva
acentuadamente estereotipada de Nussbaum, que parece olvidar às noções de medidas
de apoio individualizadas e de fornecimento de apoios necessários: “Crianças com
síndrome de Down são normalmente dóceis e fáceis de conviver. Em contrapartida, a
síndrome de Asperger de Arthur, combinada com tiques nervosos da síndrome de
Tourette, incomoda as outras crianças, mesmo quando são encorajadas a serem
compreensivas” (p. 253-254).

Obliterar o papel dos apoios e suportes significa tirar de cena os contextos de realização
das capacidades humanas, compreendendo como externo ao próprio conceito dessas.
Em uma visão aristotélica de florescimento em uma comunidade política, é preciso
considerar a intersubjetividade inerente à convivência, que forma redes de apoios e
interligações dentro das quais o ser humano se realiza. Pensar o ser humano deslocado
destas redes, como realizador de uma capacidade, digamos, para o amor 9, é esquecer
que, neste funcionamento, alguém é amado e alguém ama ou não ama de volta. Na
reciprocidade desse amor, tece-se um laço, uma ligação, que determina a humanidade
em mim, mas que depende de algo externo a mim, como amante: o suporte
intersubjetivo em uma correspondência no amado. As emoções entre dois membros ou
mais de uma comunidade demandam vias não-unilaterais, mas politerais e sobrepostas,
apoiadas, umas nas outras, para sua funcionalidade concreta.

Por fim, não fica claro, para mim, qual a visão de Nussbaum na discussão sobre a
qualificação da pessoa com deficiência cognitiva ou intelectual enquanto dotada do

“assistência”, abrindo espaço para a crítica latino-americana não estivesse tão atenta à inserção dos apoios
e dos suportes – mesmo que interpretado que Nussbaum o teria feito em menos de quatro páginas, nesta
seção. Cuidado, relativo, em resumo, à considerar eticamente a dependência do outro para a determinação
do seu tratamento para com ela, não se confunde, conceitual ou praticamente, com o conceito de
“assistência”, que se relaciona a ajudar o outro a ser o melhor que pode ser (em conexão com os termos
“apoio” e “suporte”).
9
A capacidade para amar é incluída na capacidade humana para emoções. Diz Nussbaum: “Ser capaz de
manter relações afetivas com coisas e pessoas fora de nós mesmos; amar aqueles que amam e se
preocupam conosco, sofrer na sua ausência; em geral, ser capaz de amar, de sentir pesar, sentir saudade,
gratidão e raiva justificada. Não ter o desenvolvimento emocional afetado pelo medo e pela ansiedade.
(Apoiar essa capacidade significa apoiar formas de associação humana que podem ser mostradas como
cruciais em seu desenvolvimento) (p.92). Em obra recente, Nussbaum destaca que a capacidade para amar
é integrativa do próprio conceito de cidadão: “It seems clear that in the citizen case too, the citizen who
really feels love of others is very diff erent from the merely law- abiding dutiful citizen, in ways that
make a diff erence to our analysis. Loving citizens are likely to be much more resourceful in action, but
even if this is not the case— even if somehow or other the dutiful citizen were to do all the same things—
we still should admire and prefer the citizen whose imagination and emotions are alive to the situation of
the nation, and of its other citizens” (2013, p. 395).
status de sujeito de direitos ou como membro de uma comunidade pautada por Justiça.
De que forma podemos pensar que esta teoria inclui, de fato, seres humanos que, na
visão de Nussbaum, não têm possibilidade alguma de desenvolvimento dessas
capacidades humanas centrais? Mais profundamente, esses sujeitos seriam ou não
seriam humanos? Se, de toda forma, não forem nem humanos nem alvos das políticas de
desenvolvimentos das capacidades, de que forma sua teoria permite que se forneça
maior bem-estar às suas vidas?

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