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APONTAMENTOS SOBRE

A ARTE DE TRADUZIR

Carlos Nougué

A Tradução, arte subordinada à Linguagem e à Gramática, tem por duplo


objeto 1) o discurso ou o texto por traduzir e 2) seu destinatário, ou seja, fazer
compreensível a este, em sua língua, o dito ou o escrito em outra língua; e tem
por fim geral contra-arrestar a própria multiplicidade das línguas. Com efeito, a
linguagem visa à comunicabilidade universal entre os homens – ou seja, a
atender à sua natureza social e política –, e a multiplicidade linguística vai a
contrapelo dessa tendência e natureza, razão por que diz Aristóteles que os que
falam línguas diferentes não convivem bem.

II

Mas a Tradução é um gênero cujas duas espécies são a Tradução Oral e a


Tradução Escrita. Esta, por sua vez, também é gênero, cujas espécies são
Tradução Stricto Sensu e Tradução Literária. Ademais, muitos filósofos,
teólogos, historiadores... se valem de recursos literários como arte aplicada, com
o que o que os traduz tem de valer-se de recursos tradutórios hauridos da
Tradução Literária. Por outro lado, todo tradutor multilíngue sabe que uma
coisa é traduzir do espanhol ao português, outra do francês ao português, outra
do latim ao português... Imagine-se, então, o que implica traduzir do chinês ao
português.
Impõem-se porém quanto a isto duas questões. Em primeiro lugar, o que
precisamente nos fez chegar à oposição das diferenças específicas Stricto Sensu
e Literária. E, em segundo lugar, de que necessita o tradutor para ser tradutor
literário.

1
III

A Tradução Stricto Sensu SIMPLESMENTE VERTE1 a determinada língua o


escrito em outra língua.2 Mas a Tradução Literária, se igualmente verte a
determinada língua o escrito em outra língua, NÃO O FAZ SIMPLESMENTE, senão
que só o faz enquanto ambas as línguas são mera matéria para outra arte: a
Poética. Com efeito, como se diz na Suma Gramatical da Língua Portuguesa ao
tratar da pontuação, “há que repetir: à Poética, o poético. E repetimo-lo até
porque, ainda que lido, qualquer conjunto de versos entre dois sinais de
pontuação final tem entoação ditada não principalmente pela expressão de
ideias ou de sentimentos, mas por sua mesma forma poética (no caso d’Os
Lusíadas, epopeia vazada em versos decassílabos heroicos, ou seja, aqueles em
que o acento tônico recai na sexta e na décima sílaba). O exemplo d’Os Lusíadas
pode dizer-se frase, sim, mas apenas analogicamente, porque a frase
propriamente dita, com seu sinal de pontuação final, é signo de algo dito com
certa entoação linguística, ao passo que a frase camoniana é signo de algo dito,
antes de tudo, insista-se, com certa entoação poética”. O que aqui se quer dizer
com tudo isso é que, conquanto o tradutor literário verta a dada língua outra
língua, não o faz senão para manter a forma literária que se valeu desta outra
língua como de sua matéria.3 Naturalmente, tal fim – manter a forma literária
vazada em outra língua – é perfeitamente “assimptótico”,4 e o grau de seu êxito
depende de múltiplas variáveis, como, por exemplo, a distância entre as línguas
entre as quais se fará o trânsito tradutório: com efeito, é muito mais fácil manter

1 Não há distinção semântica entre traduzir, transladar e verter.


2 Atenda-se todavia a que nem sequer a Tradução Stricto Sensu se identifica com a

experiência; se o faz, não é arte. Em outras palavras, para constituir-se em arte, é


necessário que tenha definido seu sujeito, que lhe conheça as causas e as propriedades,
e que se dote de um conjunto de normas e regras, razão por que, se alguém traduz de
modo oral ou escrito pelo simples fato de que é fluente em duas línguas, não pode
dizer-se propriamente artista. Eis, aliás, o que chamamos regra de ouro da tradução:
traduza-se palavra a palavra e na ordem original até ao ponto em que isso fira a índole
da língua para a qual se traduz; ou, no caso da Tradução Literária, até ao ponto em que
impeça a manutenção da forma poética, o que já se entenderá.
3 Não se incorra, todavia, num erro comum: a forma literária implica necessariamente

os significados com que o literato se valeu das palavras, sejam convencionais sejam
translatos.
4 Em geometria, assímptota é a reta que se aproxima indefinidamente de determinada

curva sem que, todavia, haja possibilidade de as duas virem a coincidir.

2
a forma literária quando se traduz do espanhol ao português do que quando se
traduz do japonês ao português.

IV

O tradutor literário supõe uma série de predisposições e de domínios:


capacidade para traduzir e certa capacidade literária, 5 domínio da gramática e
da literatura tanto da língua para a qual traduz como da(s) língua(s) das quais
traduz... – e radical humildade, porque a Tradução Literária não é mais que um
ofício serviçal: está a serviço da arte alheia.

5 Não necessariamente o tradutor literário há de ser, ele mesmo, escritor literário. Por
vezes, aliás, sê-lo dificulta o assumir a “personalidade” artística do escritor que se
traduz. Basta que o tradutor seja ótimo leitor literário, saiba escrever em geral e tenha
desenvolvido a capacidade de traduzir. Com efeito, a arte de traduzir é um hábito
intelectual distinto do da arte literária. Mas nada impede que um escritor literário
também tenha capacidade tradutória e, pois, capacidade para despir-se de sua
“personalidade” artística a fim de revestir-se da de outro.

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