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A FORMACAO DA EUROPA

C O L E C Ç Ã O « C R I T É R I O »

Volume 31

S É R I E D E H I S T Ó R I A
CRISTÓVÃO DAWSON

II FORfflSCAO Of EUDOPA
Tradução de
João Dias Pereira

LIVRARIA CRUZ
BRAGA (PORTUGAL) 1956
O ORIGINAL QUE SERVIU PARA ESTA TRA­
DUÇÃO É O DA 7.a EDIÇÃO INGLESA, E
TEM POR TÍTULO «TH E MAKING OF EUROPE»

Todos os direitos reservados em língua portuguesa

Ofic. Qráf. da LIVRARIA CRUZ - Braga


cPreiácio
É-me impossível reeditar este livro sem qualquer referên­
cia à trágica história dos anos decorridos desde a época em
que fo i escrito. Inútil é que eu me acolha à desumana, indife­
rença do historiador «científico» que sabe fechar-se na sua
especialidade como a tartaruga na carapaça, enquanto à
volta se esfrangalha o mundo em que vive. Pois estou con­
vencido de que a Europa acerca de cuja formação escrevi,
conserva uma continuidade orgânica com a Europa de hoje.
Ê ela a árvore de que as nações são os ramos e, quando a raiz
apodrece, árvore e ramos igualmente têm de morrer.
Desde 1932 que a Europa tem sido ameaçada com a des­
truição como nunca o fora antes através da sua história, e a
ameaça ainda está longe de se desvanecer. Assistimos nestes
doze anos ao ressurgir de uma nova barbárie mais destruidora
do que aquela a que a Europa teve que fazer frente na Idade
das Trevas (Darh A ges) porque vem armada de todos os pode­
res da ciência e invenção da moderna tecnicologia. Todas as
defesas que a Europa cristã lenta e dolorosamente construíra
num trabalho de séculos foram subitamente varridas, e pre-
lendeu-se criar uma nova ordem baseada simplesmente na
força e no terror em que tanto os direitos do homem como
os das nações são espezinhados. Não é provável que tenha sido
por acaso que esta nova barbárie se associou à heresia dum
racismo que implica a negação da unidade e da civilização
europeias. Mas não se identifica com este credo um tanto
artificial, e devemos estar preparados para encarar a possibi-
8 A FORMAÇÃO DA EUROPA

olvidado e desprezado mas que não é menos essencial para


a compreensão da nossa civilização, já que mostra com excepcio­
nal clareza os elementos comuns que estão na base das diversas
culturas nacionais de que são todas compostas. Porque fo i
nesta época que as grandes linhas com que a teia da moderna
civilização fora urdida — religião cristã, tradição da lei, cul­
tura humanista e diversas tradições nacionais — se juntaram
e as subsequentes varim tes do seu padrão foram já em muitos
casos prefiguradas ou predestinadas pelas circunstâncias da
sua origem. Todo o mundo medieval está profundamente
enraizado nesta época esquecida, precisamente como o mundo
moderno o está na Idade Média; de tal forma que, mesmo
alguns dos mais imediatos problemas europeus de fronteiras
e de nacionalidades e os conflitos de cultura ou de religião
somente podem ser compreendidos à luz do que aconteceu
durante aqueles séculos. Os modernos idealistas do progresso,
especialmente na América, são capazes de julgar isso como
parte da Crónica Negra (Bla/ek Record) da Europa, mas esque­
cem-se de que — progresso e idealismo — são eles próprios
produtos europeus que nunca teriam surgido se os nossos ante­
passados da Idade das Trevas não tivessem criado a nova forma
de cultura e a nova sociedade de Nações a que chamariam Cris­
tandade. H oje já não existe Cristandade e estamos a caminhar
para um mundo em que os povos cristãos ou os povos que
outrora foram cristãos serão uma minoria. Mas, à proporção
que a tradição cristã fo r eliminada, tenderá a desaparecer
também o carácter distintivo da civilização ocidental. Vimos
os primeiros frutos deste novo desenvolvimento durante os
últimos trinta anos e já não temos quaisquer fundamentos sóli­
dos para crer que a era post-cristã esteja apta para realizar
alguma das utopias humanitárias em que puseram a sua crença
os idealistas do século X I X . A não ser que os alicerces espiri­
tuais da nossa civilização possam ser restaurados, todo o edifí­
cio está em perigo e estamos perante a perspectiva de uma
ulterior recaída na barbárie. P or esta razão a história da
«Idade das Trevas» tem hoje para nós um significado que não
PREFÁCIO 9

tinha para Gibbon e para o público instruído do século X I X .


Para eles, era a história de um declínio e de uma queda, da
perda de todos os valores civilizados que tão altamente foram
apreciados. Mas para nós é a história da criação e do renas­
cimento, de como a barbárie pode ser enfrentada e submetida,
e de como uma civilização moribunda pode ser regenerada
pelo poder do Espírito.
9ntzocL ução
Julgo que não sou obrigado a desculpar-nte por ter escrito
um livro acerca deste período do alvorecer da Idade Média ge­
ralmente denominado «idade das trevas», porque, apesar do
progresso geral dos estudos medievais e do interesse cres­
cente que se toma pela cultura medieval, é um assunto que
continua desprezado e desconhecido. Os séculos ulteriores
— o século X I, por exemplo, ou o século X I I I — possuem
cada um o seu carácter individual bem vincado. Mas, para
a maior parte de nós, os séculos que separam a queda do Im pé­
rio Romano da conquista normanda aparecem-nos com um
perfil vago e descolorido em que o nosso espírito não pode
encontrar sentido. Somos capazes de falar por exemplo, da
Inglaterra anglo-saxónica como se se tivesse desenvolvido sem
mudanças, esquecendo-nos assim de que entre a conquista
anglo-saxónica e a época de Eduardo o Confessor, decorreu
tanto tempo como entre esta e a de Cromwell e Muzarino ou
como entre a nossa e a de Eduardo I I I <e Chaucer. Na reali­
dade o período do alvorecer da Idade Média fo i testemunha
de mudanças tão importantes como qualquer outro na história
da civilização europeia. Como o sugere o título que dei ao livro,
esta idade fo i de todas a mais criadora pois que se lhe não
deve tal ou tal manifestação da cultura mas a própria cultura,
a raiz e a base de todo o consequente progresso. A dificuldade
que temos em compreender e julgar este período deve-se em
parte à natureza criadora da sua actividaãe, espécie de pro-
12 A FORMAÇÃO DA EUROPA

cesso orgânico interno, cuja força não é exteriorm ente tradu­


zida por qualquer obra notável: falta-lhe o que marca o
atractivo superficial das épocas de civilização generalizada
e brilhante como o Renascimento ou o Século de Augusto.
Mas não são os períodos «fáceis» da história os mais
dignos de estudo. Um dos maiores méritos da história está
em nos fazer sair de nós próprios, em nos afastar das verdades
acabadas e em nos descobrir uma realidade que, sem ela, p er­
maneceria para sempre de nós desconhecida. Muito temos
a ganhar com nos enfronharmos no estudo dum período total­
mente diferente do que conhecemos, dum mundo diferente, mas
não menos real e até ainda mais real: porque o que chamamos
o « mundo moderno» não é mais que o mundo duma geração,
ao passo que uma civilização como a do mundo bizantino ou do
mundo carolíngio durou séculos.
A história deveria ser o grande correctivo deste « bair­
rismo no tempo» que Bertrand Russell justamente considera
um dos mais graves defeitos da nossa sociedade moderna. In fe-
lizmente escreveu-se muitíssimas vezes a história com um
espírito completamente diferente. Os historiadores modernos,
particularmente os ingleses, têm frequentem ente tendência
para se servir do presente como dum padrão absoluto que p er­
mite julgar o passado e para considerarem toda a história
como uma evolução inevitável cuja fase última seria o actual
estado de coisas. O caso dum escritor como H . G. Wells jus­
tifica, numa certa medida esta interpretação. O seu fim é com
efeito fornecer ao homem moderno um plano de fundo histórico
e ter com que form ar uma concepção do mundo. Mas, até
mesmo no que nisto há de perfeição, esta maneira de escrever
a história é fundamentalmente anti-histórica pois que implica
a subordinação do passado ao presente e em vez de libertar
o espirito do provincianismo alargando o seu horizonte inte­
lectual, é antes propícia a fazer nascer o farisaísmo dos histo-
INTRODUÇÃO 13

riaãores W higs ou, o que é pior, o narcisismo do filisteu mo­


derno (*).
Há de certo um perigo oposto que consiste em servirmo-
-nos da história como duma arma contra a época moderna,
quer em consequência duma idealização romântica do passado,
quer em proveito duma propaganda religiosa ou patriótica.
0 segundo caso ê sem dúvida o mais terrível dos dois porque
o historiador romântico ao menos trata a história como um
fim em si; e de facto foram os historiadores românticos os
primeiros que estudaram a civilização medieval em si mesma
e já não como um meio para atingir algum fim. 0 historiador
propagandista, pelo contrário, inspira-se de motivos duma
ordem não histórica e tem a tendência inconsciente de fal­
sificá-la por um desígnio apologético. Ê um risco a que estão
particular mente expostos os historiadores católicos da Idade
Média depois que o renascimento romântico exaltou «os séculos
de fé » e apresentou a civilização deste período como a expressão
social do ideal católico. Não era assim outrora, e historiadores
católicos tais como Wleury mostraram por vezes tendência
para errar na direcção inversa ao adoptarem os preconceitos
correntes do período consecutivo ao Renascimento acerca do
barbarismo e ignorância «góticas» da «Idade das Trevas»■—
ao passo que no último século e inícios do presente, os historia­
dores católicos se mostram certamente inclinados a fazer da
história um ramo da apologética e a idealizar a cultura medie­
val para exaltar o seu ideal religioso.
Na realidade esta maneira de escrever a história trai
a sua finalidade, pois que, logo que o leitor desconfia da im­
parcialidade do historiador, põe em dúvida a verdade de tudo
o que lê.

(*) H á um defeito ainda p ior: o des escritores modernos


que, parece considerarem o passaido como uma espécie de pátio po­
voado de estranhos bichar ocos cujas bizarrias são mostradas ao
público pelo em presário-biágrafo a troco de gírossa quantia.
14 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Ê-nos impossível todavia compreender a cultura medieval


sem experimentarmos simpatia e estima pela religião medieval;
e é nisto que o historiador católico possui uma vantag&m evi­
dente. Aos olhos cio historiador laico, os alvores da Idade
Média •afigurar-se-ão sempre inevitavelmente como uma «Idade
das Trevas», uma idade bárbara, sem cultura nem literatura
profanas, absorvendo-se em disputas ininteligíveis, remexendo
dogmas já incompreensíveis, ou em guerras selvagens, des­
providas de qualquer justificação, de ordem económica ou
política. Aos olhos do católico, pelo contrário, em vez de idade
das trevas, 6 ela a idade do alvorecer porque viu a conversão
do Ocidente, a fundação da civilização cristã, o nascimento
cia arte cristã e da liturgia católica. É antes de mais nada
a idade dos monges, uma idade que começa com os Padres
do Deserto e termina com os grandes movimentos de reforma
monástica que os nomes de Cluny no Ocidente e do monte Athos
no Oriente recordam. São monjes as maiores figuras do tem po:
S. Bento e S. Gregário, os dois Columbanos, Beda e Bonifácio,
Alcuíno, Rábano Mauro, Dunstan, e, sob o ponto de vista da
civilização, é aos monges que se devem os grandes resultados
então obtidos quer seja a salvação da cultura antiga, quer
a conversão de novos povos, quer ainda a fundação de novos
focos de civilização na Irlanda, em Nortúmbria ou no império
carolíngio.
É dificílimo a quem não for católico captar o sentido
pleno desta grande tradição. Têm-se contudo encontrado alguns
eruditos, como por exemplo o falecido Heinrich Gerzer i 1),
que foram levados, pelo interesse que tomavam pelos estudos
bizantinos ou medievais, a uma representação intuitiva do
ideal monástico. Mas tais homens são raros. Para o comum
dos historiadores laicos, o monaquismo continua a ser um

O V . o seu Pro Monaehis, in Ausgewãhlte kleine Schriften,


e o prefácio de seu filho a este volume.
INTRODUÇÃO 15

fenómeno tão estranho e incompreensível como o lamaísmo


do Tibete ou o clero sacerdotal dos [antigos Sumários; ao passo
que a instituição monástica faz sempre parte integrante do
mundo espiritual em que vive o católico. A Regra Beneditina
governa ainda hoje a vida dos homens como no tempo de Beda;
ainda há homens que celebram o mesmo ofício divino e se
submetem ao mesmo ideal de disciplina e de contemplação.
A tradição monástica forma assim uma cadeia viva graças
à qual o espírito pode remontar até esta estranha sociedade
pre-diluviana do século V I sem perder inteiramente o contacto
com o mundo da experiência actual.
E, contudo, isto é duma importância mínima em compa­
ração com a inteligência da fé que foi a última inspirador a
espiritual desta época, de form a nenhuma somente por causa
das suas práticas, muito menos ainda porque os homens de
então dessem provas nas suas relações sociais e económicas
de mais moralidade, mais humanidade ou justiça do ique os
homens d,e hoje, mas antes porque, nenhuma confiança depo­
sitando em si mesmos ou nas possibilidades do esforço humano,
punham toda a sua confiança em alguma coisa que ultrapassa
a civilização e não é do domínio da história. Sem dúvida que
esta atitude lembra em muito a das sociedades religiosas orien­
tais; mas difere essencialmente delas pelo facto de, em vez de
conduzir ao quietismo ou ao fatalismo no que se refere ao
mundo exterior, ter antes suscitado uma intensificação de acti-
vidade social. A Europa fo i fundada no temor, na fraqueza
e no sofrimento, num so<frimento que nos é quase impossí­
vel conceber hoje, mesmo depois dos desastres dos últimos
18 anos f 1). E contudo os sentimentos de desespero, de impo­
tência infinita e de abandono que os desastres da época susci­
taram não eram incompatíveis com um espírito de coragem
e de sacrifício que impelia os homens a desenvolver esforços
heróicos e uma actividade sobre-humana.

(l) A 1.* ©dição deste livro é de 1932.


16 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Era este o espírito dos grandes homens que foram os


criadores da nova idade: dum 8. Agostinho que viu quão
fútil e vão é prestar culto a uma potência humana; dum
8. Bento que, em meio dos desastres, das guerras góticas, fu n ­
dou um asilo de paz e de ordem espiritual; dum S. Gregário
que carregou sobre os seus ombros os cuidados do mundo
inteiro enquanto a civilização caía em ruínas à sua volta;
dum 8. Bonifácio que, apesar de ele próprio se encontrar tão
profundamente descoroçoado e desenganado, consagrou a sua
vida ao acrescentamento do povo cristão.
Dieta hominis non desideravi tal é a convicção essen­
cial desta época, convicção que é difícil ao homem moderno
apreciar quando considera toda a história sub spetàe huma-
nitaítis, e contempla o «dia do homem» como o único fim que
possa propor-se aos esforços dum indivíduo razoável. Mas,
encarando as coisas por este prisma, os maiores e mais dura­
doiros resultados atingidos nos primeiros séculos da Idade
Média tornam-se-nos tão ininteligíveis como um mosteiro bu­
dista o podia ser para um homem de negócios da época vito­
riana. Uma barreira espiritual nos separa do passado da E u­
ropa, que estamos reduzidos a estudar do exterior com a curio­
sidade fria do arqueólogo que exuma os restos duma civiliza­
ção morta.
Consequentemente o leitor não religioso que notar que
se consagrou neste livro lugar demasiado ou demasiada impor­
tância às questões teológicas ou eclesiásticas deve lembrar-se
que não se pode compreender o passado senão sob condição de
compreender as coisas que os homens do passado tomavam a
peito. O simples facto de estas coisas continuarem a interessar
os teólogos ê de molde a delas desviar os historiadores que dão,
consequentemente, a movimentos secundários relacionados com
as nossas preocupações modernas, maior importância do que
a que consagram às questões que foram vitais para os homens
do passado, às questões que dominavam não só a sua vida inte­
rior mas também as suas instituições sociais e as suas activi-
dàdes práticas. Se demasiadamente me alonguei sobre estas
INTRODUÇÃO 17

matérias, não foi na intenção de provar um ponto de teologia


ou justificar uma atitude religiosa, mas simplesmente com a
intenção de ■explicar o passado. Não se trata duma história
da Igreja ou duma história do Cristianismo: trata-se duma
história da civilização, precisamente duma civilização que é
avoenga da nossa. O mundo da alta Idade Média é o mundo
dos nossos próximos antepassados, o mundo donde saímos e
donde descendem as nações de hoje. Muitos até de entre nós
têm nas veias o sangue dos construtores do mundo medie­
val (*).
Os sábios modernos insistem com razão na maneira como
a existência do homem moderno está condicionada pela herança
do seu passado pré-histórico. Mas o que é verdadeiro dos nossos
longínquos antepassados neolíticos é-o ainda muito mais dos
nossos predecessores imediatos cuja influência continua a mo­
delar directamente as nossas vicias e que nos deram a própria
língua que falamos e os nomes dos lugares que habitamos. P or­
que foi no seu tempo que a secular tradição pré-histórica da
nossa raça emergiu à plena luz da história e teve consciência
de si própria ao seu primeiro contacto com uma civilização
superior. S<em esta evolução criadora nada de semelhante à
civilização europeia teria existido porque esta civilização não
é um conceito abstracto semelhante à « civilização» dos filósofos
do século X V I I I : é um organismo social concreto, tão real e
muito mais importante que as unidades nacionais de que tanto
falamos.
O facto de esta verdade não ser geralmente admitida
deve-se antes de mais nada ao facto de ordinariamente se ter
escrito a história moderna do ponto de vista nacionalista.
Alguns dos maiores historiadores do século X I X eram ao
mesmo tempo apóstolos do nacionalismo e as suas histórias
—■■ <
Cf Um .rálpido olfhar sobre qualquer dos livros de linhagens
reais m ostrará que uma grande pa'rte da classe média inglesa node
pretender descender directamente não somente de Eduardo II ou
de Henrique I I , mas ainda de Carlos M agno, de S. Vladim iro, de
Boleslau da Polónia ou dos chefes dos V ik in gs!
2
18 A FORMAÇÃO DA EUROPA

são muitas vezes manuais de propaganda nacionalista. Esta


tendência ê bem manifesta nos historiadores filosóficos que
consideravam a idealização hegeliana do Estado como a su­
prema expressão da ideia universal; lembremos escritores tais
como Treitschhe e Froude que foram os representantes dum
nacionalismo puramente político. No decorrer do século X I X
estava a consciência popular impregnada por esta ideia e fo i
dela que nasceu a concepção que o homem médio forma da
história. Esta concepção passou da Universidade à escola pri­
mária e do pensador ao jornalista e ao romancista. Daí resulta
que a cada nação se atribua uma unidade e uma independência
de cultura que está longe de possuir, e que cada uma considere
a sua parcela de tradição europeia como obra própria sua e
original que nada deve às outras sem ter em conta o solo co­
mum onde a sua tradição individual criou raízes. E este erro
não é monopólio dos escritores: minou e viciou toda a vida
internacional da Europa moderna; encontrou a sua revindicta
na guerra europeia, que provocou na vida da Europa um
cisma muito mais profundo do que todas as muitas guerras
passadas e presentem ente as suas consequências nas loucas
rivalidades nacionais que ameaçam arruinar a economia de
toda a Europa.
Não nos faltam hoje pensadores que compreendem os
perigos deste estado de coisas; mas, salvo raras excepções,
mostram-se, tal qual como os seus contraditores, esquecidos
da tradição europeia. Põem a sua fé num internacionalismo
abstracto, sem fundamento histórico, e provocam desta forma
uma nova explosão do sentimento nacionalista que ultrapassa,
sob muitos aspectos, tudo o que o século X I X contemplou.
O mal do nacionalismo não reside nem, na sua fidelidade
às tradições do passado, nem na reivindicação da unidade
nacional e do direito de os povos disporem de si mesmos, mas
antes no facto de identificar esta unidade com a unidade de
cultura, a qual ultrapassa as nações.
Os verdadeiros fundamentos da nossa cultura são, não
o Estado nacional, mas a unidade europeia. Ê certo que até
INTRODUÇÃO 19

ao presente esta unidade não revestiu forma política e que


talvez assim seja sempre. Mas, sob esta reserva, longe de ser
uma simples dbstracção, constitui uma realidade social, e as
diferentes culturas nacionais, se atingiram o seu actual nível,
foi somente porque comungaram nesta realidade.
No decurso dos séculos X V I I I e X I X , quando o pres­
tígio da civilização europeia era de tal ordem que parecia não
ter rivais e que se identificava à civilização em geral, fácil era,
sem dúvida, perder de vista esta unidade; mas não acontece
o mesmo hoje, que se contesta de todos os lados a hegemonia
da Europa; que se torna impossível considerar já a Rússia
e a América como colónias da cultura europeia pois começam
a rivalizar com a Europa em população e em riquezas e n
desenvolver civilizações que lhes são próprias; que finalmente
os povos do Oriente fazem valer novamente os direitos da
civilização oriental e que nós próprios somos os primeiros a
perder a confiança na superioridade das nossas tradições.
Ninguém, por desgraça, se encarrega de advogar a
causa da Europa. Cada nação, pelo facto de existir, cria para
si um conjunto de interesses aos quais está ligado o cuidado
da sua defesa; a causa do intemacionalismo tem também os
seus campiões nas forças do liberalismo, do socialismo e da
finança internacional; até as civilizações orientais tomaram
consciência de si mesmas, pedindo de empréstimo ao nacio­
nalismo ocidental as suas formas e desenvolvendo, por sua
vez, segundo o modelo da propaganda ocidental, uma propa­
ganda nacionalista; mas ainda ninguém pensou em considerar
a Europa uma nação. Besta forma a causa da Europa está
antecipadamente perdida por defeito.
Se, não obstante, a nossa civilização deve sobreviver, ê
essencial que adquira uma consciência europeia comum e o
sentido da sua unidade histórica e orgânica. Não há perigo
de, por esta forma, se prejudicar a paz internacional ou de
se aumentar a hostilidade entre a Europa e as sociedades não
europeias. O oriental que não nos vê com bons olhos por causa
da nossa arrogante pretensão de afirmarmos que a nossa civi-
20 A FORMAÇÃO DA EUROPA

lização é a única a valer, olhará esta sem dúvida com muito


maior simpatia quando notar o todo espiritual que ela forma,
enquanto que, como presentemente, nela não vê mais que um
incompreensível poder material preocupado em lhe fiscalizar
a vida. Se uma verdadeira civilização mundial puder alguma
vez ser criada, não o será com a ignorância da existência das
grandes tradições históricas, mas bem melhor com o desen­
volvimento da compreensão mútua.
Somente, antes que nos seja possível dar à cultura euro­
peia o lugar que lhe couber na sociedade internacional do
porvir, é necessário que nos desfaçamos das falsas representa­
ções do passado que ganharam terreno no decorrer do último
século, e que retomemos o sentido histórico da tradição euro­
peia; é necessário que voltemos a escrever a nossa história
do ponto de vista europeu e que demos, para compreender a
unidade da nossa civilização comum, tanto cuidado como o
que demos ao estudo das nossas individualidades nacionais.
Foi o que tentei fazer, de form a sumária, no presente volume.
Não perderei o meu esforço èm identificar a causa da Civili­
zação com a duma raça ou a dum povo, nem em exaltar a civi­
lização da Europa à custa das outras civilizações: a época
escolhida é uma época em que a Cultura do Ocidente se revela
evidentemente inferior à do seu poderoso vizinho, o Oriente, e
em que ela está longe de nos deslumbrar pelo seu esplendor;
mas é precisamente por esta razão — porque ela ê frouxa,
rudimentar e o seu domínio é então restrito — que me parece
conseguir-se mais comodamente representá-la como um todo
e discernir os diferentes elementos que contribuiram para a
sua formação.
Vai uma grande distância, sem dÁvida, da barbárie do
século V I I I à maquinaria aperfeiçoada do século X X ; mas não
nos esqueçamos de que, no que respeita às formas exteriores
da nossa vida, nós estamos mais afastados do mundo que os
nossos bisavós conheceram, do que eles próprios o estavam
do mundo de Carlos Magno. A vida social do nosso tem po,
pondo de parte a utensilagem técnica, prende as suas raízes
INTRODUÇÃO 21

a um passado longínquo e há uma relação estreita de paren­


tesco entre a sociedade europeia de hoje e a do mundo medieval
nos seus alvores. São duas fases duma mesma evolução que>
sem ser a resultante de cegas forças materiais e económicas,
nem por isso deixa de supor um desenvolvimento orgânico que
primeiramente se deve estudar no seu conjunto se se quiser
chegar a compreender-lhe as partes.
PRIMEIRA PARTE

OS FUNDAMENTOS
c a p ít u l o p r im e ir o

O IMPÉRIO ROMANO

ST AM OS tão habituados a encarar o mundo e a sua his-


tória em função da ideia de Europa, que dificilmente
chegamos a. ter consciência das noções que esta ideia implica.
Diferentemente da Austrália e da África, a Euriopa não tem
unidade natural; é o resultado duma loinga f oirmação histórica
e duma longa evolução espiritual. iSob o ponto de vista pura-
mente geográfico, não é mais que um prolongamento do no­
roeste da Ásia, e a sua unidade física é menor que a da índia,
da China ou da Sibéria; sob o ponto de vista antropológico,
apresenta uma mistura confusa de raças, e o tipo europeu é
mais o produto dum conjunto de condições sociais do que o
duma unidade racial. A inda mesmo quanto à cultura, a uni­
dade da Europa não é o fundamento e o ponto de partida da
história da Europa; mas o fim último ainda não atingido, para
o qual tende há mais de um milhar de anos.
Nos tempos p té-históricos não havia na Europa unidade
de civilização. A Europa era a encruzilhada de um certo nú­
mero de correntes diversas, derivadas, na maior parte, das
civilizações superiores do antigo Oriente e transmitidas ao
Ocidente pelo comércio, pela colonização ou por uma longa
série de relações. F oi assim que o Mediterrâneo, o Danúbio,
o Atlântico e o Báltico se tornaram as artérias mestras duma
expansão civilizadora e cada um delles veio a sier o ponto de
26 A FORMAÇAO DA EUROPA

partida de um progresso autónomo que por sua vez, deu lugar


ao nascimento dum certo número de civilizações locais.
Mas a criação duma civilização verdadeiramente europeia
não foi tanto o efeito do paralelismo e da convergência destas
correntes civilizadoras separadas como da formação dum único
foco de cultura superior que pouco a pouco dominou e absor­
veu os diversos desenvolvimentos locais. O ponto de partida
desta evolução deve ir buscar-se ao mar Egeu, onde depois do
III milénio antes de Cristo, surgiu um foco de civilização mais
comparável aos dos países mais adiantados da Ásia oriental do
que às civilizações bárbaras do Ocidente; e foi sObre estas
antigas bases que se levantou a civilização clássica da Grécia
antiga, verdadeira origem da tradição europeia.
Dos gregos provêm todos os caracteres verdadeiramente
distintivos da cultura ocidental oposta à oriental — a nossa
ciência e a nossa filosofia, a nossa literatura e a nossa arte,
as nossas concepções políticas, os nossos princípios jurídicos,
as nossas ideias em matéria de liberdade política. É à Grécia
também que se deve o ter-se pela primeira vez consciência
nítida da diferença entre os ideais europeu e asiático e da
autonomia da civilização ocidental. O ideal europeu de liber­
dade data das guerras médicas; dessas jornadas decisivas em
que as embarcações da Grécia e da Ásia sie encontraram no
Golfo de Saslamina e em que, após a batalha de Plaiteas, os
gregos vitoriosos levantaram um altar a Zeus, Dispensador
da Liberdade.
Sem o helenismo seria impossível conceber a civilização
europeia e até a noção europeia do homem. E, contudo, a
civilização grega estava longe de ser europeia no sentido geo­
gráfico da palavra. Estava confinada ao Mediterrâneo oriental
e, num tempo em que a Ásia Menor interferia no seu desenvol­
vimento desde o princípio, a Europa Continental e até certas
regiões da Grécia continental permaneciam fora da sua zona de
influência. De um extremo ao outro da sua história conservou
ela este carácter misto-, porque, posto que se tenha estendido
para Oeste até à Sicília e à Itália meridional, expandiu-se
0 IMPÉRIO ROMANO 27

principalmeinte pana Lesite, na Ásia. O helenismo principia na


Jónia e termina em Alexandria, Antioquia e Bizâncio.
A difusão no Ocidente das tradições desta civilização
superior foi obra..de Roma, cuja missão consistiu em. servir
de intermediário entre o mundo helenístico civilizado do Me­
diterrâneo orientai e os povos bárbaros da Europa ocidental.
Precisamente na época em que Alexandre e os seu® generais
levavam a cabo a conquista do Oriente e pior ele disseminavam
do Nilo ao Oxus, os gérmenes da cultura helenística, edificava
Roma, lentamente, penosamente, na Itália central, o seu com­
pacto Estado, de carácter ao mesmo tempo rural e militar.
A mesma geração viu, dos anjos 340 a 300 antes de Cristo, d
nascimento de dois novos organismos sociais: a monarquia
helenística e a confederação italiana, Inteiramente diferente
um do outro em espírito e em organização1, estavam não obs­
tante destinados a sentir-se atraídos um para o outro e afesor-
ver-se finalmente um no outro para formar uma unidade
comum.
O resultado deste processo foi sem dúvida uma vitória
alcançada pela espada romana e pelo seu génio de organização;
mas social e intelectualmente, foi uma conquista grega. A época
que assistiu à romanização do Oriente helenístico assistiu tam­
bém à helenização do Ocidente romano, e da convergência dos
dois movimentos nasceu uma civilização cosmopolita, unificada
pela organização política e militar de Roma, mas fundada nas
tradições da cultura helénica e inspiralda pelo ideal social
dos gregos.
Mas esta civilização cosmopolita não era até então urna
civilização europeia. No século I antes de Cristo, a Europa
ainda não existia; a própria Roma não passava duma potência
mCditerrânica cuja expansão, até esta data, se achava limitada
às regiões ribeirinhas do Mediterrâneo. Foi devido à iniciativa
pessoal e ao génio militar de Júlio César que a Europa Con­
tinental se incorporou na civilização do grupo meditenrânico
— exemplo notável de como o curso da história pode ser alte­
rado pela poderosa vontade de um indivíduo. Quando César
28 A FORMAÇÃO DA EUROPA

se empenhou na sua empresa gaulesa foi indubitavelmente


levado antes de mais pelo desejo de afirmar o seu ascendente
sobre o exército e de contrabalançar as conquistas do seu rival
Pompeu no Oriente. Mas seria um erro ver na sua obra o
resultado acidental e secundário das suas ambições políticas.
Como diz Mommsen, é uma das características dos homens de
génio, tais como César e Alexandre, terem o poder de conciliar
os seus interesses e as suas ambições pessoais com o cum pri­
mento dum desígnio de alcance universal, e fo i assim que Júlio
César aproveitou a situação momentânea da política parti­
dária romana para abrir um novo mundo à civilização medi-
terrâniea. «íSe há uma ponte que vai das glórias passadas da
Hélada e de Roma às construções altaneiras do mundo histó­
rico novo; se a Euroipa ocidental é românica e a Europa ger­
mânica é clássica; se os nomes de Temístocles e Cipião soam
aos nossos ouvidos de forma diferente dos de Açoka e de 'Sal­
manazar; se Homéro e 'Sófoeles florescem em o nosso jardim
poético ao passo que os Vedas e os livros de Kalidaça não inte­
ressam senão aos estudiosos da botânica literária, é a César
que o devemos. E enquanto que, no Oriente, a obra criada
pelo seu grande precursor se perdeu quase inteiramente sob
as vagas das revoluções da Idade Média, o edifício de César
venceu os séculos. A religião, os Estados mudaram entre as
raças humanas; a própria civilização transferiu para outra
parte o seu centro; ele contudo permanece .ainda de pé; se­
gundo a nossa linguagem, ele tem o dom da eternidade» 0 ) •
Esta concepção da obra de 'César e da importância da
contribuição romana para a civilização moderna tem sido
aeirradamente combatida em nossos dias. O culto moderno
do nacionalismo levou os homens a reverem a escala dos valores
históricos e a considerarem ais civilizações da Europa bárbara
com olhos muito diferentes dos dos humanistas nossos prede­
cessores. Primeiro os povos germânicos, depois os povos celtas,
foram levados a 'exultar a obra de seus antepassados — ou,

C) Moímmsen, History of Rome, Eng. trans. V , 102.


0 IMPÉRIO ROMANO 29

antes, daqueles que supõem seus antepassados— e minimizar


a dívida que os ocidentais contraíram para com Roma. Assim
é que aos olhos de íCamille Jullian, na sua grande História
da Gália, o império romano não é mais do que um militarismo
estrangeiro que aniquilou brutalmente a® belas promessas
duma civilização prestes a florescer. E, sem dúvida, esta ma­
neira de ver não deixa' de ter o seu fundamento na medida
em que a conquista romana foi em si mesma brutal e destrui­
dora >e em que a civilização imperial que com ela vedo foi este­
reotipada e falha de originalidade. Mas é muito difícil encon­
trar qualquer justificação para a opinião de Jullian quando
sustenta que, sem a intervenção de Roma, a Gália céltica teria
recebido a civilização superior do mundo helenístieo, e, para
a tese dos autores alemães contemporâneos, segundo os quais
o mundo germânico teria vindo a conhecer, sob a influência
da Ásia, uma brilhante civilização nacional ( x).
Não há, em matéria de progresso, lei alguma fatal que
tivesse podido forçar os bárbaros do Ocidente a criarem por
si próprios civilizações. Sem uma forte influência exterior,
uma simples civilização tribal pode permanecer imutável du­
rante séculos, como vemos em Marrocos ou na Albânia. Uma
nova civilização não pode nascer sem grandes e rudes trabalhos,
como o notara Vergílio no verso famoso:

Tantde molis era Ramanam condere gentem (2).

Não podemos afirmar se o® 'Celtas ou os Germanos aban­


donados às suas próprias força® teriam sido capazes dum tal
esforço ou .se qualquer outra potência — persa, árabe ou turca
— teria intervindo para realizar essa obra em seu lugar. Sabe­
mos sòmente que esta obra foi cumprida, e cumprida por Roma.

O V. enitre outras, a tese exposta por Strzygow ski, in


Altai-Iran e nas suas oíbras mais recentes.
(2) i«De tamanho vulto era a empresa de fundar o povo
romano». (N, do Trad.) .
30 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Foi Roma que, arrancando a Europa ocidental ao seu isola­


mento e à sua barbárie, a ligou à sociedade civilizada do mundo
medi ter rânico; e, nesta matéria, o papel decisivo foi desempe­
nhado por Júlio César, o representante mais eminente do génio
romano de conquista e de organização.
É difícil, na verdade, dizer qual tenha sido o fim su­
premo que César deu à obra de toda a sua vida. Quereria,
como pretende Mommsen, manter as tradições cívicas do
Estado romano? Ou antes, como julgam Eduardo Meyer e
muitos outros autores contemporâneos, teria em mira a criação
dum novo Estado monárquico do tipo helenístico. É possível
que ambas estas opiniões contenham uma parte de verdade e
que a monarquia alexandrina de Marco António, por um lado,
o principado de Augusto, pelo outro, representem estes dois
aspectos do pensamento de César. Seja como fo r ninguém
poderá ter dúvidas acerca do fim e das ideias do homem a
quem coube a tarefa de completar a obra de César, quer dizer,
do seu filho adoptivo e seu herdeiro, o grande Augusto. Na luta
contra a monarquia alexandrina, de António e de Cleópatra,
Augusto apresentou-se como o eampião consciente, não so­
mente do patriotismo romano, mas de concepções tipicamente
ocidentais. Aos olhos dos seus partidários, Actium foi, como
Maratona e Salamina, uma batalha entre o Oriente e o Oci­
dente, a vitória do ideal europeu de ordem e de liberdade
sobre o despotismo oriental. Numa passagem célebre do oitavo
livro da Eneida, Vergílio mostra-nos as hordas informes da
bárbarie 'oriental prestes a lançarem-se não só contra os Penates
e os divinos protectores do Estado romano, mas até contra
as grandes divindades da Grécia — Posídon, A frodite e Atena:
Omnigsnwmque deum monstra et latrator Anubis
Contra Neptunum et Venerem contraque Minervam
Tela tenent (*).

O «Toda a espécie de deuses monstruosos e o ladrador


Anúbis, contra Neptuno, Vénus e Minerva tomam arm as». (N. do
Trad. ) .
0 IMPÉRIO ROMANO 31

e a vitória deve-se menos ao deus romano Marte do .que ao deus


grego A poio:

Actius kaec cernens arcum intendebat Apollo


D esuper: omnis eo terrore M g y p t u s et Indi
Omnis Arábs omnes vertebant terga Sabaei ( 1 ).

Na realidade, a vitória de Augusto salvou a civilização


europeia na hora em que ela corria o risco de ser absorvida
pelo antigo Oriente ou submergida pelos bárbaros do Ocidente,
e abriu uma nova era de expansão para a cultura clássica.
No Oriente, o Império Romano, cooperando com as forças do
helenismo, empenhou-se em dilatar a civilização grega e a vida
municipal. No Ocidente fez entrar a Europa central e ociden­
tal na órbita da civilização mediterrânica e criou um sólido
baluarte contra as invasões bárbaras. Augusto e os seus gene­
rais completaram ia obra de César, levando as fronteiras do
Império até ao Danúbio, desde a sua nascente até ao Mar
Negro, e, posto que tenham falhado no seu grande projecto de
conquista da Oermânia até ao Elba, fizeram pelo msenos da
Germânia meridional e da Renânia um pedaço do Império
Romano.
Desde então, durante mais de quatrocentos^nos, a E u­
ropa central e ocidental ficou submetida a um processo de
romanização progressiva que afectou todos os aspectos da vida
e formou uma base duradoira para o desenvolvimento ulterior
da civilização europeia. / 0 Império Romano consistiu essencial-
mente na união duma ditadura militalr com uma associação de
regimes de cidade — representando estes últimos1a herança, quer
sob uma forma pura quer latinizada, das tradições da cultura
helénica, ao passo que a primeira representava tanto a tradi-

( 1) «Observando tudo isto, lá do alto, Áccio Apoio retesava


o arco. E apavorados fugiam Egípcios, índios, Árabes e Sabeus».
(N. do Trad.),
S2 A FORMAÇÃO DA EUROPA

ção militar dos latinos como a das grandes monarquias hele-


nísticas que o Império substituíra.
À primeira vista é o aspecto militar da obra de Roma
que mais nos impressiona e, contudo, na história da civilização,
o aspecto ,puramente civil das coisas — o processo de urbaniza­
ção — desempenhou um papel ainda mais importante. A missão
essencial de Roma consistiu na introdução do regime de cidade
na Europa continental e, com a cidade a concepção do direito
de cidade e -a tradição cívica, criação suprema da civilização
mediterrânica. O soldado e o engenheiro militar romanos
foram agentes desta expansão; e de facto, o próprio exército
tinha sido organizado por Augusto como uma espécie de pre­
paração para o exercício do direito de cidade e um instrumento
de difusão da civilização de Roma e das suais: instituições nas
novas províncias recém-eonquistadas.
Devemos acrescentar que nem só as colónias de veteranos,
como Colónia, Treves, Aquileia e Mérida, mas também as for­
talezas e os quarteis-generais de legionários, como Sirmium,
Iorquie ou Mogúncia, se tornaram centros de influência romana
e de vida urbana. Na maioria dos casos, contudo, a urbanização
dos novos territórios fez-se reorganizando, segundo O' modelo
das municipalidades italianas, as comunidades célticas de qua­
dro tribal, ou então ligando a uma cidade já existente os terri­
tórios das tribos mais retrógradas. Desta forma se criou uma
jerarquia regular de comunidades, desde a tribo bárbara, ou
populus, até à colónia de cidadãos, passando pela cidade pro­
vincial e pelo município de estatuto latino. Assim, através
de todo o Império, por um contínuo processo de assimilação e
de promoção progressiva, as regiões submetidas tornavam-se
províncias, as cidades provinciais, colónias, e o direito de
cidade era concedido aos habitantes das províncias.
Cada cidade constituía o centro político e religioso dum
território rural, o a classe proprietária do solo formava o corpo
dirigente. A marcha normal das coisas era a seguinte : o liberto
ou o comerciante enriquecido invertia a sua fortuna em terras;
podia desta form a ser inscrito como decurião na lista dos ele-
0 IMPÉRIO ROMÀNO 33

gívois para os cargos municipais, enquanto que o decurião


rico obtinha normalmente o direito de cidadão romano e, con­
forme a sua situação financeira nas listas do censo, podia
o.veatualmente ©levuir-se ,até à ordem equestre ou até mesmo
à senatorial. As grandes propriedades do Senado e, ainda
mais, as dJo imperador e do fisco imperial, tinham uma orga­
nização completamente independente da do território próprio
d a, cidade, mias para o senador romano era ponto de honra usar
da, sua riqueza para o embelezamento ou a utilidade da sua
cidade natal, corno vemos nos casos de Plínio e de Herodes
Ático. Além disso o governo central estava longe de ser um
simples cobrador de impostos. Nerva e Tragano estabeleceram
um fundo para fornecer aos proprietários italianos emprésti-
iims a juro baixo cujos benefícios serviam para encorajar o
aumento da população por subsídios concedidos aos parentes
pobres e aios órfãos; este sistema estendeu-se em seguida às
províncias.
Ordinàriamente o cidadão abastado tanto morava no
campo como na cidade, porque, além, da sua casa da cidade,
l inha ihabitualmente no campo um domínio que, com o seu
pessoal de escravios e de colonos estabelecidos à volta da villa,
compreendia ao mesmo tempo construções de herdade e a resi­
dência, muitas vezes luxuosa, do proprietário. Na Grã-Breta­
nha e no Norte da França, a cidade não ©ra mais que um ©entro
administrativo e os que se dhamavam cidadãos habitavam
sobretudo nas suas propriedades; mas, pela sua maneira de
viver, participavam da civilização urbana normal1 do resto
do Império, como o proivam, na Inglaterra, os abundantes
vestígios de villas, com os seus banhos, o seu aquecimento
central, os seus mosaicos. Na França do Norte e na Bélgica,
estas propriedades rurais conservaram, se assim se pode dizer,
a sua identidade durante as invasões bárbaras e Idade Média
e mantêm aiinda presentemente nomes que lembram os dos
seus primeiros proprietários galo romanos.
Durante os dois primeiros século» do Império, este sis­
tema levou a um desenvolvimento extraordinàriamente rápido
3
34 A FORMAÇÃO DA EUROPA

da vida urbana e da ,p rosperidade económica das novas pro­


vinciais. Na Gália e na Espanha, tanto os quaidros exteriores
da vida civil, como ais concepções sociais e intelectuais do mundo
romano-lhelenístico se difundiram paralelamente; enquanto no
Reno o no Danúbio se produzia um desenvolvimento igualmente
rápido da colonização agrícola e da prosperidade comercial.
Até as regiões excêntricas, como a Grã-Bretanha e a Dácia,
partilharam da prosperidade geral e foram iniciadas na civi­
lização superior dio mundo mediterrânico. Todas as partes
do Império .estavam ligadas, sob o ponto de vista social, por
leis e uma civilização comuns, e sob o ponto de vista material,
por um vasto sistema de estradas que tomavam as comunica­
ções mais fáceis e mais 'seguras do que o foram em tempo
algum antes do século XVODI.
Este movimento de expansão atingiu o seu pleno desen­
volvimento no século II sob o sábio governo dos imperadores
Flavianos e Antoninos. Nunca o mundo antigo parecera mais
próspero, mais civilizado, mais tranquilo. Roma parecia ter
realizado o ideal estóico dum Estado do mundo no qual todos
os homens poderiam viver em paz uns com os outros sob o
governo dum monarca justo e esclarecido. Mas as aparências
eram enganosas.
Toda esta brilhante expansão da civilização urbana trazia
consigo os germes d o seu próprio declínio. Os progressos eram
inteirametnte exteriores e superficiais, corno acontece hoje à
nossa civilização europeia importada pelo Oriente ou como
no caso da Rússia do síéeulo X V II I . Tratava-se de mudanças
impostas do alto sem que alguma vez tenha havido completa
assimilação pelas populações submetidas. E ra essencialmente
a civilização duma classe ociosa— a da burguesia e da sua
clientela— e, embora os progressos da urbanização acarretas­
sem os da própria civilização, implicavam um vasto acréscimo
das despesas improdutivas e um apelo sempre crescente aos
recursos naturais do Império. Como disse o prof. Rostovtzeff,
quantas novas cidades — outras tantos novos ninhos de zângãos.
A civilização urbapa, na época imperial, foi, de facto, muito
0 IMPÉRIO ROMANO 35

mais que a do nosso moderno industrialismo, um grande sis­


tema de exploração que organizou os .recursos dos países recém-
-'conquistados e os concentrou nas mãos duma minoria de capi­
talistas e de homens de negócios; e, como este sistema se ba­
seava mais na propriedade do que na indústria, era menos
elástico e menos caipaz de se adaptar às exigências duma popu­
lação urbana crescente. Enquanto o Império se foi alargando,
o sistema pode funcionar porque cada nova guerra valia a
Roma novos territórios, onde difundisse a civilização urbana,
e novos recursos de mão de obra servil a baixo preço. Mas,
logo que a expansão se deteve, logo que o Império se viu forçado
a conservar-se na defensiva contra novas invasões bárbaras,
quebrou-se o equilíbrio económico. Os recursos do Império
começaram a diminuir, ao passo que as suas despesas conti­
nuavam a aumentar. O governo imperial viu-se constrangido
a agravar os impostos e os outros encargos das cidades; quanto
à rica aristocracia municipal que fornecia às cidades magis­
trados e administradores gratuitos e era colectivamente res­
ponsável pelo pagamento dos impostos, foi-se pouco a pouco
arruinando.
A o mesmo tempo os progressos da urbanização minaram
as bases militares do •sistema, imperial1. O exército era a alma
do Império. Este amontoado cosmopolita de raças e de reli­
giões, com classes e cidades de interesses divergentes, não se
mantinha, em última análise, senão graças a um exército de
soldados de profissão relativamente pouco numerosos mas
perfeitamenite exercitados. Ora o exército tornou-se uma fonte
permanente de perigos porque esta formidável máquina de
guerra era demasiado forte e bem organizada para que os
órgãos constitucionais dum Estado fundado na cidade pudes­
sem vigiá-lo. Desde o início do século I antes de Cristo que
o velho exército cívico da República se tornara um exército
de profissionais composto de mercenários e comandado por
generais meio políticos, meio aventureiros. F oi triunfando
deste monstruoso desenvolvimento do militarismo romano e
restaurando o ideal dum exército de cidadãos — não na ver-
36 A FORMAÇÃO DA EUROPA

daide no velho sentido da palavra mas na única form a com­


patível com as novas condições — que Augusto alcançou o seu
mais notável sucesso. Segundo a sua maneira de pensar, o
exército legionário devia ser uma escola de civismo dirigida
por cidadãos romanos de origem italiana e recrutada, parte
em Itália, parte nas comunidades urbanas das regiões mais
romanizadas do Império O ). O alistamento importava a
outorga do direito de cidade, e quando terminava o longo
período de tempo — dezasseis ou vinte anos — marcado para
a duração do serviço militar, o soldado recebia uma dotação
em dinheiro ou em terras e depois ingressava novamente na
vida civil, quer retirando-se para a sua cidade natal, quer
indo instalar-se numa das colónias militares que continuamente
se estabeleciam como centros de civilização e de influência
romanas nas províncias afastadals. Assim, apesar das rudes
condições de vida impostas ao soldado, o exército oferecia um
meio seguro de elevação social e até de enriquecimento e atraía
voluntários de entre os melhores elementos da população. Em
calda cidade italiana e até, depois de Vespasiamo, nas cidades
das províncias, associações de mancebos — collegia juvenum —
preparavam para o serviço militar os filhos dos cidadãos; e,
por outro lado, os veteranos gozavam na vida municipal de
consideração e de influência.
Entretanto este sistema foi perdendo pouco a pouco a
sua .eficácia. As populações da Itália e das províncias mais
romanizadas foram-se tornando calda vez menos aptas para o
serviço militar e o vínculo entre o exército e a classe urbana
começou a desfazer-se. No tempo de Vespasiano o exército
passou a ser inteiramente composto de provincianos com
exclusão unicamente da Guarda pretoriaina estacionada em
Roma, e os italianos deixaram de servir nas legiões; o n o sé-

0) Por outro lado, as tropas auxiliares ligadas à legião


eram recrutadas entre as populações menos romanizadas das pro­
víncias afastadas, mas comandadas tamlbém por oficiais romanos,
e os que dela faziam iparte adquiriam o direito de çidade passados
vinte e cinco anos de serviço.
0 IMPÉRIO ROMANO 31

eulo II, a partir do reinado de Adriano, generalizou-se o prin­


cípio do recrutamento local, de form a que as legiões começa­
ram a identificar-se progressivamente com as provinciais fron­
teiriças onde estavam aquarteladas. O exército foi assim per­
dendo gradualmente o contacto com os cidadãos das regiões
mais urbanizadas de todo o Império e tornou-se uma classe
à parte, animada dum forte sentimento de solidariedade social.
É, já ino século I, ao esprit de corps dos exércitos do Reno, do
Danúbio e das províncias d o Oriente, que é necessário: imputar
a responsabilidade da desastrosa guerra civil de 69 depois de
Cristo, o o perigo ainda mais se agravou quando as tropas
começaram a ser recrutadas numa camada social inferior.
Pelo fim do século II o exército era composto quase unica­
mente de camponeses, só meio-romanizados, cujos interesses
se concentravam totalmente, bem como o seu lealismo, nas
suas unidades e comandantes. Mas os chefes, membros das
classes mais elevadas — ■senadores e cavaleiros — , e que não
estavam em contacto permanente com o exército, não eram
as mais das vezes senão simples figurantes. O poder real no
exército pertencia aos comandantes das companhias — os cen-
turiões — muitos dos quais tinham saído das fileiras e consa­
gravam toda a vida ao seu ofídio. No decorrer das guerras
civis que se seguiram à queda de 'Cómodo em 193 depois de
Cristo, o exercício adquiriu a consciência da sua força, e Septí-
mio Severo foi obrigado a aumentar os seus privilégios, princi­
palmente os dos centuriões, que foram elevados à categoria de
cavaleiros e se tornaram deste modo elegíveis para os comandos
superiores.
Desde então os imperadores foram coagidos a adaptar a má­
xima de Septímio Severo: «Enriquece o soldado e deixa o resto».
A velha, oposição entre a cidade e o exército mercenário, entre o
ideal cívico e o despotismo militar — esta oposição que já tinha
destruído a república romana e que a obra de Augusto tinha
afastado por algum tempo — reaparecia solb uma forma mais
perigosa que nunca e destruiria o equilíbrio social do sistema
imperial. O Im pério perdeu gradualmente o seu carácter
38 A FORMAÇÃO DA EUROPA

constitucional de comunidade de cidades sob o governo bicé-


falo do Senado Romano e do Príncipe, para se tornar num
puro despotismo militar. Através de todo o século I I I o sobre­
tudo no decurso dos cinquenta desastrosos anos que vão de
235 a 285, as legiões fizeram e desfizeram a seu contento impe­
radores, e o mundo civilizado foi despedaçado pela guerra
civil e pelas invasões bárbaras. Muitos destes imperadores
foram pessoas honestas e garbosos soldados, mas, antigos centu-
riÕes quase sem excepção e na maioria dos casos de origem
humilde e sem grande instrução, foram chamados da caserna
para tomar conta duma situação que teria posto à prova os
maiores homens de Estado.
Não é pois de admirar que condições económicas do Im­
pério tenham ido de mal a pior sob o governo desta série de
sargentos-mores. Para satisfazer as exigências dos soldados
e as necessidades da guerra tornou-se necessário recorrer a
um desmedido acréscimo de impostos, e ao mesmo tempo :a
inflacção monetária, que tinha atingido vastas proporções pela
segunda metade do século l 1), levou a uma alta de preços de­
sastrosa e à perda da estabilidade económica. Portanto o
governo foi forçado a recorrer a um sistema de pagamentos
obrigatórios em géneros e de serviços compulsórios que aumen­
taram a miséria, da população submetida.
Desta forma a anarquia militar do século I I I provocou
uma profunda transformação na constituição da sociedade
romana. A acreditar no proí. Bostovtzefí, esta mudança teria
sido nada menos que uma revolução social n'a qual a classe
campesina, explorada, se teria vingado pelas armas da bur­
guesia rica e culta das cidades ( 2). É talvez um exagero; mas
ainda que não tenha havido conflito de classes consciente, o
resultado foi o mesmo. Nas províncias as cidades e as classes

O N o E gipto o artaba de trigo, que valia 7 ou 8 dracmas


no séc. II, não custava menos de 120.000 dracmas mo tempo de
Diocleciano. R ostovtzeff, Social and Economic History of the Ro­
man Empire, p. 419.
(2) R ostovtzeff, ob. cit., cap. X e X I.
0 IMPÉRIO ROMANO 39

ricas ficaram arruinadas e a velha aristocracia senatorial fo i


substituída por uma nova casta militar de origem sobretudo
campesina.
Chegou-se finalmente ao extremo da anarquia militar
e o Império foi restaurado por um soldado dálmata, Diocle-
ciano. Mas já não era o mesmo Império. Os fundamentos
sobre os quais Augusto o tinha construído — o Senado em
Roma, a ciasse dos cidadãos na Itália e os governos munici­
pais nas províncias— tudo estava caduco. Restavam somente
o exército imperial e o governo imperial e consequentemente
a obra de restauração devia receber o seu impulso do alto e
não podia realizar-se senão mediante a organização burocrá­
tica dum regime de absolutismo integral cujos germes po­
demos aliás encontrar desde os inícios do império. Porque,
se no Ocidente o imperador mais não era, em teoria, que o
primeiro magistrado da República e o chefe dos exércitos
romanos, a sua situação era diferente no Leste, onde tinha
herdado as tradições das grandes monarquias helenísticas
herdeiras por sua vez das tradições dos antigos Estados
orientais.
Tal era duma forma particularíssima o caso do Egipto,
que, nunca tendo sido anexado pela República mas adquirido
por Augusto a título de propriedade pessoal do imperador,
era directamente administrado por oficiais imperiais. Deste
modo os imperadores romanos ocupavam o lugar dos Ptolomeus
e dos Faraós e dirigiam uma sociedade que encarnava o mais
perfeito socialismo de Estado conhecido pelo mundo antigo.
«Directamente oposta à estrutura da vida económica da Gré­
cia e da Itália», escreve o prof. Rostovtzeff, «toda a organiza­
ção económica do Egipto estava edificada sobre o princípio da
centralização e da fiscalização pelo governo, da nacionalização
de todos os produtos quer agrícolas quer industriais. Tudo
era para o Estado e pelo Estado, nada para o indivíduo...
Em parte nenhuma, durante toda a evolução da humanidade,
se poderá encontrar limitação mais completa e mais sistemá-
40 A FORMAÇÃO DA EUROPA

tiea da propriedade privada do que no E gipto dos Ptoío*


meus» (x).
A história social e económica d o Baixo-Império é a his­
tória da extensão a todas as outras províncias dos princípios
direietores deste sistema egipto-helenístico. A administração
dos vastos domínios imperiais, o desenvolvimento da hierarquia
oficial, o regime do imposto em espécie e dos serviços forçados
e sobretudo o estabelecimento dum estatuto para os corpos de
mesteres hereditários, a obrigação imposta ao cultivador de
permanecer ligado à sua terra, ao artesano e ao negociante
de permanecerem fixados nos seus ofícios, eis uma série
de instituições plenamente desenvolvidas no Egipto séculos
antes de se aplicarem ao resto do Império. 0 sistema das
prestações obrigatórias de serviços ao Estado — «liturgi.es» ou
munera — é verdade que era comum a todo o Oriente hele-
nístico e tinha começado a fazer sentir a sua influência no
Ocidente desde o século II. Por conseguinte Dioelaciano não
introduziu qualquer princípio novo; mas fez destas institui­
ções do Oriente uma peça essencial do sistema imperial. A s
velhas instituições da Cidade estabelecidas sobre a propriedade
privada e sobre a existência duma classe de cidadãos privile­
giados tinham-se tornado um anacronismo; em seu lugar
surgiu um Estado burocrático e unitário, fundado no prin­
cípio do serviço universal.
Foram Diocleciano e os seus sucessores quem tomou a
peito reorganizar nestas bases a administração e as finanças
do Império. Com certeza que daí devia resultar um acrés­
cimo enorme dos encargos económicos impostos à população
e uma baixa das liberdades sociais e políticais; mas nós que vive­
mos na quarta década do século X X , estamos melhor colocados
que os historiadores dos séculos XVÜ3II e X I X para compreen­
der os problemas que então se punham e prestar justiça à
feroz tenacidade com que os imperadores ilírios combateram

I 1)1 V . Rosto v tzeff in Journal of Egyptian archaeology,


t. V I, p. 164.
Ô IMPÉRIO ROMANO 41

as forças económica® e sociais que ameaçavam submergir a


antiga civilização. E pelo menos Diocleciano conseguiu rea­
lizar a tarefa principal que se impusera: conter a invasão bár­
bara e acabar com a anarquia m ilitar que estava em vias de
destruir o Império. Conseguiu-o mercê duma reorganização
radical do sistema militar romano. Era desde as origens prin­
cípio fundamental do Estado romano que o poder — impe-
rium — era indivisível e que os magistrados supremos — os
cônsules e seus representantes nas províncias, os procônsules, —
eram, ex officio, chefes do exército, e, depois do estabelecimento
do Império, o mesmo se dava com o imperador e seus delegados
nas províncias, o® legados. Em teoria este princípio assegu­
rava a 'fiscalização do exército pelo Estado; mas de facto,
tanto no fim da República como no III século do Império,
tinha-se chegado à fiscalização do Estado pelo exército. D io­
cleciano pôs termo a este estado de eoisaís assegurando uma
completa separação dos poderes civis e militares. Os quadros
civis e militares constituíram duas jerarquias independentes,
unidas somente na pessoa d o seu chefe comum, o imperador.
Os governadores das províncias não foram doravante mais
que espécies de vice-reis nas suas províncias; perderam toda
a autoridade sobre as tropas; e as suas províncias, de dimen­
sões muito reduzidas com os sucessores de Diocleciano, foram
reunidas em grupos, formando dioceses, colocadas cada uma
delas sob a direcção dum novo funcionário, o vigário; res­
ponsável por sua vez perante o Prefeito do Pretório, primeiro
ministro do Império.
•O exército foi reorganizado de forma análoga. Os gran­
des exércitos das fronteiras, no Reno, no Danúbio e no Oriente
cujas rivalidades e revoltas tinham provocado^ tantas guerras
civis, foram substituídos por tropas de segunda liníba forma­
das duma classe hereditária de soldados camponeses, ao passo
que as melhores tropas, aquarteladas na rectaguarda da® fron ­
teiras, constituíram um exército de choque pronto a ser lan­
çado à batalha onde quer que fosse preciso. A o mesmo tempo
os efectivos da tradicional legião de 5.400 homens, compreen­
42 A FORMAÇÃO DA EUROPA

didos os auxiliares, foram reduzidos ao total de 1.000 a 1.400


homens, formando um regimento comandado por um tribuno
e sob a autoridade não do governador civil mas dum novo
oficial, o duque. O comando supremo estava nas mãois do pró­
prio imperador; mas, como Diocleciano não podia estar em
toda a parte ao mesmo tempo voltou .ao velho princípio romano
da autoridade repartida p or um colégio associando ao Poder
primeiramente o seu camarada Maximiano, a quem confiou
a defesa das fronteiras ocidentais, e depois como sub-ámpera-
dores, os Césares Constâncio e Galério. Houve daí em diante
um imperador em cada fronteira. De Trèves, Constâncio
vigiava o Peno e a Grã-Bretanha; Galério, de Sirmium, a
poente de Belgrado, vigiava o Danúbio. Quanto aos dois cole­
gas, ocupavam eles as posições mestras da segunda linha: em
Milão, Maximiano, pronto a defender a Itália, Diocleciano em
Nicomédia, centro estratégico do Império, donde podia olhar
para Norte até ao Danúbio e para Leste até à fronteira da
Pérsia. Roma deixava assim de ser o centro do Império. Ficava
para alimentar a memória das glórias passadas, enquanto a
maré da civilização refluía para Oriente e quando Constantino
completou a obra de Diocleciano, deu ao novo Império uma
nova capital e uma nova religião, inaugurando assim uma
civilização nova que já não era a do mundo clássico.
E contudo, apesar destas mudanças profundas, a obra
de Roma não foi destruída. Foi até somente no decorrer deste
último período que a unidade social do Império foi completa-
mente realizada e que os homens tiveram plena consciência
do carácter universal do Estado romano. No seu início, o
Império não tinha sido, fora da Itália, senão um poder estran­
geiro imposto do alto a um certo número de povos conquis­
tados; a princípio nenhumas relações havia com os indivíduos,
mas somente com as comunidades submetidas. Para o homem
ordinário, o Estado não era o Império Romano, mas a sua
cidade natal, e foi somente à medida que a burocracia imperial
foi usurpando a velha administração da cidade que a quali-
O IMPÉRIO ROMANO 43

d ade de membro do Im pério foi passandoi à frente da1de mem­


bro da cidade.
Assim a decadência da velha organização da cidade não
foi um mal sem compensações, já que o direito de cidade se
desenvolveu num movimento paralelo. O século III, que viu
o despertar do Estado burocrático centralizado, viu também
a extensão do direito de cidade aos provincianos e a trans­
formação do direito romano, que, de reservado que era até
então a uma classe privilegiada, se tornou a lei comum do
Império. E isto não foi simplesmente o resultado do desejo
que inspirava o governo central de aumentar os seus meios
de fiscalização sobre os súbditos; deseoibre-se aí o fruto do
novo ideal social e político da época já expresso nos escritos
dos autores gregos, como Dion Crisóstomo ou Æ lius Aristides,
que foram os chefes deste renascimento um tanto académico
da cultura clássica que caracterizou o século II depois de
Cristo. Viam no Império Romano a realização da ideia hele-
nística tradicional da unidade do mundo civilizado— a cecu-
mene — , e apresentavam aos imperadores o ideal estóico duma
monarquia esclarecida cujo chefe dedicasse a sua vida ao ser­
viço dos seus súbditos e considerasse o governo, não como um
privilégio, mas como um dever. Também de Trajano a Marco-
-Aurélio, que lançou os fundamentos do regime burocrático,
os grandes imperadores do século II não tiveram a intenção
de destruir a liberdade cívica. O seu ideal era o expresso por
Marco-Aurélio : «para todos a mesma lei, os mesmos direitos,
a mesma liberdade de palavra, sob o governo dum príncipe
disposto sobretudo a salvaguardar a liberdade dos que go­
verna» (1) . O mesmo ideal inspirou os grandes juristas do
século seguinte, corno Ulpiano e Papiniano, graças aos quais
foram incorporados nas tradições do antigo direito romano
os princípios humanos e esclarecidos da época dos Antoninos.
Até nos mais sombrios dias do Baixo-Império sobreviveu este
ideal. Os Romanos sentiram que o Império representava tudo

Ç) M arco-Aurélio, I, 14 (trad, de L ong).


44 A FORMAÇAO DA EUROPA

o que no mundo havia de civilização, de justiça, de liberdade,


e gostavam' de repetir at!é ao século V II o velho adágio de que
entre todos os soberanos da terra só o imperador romano regia
homens livres, enquanto que os chefes bárbaros eram senhores
de escravos ( v).
Não devemos julgar que o desaparecimento do patrio­
tismo romano tenha sido causado pela ruína das instituições
da cidade e a decadênciia do próprio Império. Foi, pelo con­
trário, precisamente nesta época que mais esclarecida cons­
ciência se teve do que o mundo devia à obra de Roma. Este
sentimento encontra-se expresso em toda a literatura do sé­
culo V, tanto nos autores cristãos como nos pagãos (2). É o
culto de Roma, mais ainda que a fé nos deuses do paganismo,
que explica o apego de conservadores aristocratas como Símaeo
à velha religião. É ela que dá uma nota de paixão sincera
e de convicção à poesia artificial de Claudiano e de Rutilius
Namatianus. Há qualquer coisa de comovedor nos sentimentos
de devoção que, em plena angústia, o senador gaulês Nama-
cianos manifesta para com Roma, «mãe dos deuses e dos ho­
mens», na esperança que ela vencerá os desastres que a têm
atingido:
Ordo renascendi est crescere posse malis. (É lei do pro­
gresso poder crescer com os infortúnios) .
Mas o maior título de Roima ao lealismo de Namaciano

‘ C) V . entre outros, Prudêncio, Contra Symmachum, II,


816-819: «O Romanismo difere do 'barbarismo como um homem
dum anim al, como um homem que tem o uso da palavra difere de
um mudo, e como o Cristianismo difere do paganism o». Ofr. tam -
)bém a carta de Gregório M agno a Leôncio (Ep., X I, 4 ).
(2) H á contudo uma exoepção chocante: o De Gubernatione
Dei, de SalViano, condenação sem reservas dos vícios da sociedade
rom ana; e, até certo ponito, a apologia dos bárbaros. H avia na
•cristandade de então, como algures o m ostrei, uma corrente subja­
cente de hostilidade ao Império e à civilização secular que, se encon­
tra a sua expressão m ais violenta nos donatistas, não é contudo
completamente alheia aos escritos de ,S. Agostinho. C fr. A monu­
ment to Saint Augustine, pp. 36 e 52^64.
A IGREJA CATÓLICA 45

e de Claudiano, — •o gaulês e o egípcio — é a generosidade com


que fez participantes dó seu Direito os povos conquistados1 e
do mundo inteiro urna única cidade ( x). «F oi ela a única,
escreve 'Claudiano, que recelbèu em seu seio os vencidos e co­
briu, com um nome comum, o género humano» ( 2). Estas1ideias
não são peculiares aios defensores da causa perdida da velha
religião; são também características de autores cristãos tais
como S. Ambrósio, Orósio e Prudêncio.
Prudêncio dá, de facto, uma significação mais larga ainda
à concepção da missão universal de Poma, porque a põe em
relações estreitas com o ideal da nova religião do mundo,
quando formula a seguinte questão:
«Qual ié o segredo do destino de Roma? É que Deus quer
a unidade do género humano, polis que a religião de Cristo
exige um fundamento social de paz e de amizade internacio­
nais. Até agora foi a terra despedaçada de Oriente a Ocidente
por uma luta contínua. Para domar esta loucura ensinou Deus
às nações a obedecerem às mesmas leis e a tornarem-se todas
romanas. A gora vemos viver os homens como cidadãos duma
única cidade e como membros duma só e mesma família. Vêm,
através dos mares, de países afastados, até um «forum » que lhes
é comum; os povos estão unidos pelo comércio, pela civilização
e pelos casamentos; da mistura dos povos nasceu uma raça
única. Eis ia significação das vitórias e dos triunfos do Império
Romano : A paz romana preparou o caminho à vinda de Cristo.
Que lugar efeetivamente haveria para Deus ou para a recepção
da verdade num mundo selvagem em que os espíritos estivessem

(’ ) Rutilius Nam atianus, Itinera/rio de Roma,, 63 :


iDumque o ffers victis proprii consortia ju ris,
Uribem fecisti quod prius oribis erat.
(: ) .Claudiano, Sobre o segumdo consulado de Estilicdo, 150:
Hac est in gremio victos quae sola recepit
Humanumlque genus communi nomine fovit.
>Ofr. G. Boiissier, La fin du paganisme, t. II, 137, p. 252
da 7.® ed.
46 A FORMAÇÃO DA EUROPA

em guerra e faltasse uma base jurídica comum?».


E conclui:

En ades, omnipotens, concordibus influe terris!


Jam mundus te, Christe, capit, qwem congrege nexu
Pax et Roma tenet C1).

Desta forma, posto que Prudêneio não tivesse, bem


como Claudiano ou Namaeiano, a ideia da queda iminente do
Império do Ocidente, tinha adivinhado, corno que numa visão
profética, o verdadeiro sentido das transformações de que
o mundo antigo tinha sido teatro. A nova Roma cristã, cujo
advento Prudêneio tinha saudado, estava destinada a herdar
das tradições romanas e a manter num mundo m odificado o
velho ideal de unidade romana. Porque foi a Roma que os
povos vindouros deveram a própria ideia de que era possível
uma civilização comum. Dentro do caos da idade das trevas
que ia seguir-se, os homens permaneceram ligados à recorda­
ção da paz universal e da ordem que o Império Romano, a sua
religião comum, as suais leis comuns, a sua civilização comum,
tinham dispensado; e os esforços repetidos da Idade Média
para voltar ao passado, para recuperar a unidade e civilização
perdidas, arrastaram os povos novos para o futuro e prepa­
raram o caminho para uma nova civilização europeia.

'O Contou Symmachmti, II, 578J636.


CAPITULO II

A IGREJA CATÓLICA

/\ influência do 'Cristianismo na formação da unidade da


8 ' Europa é um exemplo frisante da maneira como uma evo­
lução histórica pode ser alterada e orientada pelo jogo de,;
novas influências espirituais.I 'Os factos históricos não for-"
uinm. uma cadeia contínua cujos elos seriam cada um a sequên­
cia lógica e necessária do que o precedeu. Encontra-se neles
sempre algum misterioso e inexplicável elemento que não é
sòmente produto do acaso ou da iniciativa do génio individual
mas do poder criador dais forças espirituais.
Assim se explica, no declínio do mundo antigo, esta
necessidade dom a inspiração religiosa mais profunda que a
dos cultos oficiais da cidade, necessidade esta que traJbalhava
o império Romano apesar do carácter artificial e materialista
da sua civilização. Ter-se-ia podido adivinhar que esta de­
pressão espiritual conduziria à infiltração das influências
religiosas vindas do Oriente, a qual se produziu eom efeito
na época imperial; mas ninguém poderia predizer que o Cris­
tianismo triunfaria a ponto de transformar a vida e o espírito
da civilização antiga.
A religião destinada a conquistar o Império Romano e
a identificar-se permanentemente na vida do Ocidente era
de origem puramente oriental; não tinha raízes no passado
europeu nem nas tradições da civilização clássica. Mas o seu
orientalisme não era em nada o deste mundo cosmopolita do
sincretismo religioso em que a filosofia grega se amalgamava
com os cultos e tradições do antigo Oriente. E ra o duma tra­
dição nacional, única na história, e altaimente individualista,
conservando-se ciosamente afastada das influências religiosas
48 A FORMAÇÃO DA EUROPA

do meio oriental que ,a rodeava bem. corno de qualquer contacto


com a civilização que então dominava no Ocidente.
Os Judeus eram os únicos em todo o Império que se
tinham conservado teimosamente fiéis às suas tradições nacio­
nais a despeito do atractivo da cultura belenístiea que os outros
povos do Levante acolhiam com uma solicitude superior ainda
àquela de que os seus descendentes fazem gala para com a
nossa civilização moderna. O Cristianismo, por sua própria
natureza, rompia com o nacionalismo exclusivista do judaísmo,
e propunha-se uma missão de alcance universal. Todavia
reivindicava ao mesmo tempo a herança de Israel, e baseava
o seu apelo não nos princípios comuns do pensamento hele-
nístico, mas na pura tradição hebraica representada por a
Lei e os Profetas. A Igreja primitiva considerava-se o segundo
Israel, a herdeira do Reino prometido ao Povo de Deus. P or
isso conservava para com o mundo dos gentios esta atitude
preconcebida de separatismo espiritual, este espírito de irre­
conciliável Oposição de que se tinha alimentado toda a tradi­
ção judaica.
F oi precisamente este sentido da continuidade histórica
e da solidariedade social que distinguiu a Igreja cristã das
religiões de mistérios e dos outros cultos orientais desta época
e que fez dela, desde a. sua aparição, a única, rival verdadeira
e o único substituto possível da religião oficial do Império.
'Contudo não procurava combater ou suplantar o Império
como organismo político. Era uma sociedade de ordem sobre­
natural, o governo dum mundo vindoiro, e reconhecia os direi­
tos e as pretensões d o Estado neste mundo; mas, por outro
lado, não podia aceitar o ideal helenístico ou cooperar na vida
social do Império. A ideia, de cidadania, fundamento da civi­
lização clássica, foi transportada pelo cristianismo para o plano
espiritual,. Quanto à Sociedade temporal, os cristãos eram,
em relação a ela, — peregrin i— estranhos e estrangeiros; ver-
dadeiramente só eram cidadãos do Reino de Deus e, mesmo
neste mundo, as relações entre si, como cristãos na Igreja,
A IGREJA CATÓLICA 49

levavam a primazia às que tinham com os seus concidadãos


na cidade ou no Império.
Desta forma a Igreja era, se não um Estado, pelo menos
uma sociedade autónoma e completa. Tinha a sua organização
e .a sua jerarquia próprias, o seu sistema de governo, as suas
leis, as suas regras de iniciação e de disciplina. ;.Dirigia.-se a
.todos os que não tinham podido encontrar satisfação' na ordem
existente, aos pobres e aos oprimidos, às classes não privile­
giadas, e soíbretudo aos que, revoltados contra a miséria espi­
ritual a. a corrupção da civilização materialista reinante, sen­
tiam a necessidade duma ordem espiritual nova e duma con­
cepção religiosa da. vida. Assim se tornou o foco de todas as
forças que tendiam quer a desprender-se da civilização domi­
nante, quer a opor-se-dhe, e a sua acção foi muito mais pro­
funda do que qualquer movimento de descontentamento polí­
tico ou económico. Em si mesmia era já um protesto, não con­
tra a injustiça material, mas contra os ideais espirituais do
mundo antigo e contra toda a sua ética social.
Nenhum testemunho mais expressivo e inspirado desta
oposição do que o do Apocalipse, composto na província da
Asia no momento em que a Igreja era ameaçada de perse­
guição por causa do .estabelecimento como lei de Estado, no
reinado de Domiciano, do culto de Roma e do imperador.
O sacerdócio público organizado nas cidades de província é
aí descrito como o Falso Profeta que ordena que os homens
adorem a Besta (o Império Romano) e a sua imagem, e que os
obriga a receber o seu selo sem o qual ninguém pode comprar
ou vender. A própria Roma que Vergílio pintava como a
«Mãe frigia dos deuses, coroada de torres, feliz por ter gerado
deuses» (x), aparecia agora como a Mulher sentada na Besta,
mãe de prostitutas e de abominações, embriagada com o sangue

I 1) Quailis Berecyntia mater


Invahiitur curru Plhrygias turrita per urfoes
Laeta deum partu, eentum complexa nepotes
Omnis caeliieòlas, omnis supera alta tenentis.
( A m . V I, 78 5).
4
50 A FORMAÇÃO DA EUROPA

•dos siamtos e dois mártires de Jesus. E vemos todos os exércitos


celestes e as almas dos mártires esperando o dia da vingança
em que o poder da Besta será destruído e em que Roma será
precipitada para sempre tal qual uma mó ao fundo do mar.
É um testemunho impressionante do ímpeto de hostili­
dade e de reprovação que iam minando a base da potência
romana. O Império tinha alienado as mais vivas, as mais
activas forças da época e, bem mais que as guerras ou as inva­
sões, foi esta contradição interna que ocasionou a queda da
civilização antiga. Antes que os bárbaros se espalhassem pelo
Império, antes do descalabro económico, tinha a vida saído da
Cidade e morria o espírito da civilização clássica. A inda se
construíam cidades com templos, estátuas, teatros, como na
época helenísitica; mas era simples fachada a mascarar a
ruína; o futuro estava ao lado da jovem Igreja.
Contudo o Cristianismo não ganhou a vitória senão de­
pois duma longa e rija luta. A Igreja cresceu à sombra das
varas e dos machados dos carrascos; cada cristão vivia em pe­
rigo de morte ou de tortura física. O pensamento do martírio
coloria toda a vida do Cristianismo primitivo. Não era so­
mente um pavor, era um ideal e uma esperança porque o mártir
era o cristão completo, o caimpião, o herói da nova sociedade
em conflito com a antiga. E até os cristãos que tinham fra­
quejado na hora da provação — os lap si — olhavam para os
mártires como palra os seus salvadores e protectores. Basta-nos
ler as epístolas de S. Cipriano ou os Testimonies, que compilou
à laia de manual dos «milites Ohristi» ou o tratado De Laude
Marty rum, que lhe foi atribuído, para entrevermos que exal­
tação apaixonada produzia no cristão o ideal do martírio.
Toca-se quase o lilrismo na passagem seguinte, justamente fa­
mosa, da epístola dirigida por S. Cipriano a Nemesiamus:

«Ó bem-aventurados pés agrilhoados que não são liber­


tados pelo ferreiro m as pelo Senhor! Ó bem-aventurados pés
agrilhoados que nos permitem seiguir direito pelo caminho da
salvação para o paraíso ! Ó pés momentaneamente presos neste
mundo, que se tom arão eternamente livres no outro, junto de
A IGREJA CATÓLICA 51

D eus! Ó cadeias, obstáculos benditos, pois que os pés, cuja


m archa tornais momentaneamente incerta, vão em breve correr
para Cristo por um caminho de glória! Que uma crueldade
invejosa ou m aligna vos encerre enquanto lhe aprouver nas suas
prisões e nas suas cadeias, dentro em breve, libertados destes
sofrim entos da teirra, chegareis ao reino dos céus. N as minas,
o corpo não tem a suavidade de um leito beto fo fo para repou­
sar, m as Cristo é para ele refrigério e repouso. É na terra
dura que se estendem os membros fatigados, mas já não é
uma pena quando lá se deita com Cristo. Faltam os banhos
e a lim peza do corpo, mas se, por foira, a carne m ostra as suas
imundícies, o espírito está interiormente purificado. 0 pão
é dado em diminuta quantidade, mas o homem não vive só de
pão, vive também da palavra de Deus. H á frio , fa lta vestuário,
mas o que está revestido de Cristo está fartam ente vestido
e adornado» (J).

Isto não é a piedosa retórica do pregador da moda; é a


mensagem que um confessor, que dentro em "breve devia sofrer
a morte peia sua fé, dirige aos seus companheiros, os bispos,
os clérigos e «os outros irmãos que estão nas minas, mártires
de Deus».
Numa época em que o indivíduo mais não era que o ins­
trumento passivo dum Estado omnipotente e universal, não
poderá exagerar-se a importância duma tal atitude, último
bastião da liberdade espiritual. Mais que qualquer outro factor
foi ela que assegurou o triunfo definitivo da Igreja potaque fez
brilhar aos olhos de todos que o Cristialnismo era o único poder
que restava no mundo capaz de resistir ao mecanismo gigan­
tesco da nova sujeição.
E enquanto a Igreja estava empenhada neste combate
de vida ou de morte contra o Im pério e a sua civilização bele-
nística, tinha também de aguentar na sombra uma luta difícil
com .as forças crescentes dos cultos orientais. Sob uma apa­
rência helenística e cosmopolita as tradições religiosas do
antigo Oriente viviam ainda e infiltravam-se pouco a pouco
no pensamento da época. As religiões de mistérios da Ásia

C) S. Cipriano, Epist., LXX.VI, 2.


52 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Menor -estendiam-se para o poente tal qual coimo o Oristiainismo,


e o culto de Mitra acompanhava os exércitos romanos no Da­
núbio, no Reno e até à fronteira britânica. A egipcíaea Isis,
os deuseis assírios Adónis, Atargatis, Hadad e Baalibek, o Deus-
-sol de Emeisa seguiam a maré alta do comércio sírio e a sua
migração para o poente, ao mesmo tempo que no mundo subter­
râneo do Oriente nasciam novas religiões como o maniiqueísmo
e reapareciam com formas novas as tradições imemoriais da
teologia astral babilónica 0 ) .
Mas o produto mais característico deste movimento de
smeretismo oriental foi a teosofia gnóstica, que constituiu
um perigo sempre presente para a Igreja cristã no decorrer
dos séculos UI e III. Repousava ela no dualismo fundamental
do espírito e da matéria, e na associação do mundo material com
o princípio do mal. Este dualismo derivava de influências
gregas ou anatólias mais talvez que de influências persas,
porque o encontramos plenamente desenvolvido na mitologia
órfica e na filosofia de Empédoeles. Mas esta ideia, central
estava submergida em selva densa de especulações teosóficas
e mágicas de origem indiscutivelmeinte babilónica e oriental.
Este misticismo estranho exercia uma atracção extraor­
dinária sobre uma sociedade profundamente desiludida e
sequiosa de libertação, como o tinha estado a índia seis sé-

'O !No decorrer destes últimos anos os Mandeanos ou «'Cris­


tãos de S. João», da Babilónia do Sul, a única seita desta categoria
que subsiste na época aetual, têm sido dbjecto duma atenção espe­
cialíssim a. Lidzlbarski e Reitzenstein tentaram provar que eles
tinham estado, originàriamenlte, relacionados com os Essénios e com
os diseíipulos de S. João Baptista e que, por consequência, os seus
escritos interessam directamente à questão das origens do C ristia­
nismo. M as nos seus Ma.ndaean. Studies (1 9 1 9 ), S. A . Pallis mostrou
que as analogias com o judaísm o são superficiais e de proveniência
relativam ente recente. Conclui-se dos seus estudos que o m an-
deísmo é essencialmente uma seita gnóstica subsequente, influen­
ciada, no tempo dos Sassânidas, pelas ideias zoroástricas. PaMds
rejeita também a teoria sustentada antes por Brandt, para quem
as crenças mandeanas tinham raízes na antiga religião babilónica.
A IGREJA CATÓLICA 53

culos antes. Por isso não era para o Cristianismo simples


perigo externo1: ameaçava absorvê-lo completamente, trans­
formando a personalidade histórica de Jesus num membro
da jerarquia divina dos Eons e substituindo o ideal cris­
tão da redenção dos corpos e da realização do reino de
Deus como realidade histórica e social pelo da libertação da
alma arrancada; à contaminação do mundo material. A in­
fluência destas doutrinas fez-se sentir não somente de forma
directa nos grandes sistemas cristianoHgnósticos de Valentino
e de Basílides, mas também, indireetamente, numa multidão
de heresias orientais menores que formam uma série contínua
desde .Si-mão o Mago, nos tempos apostólicos, até aos Pauli-
cianos da época bizantina. No século II este movimento tinha-se
tom ado tão poderoso que atraiu a si três dos mais distintos
representantes do 'Cristianismo oriental, Marcião na Ásia Me­
nor, e Taeiano e Bardesano, fundadores da nova literatura
aramaiea, na Síria,
jSe o Cristianismo não tivesse sido mais que uma das seitas
orientais e das religiões d'e mistérios do Império líomalno, teria
sido mevitàveimente arrastado neste sincretismo. 'Sobreviveu
porque possuía um sistema de organização eclesiástica e um
princípio de autoridade social que o distinguia de todos os
outros grupos religiosos desse tempo. Desde o princípio que,
como já o notamos, a Igreja se considerava como o Novo Israel,
«raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo à parte» C ).
Esta sociedade santa era uma teocracia inspirada e governada
pelo Espírito Santo, e os seus chefes, os Apóstolos, eram os
representantes, não da comunidade, mas de Cristo, que os
havia escolhido e lhes havia1 transmitido a sua divina autori­
dade. Esta concepção duma autoridade apostólica divina ficou
sendo o fundamento da ordem eclesiástica no período post-
- apostólico. Os «superintendentes» (episcopi e presòiteri) e
os anciãos que dirigiam as igrejas locais, eram considerados
como os sucessores dos Apóstolos, e as igrejas que, polas suas

(’ )' I Pedro, H , 9.
54 A FORMAÇÃO DA EUROPA

origens, se ligavam direcbamente atos Apóstolos, gozavam duma


autoridade e dum prestígio particulares,
Era espcci alimente o caso da Igreja romana porque, tendo
tido Pedro uma situação única entre os Doze, esta Igreja,
cujas origens remontavam até ele, tinha entre as outras uma
posição excepcional. Já no século I, antes mesmo do fim do
período apostólico, a intervenção disciplinar de Roma nos
negócios da Igreja de Corinto é disso testemunho. A primeira
epístola de Clemente aos Corintiois .pelo ano de 96 depois de
Cristo, exprimie da forma mais nítida o ideal duma ordem
jerárquioa, princípio da nova sociedade O ). 0 autor argu­
menta com o facto de que a ordem é a lei do universo: prin­
cípio da natureza visível é-o também da sociedade cristã. O fiel
deve guardar a mesma disciplina, a mesma subordinação, con­
forme o seu posto, que caracterizava o exército romano. Como
Cristo vem de Deus, também os Apóstolos vêm de Cristo, e os
Apóstolos, por sua vez, «nomearam os primeiros convertidos,
depois de os experimentarem pelo espírito, a desempenharem
as funções de bispos e de diáconos dos futuros crentes. E, sa­
bendo que a dignidade episcopal seria disputada, acrescen­
taram em seguida à maneira de codicilo, que, se o seu zelo se
relaxasse, outros homens dignos de estima lhes sucederiam no
seu ministério». Desta forma é essencial que a Igreja de Co­
rinto repudie o espírito de oposição e de inveja e se submeta
aos presbíteros legalmente instituídos, os quais representam
o princípio apostólico da autoridade divina (2).
iS. Clemente insiste na ordem social e na disciplina moral,
o que é especifioamemte romano, mas a sua doutrina tem muitos

(J) Isto é tão claro que Sohm chegou a considerar esta epís­
tola como o ponto de partida da concepção jurídica da Igreja, subs­
tituindo, diz ele, aíbruptamente a antiga concepção «carism ática».
(Mas, como o notou Harnack, a ideia de que a autoridade dos A pós­
tolos é de origem divina é tão velha como a própria Ig re ja ; e apa­
rece assás nitidamente nos decretos do Concílio de Jerusalém
<(Act., X V , 23, 2 7 ).
(J)i I Ciem. X X , X X X V II , X L -X D IV , etc.
A IGREJA CATÓLICA 55

pontos comuns com o ensino dais Epístolas Pastorais, e repre­


senta, não há dúvida, o espírito tradicional da primitiva Igreja.
Foi estie espírito que salvou o Cristianismo impedindo-o de se
submergir no atoleiro do sineretismo oriental.
Na sua polémica contra os gnósticos, no século seguinte,
S. Ireneu recorreu sem cessar, contra as especulações desre­
gradas da teosofia oriental, à autoridade social da tradição
apostólica. «A verdadeira gnose é o ensino dos Apóstolos e
a constituição primitiva da Igreja de um extremo ao outro
do mundo». Para ele também, a Igreja romana é que S o centro
de unidade e o garante da ortodoxia (x).
Desta forma a Igreja primitiva sobreviveu tanto aos

O «E m virtude da sua tradição [da Igreja de Rom a] e


da sua fé anunlciada aos homens, a qual nos foi transm itida pela
sucessão dos bispos, confundimos todos os que de qualquer modo,
quer por capricho, quer por vanglória, quer por cegueira e von­
tade perversa, se assemelham naquilo em que não deviam. Por­
que é esta Ig reja , em razão da sua m ais elevada origem , que é
necessário que todas as igrejas, ou, por outras palavras, os fiéis
de toda a parte, recorram — a esta Igreja em que os homens de
todas as regiões conservaram sempre intactas as tradições dos
A póstolos». (S . Ireneu, Adversus hereses, III, I I I ). V . M igne.
A expressão propter potentiorem principalitatem, que traduzi
por «em razão da sua mais elevada origem », tem sido objecto de
interpretações diversas. H á quem a tenha traduzido po!r «supre­
m acia mais completa» ou «autoridade proeminente» (por exemplo
na tradução da Ante-Nicene library, V . I, pág. 2 6 1 ). N a minha
opinião não é possível duvidar de que principalitas seja = *s, xaior/iç
e nao tenha em m ira as origens da sé de Roma, como na passagem
de S. Cipriano (E p ., L IX , 13) — «navigare auident ad Petri cathe-
dram et Ecclesiam principalem unde unitas Sacerdotalis exorta est»,
em que «principalem » significa a igreja original, a igreja mais
antiga.
Optato e S. Agostinho deviam servir-se do mesmo argumento
contra os donatistas — nestes versos, por exem plo:
iNumerate sacerdotes vel alb ipsa Petri sede,
iEt in ordine illo patrum quis cui successit videte:
Ipsa est petra quam non vincunt superbae infehnorum portae.
(Psculmus contra partem Donat. 18).
56 A FORMAÇÃO DA EUROPA

perigos da heresia e do cisma como à perseguição do poder


imperial, e organizou-se em sociedade universal e jerarquizada
em todo o mundo pagão. Dial até conquistar o próprio Império,
até ser eistJabelecida como religião oficial no Estado reorgani­
zado por Constantino, não ia mais que um passo. Pode-se
discutir se Constantino teria ou não obedecido a razões polí­
ticas na sua atitude para com o Cristianismo í1) ; mas a con­
vicção que ele exprimo na sua carta às provinciais é, sem dú­
vida, sincera: do extremo da Bretanha foi suscitado pela
Divindade para destruir os inimigos do Cristianismo qne, a
não ser assim, teriam destruído a República. Esta crença
pode muito bem ter sido corroborada pela ideia de que a ordem
e a universalidade da Igrdjia cristã a predestinavam a ser
a aliada ,e o complemento espiritual do Império universal.
Em todo o caso era sob este aspecto que o p'anegirista cristão
Oficial de Constantino, Eusóbio de Cesareia, interpretava
os acontecimentos, quando escrevia:
«Um só Deus foi reconhecido pela humanidade inteira
ao mesmo tempo que um só e universal poder, o Império Ro-
mano, se ergueu e prosperou. O ódio constante e implalcável
de Nação contra Nação foi agora banido e, com o conheci­
mento dum único Deus e duma via única de religião e de salva­
ção, a doutrina de Cristo foi dada a conhecer a todos os homens;
de tal modo que, durante este mesmo- período dm que um só
soberano estava investido duma autoridade sem- reservas sobre

O A questão foi recentemente discutida por Norm an B ay­


nes na Raleigh Lecture de 1929. Sustenta ele que a política de Cons,
tantino foi sempre inspirada pela «convicção que ele possuía duma
m issão pessoal a si confiada pelo Deus dos Cristãos». Acrescenta
que ele «se identificava inteiramente com. a cristandade, a Igreja
cristã e a fé cristã» e quie cria que a prosperidade do Império estava
ligada à unidade da Ig reja católica. O ideaflj bizantino dum Império
Romano repousando na fé ortodoxa e unido à Igreja ortodoxa, teria
pois a sua origem na visão de Constantino. V . Constantine the
Great and the Christian Church, por N . H . B aynes; Proceedings
of the British Academy, V . X V com notas bibliográficas muito
completas sobre a questão.
A IGREJA CATÓLICA 57

todo o Império Romano, uma paz profunda reinou no mundo.


E desta forma, pela vontade expressa do próprio Deus, duas
fontes de felicidade jorraram, aio mesmo tempo, para o bem-
-estar da humanidade: o Im pério Romano e a doutrina da
piedade cristã» (x) .
Efeetivamente o reoonhecimento oficial da Igrej'a e a sua
associação com o Estado romano tornaram-se os fiaetores deter­
minantes do desenvolvimento duma nova ordem social. A Igreja
recebia a liberdade e dava 'em troca ao Império os seus recursos
de vitalidade espiritual e social. No Baixo Império, a Igreja
vem-se substituindo cada vez mais à velha organização cívica
como manifestação da consciência popular. Por si, não foi ela
a causa do declínio da cidade, que m orria da sua própria fra ­
queza, mas foi uma espécie de substituto no qual a vida do
povo pôde encontrar novos modos de expressão. A s institui­
ções cívicas, fundamento da antiga sociedade, não eram já
mais que formas vazias, e os direitos políticos tinham-se trans­
form ado em encargos fiscais. A cidade do futuro repousaria
■na confraternidade da Igreja, na qual cada um, fosse quem
■fosse, recebia assistência material e económica, ao mesmo
tempo que encontrava a liberdade espiritual. A possibilidade
■de exercer uma aetividade espontânea e livre na sociedade,
denegada pelo despotisme burocrático do Estado, sobrevivia
na sociedade espiritual da Igreja. Por isso é que ao seu serviço
se consagrou o melhor do pensamento e das forças desta época.
Assim em cada cidade do Baáxo-llmpério, ao lado do
antigo corpo dos cidadãos, encontralrnos o novo povo da Igreja
cristã, a plebs Christi; c, já que o primeiro perdia os seus
privilégios sociais e os seus direitos políticos, o segundo vem
pouco a pouco a tomar o seu lugar. E, paralelamente, o poder
e o prestígio do clero, da «ordem» (o rdo) cristã, aumentavam,
ao passo que os da «ordem» civil, a magistratura municipal,
■declinavam, de form a que o bispo acabou por se tom ar a per­
sonagem principal da cidade e o representante de toda a comu-

O Panegírico de Constantino, X V I.
58 A FORMAÇÃO DA EUROPA

ni'dade. O .episcopado era na realidade a instituição vital destes


novos tempos. O bispo dispunha na sua diocese dum poder
quase ilimitado; era rodeado duma atmosfera de prestígio
sobrenatural; mas ao miesmo tempo era uma autoridade essen-
cialimente popular visto que provinha da livre .escolha do povo.
Mais ainda, além do seu ascendente religioso e do seu pres­
tígio como representante do povo, possuía poderes de juris­
dição legalmente reconhecidos que exercia não somente sobre
o seu clero e os bens da Igreja, mas também, como juiz e árbi­
tro, em todos os casos em que a sua decisão era solicitada,
mesmo quando a questão já tinha sido levada perante o tri­
bunal secular. P or conseguinte, o episcopado era, n o Baixo-
-Império, o único poder em condições de contrabalançar a
tirania invasora da burocracia imperial e de lhe resistir. Os
mais arrogantes funcionários receavam tocar num bispo, e há
muitos exemplos de intervenções episcopais para a defesa dos
direitos não só dos indivíduos mas até dais cidades e das pro­
víncias.
A Igreja prestou também um auxílio material ao povo, j
vítima da miséria e do empobrecimento crescentes do Baixo-
-Império. As suas vastas dotações foram literalmente, nesta
época, o «património dos pobres»; nas grandes cidades como
Roma e Alexandria, o encargo de alimentar os pobres, a manu­
tenção dos orfanatos e dos hospitais .acabou por lhe incumbir ,
totalmente. :j Santo Ambrósio considerava uma vergonha o
facto de ter no altar vasos de ouro 'enquanto cativos esperavam
resgate; e, mais tarde, quando a Itália foi devagtada pela fome
e pelas invalsões bárbaras, diz-se que S. Gregório tomava tanto
•a sério as suas responsabilidades que, quando um pobre era
encontrado morto de fome em Roma, se abstinha de dizer missa
como se fosse ele em pessoa a causa do seu falecimento.
Esta actividade da Igreja explica a popularidade de que
gozava entre ,as massas e a influência pessoal dos seus bispos;
mas punha ao mesmo tempo novos problemas referentes às
suas relações com a sociedade secular. A Igreja tornara-se
tão indispensável ao bem-estar da sociedade, tinha ligações tão
A IGREJA CATÓLICA

estreitas com a ordem social existente, que corria o risco de


se" tornar parte integrante do Estado imperial. Orígenes, na
sua teoria da Igreja, mostramos esta ideia em germe O ).
Estabelece um paralelo muito minucioso entre a sociedade
cristã e a do Império. Compara a igreja local ao corpo dos
'cidadãos de cada cidade — E cclesia: assim como a segunda
tem a sua Boulé ou a sua Curia, os seus magistrados ou areon-
ties, também a Igreja cristã tem a sua ordo ou clero e o seu
chefe, o bispo. A assembleia de todas as igrejas, «o corpo
inteiro das sinagogas da Igreja», corresponde à união das cida­
des do Império. Desta forma, corno ele, é ela «o cosmos do
cosmos». Orígenes chega mesmo a encarar a conversão do
Império ao Cristianismo e a unificação das duas sociedades
numa universal «cidade de Deus».
No século IV a organização eclesiástica era modelada
na do Império. Não só cada cidade era sede dum bispado
cujos limites coincidiam com os do seu próprio território, mas
também a província civil era simultaneamente província ecle­
siástica sob a autoridade de um metropolita que residia na
sua Capital. No fim do século I V chegaram a fazer-se 'esforços
por criar uma circunscrição eclesiástica, ou «exareado», corres­
pondente à «diocese» civil ou grupo de províncias governado
por um «vigário» imperial.
Esta evolução tinha logicamente de ter corno resultado
fazer da capital do Império o centro da Igreja, e esta solução
podia parecer já preparada pelo primado tradicional da igreja
de Roma, a cidade imperial. Mas n o século IV já Roma não
ocupava a mesma posição única que nos séculos precedentes.
O centro do mundo meditarrânieo transportara-,se de novo
para o Oriente helenístico. A partir da reorganização do Im­
pério por Diocleciano, os imperadores deixaram de residir
em Roma e a importância da velha capital diminuía ràpida-

(1) Contra Celsum, III, 29, 30. Of. B a tiffo l, L’Église nais­
sante, <&. V II.
,0 A FORMAÇÃO DA EUROPA

menta sobretudo depois da fundação da nova, Constantinopla,


em 330.
Estas alterações afectaram também a situação da Igreja
de Roma. No Alto-Im pério Roma fora uma cidade interna­
cional e a língua da Igreja Romana era o grego. Mas, a partir
do século III, Rom'a e a Igreja romana começaram a latinizar-se
gradualmente i 1), enquanto o> Oriente e o Ocidente começavam
a divergir. Esta tendência centrífuga já é visível em meados
do século III, ,sob o ponto de vista eclesiástico, na oposição
feita ao papa Estêvão pelos bispos do Oriente, no tempo de
;S. Firmiliano, no que respeita à renovação do baptismo dos
heréticos; mas as divergências .acentuaram-sie ainda no século
seguinte. A partir de Oonstanti.no as igrejas do Oriente come­
çaram a pedir directrizes a Constantinopla de preferência a
Roma, e a corte imperial, mais que a Sé Apostólica, tornou-se
o princípio de unidade. Podia-se observar isto desde o fim do
reinado de Constantino. O seu sucessor, Consitâncio II, ante­
cipando-se no césairoi-papismo ao último período da história
bizantina, transformou a Igreja das províncias do Oriente
numa Igreja do Estado estreitamiente dependente do governo
imperial.
0 organismo essencial da política eclesiástica de Cons­
tantino e dos seus sucessores era o Concílio Geral. Não era,
como os concílios provinciais, miais antigamente estabelecidos,
uma instituição de origem puramente eclesiástica: devia a
sua existência ao poder imperial (2). 0 direito de o convocar
pertencia ao imperador; era. ,elle quem decidia das questões

.(*) Santo Hipólito foi o último cristão romano a escrever


em grego. Novaciano, em meaidos do século III, já escreve em laltim,
em bora o grego continue provàvel.mente a ser a língua litúrgica
■até ao século seguinte.
(2)i Harnack escreve (History of Dogma, t. I I I , p. 127 da
traid. inglesa) : «E m quaillquér dos casos era uma instituição política,
inventada pelo maior dos políticos, uma espada de dois gumes que
protegia, à custa da sua independência, a unidade da Igreja em
perigo».
A IGREJA CATÓLICA 61

a discutir e quem 'ratificava cam.’ a sua sanção imperial as


decisões tomadas. Mas, ainda que nas mãos de teólogos coroa­
dos, corno Constâincio ou Justiniano, o 'Concílio Geral se tornava
mais um instrumento de fiscalização da Igreja nas mãos do im­
perador do que um órgão de auto-governo eclesiástico, contudo,
era também uma instituição represelntaltiva; e os grandes concí­
lios ecuménicos forain as primeiras assembleias representativas
délibérantes que existiram ( x). Além disso as igrejas orientais
do século IV estavam longe de ser as servas passiva® dum
governo erastiano. Transbordavam duma vida espiritual e
intelectual independente, e, se a Igreja do Ocidente está em
'segundo lugar na história eclesiástica desse tempo, é princi­
palmente porque ,as grandes' forças religiosas estavam então
concentradas no Oriente.
f" Foi no Oriente que nasceu o movimento monástico, cria-'’
fdor dos ideais religiosos dominantes na nova época, o qual,;
!apesar da sua rápida difusão duma extremidade à outra do!
:Império, continuou a inspirar-se nos ermitas e nos ascetas do
deserto egíp cio!
F oi também no Oriente que nasceu a nova poesia litúr-
gica e o ciclo do ano Htúrgico, mais tarde seguido por toda
a Igrelja ( 2).
Foi no Oriente finalmente e sobretudo qne a tradição
cristã se uniu à filosofia grega ,e a doutrina cristã tomou corpo

(') iCfr. H . Geizer, Die Konzilien als Reichsparlamente,


du AusgewäM te Kleine Schriften (190'7). Geizer sustenta que os
concílios, na sua organização e na sua m aneira de proceder, segui­
ram o precedente estabelecido pelo senado antigo.
(2) Dom CaJbrot mostrou como o ciclo litúrgico saiu pouco
a pouco das cerimónias locais, associadas aos Lugares Santos, em
Jerusalém, no século IlV. A s cerimónias da Semana Santa em Roma
eram originàriaimente uma imitação deste ciclo local ; e o grupo
de igrejas situadas à volta de Latrão, em R om a— Santa-M aria
Maior, Santa Cruz de Jerusalém, Santa A nastácia, etc. — onde
®e celebravam estas cerimónias, era como que uma réplica dos san­
tuários dos Lugares Santos, em Jerusalém. Dom Calbrol, Les Ori­
gines Liturgiques, conf. V III.
62 A FORMAÇÃO DA EUROPA

num sistema teológico..científico. As bases tinham-lhe sido


•postas no siéculo I II sobretudo por Orígenes e pela escola cate-
qúétiea dos catequistas de Alexandria; no século seguinte foi a
■obra continuada por Euséhio na Palestina, Atanásio em A le­
xandria e finalmente pelos três grandes capadócios gregos,
'S. Basílio, S. Gregório de Nazianzo e S. Gregório de Nissa.
Graças a eles a Igreja foi capaz de nos dar uma exposição
exacta. e profunda da doutrina cristã e evitou o duplo perigo
dum tradicionalismo sem inteligência ou dum superficial racio-
nalismo cristão como alquele de que o Arianismo nos oferece
um exemplo.
É verdade que estes progressos teológicos eram acompa­
nhados .de violentas controvérsias e que o intelectualismo da
teologia grega muitas vezes degenerara numa metafísica que
acabava por dividir um cabelo em quatro, o que até certo
ponto justifica a observação de Duchesne de que a Igreja do
Oriente teria sido mais inspirada se filosofasse menos acerca
de questões de ordem especulativa respeitantes à natureza
divina e se ocupasse mais do dever de se conservar unida ( x).
Mas o desenvolvimento duma teologia científica não foi nem
a única nem mesmo a principal causa da heresia e do cisma,
e, sem esse desenvolvimento, toda a vida intelectual do Cris­
tianismo teria sido incomiensuràvelmente mais pobre.
Para avaliarmos quanto o Ocidente deve ao - Oriente
basta-nos medir o abismo que separa Santo Agostinho de S. Ci-
priano. Ambos são Ocidentais e Africanos, ambos devem muito
à antiga tradição latina de Tertuliano; mais, ao passo que
Cipriano nunca se entrega às especulações filosóficas nem
mesmo é um teólogo no sentido científico da palavra, Agos-

f 1)! «Que l ’on eût été bien inspiré, si au lieu de tant philo­
sophier sur la term inologie, d’opposer l ’union physique à l’union
hypostatique, les deux natures qui ne font qu’une à l’unique hypos-
tase qui régit lés deux natures, on se fû t un peu plus préooupé
de choses moins sublimes et bien autrement vitales. On alamhi-
quait l’unité du Christ, un m ystère; on sacrifiait l ’unité de l’Église,
un devoir». Duchesne, Églises Sépararées, jp. 67.
A IGREJA CATÓLICA 63

linho não cede em profundidade filosófica a nenhum dos Par


iIits gregos. É, como diz Hurnaçk, um Orígenes e um Atanásio
muna só pessoa e até alguma coisa mais.
Este vasto progresso não se explica por um desenvolvi-
nn*nte espontâneo do cristianismo ocidental, mesmo tendo em
ronla o soberano génio pessoal de Agostinho. A teologia oci­
dental, no decorrer do século que se seguiu a Tertuliano, tinha
retrogradado e autores como A m ób io e 'Oomodiamo pouco
conheciam de teologia e limitavam-se a uma tradição secular (*).
■Mas produziu-se uma; alteração na segunda metade do
rieeulo TV com a introdução no Ocidente da teologia grega.
<>s autores desta transformação foram os Padres latinos, Hilá­
rio de Poitiers, Ambrósio de Milão, Jerónimo, R ufino de Alqui­
le m, e Victorino, o retórico convertido. Na mesma época S. Mar-
linho de Tours e Oassiano de Marselha, ambos originários das
provinciais do Danúbio, trouxeram para o Ocidente o ideal
imvo do ascetismo orientai! e do monaqnismo ( 2).
Os Padres latinos, se exoeptuarmos Santo Agostinho,
11:10 eram nem profundos metafísicos nem mesmo pensadores
originais. Em teologia eram alunos dos gregos e a sna activi-
d;ide literária empregou-se sobretudo a pôr ’ao alcance do
ui lindo latino as riquezas intelectuais1 acumuladas pela cris-
Imidade oriental. Mas não deixavam ao mesmo tempo de con­
tinuar a ser os herdeiros dais tradições ocidentais e uniam ao
Mrii saber novamente adquirido a força moral e o sentido da
disciplina que tinham desde sempre caracterizado a Igreja
latina. 'Subordina;vam sempre o interesse que lhes inspiravam,
os problemas teológicos à sua fidelidade à tradição e à causa
da. unidade católica. Acrescentemos que, não sendo os cristãos
/nas províncias ocidentais senão uma fraca minoria da popula­

1 (*) O facto de o próprio Santo H ilário reconhecer que


j;unais ouvira fa la r da fé de Niceia antes do seu exílio em 366,
í.mostra bem quão atrasado e isolado estava o Ocidente no campo
llcológico. C fr. 0 De Synodis, 91.
í i(2) Podemos notar também a introdução da poesia litúrgica
[no Ocidente graças a Santo H ilário e Santo Ambrósio.
64 A IGREJA CATÓLICA

ção, por este .facto esteva a1Igreja monos exposta às dissensões


intestinas e conservava no ponto de vista 'espiritual a mesma
independência que antes de Constantino.
Foi o que se viu nitidamente quando da controvérsia
ariana. Porque o Arianismo apareceu no Ocidente muito menos
como um perigo imíteirno para a ortodoxia cristã do que como
um ataque vindo de fora contra a liberdade espiritual da Igreja.
A atitude ocidental está admiravelmente definida na adver­
tência dirigida por Hosius, o grande bispo de Córdova, ao
imperador Constando H :

«E u fui um confessor no tempo' da perseguição mo­


vida por Maximiano, vosso 'avô, contra a Igreja. Se a
quereis renovar, encontrar-me-eis disposto a tudo sofrer
de preferência a trair a verdade e a derramar sangue
inocente... Lembrai-vos que sois um mortal. Temei o
dia do Juízo... Não vos queirais imiscuir na® questões
eclesiásticas; não queirais prescrever-nos coisa alguma
acerca destas. Aprendei antes de nós o que deveis crer.
Deu-vos Deus o governo do Império e a nós o da Igreja.
Todo o que ousa atentar contra a vossa autoridade opõe-se
à ordem de Deus. Da mesma forma acautelai-vos de
vos tornardes culpado dum grande crime, usurpando a
autoridade da Igreja. Foi-nos ordenado que déssemos
a César o que é de 'César e a Deus o que é de D eus: da
mesma forma que não nos é permitido atribuir a nós a
autoridade imperial assim também vós não tendes poder
no ministério das coisas santas» O .

Santo Hilário de Poitiers vai mais longe e ataca o impe­


rador com toldos os recursos do seu estilo clássico:

O Carta transcrita em grego por Atanásio na sua His­


tória dos Arianos, cap. 44. Segui a trad. de Tillem ont, Mémoires,
t. vii, ais.
A IGREJA CATÓLICA 65

«Nós hoje combatemos contra i m perseguidor astu­


cioso, um inimigo insinuante, contra Constâneio o An-
tieristo. Não manda que vos fustiguem as costas, mas
afaga-vos o ventre; não vos condena para que vivais mas
cumula-vos para que morrais; em vez de lançar as pes­
soas à liberdade da prisão, honra-as reservando-lhes a
escravatura do palácio...; não lhes corta a cabeça com
o gládio, mas estrangula-lhes a alma com o seu ouro» ( 1).

A linguagem de Lucifer de Cagliari ainda é mais incisiva


até o® títulos dos seus escritos — «Dos reis apóstatas», «Da
cecssidáde de não condescender com os que pecam contra
teus», ou «Do dever do martírio» — denotam para com o
>oder civil um espírito de hostilidade e de desafio que lembra
Vrtuliano.
A Igreja do Ocidente estava pois muito longe de depen-
Ict do Estado-; encontrava-se antes em perigo de ficar sepa-
;ida para sempre do Império e das tradições da civilização
11 liga, tal qual como a Igreja donatista em Á frica ou a Igreja
lo Egipto depois do século V.
Este perigo foi evitado não só pela volta do Império
'o Ocidente à ortodoxia sob a dinastia de Valentiniano como
ainbém pela influência de Santo Ambrósio e pelos novos pro-
i-ossos da cultura cristã. Em Santo Ambrósio sobretudo-, a
greja ocidental encontrou um chefe capaz de manter os seus
ir ei tois tão enèrgicamente como Santo Hilário, ao mesmo
‘inpo que os imperadores tinham nele um amigo leal e o
mpério um servidor dedicado.
Ambrósio era efeietivamemte um autêntico Romano, nas-
(lo e educado nas tradições da administração imperial;
■ouxe para o serviço da Igreja o sentido do interesse público
o apego ao dever que caracterizava o magistrado romano,
sua dedicação ao cristianismo em nada afrouxou a sua leal-
ide para com Roma porque acreditava que a verdadeira fe

O Contra Constantium wvperatorem, 5.


5
66 A FORMAÇÃO DA EUROPA

seria para o Império uma fonte de vigor novo e que, assim


como a Igreja tinha triunfado dos pagãos, também o Imperador
cristão triunfaria dos bárbaros.

«V a i — escrevia ele a Graciano na véspera da sua


expedição contra os Godos — vai protegido pelo escudo
da fé e ornado com o gládio do Espírito; vai para a vitó­
ria prometida desde há muito tempo e predita nos orá-
’culos de Deus... Não são as águias militares nem o voo
das aves que guiam a vanguarda do teu exército, mas o
teu Nome, Senhor Jesus, e o teu culto. A Itália não é o
pais dios incrédulos; é o país donde partem os confesso­
res: esta Itália, tantas vezes tentada e jamais pervertida,
esta Itália que Vossa Majestade tem, desde há muito, de­
fendido e ainda recentemente salvou da barbárie» 0 ) .

Santo Ambrósio foi o primeiro no Ocidente, como Eusé-


bio de Oesareia o tinha sido no Oriente, a formular o ideal
de um Estado cristão. Mas difere profundamente de Eusébio
na concepção que faz dos deveres dum príncipe cristão e das
relações entre a Igreja e o Estado. A atitude de Eusébio em
relação a 'Constantino é já a de um bispo da corte de Bizâncio;
nimba a figura do imperador com uma auréola de autoridade
sobrenatural, o que sempre caracterizou as monarquias teocrá-
ticas do Oriente antigo. Mais Ambrósio está dependente de
tradições diferentes. Detém-se a meio caminho de duas con­
cepções: uma, toda clássica, da responsabilidade do cidadão,
outra, toda medieval, da supremacia do poder espiritual. Tem
qualquer coisa do magistrado romano e qualquer coisa do pon­
tífice da Idade Média. A seus olhos a lei da Ig r e ja — o jus
sacerdotale — não respeita, na sua aplicação, senão aos magis­
trados da Igreja, os bispos, a cuja autoridade até o próprio
imperador está sujeito. «O imperador, escreve, está na Igreja
e não acima dela»; e ainda: «em matéria de fé é aos bispos

C) De fide, II, X V I, 136 e M 2.


A IGREJA CATÓLICA 67

que pertence julgar os imperadores cristãos e não aos impera­


dores julgar os bispos» (1).
Da mesma forma, ao passo que Eusiéfoio se dirige a Cons-
tantino como a personagem sagrada, elevada acima de todo
o juízo humano (2), Amibrósio não hesita em fazer admoesta­
ções ao grande Teodósio e a pedir-lhe conta das suas injustiças:
«Tu és um homem; a tentação desceu a ti. Triunfa dela. P or­
que o pecado só com as lágrimas e o arrependimento é que
pode ser apagado» (3).
iSanto Amibrósio exerceu uma influência duradoira na
Igreja do Ocidente porque aljudou a reforçar a aliança entre
a Igreja e o Império, ao mesmo tempo que mantinha a con­
cepção, tradicional no Ocidente, da autonomia da Igreja. No
Oriente a Igreja era constantemente forçada, para salvaguar­
dar a sua unidade, a recorrer ao imperador e aos concílios
que ele convocava. No Ocidente o sistema conciliar nunca
atingiu semelhante importância e era a Sé de Roma que a
Igreja considerava como o centro da unidade e da ordem ecle­
siásticas. O concílio de Sandioa, em 343, e o imperador Gra-
ciano, em 378, bem tentaram definir a jurisdição do papado,
mas estas tentativas pouca importância tiveram em compara­
ção d a . confiança, tradicional no Ocidente, nas prerrogativas
apostólicas da Sé Romana e na «Romana fides», norma da orto­
doxia católica. No século V, S. Leão acabou por desenvolver
'esta ideia. Unia as convicções arnfbr osi amas ace rca da missão(*)

(*) (Santo Amibrósio, E'p., XXIiV , 4 e 5.


(2) Y . todo o seu Pwiegírico de Constcmtino. Escreve por
exemplo: «Ó vitorioso e poderoso Comstantino, deixa-tae expor
(perante a tua pessoa alguns dos mistérios da Sua santa verdade,
não porlque eu julgue instruir-te ou descobrir-te os segredos mara­
vilhosos que Ele próprio — menos por acção ou obra do homem
do que pelo nosso comum Salvador e a frequente luz da Sua divina
presença — desde há muito revelou e desvendou a teus olhos, mas
tna esperança de guiar aqueles que não sabem à luz da fé e de desen­
rolar perante os que as não conhecem as causas e os motivos das
tuas piedosas acções». Cap. XI.
(3) 'Santo Amibrósio, Cartas, L I, 11.
68 A FORMAÇÃO DA EUROPA

providencial do Império Romano à doutrina tradicional do


primado da Sé Apostólica; enquanto, no princípio do mesmo
século, Santo Agostinho completava a maturação da teologia
ocidental e dotava a Igreja dum sistema de pensamento que
devia formar o capital intelectual da cristandade do Ocidente
para mais de mil anos.
Assim é que, quando o Império do Ocidente baqueWj
perante os bárbaros, a Igreja não foi envolvida no desastre. I
É ique ela formava uma ordem autónoma que possuía o\
seu princípio de unidalde e a sua organização própria como
sociedade. Estava em condições de se tornar ao mesmo tempo
a herdeira e a representante da velha civilização, romana e
o preoeptor e o guia do® novos povos bárbaros.. Já .assim n ã o'
acontecia no Oriente. A Igreja bizantina uniu-se tão intima­
mente ao Império bizantino 'que ambos não formavam senão
um único organismo social cujo fraocionamento acarretaria
a destruição. Tudo o que .ameaçava a integridade do Império,
ameaçava ,a integridade da Igreja. E assim foi que enquanto
o Império d o Oriente resistia aos ataques bárbaros, a Igreja
do Oriente perdia por isso a sua unidade por causa das reacções
das nacionalidades orientais contra a centralização eclesiástica
do Estado (bizantino. O sentimento nacionalista tomou entre
os Orientais uma form a puraimente religiosa e o Estado acabou
por ser devorado pela Igreja.
Todavia, a divergência existente desde o século V entre
as duas metades do Império, tanto do ponto de vista religioso
corno do ponto de vista político, não levou a uma separação
completa. O papado conservou no Oriente uma certa primazia.
'Como diz Harnaek, «mesmo para os orientais, o bispo de Roma
tinha um não sei quê de particular que faltava aos outros,
uma auréola que lhe conferia uma autoridade especial» (*)•
Por sua vez, a Igreja ocidental olhava-se a si própria, num

O History of Dogma (trad. in gl.), II, 226. Acrescenta ele:


«Contudo esta auréola não era sulficientemente ampla para assegu­
rar ao seu benelficiário uma autoridade incontestável; pode-se até
A IGREJA CATÓLICA 69

certo sentido, como a Igreja do Império e continuava a reco­


nhecer como ecuménicos os concílios gerais convocados pelo
imperador de Bizâncio.
Estes traços caracterizam todo o período que vamos
estudar. Foi somente no século X I que se quebrou o laço entre
o Ocidente e o Oriente; e foi somente então que a cristandade
dos países d o Ocidente apareceu como um todo independente,
separado do resto do mundo romano antigo pela civilização e
pela religião.

(dizer que era tão pouco nítida que era possível1 desprezá-la sem
«violar o espírito da Igreja universal». Os historiadores eclesiás­
ticos gregos, Sócrates e Sozomeno, ambos leigos e homens de leis,
são, como o observa Harnack (ibid., n. 2 ), testemunhas imparciais
do lugar reservado à sé de Roma por Constantinopla no século V .
Ofr. B atiffol, Le Siège apostolique, p. 411-416.
capítulo iií

A TRADIÇÃO CLÁSSICA
E O CRISTIANISMO
S t ..
E a Europa deve a sua existência política ao> Império
Romano e a sua unidade espiritual à Igreja Católica, é
devedora da sua cultura intelectual a um terceiro faictor — a
tradição clássica — que é também um dos elementos funda­
mentais da uni da d e eu rop ei a. j
A dizer verdade, é-nos difícil ter consciência da exten­
são da nossa dívida porque a cultura ocidental fo i de tal forma
impregnada de tradição clássica que já não percebemos na
sua plenitude a influência desta tradição em nossos espíritos.
Dum extremo ao outro da história europeia foi ela o funda­
mento estável das letras e do pensamento ocidentais. D ifun­
dida a princípio pela civilização cosmoplita d o Império Ro­
mano, sobreviveu à queda de Roma e ficou durante a Idade
Média como parte integrante na herança intelectual da Igreja
cristã; no Renascimento surgiu com um renovado vigor e tor­
nou-se a inspiradora e o modelo das jovens literaturas euro­
peias ao mesmo tempo que a base de toda a educação profana.
Desta forma, durante perto de dois milénios, a Europa
foi instruída na mesma escola, pêlos mesmos mestres, de ma­
neira que nas escolas do século X I X os estudantes leram os
mesmos livros que os Romanos, seus predecessores, dezoito
séculos antes, e formaram os seus espíritos segundo os mesmos
modelos.
É impossível exagerar a influência cumulativa tão antiga
e contínua da tradição; não tem equivalente na história, salvo
A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 71

a tradição confueiana rua 'China, e é curioso pensar que ambas


parecem, finalmente, em perigo de desaparecer no mesmo
momento e sob a influência das mesmas forças.
Mas a tradição clássica da Europa difere da da China
num ponto importante: não é de origem, autóctone; embora
intimamente ligada com a tradição, Roma não foi 'quem a criou
mas sim quem a transmitiu do mundo helénico, sua pátria de
origem, ao Ocidente. A tradição clássica não é, na realidade,
nem mais nem menos que o helenismo, e a adaptação magis­
tral que Roma souibe dele fazer às necessidades intelectuais
e às formas de linguagem do ocidente é talvez o maior de todos
os serviços que prestou ao mundo. A língua latina tornou-se,
graças a essa adaptação, não somente um meio perfeito de
expressão do pensamento mas também ’ a arca que salvou as
sementes da civilização grega do dilúvio da barbárie. É isto
que faz com que os grandes autores clássicos do século I antes
de Cristo, particularmente Cícero, Vergílio1, Tito Lívio e Horá-
cio, tenham, para a história da Europa, uma importância que
ultrapassa em muito o seu valor literário intrínseco, por muito
'considerável que seja, porque são os pais de toda a tradição
literária ocidental e o edifício da cultura europeia sobre eles
repousa.
Precisamente no momento em que Roma conseguia esten­
der o seu Império até a.o mundo helenístieo, foi assegurado o
reino do pensamento grego sobre os espíritos ocidentais por
intermédio da literatura latina da época de Augusto, e a in­
fluência do helenismo continuou a crescer e a expandir-se
durante os dois primeiros séculos do Império Romano. Dum
lado, operou-se em todo o mundo grego nos séculos I e II um
renascimento da tradição helénica sob a sua forma puramente
■clássica;, do outro lado, a form a latina do helenismo, já plena­
mente desenvolvida no século I antes de Cristo, sobretudo
na obra de Cícero, alcançou as províncias do Ocidente e veio
a ser o fundamento da sua cultura. A instrução clássica foi
largamente espalhada por todo o Império, e não só grandes
cidades como Roma, Antioquia, Alexandria e Cartagio, mas
72 A FORMAÇÃO DA EUROPA

também cidades provineianais como Maidaura na África, Autum


e Bordéus na Gália, Córdova na Espanha, Gaza e Beirute na
'Síria, tornaram-se centros escolares duma aetividade intensa.
'Juvenal fala desta universal mania de instrução que atingia os
próprios 'bárbaros.

Nunc totus Graias, nostrasique habet orbis Athenas,


Galia causidicois docuit facunda Britannos,
De conduicendo loquitur jam rhetore Thule (x).

Esta .cultura era puramente literária; as ciências ocupa­


vam um pequeno lugar, exoapto em Alexandria. O programa
da moda limitava-se à retórica conforme as ideias lançadas
por Górgias e pelos sofistals do século V antes de Cristo, depois
desenvolvidas nas escolas do mundo belenísitico, e retórico bem
sucedido tornava-se o ídolo do público educado. Mas a retórica
abarcava muito mais coisas do que as que compreendemos
neste nome ( 2). E ra o ponto culminante de todo o ciclo do
que se chamava as «artes liberais»: Aritmética, Geometria,
Astronomia, Música, Gramática, Retórica e Dialéctica, avatares
do quadrivium e do trivium da Idade Média. Fora mesmo
deste vasto ideal da arte oratória que Cícero e Tácito exal­
taram, puros retóricos como Quintiliano ou Aristides estavam(*)

(*)i Juvenal, Satyrae, X V , 110-2: «A gora, encontra-se por


tolda a parte a Atena dos Gregos e a dos Romanos; a eloquência
dos Gauleses formou oradores Bretões; e até a Islândia fa la em
contratar um retórico».
(2) Este ideal duma educação liberal data dos próprios
sofistas, principalmente de Hipias de E leia; mas é somente no
tempo de Marciano Capella e dos escritores do Baixo-Império que a
número das artes liberais se fix a definitivamente. A sub-divisão
em trivium e quadrivium data de mais tarde e é provavelmente
devida ao renascimento earolíngio. Alem disso a ideia medieval
das «artes liberais» concebidas como essencialmente propedêuticas,
como uma espécie de preparação para a teologia, é muito antiga:
remonta a Possidónio e a Philon, que a transmitiram de Alexandria.
CIfr. Nordem, Die antike Kunstprosa, p. 670-679.
A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 73

longe de ser vulgares pedantes. Tinham em mira alguma


coisa de mais compreensivo do que os estudas escolares técni­
c o s — uma cultura literária extensa que não é outra coisa
senão humanismo. E, de facto, o ideal humanista que tem
dominado a educação moderna desde o Renascimento, deve
a sua existência ao deliberado ressurgimento do velho exercício
retórico. Mas este, mesmo na Idade Média, tinha-se conservado
muito mais vivo do que geralmente se julga; não há realmente
período da história europeia em que a sua influência não seja
sensível. É a esta tradição que se liga o tipo do publicista, do
homem de letras que se dirige a um extenso publico culto, tipo
quase desconhecido nas outras civilizações. Os seus mais ilus­
tres .representantes, um Alcuíno, um João de Sailisbury, um
Petrarca, um Erasmo, um Bodin, um Gróeio, um Vóltaire,
foram todos sucessores1e discípulos dos antigos retóricos. E este
é um só dos aspectos desta; tradição clássica que tem sido uma
das grandes forças criadoras da civilização europeia.
Contudo, no déculo IY a supremacia desta tradição pa­
receu gravemente ameaçada pela vitória da nova religião.
0 Cristianismo estava fundado numa tradição oriental que
nada tinha de comum com o helenismo; o seu espírito e o seu
ideal estavam em completo antagonismo com o dos retóricos
e dos escritores pagãos de quem os cristãos em nada se reco­
nheciam devedores. Os cristãos tinham os seus clássicos priva­
tiv o s — as Escrituras — tão radicalmente diferentes da lite­
ratura pagã, na sua forma e no seu espírito, que a princípio
nenhuma possibilidade existia de compreensão mútua. «Que
há de comum entre Atenas e Jerusalém?» escreve Tertuliano,
«em que é que a Academia e a Igreja se podem entender?»
O próprio S. Paulo desinteressava-se formalmente de toda a
pretensão às graças do estilo e à «sabedoria» da filosofia secular.

«Onde está o sábio? Onde 'está o escritor? Onde está


o disputador deste século? Não convenceu Bens de lou­
cura a sabedoria do mundo? Os Judeus pedem milagres
e os Gregos buscam a sabedoria: nós porém pregamos a
n A FORMAÇAO DA EUROPA

Cristo crucificado, escândalo para os Judeus e loucura


para os pagãos, mas omnipotência de Deus- e sabedoria
de Deus para os que são chamados quer Judeus quer
’Gregos» ( x).

Assim, o Cristianismo dirigia-se não ao espírito pedante


e estéril da sociedade culta, mas às necessidades fundamentais
da alma humana e à experiência religiosa do homem vulgar.
Recorda-se esta passagem de Tertuliano:

«Comparece, ó alma, e dá testemunho; mas não como


te poliram as escolas, formaram as bibliotecas, vomi­
tando a ciência com que te atulharam as Academias ate­
nienses ou o Pórtico. Dirijo-m e a ti, alma simples e rude,
ignorante e iletrada, tal como te possuem aqueles que só
a tá possuem, tal como vens das encruzilhadas, da praça
pública ou da oficina» ( 2).

Efeetiv.am.ente os primeiros cristãos foram na maioria


pessoas de pouca instrução e de cultura reduzida. Nas cidades,
pertenciam sobretudo à classe mais humilde ou ao grau in fe­
rior da classe média; no® campos, vinham habituailmente da
classe campesina que a cultura clássica a bem dizer não tinha
tocado, e que conservava a sua língua originária, siríaca, copta
ou púnica. Em tais condições é muito natural que os repre­
sentantes oficiais da tradição clássica tenham olhado o Cris­
tianismo como o inimigo da civilização e tenham, como o im­
perador Juliano ou Porfírio, identificado a causa do hele-
nismo à da velha religião. A «aurea mediocritas» do clás­
sico poucas afinidades podia ter com o fanatismo dos mártires
e dos monges do Deserto que condenavam, todos o® encantos
da vida e anunciavam o próximo Juízo de toda a civilização
secular. Máximo de Madaura, o retórico pagão que se eorres-(*)

(*) I Aos Coríntios, I, 20-07.


(2) Tertuliano, De testimonio animae, I.
A TRADIÇÃO CLÁSSICA É O CRISTIANISMO tS

piondia com Santo Agostinho, faia do Cristianismo como duma


reviviscêneia da barbárie oriental, como dum esforço para
substituir o culto das graciosas figuras das divindades clássicas
pelo de criminosos condenados à morte e portadores de horro­
rosos nomes púnicas ( x).
E contudo, ininterruptamente, uma corrente de assimi­
lação, ignorada até mesmo daqueles que dirigiam os espíritos,
preparava a Igreja para receber a tradição clássica e para
formar uma nova civilização cristã. Desde o século II que,
doutos convertidos como Justino Mártir e Atenágoras, come­
çaram .a dirigir-se ao público culto, usando da sua própria
língua, e tentaram mostrar que as doutrinas cristãs estavam
de harmonia com o ideal racional das antigas filosofias. A mais
notável das suas tentativas é o Octavius de Minúcia Félix, diá­
logo ciceronia.no, ao mesmo tempo clássico na form a e na ins­
piração. E embora escrevendo com um espírito totalmente
diferente e rompendo com a tradição clássica, o maior dos
apologistas latinos — Tertuliano — nem por isso deixou de
continuar .a ser um retórico até à medula dos ossos, e pôs
os métodos do advogado romano ao serviço da nova religião.
Esta tendência para assimilar o pensamento e a cultura
helénicas, sempre visível nos .apologistas, foi notável sobretudo
na escola de Alexandria, no século III. Oríigenes, e já antes
Clemente, seu predecessor, foram os primeiros a conceber o
ideal medieval duma jerarquia das ciências coroada pela teolo­
gia cristã. Os gregos tinham tratado as artes e as ciências
corno propedêutica da retórica e da filosofia; Orígenes pro­
punha-se, de forma análoga, fazer da própria filosofia uma
propedêutica da teologia :

«O que os filhos dos filósofos dizem da geometria,


da música, da gramática, da retórica e da astronomia
—’que elas são as servas da filosofia — podemo-lo nós(*)

(*) Santo Agostinho, Epi&t. XiVI.


76 A ÏORMAÇÂO DA EUROPA

dizer da própria filosofia nas suas relações eom a teo­


logia» (1).

Ensinou, segundo canta o seu discípulo Grego rio o Tauma­


turgo, que «devemos ponderar e examinar com toda a atenção
todos os escritos dos Antigos, quer filósofos quer poetas, sem
nada exceptuar nem rejeitar», salvo os escritos dos aténs,
«e ouvi-los todos com imparcialidade» (2). 0 resultado deste
programa foi uma vasta síntese do Cristianismo e do' pensa­
mento helénico, cuja influência foi profunda sobre todo- o
desenvolvimento posterior da teologia, embora tenha provo­
cado a princípio uma vivíssima oposição, com o fundamento de
que seria incompatível eom a ortodoxia tradicional, corno, em
mais de um asptecto, ela o era de facto.
Todavia é importante notar que esta atitude de oposição
a Orígenes não implicava necessariamente uma hostilidade
especial para eom a cultura helénica, contanto que distinta
da filosofia helénica: nos dois campos se encontravam hele-
nistas, e o principal adversário de Orígenes, Metódio de Olimpo,
ultrapassou-o na sua fidelidade à tradição clássica ( 3).
Desta forma, nos inícios do século IV , a cultura clássica
tinha conquistado no interior da Igreja um sólido ponto de
apoio, e o estabelecimento do Império cristão foi efeetivamente
seguido dum renascimento literário importantíssimo'. Se os
chefes, Himmérius, Themistius e Libanius, os grandes retóricos
do século IV, eram pagãos, não lhes faltaram discípulos e imi­
tadores entre os cristãos que, mesmo sob o ponto de vista pura­
mente literário, muitas vezes ultrapassaram os seus mestres.
Os Padres do século IV , tanto ocidentais como orientais, foram
essencialmente retóricos cristãos. Participavam da cultura e
das tradições dos seus rivais pagãos, mas, diferentemente destes
últimos, tinham deixado de empregar a sua arte num trabalho

O Philocalia, X I I I , 1.
(2) Gregório o Taumaturgo, Panegírico de Orígenes, III,
(3) A sua obra principal— o Banqu&te das dez virgens —
é tuna cuidada imitação dum diálogo platónico.
A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 77

sem finalidade sobre temas gastos, pana fazerem dela o ins­


trumento duma nova força espiritual. Já três séculos antes,
Tácito tinha notado que a retórica se tornara vazia e irreal
porque já não desempenhava qualquer papel vital na cena
política: «A igrande oratória é como o fogo: é preciso juntar
materiais que alimentem a sua chama e abaná-lo também;
tanto brilha quanto queima» ( 1). Por intermédio da Igreja
vira-se a retórica reintegralda na vida social: em vez da antiga
ecclesia da cidade grega, adaptara para quadro a nova igreja
do povo cristão. Os maiores problemas eram novamente discu­
tidos com a mais intensa paixão perante um público perten­
cente a todas as classes, e via-ise, por exemplo, João Crisóstomo
pronunciar :as suas grandes homilias perante o povo de Antio-
quia no momento em que estava em suspenso o destino da
cidade. A s mais abstrusas questões teológicas constituíram
para o homem da rua matéria de ardente interesse; e quem
pudesse tratá-las com eloquência e habilidade, quer orálmente
quer por escrito, tinha assegurada uma influência quase uni­
versal.
Bem entendido que isto é verdade sobretudo em relação
ao mundo de língua grega, ao mundo de Atanásio e de Ario,
de Basílio e de Euinómio, de Cirilo e Teodoreto; mas nem por
isso a tradição retórica era miemos poderosa no Ocidente latino,
posto que era tradição ainda mais do magistrado e do orador ro­
manos que do sofista ou do demagogo helénico. Oertamemte que
o mundo grego conservava a sua hegemonia intelectual: Eusébio
de Cesarea, S. Basílio e os dois Gregórios— o de Nissa e o do
Nazianzo—•possuíam uma cultura literária e filosófica mais
extensa e mais avançada que nenhum dos seus contemporâneos
do Ocidente. Eram os guardiões das tradições da escola de
Orígenes, ao passo que os Ocidentais tinham como 'herança,
numa certa medida, o espírito autoritário e legalista de Ter-
tuliano e de Cipriano. Mas a aparição' da nova cultura cristã
no século IV , contribuiu mais uma vez para aproximar o

C1) Dialogus de Claris oratoribus, SO.


78 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Oriente do Ocidente. (Santo Ambrósia alimentara-se de lite­


ratura grega e deve muito mais aos escritos dos Padres gregos
do que a Tertuliano e a Cipriano, que ele ignora por completo.
E quanto a S. Jerónimo, adquiriu ele a sua ciência teológica
no Oriente quando foi aluno de S. Gregório de Nazianzo e de
Apdlinário de Laodiceia e estudou Orígenes e Euséfbio.
Além disso a tendência manifestada pela Igreja para
pactuar com a cultura secular e para assimilar a literatura
e o pensamento clássicos manifesta-se tanto no Ocidente como
no Oriente. Santo Ambrósio ilustra os seus sermões com cita­
ções de Vergílio e de Horácio; toma Cícero por modelo e guia
na sua mais célebre obra, o De afficiis ministroruni. A tradição
cieeroniana forma uma porção essencial da nova cultura cristã
e a sua influência faz-se sentir na literatura patrística desde
a época de Lactâncio até à de Santo Agostinho. É verdade
que S. Jerónimo se exprime em termos enérgicos contra os
perigos da literatura pagã e a famosa passagem em que ele
se vê em sonhos condenado porque «ciceroniano e não cristão»,
é citada muitas vezes: como exemplo da hostilidade do Cristia­
nismo para com a cultura, clássica (x). Mas a verdadeira signi­
ficação deste episódio deve-se procurar no apego do autor à
literatura clássica, apego tão vivo que levava à tentação. Se
S. Jerónimo não tivesse reagido contra ela, poderia vir a ser
um retórico e nada mais, e neste caso, a Idade Média teria
perdido o maior dos seus livros clássicos, a Vulgata. Porque,
na sua tradução da Bíblia, S. Jerónimo nunca procurou con­
formar-se com as regras ciceronianas, mas permitiu que o
esplendor prim itivo do original hebraico se reflectisse no seu
estilo próprio, o que provocou o enriquecimento da língua
latina com uma nova série de expressões. Mas, apesar dos seus
esforços para moderar o seu próprio ardor, nunca se libertou
da Viva admiração pelo maior dos retóricos — «Tullius qui in
aree éleiqiientiae iromanaie stetit rex oraboirum et latina© linguae *S
.

C) lEpist. X X I I . Cf. Rufino, Apologia, II, 6, e a resposta de


S. Jerónimo, Apologia, I, 30-Í31; III, 32.
A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 79

illustraítor» (x). R ufino conta, não sem malícia, que, nos seus
últimos anos, Jerónimo pagava mais caco aos seus copistas
pela transcrição dos diálogos de Cícero do que pela das obras
eclesiásticas ( 2), e que. ensinava às crianças de Belém a ler
'Virgílio e os poetais. Na realidade, longe de ser um inimigo
da cultura clássica, é, de todos os Padres, o mais imbuído de
literatura pagã e o mais profundam ente influenciado pela tra­
dição dos retóricos. Mas a sua intolerância e o seu espírito
combativo, que escandalizaram tantos críticos modernos, não
procediam do fanatismo dum 'beato, mas da irascibilidade dum
homem de estudo, e muitas vezes as suas «vendettas» literárias
são curiosamente semelhantes às dos humanistas do Renasci­
mento, que estão também em o número dos seus mais calorosos
admiradores ( 3).
Nenhuma influência, nem mesmo a de Santo Agostinho,
ultrapassou a dele, que foi todavia a dum erudito e não a dum
pensador ou a dum teólogo. Nele se encontraram as duas
grandes correntes espirituais, a dos clássicos e a da Bíblia

O Prefácio das Hebmicae questiones in Genesim, citado


era Cavallera, Saint Jerôme, apêndice P., p. 105. «'Se um Cícero,
escreve ainda, não pôde escapar aos críticos, como surpreender-me
ao ver o indigno porco 'grunhir à vista dum miserável indivíduo
como eu !».
(2) Rufino, Apologia, II, 8.
(*)' E'rasmo fa la de S. Jerónimo como «daquele homem
celeste, que de todos os cristãos, foi, sem dúvida, o mais erudito
e o mais eloquente... Quantos vestígios da antiguidade, da litera­
tura grega e da história, há nas suas obras! «e depois que estilo!
que domínio da língua! Não só deixa atrás de si todos os outros
autores cristãos mas parece rivalizar com o próprio Cícero».
Ep. 1134, trad. Nichols ( = m .° 141 da ed. A llen).
Como os humanistas, S. Jerónimo prende ao pelourinho os
seus adversários, cobrindo-os de alcunhas burlescas tiradas da lite­
ratura clássica. N a sua pena, Rulfino é Lucins Lavinius ou Cal-
purnius Lanarins (de Salústio), Pelágio e os seus defensores são
Catatina e Lentulus. N a famosa controvérsia que teve com Poggio,
Francesco Filelfo invoca o caso de S. Jerónimo e Rufino para jus­
tificar a violência das suas investidas. C f. as suas cartas publicadas
em apêndice ao Poggins Fiorentinus de W alser, n.° 40 e 42.
80 A FORMAÇÃO DA EUROPA

e dele emanaram de novo, confundidas, para fecundar a cul­


tura da Idade Média.
'O surgir duma nova poesia cristã permite melhor ainda
discernir a influência do classicismo. No Oriente, pondo de
parte o caso de S. Gregório de Nazianzo, a imitação servil
dos modelos clássicos destruiu toda a espontaneidade de senti­
mentos e 'encontrou a sua mais completa expressão em Apoli-
nário de Laodieeia e seu filho, que tentaram traduzir a Bííblia
segundo as formas e os metros da poesia clássica. No Ocidente,
as mesmas tendências levaram às paráfrases bíblicas de Juven-
cus e a tentativas engenhosas, mas pouco felizes, para compor
soibre assuntos bíblicos poemas inteiramente feitos de passos
de Yergílio separados do seu contexto. Contudo a tradição
poética ocidental, muito mais viva que a do Oriente, foi com­
pletamente assimilada no decorrer dos séculos I Y e Y pella nova
cultura cristã. Pauline de Nola, que encontrou um espírito
parente do seu no seu biógrafo inglês, Henrique Yanghan,
foi um verdadeiro humanista Cristão e O1avatar espiritual de
Y ida e de Mantuanus. Não era um grande poeta mas possuía
uma elevada cultura. 0 seu carácter era nobre e sedutor e
a sua influência fez, mais ainda do que a de S. Jerónimo ou
a de Santo Agostinho, com que se popularizasse o ideal da
nova cultura cristã entre as classes instruídas das províncias
do Ocidente.
Mas o maior dos poetas cristãos fo i um contemporâneo
de Pauline, Prudêneio, espanhol, a quem Bentley chamava
«o Yergíiio e o Horácio cristão». De todos os eseritores cris­
tãos foi Prudêneio o que soube mostrair a mais perfeita com­
preensão do classicismo, tanto sob o seu aspecto literário como
social. Não fica atrás de qualquer poeita pagão em patriotismo
cívico e em apego ao grande nome de Borna. Não olha Borna
com os olhos dum Tertuliano ou dum Agostinho, como um
puro exemplo de ambição e de orgulho humanos. Tal como
Dante, vê no Império uma preparação providencial para a
unificação do género humano em Cristo; os Fábios e os Ci-
piões foram os instrumentos inconscientes dos desígnios de
A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 81

Deus, e os mártirés, tal qual os -legionários, deram a vida por


Roma. As últimas palavras de S. Lourenço no Peristephanon
são uma oração por Roma:
’«iGristo, concelde aos tens Romanos a conversão desta
cidade pela quail permitiste que os outros participassem
duma só alma na melsrna religião... Que as terras dis­
tantes aprendam dela a juntar-se numa só graça! Faz
com que Rómulo se torne fiel e que o próprio Numa
seja crente!» (x).
Esta oração já fora atendida; a Roma dos cônsules e
a dos mártires constituíam uma só:
«A s próprias luzes do Senado... beijam o limiar
do templo dos Apóstolos. O pontífice, outrora cingido
por fitas, agora faz o sinal da cruz. A vestal 'Cláudia
ajoelha perante o altar de S. Lourenço» (2).
Podemos verificar, pelos poemas de Prudêncio e de Pau-
lino de Noia, corno é que o culto dos mártires, que originària-
mente era um protesto do espírito cristão contra as pretensões
anti-espirituais do poder secular, se tinha transformado numa
instituição social e numa manifestação de piedade cívica.
O velho patriotismo local da cidade encontra, aos olhos de
Prudêncio, uma nova justificação no culto dos santos locais.
Mostra-nos as cidades de Espanha apresentando-se a Juízo
perante o trono de Deus, levando cada urna as relíquias dos
seus mártires. O santo tornara-se o representante e o guar­
dião da cidade e ,comunieava-lhe parte da sua glória.
iSterne te totam generosa sanetis
iCivitas mecum tumulis; deinde
Mox ressurgentes animas et artus
Tota sequeris ( 3). (*)
(*) Peristephanon, II, 4'3'3.
O Ibid., II, 517.
(3)J Ibid., IV , 197. «Prosta-te comigo profundamente, nobre
'cidade, diante dos túmulos santos; porque tataibém depois acom­
panharás os que ressuscitam em alma e corpo».
6
82 A FORMAÇÃO DA EUROPA

A 'reconciliação do ■Cristianismo e da tradição clássica,


de que dão testemunho, nos séculos IV e V , a cultura patrís­
tica e a nova poesia cristã, exerceu soíhre a formação da men-
talidalde europeia uma influência profunda. O homem mo­
derno pode tratar toda a tradição dos retóricos de pedantismo
vazio e rejeitar o próprio Cícero como pomposo e maçador;
mas, como já o notámos, não é senão ao retórico e ao seu ensino
que devemos a sobrevivência da literatura clássica e toda a
tradição do humanismo. iSem ele a cultura europeia teria sido
não só mais (pobre mas tamibém essencialmente1diferente. Não
teria havido ensino nem literatura laica a não ser a dos menes-
treis e a dos autores de salgais. A alta cultura teria sido intei-
ramente religiosa, como teve tendências a sê-lo no Oriente,
exeeptuada a China. A sobrevivência da literatura clássica e
tradição retórica não somente permitiu o surgir das literaturas
modernas; é tamibém a ela que se devem os hábitos de espírito
dos europeus; fo i ela que tornou possível essa atitude, racional
e crítica, em relação à vida e à natureza, que é apanágio da
civilização ocidental. A coexistência destas duas correntes
espirituais e literárias — a da Igreja e da Bíblia, por um
lado, a do helenismo e dos clássicos, por ou tro— 'deixaram
uma impressão profunda na mossa cultura; e a sua influên­
cia mútua, a sua interpenetração enriqueceram o espírito
europeu duma tal. forma que nenhuma tradição isolada, por
maior que se possa supor, poderia' fazê-lo.
Verdade é que estes hábitos de espírito, com base na
retórica e na literatura, tinham os seus inconvenientes; talvez
sejam em parte responsáveis por aquele artificialismo que é
uma das grandes fraquezas da nossa civilização. Além de
que, a coexistência destas duas tradições de origens díspares
tenderam à produção na cultura europeia dum certo dua­
lismo e duma desarmonia que não se encontram nas civiliza­
ções dum tipo mais simples ou mais uniforme. De resto não
se pode sustentar que na retórica se incarnava toda a obra
intelectual do mundo antigo'; era o desenvolvimento parcial
e unilateral de um dos aspectos do génio helénico, mais não
A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 83

dá a medida da sua obra científica e metafísica.. Se a civili­


zação medieval não pôde salvaguardar a herança da ciência
grega, a verdadeira responsabilidade não pesa sobre a Igreja
mas sobre os retóricos. A tradição científica grega tinha-se
separado da tradição literária dos retóricos durante o período
helenístico': foi esta a razão por que o Ocidente latino não
reteve senão o aspecto literário da cultura' grega. As únicas
contribuições dadas pelos latinos às ciências foram enciclopé­
dias redigidas por amadores cultos corno Yarrão e Plínio ou
obras técnicas de engenheiros e agrimensores. Os trabalhos
verdadeiramente científicos deste período devem-se a gregos
corno Galeno e Ptolomeu, no século II depois de Cristo, que
foram os derradeiros espíritos criadores da ciência antiga;
mas — o facto é significativo — apesar de Galeno ter vivido
e trabalhado em: Roma, o certo é que os seus ascritos nunca
foram traduzidos para latim antes da Idade Média.
A tradição científica sobreviveu ainda no Baixo-Império
mas confinada ao Oriente. Floresceu principalmente nas 'esco­
las de Alexandria e de Atenas que os neoiplatónicos monopoli-
zalvam, quase eompfetamente, nesta época. Propunham-se desde
o século I V organizar toda a ciência grega num sistema único
fundado nais suas próprias doutrinas metafísicas e teológicas.
Acima de tudo pretendiam reconciliar Aristóteles com Platão,
Ptolomeu com Aristóteles e consequentemente orientar todas
as suas energias, não para pesquisas originais, mas para a
interpretação e comentário dos mestres antigos. Os seus 'estu­
dos repousavam sobre as obras de Euelideis e de Nicómaco, de
Ptolomeu e de Géminos, de Aristóteles e de Platão; mas a
importância de Aristóteles ia aumentando e devia atingir o
seu apogeu com os Alexandrinos do século V I, Amónio, Sim-
plício, Daimáscio e o cristão João Filoponus que, todos eles,
tinham um conhecimento extremamente vasto da ciência antiga.
Este renascimento aristotélico, começado a partir do século III
com o grande comentador Alexandre de Afrodísias, foi duma
capital importância ipara o Ifuturo, mas, até aos Séculos X I I e
84 A FORMAÇÃO DA EUROPA

XIlII, só através de Boécio e sob uma form a muito rudimentar,


alcançou o Ocidente latino.
'Contudo, se bem que esta ultima evolução científica da
cultura grega não tenha podido pôr-se em contacto com o Oci­
dente, a mais recente filosofia grega, enquanto representada
pielo neoplatonismo, teve uma influência directa sobre a nova
cultura latino-cristã. A té então a ética estoica, que tinha to­
mado corpo com os retóricos, principalmente com Cícero e Se­
neca, representava quase toda a filosofia ocidental1. Não tinha
havido, em metafísica, pensamento criador, nem observações
noVas em psicologia. Ora, no momento em que verdadeira-
mente terminava a época imperial, o mundo latino produziu
um génio profundamente original na pessoa de 'Santo Agos­
tinho, em cu jo pensamento a nova cultura cristã encontrou
a sua mais elevada expressão filosófica. Também Agostinho
era um retórico de profissão e foi a leitura de Cícero a pri­
meira que incitou o seu espírito ao estudo da filosofia. Mas
o momento crucial da sua existência verificou-se onze anos
mais tarde, quando sofreu a influência dos neoplatónicos cujos
escritos tinham sido traduzidos para latim pelo retórico con­
vertido Mário Vitorino. Pela primeira vez teve de se conven­
cer da existência objectiva da realidade espiritual; desta dedu­
ziu ele os dois princípios fundamentais que ficaram sendo
os polos da sua filosofia: a ideia de Deus, origem: do ser e da
inteligência, sol do mundo inteligível ; e a ideia da alma, natu­
reza espiritual que encontra a sua beatitude na participação
da lnz incriada. Aliás 'Santo Agostinho não se contentava com
o intelectualismo da filosofia grega. Não procurava uma teo­
ria especulativa da verdade; queria a sua posse experimental.
Como ede dizia:

i«Os Platónicos viram a Verdade fixa, estável, imar­


cescível, na qual existem todas as formas de todas 'as
coisas criadas, mas viram-na de longe... e é por isso que
A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 85

eles não podem encontrar o eammhn que lhes permitiria


atingir uma tão grande, inefável e ‘b eatífica1 posse» (a).

Este caminho só no Cristianismo é que ele o encontrou —


nesta sabedoria sobrenatural que não só mostra ao homem a
verdade, mas lhe dá o meio de chegar a gozá-la. A sua filosofia
deve o seu carácter definitivo à experiência da própria con­
versão: teve então a intuição dum poder 'espiritual cuja inter­
venção era bastante Iforte para mudar a sua personalidade e
para transformar, ma sua vida interior, a ordem nocionál da
inteligência na ordem da caridade, princípio de vida. A evo­
lução espiritual começada no H ortem ius de Cícero acaba nas
Confissões, e a sapientia do retórico romano encontrou o seu
remate na contenvplatio do místico cristão.
Assim, a filosofia de Santo Agostinho difere da de Orí-
genes, o maior pensador cristão do mundo grego, pelo seu
carácter intensamente pessoal. Permanece grega porque insiste
na existência duma ordem racional, reinando sobre o universo,
e porque tem o sentido da bondade e da beleza de todo o ser
criado ( 2) ; mas as suas preocupações morai® e o lugar central
que concede à vontade tornam-na ao mesmo tempo ocidental
e cristã. É ossenciálmente uma filosofia fundada na experiên­
cia espiritual e constitui, por este facto, a fonte da mística e
das éticas ocidentais ao mesmo tempo que do idealismo filo­
sófico, tradicional no Ocidente.
Nos isléculos Y e V I, tornou-se preponderante por todo
o Ocidente cristão a influência de /Santo Agostinho. Orósio,
Próspero de Aquitânia, Leão Magno, Fuâjgêncio de Ruspe,
foram todos augustinianos; e por fim, por intermédio de
S. Gregório Magno, a tradição augustiniana, sob uma forma
simplificada, tornou-se o património intelectual da Igreja me­
dieva. Mas esta tradição teológica fez-se acompanhar dum
abandono crescente da cultura clássica. A própria profundi-

0) iSermão 141.
(*> Cf. por exemplo, o seu De Trmitate, VIII, III.
86 A FORMAÇÃO DA EUROPA

dade do pensamento augustiniano levava ao estreitamento do


domínio da actividade intelectual e à concentração dei toda
a atenção sobre ois dois polos da vida espiritual: Deus e a alma.
Este absolutismo religioso não 'deixava lugar à literatura pura
ou à ciência pura. Porque, para Santo Agostinho, o saber
que Consista em «não indagar outra coisa que não seja o co­
nhecimento» não é nuais que uma curiosiicfôde sem proveito que
distrai o espírito do seu único fim verdadeiro', o conhecimento
e o amor de Deus. É melhor para o homem conhecer a Deus
do que contar as estreitas ou penetrar nos mais recônditos se­
gredos da natureza :

«A i do homem que conhece todas as coisas e a Ti


não Te conhece; mas feliz daquele que T e conhece em­
bora desconheça as coisas. E quanto àquele que Te co­
nhece e às coisas, a sua felicidade nem por isso é por elas
acrescentada, mas por Ti só é feliz» (1).

Este ponto de vista devia impor-se durante muitos sécu­


los à cultura clerical e monástica do Ocidente latino. Todavia,
enquanto subsistiu, segundo os hábitos pomam>foizantinas, uma
burocracia treinada nas escolas de retórica, a cultura clássica
nenhum risco corria ide ser menos estimada. O renascimento
passageiro da cultura secular, que acompanhou no século V I
a renovação bizantina não deixou d e ter análogo no Ocidente.
Assim é que, especialmente em África, a corte dos últimos reis
vândalos se tornou, contra toda a espectativa, o lugar de reu­
nião desta longa Série de poetais menores cujos versos nos
foram conservados nos vinte e quatro livros da. Antologia, de
Salmasiana e que em seguida Corippus, talvez o último repre­
sentante verdadeiro da tradição clássica na poesia latina, com­
pôs a sua sofrível epopeia, Jokannis.
Da mesma form a na Itália, sob o domínio de Teodorico,
continuou a administração civil nas mãos de funcionários muito

O Confissões, V , III e cf. também X , X X X V ,


A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O CRISTIANISMO 87

cultos, como Boiécio, sSímaco <e Cassiodoro, que usaram de todo


o seu poder para salvaguardar a herança d o saber clássico.
Boécio não foi somente o último dos clássicos, mas também o
primei.ro dos escolásticos e um grande educador. Foi por seu
intermédio que a idade média ocidental recebeu, com os rudi­
mentos das matemáticas gregas, o que conheceu da lógica aris^
toíélica. A sua trágica morte pôs termo ao trabalhoi de tradu­
ções de obras filosóficas que tinha projectado, mas, tem com­
pensação, valeu ao mundo o De consolatione philosophiae, obra
prima que, apesar das propositadas reticências do autor,
exprime de forma perfeita a união do espírito cristão com a
tradição clássica.
O mesmo ideal inspirou a obra de Cassiodoro, que tra­
balhou mais ainda que Bdécio por lançar uma ponte entre a
cUltura do antigo mundo e a da Idade Média. Durante a pri­
meira parte da sua vida, ministro ao serviço do governo ostro-
godo, tinha-se consagrado à causa da unidade religiosa e à
reconciliação dos invasores germanos com a civilização romana;
mas, no fim da sua existência, dedicou-se ao serviço da Igreja
e trabalhou pela reconciliação da cultura clássica com as exi­
gências da nova sociedade eclesiástica e com o ideal da vida
monástica, como se tivesse consciência de que o Estado já não
podia desempenhar qualquer papel como disipensador da alta
cultura e de que a herança da civilização clássica não podia
ser salva se a não pusessem sob a tutela da Igreja. É p or isso,
que ele formou com o papa Agapito, nos últimos tempos da
dominação goda, o desígnio de ifundar em Roma uma eiseola
cristã que mais ou menos representasse para o 'Ocidente o
mesmo papel que no Oriente tinha desempenhado em época
anterior, a escola catequética de Alexandria.
As guerras góticas, muito mais desastrosas paira a; civili­
zação na Itália do que todas as invasões do século precedente,
desfizeram estes projectos, Cassiodoro não se deixou vencer
pelo desalento: é verdade que se viu constrangido a abandonar
a vida pública e a buscar um refúgio no claustro; mas encon­
trou na abadia que ífundou em Vivarium, nos seus grandes
88 A FORMAÇÃO DA EUROPA

domínios da Calábria, o meio de realizar o sen ideal. F oi lá


que reuniu uma «biblioteca e estabeleceu os seus dois programas
de «estudos monásticos: as Instituições das letras divinas e
seculares, que são documentos fundamentais para a história da
cultura medieval. A primeira e mais importante destas obras
trata dos estudos sagrados e insiste na necessidade de estudar
•e de copiar os texto® santos se se quiser possuir «uma cultura
sólida; a segunda é um compêndio enciclopédico das sete «artes
liberais», particularmente da gramática, da retórica e da dia­
lética. É o velho programa do Baixo Império adaptado às
necessidades da nova sociedade religiosa. Para Cassiodoro,
eomo para 'G-regório de Naziamzo e 'Santo Agostinho, as artes
liberais não constituem um fim em si: são um instrumento
de educação religiosa. Mas são um meio necessário, porque
desprezá-las seria enfraquecer e empobrecer a cultura teoló­
gica de «que elas são as servas. Tornaiva-se pois legítimo, mais
ainda, necessário estudar os poetas a prosadores pagãos, já que
sem eles era impossível chelgar a um perfeito manejo das artes
liberais.
Vivarium tornou-se assim o ponto de partida duma tra­
dição de estudos monásticos que deviam mais tarde constituir
a glória da ordem beneditina. O monaquismo ocidental entrou
na posse da herança da cultura Clássica ei salvou-a do naufrá­
gio cm que se afundara a civilização laica nos fins d o século V I
no Ocidente latino. Foram as biblioteca® e os scriptoria mo­
násticos que conservaram e transmitiram quase tudo o que
hoje possuímos da literatura latina clássica. É verdade que
o monaquismo italiano também foi abalado pela tormenta e
Cassiodoro não deixou eontinuadores no seu próprio país;
mas a sua obra foi retomada e completada pelo® filhos dum
mundo nOvo, os monjes irlandeses e anglo-saxões que prepa­
raram o caminho ao classicismo cristão que finalmente há-de
ressuscitar na época earolíngia.
CAPÍTULO IV

OS BÁRBAROS

I n ü ICAMOIS, nos três capítulos precedentes, os verdadeiros


fundamentos da unidade europeia. Para constituir a E u­
ropa mais alguma coisa era precisa contudo. Foi soib a influên­
cia das tradições que acabámos de .analisar, que foram talha­
dos os materiais da nossa civilização; mas estes materiais são
de proveniência exterior: vêm do caos obscuro do mundo bár­
baro. Porque foram os bárbaros que forneceram o material
humano de que a Europa fo i feita. Foram as gentes opostas
ao imperium e à ecclesia, a origem do elemento nacional na
vida da Eurolpa.
Outrora os mestres — leigos ou eclesiásticos — ■que diri­
giam o ensino e orientavam a opinião> minimizavam a im por­
tância do elemento bárbaro; porque a sua atenção se con­
centrava nas tradições de alta cultura literária ou religiosa,
de que eram os guardiães designados, sendo naturalmente
hostis a tudo o que cheirasse a bárbaro. ISó no século X I X
é que verdadeiiramente se compreendeu a sua importância vital
como contribuição para a civilização europeia. Produziu-se,
nessa altura, uma completa reacção, e a nova corrente de na­
cionalismo romântico letvou os autores a terem em menos conta
os elementos .clássicos e cristãos da nossa civilização, e a faze­
rem derivar tudo da energia nativa do génio nacional. Tal é
o espírito que anima a escola histórica teutóniea do sécul'o X I X ,
tanto na Alemanha como na Inglaterra, os escritores pan-esla-
vistas, na Europa Oriental, e os aderentes d o ressurgimento
celta, na Irlanda e na França. Encontramos hoje esta ten­
dência levada ao extremo nas teorias de escritores, como Strzy-
gowski, para quem a história da Europa tem1 sido falseada,
pouco a pouco, ipela influência perniciosa do ‘Classicismo e do
Catolicismo, ambos originárias do Mediterrâneo —- essa estufa
90 A FORMAÇÃO DA EUROPA

de culturas esgotadas e artificiais — e para os quais há afini-


nidad.es autênticas entre a arte e a civilização bárbara das
estepes ásiáticas, e o espírito da Europa setentrional.
■Por excessiva que seja, esta reacção não é de todo in­
justificada. Os povos bárbaros não eram, somente o pano de
fundo passivo e negativo que as iaetividades criadoras da cul­
tura superior iam talhar; tinham um passiado de civilização
própria, e foi somente agora que os trabalhos da pre-história
nos começaram a dar a conhecer, quão antigas e profundamente
enraizadas eram estas tradições. Desde a 'Idade do Bronze,
e até mais cedo, existiram, na Eurolpa central e setentrional
civilizações que conheceram um desenvolvimento autónomo
e exerceram influência não só sobre os povos vizinhos, mas
até sobre os mais adiantados do Mediterrâneo oriental.

À primeira vista, a palavra bárbaro aplicada a tais civi­


lizações antigas pode parecer injustificada, mas balrbárie, no
sentido em que se emprega o termo, de form a nenhuma é sinó­
nimo de selvajaria. Aplica-se a qualquer estádio inferior do
desenvolvimento das sociedades que ainda não atingiram a
organização superior de estabelecimento urbano e de um Es­
tado territorial, numa palavra, à civilização da tribo, por
oposição à da cidade. A característica essencial da sociedade
bárbara consisto em ela assentar no parentesco, e não na quali­
dade de cidadão, ou na absoluta autoridade do Estado. É ver­
dade, que o parentesco não é o único elemento constitutivo
da tribo: pràticamentie intervêm também, em quase todos os
casos, os íaetores territoriais e militares. Mas ao passo que
num Estado civilizado, a célula inicial é o indivíduo ou o
grupo económico, na sociedade tribal é o grupo de homens do
mesmo sangue: os direitos dum homem não dependem das
suas relações directas com o Estado, mas da sua posição no
seio da parentela; da mesma forma, um crime não é enca­
rado como uma ofensa ao Estado, mas como ocasião duma
OS BÁRBAROS 91

guerra privada ou de negociações entre duas famílias. Quando


é derramado sangue, a culpabilidade recai ©obre toda a famí­
lia do assassino, e deve ser apaigada p or uma compensação1dada
à família da vítima. A bem dizer, o organismo político supe­
rior, a tribo ou o «lã, não é necessàriamente form ado de
homens do mesmo sangue, posto que genealogias fictícias nos
levem muitas vezes a supô-lo; mas é, em geral, uma união,
territorial ou militar, de grupos familiares.
IConsaquentemente, e apesar dos protestos de patriotas
irlandeses, como os professores Mac Neil e Macalister, é legí­
timo descrever a Irlanda eêltica como vivendo no regime da
tribo, já que a sua organização, análoga à dos antigos Ger­
manos, assentia nos grupos consanguíneos, como o sept ou
clan 0 ) . iSe a alguém repugna aceitar esta definição, é .e v i­
dentemente por causa da ideia .de inferioridade que a palavra
«tribo» sugere. E contudo, apesar de a tribo ©er uma forma
de organização social relativamente primitiva, possui méritos
que tipos de sociedades mais adiantadas lhe podem invejar.
É compatível com um ideal ©levado de liberdade pessoal, de
respeito de si próprio, ao mesmo tempo que ©voca uma perf eita
lealdade e um apego profundo à comunidade e ao seu chefe.
Também, ,no campo da moral © das coisas do espírito., os seus
progressos são muitas vezes muito mais (rápidos do que no
domínio da civilização material. O seu ideal, pelo menos quanto
aos povos dedicados à pasto rí cia, os mais guerreiros, é pior
essência de tipo heróico. Podemos, efeictivamente, dizer que
todas as grandes tradições heróicas, gregas, célticas, germâ­
nicas ou árabes, que inspiraram a poesia épica e as lendas

C); (O Prof. Macalister escreve: «U m Tuath era uma comu­


nidade de pessoas, .que não eram forçosamente ligadas pelo sangue,
e que é preciso portanto não designar pelo nome de tribo, que é
sempre um apelativo erróneo, em todos os casos ém que ise aplicar
à Irlanda cíéltica» (The archaeology of Irekmã, p. 2 5 ). Mas como
o fizemos notar, a tribo não é necessàriamente formada dum só
grupo consanguíneo. É constituída, na maioria dos casos, por um
grande número destes grupos ou septes.
92 A FORMAÇÃO DA EUROPA

nacionais, remontam ao tempo em que a sociedade conhecia


o regime da triíbo, mas que, regra 'geral, a sua aparição data
do momento em que esta sociedade tomava contacto, com civi­
lizações dum nível superior, e em que ela própria começava a
dissolver-se.
üMios tempos em que Roma entrou em relações com o
mundo .bárbaro, esta civilização guerreira da triíbo céltica e
germânica dominava na Europa continental, à qual dava a
aparência enganosa da unidade nacional, e da unidade de
cultura. Contudo, a civilização bárbara nunca foi dum tipo
único: revestia, conforme os lugares, formas extremamente
variadas, que se entrecruzavanq e produziam novas civiliza­
ções mistas. Tal qual como naqueles Estados indígenas da
Á frica ocidental, nos quais encontramos hoje uma organização
política e social relativamente adiantada, coexistindo com
tribos cuja maneira de viver se pode dizer que não mudou,
desde as mais afastadas épocas pré-históricas; assim sucedia
na Europa bárbara. Alguns nomes de povos historicamente
conhecidos —■Celtas, Germanos, Tráeios, etc. — 1que inscreve­
mos no mapa quando queremos ifigurar a Europa antiga, dão
uma ideia muito falsa da verdadeira situação. Porque estes
povos não constituíam nações, como gostamos de imaginar,
mas grupos bastante fracos de tribos, incluindo ou sobre­
pondo-se pior vezes aos restos de numerosos povos e civilizações
anteriores. Um grupo de tribos guerreiras podia tomar-se
senhor dum grande território, e dar-lhe o seu nome, mas nem
por isso criava um Estado unificado e uma cultura uniforme.
Submetido à sociedade dirigente e dos conquistadores, a vida
dos camponeses .avassalados continuava como dantes, man­
tendo por vezes a sua língua e religião e tendendo a preservar
as suas tradições sociais e os seus hábitos .de espírito.
P or consequência, quanto mais guerreira é uma 'socie­
dade, tanto mais superficial o falha de unidade é a sua civili­
zação. (Sucessivas vagas de conquista não implicam necessa­
riamente uma mudança de população: em muitos casos há
simplesmente a substituição duma laristocracia militar por
OS BÁRBAROS 93

outra. Deve-se muitas vezes atribuir ià casta dirigente a intro­


dução dum novo tipo superior de civilização; mas, destituída
de estabilidade, pode desaparecer, sem deixar o menor vestí­
gio perdurável na vida da população campesina, ao passo que,
nas regiões que não foram afeetadas pelas guerras e conquis­
tas, não (há contrastes nítidos entre os diversos elementos da
sociedade, e todo o povo tende a possuir uma cultura uniforme,
embora, muitas vezes, simples e primitiva. A s civilizações
deste ultimo tipo são, por natureza, fortemente enraizadas,
e não se modificam facilmente; mas, regra geral, não se en­
contram senão nas regiões mais afastadas e menos férteis, que
não excitam a cobiça do conquistador. Os países mais ricos,
mais favorecidos, estão destinados a invasões mais frequentes,
e, por esse facto, são aqueles cu ja população tem menos, homo­
geneidade, e que sofrem as mais rápidas transformações.
Estes factores foram de excepcional importância na
Europa bárbara, por causa do carácter militar das popula­
ções destes tempos, e dos numerosos movimentos de invasão
de que ela fo i então teatro; mas veremos que, a dualidade de
cultura — a do guerreiro nobre, a contrastar com a do campo­
nês servo, — não é característica somente da época bárbara:
encontramo-la em 'épocas posteriores, e as consequências deste
facto foram decisivas para a evolução da civilização medieval.
Dentre todas as civilizações guerreiras, a maior e a mais
típica era a dos 'Celtas. Abandonando ais suas terras natais,
a sudoeste da Germania e a nordeste da França, guerreiros
celtas, com as suas largas espadas e os seus carros de guerra,
espalharam-se por toda a Europa, puseram Roma e Delfos a
saque, e subjugaram todos os povos, do Atlântico ao Mar Negro.
Estenderam-se até ao coração da Ásia Menor e à Ucrânia,
ocuparam toda a Europa central, compreendendo os vales do
Reno, do Ródano, do Danúbio, do Elba superior, do Pó e do
Deniester O .
C) A importância do élemento celta na Dácia e nos países
danúbianos foi posta em evidência por V . Parvan, (Dacia, eap. I X :
Cafpatho-Danubians and Celts).
94 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Estes vastos territórios não eram evidentemente ocupa­


dos por uma população celta, homogénea. A s tribos eetltas fo r ­
mavam uma aristocracia militar, que governava os países con­
quistados, desde os seus acampamentos, instalados nos cimos
dos montes ou duns, cujos vestígios se encontram ainda espa­
lhados por toda a Europa. Onde. quer que chegavam, levavam
consigo uma civilização e arte particulares, que se desenvol­
veram nos séculos Vil e V antes de Cristo, e que se designam
pelo nome de estação iSuiça de La Tène. Como se vê, fo i a pri­
meira vez na história que a maior iparte da Europa continental
se achou unida numa civilização comum. D o Atlântico ao Mar
Negro governava uma única raça, que falava a mesma língua,
possuía o mesmo tipo de 'organização social, as mesmas usanças,
os mesmos modos de vida. Mas era uma civilização de chefes
e de guerreiros, que não teve influência profunda nas popu­
lações submetidas e que não se substituiu por completo às
antigas civilizações locais. Foi só no extremo oeste, na Irlanda,
onde os conquistadores celtas permaneeeralm durante um milé­
nio na posse pacifica dos territórios submetidos, que ela pene­
trou toda a sociedade. A não ser aqui, tão depressa como tinha
vindo assim desapareceu, diante da chegada de um poder
mais forte, o do Império Romano, que recolheu os frutos das
conquistais célticas. Os Gauleses que saquearam Roma no
século IV não previram quanto a fortuna da sua raça estava
ligada à dessa desprezível cidadezinha italiana. Contudo assim
viria a ser.
Roma empenhou-se na luta contra as tribos gaulesas
da Itália setentrional, depois avançou pouco a pouco pelos
territórios dos Celtas, até destruir por completo o seu grande
império. Roma seguiu os Celtas, precisamente onde estes tinham
quebrado a resistência das civilizações locais. Mas os seus
progressos foram detidos, quando se pôs em contacto com
povos germânicos, cuja organização social era mais simples
e mais homogénea. Efectivamemte, a expansão do Império
OS BÁRBAROS 95

Romano na Europa coincide notavelmente com a extensão dos


territórios celtas (1) .
Houve todavia uma exceipção importante': já que os
Romanos adoptaraim como fronteira o curso do Danúbio, fica­
ram fora do im pério dois dos mais antigos centros de civilizar
cão da Europa continental — o da Boémia e Moravia e o da
Transi Ivânia e Valáiquia. Mas a hegemonia eéltica desapareceu
também. destas regiões no século I antes de 'Cristo, e novos
Estados se fundaram lá em resultado das invasõesi germânicas
e dos elementos autóctones da, população terem redobrado
o mandado. Em 6*8 'depois de Cristo, Burebista fundou o reino
dácio no baixo Danúbio, e setenta e quatro anos depois, Mar-
boduuis, rei dos Marcomanos, conquistou a Boémia o organizou
um Estado poderoso. Estes reinos, especiaiLmente o último,
foram os principais intermediários entre o mundo bárbaro e
o Império Roimamo. Em contacto estreito com ais províncias
romanas, tomaram dos mercadores e dos artistas romanos que
entre eles se estabeleceram muitas características da sua civi­
lização.
•Foi assim que surgiu uma nova civilização mista, ro­
mano-bárbara, que se difundiu por uma grande parte da E u­
ropa 'continental. Até mesmo no extremo norte, as condições
materiais de vida vieram a transformar-se. A Escandinávia,
ainda em grande atraso nos inícios da Idade do Ferro, trans­
formou-se ao contacto com influências mediterrânicas, que se
propagaram até ao Báltico, não só pela rota do comércio marí-

0) Parvan (ob. cit., p. 106) insiste de form a especial na


cooperação dos elementos celta e romano na civilização do Império
na Europa central: «M ais uma vez unia grande unidade céltica,
atravessando a Itália do Norte, fez a sua aparição na Europa; mas
desta vez quem ganhou a partida foi Roima. De Lugdunum na Gália,
a Sirmium perto da foz do Theiss, só um mundo vemos, ser.vindo-se
duma só grande via de comunicação, para a qual convergem todas
as outras, quer seja o Reno celta, quer o Danúbio, quer ainda as
rotas da Itália latina. Qualquer país que atravessasse esta_ impor­
tantíssima rota era tanto mais florescente quanto mais participasse
da propriedade do conjunto».
96 A FORMAÇÃO DA EUROPA

timo da Gália setentrional e das 'bocas do Reno, mas também


— directamente da Europa central— pela via d o Elba e do
Vástula. 'O emprego de ornatos de feitura clássica, tais como
padrões em meandros característicos da arte da Juntlanda desta
época, a ad opção de armas e de armaduras de tipo romano, a
importância de vidros, de moedas e de bronzes romanos, tudo
atesta a força desta corrente de influências meridionais que
então afastava a civilização nórdica. O prof. iSheteilig chega
até a sugerir que a aparição no sudeste da Noruega e na Go-
tlanda dum novo tipo de túmulos e de mobiliário fúnebre —
análogo ao que se encontra nas fronteiras romanas — seria
devida ,aos guerreiros do norte em regresso a suas casais, depois
de terem servido como mercenários nos exércitos dos Marco-
nianos. E o mesmo autor crê que o primeiro sistema de escrita
germânica, o alfabeto único, teria nascido no século segundo
da nossa era, no reino mareoniano, e não no reino godo da
Rússia meridional e no século seguinte, com o geralmente ise
supõe (* *).
'Seja corno for, o que se não pode negar é que o Sul da
Rússia tenha sido o principal traço de união entre a civilização
mediterrânica e as províncias orientais do mundo bárbaro.
Desde os primeiros tempos da colonização grega até à época
bizantina, as cidades gregas da Crimeia e ais regiões circun­
vizinhas —•especiailmente Ólbia e o Quersioneso, bem como o
Estado indígena mas helenizado do Bóslforo — mantiveram
um comércio activo com os povos das estepes russas. A Rússia
meridionaíl era um dos principais celeiros de trigo do mundo
antigo, e os túmulos gregos, citas, sármaitas da região, estão
cheios de belos produtos da indústria e da arte gregas, mam-
panianas, alexandrinas ( 2). Durante o período romano os
Sármatas — ■Iranianos originários da Ásia central — tinham-se
aili estabelecido no lugar dos 'Citas, como senhores das estepes,

d1) H. Sihetelig, Préhistoire de la Norvège (Oslo, 1926),


pp. 154-1501.
(*)i iGfr. Rostovtzefif, Iranians and Greeks in South Bussia.
OS BARBAROS 97

e as influências iranianas- tinham começado a exercer-se sobre


a civilização greco-cita -do litoral. Mas as cidades gregas con­
tinuaram a prosperar sob a égide romana, e os produtos da
indústria mediterrânea a penetrar até ao coração da Rússia.
Assim, no slécudo l!l depois de Cristo, o mundo bárbaro
estava exposto por todos os lados às influências vindas da
elevada civilização mediterrânica, e toda a Europa continental
parecia em vias de romanização. Mas, no século seguinte, a
situação sofreu uma reviravolta completa: a influência da
civilização romana já não estaiva na sua fase ascendente, e a
pressão crescente do mundo bárbaro ameaçava a própria exis­
tência do Império. Desde então, Roma pôs-se na defensiva, e
a sua própria civilização começou a sofrer a influência bárbara.
Demais ,este ressurgimento do elemento bárbaro na vida
europeia foi, em grande parte, obra da própria Roma. Durante
séculos, o Im pério tinha feito sentir aos povos germânicos o
peso do seu poder militar, e a sua acção educadora tinha trans­
formado a civilização e mudado as condições da. vida nacional
dalqueles povos, que acabaram por adquirir novos métodos de
guerra 'e se viram constrangidos a unir-se, para resistirem às
forças disciplinadas de Roma. Além disso, a sua tendência
natural para -a expansão tinha sido contrariada pela inexorá­
vel pressão exercida contra eles das fronteiras romanas, resul­
tando daí o recuo das populações limítrofes para o interior.
Todos os países bárbaros ferviam, desde o segundo século depois
de Cristo, numa agitação mal contida e que não podia ter
uma saída, senão p or urna violenta explosão. A s guerras do
Danúbio, no tempo de Traijano e de Marco Aurélio, posto que
felizes na aparência, não acalmaram a agitação; pielo contrário,
destruindo a Dácia e o Reino Mareomano que constituíám os
únicos elementos estáveis do mundo bárbaro, e as principais
vias por onde a influência civilizaidora de Roma se podia espa­
lhar, elas precipitaram a crise. E quando foi assim destruída
esta primeira cortina de Eistados tampões seimieivilizados,
viu-se o Império em contacto directo com as forças movediças
dos bárbaros do interior.
7
98 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Depois das guerras dos Marcomanos, o mundo germâ­


nico começa .a tomar uma forma nova. Os povos antigos, de
que faiam de (César e Tácito desapareceram, e, em seu lugar,
encontramos novos grupos étnicos, que são formados ou por
povos recém-chegados do norte, ou por confederações guerrei­
ras, ou ligas nacionais, provenientes umas e outras da fusão
de elementos dispersos das antigas tribos.
Os Francos surgem no Reno inferior; na Germânia me­
ridional dominam os Alamauos, a leste a '.federação dos Her-
munduros, na íSilésia os Vândalos, e na Ucrânia, biem como
na Rússia do Sul, os maiores de todos, os Godos.
Estes últimos tinham emigrado no século II das margens
do Báltico, onde permaneciam da há muito tempo, para a
Rússia meridional, onde se tinham posto em contacto com
os iSármatas iranianos da estepe. Desde os inícios do século III
quie avançam até ao mar Negro, e fundam um Estado poderoso,
meio germano, meio sármata. As cidades gregas da Crimeia,
terceiro dos grandes centros civilizadores do mundo bárbaro,
perderam a sua independência. Oibia e Tiras foram destruí­
das, enquanto que Querson e os reinos helenizados de Bósporo®
eram submetidos. Esta região deixou consequentemente de
ser a grande via de difusão das influências greco-romanas na
Europa oriental, para se tornar a sede duma nova civilização
bárbara, donde se empalharam, por todo o mundo germânico,
influência® orientais novas, principalmente iranianas.
Porque, precisamente no momento em que se verificavam
estas alterações, o eixo da civilização deslocava;-se, o que teve
grandes repercussões na Europa. P or um lado a vida inte­
lectual e económica do Im pério perdia pouco a pouco a sua
vitalidade, -pelas razões acima mencionadas, e, por outro lado,
o Oriente despertava para uma nova actividade. A fundação
pelos Sassânidas, em 226 depois de CristO', dum novo reino
persa, fo i o acontecimento mais notável do século I I I : além
do surgir duma nova grande potência oriental, marcou — o que
ainda era mais importante — o despertar das tradições e cul­
tura iranianas, alfirmando-se contra a hegemonia do Ocidente,
OS BÁRBAROS 99

ou antes, do helenismo, que tinha dominado aio mesmo tempo


o Oriente e o Ocidente, durante cinco séculos. 0 mundo medi-
terrânico já não era ameaçado só.pelos bárbaros do norte, mas
também pelas reivindicações duma civilização anterior à sua
que, reencontrando a vitalidade, procurava agora impor-se
aos seus antigos conquistadores.
Nos meados do século III rebentou a tempestade. O Im ­
pério, enfraquecido pela guerra civil e insurreições contínuas,
foi atacado em todas as fronteiras pelos seus inimigos: os
Persas a leste, os Godos e os Sármatas no Danúbio, os Francos
e os Alamanos no Reno.
Durante todo o reinado de Galieno (263-268), o Império
foi assolado, dum extremo ao' outro, pelas devastações das inva­
sões bárbaras, da guerra civil e da peste. Antioquia foi posta a
saque pelos Persas, Atenas tomada pelos Godos, e o templo
de Diana, em Éfeso, incendiado pelos Sármatas; os Francos
e os Alamanos desvastaram a Gália e a Itália, e, até na longín­
qua Espanha, ifoi destruída a rica cidade de Tarragona. Con­
tudo, Roma não pereceu. F oi salva pelos imperadores-soil-
dados ilírios, Cláudio, Aureliano e Probo, que repeliram os
bárbaros, puSeram termo às tentativas de usurpadores que
prOcuraVam nas províncias desmembrar o Império, e restabe­
lecerem as fronteiras do Rieno e do Danúbio, sacrificando so­
mente as defesas exteriores, constituídas pela Dácia e pela
Germãnia do sudoeste.
Mas, como vimos, já não era o mesmo Império. O novo
Império de Dioclieciano e de Constantino era um Estado semi-
-orientail, que mais se assemelhava à monarquia persa do que
à república romana. Já se não apoiava num exército de cida­
dãos mas numa milícia semi-bárbara, visto ser reforçada por
auxiliares bárbaros vindos de além fronteiras. Da mesma
forma os imperadores já não eram, como Augusto e es Anto-
ninos, os presidenteis do Senado romano e os representantes
da velha tradição cívica; viviam quer nas fronteiras e rodea­
dos pelas suas guardas bárbaras, como Valentiniamo I, quer
cercados pelos seus eunucos e oficiais no isolamento oriental
100 A FORMAÇÃO DA EUROPA

da vida da corte em 'Constantinopla ou em Ravena, como Honó-


rio e Teodósio 1:1. Eifectivamente, o próprio Império tinha
mudado de orientação. Já não olhava para dentro, para esse
mundo mediterrânieo, de cidades cujo centro era Roma: das
suais novas capitais, Tréverrs, Milão, Sirmium e Constantinopla,
olhava para fora, para as fronteiras do Reno, do Danúbio e
do Einfrates. Fechara-se a .grande era da civilização medi-
terrânica e começava uma nova idade: a da civilização con­
tinental.
CAPITULO V

AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA


DO IMPÉRIO DO OCIDENTE

£ \ 'época idas invasões (bárbaras e .a fundação dos novos rei-


" * nos germânicos no Ocidente foi sempre considerada como
um dos grandes cotovelos da história1 universal e marco de
separação entre o mundo antigo e o mundo medieval. Assim
como no tempo da invasão que, no mundo egeu, destruiu a 'Civi­
lização micéniea, assim se viu, então, aparecer um novo ele­
mento racial e delinear-se uma civilização de carácter novo.
É necessário, contudo, que se não exagere o aspecto catrastróf ieo
desta transformação. A ruptura com as antigas tradições foi,
então, muito menos súbita e muito menos completa d o que
no princípio da Idade do Ferro.
'Como já vimos, a antiga civilização clássica tinha per­
dido a vitalidade desde o século I I I , e uma nova civilização
tinha surgido, não proveniente dos bárbaros germânicos, mas
da infiltração de novas influências vindas do Oriente. A velha
civilização fundada no regime de cidade e a sua religião cívica
tinham desaparecido sob a pressão gradual de transformações
internas e em seu lugar tinha-se instalado uma monarquia
teoerátiea estreitamente aliada à nova religião universalista, o
Cristianismo. Mas, ao passo que no Oriente esta evolução se
ligava de perto a tradições autóctones e imemoriais, no Oci­
dente era algo absolutamente novo, sem fundamento histórico,
o que a impediu de criar raízes. Em seu lugar .encontramos
em vias de reaparecimento o velho tipo europeu de sociedade
103 Â FORMAÇAO BA EUROPA

tribal e, entre as 'ruínas dos Estadas provinciais baseados na


cidade, vemos reconstituir-se uma sociedade rural de proprie­
tários nobres e de camponeses servos, análoga à que existira
na Europa central antes da chegada de Roma. Por conse­
guinte, não lé unicamente a intrusão violenta dos povos ger­
mânicos que pode explicar as mundanças que então se ope­
ravam : deve-se, também, Ifazer entrar em linha de conta o re­
nascimento, no próprio solo do Império, dum tipo mais antigo
de sociedade, como vemos de forma particularmente clara na
Grã-Bretanha ocidental. Eífectivamente a dissolução do sis­
tema imperial e o nascimento de novos Estados poderiam
muito bem ter-se produzido mesmo sem a intervenção dos
invasores bárbaros.
Esta transiformação da sociedade nas províncias oci­
dentais do Império começava nos fins do Século II da nossa
era. A sua característica dominante era o declínio das munici­
palidades e da classe média e o reagrupamento da sociedade
em duas classes: os proprietários de bens de raiz e os cam­
poneses. Já vimos como o fardo crescente dos impostos e da
fiscalização governamental esmagou e aniquilou as municipa­
lidades autónomas que eram anteriorinenite as células vivas
do organismo imperial. O governo tudo empregou, sem recuar
diante dos actos de autoridade, para .galvanizar a máquina
municipal, dar-lhe uma aetividade artificial e impedir a classe
média de desertar 'da cidade ou fugir às suas aforigações, en­
trando nas fileiras da aristocracia senatorial ou comprando
alguma sinecura privilegiada, nos serviços imperiais. Mas, o
que se procurava construir p or um lado, destruía-se por outro,
pois que se tornava impossível, do ponto de vista económico,
a vida da classe média. Por isso houve necessidade de dupli­
car a magistratura local, debilitada, instituindo um funcioná­
rio imperial, o .conde, directamente responsável perante o
governo central e colocado tfora da constituição municipal.,
ao mesmo tempo que se translferiam as responsabilidades para
as personalidades inifluentes, espacialmente os proprietários
das redondezas ou para os bispos cristãos.
AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 103

A cidade tinha, de facto, deixado de ser um órgão vitall


do Império. Economicamente o Estado tornava-se puramente
agrário e a primeira preocupação do governo consistia em
manter a cifra da população rural e a prosperidade da agri­
cultura. Todais as finanças do Im pério dependiam do imposto
predial rústico que não recaía sobre o rendimento mas sobre
uma unidade definida, o jugum, ou, nas províncias ocidentais,
a centúria, que correspondia ao arrendamento dum camponês
—■segundo o princípio do antigo hide inglês, em teoria terra
duma só família, que era ao mesmo tempo unidade fiscal e
grosseira medida agrária (*). Em ambos os caso® esta unidade
fiscal tinha, por base, a área que podia ser cultivada com uma
só junta de bois, o que representava, no Ocidente, uma super­
fície muito maior do que n o Oriente, em parte porque se ser­
viam de oito animais em vez de dois, em parte por causa do
nível inlferior da lagricultura e da taxa maiis- reduzida do im­
posto. A dimensão da unidade romana dependia da sua pro­
dutividade: no Oriente podia ser de cinco acres do vinha ou
de boa terra arável e de sessenta acre® para as terras de ren­
dimento inferior, ao passo que no Ocidente a centúria com­
preendia duzentas jugera, ou sejam cento e vinte acre®. Mas,
em todos os casos, era uma unidade definida, devidamente
medida e registada pelos funcionários do cadastro. O imposto
tanto era conhecido por eapitaiio (imposto por cabeça) como
por jugatio (imposto predial), o que mostra como era íntima
a conexão entre a terra e o cultivador. Bastava que uma só
destas unidades deixasse de ser .explorada para que daí resul­
tasse imediatamente uma perda directa para o fisco. Desta
forma, o governo conformando-se com os precedentes egípeios
não se contentou cm ligar ao seu arrendamento {holding), o
agricultor livre e os seus herdeiros, mas até proibiu aos p ro­

(*)i Recentes autores do Continente» entre outros Dopscih


('Grundlagen, V . I, p. 341-845) e Schumaeher, V . III, p. 273, 361-
3 5 6 ), sugerem que a Hufe germ ânica ou hide poderia derivar da
sors do colono romano, que consistia em lotes separados de terra
cultivável e direito às pastagens nos baldios.
104 A FORMAÇÃO DA EÜROPÀ

prietários que vendessem as suas terras sem os escravos que as


cultivavam ou vice-versa. Iíá mais: se um arrendamento
(holding) ficasse inculto .em seguida à morte ou desapareci­
mento do seu possuidor, os proprietários vizinhos eram obri­
gados a juntá-lo às suas próprias explorações (holding) e
ficavam sujeitos ao imposto que sobre ele pesava. 'Contudo a
política do governo foi contraproducente. O facto do imposto
era de tal força (atingiu algumas vezes 50 % da produção)
que os pequenos proprietários foram esmagados e reduzidos
à fuga ou à escravatura por dívidas.
Tudo isto favoreceu a extensão da aristocracia senato­
rial, única que tinha poderes de se proteger da opressão fiscal,
a si e àqueles que vivam na sua dependência porque não eram
os magistrados da cidade vizinha, mas o próprio governo que
fixava as quotas partes de impostos a que estavam •submetidos
os seus membros. É verdade que o poder d o senhor sobre os
escravos se vira consideravelmente restringido. Estes não
eram bens móveis que se pudessem comprar e vender: eram
servos — ascripticii gléb a e— que já ninguém podia separar
das suas terras (holding), e que, consequentemente, tinham a
sua própria vida de família. Mas, por outro lado., em compen­
sação, o poder do proprietário sobre os seus rendeiros ( lenem ts)
livres tinha aumentado duma forma estranha. O seu contrato
ou título de posse, não os levava somente ao pagamento duma
renda, mas também à obrigação de fornecerem um número
fixo de dias de trabalho nas terras do senhor. E como este
último era responsável pela cobrança do respectivo imposto,
eram eles também, por conseguinte, fixados ao isolo, tal e qual
como os escravos. Por outro lado, o facto de o senhor ser o
responsável p or eles quanto ao fisco, fez com que o fosse tam­
bém perante a lei. Dispôs de poderes policiais, teve em mui­
tos casos o seu tribunal particular e julgava todos os que esta­
vam na sua dependência. Escravos e rendeiros fundiram-se
assim numa só classe, semi-servil, de camponeses, política e
sociálmente, postos numa dependência absoluta do senhor.
O seu número aumentou com urna quantidade crescente de
ÁS INVASÕES BÍRBÂRÁS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 1Õ5

pequenos proprietários que, para evitarem ser esmagados pelo


eolector de impostos, se punham sob o patronato dum nobre
da vizinhança e lhe abandonavam a propriedade dos seus bens
oom .a condição de lhes deixarem o usulfruto.
'Verificasse, pois, que desde uma data anterior à queda
do Império, estava em vias de se estabelecer uma sociedade
semi-tfeudal. Vemos no século V nobres, como Eedieius, que
podiam alimentar quatro mil pobres em tempo de fome e re­
crutar, em tempo de guerra, p or sua própria conta, um con-
tingente de cavaleiros; e o burgus fortificado de Pontius
Leontius, que nos foi descrito por Sidónio Apolinárm, já se
assemelha, com os seus muros e as suas torres, ao castelo dum
barão da Idade Média. À medida que enfraquecia a organi­
zação romana, retomava a sociedade gaulesa, sob uma nova
forma, o carácter que tivera na época pré-romana, duma so­
ciedade fundada nas relações de «patronos» nobres com os
seus «clientes». A nobreza senatorial vivia nos seus domínios
rodeada das aldeias dos que de si dependiam. Conservava
nas suas mãos uma parte das terrais que mandava cultivar
por escravos domésticos (casarii) e pelos rendeiros (coloni),
que .estavam obrigados a nelas trabalhar. O resto consistia em
explorações (holdings) campesinas por que recebia uma renda
e serviços.
Este sistema fechado de economia rural desenvolvera-se
nos grandes domínios imperiais. Administrados cada um
como um todo autónomo pelos procuradores do Império, eram
ciosamente protegidos de toda a ingerência, quer das munici­
palidades quer das autoridades provinciais. Em África, espe­
cialmente, encontramos este sistema no seu estádio de pleno
desenvolvimento, a partir do século II da nossa era; e, durante
o Baixo Império, estendeu-se às grandes propriedades da aris­
tocracia senatorial. É já, sob muitos aspectos, o sistema do
feudo ( manor) medieval, e, pelo menos em França, a maioria
das aldeias não provém nem dos vici romanos, nem dos esta­
belecimentos bárbaros, mas, como os seus nomes o provam, de
domínios imperiais ou privados do Baixo-Império. Efectiva-
106 A FORMAÇAO Í)A ÉÜROPÂ

mente, numa grande parte da Gália, a existência duma no­


breza proprietária do solo e a organização agrária correspon­
dente, sobreviveram à conquista germânica e constituíram
os elos principais duma cadeia contínua que liga o mundo
medieval a Roma.
Esta ordem social não desapareceu com a queda do Im ­
pério do Ocidente. Bem pelo contrário, as invasões bárbaras
ajudaram em grande parte a favorecer o seu desenvolvimento
destruindo a máquina complicada da burocracia imperial, e
facilitando assim, no seio da sociedade, o desenvolvimento das
tendências centrífugas.
Importa lembrar que, exceptuando algumas crises excep­
cionais, o estabelecimento dos 'Germanos se realizou mais sob
â forma de infiltração progressiva do que em consequência
duma catástrofe súbita. A partir do século I I depois de Cristo,
Roma adaptara a prática de fixar cativos bárbaros nas pro­
víncias e, durante o Século IV, um enorme número de Germa­
nos e de Sármaitas foram estabelecidos como colonos .agrícolas
e militares nas regiões devastadas, prineipalmente nos Balcãs
e na Gália sententrional. Asisim é que os invasores bárbaros
era vulgar encontrarem as regiões fronteiriças ocupadas por
homens do seu próprio sangue, familiarizados com a civilização
romana e, superfieiaimonte, mas já .em certa medida, roma-
nizados.
•O próprio exército era em larga escala recrutado entre
..estes colonos bárbaros bem como entre os mercenários e os
'aliados de além fronteiras, que vieram a form ar no século IV
a flor dais tropas romanas. Para muitos bárbaros o Império
era, como diz Fustel de Coulanges, «não um inimigo, mas uma
carreira». Isto era verdade, principalmente quanto aos «povos
aliados» os foederati, cujas tribos forneciam levas de tropas ao
exército imperial em troca de subsídios regulares, ficando assim
para o governo imperial como actualmente, para o governo
da índia, .as tribos da fronteira noroeste. No Ocidente, o mais
importante, destes, povos eram os Francos, especialmente os
do ramo sálico. Depois de terem sido derrotados por Juliano
AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 10?

em 358,_ receberam a .permissão de se estabelecerem.em Toxan-


dria, ou Bélgica setentrional, como aliados ou faedem ti. Mas
já cantes desta data, grande número de Francos tinha entrado
no exército. Diz-se que Constantinopla os favoreceu e que
Silvanus, o mestre da infantaria que se revoltou contra Cons-
tantino em 355, era filho dum oficial franco. Na segunda
metade do século IV , muitos personngensi em destaque na his­
tória do Império do Ocidente, foram Francos. Por exemplo
Merobando, ministro de Graciano, Arbogasto, o fazedor de
reis e o mais perigoso rival de Teodósio, e Bauto, soigro do
imperador Arcádio.
Mais importante ainda foi o papel desempenhado no
Oriente pelos Godos, dos quais se pode dizer que foram os
principais fautores da história durante todo o período de que
tratamos. Os Visigodos, estabelecidos no baixo Danúbio — na
Dácia e nas regiões circunvizinhas — tornaram-se em 332
foederati do Im pério: a partir desta data e durante uma ge­
ração inteira, ficaram em paz com, os Romanos. Os Visigodos
foram o primeiro dos povos germânicos a receber o Cristia­
nismo, graças às pregações de Úlfilas, cidadão romano de ori­
gem gótica que fo i o fundador não só da cristandade germâ­
nica, unas também., mercê da sua tradução gótica da Bíblia,
o fundador da literatura teutónica. Mas como o Arianismo
dominava nesta época no Im pério do Oriente, os Visigodos
abraçaram o Cristianismo sob a forma ariana, a qual, por in­
fluência deles, se tornou a religião nacional de todos os povos
germânicos d o Oriente.
Entretanto os Ostrogodos, ramo oriental do povo godo,
que se demorara na Rússia do Sul, tinha fundado um reino
independente e poderoso que estendia a sua supremacia das
bocas do Vístula ao Cáucaso. Como vimos, a civilização deste
Estado não era puramente germânica, mas tomara os seus
traços característicos dos Sármatais conquistados ou aliados,
por sua vez fortemente influenciados pelas civilizações do
108 À FORMAÇÃO DA EUROPA

Irão e da Ásia central (1). Os Godos adquiriram, assim, um


estilo novo na arte e processos ide guerra que a seguir trans­
mitiram aos outros povos germânicos. Os Sármatas eram essen-
cialmente um povo de cavaleiros; é a eles que se deve a inven­
ção, ou pelo menos a introdução na Europa, dos estribos e das
esporas, o que provocou uma revolução na tática, tomando
possível o desenvolvimento da cavalaria pesada, que dominaria
a arte da guerra na Europa durante um milénio. Efectiva-
mente, os cavaleiros sármatas e godos, com as suas* cotas de
malha, as suas lançais e as suais espadas, são os verdadeiros
avatares e os protótipos dos cavaleiros da Idade Média.
Mas o reino ostrogodo não exerceu somente uma influên­
cia poderosa na civilização dos povos bárbaros. Foi também
a causa directa do movimento que destruiu a unidade d o Im ­
pério Romano, e criou os novos reinos bárbaros do Ocidente.
Durante todo o período das invasões, a Rússia meridional e a
fronteira do Danúbio Iforalm, mais ainda que a Germania e
o Reno, o centro das tempestades que se desencadearam sobre
a Europa. Foi lá que os Germanos, no decurso da sua migra­
ção do Báltico para o Sul, encontraram os povos vindos das
estepes asiáticas a caminho do Oeste1; e as suas forças combi­
nadas, empurradas para a frente pela pressão de novas hordas
nômadas, vindas da Mongólia oriental, caíram como vaga irre­
sistível sobre as defesas do Império Romano.
A origem primeira das invasões deve ir buscar-se ao
Extremo Oriente, às fronteiras do império chinês, donde os
hunos, desde há muito f lagelo da China, tinham sido expulsos
graças aos esforços dos imperadores Hain e à realização da
grande linha de defesa que vai do norte da China ao Tur-
questão oriental. A onda, contida assim a Leste, fez recochete
para Oeste e veio engrossar atrás das muralhas do Ocidente
romano.

O O s túmulos sárm atas encerram objectos de origem


chinesa, por exemplo punhos de espada de jade. Num deles encon­
trou-se um espelho de bronze chinês.
AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 109

Em 49 antes 'de 'Cristo, ols Hunos ocidentais abandonar


ram as suas habitações e puseram-se em marcha para o Oci­
dente, seguidos, século e meio depois, pelo que restava dos
Hunos setentrionais. No século III afastaram os Sármatas
da região do Volga e, no século seguinte, invadiram a Europa.
Em 375 da nossa era, esmagaram o reino ostrogodo e avan­
çaram cototra os Yisigodos. Estes puseram-se1à mereê de Roma,
que os autorizou a atravessar o Danúbio e a estabelecerem-se
na Mésia; mas a opressão dos oficiais romanos levou-os à re­
volta e, reforçados pelos Ostrogodos e pelos Alanos sármatas
de além-Dunúbio, invadiram: as províncias balcânicas. Em 378
encontraram o imperador Valente diante de Andrinopla e
saíram vitoriosos, graças ao ímpeto irresistível dos cavaleiros
sármatas e ostrogodos, chefiados pelos reis alamos Alatheus e
Saphrax. É uma das batalhais decisivas da história, porque
marca a vitória definitiva da cavalaria báiibra sobre a infan­
taria romana O ). Graciano e Teodósio puderam restaurar o
poder do Império, mas não o prestígio das legiões romanas.
Os GodoS continuaram 'alojados no Im p ério— ms Visigodos
na Mésia, os Ostrogodos na Panónia — ■e, contingentes godos e
alanos, servindo à,s ordens idos seus chefes, tornaram-se o núcleo
mais sólido dos exércitos romanos. O favor com que Graciano
e Teodósio trataram os seus mercenárias alanos e godos foi,
aliás, muito mal visto no Ocidente e veio a ser uma das causas
principais das tentativais que fizeram em váriais ocasiões os
exércitos gauleses, apoiados por elementos conservadores, e
pagãos, para afirmarem, perante 'Constantinopla, a indepen­
dência do Im pério do Ocidente. As guerras civis, que daí re­
sultaram, tiveram um efeito desastroso nos destinos deste
último. Não só os exércitos ocidentais foram enfraquecidos e
desmoralizados pelais suas derrotas, mas também Teodósio se
viu obrigado a transferir, da Gália para a Itália, a capital do (*)

(*)l O s romanos já tinham reconhecido a importância da


cavalaria pesada. 'Constâncio II devera em 351 a sua vitória de
M ursa aos seus couraceiros, os mta/phracti.
110 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Império do Ocidente. De Milão e de Ravena podiam os impe­


radores manter contacto com cus seus colegas do Oriente, mas
já não podiam guardar as fronteiras como o tinham feito
quando residiam em Tréveris. A Gália era o centro vital do
sistema defensivo romano, e a transferência do governo para
a Itália preparou o caminho para a desagregação do Império
do Ocidente ( x).
A morte de Teodósio desencadeou finalmente as forças
de destruição. Os Visigodos, alojados na Mésia, revoltaram-se
e, depois de terem assolado es Balcãs, marcharam, sobre a Itália,
seguidos por novas hordas vindas d o Danúbio superior. O gei-
neral dos exércitos ocidentais, Stilicão, um vândalo, conseguiu,
momentâneamente, repelir os invasores, mas a defesa do Reno
fora abandonada e no último dia do ano de 406 uma horda
de povos, Vândalos e iSuevos, sob a chefia dos Alan os, que por
toda a parte se encontram, abriu o caminho da Gália, devastou
por completo o país e daí passou à Espanha. Todo o Ocidente
era caos, onde generais romanos, chefes bárbaros, camponeses
revoltados se combatiam, indistintamente, uns aos outros. Do
seu longínquo retiro de Betólm, escrevia S. Jerónimo:

«Poucos de nós sobrevivem, não pelos seus méritos m as


por graça de Deus. Povos 'inumeráveis e selvagens ocuparam
toda a G ália; tudo o que está situado entre os A lpes e os
Pirenéus, entre o Reno e o Oceano1 é devastado pelos bár­
baros... Outrora, do m ar N egro aos A lpes Julianos, o que era
nosso deixava de nos pertencer e, durante trinta anos, tendo
sido violada a fronteira do Danúbio, combateu-se em plena
terra do Im pério. O tempo secou as nossas lágrim as e, excep-
tuando alguns velhos, a massa do povo, nascida no cativeiro
e durante o cerco, deixou de te;r saudades duma liberdade
que já nem sequer recordava. M as quem poderia acreditar
que Roma, no seu próprio solo, trave agora combate, não
por Glória, m as pela sua própria existência e até que já se
não bata mas resigate a sua vida a preço de ouro e de objectos
'preciosos?» (2) .(*)

0 ); G fr. C. Jullian, Histoire de Gaulle, V ol. V II, cap. V II.


(*)j E p. 123, 15-16.
AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE H l

E , de facto, na segunda e terceira décadas do século V,


parecia, serem chegadas, as últimas dias do Império. A p rópria
Roma fora posta, a saque por Alarico, cujo sucessor tinha, esta­
belecido um reino visigótieo na França meridional; os Vân­
dalos tinham conquistado a Á frica; os Francos, os Burgúndios,
os Alamanos tinham ocupado a margem esquerda do Reno;
os l í unos devastavam ao mesmo tempo o Ocidente e o Oriente.
Contudo, quando a tormenta passou, os... invasores apercebe­
ram-se t i e que..nãq lhes..interessava destru ir. o Império. Õs
Godos, que tinham sido seus aliados durante perto de um
século, tinham estado no decorrer dos trinta últimos anos,
alojados nais províncias romanas. Assim é que, quando por
suas próprias mãos talharam os seus novos reinos no Ocidente,
não tiveram dificuldade em estabelecer um modus vivenãi
com <a população romana e em reconhecer a supremacia nomi­
nal do Império.] O visigodo Ãtaiulfo declarou até, que outrora
quisera destruir o nome de Roma e fundar um novo império
godo, mas que, tendo-se em seguida apercebido de que a bar­
bárie indisciplinada dos Godos era impotente para criar um
Estado sem as leis de Roma, preferia agora ter a 'glória de res­
taurar. o nome romano graças à força goda 0 ) .
. i Este programa foi plenamente realizado no reino oStro-
godo que Teodorico 'estabeleceu na Itália em 493. Nenhum
outro Estado bárbaro atingiu um tão elevado grau die civili­
zação nem .assimilou a tal ponto as tradições governativas de
Roma; mas, exeeptuando os Vândalos, que, elm África, con­
tinuaram inimigos irreconciliáveis do Império, todos os outros
povos germânicos da fracção oriental — 1os Visigodos na Es­
panha e na Gália meridional, os Suevos na Espanha, os Bur­
gúndios a leste da Gália — vieram às boas com o Império e acei­
taram o estatuto, aliás puramente nominal, de .aliados ou fóe-
dercvti.j
Foram entre os Romanos provinciais como uma espécie
de guarnição permanente, seguindo o método já adOptado

0) Orósio, VII, 48.


112 A FORMAÇÃO DA EUROPA

quando foram. estabelecidas provi,sòriamente nas províncias


danubianas no século precedente. Os dois povos viveram pois,
lado a lado, .conservando cada um as suas leis próprias, as
suas instituições, a sua religião, católica para uns, ariana para
outros. Eram parasitas instalados à custa do organismo social
romano, que, por isso, foi enfraquecido na sua vitalidade mas
não destruído. A antiga aristocracia proprietária romana
continuou a sua vida sem alteração 'essencial, como vemos pelas
cartas de Sidónio Apolinário na Gáiia. e de Cassiodoro na
Itália, e, foi o caso deste último, ocupou muitas vezes até altos
cargos sob estes novos senhores.
É por isso que os reinos bárbaros, fundados pelos Ger­
manos do Oriente, tiveram curta vida. Sem raízes no solo defi­
nharam e desapareceram rapidamente. Na Gália foram absor­
vidos pelos Francos; na Itália e na Á frica foram varridos
pelos Bizantinos a quando do seu revigoramente com Justi-
niamo; na Espanha foram destruídos pela conquista muçul­
mana no princípio do século VilII. Nos países do Norte a situa­
ção fo i diferente. Os povos germânicos da fracção ocidental
passaram, em, massa, as fronteiras — ■os Francos na Bélgica
e no Baixo Reno, os Alamos no alto Reno e na Suiça, os Rugia-
nos e os Bávaros no alto Danúbio — 1e em toda, a parte, se apos­
saram da totalidade da terra. 'Continuando todos idólatras,
conservando ainda a, sua, existência tribal, tendo tido pouco
contacto com a civilização romana, não viveram à custa da
população conquistada como aristocracia militar e parasita
à maneira dos Godos: não andavam em busca de subsídios
mas de terras para lá se fixarem. A classe dos proprietários
romanos fo i extreminada, as cidades foram em muitos casos
destruídas, e viu-se nascer uma sociedade nova, de tipo tribal
e agrícola. Quanto aos antigos habitantes, na, medida em que
puderam sobreviver, tornaram-se servas e vinhateiros 0 ) ou
refugiaram-se nas montanhas e nas florestas.

1(Provàvelmente o term o vinhateiro tem a significação de


caseiro, tal como sucede entre nós na Ilh a de Santa M aria (N . do T .).
AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 113

Na Grã-Bretanha as coisas pais&aram-se duma forma bas­


tante diferente, porque o país sofreu uma dupla série de inva­
sões. Desde os meados do século IV , o principal perigo para
a Bretanha romana veio, não dos Germanos, mas dos Celtas
que viviam além fronteiras, na Irlanda e na Etacócia. E m 367
as suas forças unidas varreram todo o país e fo i então que foi
destruída a maioria das cidades e das «viLiae». Mas, na mesma
época, os piratas saxónicos fizeram incursões nas costas leste
e sul da Grã-Bretanha, bem como na costa oeste da França.
Desta forma fo i posta a civilização romana entre dois
fogos e sucumbiu depois de ter dado uma última prova de
vitalidade: a conversão dos Celtas, seus destruidores, por
homens como S. Niniano e S. P a trício— ■este último, filho dum
decurião britânico, levado como escravo para a Irlanda, por
ocasião duma das numerosas invasões. Uma tradição muito
provável quer que os SaxÕes tehham sido chamados à Grã-
-Bretanha pelos próprios provinciais para os defenderem dos
Pietos e dos Escotos. Não seria isto senão um ca'so particular
do costume do alojamento de «aliados» bárbaros nas províncias
em troca de serviços militares, e podemos supor que a partida
das legiões tenha deixado vagais grandes extensões aptas a
serem ocupadas. Mas, nesta ocasião, a civilização romana da
Grã-Bretanha já estava moribunda e a história ulterior da
conquista saxónioa é a dum conflito entre duas sociedades
rivais de tipo tribal — ambas estranhais à cultura romana — os
Celtas no país de Gailes e no vale do Clyde (Strathelyde), os
Germanos no este da ilha. Verdade é que os primeiros se
tinham tornado cristãos mas o seu cristianismo em nada se
assemelhava ao que tinha sido, na Bretanha romana, a Igreja
imperial com as suas cidades episcopais e a sua constituição
estritamente jerárquiea, E ra uma Criação nova devida ao
enxerto do cristianismo na civilização eéltica de tipo tribal.
A sua organização, de preferência à diocese (diocesan bisho-
pric), tinha por base o mosteiro local e atingiu O' seu pleno
desenvolvimento, não na Grã-Bretanha, mas na Irlanda, que,
nesta época, foi a sede de uma civilização rica e original. A obra
8
114 A FORMAÇÃO DA EUROPA

das escolas monásticas da Irlanda e dos santos monjes irlan­


deses foi duma importância enorme para a sociedade europeia.,
nois sécuilos que se seguiram às invasões bárbaras. Não foi ela,
contudo, que maiis contribuiu para manter a continuidade da®
tradições antigas : fo i a Gália que formou como que uma. ponte
entre o mundo romano e o mundo medieval. Nas províncias
mediterrânicas, as tradiçõeis da cultura romana eram ainda
extremamente fortes, ao passo que na Germânia romanizada e
na Grã-Bretanha as tribos bárbaras nada encontraram do
que antes havia. Foi somente na Gália que as duas sociedades
e as duas civilizações se encontraram em pé de igualdade e
que ais condições foram favoráveis a uma fusão e a uma uni­
ficação progressiva, de molde a lançar os fundamentos duma
ordem nova.
Para isso ser possível, contudo, era necessário algum
princípio de união. Não bastava que os bárbaros tolerassem a
civilização romana e adoptaisseim algumas das formas exteriores
do governo romano. O verdadeiro representante da população
conquistada não era nem o burocrata nem o homem de leis
romanas, mas o bispo cristão. Quando se deu o colapso do go­
verno imperial no Ocidente, ficou o bispo como chelfe natural da
população romana. Organizou a deífesa da cidade, como o
mostra o exemplo de iSidónio Apolinário em Clermont; tratou
com o® chefes bárbaros, tal fo i o caso de S. Lupo com Átila
e de S. Germano com o rei dois Alanos; foi, principalmente,
o representante da nova sociedade espiritual, ao mesmo tempo
que da antiga civilização laica.
'Durante toda a época das invasões, o® chefes da socie­
dade cristã, homens como Sidónio Apolinário ou Santo Avito,
conservaram a sua fé, não só na sua religião, mas ainda, nos
destinos imperiais de Roma e na supremacia da civilização
antiga. ; ■■"
. Os cristãos guardavam o sentimento de que, enquanto a
Iigreje vivesse, seria a obra do Império preservada da destrui­
ção; de que, em se tornando cristãos, ou antes católicos, os
próprios bárbaros se tornariam romanos e de que «a onda
AS INVASÕES BARBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 115

bárbara viria quebrar de encontro à rocha de Cristo». Como


escreve Paulino de Nola a propósito dum missionário cristão
('Nicetas de Rem esiana):

P er te
Barbari discunt resonare Christum
Corãe romano.

O único grande obstáculo, à fusão dos Romanos e dos


bárbaros numa única sociedade, era. a diferença das suas reli­
giões. Todos os primeiros reinos germânicos — os dos Visigo-
dos e dos Burgúndiois na Gália, dos Ostrogodos na Itália, dos
Yisigodois e dos Suevos na Espanha e, principalmente, o dos
Vândalos na Álfricai — eram arianos, estavam portanto em
permanente oposição à Igreja do Império e das populações
conquistadas. Daqui resultou o facto paradoxal de a unifi­
cação da Gália se não ter realizado pelo reino romano-gótico
do Sudoeste, embora fosse relafivameinte civilizado, mas pelo
reino bárbaro dos Francos do Nordeste. É verdade que, apesar
do seu paganismo, os Francos estavam em relações com o Im ­
pério desde há muito mais tempo do que os outros povos do
Oeste germânico. Os Francos Sáflios tinham-se estabelecido
em território imperial — na Bélgica e no curso inferior do
R e n o —’ desde meados do Século IV, e tinham, no século V,
combatido, como aliados dos governadores da Gália, contra
os SaxÕes, os Visiigodos e os Hunos. Em 486 o seu rei, Olo-
doveeh ou Clóvis, conquistou a região entre o Soma e Doire,
última relíquia da Gália romana independente, e tornou-se
desta forma o cheife dum reino meio romano', meio germânico.
Mais a sua conversão ao catolicismo em 493 é que foi a viragem
da história desse tempo, porque instaurou a aliança do reino
franco com a Igreja, fundamento da história da Idade Média,
que devia levar mais tarde à restauração do Império do Oci­
dente, no reinado de Carlos Magno. O efeito imediato foi
facilitar a unificação da Gália, graças à absorção dos reinos
arianos, e permitir a Olovis fazer-se reconhecer pelo governo
116 A FORMAÇÃO DA EUROPA

imperial de Constantinopla com o o representante legal da


potência romana.
F oi na sua qualidade de representante do catolicismo
perante o arianismo, que Clóvis empreendeu em 507 a sua
grande campanha contra os Godos. «Muito me custa, teria
ele dito, ver estes arianos detentores duma parte da Gália.
Vamos, com a aguda de Deus, Vençamo-los e tomemos as suas
terras!» C ). ,A quem lê Gregório de Tours a campanha apa­
rece como uma guerra santa e o avanço de 'Clóvis é marcado,
a calda passo, por miraculosos -sinais do favor divino. A vitó­
ria da Vouillé e a sua conquista da Aquitânia marcaram cer-
tamento a aparição no Ocidente dum novo Estado católico
cuja importância foi reconhecida pelo imperador Anastácio,
que se apressou a conferir a Clóvis as insígnias duma magis­
tratura romana. Durante os trinta anos .seguintes, a monar­
quia franca fez progressos extremamente rápidos. Graças a
ela, não só a Gália se viu mais uma vez unida, mas também
o seu poder se estendeu a Leste, muito para lá das antigas
fronteiras romanas. Bem depressa foram submetidos1, uns
atrás dos outros, os Alamanos, os Turíngios e os Bávaros, e
surgiu um grande Estado avoengo não só da França mas tam­
bém da Alemanha medieval. Em parte nenhuma, melhor que
nesta oibra de conquista e de organização a leste do Reno, mos­
traram os Francos até que ponto tinham assimilado as tradi­
ções romanas. Ainda agora a Alemanha do Sul conserva a
marca do seu Governo.
O novo Estado comportou-se desde o início como o her­
deiro do Império, Salvou e restaurou o que dele subsistia
depois do naufrágio da administração romana. Conforme q
modelo dos imperadores, o rei bárbaro teve o seu «palácio
sagrado», eom a sua jerarquia de funcionários; a sua chan­
celaria, com os seus escribas galo-romanos; conservou as fo r­
mas e a rotina da antiga administração; tirou o seu rendi­
mento dos domínios do fisco imperial e do imposto predial,

"J| O G regorio de Touts, História, II, 37.


AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 117

repartido segundo o sistema antigo dos registos cadastrais.


A unidade administrativa não fo i a «centena» germânica,
como nas regiões do norte, desde há muito francas, mas o terri­
tório da cidade posto soíb a autoridade do conde. A té o pessoal
da administração foi tanto romano como franco: Protadius
e Olaudius foram preifeitos do palácio no reinado da rainha
Brunild a o mais hábil general dos exércitos francos no sé­
culo Vil foi o patrício Mummolus. Sob certo® aspectos o poder
do rei franco foi mais absoluto que o do antiga governo imperial,
pelo menos em relação à Igreja que, de dia para dia, mais foi
caindo debaixo da fiscalização do Estado, de form a que o bispo,
sem nada perder da sua importância social se tornou na sua
diocese, ao lado do Conde, o principal representante do rei.
'Mas, por sua vez, no novo Estado, o elemento bárbaro
não deixava de se manifestar com nitidez. A unidade romana
desaparecera e com ela o ideal romano da soberania da lei.
O que havia não era mais que uma mistura confusa de tribos
e de povos, vivendo cada um conform e a sua lei pessoal.
O Franco, o Galo-romano, o Burgúndio não eram julgados
segundo uma lei comum' a todo o Estado, mas cada um seguia
o seu código nacional. Mesmo quando uma instituição tinha
sido copiada de Roma, não era senão um corpo cu ja alma já
não era a de outrora. Porque o poder que se movia por detrás
da imponente decoração do Estado franco, era ainda a tribo
guerreira dos bárbaros. Se a sociedade tinha alguma coesão,
não o devia à autoridade civil e judicial do Estado, mas à fide­
lidade pessoal dos membro® das tribos para com o seu chefe
e a sua parentela, dos guerreiros para com os sieus generais.
A «'fidelidade», o apego pesisoal do indivíduo que presta jura­
mento de vassalagem ao poderoso senhor de quem obtém em
troca a protecção, substituiu as relações regulada® pela lei
entre cidadãos livres e magistrados. Os crimes foram con­
siderados, antes de tudo, corno ofensas ao indivíduo lesado e
à sua parentela, e consequentemente susceptíveis de resgate
mediante uma composição ou wergild cuja taxa variava con­
forme a classe e a nacionalidade da vítima.
118 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Esta amálgama de elementos germânicos e de elementos


romanos da última época, tão visível na estrutura do Estado,
manifesta-se através de toda a civilização deste tempo. No
princípio da conquista ’estes dois elementos opõem-se forte-
mente um ao outro, mas, à medida que o tempo decorre, ate­
nua-se o contraste e os caracteres próprios de cada um destes
elementos apagam-se para darem lugar a uma civilização nova.
Os recentes trabalhos dos arqueólogos, na primeira fila dos
quais se encontram os Escandinavos, põem em plena evidên­
cia esta evolução no campo da arte. A datar do século IV
podemos pôr em relevo duas correntes artísticas distintas que
vão entrando na Europa: uma irano-gótiea, outra siro-bizan-
tina. Ambas, como tantas outras correntes de civilização nos
tempos pré-históricos, têm o seu ponto de partida na Ásia
ocidental e vemo-las propagarem-se segundo as duas grandes
vias que marearam «já as direcções principais do tráfego pré-
-histórico : a via marítima — ■o Mediterrâneo — e a via terres­
tre! — a estepe russa, ao norte do Mar Negro, e os vales do
Danúbio e do Vístula. Foi durante a sua permanência na
Rússia meridional que os povos germânicos se iniciaram junto
dos Sármatas na arte da joalharia políeroma e no estilo fan­
tástico da ornamentação animal que tinha já caracterizado a
arte eítioa e viria a ser, a partir do século V I, o elemento típico
da decoração no mundo germânico até à Escandinávia. A joa­
lharia políeroma de que acabamos de falar ficou confinada
aos povos que 'emigraram da Rússia meridional, como, por
exemplo, os Godos e os Aílanos (que não eram de raça germâ­
nica) e aos que sofreram a sua influência. Têm sido encontra­
dos numerosos exemplos desta arte tanto para Oeste como na
Espanha ou em Herpes, na França do sudoeste, ou ainda em
Kent e na ilha de W ight, o que denota a existência duma liga­
ção estreita da civilização dos Jutas mais com a dois Francos,
através do Canal da Mancha, do que com a Dinamarca. Por
outro lado, os broches cruciformes ou de cabeça quadrada,
encontrados nas regiões em que se estabeleceram ois Anglos, são
indício de relações com a Escandinávia. Quanto à arte saxó-
AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE *■

nica primitiva da Grã-Bretanha meridional, afasta-se eia ignaü-


mente da do rieisto da Inglaterra e da do continente no uso
que faz dos ornamentos geométricos, de preferência à orna­
mentação animal, © na conservação de motivos especificamente
romanos como a bordadura de ovais e de linguetas ou os orna­
tos formados de filetes entrelaçados (guittoche) ( x). A durau
ção relativa destas esicdlas de arte germânica permite-nos ver
em que medida os invasores salvaguardaram a sua própria
civilização ou se abandonaram à influência do seu novo am­
biente. Na Inglaterra as tradições artísticas teutónicas sobre­
viveram até ao fim do século V II, ao passo que na França
a influência mediterrânica da arte siríaea e bizantina se exer­
ceu desde os meados do século V I e que a sua vitória é o sinal
do que um erudito escandinavo chamou «a desgermanização
da civilização franca».
Os mesmos problemas se põem a propósito da religião,
da literatura e do pensamento, mas aqui a ©vidência é menor.
Salvo na Inglaterra, a religião nacional dos Germanos não
sobreviveu às suas conquistas. Em alguns casos, na dos Godos
por exemplo, o Cristianismo fo i vitorioso no século IV , © a
tradução gótica da Bíblia pelo bispo ariano Úlfilas marca o
início da literatura teutónica. Dos Godos, o Cristianismo gar
nhou rapidamente os outros povos germânicos de leste; mais
os Germanos do oeste conservaram a sua religião nacional até
uma data mais tardia e a conversão da casa real franca, bem
como a das classes dirigentes entre os outros povos germanos
que eles submeteram, já não teve retumbância imediata na
massa da população rural. De resto, mesmo depois de terem
aparentemente aceitado o Cristianismo, os Germanos conser­
varam os seus costumes e as suas ideias de guerreiros pagãos.
O enterramento do rei Alarioo no leito do rio Busento, eoím
os seus tesoiros e os cadáveres dos seos escravos executados,

0 )! V . Thurlow Leeds, Archaeology of Anglo-Saxon Settle­


ments, p, 5'8 ss., e :R. (Smith, Guide to Anglo-Saxon Antiquities,
p. 25 e 34.
120 A FORMAÇÃO DA EUROPA

lembra mais os funerais de Pátroclo do que os dum rei cristão.


Porque foi esta a idade heróica dos Germanos e, como o de­
monstrou o Prof. ChaJdwick, ela é comparável, do ponto de
vista sociológico, à idade homérica da Grécia antiga. Num
e noutro período, o contacto duma civilização antigamente
estabelecida com uma sociedade primitiva e guerreira deter­
minou uma evolução que igualmente arruinou a organização
do Estado conquistado e a da trilho conquistadora, e que fez
do chéfe de guerra e dos seus companheiros o factor social
preponderante. O esplendor destes príncipes guerreirois «sa­
queadores de cidades» e a história dramática das suas aven­
turas permaneceram como um ideal gravado na memória dos
homens dos tempos bárbaros que se seguiram. Teodorico de
Yerona, Gunter de Worms, o rei dos Hunos Etzel, BeowuUf,
Hiidebramdo e muitos outros são as personagens dum eido
épico tornado propriedade comum dos povos germânicos; e,
posto que nunca tivessem encontrado o seu Iíomero, a história
dos Nibelungos e da destruição do reino burgúndio pelos Hunos
não é inlferior, em trágico, à da queda de Tróia e do destino
dos Átridas. À vista destas lenda® heróicas a literatura dos
povos conquistados parece bem pobre. Os poemas de Sidónio
Apolinário e de Venâncio Portunato são o esforço final duma
tradição moribunda. Contudo, foi a tradição latina que vingou
em toda a 'extensão dos países conquistados, e a sobrevivência
da tradição clássica foi duma importância vital para o futuro
da Europa e o nascimento da civilização medieval. Apesar
da sua falta de qualidades literárias, escritores como Orósio,
Isidoro de Sevilha, Oasiodoro e Gregário Magno fizeram mais
pela formação dos espíritos das gerações posteriores do que
muitos génios de primeira grandeza.
A tradição latina perpetuou-se na Igreja e nos mos­
teiros, e como os próprios bárbaro® tinham adoptado o Cristia­
nismo, ela não ficou sendo o património exclusivo da população
eonquistada, mas exerceu uma influência preponderante na
ordem nova.
Assim se tinha operado no século V I uma fusão preli­
AS INVASÕES BÁRBARAS E A QUEDA DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 121

minar entre os quatro elementos da combinação dos quais devia


sair a nova civilização europeia. A s invasões tinham tido,
como efeito, determinar uma amálgama de raças e de civiliza­
ções, entre os bárbaros germanos e a sociedalde romana. O cen­
tro vital desta evolução foi a Gália, onde os dois grupos se
encontraram, melhor que em outra parte, em pé de igualdade
quase completa, mas ela estendeu-se a toda a Europa ocidental,
de form a que todo® os povos ocidentais foram, em diferentes
graus, romano-germanos pela cultura, Onde quer que o ele­
mento germânico se encontrasse mais fraco, na Itália por
exemplo, era ele reforçado no século V I por novas invasões
bárbaras; e onde quer que a tradição romana parecesse ter
sido destruída, como na Grã-Bretanha ou na Germânia, lá
era ela reanimada pela obra da Igreja e dos mosteiros, nos
séculos V II e V III.
Apesar da vitória aparente da barbárie, a Igreja con­
tinuou a representar a antiga tradição de cultura e foi como
que um elo espiritual entre os descendentes dos Romanos con­
quistados e os seus conquistadores bárbaros. Mas foram pre­
cisos séculos para que, na Europa ocidental, as forças constru­
tivas fossem assás vigorosas para levarem de vencida as forças
de desagregação e de barbárie. F oi para Oriente que passou
a hegemonia da civilização, e o grande período das «trevas»
da civilização ocidental coincide com a idade de oiro da civi­
lização bizantina e muçulmana.
SEGUNDA PARTE

A SUPREMACIA DO ORIENTE
CAPÍTULO VI

O IMPÉRIO CRISTÃO
E O DESENVOLVIMENTO DA
CIVILIZAÇÃO BIZANTINA

La NQUANTO o Ocidente latino ia mergulhando no caos e


B"" na barbárie, no Oriente, o Império não só sobrevivia
mas também se tornava o centro duma civilização nova. A his­
tória . desta evolução foi tratada com maior desdém .e negli­
gência do que a de qualquer outro período da civilização era.ro-
peia. 0 estudo moderno da História tem tomado dois pontos
de partida: a história da antiguidade clássica e a do nasci­
mento das actuais nacionalidades europeias, e tudo o que não
coube neste esquema foi desprezado ou mal compreendido.
Até o maior historiador inglês do Império do Oriente, E dw ard
G-ibbon, mostrou, para com a civilização bizantina, uma falta
absoluta de simpatia: para ele, não era ela mais que um apên­
dice à história romana, enquanto, para o seu sucessor da época
vitoriana, Finlay, era principalimente uma introdução à his­
tória da Grécia moderna.
Na realidade, a civilização bizantina não é uma simples
sobrevivência decadente dum passado clássico; é uma criação
nova que constitui o pano de fundo diante do qual se desen­
volve toda a civilização medieval, e, até certo ponto, a do Islão.
É verdade, que a grandeza de Bizâncio se prende mais ao seu
papel artístico e religioso, do que à sua obra política e social.
O vivo interesse que, de há. uns anos para cá, suscita a história
126 A FORMAÇÃO DA EUROPA

de Bizâncio, é devido quase inteiramente a uma apreciação


mais justa da arte bizantina, porque, quando admiramos a
arte dum povo, não podemos desprezar completam ente a sua
cultura. De resto, o Império do Oriente, até pela sua, duração,
mostrou que devia possuir elementos de força política e esta­
bilidade ,social.
Mais, se quisermos compreender a civilização bizantina e
apreciar o seu valor, é vão julgá-la por comparação com a Eu­
ropa moderna., ou mesmo com a Grécia ou a Roma clássicas.
Devemo-la antes considerar em relação com o mundo oriental
e colocá-la no seu verdadeiro meio, ao lado das grandes civi­
lizações orientais da mesma época, tais como as da Pérsia
sassânida e do ealilfado de; Damasco ou de Bagdad.
Nos séculos I II e IV depois de Cristo, as antigas civi­
lizações orientais parece que conheceram uma nova. juven­
tude e deram novamente provas duma intensa, actividade cul­
tural. Nas índias foi a época de Saimudraigupta e de Tehan-
dragupta II, época clássica da arte e da literatura hindus.
Na China foi, apesar da desagregação política do Império, o
início dum novo período para a arte e para a religião, graças
ao desenvolvimento do Budismo, que teve na civilização chi­
nesa repercussões profundas. Na Pérsia principalmemte, foi
a época do renascimento político e religioso, a época dos gran­
des reis sassânidas, que restauraram a tradição nacional da
monarquia iraniana e que fizeram da religião de Zoro&etro a
religião oficial do novo Estiado. Porque a nova monarquia
persa, como a do antigo Eigipto e a de Babilónia, era urna
monarlquia sagrada, fundada em princípios religiosos. O espí­
rito que a inspirava manifesta-se nos grandes baixos relevos
de Ohalpur e de Nakohi Rustaim. A li .se vê A ura Mazda a con­
ferir ao Rei dos Reis os emblemas da, majestade; ambos mon­
tam grandes cavalos de guerra e trazem o mesmo trajo e as
mesmas insígnias reais. Um outro baixo relevo apresenta-nos
o imperaldor Valeriamo de joelhos diante de Sapor, seu vence­
dor, para humilhar o orgulho romano perante o Oriente
triunfante.
O DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 127

É verdade, que esta vaga de arientalismo' não destruiu


o Império Romano, mais transformou-lhe o carácter. Já no
século III Aurdiamo, o restaurador do Império, tinha trazido
das suas campainhas da Síria o ideal oriental da monarquia
sagrada e tinha estabelecido uma espécie de monoteísmo- solar
—■ o culto do Sol Invencível— - de que tinha feito a religião
oficial do Império restaurado. Este teísmo solar foi a religião
da caisa de Oonstantino e preparou o imperador para rceeibcr
o Cristianismo. O novo Império cristão de Bizâncio é um fenó­
meno paralelo à nova monarquia zoroáslrica da Pérsia sassâ-
nida C ). Era da mesma forma uma monarquia sagrada, fun­
dada na nova religião universal, o Cristianismo. Porque o
Santo Império Romano — Samcta republica romana — fo i
criado, não por Carlos Magno, mas por Gonstantimo e Teo-
dósio. No século V tornara-se num autêntico Estado-Tgreja,
e o imperador era uma espécie de rei-sacerdote, cuja autori­
dade eira, considerada como o reflexo terreno e o representante
da Soberania do Verbo Divino (2). P or consequência o poder
do imperador já não estava disfarçado, como durante o Alto-
-Império, pelas formas constitucionais duma magistratura
republicana; estava rodealdo de todo o prestigio religioso, de
todas as pomposas cerimónias do despotismo oriental. O sobe­
rano era o «ortodoxo e apostólico im perador»; a sua corte
era o «Palácio sagrado»; os seus bens constituíam a Casa
Divina; os seus editos eram «as ordens celestes»; chegava-se
a qualificar o lançamento anual dos impostos de «repartição
divina».
Todo o governo, toda a administração foram transfor­
mados em conformidade com estas ideias. Doravante, já não
havia lugar para o Senado considerado como uma autoridade

0) Acerca deste paralelismo v. a discussão de E . Korne-


mann em Gercke e Norden, Vol. I I I : Die römische Kaiserzeit, apên­
dice 4 ( A nova Roma e a nova Pérsia), com uma abundante biblio­
grafia.
(2) lOfr. Eusébio, Discurso sobre os Tricennalia de Cons­
tantino, caip. II.
128 A FORMAÇÃO DA EUROPA

constitucional independente e paralela à do imperador, como


o tinha sido no tempo de Augusto, nem para a cidade enquanto
centro autónomo de administração local. Toda a autoridade
residia no imperador ou dele provinha. E ra a cabeça duma
vasta jerarquia, que segurava nos seus tentáculos toda a vida
do Império. Toda a actividade de ordem social ou económica
estava subordinada a um examie e a uma regulamentação das
mais minuciosas; era tomada nota, em duplicado ou triplicado,
nos registos oficiais, de cada cidadão, de cada escravo, de cada
cabeça dè gado, de cada parcela de terreno.
Só as funções civis é que permitiam, aparte o exército
e a Igreja, ascender aos postos superiores da sociedade. Qg
\ titulares dos mais elevados postos formavam a nova aristoerà-
) cia e o próprio Senado mais não era que uma assembleia de
i ex-funcionários. Os serviços administrativos (o ffid a ), agru-
jpados à volta de cinco grandes m inistros— o prefeito do pre-
Jtório, o mestre dos ofícios, o conde das «sagradas dádivas», o
yConde.dos Domínios Privados, o questor do «Palácio Sagrado»
— compreendiam centenas de escriturários e de notários que
exerciam uma fiscalização absoluta sobre as menores particu­
laridades da administração nas províncias mais afastadas. Este
sistema burocrático foi, do século IV ao V II, o sinal caracterís­
tico do Baixo-Império: distinguei-o tanto do Alto-Império,
em que as magistraturas eram uma prerrogativa cívica não
retribuída, como da sociedade semi-feudal do reino sassânida.
Não era isto porém, colmo a concepção teoerátiea da monarquia
e o cerimonial da corte, o resultado de influências orientais
novas: era uma herança da administração civil imperial da
época dos Antohinos e da organização burocrática das monar­
quias helenísticais. A fin al ide contas, como o provou o prof. Ros-
tovtzeff, era evidente que este sistema tinha as suas raízes pro­
fundas nas tradições administrativas das grandes monarquias
orientais da Pérsia e do E gipto; mas se estava ligado pelas
suas origens ao Oriente, era ao Ocidente que se devia a sua
sistematização e racionalização. Por isso, apesar do's seus de­
feitos— e tinha m uitos— encontra-se nele algo daquele espí­
0 DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 129

rito político da civilização ocidental que a barbárie feudal


dos reinos germânico® e o despotismo teocrático do Oriente
tinham arruinado. 0 Império Bizantino estava exposto a um
duplo perigo: por um lado, os grandes proprietário® e o®
foreiros (tenants) da coroa pretendiam assegurar a sua inde­
pendência e acumular funções e privilégios políticos à pro­
priedade das suas terrais; por outro lado, podia-se temer que a
anitoridade imperial viesse a ser olhada como a expressão da
vontade irresponsável dum monarca divinizado. Graças à
existência da administração civil, nenhum destes dois riscos
se realizou eomipletamente e sobreviveu a concepção do Estado
e da lei que se fazia no Ocidente. É, na realidade, à existência
deste corpo de funcionários bizantinos que se dev© não só a
conservação do direito romano, mas também o acabamento
da sua evolução: o 'estudo do direito romano constituía para
eles uma formação obrigatória, © fo i para os dotar dum ma­
nual que foram compiladas as Instituías de Justiniano. A bu­
rocracia de Teodósio II e de Justiniano valeram-nos pois as
grandes compilações, por que foi transmitida ao mundo me­
dieval e ao mundo moderno a herança da jurisprudência
romana.
!Semelhantemente, a vida social do Império do Oriente,
posto que influenciada pelo Leste, conservou alguma coisa da
tradição helenística. Embora as instituições da cidade clássica
tivessem perdido a sua vitalidade e fossem como uma casca
vazia, a própria cidade não tinha desaparecido, como havia
de acontecer na Eurdpa ocidental: permaneceu o centro da
vida social e económica e imprimiu um carácter urbano à civi­
lização bizantina. A cidade bizantina já não era, como o tinha
sido a municipalidade romana, uma comunidade formada de
proprietários e de rendeiros (ren tiers); devia a sua impor­
tância antes de tudo ao comércio © à indústria. Durante todo
o período de destruição e de regressão económica que acompa­
nhou a queda do Império do Ocidente, as províncias orientais
conservaram uma grande parte da sua prosperidade económica.
As oficinas de Alexandria e da Síria setentrional continuaram
9
130 A FORMAÇÃO DA EUROPA

florescentes e os seus produtos continuaram a ser exportados


em todas as direcções. Colónias de mercadores bizantinos, ge-
ralmente de «origem síria, estabeleceram-se nos centros impor­
tantes do Ocidente, não só na Itáilda e na Espanha, mas até
em plena Gálda, até em Paris, onde um mercador sírio foi eleito
bispo em 591. Para leste, o comércio prosseguiu activamente
com a Abissínia e a índia pelo Mar Vermelho, com a China
e ia Ásia central pela Pérsia, depois pelo Mar Negro e o Cáspio.
O Quersoneso conservou ,a sua importância como entreposto,
para o comércio de peles e escravos com a Kússia O , e o®
barcos de trigo vindos de: Alexandria continuaram a singrar,
ao norte até ao BósSforo, ao poente alé Espanha (2).
Tolda esta rede de rotas comerciais convergia para Cons­
tantinopla, que, dilferen tem ente de Roma, era ao mesmo tempo
a capital política e a capital económica do Império. Foi esta
uma das principais causa® da prosperidade e da estabilidade
do estado bizantino. A o passo que no Ocidente, durante toda
a alta Idade Média, quase que por completo é inexistente a
vida urbana e que estados poderosos, como o império de Carlos
Magno, não têm capital fixa, Constantinopla continua uma
brilhante e populosa metrópole. A grandeza dos seus muros
e dos seu® edifícios, o esplendor da sua corte, a riqueza do®
seus habitantes fazem até mais impressão aos povos vizinhos
que a força militar do Império.
Mas é impossível compreender a civilização bizantina,
se a considerarmos somente solb o ponto de vista económico
ou político. Porque, muito miais que qualquer outra sociedade
europeia, era ela fundamentalmeinte religiosa e exprimia-se
essencialmente segundo uma forma religiosa; e ainda agora,
persiste largamente este carácter nas tradições da Igreja orien-

O Foram encontrados em Perm , na Rússia oriental, vasos


de prata bizantinos que remontam ao século V I.
(2)i :A Vida de iS. João Esmoler por 'Leôncio de Nápoles
menciona, no princípio do século V II, o caso de um barco de trigo
que foi arrastado para Oeste até à Grã-Bretanha e que voltou carre­
gado de estanho.
0 DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 131

tal. O europeu de boje tem por costume considerar as socie­


dades ocupadas, antes de mais, com a vida presente e as ne­
cessidades materiais e julgar que a religião influencia apenas
a vida moral do indivíduo. Mas a!os olhos do Bizantino — e
poder-se-ia dizer: do homem da Idade Média em geral — a
sociedade religiosa estava no primeiro plano, e só depois disto
se ocupavam dos negócios económicos e profanés. Todos, o
polbre principalmente, passavam a maior parte da vida num
mundo de temores e de esperanças religiosas, cujas figuras
sobrenaturais eram, para eles, tão reais como as autoridades
do Império. Este sentimento do «além» remonta, diga-se de
passagem, aos primeiros séculos do 'Cristianismo ; mas quando
a nova religião fo i adoptada como culto oficial do Império,
revestiu formas inéditas ique se tornaram características da
civilização bizantina. Notemos em primeiro lugar o mona-
quismo, nascido no E gipto no século I V e espalhado com
extraordinária rapidez ao mesmo tempo pelo Oriente e pelo
Ocidente. Os monges do deserto eram a incarnação, atlé ao
extremo, da vitória do espírito religioso do Oriente sobre a
civilização d o mundo clássico. Tinham-se af astado por com ­
pleto da vida da cidade e da sua civilização material. Não
se consideravam ligados a qualquer obrigação de ordem polí­
tica, não pagavam os impostos, não combatiam, não educavam
crianças. Toda a sua afetividade convergia para o mundo espi­
ritual ,e a sua vida mais não era que um esforço sobre-humano
para ultrapassar os apertados limites da existência terrestre.
Foram contudo estes ascetas, nus, descarnados pelos jejuns, que,
em todo o mundo bizantino, se tornaram heróis populares tidos
por modelos. Rutilius Namatianus bem podia compará-los aos
porcos de C irce—•«com a diferença de que Circe mudava
sòmente os corpos enquanto que eles até ate almas mudam».
Mas Namatianus era um dos últimos sobreviventes da velha
guarda do conservantismo romano : no Oriente todas as classes
da sociedade, desde o Imperador até à ralé miúda, rivaliza­
vam em atenções para com os monj es. Até grandes persona­
gens —■como Arsénio, tutor de Arcádio, — ■se viram abando-
132 A FORMAÇÃO DA EUROPA

nar a soía situação © a sua fortuna para s© r©tirarem para o


deserto. E até para aqueles que não passavam da teoria ao
aeto, o ideal monástico se tomou, no Império, o ideal de toda
a vida religiosa. O m onje era o super-homem que o simples
•clérigo © o leigo seiguiatoi de longe. Todos admitiam que a
actividade profana deve estar subordinada à vida puramente
religiosa. A seus olhos, as verdadeiras forças que guiam o
mundo não eram as da finança, da guerra ou da política, mas
as potências do mundo espiritual, a jerarquia celeste das V ir­
tudes e das Inteligências angélicas, jerarquia invisível a que
corresponde a ordem visível da jerarquia eclesiástica e a ordem
sacramental dos Divinos Mistérios. Um Bizantino podia facil­
mente crer na intervenção miraculosa da Providência ma sua
vida quotidiana, pois via, na liturgia, realizar-se na sua pre-
semça o milagre contínuo da Divina Teofania.
Esta falimiliaridade com as realidades espirituais e o
mistério era posse comum de todo o mundo bizantino. O homem
culto chegava lá por intermédio da filosdfia mística dos Padres
gregos, especiailmente de Dionísio o Areop agita e de Máximo
o Confessor; o homem sem instrução .adquiria-a graças às im a­
gens multicores da arte e da lenda. Não havia conflito entre
estas duas atitudes, porque o simbolismo da arte © as abs-
tracções do pensamento encontravam na liturgia e no doigma
da Igreja um (fundamento comum.
E assim, se o povo não tomava parte na política d o Im­
pério nem nos negócios do governo, seguia com um interesse
apaixonado as questões da Igreja e as controvérsias religiosas
do seu tempo. É-nos difícil compreender uma época, em que
„os artigois do Credo de Atanásio constituíam matéria de apai­
xonadas discussões nos cantos das ruas, em que vocábulos teo­
lógicos abstrusos como «consubstanciai» e «inconsusbstancial»
se tornavam o grito de guerra de manjes rivais. A cerca disto
temos o testemunho nem mais nem menos que de 'S. Gregório
de Nazianzo: conta-nos que, em Constantinopla, se se entrasse
numa loja para Comprar um' pão «o padeiro, em vez de vos
dizer o preço, começa a sustentar que o» Pai é maior que o E i-
0 DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 133

lho. O cambista falará do Gerado e do Nãongerado, em vez


de vos entregar o vosso dinheiro; e se quiserdes tornar um
banho, o empregado assegurar-vos-á que não há dúvida de que
o Filho não procede de ninguém».
'•Claro é que, em tail mundo, era de suma importância
que o Estado e a Igreja estivessem intimamente ligados, por­
que, perdendo a fidelidade da Igreja, perderia o Estado me­
tade da sua autoridaidie e veria levantar-se contra ele não só
a organização eclesiástica, mas também todas as forças do sen­
timento popular. Por isso a unidade da Igreja era uma dais
preocupações dominantes da política imperial e, desde Cons­
tantino, que convocou o concílio de Nicea, todos os imperadores
fizeram todos os esforços para salvaguardar a unidade reli­
giosa e impor a 'conformidade às minorias recalcitrante®. O ver­
dadeiro fundador da Igreja de Estado no Império do Oriente
foi Constâneio II, personagem bem bizantina, pelo interesse
apaixonado que tomava nas controvérsia® teológicas e pela sua
fé na ideia de que as prerrogativas imperiais faziam dele o
defensor da ortodoxia e o árbitro supremio das discussões ecle­
siásticas. Os realizadores da sua política religiosa foram, por
um lado, os bispos da corte, à frente dos quais estavam Ursá-
cio e Valerns que formavam uma espécie de Santo Sínodo
em íntimas relações com o imperador, e por outro lado os con­
cílio® gerais que o próprio imperador convocava e dirigia O .
Mas este sistema chocou com a oposição veemente de dois lados
ao mesmo tempo: & de Santo Atianásio, o grande bispo de
Alexandria, e a; do Ocidente, que mantém em toda a sua pu­
reza a doutrina da independência da Igreja pela voz princi­
palmente de Santo Hilário e de Hósio, o célebre bispo de
Córdova.

I 1) O seu número foi tal, que Amiano Marcelino se quei­


xava, de o serviço dos transportes imperiais estar completamente
desorganizado pelos bandos de bispos que viajavam em todos os
isentidos, recorrendo aos transportes do Estado (Amiano Marcelino,
iXXI, 1 6 ,1 8 ) .
134 À FORMAÇÃO DA EUROPA

F oi estai a (Origem dum longo cisma entre o Ocidente


e a Igreja imperial do Oriente, dum cisma que durou até ao
momento em que um imperador vindo do Ocidente, restaibele-
ceu a fé definida no concílio de Nieea. N o princípio do seu
reinado, Teodósio tentou restaurar a unidade, impondo a con­
cepção da autoridade que tinha prevalecido no Ocidente: «Nós
queremos, escreve ele, que todos os nossos súbditos creiam em
conformidade com o que 10 divino apóstolo Pedro ensinou aos
Romanos..., a qual é seguida pelo papa Dâmaso e pelo bispo
Pedro de Alexandria, homem duma santidade apostólica» ( x) .
Todavia este decreto não Pastou só por si para conseguir a
pacificação, e Teodósio teve de recorrer ao método tradicional
no Oriente : o do eoncíolio geral. Mas, se o concílio realizado
em 'Constantinopla em 381 marcou a 'vitória da ortodoxia
nicena, mostrou-se aibsolutamente orientai mos sentimentos
e procurou preservar a independência das Igrejas do Oriente,
de toda a intervenção exterior. Decidiu, que a organização
eclesiástica seria doravante decalcada na das dioceses civis
e que, depois do bispo de Roma, teria a primazia de honra o
bispo de Constantinopla «já que esta cidade era a1 Nova
Roma» (2).
P or aqui se vê, que a primazia; do novo patriarca foi
explicitaimente a consequência da sua ligação íntima com o
governo imperial, contra o princípio da tradição apostólica,
que servia de ‘f undamento à autoridade das três grandes sfés
de Roma, Antioquia e Alexandria; e a evolução ulterior deste
novo patriarcado foi condicionada pelas mesmas razoes que
■tinham presidido à sua erecção. Tornou-se o centro da Igreja

■O 'Codex Theodosianus, XVI, 1, 2.


(2) A diocese civil era constituída por um grupo de provín­
cias postas sob a autoridade dum vigário. Das cinco dioceses do
íOriente, o Egipto, com as suas cinco províncias, corresponde ao
Ipatriarcado de Alexandria; o Oriente, com quinze províncias, ao
Ipatriareado de Antioiquia; a Á sia, o Ponto e a Trácia, cota um total
de vinte e oito províncias, acaba por constituir o patriarcado de
'Constantinopla.
0 DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 135

do Estado e o instrumento da política eclesiástica do Império.


Enquanto Roma e Alexandria possuíam uma tradição teoló­
gica distinta e ininterrupta, os ensinamentos de 'Constan­
tinopla sofreram as flutuações da política imperial. A sua
tradição fundou-se mais em motivos de ordem diplomática do
que de ordem teológica, ponque, em cada crise do dogma, o
primeiro cuidado do governo era manter a unidade religiosa
do Império, e o patriarcado tornou-se o instrumento dos seus
compromissos. Citemos sòmente o exemplo característico de
Eusebio de Nioomédia, o grande prelado da corte do tempo
de iConstâncio que .ocupou antes de morrer, a sé de Constan­
tinopla. De semi-ariana no tempo de Oonstâncio e de Eusiéibio,
a Igreja imperial foi semi-monofisita com Zenão e Acácio,
monotelita com Heraiclito e 'Sérgio.
É verdade que esta política de entendimento por com­
promissos malogrou-se e desencadeou ao mesmo tempo a opo­
sição do Oriente e do Ocidente. Insensivelmente a Igreja do
Império tornou-se uma igreja nacional e o patriarca de Cons­
tantinopla transformou-se em chelfe espiritual do povo grego.
Mas isso só aconteceu tardiamente: d o século I V ao século V I,
o Império cristão continuou romano e internacional; o latim
continuou a ser a língua oficial, e os imperadores, salvo o
espanhol Teodósio e Zenão Isáurico, foram todos originá­
rios das províncias balcânicas — •Panónia, Trácia e Ilíria, —
isto é, de regiões onde dominava ainda a civilização latina.
O grande imperador que, mais que qualquer outro, personifica
aos nossas olhos esta tradição, e que é o representante tipo do
ideal teocrático bizantino duma Igreja-Estado e um Es-
tado-Igreja— referimo-nos a Justiniano—■era, ele taimlbiém,
um Ilírio de língua latina que se considerava o representante
e o défensor da tradição imperial romana, e consagrou a sua
vida a tentar restaurar a unidade perdida do Império Romano.
Durante o siéculo V as forças de 'desagregação foram
vitoriosas por toda a parte, e o Império pareoeu estar prestes
a decompor-se numa série completa de unidades distintas:
no Ocidente os Godos talharam' nas províncias romanas reinos
136 Á FORMÀÇlO DÁ ÈUROPÀ

independentes e os Vândalos adquiriram ,a fiscalização do


Mediterrâneo; no Oriente os povos orientais, recentemente
subimetidos, começaram a reafirmar as suas nacionalidades,
sob as aparências de formas religiosas e, o próprio Império
orientalizou-se rapidamente, principalmente depois que Zenão
Isáurico tentou trazer os monofisitas para a Igreja imperial
à custa dum cisma com Horn a. O Im pério parecia perder todo
o contacto com o Ocidente e tornar-se uma potência pura­
mente orientai de civilização grecosíria e de religião mo-
nofisita,
Mas esta evolução foi travada pelo reinado de Justi­
nian o, e o século V I deu testemunho duma nova supremacia
geral das influências do Ocidente. Os primeiros actos da mova
dinastia foram restabelecer, a comunhão com Roma, interrom­
pida havia trinta e cinco amos e pôr fim às influências sírias
que tinham dominado a corte de Anastácio. Não foi mais que
um prelúdio da obra de reorganização e de expansão do Impé­
rio, a qual fo i a grande tarefa de Justinian o. Uma após outra
foram reconquistadas pelos exércitos imperiais a Africa, a
Itália, a Espanha do sudeste, o o Império Romano dominou
uma vez mais o mundo mediterrânico. Estas vitórias custaram
sem dúvida bem caro em sangue e em ouro a Bizâncio, que
não podia pagar um tal luxo, sem exceder gravemente os re­
cursos de que dispunha. Pode-se até sustentar, que as con­
quistas de Justiniano foram fatais à vida do Império, porque
as aventuras militares que o imperador lhe fez correr n o Oci­
dente, o levaram a desprezar as def esas essenciais de que de­
pendia a sua segurança: as fronteiras d o Danúbio e do E ufra­
tes. Mas afinal de contas, o Im pério cristão gozou duma nova
hora de triunfo, antes da noite dos séculos seguintes e a sua
expansão vitoriosa foi acompanhada dum renascimento notável
de actividade cultural, que fez do século V I a época clássica
da cultura bizantina.
É verdade, que o génio criador deste tempo só na arqui-
teetura e na arte se manifestou: na literatura e no domínio
do pensamento não fioi um período de começo', mas uma última
0 DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 137

floração outonal da antiga tradição .clássica. Mas esta atitude


conservadora em matéria intelectual é também um elemento
essencial da civilização 'bizantina. Assim como o renascimento
político do século V I foi um retorno à tradição romana do
Estado, e a sua obra legislativa foi o 'coroamento da obra de
Roma em matéria de jurisprudência, assim também a sua
literatura foi expressão última de doze. séculos de cultura
helénica. Porque é um facto notável, cuja importância os his­
toriadores não tomaram na devida consideração, que apesar
do espírito religioso e teocrático que se mostra dominando á
civilização bizantina, a evolução literária do século V I marcou
um retorno a modelos seculares e até pagãos. Proeópio de
Cesareia fala das disputas teológicas do seu tempo com o des-
bragamento cívico indiferente dum céptico esclarecido, e no
E gipto uma escola inteira de poetas compõe bem trabalhados
poemas épicos, acerca dos velhos temas da mitologia pagã (1).
A grande época da literatura grega cristã acaba no
tséculo V com Cirilo e Teodoreto. Na época seguinte a litera­
tura teológica fo i posta em segundo plano e à frente do mo­
vimento intelectual encontramos retóricos como Proeópio de
Gaza e Chorieius, que se orgulham da pureza ática do seu
estilo; historiadores como Agathias e Proeópio de Cesareia,
cujo espírito está impregnado de helenismo, filósofos neopla-
'tónicos e homens de ciência como Damacius e Simplicius. Se
'Justiniano fechou as escolas de Atenas e obrigou os filósofos
a refugiarem-se momientâneiamente na Pérsia, esta política
de repressão teve pelo menos a vantagem, de levar lestes últimos
a consagrarem as suas energias à crítica científica, e não já
à teosofia e à magia, que tão grande influência exerceram no
neoplatonismo depois de Jâmblico. O governo de nenhuma
form a procurou suprimir os estudos profanos ou as tradições
literárias e icientíficas do paganismo. Enquanto uma matilha(*)

(*) Entre outras, os Dionysiaca de Nonnus de Panopolis


,(séc. V ) , o Rapto de Helena de Kollutlhus de Lycopolis (séc. V I ) ,
Hero e Leandro de Musaeus e os poemas perdidos de Tryplhiodorus.
/
iââ Á FORMAÇÃO DA EUROPA

'de fanáticos furiosos perseguia ,o patriarca,pelas1ruas de A le­


xandria, os proífessores da Universidade continuavam os seus
cursos de física e matemáticas nas salas do Museu e, como
'Pierre Duhém (*) o demonstrou, o seu ensino não era nem
tão estéril nelm tão despido de originalidade eomo igerailmente
se julga. Teive até na história do pensamento humano uma
importância duradoira, porque não fo i somente a conclusão
do desenvolvimento científico do mundo antigo mas também
O fundamento de progressos futuros. Foi a fonte donde surgiu
a ciência do Oriente islumita e, por intermédio desta, a ciência
do Ocidente cristão.
Esta sobrevivência da cultura profana, que distingue a
civilização do Império do Oriente da do Ocidente, deve-se em
grande parte à influência dos funcionários civis. Diferente­
mente do que se passou no Ocidente, Bizâncio, pelo menos no
século V I, não foi governada nem por eclesiásticos nem por
soldados ignorantes mas, à semelhança da China, por uma
classe de letrados 'que se gloriavam da sua ciência e dos seus
estudos. Por vezes resvalaram como os mandarins chineses
para uma .alfectação pedante de arcaísmo : é o caso de Johannes
Laurentius, o Lídio, cujos escritos encerram uma singular
miscelânea de erudição deslocada e de tradicionalismo buro­
crático. Mas esta tradição literária valeu-nos também obras
históricas de genuíno valor e a ultima floração da poesia helé­
nica. A última contribuição importante para a antologia grega,
é devida .a, um grupo de homens de leis e de funcionários, que
'ocuparam altos cargos nos reinados de Justiniano e de Jus-
itiniano I I : Agathias o Historiador, Paulo o Silenciário, Ju­
liano .ex-Prefeito, Cacedonius o Cônsul, Rufino o Doméstico
e sete ou- oito mais. iSem dúvida que se trata duma produção
artificial, de frutos de estufa, mas os graciosos poemas de amor
de Agathias e de Paulo não são indignos da tradiçãio de Me-
leagro; e até, dos versos que, dirigem às divindades extintas

p) P. Dobem, Le Syistème du Monde, Vol. I, clhap. V e V I ;


Vol. I l, chap. X , etc.
0 DESENVOLVIMENTO DA CÍVILIZAÇAO BIZANTINA 130

ida Ilélade, Pan, Poseidon e Priapo, se desprende um ■certo


encanto ( J) .
Nada nesta poesia nos recorda .as mudanças sobrevindas
no mundo; pertence por completo aio passado; e representa
a tradição mais pura da época helenístiea. Se quisermos uma
literatura que exprima os pensamentos dos tempos novos, deve­
mos procurá-la na poesia litúrgica rítmica de Romano de
Emeso, ou na Crónica de Jioão Malalas de Antioquia, que vivia
inum mundo de milagres e de lendas, e tin'ha a tal ponto per­
dido o contacto com a cultura antiga, que tomava Cícero por
um poeta romano e Heródoto p or um sucessor de Políbio.
lE contudo é Malalas e não Procópio', a fonte da tradição his­
tórica bizantina medieval e o modeilo dos primeiros cronistas
eslavónios e arménios ( 2).
Mas nenhum novo movimento literário notável saiu desta
corrente popular. A tradição clássica continuou a valer como
lei nos círculos cultos, e cada renascimento da civilização bizan­
tina se fez acompanhar duma mova predilecção pelos estudos
clássicos e dum retorno aos antigos modelos. A fidelidade de
iBizâneio à herança helénica fez com que não fosse possível
urna noiva actividade criadora.
Não fo i contudo o que sucedeu em matéria de arte, por-
tque o Império cristão assistiu a uma revolução artística excep-
leionalmente prenhe de consequências. O declínios da cidade
antiga e da sua religião fo i acompanhado dum1 declínio da
arte que elas tinham inspirado: a grande tradição grega da
reprodução do corpo humaino e da sua representação realista,
iem escultura e em pintura. iSubstituiu-se-lhe a arte religiosa
te decorativa do Oriente, eissa arte que se não propõe represen­
tar o real, mas cultiva o arabesco e gosta de doíbrar as formas

(d V . por exemlplo, os versos de Agathias e de Theaetetus o


•Escolástico acerca de Priapo na Anthologia palatina, X , 14 e 16 e a
dedicatória a Pan por Aigatlhias, ibid., V I, 79.
(2) A sua influência até no Ocidente se fez sentir por inter­
médio de primitivas crónicas medievais como o Chronicon Pala-
ytinum do s'éc. VIIlII. Õfr. Knumlbacíher, pp. 3'27-S3il.
140 Á FORMAÇÃO DA EUROPA

humanas e amimais >ao capricho de rum programa decorativo.


'Além disso, em. vez d o templo grego e da arquiteietura civil
dos antigos, que, coim o seu friso e o sem perisfilo, ©e volta para
o exterior, teve-se a arquiteetura oriental que, com as suas abó-
íbadas e as suas cúpulas, empregadas primeiramente nos edifí­
cios em tijolo da Mesopotâmia e da Pérsia, se concentra por
completo nas riquezas da sua decoração interior e procura
construir saiais elevadas e espaçosas. A s grandes construções
de tijolo de Poma do Baixo-Império, as Termais e a Basílica
de Constantino, talvez o Panteão também, mostram-nos já a
influência deste novo espírito. Mais foi na arte persa da época
sassânida que encontrou a sua expressão mais completa. Neste
domínio, bem como no que respeita ao espírito da monarquia
e do governo, a Pérsia sassânida exerceu com efeito uma in­
fluência extremamente poderosa na civilização bizantina. É ver­
dade, que alguns amtores modernos consideram esta nova arte
como um produto híbrido das tradições da Roma imperial e
das da Pérsia sassânida; mas não- nos esqueçamos de que a
própria Síria setentrional e a Ásia Menor tinham as. suas tra­
dições próprias de arte e de civilização prOfundamente enrai­
zadas e de que estas provinciais eram as mais activas e as mais
vivas do novo império.
A iSíria estava na confluência de duas correntes artís­
ticas provenientes, uma do Ocidente helenístieo e a outra da
'Pérsia, e trazia por conta própria um elemento novo: o re­
curso à arte como meio de educação religiosa, pelo emprego
ide figuras ou de cenas pintadas como um realismo emocional
e simples muito diferente do realismo da Grécia clássica. Esta
nova arte religiosa, que se desenvolveu na Síria pelo século IV,
espalhou-se por todo o império graças à influência monástica
e também, sem dúvida, por intermédio das colónias de mer­
cadores sírios, que se encontravam em todos os grandes portos.
Mas, nos mais importantes centros de civilização, em Antio-
iquia, em Alexandria, em 'Constantinopla, sobreviveu a tradição
'belenística e continuou a predominar na decoração e na arte
profana, e até na arte religiosa, pelo menos em Roma e em
0 DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 141

‘Constantinopla durante o século I V ; e muito depois da intro­


dução do novo estilo siriaço, devia ela continuar a ser um dos
elementos essenciais da arte religiosa do Império cristão, mesmo
no tempo da sua plena maturidade.
A arte bizantina é pois urna criação compósita, devida
ao encontro de influências diversas. É oriental pelo uso que
faz da ornamentação e do simbolismo, pelo lugar de escolha
que reserva à luz e à cor de preferência às formas plásticas,
pelo emprego cada vez mais frequente que faz da abóbada
e da cúpula, peia nudez e a simplicidade exterior das suas
igrejas. Por outro lado manteve o tipo da basílica romano*
-helenística com as suas fileiras de •colunas e os seus pórticos;
utiliza em certa medida os motivos de ornamentação helenís*
fica; não baniu por completo o elemento humano e realista que
formava a própria essência da tradição clássica. O emprego
de figuras esculpidas ou pintadas, e principalmente executa­
das em mosaico, são até um dos traços mais característicos
tanto da arte como da religião de Bizâncio.
No Século V I o Império do Oriente tinha constituído
•a sua própria tradição artística na qual os elementos.orientais
ie ocidentais se encontravam intim amente unidos. A mais nobre
criação que se lhe deve foi a igreja dedicada à Divina Sabe­
doria (Santa Sofia) de Constantinopla, obra de arquiteetos
vindos da Jónia, berço da civilização grega, mas a cuja cons­
trução Justiniamo prestou uma vigilância pessoal, resen-
v ando-se a direcção dos trabalhos. É a maior igreja de cúpula
d o mundo. Une duma forma perfeita, o plano e a decoração
dos monumentos orientais à estrutura orgânica dos edifícios
gregos, e, posto que tenha perdido parte da sua esplêndida
decoração polícroma, é-nos possível refazê-la pela imaginação,
graças ao espectáculo que nos oferecem as igrejas construídas
na mesma ocasião em Ravena. Podemos assim form ar uma
ideia completa do que foi a arte bizantina no seu apogeu.
•A igreja octogonal e de cúpula de S. Vital de Ravena apre­
senta-nos um exemplo perfeito do mosaico decorativo bizan­
tino. Na ábside está sentado o Cristo Pantocrator, não com
142 A FORMAÇÃO DA EUROPA

aspeeto do juiz terrível da baixa arte bizantina posterior, mas


um Cristo duma juventude e duma beleza qua&e helénicas.
É aureolado de luz; o globo do mundo serve-lhe de trono;
a seus pés correm os quaitro rios do Paraíso; anjos e santos
mantêm-se ao seu lado e segura o diadema da celeste realeza,
corno a figura de A ura Mazda nos baixos relevos sassânidas.
Mais abaixo, de cada lado, duas filas de personagens solenes:
o imperador Justiniano com o clero e os funcionários do Pa­
lácio .Sagrado e a imperatriz Teodora com as damas da sua
corte. É a procissão das Panateneias da nova civilização, e
se não têm o naturalismo e o humanismo triunfante do friso
d o Partiénon, nada as ultrapassa na impressão de solene ma­
jestade. E quando contemplamos em conjunto a igreja bizan­
tina, com a sua decoração polícroma de mosaicos e de mármores
coloridos, com as suas colunas antigas, com o» seus capitéis
'esculpidos, oriental na sua riqueza e ira sua variedade, helé­
nica na sua graça e sentido das proporções, quando conside­
ramos em particular esse milagre consumado que é a cúpula de
'Santa Sofia, na qual a arquitectura ultrapassa os limites, se
torna impalpável e imaterial como a abóbada do céu, somos fo r­
çados a reconhecer, que nunca o homem conseguiu mais perf eii-
tamente fazer da matéria o veículo e a expressão do espirito.
E esta concentração e esplendor, no interior da igreja
bizantina, estava de perfeito acordo oom o papel que esta
igreja desempenhava na vida do potvo. O templo grego, como
o templo hindu de hoje, era a morada do deus, e na cella frou­
xamente iluminada só os sacerdotes e os seus servos penetra­
vam. A igreja bizantina era a casa do povo cristão e o teatro,
onde se desenrola durante todo o ano o grande drama do eiclo
litúrgico. Porque a liturgia resumia em si a música, a arte
e a literatura do povo bizantino. Nela, como na arquitectura,
o espírito oriental e o espírito ocidental eneontraivam-se num
terreno comum. A poesia litúrgiea tinha sido criada pela Síria
cristã e o miaior dos himnógrafos bizantinos, Roma de Emesa,
transpôs para a língua grega, a poesia e o ritmo da Madrasa e
da Sogitha siríacas; mas a liturgia era ao mesmo tempo um
0 DESENVOLVIMENTO DA CIVILIZAÇÃO BIZANTINA 143

mistério dramático, no quai cada gesto tinha uma significação


simbólica e em que o 'esplendor das cerimónias era a tradução ar­
tística duma ideia teológica. E nela também, como na pintura e
na arquitectura, a tendência grega para exteriorizar a ideia, para
vesti-la de matéria, encontrou uma nova expressão religiosa.
Mas a perfeita síntese que Bizâncio soube realizar na
arte do século V I, não se realizou nos outros domínios; e,, espe­
cialmente em matéria religiosa, a oposição entre o Oriente
■e o Ocidente continuou a ameaçar a unidade do Império e da
sua civilização. Embora no princípio do seu reinado Justi­
niano tenha trabalhado com todas as suas forças para conci­
liar o papado e estreitar a união entre Constantinopla e o
'Ocidente, o Oriente reconquistou-o a pouco e p o u co — -este
'Oriente que Teodora, a misteriosa e subtil imperatriz, que
tão bem soube fascinar e subjugar o espírito mais simples e
mais hesitante do Ilírio, representava no seu palácio e na su'a
vida íntima. Monofisita tanto por política como por convicção,
o palácio tornou-se, sob a sua égide, o refugio dos chelfes mono-
fisitas e o centro das suas intrigas, e foi por sua influência que
Justiniano voltou à antiga política de união por compromissos,
a que permaneceu fiel mesmo depois da morte dela. Apesiar
da resistência imprevista do papa Vigílio, o pfotegido de Teo­
dora, Justiniano conseguiu fazer aceitar esta solução no con­
cílio .geral de 553 e ditar a -sua vontade aó papado-. Mas, como
em tantas outras ocasiões, o compromisso imposto pela força
não forneceu a verdadeira solução-: arrastou o Ocidente para
um novo cisma que se prolongou até muito depois da morte
de Justiniano e não conseguiu -a reconciliação com os mono-
fisitas, cuja existência, a partir desta data, se organizou fo-ra
da Igreja do Império. Esta tendência para a desunião reli­
giosa que tinha ido crescendo dede o século V, acabou pela
separação permanente entre as províncias orientais, e a Igreja
e a religião do Império; e esta desintegração religiosa fo i o
sintoma das amplas desordens sociais e espirituais que se iam
produzir no mundo oriental e donde viria a sair dentro em
breve, uma nova civilização de importância universal.
c a p ít u l o v ii

O DESPERTAR DO ORIENTE
E A REVOLTA DAS NACIONALIDADES
SUBMETIDAS

XjL 9ntraida em cena do Islão ê o grande facto que domina


a história dos séculos V II e V III, cujas repercussões se
fazem sentir em toda a evolução ulterior da. civilização medie­
val, tanto no Ocidente como no Oriente. 1Àquele que encarasse
a história de um ponto de vista exclusivamente profano e oci­
dental, necessariamente veria na aparição do Islão um pro­
blema para sempre inexplicável, pois que semelhante facto
parece marcar uma rotura completa na evolução histórica e
aífigura-se nenhuma relação ter comi tudo o que o precedeu.
Somente quando se olha para o subsolo da história, política
e quando se estuda a actividade subterrânea dos elementos
subjacentes da sociedade oriental, é que podem ser aperce­
bidas 'as forças novas que iam determinar o futuro da civi­
lização oriental.
A s disputas eclesiásticas e teológicas do século V, tão
desprovidas de significação para o comum dos historiadores
profanos, deixam adivinhar a existência na vida do Império do
Oriente duma crise tão rica em consequências remotas como
as invasões bárbaras no Ocidente. Implicam a ressurreição
O DESPERTAR DO ORIENTE 145

dais nacionalidades submetidas1e a morte da civilização hele-


nística que reinara no Levante desde os tempos de Alexandre.
Verdade é, que, confinada nas cidades, esta civilização per­
manecera sem acção na grande massa da população pagã; mas,
durante toda a época helenístiea e imperial, era a classe dos
cidadãos quem tinha M to leis em matéria de civilização', e
a população nativa tinha,-a passivamente solfrido. O apareci­
mento do Cristianismo, coincidindo com uma diminuição da
importância das cidades e com o declínio da burguesia urbana,
foi acompanhado por um renascimento da afetividade inte­
lectual entre os povos submetidos; viu-se o desenvolvimento
das literaturas indígenas e o despertar duma consciência na­
cional entre os povos orientais. Ora, se no Ocidente o Cristia­
nismo tinha conquistado principalmente as cidades e se um
camponês (paganus) era tido por pagão, no Oriente, pelo con­
trário, o Cristianismo parece ter-se espalhado tão rapidamente
entre os eamponeseis como entre os citadinos.
'Foi especiailmente o caso dos Sírios, que formavam um
sólido bloco de povos de língua aramaica e que se estendiam
do Mediterrâneo ,aio Kurdistão e aos planaltos da Pérsia, e
do Tauro ao Golfo Pérsico. A oeste, ais influências helenísticas
eram dominantes, e as ricas cidades da costa — Antioquia,
Beritus, Gesareia e Gazai — •eram os baluartes da cultura grega;
mas a leste do 'Entrâtes, nos confins dos impérios romano e
persa, a cidade de Edessa era o centro dum Estado Sírio indí­
gena que foi o ponto de partida do cristianismo oriental e o
berço da literatura siríaea. Muito antes da conversão do Impé­
rio Romano, desde o princípio do século III da nossa era, que
o reino de Osroéne se tornara um Estado cristão donde o cris­
tianismo se estendera, para leste até à Pérsia e para o n'orte
até à Arménia, tornada também num reino cristão, no começo
do século IV. Para os Sírios, esfacelados por impérios rivais
e submetidos a uma civilização estrangeira, o cristianismo
torna-se o veículo das tradições nacionais e do seu ideal. V e­
mos na sua literatura, especialmente nos versos de Tiago de
Sarug, quão orgulhosos eram os Sírios da antiguidade © da
10
146 A FORMAÇÃO DA EUROPA

pureza da Igreja nacional. A o passo que o povo eleito tinha


dado o exemplo de infidelidade e que os impérios pagãos
tinham perseguido o nome de Cristo, Edessai «a filha dos Par­
tos, -esposa da Cruz», sempre s;e mostrara fiel.

« E dessa enviou uma carta a Cristo, rogando-lhe que viesse


esclarecê-la. Pediu-lhe, para bem de todos os povos, que deixasse
Sião que o odiava e viesse para junto dos povos que o amavam» 0 ) .
«N ão foi de quaisquer escribas que ela recebeu a fé : ensinaram-
4h a o Rei, ensinaram-lha os mártires e ela acreditou firmemente».
«E sta verdade, Edessa possui-a desde a sua juventude e,
na sua velhice, não a rejeitará jamais à seJmelhança duma filha
de pai pobre. O seu piedoso rei tornou-se o doutor, de quem apren­
deu o que respeita a Nosso Senhor: que Ele é na verdade o Filho
de Deus, o mesmo Deus. Addaeus, que lhe trouxe o anel dos espon­
sais e lho colocou no dedo, assim a desposou com o Unigénito Filho
de Deus» (2) .

O Cristianismo siría;co era a religião dum povo subme­


tido que nela. encontrava a sua justificação perante o orgulho
da civilização reinante :

koChamuna, riqueza nossa, tu és mais rica do que o rico:


(Ponque, repara! o rico está à tua porta e esipera que o' possas socorrer.
GPelquema é a tua atldeia, poibre o teu p aís: Qual a razão
Por que os Senhores das aldeias e das cidades buscam, os teus favores?
E is que os juízes revestidos das suas becas e das suas vestes
Tomam pó das soleiras das portas como se ele fosse o remédio de vida.
A cruz é rica e aumenta as riquezas dos seus adoradores
E a sua pobreza desipreza todas as riquezas da terra.
Chamuna e Guria, filhos do pobre, eis que batem à vossa porta
O rico se prostra para receber de vós o que deseja.
O Filho de Deus, na pobreza e na indigência,
Mostrou ao mundo o nada das suas riquezas.
Os seus discípulos, todos pescadores, todos pobres, todos fracos,
Todos homens sem importância, tornaram-se ilustres pela fé.
Dum pescador cuja aldeia era um ninho de pescadores,
Fez Ele o chefe dos doze e pô-lo à frente da casa.

■O. Syrian documents, ©m Ante-Nicene Christian Library,


V . X X , p. 129.
O Syriac documents} p. 114:
0 DESPERTAR DO ORIENTE 147

Dum fabricante de tendas que foi seu perseguidor,


■Se apoderou e fez um vaso de eleição para a fé (*)».

Esta cristandade siríaca autóctone, que teve humildes


princípios em Edessa no século DM, fod o ponto de partida
dum vasto moei mento de expansão oriental que acabou por
chegar, na Idade Média, à índia, à China; e aOs povos turcos da
Ásia central. Mas talvez por causa do seu afastamento geo­
gráfico, não entrou imediatamente em conflito com; a Igreja
do Império. A grande crise religiosa do século V teve as suas
origens no próprio coração do mundo helenístico: em A le­
xandria,
'Porque no Egipto, tal qual como na Síria, as velhas
tradições da cultura oriental estiavam em vias de reaparecer,
soib form a cristã. No tempo dos P tolo meus e dos Romanos,
o povo do E gipto tinha conservado a antiga religião e ciivilizaf
ção. Enquanto Alexandria era o centro mais brilhante da civi­
lização helenístiea, a rotina imemorial da vida egipeíaiea per­
petuava,-se sem alterações no vale do Nilo. As duas correntes
de civilização deslisavam lado a lado sem se misturar, porque
a civilização nativa continuava limitada pelas formas hierá­
ticas da sua religião. A conversão d o E gipto ao Cristianismo
mudou tudo isso. A s barreiras religiosas que mantinham arti-
íieialmente a população indígena à parte, encerrada num
mundo sejparado, foram destruídas, pondo-a em contacto com
as outras populações do Império. Contudo as forças do nacio­
nalismo não se enfraqueceram, nem o E gipto fo i levado a
assimilar a civilização greco-bizantina. Pelo contrário, a par-
tir deste momento, a importância do elemento grefgo no E gipto
decaiu constiantemente e o uso da língua grega cedeu o lugar,
pouco a pouco, à língua copta, isto é, à velha língua egípcia
escrita em caracteres gregos. A Igreja, naturalmente, substi­
tuiu a antiga religião do Estado como órgão do nacionalismo
egípcio; mas, ao passo que à frente da antiga jerarquia se

0) Op. cit., p. 101.


148 A FORMAÇÃO DA EUROPA

encontravam os senhores estrangeiros que tinham usurpado


o lugar do Faraó, o Chefe da noiva Igreja foi o Patriarca
egípcio. iComo outrora, nos dias do seu declínio, o E gipto
antigo tinha feito do Sumo Sacerdote de Amon-Rá, em Tebas,
o chefe da nação, uniam-se agora à volta do Patriarca todas
as forças do nacionalismo epípeio. Era ele o «santíssimo», o
diviníssimo senhor, papa e patriarca da grande cidade de
Alexandria, da Líbia, da Pentápole, da Etiópia e de toda a
terra do Egipto, o pai dos pais, o bispo dos bispos, o décimo
terceiro apóstolo e o juiz do mundo». A sua autoridade na
igreja egipeíaca era absoluta, — ■muito maior de facto do que
a do Papa nas Igrejas do Ocidente, porque todos os bispos
do Egipto eram sagrados por ele e dele dependiam directa^
mente. O único poder que se poderia pôr em paralelo, com o
seu, era o dos monges que, muito mais do que os bispos, eram
os chefes naturais do povo;
O monaquismo do Eigipto foi, com efeito, o produto por
excelência do cristianismo orientai; exprime o melhor e o
pior do temperamento deste povo que o criou, desde a sabedo­
ria e a espirituailidade dum Macário ou dum Pacómio, até ao
fanatismo da populaça que matou Hipátias e encheu as ruas
de Alexandria de tumultos e de sangue. Mas, até este fana­
tismo era uma força para o patriarcado, a quem os monges
forneciam um exército de partidários apaixonados e ousados.
Quando o patriarca de Alexandria assistia a um concílio geral,
era acompanhado de uma guarda pessoal de monges e de para-
bolcmi 0 ) , cujas voeilferaçÕes e violências aterrorizavam por
vezes toda a assembleia. E ra tão grande o poder do patriarca
que ambicionou tornar-se o ditador religioso do Império do
Oriente. Atanásio levantara-se sozinho contra o imperador

0)< Os parabolani constituíam originàriamente uma espécie


de corpo de enfermeiros cuja tarefa consistia em tratar doentes e
empestados. Mas o seu título — «aventureiros» ou «audaciosos»—
'explica-se pelo facto de serem os condutores da multidão, em A le­
xandria, sempre que deflagravam rixas religiosas. Eram oibjecto
O DESPERTAR DO ORIENTE 149

Constando IlI e todo o episcopado oriental 0 ) , e os seus su­


cessores não estavam dispostos a reconhecer a superioridade
do novíssimo paitriarcado de Constantinopla. Durante a pri­
meira metade do século V, Alexandria, soib a direcção dos seus
grandes patriarcas Teótfilo e Cirilo, manteve-se constante­
mente vitoriosa e, em três ocasiões, conseguiu humilhar as
suas rivais, Constantinopla e Antioquia. Mas, pela terceira
vez, quando da condenação de Flaviano em Éfeso em 449, foi
íbatida por ter sido levada a romper a união com Roma e o
Ocidente, .cuja aliança a sustentara até então. Em Caleedónia,
no .ano 451, as forças combinadas de Roma e de ConstanJinopla,
do papa Leão e do imperador Marciano, conseguiram abater
a supremacia deste grande patriarcado que dominara as Igrer
jas do Oriente.
O concílio de Caleedónia é de todos o miais notável, pelo
interesse dramático que apresenta e pelas consequências his­
tóricas. Na igreja de Santa Eufêmia, em Caleedónia, tinham-se
reunido todas as forças que iam, doravante, dividir o mundo
cristão. As forças rivais do E gipto e do Oriente desafiavam-se
e injuriavam-se dum lado e do outro da nave, enquanto os
grandes oficiais do Império, sentados diante da grade da ca-
pela-anor com os legados de Roma ao lado, dominavam, im­
passíveis, a tumultuosa assembleia e a guiavam, com urna
inflexível persistência, para uma decisão final, de acordo com

de preocupações constantes para a autoridade civil. V . Codex Theo-


idosianus, XVlI, 2t
(*> A lguns historiadores modernos, como E. Schwartz, têm
tendência para exagerar os motivo© políticos da política de Atanásio
e para fazer dele prinicipalimente um ambicioso; mas nao há que
ipôr em dúvida que ele encontrou o seu mais forte apoio no senti­
mento nacional da multidão egípcia. Coimo escreveu Duchesne,
ffistoire ancienne de l'Église, T. I l, p. 26 8 : «'Tout ce que l ’ Egypte
comptait d’honnêtes gens était pour lui. C’était de défenseur de la
'foi, le pape légitime, le père commun; c’était aussi, grande recom­
mendation, l’ennemi, la victime du gouvernement... iSauif quelques
dissidents 'qui ne montraient que derrière les uniformes, la popu­
lation était entièrement à ses ordres»*
150 A FORMAÇAO DA EUROPA

os desejos do imperador e do papa. Esta decisão não foi oibtida


sem luta. Só quando os legados de Roma pediram os passa­
portes e a convocação dum novo concilio no Ocidente e quando
o imperador se mostrou favorável' ao ulitimafum, que a maioria
consentiu em aceitar a definição ocidental das duas naturezas
de Cristo numa só Pessoa. A decisão, assim oibtida, devia ser
contudo, duma importância incalculável para a história da
cristandade, quer oriental quer ocidental. Se o resultado do
concílio tivesse sido diferente, os cismas entre o Oriente e
Ocidente, em vez de se darem no século X I, ter-se-iam manifes­
tado no século V, e a aliança do Império e da Igreja do Oci­
dente, que foi, para a formação da cristandade ocidental, um
faetor essencial, ter-se-ia tornado impossível.
Mas, por outro lado, esta aproximação com o Ocidente,
alargou a brecha cavada entre o Império e os súbditos orien­
tais. A solução, que fora imposta pela vontade imperiosa dum
grande papa e dum imperador enérgico, não podia afastar as
causas profundas de desunião nacional. Já em pleno concílio,
os bispos egípcios tinham declarado que não ousavam voltar
para as suas terras com a nova disposição do patriarca, com
receio de serem trucidados pela fúria dos compatriotas. Este®
receios nada tinham de imaginário porque, quando a nova
chegou a Alexandria, a multidão revoltou-se e massacrou a
guarnição imperial. A s medidas vigorosas tomadas pelo gO'-
verno conseguiram, por algum tempo, impor a Alexandria um
patriarca ealcedónio; unas desde que faltou o punho vigoroso
de Marciano, o patriarca tomlbou, vítima da populaça em fúria,
e foi esquartejado em ;Sexta-ífeira Santa dentro da própria
igreja, A partir deste momento, o Monofisitismo tornou-se a
religião nacional do Egipto, e a minoria que se conservava
fiel à ortodoxia © à Igreja do Império, foi desprezada com a.
alcunha de Melqudtas ou de B asilici— «os homens do rei».
O verdadeiro poder, no Egipto, esteve desde então nas mãos,
não do governo imperial, mas do patriarca cismático; e Jus-
tiniano parece ter reconhecido este estado de facto a julgarmos
pela sua oferta de se fazer da prefeitura e do patriarcado uma
O DESPERTAR DO ORIENTE 151

função única, sob -a condição de os cismáticos voltarem à


ortodoxia.
B pois impossível negar o papel importante que o ele.-
niento político desempenhou na origem das grandes heresias
orientais do século V. ISe a Igreja do Império do Oriente se
não tivesse identificado com o governo imperial, toda a his­
tória do Monoiasitismo e das outras seitas orientais teria sido
diferente. 'Contudo, entre as forçais em acção, havianas mais
prolfundas do que as de simples separatismo nacionalista ou
local. Por toda a parte, permanecia em estado latente, a opo­
sição essencial, entre os dois elementos espirituais do mundo
bizantino: com fronteiras na Ásia e na Europa, o Império
participava, pela sua civilização, de duais tradições, a do Oriente
e a do Ocidente. Aos nossos olhos, o elemento oriental parece
preponderante; mas aos olhos dos orientais, o Império parece
ter permanecido grego, e continuava a representar a velha
tradição helenística. Era, realmente, a última fase da inter­
penetração do Oriente e do Ocidente, que tinha começado no
tempo de Alexandre. A última expansão do helenismo coloca-se
na época bizantina, porque foi somente então, e sob a influên­
cia da Igreja ortodoxa, que os povos da Ásia Menor e as suas
línguas chegaram a fundir-se no conjunto dos países de lín­
gua grega.
Embora o Cristianismo fosse de origem oriental, tinha
contudo, de dia para dia, adoptádo muitos elementos da cul­
tura grega, assim como a religião e a filosofia grega estavam
ao mesmo tempo assimilando os elementos orientais. Deste
modo, a luta entre o Cristianismo e o paganismo não era já,
no fim do século IV, um duelo entre o Oriente o o Ocidente,
mas um conflito entre sínteses rivais, de helenismo e de orien-
talismo. O espírito oriental, na sua pureza, tal qual é repre­
sentado pelo Gnotieismo, não era menos oposto à teologia de
Orígeoes do que à filosofia de Plotino; da mesma forma, os
Padres da Igreja latina combatiam simultâneamente em dupla
ofensiva: contra o paganismo romano, e contra o Montanismo
e o Maniqueísmo do Oriente. A religião do imperador Juliano
152 A FORMAÇÃO DA EUROPA

e dos seus mestres neoplatónioos era, no seu todo, apesar do


seu respeito para eom o passado helenístico, muito mais im­
pregnada de elementos orientais do que a dos grandes Capa­
dócios, Basílio e os dois Gregórios, que. foram ois Padres da
igreja bizantina. Além disso, os gregos tinham trazido para
a noiva religião o seu tradicional amor das discussões e das
definições lógicas, e foi por causa disto que se levantaram as
mais violentas resistências, por parte dos orientais. Os poemas
do grande chefe da Igreja siríaca Efrém de Nisibis, não são
mais qUe uma longa diatribe contra os disputadores, «filhos
da discórdia», que querem «experimentar o sabor do fogo,
Ver o ar, segurar nas suas mãos a luz». « A vista Odiosa da
imagem de quatro rostos (Gnosticismo ou Maniqueásmo) vêm-
nos, diz ele, dos Hititas; as discussões malditas, essa traça
escondida, vêm-nos dos Gregos». Para ele, a fé não é coisa
sobre que se possa raciocinar, que se possa penetrar; é um
mistério secreto, a «pérola» translúcida mias incompreensível
«cuja parede é a sua beleza». «E u sou a filha do mar, do mar
sem limites. D o mar donde saí, eu possuo o poderoso tesouro
de mistérios que o meu seio encerra. Procura fora do mar,
mais nunca procures fora do Senhor do mar» ( x).
Encontra-se a mesma inspiração no maior dos místicos
bizantinos, aquele sírio do eéeulo V que escreveu com o nome
de Dionísio o Aeropagita e cuja influência fo i tão importante
em toda a história do pensamento medieval. Apesar do que
deve aos neoplatónieos e prinoipalmente a Proclo, faz incidir
o essencial do seu ensino sobre a ideia bem oriental de que
a inteligência divina é absolutamente inacessível ao pensa­
mento e à razão humanas. É «a treva divina que ultrapassa
toda a luz», esse A lgo de transcendente que não tem espírito,
nem virtude, nem personalidade, nem existência, que não é
divindade, nem bondade, nem unidade, está para além do ser
e da eternidade, que ultrapassa todas as categorias capazes

(J)lThe Rhythms of Ephrem the Syrian, tradução de J. M a-


fnis, in Oxford Library of the Fathers, pp. 102, 05, 87.
O DESPERTAR DO ORIENTE 153

de serem, concebidas peio pensamento humano. Amibos são


ortodoxos; mas vê-se sem dificuldade como, esta atitude de
espírito naturalmiente tenderia a cair numa religião de puros
espíritos e a negar a realidade do corpo e do mundo material.
Esta tendência explica o sucesso encontrado pelo Maniqueísmo
e pelo Gnosticisme; mas também fundamenta uma expres­
são menos radical d o Monofisitismo, que via na incarnação
a manifestação terrestre da divindade revestida duma forma
corpórea, e rejeitava a doutrina ortodoxa da natureza humana
de Cristo. Não foi, pois, somente por sentimento nacional,
que as províncias orientais se revoltaram contra a Igreja
do Império por causa desta questão, enquanto o Ocidente se
ligava à doutrina da coexistência das duas naturezas e da
humanidade completa de Jesus.
Sob a influência destas força® todos os povos orientais,
no decorrer dos séculos V e W , se separaram da Igreja e do
Im pério: o Elgipto, a Síria ocidental: e a Arménia, tornaram-se
monofisitas, enquanto os sírios orientais da Mesopotâmia e do
império persa, fiéis às tradições teológicas que receberam de
Antioquia, se faziam nestorianos. De ambos os lados houve
comum acordo em rejeitar os cânones do concílio de Calcedó-
nia, e em abandonar a política religiosa do governo imperial.
0 século V I assistiu à transformação da seita monofisita numa
Igreja organizada e ao desenvolvimento dum monaqnismo e
dnma literatura monofisitas. F oi a época clássica da cultura
monofisita, a época dos Padres e dos doutores da sua Igreja.
Dois dos maiores dentre eles, Severo de Antioquia e Juliano
de Halicarnasso, eram gregos, da Ásia Menor; mas a maioria
—■Filoxeno de Mafeug, Tiago de Sarug e o historiador João
de Asda—' escrevia em siríaco, ao passo que o grande sábio
e físico Sérgio de Rechaána, utilizava a sua mestria numa e
noutra língua para traduzir Aristóteles e Galeno. Assim
foram lançadas as bases desta grande obra cuja influência
devia ser larga para a história do pensamento medieval: a
•transmissão da ciência grega ao mundo oriental.
Nestorianos e monofisitas consagraram todas as forças
154 A FORMAÇÃO DA EUROPA

à difusão das suas doutrinas entre os povos estrangeiros; a


expansão do Cristianismo na Ásia e na África, a partir do
Século Y , foi quase inteiramente dbra deles. No século y i as
missões nestorianas tinham chegado a Ceilão e aos países tur-
eos da Ásia central; no século seguinte, penetraram na China.
Á Abissínia, onde a introdução do Cristianismo remonta ao
século KV, adoption o Monofisitismo sob a influência de Alexan­
dria, e foi por missionários monolfisitas que, no século V I,
foram convertidos, por sua vez, os Nubios e as tribos vizinhas
do deserto. Na mesma época, o Cristianismo penetrava na
Arábia por vias bem diferentes. No extremo sul, no país
dos Himiaritas, existia uma igreja árabe indígena datando
do século IV e em relações com a Abissínia. No século V I
solfreu terrível perseguição. Os Nestoriamos, partindo da Meso­
potamia, fundaram igrejas entre os Árabes do Coifo Pérsico e
no Estado de Ilira, enquanto os monofisitas e a Igreja impe­
rial mantinham relações com as tribos do deserto siríaco e a
Arábia do norte, e encontravam na pessoa dos príncipes gassâ-
nidas Harith ibn Jabailah e Al-Mundhir. O contacto, estabele­
cido entre a nova religião, e a velha sociedade pagã, teve re­
percussões profundais na civilização árabe. Notam-se influên­
cias na formação da literatura árabe que bruscamente, no sé­
culo V I, brota com vigorosa e pujante vida. Alguns dos pri­
meiros poetas árabes eram cristãos, por exemplo, Nalbigha e
A di ibn Zaid de Hira, e principalmente o maior dos poetas
ipré-islamitas, Imruhil-Qays, filho do soberano do Nedjcde, que
entrou ao serviço de Biznncio no tempo de Justiniamo.
Mas tudo isto não é mais do que manifestação super­
ficial da fermentação dos espíritos & das des'ordens sociais que
■se davam então, no mundo árabe. Estava iminente uma crise
espiritual que ia transformar as tribos guerreiras e bárbaras,
disseminadas na península arábica, e uni-las em potência coesa
que, no século V II, havia de varrer todo o Oriente numa vaga
irresistível de entusiasmo religioso.
C A P ÍT U L O VIII

A ASCENSÃO DO ISLÃO

£ \ 'conquista do Oriente pelos Árabes, no século V II, é, sob


* * muitos aspectos, uma réplica às invasões germânicas no
Ocidente, dois séculos antes. Como estas últimas, marca o fim
do predomínio secular da civilização greco-romana e o início
duma civilização mista que estava destinada a imprimir a sua
fisionomia particular à época seguinte. ,A entrada, em cena
do Islão fo i o último episódio desse longo drama que se desen­
rolava havia um milénio, entre o Oriente e o Ocidente, rea­
gindo um solbre o outro e acabou na vitória completa do espi­
rito oriental que a; pouco e pouco invadira o mundo helenístieo,
depois da queda da monarquia selêucida. Maomé foi a réplica
do Oriente ,ao repto de Àtexandre.
Todavia, a conquista árabe difere, profundamente, das
invasões germânicas, no facto de a. sua origem, ser devida a
uma grande personalidade histórica. É verdade que o Oriente,
como se viu, estalva 'amadurecido p:ara a revolução e que um
cataclismo qualquer era, provàvelmente, inevitável. Verdade
é também que as tribos da Arábia, como ais da Europa seten­
trional, estavam em agitação, talvez pela pressão das condições
climatéricas e da secagem progressiva do país. Mas, sem
Maomé, jamais os Árabes teriam chegado a unir-se, jamais
'teriam recebido o impulso religioso que os tornou irresistíveis.
Aos olhos do governo bizantino, o problema árabe apresen-
tou-se mais como um problema de fronteiras do que como uma
ameaça, num tempo em que o poderio persa parecia constituir
156 A FORMAÇÃO DA EUROPA

o verdadeiro perigo oriental. Durante séculos o Império man­


tivera relações com os Estados árabes — •o dos Nabatéus e
iPalmira, depois, mais recentemente, o reino de Ghassan, cliente
(de Bizâncio. Difícilmente se podia imaginar que qualquer
perigo pudesse vir da península. A s tribos errantes dos Beduí­
nos do deserto estavam num estado permanente de agitação
e de guerra intestina, e as comunidades sedentárias do oeste
e do sul deviam ,a sua prosperidade ao tráfico que mantinham,
com o mundo bizantino. E contudo, no século V I, uma mu­
dança profunda estava em vias de se produzir na Arábia e
o país achava-se amadurecido para o surgir dum novo poder.
Durante séculos, o centro da civilização árabe tinha sido
no extremo sul — no país do Sabá, o actual Yéímen. F oi aí
que, nos tempos pré-históricos, nascera uma civilização fixa
de tipo arcaico, importada da Mesopotâmia, talvez mesmo
desde a época sumérica, já que as esculturas duma época mais
tardia recordam o tipo físico sumério de preferência ao tipo
semita. Adoravam-se lá as divindades babilónicas — Istar, Sin
e Shamash (mas os sexos trocados)1— e havia o tipo de templo
sumério. No país de Sabá, os mais antigos chefes usavam, o título
sacerdotal, Mukarrib (isto é: abençoador), e no país de Marin
havia estreitas relações entre a corporação dos sacerdotes e
•o rei. 'Gonsiderava-se o deus corno o soberano da região1; pos­
suía opulentos rendimentos e um grande número de sacerdotes
e de servidores. A s inscrições sabeana®, que subsistem., recor­
dam, frequentemente, a consagração à divindade de famílias
e de indivíduos, que se lhe ofereciam como escravos ou servi­
dores do templo, enquanto os chefes e os sacerdotes eram, por
assim dizer, adoptados e entravam na família do deus como
filhos ou sobrinhos. Diferentemente; das tribos nômadas do
norte, os povos meridionais eram pacíficos agricultores que
construíram grandes obras de irrigação, especiailmente a grande
represa de Marilb. Não habitavam em tendas; pelo contrário,
eram grandes construtores, e o Yémen está cheio de ruínas
dos seus castelos e templos. As suais numerosas inscrições estão
belamente gravadas, com uma boa escrita alfabética regular,
A ASCENSÃO DO ISLÃO 157

que remonta provavelmente aio siéenlo I X ou X , antes de


Cristo (x).
'Mas a prosperidade do país de Sabá dependia princi­
palmente do comércio. Era o país do onro e das preciosas
especiarias— do incenso e da mirra, tão procurados pelos
templos do Egipto e da Ásia; e era, desde os mais recuados
tempos, o entreposto comercial entre a Índia e o Ocidente, ao
taiesmo tempo que o ponto de partida da grande rota de cara­
vanas que levava para o norte, por Meca e Medina, ao Sinai
e à Palestina. A influência salbeia fazia-se sentir ao longo
de todo este caminho, e o Estado de M a’an, situado na Arábia
setentrional, e o país de Madian parecem ter sido um antigo
'rebento do reino meridional de M a’in.
A partir da fundação do Império Romano, a prosperi­
dade de Saibá entrou em declínio, em consequência do estabele­
cimento de novas rotas para o comércio da índia e de relações
directas, pelo mar, entre o E gipto e a Abissínia. Tradições
árabes atribuem a queda de Sabá à rotura do grande dique
de Marefo duas vezes: em 450, sendo empregados vinte mil
homens para reparar o dano, e depois, segunda vez, em 542;
mas, é preciso ver nisto, mais o resultado do que a causa do
declínio desta prosperidade. Desde o século III que a Arábia
meridional ia caindo cada vez mais, sob a dependência do reino
da Abissínia; no século V I, depois da derrota do rei judeu
Dbu Nuwas, foi governada durante cinquenta anos, por um
vice-rei abexim que fez do Cristianismo a religião do país. Por
(fim, em 570, foi conquistada por uma expedição persa e ficou
sob esta suserania até à vitória do Islão.
Entre esta civilização dos povos sedentários do sul e
a vida das tribos selvagens do norte, que nós consideramos
habitualmente, como os árabes característicos, não se poderá
imaginar contraste mais completo. Levavam toda a vida a

O ’ Acerca das origens da civilização da Arálbia meridional


Krfr. o meu livro Age of the Gogs (19 28), ipp. 78-79, 1115-116, 410.
155 A FORMAÇÃO DA EUROPA

guerrear, a pilhar os rebanhos dos seus vizinhos e a impor tri­


butos às 'caravanas de mercadores.
A o passo que o patriarcado desempenhava um papel
de relevo na organização social dos sedentários, como o nota-
mas na personagem da lendária Belkis, rainha de Sabá e na
da histórica Zenóíbia de Palmira, os nômadas viviam num
regime puramente patriarcal de que nos oiferecem até o mais
puro exemplo conhecido e que se perpetuou quase sem mu­
danças da Abraão até aos nossos dias. A religião ocupava
um lugar muito menor na sua vida do que na dos sedentários,
mas era do mesmo tipo e, soib este aspecto, bem: corno1sob mui-
toso utros, a civilização antiga de Sabá exerceu nos nômadas
um considerável ascendente.
.Estiveram além disso submetidos às influências vindas
do norte, das civilizações mais adiantadas da Síria e da. Moso-
potâmia, A í se desenvolveu o Estado mercantil dois Nabateus,
cujo centro era Petra, depois o de Palmira, que, no século III,
teve a fiscalização da grande rota comercial que ligava o Impé­
rio Bom ano ao Golfo Pérsico e finalmente o dos Estados fron­
teiriços de Ghassan e de Ilira, direetamente relacionados, pri­
meiro com o Império Bizantino e depois com a Pérsia. Na
época que precedeu imediatamente o desenvolvimento do Islão
estes dois últimos reinas foram os centros principais da cultura
árabe; ífoi na corte dos seus soberanos que floresceram os pri­
meiros poetas árabes e que a língua tomou a sua forma clássica.
Maomé nasceu, pois, num momento crítico da história
árabe. A antiga civilização do meridional estava em plena
decadência, e, tanto ao norte como ao sul, o país era invadido
por uma civilização e religiões estrangeiras. Meca, sua cidade
natal, era uma das .últimas fortalezas do paganismo árabe.
Encontrava-se na grande rota do comércio pré-histórico, que
da do Yémen para o norte, e devia proivàvelmente a sua fu n­
dação, tal qual A l Ala e Teima, mais ao norte, ao movimento
colonizador saibeiamo; mais nada conhecemos da sua história
de antes da conquista do país pela tribo dos Coreixitas, vindos
da Arábia setentrional pelo século IíV da nossa era.
A ASCENSÃO DO ISLÃO 159

'Meca era uma cidaide-templo dum tipo rudimentar, cuja


importância advinha do seu grande santuário, a Kaalba — onde
se conservava o relicário do deus Holbal e onde ele manifes­
tava os seus oráculos — e da famosa peregrinação anual ao
monte Arafat, a alguns quilómetros dela. Como entre os Sa-
beanos. o deus da Kaiaba ©ra o senhor da cidade e o® habitantes
de Meca eram seus-clientes e seus súbditos, davaim-lhe o dízimo
das suas colheitas e o primogénito dos seus animais, e os
Coreixitas deviam o seu poder à sua qualidade de sacerdotes e
de guardiões do santuário. Por sua vez, a peregrinação era
uma cerimónia de origem totalmente diferente, talvez caracte­
rística dos povos nômadas, e era acompanhada duma trégua
entre as tribos e duma espécie de feira sagrada, como é habi­
tual entre os povos de civilização tribal.
A civilização de Meca tinha pois um carácter duplo.
Ocupava, uma posição intermediária entre dois tipos diferentes
de sociedades : a das antigas cidades santas da Arábia meri­
dional e a das tribos .guerreiras e nómaldas do deserto. [' A epqça
também apresentava um carácter de transição entre o velho
num do dq pagnaiismo árabe e. o.das. novas religiões mundiais,
em pleno desenvolvimento. Esta situação teve urna grande
influência na formação do carácter e do ensino de Maomé.
É importante notar que ele era um citaldino imbuído das tra­
dições da cidade e da comunidade comercial. Cheio de des­
prezo para com os Árabes do deserto (*) — apesar de, com
certeza, dever aos seus antepassados do deserto o espírito com­
bativo e audacioso que manifestou caída vez mais na segunda
parte da sua carreira — •fora, intensamiente abalado por ver
a anarquia, a barbárie das tribos paigãs e guerreiras, os ves-
tígios da civilização primitiva cuja grandeza, se tinha des­
vanecido. iSentia a necessidade de uma reforma moral da

0) V. Surata, I X , 90-106, entre outras esta passagem :


i«Os Áraibss do deserto são os mais fortes na incredulidade e nas
»dissimulações e não há que contar vê-los instituídos pelas leis que
IDeus enviou ao seu apóstolo».
160 A FORMAÇÃO DA EUROPA

sociedade áralbe—•a substituição da lei tribal primitiva da


solidariedade familiar e da vingança privada por um novo
princípio de ordem; e, ao mesmo tempo, tinha consciência
da importância absoluta do homem, para fazer qualquer coisa
pelas suas próprias forças. Porque, como a todos os Semitas,
a humanidade alfigurava-se-lbe sem importância em presença
do poder absoluto e irresponsável de Deus; e talvez seja pre­
ciso ver nisto o resultado psicológico natural da penosa situa­
ção criada pelo deserto ambiente. [Mas a divindade omnipo­
tente de Maomé não se assemelha às forças da natureza deiíi-
cadas da velha religião árabe: era o Deus das novas religiões
— a judaica e a cristã — cuja influência se fazia sentir na
Arábia. Não há dúvida de que Maomté esteve em contacto com
elas no decorrer das viagens comerciais que empreendeu, por
conta da sua mulher, a rica Kadijah, viúva de idade avançada’
Lús comunidades judaicas na Arábia do sul chegando mesmo
quase até Medina, eram numerosas; o seu proselitismo, bem
como o dos cristãos, era ardente; e, embora tenhamos poucos
dados acerca da prosperidade da Igreja, que então existia na
Arábia do sul, os códigos atribuídos a S. G-regentius, apóstolo
dos Himiaritas, recordam-nos em muitos aspectos o espírito
puritano do Islão primitivo. Existia finalmente uma classe
de ascetas indígenas chamados Hanifa, que, como Maomé,
pregavam o monoteísmo e a observância duma lei moral estrita;
e um dos mais célebres dentre eles, Zaid ibn ‘ Amr, que era
cidadão de Meca, morreu quando Maomé era jovem. E con­
tudo seria um grave erro ver neste último não uma força ori­
ginal mais um apóstolo das ideias de outrem. Estava proífun-
damente convencido da autenticidade da sua própria inspira­
ção. Como tantos místicos caía numa espécie de transe, no
decorrer do qual ouvia uma voz, sempre a mesma, à qual se
sentia incapaz de dar ordens ou de resistir. Esta articulava
sob a forma duma prosa rítmica e com assonância, sem dú­
vida bastante semelhante à dois versículos oraculares da poe­
sia pagã, porque Maomé teve incessantemente de se defender
A ASCENSÃO DO ISLÃO 161

da acusação de ser «um poeta» ou um homem possuído por


um espírito.
Estas frases breves percebidas no decorrer do êxtase
deram lugar, quando Maomié .se tornou chefe dum partido e
'fundador duma seita, a um tom miais prosaico e mais didático,
a regulamentos para a direcção da jovem comunidade, a con­
trovérsias com os seus adversários, a histórias lendárias tiradas
dais mais diversas origens: o Talmud, os Evangelhos apócrifos,
as narrativas da Arábia pagã, a lenda de Alexandre de cabeça
com chavelhos e das suas campanhas até aos conífins da terra.
Contudo, apesar da sua crueza e do seu carácter, q 'Corão teve
maior influência na. história do mundo do que qualquer outro
simples livro. Ainda hoje é para a vida social e pára o pensa­
mento de. duzentos milhões de homens a autoridade suprema
de que cada linha, cada sílaba é considerada como de inspi­
ração divina.
0 poder da religião de Maomé provém, antes de tudo,
da sua absoluta simplicidade. Corresponde ao novo tipo de
religião universal reduzida aos seus elementos mais simples.
O seu princípio fundamental é a unidade absoluta e a omni­
potência de Deus bem como a importância primordial da vida
•futura. Mas, apesar da sua simplicidade, está longe de ser
um deísmo puramente racional, como querem fazer crer certos
dos seus apologistas modernos. Funda-se, não na razão, mas
na revelação profética., no sentido estrito da palavra, e na fé
na intervenção miraculosa dos poderes sobrenaturais. Dá da
vida futura uma imagem viva e completamente material; pinta
o fogo do inferno, onde os incrédulos arderão et>emam©nte
e comerão o fruto infernal da árvore Zakkum; os jardins um­
brosos do paraíso, onde os crentes repousarão para sempre
em elevados leitos com guarnições de brocado e beberão a água
da fonte de Es-lSelsebil, juntamente com as suas noivas esposas,
as filhas do paraíso, «de grandes olhos, de olhares pudicos,
belas como um ôvo fechado».
A s doutrinas morais e sociais de Maomé gão tão pouco
.complicadas, tão despidas de subtilezas como a sua teologia.
U
162 A FORMAÇÃO DA EUROPA

À unidade de Deus corresponde a fraternidade entre crentes


que áboliu toda a distinção de raça, de tribo, de classe social.
O primeiro dever é a esmola: «resgatar o cativo, alimentar
o órfão e o pobre que jaz no pó». São permitidas a poligamia
e a escravatura, mas, fora destas duas exeepções, as prescri­
ções morais são dum1 rigor puritano', reforçado por castigos
corporais.
I Em contrapartida, a simplicidade moral e doutrinal do
[ Islão é compensada pelo cerimonial minucioso dos seus ritos: i
os cinco momentos da oração diária, com um número obriga- í
tório de prostrações, as recitações do ;C orão, o rigoroso jejum í
anual do Ramadão, as regras estritas referentes à pureza ritual j
e às albluções, e, principalmente, as formalidades da peregri-!
nação a Meca, fazem dois muçulmanos uma raça. aparte, comoj
era o caso dos Judeus, com Meca por centro, em vez de Jeru-j
, saliém. '^Porque, embora abandonando o velho paganismo árabe;
Maomé ficou fiel à sua cidade santa; a Kaaba continuou a
ser a casa de Deus; até as antigas cerimónias, de beijar a
«pedra negra» e das sete voltas rituais à Kaalba, se mantive­
ram, bem como os ritos primitivos da peregrinação ao monte
Aralfat, com o sacrifício do carneiro e o corte dos cabelos e
das unhas na aldeia de Mina. E para justificação de todas
estas práticas, foram elas apresentadas como fazendo parte
da «religião de Abraão», fundador da Kaaba e antepassado
da raça árabe.
A elaboração das doutrinas de Maomé e a. organização
da comunidade muçulmana, fizeram-se, bem. entendido, pro­
gressivamente. O momento crítico da carreira de Maomé foi
aquele em que foi expulso de Meca pelos Coreixitas, pagãos, e
buscou refúgio, com os seus companheiros, na vizinha cidade
de Yatrib, a actual Medina. F oi a Hégira (622 depois de
Cristo), ponto de partida de toda a cronologia muçulmana.
Foi em Medina que a nova comunidade tomou a forma duma
sociedade política que devia suplantar a velha unidade tribal,
e foi desta cidade que Maomé dirigiu contra as caravanas de
Meca, as pequenas expedições que marcaram o< início do poder
A ASCENSÃO DO ISLÃO 163

material do Islão e da Guerra Santa. A s escaramuças travadas


no deserto, no decorrer dos anois seguintes, desde a batalha d e ‘
Badr, no ano II, até à tomada de. Meca e à batalha de Hunain,/
no ano VflDII, decidiram de todo o futuro da Ásia ocidental
e da Álfrica do Norte. '
A partir deste momento, o Islão tornou-se uma força
conquistadora que absorveu e . uniu,..todas.. as - comunidades
tribais da A rábia. Um dos princípios fundamentais da dou-
trina_dé^'Maonié, queria que os verdadeiros crentes vivessem
em paz uns com os outros: a cessação das lutas entre tribos
descarregou uma onda de energia guerreira que se espalhou
pelas regiões circundantes. Dois_..anos depois da morte do
Profeta, iniciou-se a conquista da Síria e da Pérsia. Mas
o extraordinário sucesso e a rapidez da expansão muçulmana,
não se devem, exclusivamente, ao espírito militar dos Árabes:
foram, princip alimente, resultado do seu intenso entusiasmo reli­
gioso, que,fez da. Guerra Santa um gesto supremo de dedicação
a Deus e de sacrifício, de forma que a morte no «caminho de
Deus» se afigura, ao muçulmano1, como o ideal mais alto.
Pst e puritanismo combativo, que é um dos caracteres
essenciais do Islão, encontrou a sua mais perfeita expressão
nos primeiros califas, e o seu tempo, e não a grande época
da civilização e da filosofia abássidas, é que foi sempre con­
siderado, pelos próprios muçulmanos, como sendo a idade de
ouro do M ão. É assim que a apresenta o autor de Al-Falthri,
nesta passagem famosa:
«Pica sabendo que não era um Estado semelhante aos
outros Estados do m undo: assemelhava-se antes a um Estado
do mundo vindouro; e esta é a verdade a este respeito : a exis­
tência do califa era modelada pela dos profetas, a sua con­
duta pela dos santos, mas as suas vítimas eram como as dos
reis poderosos. Levava uma vida rude; a sua alimentação
e vestuário eram simples. Um deles (Ornar) tinha por hábito
passear nas ruas, a pé; trazia uma única camisa, esfarrapada,
que lhe descia até à barriga da perna e, nos pés, simples san­
dálias; segurava na mão uma chibata com que castigava os
164 A FORMAÇÃO DA EUROPA

que .0 mereciam ; o seu alimento era o do mais humilde dos


pobres. 0 chefe dos crentes, A li — . que a paz seja com elo! —
tirava das suais propriedades uma opulenta renda e distribuía-a
toda pelos pobres e desgraçados, contentando-se, bem como
a sua família, com. grosseiras vestes de algodão e pão de cevada.
E quanto às vitórias e batalhais, a sua cavalaria chegou à África,
ao âmago, do Khorassan e transpôs o Oxus» (1).
% É fácil de compreender que o exército profissional do
Império bizantino ou os contingentes' feudais da Pérsia, eram
tanto menos capazes de se medir com homens animados de tal
espírito, quanto mais ais forças militares dos dois impérios
estavam esgotadas pela grande luta que um contra o outro
tinham sustentado e apenas acabava de terminar. Na Síria,
como no Irak, a nobreza grega ou persa tinha alienado a sim­
patia da população indígena, pela opressão fiscal e persegui­
ção religiosa. Os camponeses ara,meus estavam mais perto
da simplicidade democrática do Islão prim itivo do que da
Ijgreija imperial ou da religião oficial de Zoroasiro; e, se esta­
vam, ainda numa posição dependente, os inonofisitas e os nes-
torianos, tinham, pelo menos eles, a satisfação de se encon­
trarem no mesmo pé d'© igualdade dos seus detestados opresso­
res. Mas a conquista foi um desastre irremediável para a civi­
lização persa, bem como para as florescentes cidades gregas
da Síria setentrional e da região costeira, as quais jamais se
haveriam de refazer do .golpe sofrido.
Assim, os breves anos do califado (634-643) tinham
bastado para transformar o Islão num vasto império que, além
da península; arábica, englobava a Síria, o Iralque e o Egipto.
Mas esta expansão foi fatal à teocracia primitiva. Os Árabes
tinham-se tornado senhores duma enorme população subme­
tida que conservava a sua antiga religião, mas ora, obrigada ao
pagamento duma, capitação e privada do direito de porte de
armas. A sociedade ficou, desde então, dividida em duas
classes : os .guerreiros muçulmanos e os eon-tribuintes —- cris-

()) Citado em Browne, Hist. of Persian Lit., I, 188-9.


A ASCENSÃO DO ISLÃO 165

tãos e sequazes de Zoroastro, camponeses e citadinos, — às


quais se juntou em seguida uma terceira, a dos não Árabes,
convertidos no Islão, os. Maiowali ou clientes. Ornar procurou
salvaguardar a simplicidade e a igualdade que Maomé tinha
idealizado, proibindo-lhes que os guerreiros adquirissem os
te rritório conquistados e distribuindo-lhes vencimentos tira­
dos das receitas do tesouro. A s principais guarnições foram
estabelecidas, para defesa das novas conquistas, nas cidades
puramente militares de Kufa, perto do Ctásifom, e de Fostat,
perto do Cairo; mas, da longínqua; Medina era difícil vigiar
esses turbulentos exércitos de fanáticos, e as velhas rivalidades
de triibo para tribo começaram a reaparecer: dum. lado-, o par­
tido da velha aristocracia tribal, com a casa de Omayya, à
frente; do outro, o partido fiel ao primitivo ideal do Islão,
os «ajudantes do Profeta.» e os «companheiros do seu exílio».
Estes últimos estavam, por sua vez, divididos etm dois grupos:
os que defendiam, as pretensões do mais próximo parente de
Maomé, seu primo e. genro A ii ibn T-ailib, e os rígidos puritanos,
cujos princípios eram tão democráticos quanto eles ©ram teo-
eráticos e a ninguém reconheciam um direito pessoal ao cali­
fado. Eraon os «Kharijitas» ou dissidentes; mas aipedidaram-se
a si próprios de churai, «vendedores», porque- tinham vendido
as prój)rias vidas pela, causa, de Deus — alusão a esta- passagem
do Corão:
«Na, verdade Deus comprou aio fiel as suas pessoas e os
seus haveres em troca do Paraíso. Nas sendas de Deus eles
devem combater, matar, deixar-se matar, porque ele fez uma
promessa na Dei, nos Evangelhos e no Corão; e quem é mais
fiel do que Deus aos seus compromissos? Alegrai-vos pois do
contralto em que acordastes, porque vos servirá de grande feli­
cidade» C ).
Esta posição é hoje a, dos Ifeanitas da Arábia meridional,
descendentes dos Kharijitas, e, duma forma mais perfeita, a
dos Wabatbitas que, ao tentarem restaurar o Islão na sua pri-

(') Sura I X , 102, tr.ad. Rodwell.


166 A FORMAÇÃO DA EUROPA

mitiva simplicidade, .conseguiram mais uma vez a unidade


da AráJbia e expulsar o rei do Hedjaz das cidades santas de
Meca e de Medina.
Estes três partidos que acabamos de indicar, foram
cansa das guerras civis e dissensões que levaram à rotura
da unidade muçulmana primitiva e que deixaram traços inde­
léveis na história ulterior do Islão: o califa Otman, sucessor
de Ornar, chefe dos Omíadas e da aristocracia mequense, foi
morto pelos partidários da estrita observância; dos seus suces­
sores, A li abandonou Medina por Kuifa, enquanto Moaw-
wiya, representante da casa dos Omíadas, ocupava Damasco
e a Síria; 'em 681, A li foi morto por um puritano fanático, e
o califado caiu nas mãos dos Omíadas, que derrotaram e ma­
taram em Kerbela, em 681, o filho de Ali, o próprio neto de
Maomié, Husaín —■acontecimento que ainda hoje os chiitas co­
memoram no mundo inteiro, na festa de Aehura, com apaixo­
nadas manifestações de dor e mortificações extravagantes.
Assim se consumou no Islão, a vitória do temporal sobre o .
espiritual. Damasco tornou-se capital dum grande Estado,
sob o governo hereditário da dinastia omíada. As suas fron­
teiras estenderam-se, para leste, até às do império chinês, para
oeste, até às costas do Atlântico: num, só ano (711) o Sind
e a Espanha vieram aumentar os domínios do califa.
Esta expansão territorial foi acompanhada por uma
transformação rápida na civilização muçulmana. Os califas
adoptaram os velhos métodos governamentais de Bizâneio e
da Pérsia. Quase todos os funcionários subalternos foram
indígenas, e a língua administrativa foi, de início, conforme
os casos, ou o grego ou o persa. A corte de Damasco foi o
centro duma brilhante civilização, e a construção de grandes
edifícios, como a mesquita de Ornar em Jerusalém ou a grande
mesquita de Damasco, marca o início duma arquitectura e
duma arte muçulmanas fundadas nas tradições siro-bizantinas.
Do século dos Omíadas (661-750) data, consequente­
mente, o triunfo final da reaeção oriental, cujo progresso deli­
neámos. A Síria, o Egipto e a Mesopotâmia tinham sido arran-
A ASCENSÃO DO ISLÃO 167

eadas aos seus dominadores gregos e iranianos, para se tor­


narem o centro dum império semita homogéneo, de posse duma
religião e duma civilização próprias e cujo. domínio se estendia
do Oxus ao Atlântico. O Império Romano estava à beira do
abismo e o mundo civilizado parecia em vésperas de se tornar
todo muçulmano. A té na própria cristandade as influências
orientais ganhavam terreno. O tempo dos Califas sírios é
também aquele em que o Império do Oriente governado por
uma dinastia síria 0 ) e em que a Igreja do Ocidente teve à
frente um papa sírio ( 2), ao mesmo tempo que o mestre do
pensamento cristão o o último dos Padres gregos era o Sírio
João Mansur, antigo chefe do tesouro no tempo de W alid I
e dos seus sucessores.
'Foi no século V II e não no século V, que terminou a
úlltima fase da antiga civilização mediterraneana: os tempos
do Império cristão são passados; a Idade Média começa.(*)

(*) A dos Is áu r i os, originários de Gerlmanicea, na Comagena.


lO 1 De 685 a 741 houve cinco papas Sírios: João V (685-
-68 6), Sérgio I (687-701), SiSiunius (7 0 8 ), Constantino I (708-715),
Gregório IH (731-741).
CAPÍTULO IX

A DIFUSÃO DA CULTURA
MUÇULMANA

l \ J OS séculos I X .0 X a civilização muçulmana atingiu o seu


■ ” ipleno desenvolvimento e todo o mundo islâmico, da
Espanha ao Turquestão, viu florescer a mais 'brilhante cultura
que jamais conhecera. Todavia a sua origem não era pura-
mente muçulmana e muito menos árabe. Era um produto
cosmopolita para cuja elaboração contribuí ram todos os povos
submetidos— 'Sírios, Persas, Espanhóis, Berberes, Turcos —
e as suas civilizações. As primeiras pedras do edifício foram
colocadas pelas conquistas dos quatro primeiros califas e pela
organização política dos Omíadas de Damasco>; mas foi so­
mente depois da queda da casa de Omayya, em. 747, que co­
meçou a .grande época desta civilização cosmopolita.
A revolução que levou ao trono a nova dinastia da casa
de Abbas teve em grande parte corno causa o descontenta­
mento das províncias orientais com o domínio puramente
árabe do califado sírio. Foi nas províncias orientais do impé­
rio — no Khoraissan — que surgiu a revolta contra os Omíadas,
e o seu sucesso marca o fim do período puramente árabe da
cultura islâmica. O califado foi transferido da Síria para a
Mesopotâmia, centro da civilização e dos impérios orientais
desde tempos imemoriais. Foi lá construída por Al-Mançor,
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 169

em. 572, a noiva capitai, Baigdad, que herdou o prestígio e, até


certo ponto, as tradições da monarquia saissânida O ). O go­
verno esteve muitas vezes nais mãos de vizires de sangue persa,
entre outras nas da grande família dos Barmécidas, no reinado
de Hairun ar-Raiehid, e dos Padl ibn Sahl, no de iMamun; e,
durante todo este período, influências persas afeictairam pro-
fundaimente a vida socíail cia corte e da capitai. A civilização
muçulmana deve muito a homens de letras persas ou siemi-per-
sas tais como AJbu Nuwas1 ( + 810), poeta cortesão no tempo
de Harun ar-Raiehid, e Al-Kisai, preceptor do califa Al-Ma-
mun. Este último era filho duma. persa., e foi no seu reinado
(813-833) que a corte sofreu por completo o ascendente persa.
Esta não constituía contudo miais que um elemento da nova civi­
lização cosmopolita. A Mesopotâmia era essencialin.ent.e um lu­
gar de encontro das diferentes civilizações — síria, persa, árabe,
bizantina — e principalmientie das diferentes religiões. Não era
<somente o centro do judaísmo e do cristianismo nestoriano;
todais as seitas e heresias estavam lá representadas, desde o
monufisitismo e o miamiqueísmo até às 'estranhas sobrevivências
da tradição gnóstáca e pagã, que aparecia, por exemplo entre
os Mandeanos de Babilónia ou os adoradores de estrelas de
Harran.
O país era um palimpsesto no qual cada civilização,
desde a época dois Sumérios, tinha deixado a. sua impressão.
Numa tal atmosfera, era difícil à nação dominante con-

( á Ibn Hazrn (9'9i4—10;6‘4) que, como espanhol, que era, foi


parcial para com a fam ília dos O miadas, escreveu o seguinte: «Os
Omíadas eram uma dinastia arábica que não possuía residência
fortificada nem cidadela. Cada um habitava a casa de campo onde
vivia antes de se tornar califa. Não exigiam que os Muçulmanos
lhes falassem como escravos aos senhores, que perante eles bei­
jassem o chão, ou mesmo os p ês... Os Abássidas, pelo contrário,
eram uima dinastia persa sob cujo domínio se arruinou o sistema
das tribos árabes como Ornar as havia instituído. Os Persas do
Khorassan eram os verdadeiros chefes e o governo tornou-se des­
pótico como nos dias de Cósroas» (passagvem citada por De Goeje
in Encyclopaedia Britannica, ed. 11.“, t. V , p. 4126).
170 A ffORM AÇlO DA ÉÜROPA

servar a ortodoxia intransigente- e a moral puritana do Islão


primitivo. A sociedade voluptuosa e artificial da capital abás-
sida tolerava o vinho, a música, os prazeres duma curiosidade
intelectual desenfreada e a livre discussão em matéria reli­
giosa. Por gracejo chamavam a Al-Manum «o chefe dos In­
crédulos», e, segundo o divertido epigrama citado por von
Kremer, ura homem só estava na moda se fizesse profissão de
heresia. :

«dbn Ziyaid, pai de Djalfhar!


Tu professas uma crença diferente da que no coração escondes.
Exteriormente e nas palavras és um zindik (maniqueu),
Mas, no íntimo, és um respeitável muçulmano.
Não és zindik nenhum, mas desejaste passar por um homem
da moda!» (1).

Estas condições explicam o carácter especial da nova


civilização do período albássida. Emibora árabe de língua e
maometana de religião, a civilização albássida era, pela sua
bagagem intelectual, a continuadora de civilizações mais anti­
gas absorvidas no império mundial dos califas. Isto é verdade
prineipalmente no que respeita à noiva filosofia e à ciência
arábica que se desenvolveram nesta época e deviam exercer
uma tão grande influência em todo o mundo medieval. D u­
rante mais de quatro séculos a hegemonia intelectual do mundo
passou para os povos islamitas, e é dos Árabes que provém
a tradição científica da Europa ocidental. Apesar disto con­
tudo, a olbra científica e filosófica do mundo muçulmano pouco
deve quer aos Árabes, quer ao próprio Islão. Longe do ser
uma criação original, não fez mais que continuar, desenvol­
vendo-a, a tradição helenística incorporada à cultura islamita
mercê dos trabalhos de homens de sangue arameu ou persa.
À excepção, única e importante, de Al-Kindi, «o filósofo dos

(J) Von Kremer, Kulturgeschichtliche Streifzüe, pp. 41-4'>2,


citado por E. B. Browne, History of Persian literature, V ol. I , p. 307.
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA m

Árabes», estes tomaram parte diminuta no movimento. F o i


precisamente nas fronteiras do Islão — na Ásia central com
Al-Farabi, Vvicena e Al-Biruni, e na Espanha e Marrocos com
Averroes e Iíbn T u fa y l— que este produziu os seus frutos.
É preciso procurar as origens deste movimento entre
os cristãos de língua siríaea em Babilónia, e entre os pagãos
«salbeus» de Iíarran, que desempenharam o papel de interme­
diários entre a cultura grega e a cultura islâmica. A escola
nestoriana de Jundi-Ohaipur (perto de O tésifon), rebento da
escola de Nisibis e herdeira das tradições dos sábios siríacos
e dos tradutores do século V I, foi, ao mesmo tempo que de
estudos teológicos, um centro de estudos científicos. F oi lá que
os filólogos árabes de Basra começaram por adquirir umas
tintas da lógica arisitotéliea; e também lá se assistiu ao flores­
cimento duma escola de medicina de renome. A partir da
fundação de Bagdad, os «físicos» da corte foram escolhidos
dentre os cristãos nestorianos, e estes homens foram os p ri­
meiros que traduziram para árabe os trabalhos científicos gre­
gos. Al-Mamun concedeu-lhes uma ajuda oficial ao fundar
em Bagdad, em 832, a escola e o observatório conhecidos pela
«iGasa da Sabedoria», cuja direcção confiou ao médico nesto-
riano Yaihyah ibn Massawaih. A actividade da escola atingiu
o seu maior desenvolvimento na direcção do discípulo de
Yahyah, Hunaín iibm Ichak (809-877), que foi não só o maior
dos tradutores sírios, mas também o autor de muitos traba­
lhos originais 0 ) . Foi ele e a sua escola que tornaram, acessí­
vel ao mundo islâmico m a grande parte da literatura cien­
tífica grega: Galeno, Euelides, muitos tratados de Platão, de
Aristóteles e dos seus comentadores neoplatónicos. Pela mesma
época os escritos de Al-Khwarizmi e dos três irmãos da família
de Banu Musa ( 2) punham os fundamentos das matemáticas

f 1). Foi conhecido da Europa medieval por Johannitius e


a sua Introdução a Galeano foi um dos primeiros livros árabes tra­
duzidos para latim.
(2). Autores do Liber trium fratrwm, traiduzido par Gerardo
de Cremona.
172 A FORMAÇÃO DA EUROPA

e astronomia árabes. A relação de dependência para com a


tradição 'helénica era contudo, neste ponto, menos completa,
por causa da ciência indiana, que tinha penetrado em Bagdad
no último quarteirão do século V illil. Al-Khwarizmi, qu,e es­
creveu protegido por Al-Qíaraun, pôde aproveitar-se nas suas
obras desta ciência nova. Utilizou-se principalmente destas
duas invenções capitais: o sistema decimal de numeração e
o zero. Foi por isso que os Europeus da Idade Média deriva­
ram do seu nome a designação do novo sistema de numeração
— o Algarismo. É ainda a ele que eles devem os seus pri­
meiros conhecimentos da ÁVgdbra 0 ) . Nem por isso a astro­
nomia e as marilemáticas árabes deixaram de se fundamentai',
esseneialmentc, na tradição grega, cuja transmissão foi tam­
bém e prineipalmente assegurada por tradutores sírios, entre
outros pelos cristãos Hunaín ib ívhaik e Qusta ibn Lnqa (por
835), e polos pagãos «saibeus», Thalbit ibn Qmrra (835-900) e
At-Battani (Albategnius) (850-928), um dos mais famosos
arstrónomos doanundo muçulmano (2).
Esta aissimiliação c reconstituição da tradição helénica
foi, bem entendido, parcial e incompleta: nenhum caso se fez
da poesia e do drama .gregos. A influência, literária exercida
por ela limitou-se à prosa e, mesmo neste domínio, não foi de
primeira importância embora as tradições da retórica grega
tenham deixado sinais fácil mento perceptíveis na literatura
árabe, por exemplo em Al-Jahiz, mui ato zarolho, que foi o
maior estilista e o maior mestre do século IN (8). Mas na

(') O ,seu tratado de álgebra ifoi traduzido por Roberto de


Ohester em 1145, e deve-se provavelmente a Adélhard de Bath a
tradução do seu tratado de aritmética Algorismi de numeris Inão-
rum. A s suas tábuas astronómicas — as «tábuas Khorasmianas»
(trad. em 1126) — 1tom também grande importância na história
da ciência medieval.
(2) A sua introdução à astronomia, De scientia astrorum,
foi traduzida por Platão de Tivoli ©m l l l è . É também a ele que
o Ocidente deve os seus primeiros conhecimentos da Trigonometria.
O Os seus ensaios são semelhantes aos exercícios habi­
tuais nas escolas de retórica clássica: litígios imaginários ou dis-
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 173

ciência e na filosofia a 'herança da cultura grega fo i larga­


mente explorada. Neste capítulo os muçulmanos retomaram
a tradição no ponto em que a tinham abandonado no século V I
as escolas de Atenas e de Alexandria e prosseguiram o mesmo
ideal que os últimos pensadores gregos r a reeoneialiação ou a
fusão do aristotelismo e do neoplatonismo. Embora estivessem
já de posse dos principais 'elementos desta síntese, realizaram-na
com um. vigor de pensamento e um engenho intelectual que
fazem, da suo obra uma. das mais completas e dais mais harmo­
niosas construções filosóficas jamais criaidas. O europeu mo­
derno está tão habituado a considerar a religião, a metafísica
e as diversas ciências naturais como outros tantos domínios
independentes e autónomos, que nos é difícil compreender
um sistema e.apaz de combinar, num iodo orgânico, a física, a
metafísica, a cosmologia e a eipistemiologia. Tal era contudo
o ideal dos filósofas árabes e estes conseguiram atingi-lo tão
bem, que a tradição helénica reconstituída por eles, longe de
formar um aglomerado de conhecimentos fragmentários e à
mistura, nos aparece corno um verdadeiro sistema completo
dc conhecimentos cujos elementos são todos inseparáveis do
conjunto.
'Mas a universalidade e a lógica desta síntese tornavam
inevitável um conflito com a doutrina ortodoxa do Islão.
A simplicidade severa da religião do Corão que ensinava que
o dever do homem não consiste em; discutir -a natureza de Deus
mas em. olbedeiccr à sua lei, nada tinha de comum com. este
intelectualismo radical dos filósofos. A visão helénica duma
lei cósmica universal, compreensível ao intelecto humano, ne­
nhum. lugar deixava à crença semítica num Deus pessoal que
governasse o mundo e o destino dos homens com o despotismo
e o arbítrio dum monarca oriental. Esta crença levava, no
fim de contias, à negação do princípio do causalidade e da
existência duma ordem necessária no universo, ao passo que
cursos sobre assuntos tais como: a superioridade dos negros sobre
os brancos., ou a contenda entre a primavera e o outono. Os Á ra­
bes conheciam a Retórica e a Poética de Aristóteles.
174 A FORMAÇÃO DA EUROPA

a concepção grega acatava num determinismo científico que


encontrava a sua expressão clássica na cosmologia aristotéliea.
Corno escreveu Duhem, «Aristóteles e os seus mais exactos co­
mentadores, como Alexandre de Afrodísias e Averroes, ensi­
navam que cada deus é uma inteligência eternamente imóvel,
simples motor duma matéria prima eterna como ele, causa
primeira e causa final das revoluções celestes necessárias e
perpétuas; ensinavam qne estas revoluções determinam, se­
guindo uma incessante periodicidade, todos os acontecimentos
do mundo sublimar; ique o homem, encaixado no encadeamento
deste determinismo absoluto, somente a ilusão de liberdade
possui, que não tem .alma imortal, ou então que é momenta­
neamente animado por um intelecto indestrutível mas impes­
soal e comum a todos os homens» (x).
Por muito irreconciliável que fosse, quer com o Cris­
tianismo quer com o Islão, eista teoria não deixava de ter os
seus partidários no mundo muçulmano. O paganismo astral
da Ásia ocidental continuava ainda a ser uma tradição viva
no século IX , e os seus aderentes sempre se mostravam orgu­
lhosos da sua antiga cultura, como peidemos apreciar pelas
ousadas palavras de Thaibit ibn Qurra:

«Somos os herdeiros e os rebentos do paganismo que


gloriosamente se estendeu pelo mundo. Feliz daquele
que, por amor do paganismo, transporta o seu fardo sem
se cansar. Qu'em civilizou o mundo e construiu ais cida­
des, senão os chelfes e os reis do paganismo? Quem cavou
os portos, traçou canais1? Os gloriosos pagãos é que cons1-
truíram todas estas coisas. Descobriram a arte de curar
as almas: também deram a conhecer a. arte de curar os
corpos e encheram o mundo de instituições políticas
e da sabedoria, que é o maior dos bens. Sem o paganismo
o mundo estaria vazio e mergulhado na indigência» ( 2).
O iP. Diihelm, Le système du monde, Vol. I'V, <p. 314.
(2)í Garra de V aax, Les pensewrs de Vlslam, Vol. II,
pp. 145-146.
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 175

Os pagãos foram elfeetivamente os fundadores da ciência


como era conhecida dos Árabes e tinham agora transportado
da sua longa permanência entre os gregos para as cidades
sagradas da Babilónia, onde tinha nascido, a tradição da sabe­
doria antiga. Porque Tliabit era originário de Harran, a filha
de Ur dos Caldeus, e os seus templos conservavam ainda a tra­
dição que remontava, sem solução de continuidade, ao longín­
quo passado sumério. É impossível compreender a civilização
da época aibássida sem se reconhecer que ela não era uma.
criação puramente islâmica, mais a fase última duma evolução
intelectual que se desenvolveu por mais de três milénios. Tinham
nascido e tinham desaparecido os impérios um após outro,
mas por mais de uma vez a antiga cultura da Mesopotâmia
tinha reafirmado o seu poderio e imposto a sua tradição ao
espírito dos conquistadoras.
É verdade que o Islão ortodoxo compreendeu o perigo
que o ameaçava e fez tudo o que em seu poder estava para se
opor à influência desta tradição estranha. Porque a noVa filo­
sofia era mais nefasta ao Islão medieval do que O' averroísmo
o foi à Cristandade medieval, e o Oriente não teve um S. To­
más de Ajquino paira reconciliar a ortodoxia aristotjélica e a
ortodoxia teológica. ;S e em dado momento os teólogos liberais
da mesma escola Mutazelita tentaram preencher o abismo que
separava a ortodoxia tradicional do pensamento filosófico,
foi mais sob a influência da teologia cristã do que sob a da
ciência grega; e os esforços feitos por pensadores como Nazzam
para concluir uma aliança com o pensamento grego contri­
buíram miais que tudo para lançar O' descrédito em semelhante
tentativa. A reacção ortodoxa no reinado do califa Al-Muta-
wakkil, em 834, levou à queda dos mutazelitas, que tinham
gozado o favor de Mamun e dos seus sucessores imediatos, e
valeu a perseguição a filósofos como' Al-Kindi. Desde então
a ortodoxia muçulmana voltou a um tradicionalismo rigoroso
que recusava acomodar-se à filosofia e respondia a todas as
objecções dos racionalistas com a fórmula — Bila ka/yf —- «Crê
sem perguntar por quê».
176 A FORMAÇÃO DA EUROPA

(Mas a vitória dos teólogos fica alojada no terreno pura-


mente teológico. Não pôde deter nos espíritos o® progressos
da tendência cosmopolita que já tinha destruído a supremacia
do elemento árabe e libertado as forças estrangeiras e centrí­
fugas do mundo orientai] . No século I X todas as forças submer­
sas das civilizações maiis antigas — o helenismo e o paganismo
dos filósofos, o iluminismo das seitas gnósticas, o socialismo
revolucionário dos maizdaikitas — vieram à superfície e amea­
çaram revolver o Islão até aos seus fundamentos já abadados
pedas divisões internas da comunidade muçulmana.
Desde o século V|II que a questão da ordem Legal de
sucessão no califado não cessara de ser origem contínua de
guerras e de cismas no Islão. Sempre foram muitos os que
tinham por legítimas as reivindicações de Ali, primo e genro
de Maomlé. Acreditavam que o próprio Profeta, no último
ano da sua vida, junto da lagoa de Quum, o havia designado
seu representante e sucessor, e qu'e consequentemente, todos ois
califas que dele descendiam e não pertenciam à santa casa do
Profeta eram impostores qne nenhum direito legítimo possuíam
à obediência dos muçulmanos. É esta a origem da Chi‘ at ‘ AM,
«o partido de A li», que ainda hoje conta uns setenta milhões
de aderentes na Pérsia, na índia e no Iraque, e que não reco­
nhece como califas autênticos senão os descendentes de A li:
os doze inums. Este partido encontrou dofensoreis principal-
mente entre os descendentes dos povos conquistados, os quais
introduziram no Islão a velha crença orientai no carácter sa­
grado da realeza, e nois seus direitos inalienáveis, a ideia do
direito divino dos reis em oposição à teoria islâmica primitiva
segundo a qual os reis colhiam a sua lautoridade da comuni­
dade. De resto esta, ideia encontrou-se misturada a tradições
e crenças dum carácter mais transcendental, tais como a dou­
trina gnóstica ou maniqueia da manifesta,ção dois divinos eoms
sob forma humana e a crença iraniana na vinda dum, Red Sal­
vador, o Maoshyani. Graças a estas influências >a figura um
tanto prosaica de A li foi rodeada por um halo de emoção reli­
giosa. Transformou-se num semi-deus, ao mesmo tempo herói
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 177

e santo, o mais santo e o mais isálbio dos homens, a luz de Deus.


A cassa de A li tomou-se desta form a ohjecto duma devoção que
aliava o lealismo romanesco do jaeobita à fé messiânica do
fanático religioso.
A sua história não é mais que uma série ininterrompida
de desgraças imerecidas. Toda a tentativa do® seus membros
para afirmarem os seus direitos fo i uma arriscada aventura
e terminou por um desastre; até mesmo quando viviam na
obscuridade ou sucumbiram com o veneno ou com o assassinato.
Os Abássidas serviam-se deles como de instrumentos para
derrubarem os Omíadas; depois, na hora da vitória, abando­
navam-nos. Finalmente em 873 o principal ramo dos Álidas
exitinguiu-sa com1o desaparecimento do duodécimo iman Maomé
ibn Hassan, uma criança de dez anos que a califa Al-Mutamid
procurou mandar assassinar.
Os Chiah nem por isso perderam as esperanças. Os seus
partidários recusavam-se a crer que o iman tivesse reailmente
morrido porque se não existisse verdadeiro iman, pretendiam
eles, o «mundo acabaria num abrir e fechar de olhos». Não
estava morto mais simplesmente «escandido» e, do seu retiro,
observava sempre o mundo, e guiava os fiéis nas suas em­
presas; aissim seria até que voltasse triunfante para restaurar
o Estaldo muçulmano e fazer reinar a justiça no mundo aetual-
mente cheio de injustiças. Aqui está como a infeliz criança,
que tão misteriosamente desapareceu há mais de mil anos,
se tornou uma das figuras mais famosa® da história do mundo.
Para mais de setenta milhões: de homens é ele hoje. o Màhdi,
o «Mestre do Tempo», o «Senhor legítimo», o «Defensor», o
«Esperado», a «iSalvação de Deus». Desde o século X V I que os
soberanos da Pérsia não têm exercido o poder senão como seu®
vice-reis e subordinados, e, em sinal de dependência, tinham
o hábito de terem sempre pronto para/ a sua esperada volta
um cavalo aparelhado.
Mas se tal é a fé que anima a imensa maioria dos chiitas
modernos, não foi esta contudo a única forma que o movimento
que descrevemos revestiu. Houve outros inumeráveis pre­
12
178 A FORMAÇÃO DA EUROPA

tendentes à sucessão de AH, e muitas dinastias muçulmanas,


estando nestas compreendidas os Id ri sidas de Marrocos e os
seus írnans Zayditas do Yémen de hoje, atribuem-se a mesma
origem. Mas o movimento miais sério, o que produziu a mais
profunda impressão no mundo islamita, foi o de Imaília — dos
ismailianos— da «:S'eiita dos Sete», que pretendem descender
do sétimo íman, Jufar as-:Sadiq.
O fundador desta seita, Abdullah ibn Marnun, parece
ter concebido a ideia de combinar todas as forças de descon­
tentamento intelectual e social em mira duma vasta conspi­
ração oculta contra o califado abássida e o Islão ortodoxo. As
suas doutrinas e os seus métodos de propaganda são conhe­
cidos principalmente pelo que dele dizem os seus adversários,
mas é claro que o movimento era essencialmente sincretista
e unia as ideias neoplatónioas dos filósofos às tradições gnós-
ticas conservadas pelos maniqueus e pelas seitas menos impor-
tamtes como as dos mandeanos e as dos bardesanianos. Como
os ignóstieos, os ismaálianos ensinavam, que o universo é o pro­
duto duma evolução em cu jo ponto de partida se encontra
uma divindade desconhecida e inacessível, e que se realiza
passando por uma jerarquia completa de emanações sucessivas.
Estas são em número de sete e correspondem aos sete eons ou
ciclos do curso temporal em cada um dos quais a Inteligência
Universal se manifesta de novo sob forma humana. Estas
sete manifestações são os sete «faladores» (n a liq ): Adão, Noé,
Abraão, Moisés, Jesus, Maomé e o messias Ismael, «o Mestre
do Tempo». A estes sete «faladores» correspondem as sete
manifestações da Alma Universal — os «auxiliares» ou «bases»,
cuja função consiste em revelar aos eleitos a significação eso­
térica do ensino dos «faladores»: assim, Aarão completa Moi­
sés, Pedro completa Jesus, e A li completa Maomé.
Todas estas revelações, incorporadas sucessivamente nas
diversas religiõeis do mundo, são resumidas e postas em prática
no ensino ismaeliano, em que são afastados todos os véus. Mas
o seu ensino era esseneiailmente esotérico e só era oferecido
completamente aos que tinham passado pelos sete graus de
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 179

iniciação que constituíam a jerarquia ismaeliana. Somente


quando o discípulo se entregava de corpo e alma ao Iman e
ao seu representante — o da’i ou missionário— <ê que a dou­
trina secreta (o ) lhe era revelada. O adepto era então
libertado de toda a doutrina positiva e de toda a lei moral e
religiosa porque desde então conhecia a significação íntima
que os véus do dogma e dos ritos encobrem em todas ais religiões
positivas. Elfeetivamiente todas as religiões são igualmente
verdadeiras e igualmente falsas paira o «gnóstieo». Só o ini­
ciado ismaeliano compreende o segredo supremo da Divina
Unidade: isto é, que Deus é uno porque Deus é tudo, e que
toda a forma da realidade mais não é que um aspecto do Ser
divino.
Esta teosofia esotérica nao representava todavia senão
uma das faces do movimento ismaeliano. Este respondia tam­
bém a uma tendência social revolucionária análoga à que ins­
pirara as revoltas de Mazdak no século V II e de Bahak o
Khurraimita, o famoso chefe dos «Vermelhos» (ahMohammiraj
no século IX . Aliás não era isto, de facto, senão o reapareci­
mento sob uma nova forma daquela misteriosa «religião branca»
que tanto sangue fizera já derramar e tanto perturbara a
sociedade. Mais, desta vez, o movimento não era provocado por
fanáticos ignorantes como Babak e Al-Muqanna, «o profeta
velado do Korassam», mais por espíritos previdentes e subtis.
Do seu esconderijo, numa obscura cidade da Síria (1), os Grão-
-Mestres dos Ismaelianos dirigiam o trabalho duma imensa
organização secreta e enviavam os seus emissários em todas as
direcções.
Durante os trinta últimos anos do século IX , o movi­
mento estendeu-se até muito longe no mundo islâmico. Um
ramo da seita, os Oarmatianos,, fundou um notável Estado
de ladrões semi-comunistas no Bahrein, na costa árabe do
Golfo Pérsico, e fizeram .reinar o terror na Arábia durante o
século X . Puseram a saque em 924 Baisra e em 930 Kufa, e

(*)' 'Salamiyya, perto de Homs.


180 A FORMAÇÃO DA EUROPA

espalharam finalmente o terror no mundo islamita apossando-se


de Meca cujos habitantes massacraram e donde levaram um
grande despojo em que figurava a própria Pedra Negra sa­
grada da Kaialba.
Entrementes o Grão-Mestre, depois que foi descoberto
o seu quartel geneiral, tinha transferido em 907 o seu campo
de aetividade para a Tunísia, onde se proclamou Mahdi e
fundou o califado faitimita que, a pouco e pouco, chegou a
aibarcar toda a Á frica do Norte. Em 967, depois da conquista
do Egipto e da transferência da capital para o Cairo, o impé­
rio fatimita tornou-se o Estado mais rico e mais poderoso do
mundo muçulmano. As suas dependências compreendiam a
Síria e a Cicília e, graças à propaganda ismaeliana, possuía
aderentes e agentes secretos em todas ais partes do mundo
muçulmano. Os dois primeiros chefes fatimistas do Egipto,
Al-Moizz (953-975) e Al-Aziz (976-996) foram príncipes ati­
lados e previdentes que fizeram do país o mais próspero do
Oriente. Mas o mais famoso membro da dinastia foi o sinistro
Al-TIakim (990-1021), um monstro de crueldade ao mesmo
tempo que um mecenas esclarecido. Apesar das suas activida-
des, tomou a peito, mais que nenhum outro membro da dinas­
tia, a doutrina ismaeliana leivada ao extremo. Proclamou-se
Deus e os seus cortesãos prestaram-lhe honras divinas. Ainda
hoje os Drusos d o Líbano o adoram como a manifestação
suprema da Inteligência divina e a suma definitiva da reve­
lação (*).
Depois de Al-Hakim a história da dinastia fatimita pode
resumir-se nisto: má administração e decadência. Apesar de
tudo o seu prestígio no estrangeiro nunca foi tão brilhante
como no reinado do fraco AI-Mustansir (1030-1094), que fo i
reconhecido califa nas cidades santas da Arábia e, em dado
momento, até em Bagdad, capital abássida; e os versos do

f 1) Segundo o ensino dos Drusos, o hábito que tinha A l-H a -


kim de miontar um asno traduziria a posição que ele tomara em
relação às primeiras revelações. O asno representaria os «fala­
dores» ou Profetas das revelações anteriores.
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 181

grande poete persa Naisiri Khusravv, que_consagrou uma vida


inteira de penas e trab alh os ao serviço da cansa fatimita, mos­
tram "bem que dedicação a dinastia soubera ganhar entre os
chiitas:

Glória a ten nome, ó Deus! Tu isentaste-me e me libertaste,


Nesta vida perturbada e transitória, das necessidades da maior
parte dos homens.
Graças ao Senhor Omnipotente que, claramente, me traçou
O caminho que. leva à Fé e à Sabedoria e abriu a Porta d a Graça
E que, na sua misericórdia sem limites, fez de mim, neste
mundo, um daqueles
Cujo amor pela Santa Casa (dos Fatimitas) é tão claro como
o sol do meio dia O ).

Não menos dedicado à causa fatimita foi o famoso Hassan


ibn Sabbah, que tomou em 1090 a fortaleza de Alamut na Pér­
sia e organizou a «Nova Propaganda» pelo assassinato metó­
dico em nome de Nizar, filho mais velho de Al-Mustansir.
Este ramo dos Ismaelianos adquiriu grande faina pelo terror
que espalharam pela Síria, na época das Cruzadas, o Velho
da Montanha e os seus emissários, os fidai. Sobreviveu ao
ramo principal dos Fatimitas e existe ainda com o nome de
seita de K h o ja : o seu chefe é o A g a Khan, que os ingleses bem
conhecem e que é um descendente em linha recta do último
dos Grão-Mestres de Alamut e da dinastia fatimita.
Durante este tempo o califado dos abássidas não parava
no seu declínio sob o ponto de vista político. Desde meados do
século I X que os califas iam caindo progressivamente na de­
pendência idos escravos turcos e dos mercenários que forma­
vam a sua guarda, ao mesmo tempo que as províncias lon­
gínquas afirmavam a sua independência sob o governo de
dinastias locais. Já em 755 a Espanha se delelarara indepen­
dente sob o governo de um dos sobreviventes Omíadas e cada

C)i Browne, Litterary history of Persia, Vol. II, p. 235.


182 A FORMAÇÃO DA EUROPA

região do Islão tinha feito mais ou menos o mesmo, até que o


califado perdeu todo o poder real e só conservou uma espécie
de preeminência come representante da unidade da ortodoxia
sunita. No século X porém, até esta hegemonia nominal fo i
comprometida pela extensão do chiismo, a que pertenciam as
mais importantes dinastias orientais: os Samânidas que, da
sua capital de Bokhara, governavam o Khorassan (englobando
o Turquestão m oderno), os Zaiditais e os Ziyaridas das provin­
ciais cáspias e os Buwayidas da Pérsia ocidental e. de Mossul.
Em 945 os Buawyidas chegaram a assenhorear-se de Bagdad
e durante mais de um Século o califa não foi miais que um
joguete nas mãos duma dinastia persa e ehiita. O mesmo sé­
culo viu não só o estabelecimento d o poder fatimita na África
do Norte, mas também a aparição dum terceiro califado fun­
dado em Espanha em 929 pelo maior dos O miadas do Oci­
dente — ■Abderraimão III de Córdova.
Mas a rotura da unidade política em nada afeetou o pro­
gresso da cultura muçulmana e o período da decadência do
califado fo i também a idade de oiro da literatura e da ciência.
O ■aparecimento de novas dinastiais favoreceu o desenvolvi­
mento de centros locais de civilização: o Século X assistiu
ao alvorecer do renascimento persa na corte samânida de
Bokhara e à formação, no Ocidente, da nova civilização his-
panoi-áralbe, ao mesmo tempo que na cortei dos Hamdânidas de
Alepo se verificava um desenvolvimento ainda mais notável da
civilização árabe da Síria. A filosdfia e a ciência, desencora­
jadas pela reacção ortodoxa no califado dos Abássidas, flores­
ceram com o patrocínio liberal dos príncipes chiitas. Foi a
época de Al-Faratbi (4- 950) e de Ibn Sina, (Avicena) (980-
-1037), o maior de todos os filósofos orientais, do médico
Al-Bazi (Baizés» (865-925), e de Al-Biruni (973-1048), o astró­
nomo e cronologista, cujos trabalhos sobre a civilização da
Índia e a Cronologia dos povos antigos constituem a obra cien­
tífica mais notável desse tempo. É curioso que este renasci­
mento medieval do pensamento helenístico tenha tido por
centro o antigo reino grego de Bartriana, porque, à excelpção
Á DIFUSÃO DA CULTUKA MUÇULMANA 183

de Al-Razi, todos os escritores que mencionámos eram origi­


nários de países circunvizinhos do. Oxus, da região de Bo-
kharra, de Khiva e de Samar Kand. Foi lá tamlhém que a união
da tradição n eioplatónica e da religião muçulmana encontrou
a sua mais nobre expressão com os grandes poetas persas da
alta Idade Média, Jalal ed-iDin de Balkh e Jami de Herat.
Não obstante, os séculos X e X I foram antes de miais
nada um período de cosmopolitismo em que a emulação das
dinastias locais em patrocinarem a literatura e a ciência, o
número de escolas e bibliotecas, a aictividade do comércio,
o aparecimento das grandes confrarias sufitas contribuíram,
tal qual como as ordens religiosas da cristandade meldieval,
para assegurar, na unidade da cultura islamita, a interpene-
tração das influências e a diversidade, Sábios e homens de
letras circulavam por todas as partes do mundo oriental, como
AbBirnni, que foi o primeiro a estudar de forma científica
a religião e a civilização da índia, e como Masudi que foi
levado pola séde de ciência do 'Cáspio a Zanzibar e de Ceilão
ao Mediterrâneo.
O carácter enciclopédico da cultura desta época não
se manifesta somente ao lermos as famosas histórias do mundo
escritas por Taibari (838-923) e por Masudi ( + 956); é ainda
mais evidente no Fihrist de Ibn u ’1 Nadim ( + 955), «índice
dos livros dc todas as nações para cada. ramo d o saber, com
pormenores biográficos referentes aos seus autores e compila­
dores, dclsde o princípio de cada ciência inventada aité ao tempo
presente». É um exemplo notável não somente da riqueza
literária da cultura árabe no seu apogeu, mas também do em­
pobrecimento e da decadência de que foi vítima posteriormente..
Mais interessante ainda sob o ponto de vista histórico
é a colecção enciclopédica de uns cinquenta tratados de filoso­
fia e de ciência conhecidos pelo nome de Tratados dos Irmãos
da Pureza, compostos cm Baisra pelos fins do séculoX: pare­
cem éfoetrvamente representar os ensinamentos esotéricos
dos graus superiores da seita ismaieliana, dos quais aliás não
temos outro conhecimento .se não o que nos forneceram os seus
184 A FORMAÇÃO DA EUROPA

adversários. Embora muito iníferiores sob o aspecto cientí­


fico aos escritos de Avicena e do;s outros grandes filósofos,
denotam uma fusão ainda mais completa do pensamento heie-
nístico e da religião oriental. A finalidade que os seus auto­
res se propuseram deliberadamente foi a purificação do Islão,
afastando dele tudo' o que fosse superstição e irracional, e
desvendar a significação esotérica que encobre o dogma orto­
doxo. Segundo o seu ensino, todas as coisas se devem à acção
da Alm a universal que, por meio das esferas celestes, exerce
o seu poder sobre todas as criaturas terrestres: •

«Os filósofos chamam Natureza a esta potência,


mas a religião dá-lhe o nome de anjo. A Alm a universal
é una mas possui diversas potências difundidas' em cada
planeta, em. cada animal, em cada planta, em cada mine­
ral e em tudo o que existe no universo».

0 que nós chamamos alma individual não é mais que


uma manifestação da Alma universal, a qual informa e dirige
os indivíduos; e por .conseguinte a ressurreição de que falam
os teólogos outra coisa não é senão a separação da Alm a uni­
versal do corpo material ao qual ela estava provisòriamnte
unida., ou, noutros termos a morte do corpo. E da mesma
forma a Ressurreição Geral é a separação da Alma Universal,
do universo, isto é, a morte do mundo.
Os Irmãos da Pureza aliavam a estas doutrinas a crença
num movimento cíclico segundo o qual o mundo segue a revo­
lução dos céus e volta passados trinta e seis mil anos ao seu
ponto de partida. ISÓ para os sábios é que não há retorno;
são contudo exceptuados os Irmãos, cuja missão consiste em
guiar os homens até esta libertação final. E acrescentam:

«Ficai sabendo que nós somos a sociedade dos Irmãos


da Pureza, sinceros, puros, generosos; que estivemos
outrora na caverna de nosSo Pai; depois os tempos mu­
daram, os séculos rolaram e chegou a hora da promessa.
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 185

Despertámos logo que os Adormecidos acabaram o seu


ciclo, e juntámo-nos conforme a promessa, depois de
termos estado dispersos pelo® países, no reino do grande
Mestre da lei. E vimos suspensa no ar a nossa cidade
espiritual, donde tinham sido expulsos os nossos pais
e seus descendentes por se terem deixado enganar pelo
seu inimigo-».

E citam as palavras de Pitágoras:

«Se cumprires o que te ordeno-, quando estiveres se­


parado do teu corpo, sulbsistirás no ar, sem- jamais pro­
curares voltar à humanidade nem de novo suportares
a morte» (*).

Estas ideias foram- largamente difundidas no mundo


muçulmano nos séculos X e X I e constituem o plano de fundo
esotérico ou religioso da alta cultura filosófica e científica.
Encontramo-las na noíbre Ode sobre a alma de Avicena e no
JDiwan de Nasiri-Khusraw; delas se encontram vestígios até
na oibra do poeta cego AIbu’l-‘ A la al-Ma’arri (973-1057) que
aliava as ideias pitagóricas e o fatalismo científico dos Irmãos
da Pureza a um pessimismo profundo e a um cepticismo que
não têm equivalentes na literatura árabe.
No Ocidente a escola de Ilbn Masarra (883-931), o mís­
tico de Górdova, representa a mesma tendência de pensamento;
e os tratados dos Irmão® da Pureza eeldo penetraram: na Espa­
nha por intermédio do viajante e astrónomo espanhol Mas-
lama de Madrid ( + 1004) e de Al-Kirmani de Saragoça, gra­
ças a quem exerceram uma influência considerável no pensar
mento da Espanha medieval.

0 ) Carra de Vaux, Les penseurs de l’islam. Vol. IV , p'p. 102-


-115, segun'do Dieiterici, Die Abhandlungen der Ikhwân es-Safâ in
Auswahl (Leipzig, 1883-11886), particularmente pp. 594-596. Cf. Die-
terici, Die Philosophie bei dem Ambern, 8.® parte, pp. 86-115.
186 A 1'ORMAÇÃO DA EUROPA

Mais esta civilização brilhante e artificial continha já


os germes de decadência. O seu luxo e o seu cepticisnio tive­
ram consequências fatais para o espírito de puritanismo mili­
tante que fizera a força dois primeiros muçulmanos e as suas
tendências centrífugas afrouxaram a solidariedade política
do Islão. Os dirigentes do mundo muçulmano, os Árabes e os
Persas, abandonaram o poder .a povos mais rudes e mais viris,
especialmente aos Turcos que, no fim do século X , fundaram
o reino de Ghazna, no Afiganistão, e, no .século seguinte, o
grande sultanato seldjúcida da Pérsia e da Ásia Menor. Não
devemos lamentá-lo em absoluto porque os novos povos infun­
diram um novo vigor às forças debilitadas do Islão e provo­
caram a formação duma. nova onda de conquistadores, a leste
na índia setentrional, e a oeste na Ásia Menor. Mas este im­
pulso para o exterior teve como resultado rebaixar e restrin­
gir a civilização muçulmana. O despotismo c ío ís o e a ortodoxia
rígida de potentados bárbaros como Mahmud, de Ghazna,
«o Destruidor dos ídolos», em nada se conciliavam com o pen­
samento livre e a cultura cosmopolita dos mestres persas, os
Avicenas e os Al-Biruni, que eram seus súbditos. Por isso
ao aparecimento da hegemonia turca no Islão sucederam, o
triunfo da ortodoxia sunita sobre o sincretismo religioso da
'Ohiah e a decadência gradual do movimento científico e filo­
sófico. A civilização persa ainda se. conservou algum tempo
florescente no reinado dos sultões seldjúcidas, graças à po­
lítica esclarecida dos seus vizires persas, entre os outros do fa­
moso Nizam-el-Mulk (1017-1092), fundador do colégio Niza-
miyya, em Baigdad, e protector do poeta e astrónomo Ornar
Khayyam, Mas o período criador do pensamento oriental estava
fechado. Somente no extremo Ocidente, em Espanha e Marro­
cos, é que a filosofia e a ciência muçulmanas conheceram, ainda
um breve e brilhante período de. expansão, antes de se eclipsa­
rem definitivamente no século XIODI.
A civilização isiamita conservou contudo a sua proemi­
nência durante toda a alta Idade Média, não só no Oriente
mas também na Europa ocidental. Precisamente no momento
A DIFUSÃO DA CULTURA MUÇULMANA 187

em que a Cristandade pareicia prestes & sucumbir aos ataques


simultâneos dos Sarracenos, dos Vikings e dos Magiares, en­
trava a civilização’ muçulmana do Mediterrâneo ocidental na
false mais brilham te do seu desenvolvimento. No século X , com
os califas de Córdova, ,a Espanha meridional era a região mais
rica e mais povoada da Europa ocidental. Com os seus palá­
cios, as suas escolas, os seus banhos públicos, mais se asse­
melhavam as suas cidades às do Império Romano do que aios
miseráveis grupos de choças de madeira que, na França e
na Germânia, se levantavam ao abrigo de alguma abadia ou
de alguma fortaleza feudal. Córdova era, depois de Constan­
tinopla, a maior cidade da Europa; contava, diz-se, 200.000 ca­
sas, 700 balneários públicos, oficinas em' que se empregavam
13.000 tecelões, armedros e correeiros, cuja perícia tinha repu­
tação em todo o mundo civilizado. A cultura intelectual da
Espanha muçulmana estava muito avançada também.. P rín­
cipes muçulmanos e governadores rivalizavam em proteger o<s
sábios, os poetas e os músicos, e, em Córdova, a biblioteca do
califa continha, dizia-se, 400.000 manuscritos.
Estamos tão habituados a considerar a nossa civilização
como constituindo, por essência, a civilização ocidental, que
nos é d ifícil pensar que tempo houve em que a região mais
civilizada da Europa ocidental mais era província duma cul­
tura estrangeira, e em que o Mediterrâneo, berço da nossa
civilização, estiava em perigo de se tornar um mar árabe. Efeie-
tivamente não é albsolutaimente exacto identificar a cristan­
dade com o Ocidente e õ Islão com o Oriente, numa época em
que a Ásia Menor era ainda cristã e em que a Espanha, Por­
tugal e a Sicília abrigavam uma civilização muçulmana flo­
rescente. Era contudo assim que se passavam as coisas no
século X , e esta situação teve uma influência profunda
no desenvolvimento do mundo medieval. A cultura ocidental
desenvolveu-se à sombra da civilização mais adiantada do
Islão, e foi mais graças a esta do que ao mundo bizantino que
a Cristandade pôde recobrar a sua parte da herança da ciên­
cia e da filosofia gregas. Não foi antes do século X II I , depois
188 A FORMAÇÃO DA EUROPA

da época das cruzadas e da grande catástrofe das invasões mon-


góis, que a civilização da 'Cristandade ocidental começou a
atingir uma posição de relativa igualdade com o M ã o ; e mesmo
então, ficou penetrada de influência® orientais. Só no sé­
culo X V , com o Renascimento e a grande expansão marítima
dos Estados europeus, é que o Ocidente cristão adquiriu a
primazia de civilização que nós hoje consideramos como uma
espécie de lei da natureza.
CAPITULO X

O RENASCIMENTO BIZANTINO
E O RESSURGIMENTO DO IMPÉRIO
DO ORIENTE

r™ NQUANTO o M ã o produzia a brilhante civilização dos


séculos I X e X , a cultura bizantina não estava deca­
dente nem estacionária. Embora tivesse chegado um momento
cm que se pôde recear que o Império sucumbisse às forças
vitoriosas do ressurgimento do Oriente, contudo, sobreviveu a
esta crise graça® às suas tradições de disciplina, de civilização,
de ordem e à força dos seus fundamentos religiosos. O impé­
rio bizantino recobrara a pouco e pouco a situação que perdera
no século V II e tornara-se a potência militar e económica
preponderante no Mediterrâneo oriental.
Mas, sob muitos aspectos, era um noivo império. As cri­
ses que suportara tinham afectado, profundamente, ao mesmo
tempo, a sua cultura e a sua organização política e social.
Porque a burocracia fundada por Diocleciano e Gonstantino
desaparecera com Justiniamo, e com ela muita® tradições da
antiga cultura. Foi mais nesta época do que no tempo das
invasões germânicas ou da conquista turca, que se perdeu
uma tão grande parte da herança intelectual do mundo antigo.
A o passo que os contemporâneos de Justiniano seguiam ainda
de perto as tradições intelectuais do período alexandrino, o
190 A FORMAÇÃO DA EUROPA

conhecimento que os homens do século I X tinham da litera­


tura clássica da Grécia, em pouco ultrapassava, se exceptuar-
mos alguns historiadores e enciclopedista®, o que hoje possuí­
mos. Era, eim grande parte, responsável por isso a perda de
Alexandria e das cidades costeiras da Síria, tais como Gaza,
que se tinham tornaldo os principais centros de estudos clássi­
cos: mas a causa profunda desta mudança necessário é pro­
curá-la na orientalização da cultura bizantina, cujo desen­
volvimento já descrevemos. Este movimento atingiu o seu
apogeu no século V II, quando da invasão das províncias de
leste e sul pelos Árabes, e do® Balcãs, pelos Búlgaros e pelos
Eslavos. O Império reconstituído no século V III conforme o
modelo dos Estados da Ásia, estriíhava-se nos soldados e nos
camponeses das provinciais da Anatólia e nas da Arménia.
A antiga organização provincial desaparecera e sulbstituíram-na
por novos temas militares, cujos chefes acumulavam os pode­
res civis e militares. No reinado dos imporadores-soldados
dais dinastia® isauriana e arménia, particularmente de Leão III
(717-740), 'Coustantino V (740-775) e Leão o Arménio (813-
-820), ps elementos militares e os elementos orientais predo­
minaram, por sua vez, na cultura bizantina:; a tradição do
saber e do helenismo, que a antiga administração tinha con­
servado, desaparecera quase por completo, e, como no Oci­
dente, a Igreja tornara-se o principal representante da cul­
tura literária.
A vida religiosa do Império, as mesmas tendências se
manifestaram entretanto. A perda das províncias do' Oriente
tinham-no libertado da longa luta contra os monofisitas e
transformara-o, mais que nunca, num Estado1-Igreja unitário,
em que era quase impossível distinguir o que era civil, do
que era religioso. Mas subsistia uma hostilidade surda entre
os elementos orientais e os elementos helénicos na vida reli­
giosa do Império e a tentativa da nova dinastia oriental para
impor a sua política religiosa à Igreja bizantina só a levou
a uma rude luta prenhe de consequências. A querela dos ico­
noclastas, mais que as precedente® heresias cristológicas, passou,
0 RENASCIMENTO BIZANTINO 191

sempre, aos olhos dos historiadores do Ocidente, por uma dis­


puta .ridícula acerca, de 'bagatelas eclesiásticas e parece absurdo
que ela tivesse o poder de abalar a sociedade bizantina até aos
seus fundamentos; mas debaixo das aparências dissimulava-se
o mesmo antagonismo profundo entre duas culturas e duas
tradições espirituais, que já descrevemos ao tratar do movi­
mento monolfisita. E f eletiva mente, a controvérsia das imagens
punha em jogo um número de princípios fundamentais maior
do que ais controvérsias precedentes; na sua origem encon­
tram-se não as doutrinas explícitas duma escola teológica, mas
o espírito vago e informe duma seita oriental, que rejeitava
por inteiro o corpo dos dogmas helénicos.
Existia, desde há muito tempo, nas fronteiras orientais
uma seita, cujo cristianismo nada tinha de comum com a orto­
doxia do Ocidente. Em vez de seguir a doutrina nioena da
Incarnação, considerava Cristo cdmo uma criatura elevada
à divindade pela descida, sobre ela, do Espírito Santo. R ejei­
tava o ensino sacramental da Igreja, as suas formas exteriores
e cerimónias, para exaltar um ideal religioso puramente espi­
ritual e interior. A matéria era má c todo o respeito que se
testemunhaisse aos oibjectos materiais era, por essência, idola­
tria. A água do baptismo não era senão «água de banho»;
a cruz material, um instrumento maldito e a única Igreja
verdadeira era invisível e espiritual. Nem toda esta corrente
de ideias derivou do Mamiiqueísmo; contudo, não há diivida
que os próprios maniiqueus foram influenciados por ela. A sua
origem deve ir buscar-se a uma tradição .ainda mais antiga,
representada por Bardesano e por algumas seitas gnóstica-s e
encratistais, e também pelo Messalianismo. As mesmas ideias
deviam aparecer mais tarde no Ocidente sob a forma do movi­
mento cátaro medieval; sobrevivem, ainda hoje, nas estranhas
doutrinas de obscuras sei-tas russas, tais como os Molokhani,
os Dukhobors e os Khlysty.
O vínculo, entre as primeiras e as últimas fases deste
movimento religioso, deve ir buscar-se à heresia dos Pauli-
cianos, que fez a sua aparição na Arménia bizantina por volta
102 A FORMAÇÃO DA EUROPA

dos meadois do século V II e se aguentou, um pouco mais de


dois séculos, vivaz e militante, nas fronteiras' orientais do Im­
pério. É ,a região onde nasceu a nova dinastia e é possível
,que o próprio Leão III tenha sdfrido a influência das suas
ideias. Além disso, a luta que sustentou com os muçulmanos
e a tentativa para levar a cabo a unidade religiosa: do Império,
convertendo à força os Judeus e os Montanistas, fizeram-lhe
compreender até que ponto os Orientais detestavam o culto das
imagens, que tão grande papel desempenhavam na religião
ortodoxa. Foi por isso que, cm 725, o imperador inaugurou
a sua política iconoclasta de retforma eclesiástica e se lançou
contra a Igreja, numa luta que devia durar mais de um sé­
culo (725-843).
Duim lado encontrava-se o imperador, o exército e as
províncias orientais; ido outro, os monges, o papado e o Oci­
dente. A hostilidade das províncias da Europa à política
imperial era tão forte que provocou na Itália, como na Grécia,
o descontentamento e a revolta. A controvérsia implicava ao
mesmo tempo uma luta entre os elementos orientais e os ele­
mentos ocidentais da cultura bizantina e uma luta entre -o
poder civil e a Igreja, que Dieflil comparou à querela das inves­
tiduras, no século X I, no Ocidente. A oposição religiosa viu,
no movimento iconoclasta, o mesmo espírito que se escondia na
heresia monofisita; a mesma recusa, por parte dos orientais,
a reconhecer a dignidade da criação material e a sua aptidão
para se tornar o veículo do Espírito — sobretudo na Incarna­
ção, manifestação visível do Logos divino, feito carne. Porque,
segundo a palavra de S. Paulo, não era o Cristo a imagem
da Divindade invisível? E não implicava, o Logoís feito carne,
a santificação das coisas materiais e a representação visível
das realidades espirituais? Este princípio constituía o pró­
prio fundo do 'Cristianismo helénico e as últimas forças da
cultura helénica aliaram-sie para a defesa das imagens santas.
Os seus chefes eram monges, mas eram também artistas,
poetas e homens de letras; e, de facto, os eampiÕes do partido
anti-inconoclasta, tais como S. João Damasceno, o historiador
0 RENASCIMENTO BIZANTINO 193

Teofânio, Jorge Syneellos, o patriarca Nicéforo e, sobretudo


Teodoro de Studium, foram os únicos representantes da lite­
ratura bizantina durante este período tenebroso (1) .
P or consequência, o facto de um renascimento da arte
e da erudição ter seguido o triunfo final dos veneradores de
imagens, não é uma simples coincidência; a sua vitória traduz
o lado religioso dum renascimento geral da cultura grega e do
declínio das influências orientais, que a tinham levado de
vencida durante perto de três séculos. O saber deixou de ser
o privilégio dos mosteiros, logo que a administração civil recu­
perou o lugar que ocupava, como representante da tradição
clássica e da cultura profana. A Universidade de Constanti­
nopla, reconstituída por Bardas em 863, tornou-se o foco do
ressurgimento da cultura helénica. Do século I X ao século X I I ,
uma Série de grandes intelectuais dedicou-se, ardente!inente, ao
estudo dos clássicos e à reconquista do saber antigo: Fócio
e Areias, no sé cu lo'IX ; Suidas o enciclopedista e Constantino
Céfalas, que publicou a Antologia grega, no século X ; Miguel
Psellus, João Mauropus, João o Italiano, Cristóvão de Mitilene
e muitos mais, no século X I. F oi então que o renascimento
bizantino atingiu o seu apogeu; e o seu representante mais
ilustre, Psellus, possui todas as características dos humanistas
italianos: o seu culto romântico da antiguidade e, sobretudo,
da antiga Atenas, a sua devoção a Homero e a Platão, a sua
imitação diligente dos modelos do estilo clássico, e também
a sua vaidade literária e o ;seu génio combativo. Mas não foi
uma época criadora. A s suas produções características são
os grandes léxicos e as enciclopédia®, tais como a Biblioteca
de Fócio, o Léxico de Suidas e as compilações de Constantino
Porfirogeneta, que não têm equivalente na literatura mo­
derna, mas que se aproximam das enciclopédias literárias da

C) Devemos exceptuar Teófilo, o últim o dos imperadores


iconoclastas, que se interessou verdadeiramente pela arte e pela
cultura e foi o protector de dois intelectuais iconoclastas, Leão de
Tessaliónica e o seu irm ão o patriarca João.
13
194 A FORMAÇÃO DA EUROPA

China. Todavia, sem ser originai, a cultura desse temlpo nem


por isso ifoi menos requintada; e .compreende-se facilmente o
desprezo a que um1erudito eomn Fócio, no século I X , ou uma
princesa sábia como Ana Comnena, no século X II, votavam
a civilização da Europa ocidental1da sua época, devido à sua
crueza e barbárie.
Encontra-se no domínio da arte, como no da ciência
bizantina, e, também, fortemente vincada, a mesma tendência
para se reportar à tradição helénica. Observa-se uma reacção
contra o simbolismo abstracto da arte oriental, em benefício do
ideal naturalista e concreto da tradição helenística. A pintura
e a escultura em marfim mostram, ambas, sinais evidentes da
influência clássica, ie as miniaturas dos manuscritos, como, por
exemplo, as do famoso Saltério de Paris são de puro estilo hele-
nístico. Coisa ainda mais curiosa: alguns manuscritos dos
séculos X I e X I I dão prova da tendência para a ilustração
dos escritos dos Padres da Igreja, com' cenas da mitilogia pagã,
como a lenda de Artemisa e de Acteon, a de Zeus e de iSemele,
ou a dança dos Curetes. Não falando já destes casos, em que
os assuntos e os modelos são direetamente imitados do antigo,
a arte deste novo período provém, na verdade, de uma inspi­
ração clássica, mesmo a arte religiosa — dominada, a partir
da derrota dos iconoclastas, por um ideal teológico e subor­
dinada a um esquema estritamiente litúrgico e dogmático — não
deixa de lhe sofrer a influência. Os miais belos mosaicos da
época — os da igreja de D afni perto de E lêusis— são helé-
niicos, pela simetria da sua composição e pela dignidade escul­
tural da sua atitude e dos seus gestos.
Na arquitectura, por sua vez, a influência do Oriente
continua preponderante, e as igrejas d o novo estilo, que ficou
sendo no futuro característica1 da arte bizantina, são edifícios
cruciformes de cinco zimbórios, dum tipo que pode julgar-se
originário da Arménia. Mas, ainda aqui, se reconhece a in­
fluência do espírito helénico: a decoração não se confina ao
inferior do edifício, segundo a moda oriental, mas estende-se
aos pórticos e à fachada, como vemos em São Marcos de Veneza,
0 RENASCIMENTO BIZANTINO 195

talvez o mais belo exemplar que ainda hoje subsiste dos mo­
numentos bizantinos deste período. O facto de se encontrar
no Ociddnte um tão m agnífico exemplar da ante bizantina é
prova do reviigorameuto da vitalidade da cultura imperial.
A bem dizer, não há século., mesmo incluindo o de Justiniano,
em que a arte bizantina tivesse tão larga expansão. A sua
influência fez-se então sentir na Europa por diversas formas
e por várias vias: desde, o Mar Negro .até Kiev e ao interior da
Rússia; pelo Adriático, até a Itália oriental e setentrional;
dos mosteiros gregos da Calábria, até Monte Cassino e a Roma.
A este renascimento da cultura bizantina correspondeu
um ressurgimento político. O Império voltou-se mais uma
vez para o Ocidente e tornou-se uma grande potência euro­
peia. Os imperadores isaurianos já tinham detido o progresso
do Islão e restaurado o poder militar de Bizâncio; mas o
aparecimento do império carolíngio no Ocidente e duma temí-
mel potência bárbara nos Balcãs — a dos Búlgaros — tinha-os
impedido de recuperar as províncias da Europa. Os Búlgaros
eram como os Magiares, um povo de origem mista: finesa e
húniica, que tinha participado da Confederação dais tribos
hunas, no sul da Rússia, nos séculos V e V I. Durante a deca­
dência do Império, no século V I, tinham estabelecido a sua
suserania sobre uma população eslava fixada, ao sul do Da­
núbio, na antiga província da Mésia. Os imperadores isau­
rianos tinham detido o seu avanço e instalado, para guardarem
as fronteiras, colónias militares de heréticos paulicianos de
Arménia. Contudo no princípio do século I X , depois que
Carlos Magno destruiu o poder dos Avaros, Krum, kan dos
Búlgaros, tinha-se aproveitado disso para fundar em seu lugar
um novo império que se estendia do Mar Negro a Belgrado e
do Danúbio à Macédónia. Durante dois séculos, o império
bizantino teve que contar com o sieriíssimo perigo que os B úl­
garos constituíam. Por mais de uma vez bateram os exércitos
bizantinos e chegaram, até, a ameaçar Constantinopla. Não
puderam todavia subtrair-se à influência da civilização supe­
rior com a qual se tinham posto em contacto mercê das suas
196 A FORMAÇÃO DA EUROPA

conquistas, e o seu tzar Bóris converteu-se em 864 ao Cris­


tianismo.
Deve-se a fundarão da Cristandade eslava aos santos
Cirilo e Metódio, os «apóstolos dos Eslavos». Tendo-se dedi­
cado à conversão da Morávia, toparam lá, apesar do auxílio
do papado, com a oposição da Igreja e do Estado carolíngios,
e foi principalmente no® Balcãs, especialmente na Bulgária,
que a sua obra produziu frutos. F oi lá, espeeiailmente no rei­
nado do maior dos príncipes búlgaros, o tzar Simeão (893-
-927), que se desenvolveu uma literatura eslavóniea devida
a traduções do greigo e uma nova civilização cristã eslavóniea
que devia mais tarde transmitir-se à Rússia bem como aos
outros povos balcânicos O ). Mas o novo estado cristão búl­
garo não tinha forças para resistir ao poder crescente dos impe­
radores miacedónios. Nicéforo Focas e João Zimisees conquis­
taram o leste da Bulgária de 963 a 972, e a obra destes foi
acabada pelo seu grande sucessor Basílio, «o Bulgaricida» que, -
pela anexação em 1018 do reino dos Búlgaros do poentei( ou
reino m acedónio), suprimiu ois últimos restos da sua inde­
pendência.
'O império bizantino tinha, desta forma, recuperado uma
vez mais as suais fronteiras europeias perdidas desde o tempo
de Justiniano; mas esta extensão territorial pô-lo, novamente,
em contacto com os povos belicosos instalados na outra mar­
gem do Danúbio e que continuavam a saquear as províncias
balcânicas, como nos séculos V e "Vd. Os Magiares que tinham
desalojado da Hungria os Avaros, estavam em vias de consti­
tuir ràpidamente um Estado cristão estável; pelo contrário,
os nômada® Petchenegues que ocupavam a estepe russa, cons-

0) N a mesma ocasião a heresia panliciana trazida pelos


colonos arménios dos arredores de Filipópollis, espalhou-se entre os
Búlgaros e provocou o nascimento da seita eslavóniea dos Bogo-
milos. Propagou-se ràpidamente em todes os Balcãs, especialmente
na Bósnia, onde veio a ser, durante algum tempo, a religião nacio­
nal, bem como na Rússia (desde 1004) e mais tarde na Europa
ocidental.
0 RENASCIMENTO BIZANTINO 19í?

títuíam para os países balcânicos, com o os Hunos de outrora,


um perpétuo flagelo. Entretanto o perigo que faziam correr aos
seus vizinhos do sul era compensado pelo desenvolvimento duma
nova potência, à retaguarda, na Rússia ocidental. Este estado
russo tirava a sua origem das companhias de aventureiros escan­
dinavos (B oss) que se tinham estabelecido no meio das tribos es-
lavónicas e tinham conseguido a 'fiscalização da rota comercial
ique vai do Báltico ao Mar Negro. Todos os verões os seus barcos
partiam de Kiev e desciam o Denieper com urna carga de escra­
vos, de peles e de cera, com destino aos mercados de Bizâncio ou
do reino Khazar, que detinha a fiscalização da rota do> comér­
cio oriental, desde o Volga até ao mar de Azov. Eram, como
os ViMngs do Ocidente, ao mesmo tempo piratas e comercian­
tes, e, nio decorrer do século X , levarâm a cabo várias incursões
nas costas do Mar Negro e até na própria Constantinopla.
As mais terríveis foram as grandes expedições de Igor, prín­
cipe de Kiev, cm 94-1 e 94.4, que tiveram por resultado a con­
clusão dum novo tratado e o reatamento das relações amigá­
veis entre os Russos e o império bizantino. Durante a segunda
metade d o século X , no reinado da princeza cristã Olga, mu­
lher de Igor, no.de seu filho Svyatoslav e no de Vladim iro o
Grande (980-1015), o poderio russo desenvolveu-se à custa
dos seus vizinhos até ao momento em que, em substituição do
império khazar do Volga, conseguiu o predomínio na política
e no comércio do norte. 0 império bizantino conseguiu, de
967 a 971, impedir que Svyatoslav conquistasse a Bulgária e
estabelecesse a sua capital ao sul dío Danúbio; desde então
as relações entre as duas potências toriiaram-se mais íntimas
e cada vez mais amistosas. Finalmente, em 988, Vladimiro,
filho de Svyatoslav, concluiu com o imperador BasOio II um
tratado pelo qual consentia em deixar-se baptizar e em for­
necer ao Império um corpo de seis mil auxiliares — origem
da famosa guarda «varangiana» — •com a condição de receber
■em casamento a irmã de Bóris, Ana. Mas Basílio não execu­
tou as cláusulas que lhe respeitavam, senão quando, pela to­
mada de Querson, último resíduo das antigas colónias gregas
198 Á FORMAÇÃO DA EUROPA

do norte do Mair Negro, os Russos deram.' aio Império a sen­


sação da sua 'força. Desta form a se ábriu o caminho para a
conversão dos EslaiVos do Norte e a Rússia dentro em breve
fazia parte do mundo ortodoxo.
No século seguinte, a influência bizantina exerceu-se
proifundamente sobre a sociedade russa. Os bispos e os dou­
tores da mova Ilgreja, todos G regos— muitos dos quais origi­
nários de Querson — ■levaram consigo, para o norte, as tradi­
ções religiosas e artísticas da Igreja bizantina, bem como os
textos cristãos e literários em língua eslavónica, que haviam
de servir de base à cultura russa. A s igrejas e mosteiros de
Kiev, com os seus frescos e os seus mosaicos puramente bizan­
tinos, dão testemunho da importância desta corrente nos
séculos X I e XIlI; esta chegou não só até aos antigos centros
russos do norte, corno Novgorod e Pskov, mas também., no
decorrer do século X I I , até aos territórios recentemente colo­
nizados do nordeste, até à região de Suzdal e de Moscovo', que
se tornou mais tarde o centro da vida nacional russa.
Esta obra de expansão foi o que Bizâncio realizou de
mais 'duradoiro no período médio bizantino. Infelizm'ente, a
conquista espiritual que fez do mundo eslavo teve, por Contra­
partida, o declínio da sua influência no Ocidente e o divórcio
cada vez mais acentuado das Igrejas do Oriente e do Ocidente.
O fim do período maeedónico viu consumar-se o cisma entre o
império bizantino e lo papado. A s razões vêm de longe. A ver­
dadeira causa cio cisma não fo i nem a disputa entre Miguel
Cerulário e Leão I X , nem mesmo a querela que surgira na
época de Fóeio acerca da processão do Espírito Santo; foram
as divergências crescentes entre a cultura intelectual do Oriente
e a do Ocidente. 0 noVo patriotismo helénico, proveniente da
ressurreição bizantina, teve como efeito levar a® classes diri­
gentes, no Império do Oriente, a considerar os Romanos e os
Francos como puros bárbaros, e a forma como Rdma e o exar-
cacLo de Ravena se emanciparam politicamente de Bizâncio
encorajaram-nos nesta atitude. Já no século V III o imperador
Leão III tinha subtraído as sés da Ilíria e da Itália do sul
Ò RENASCIMENTO BIZANTINO 189

à jurisdição pontifícia e confiscado os patrimónios da Igreja


romana no Oriente. Havia pois identidade entre o patriarcado
'bizantino ,e :a Igreja do Império, e a rivalidade existente entre
o Patriarca ecuménico de Constantinopla e o Papa da velha
Poma ainda mais se acentuou.
Esta rivalidade não era recente. Remontava às próprias
origens do patriarcado bizantino. S. Gregório de Nazianzo
tinha satirizado o zelo patriótico com que os bispos do Oriente
tinham, no concílio de Constantinopla, em 381, reivindicado
a superioridade religiosa do Oriente isoíbre o Ocidente C1), e,
tanto neste concílio como no de Galeedónia, tinham tentado
assimilar a posição leclesiástioa da Nova Roma, à da Roma
antiga. No decorrer dos séculos precedentes, Roma e Cons­
tantinopla tinham estado constantemente divididas por ques­
tões de dogma, de tal forma que, do século IV alo IX , quase
tinham sido tantos os anos de cisma corno os de união ( 2).
‘Todavia, precisamiente, estes cismas é que contribuíram
para preservar o prestígio de Roma no Oriente, pois os defen­
sores da ortodoxia, desde Atanásio até Teodoro de Studium,
olhavam o papado como o baluarte da sua causa contra as
tentativas feitas pelo governo imperial para impor à Igreja
o seu ideal teológico. A sua desunião só começou quando, aca­
bada ,a época das controvérsias, teológicas, a ortodoxia foi defi-

(a)f É justo, diziam eles, que as coisas da Igreja sigam o


curso do sol e tomem o seu início na parte do mundo onde o próprio
Deus dignou revelar-iSe sob form a humana (S. Gregório de N a­
zianzo, Carmen de vita sua, v. 1690-1693.
O Por ex., cismas arianos, 343-<398 ; cisma relativo a S. João
Crisóstomo, 404-415 ; cisma de Acácio, 484-519'; monotelismo,
040-681; iconoclastas, 726-787 e 815-843. — Não se deve ir pro­
curar a origem da discórdia nem no século X I nem no século I X ,
mas deve-se remontar até ao tempo da controvérsia ariana, essa
«guerra abominável e fratricida que», como escreve Ducbesne, «divi­
diu toda a cristandade, desde a Arábia até à Espanha e que só se
apaziguou, depois de sessenta anos de escândalo, legando às gera­
ções seguintes os germes de teismas de que a Igreja ainda se res­
sente». (Histoire ancienne de l’Église, Vol. I l , p. 1 5 7 ).
200 A FORMAÇÃO DA EÜROPA

nitidamente estabelecida; fo i então que se fez sentir mais viva-


mente a diferença de cultura e de ritos. Ora fod precisamente
nesta época que Roma se desligou politicamente do império
bizantino e contraiu uma estreita aliança com o poder rival
dos Francos. Os bizantinos estavam dispostos a aceitar o
papado como árbitro supremo em matéria de fé e como repre­
sentante da autoridade apostólica no interior da Igreja im­
perial, mas não a admitir a superioridade duma igreja
estrangeira e «bárbara» sobre a Igreja do Império. O reconhe­
cimento do domínio franco na Itália e a coroação de Carlos
como imperador romano constituiram, aos olhos dos bizantinos,
uma espécie de cisma profano, que tinha por correlativo natu­
ral um cisma religioso. Porque, ao passo que Roma, no sé­
culo V III, continuava ainda quase bizantina de cultura e de
pensamento, a Igreja franca possuía já uma tradição dife­
rente. Os usos tipicamente ocidentais que provocaram a hos­
tilidade bizantina, tais como a adição da expressão Filioque
ao credo e o emprego do pão ázimo na Eucaristia, eram de
origem franca e apareceram pela primeira vez, no extremo
Ocidente, na Espanha e na Grã-Bretanha.
Salvo a questão da processão do Espírito Santo, que
só a pouco e pouco adquiriu o significado que devia ter na
controvérsia ulterior, todas as questões em litígio não passa­
vam de pormenores de ritual de ínfim a importância para um
espírito moderno. Mas :a religião bizantina supunha uma pie­
dade tão inseparável da liturgia e um misticismo tão ligado aos
ritos que um ritual uniforme era para ela de primeira impor­
tância 0 ) . Diferentemente da Igreja do Ocidente que possuía
ritos diversos e unidade de jurisdição, a unidade da Igreja
do Oriente era antes de mais nada uma unidade de rito. Já

(O1 U m exemplo ainda mais evidente da importância ligada


a pontos do ritual, é-nos dado pela rubrica posta no domingo de
antes da Septuagésima nas antigas edições do Triodion de qua­
resma: «H oje os Arménios tres vezes malditos observam o aborre­
cido jejum que eles chamam artziburion. Mas nós comemos todos
os dias queijo e ovos para relfutar a sua heresia» (N . Nilles, Kalen-
ò r e n a s c im e n t o b iz a n t in o 201

desde o século V II que o 'Concilio in Trullo tinha procurado


levar a Igreja do Ocidente a observar os seus cânones, e esta
pretensão não tinha sidio ainda definitivamente abandonada,
de tal forma que Miguel Oerulário pôde considerar em 1054
a data do Concílio in Trullo (692) como marcando efeetivaj-
mente a data do cisma entre as duas Igrejas.
Por sua vez os Francos não eram menos intransigentes
e viu-se Carlos Magno e os seus bispos adaptarem uma atitude
extremamente agressiva para com a Igreja bizantina. P or
outro lado Roma ocupava uma posição intermediária entre a
antiga cultura bizantina e a do novo mundo ocidental. O Pa­
pado procurou, primeiro, servir de medianeiro; mas como
Roma era atraída cada vez malis para a órbita do império
carolíngio e da sua civilização, tornou-se impossível este papel.
Na segunda metade do século IX , verificou-se o primeiro
rompimento sério, quando Nieolau I, antepassado dos grandes
papas da Idade Média, entrou em conflito com Fócio, repre­
sentante típico do renascimento bizantino, e embora o cisma
daí resultante tenha sido de relativamente curta duração, a
restauração da unidade foi superficial e incerta. Deixou de se
apoiar no ideal de unidade espiritual e teve por base frágil
a política imperial. O partido monástico que na Igreja do
Oriente, no século V III, tinha considerado Roma como o seu
principal apoio na luta pela liberdade da Igreja contra o
césaro-papismo dos imperadores iconoclastas, deixou de esperar
o que quer que fosse, no século X , dum papado tornado o
joguete das facções locais ou dos imperadores germânicos (x) .
Podia agora bastar-se a si próprio, e o monaquismo bizantino

darium utriusque ecclesiae, II, p. 8 ). A mesma tendência caracte­


rizou a Igreja russa na época moderna e a sua mais grave crise
foram as reformas litúrgicas do patriarca Nikon.
0) Também, longe de sustentar o movimento de reforma na
Igreja do Oriente, o papado foi em parte responsável pela nomea­
ção do patriarca Teoifilaeto, ainda criança, — nomeação que cons­
titui um dos mais escandalosos episódios da história eclesiástica
de Bizâncio no século X .
202 Á FORMAÇÃO DA EUROPA

refloriu não só em Constantinopla, no Monte Olimpo na Bití-


nia, e no Monte Atos, mais também na Itália, onde S. Nilo
fundou o miosteiro basiliano de Grotta Ferrata, somente a
alguns quilómetros de Roma. E se o elemento monástico deixou
de mostrar, como outrora, simpatia pelo papado, o elemento
profano e burocrático, a que tinha pertencido a maior parte
dos chefes da Igreja bizantina 0 ) , tornou-se-lhe positivamente
hostil. iSó o desejo dos imperadores de continuarem, por razões
políticas, em termos amigáveis, com o papado, é que preservou
a unidade da Igreija. 0 declínio do império 'carolíngio fez re-
nascer as ambições bizantinas na Itália e desde o pontificado
de João YlIII, o papado não deixou de desempenhar um papel
considerável na diplomacia bizantina. Consequentemente, 'as
relações entre as Igrejas variaram ao sabor das alternativas
políticas, e uma ruptura completa entre Roma e o Oriente,
como a que esteve para se verificar em 1009, foi evitada, mercê
do imperador que tinha necessidade do papado para realizar
os seus planos de restauração do poder bizantino na Itália.
Contudo, em semelhantes condições, era inevitável um
cisma, e este foi precipitado em 1054 pela conduta de Cerulá-
rio, que tinha bastante prestígio pessoal e ambição para não
fazer caso dos projectos do imperador. Este rompimento po­
deria ter sido temporário, se não tivesse coincidido com o
aparecimento do poder normando e com a perda das possessões
bizantinas na Itália do sul. Doravante o Oriente teve que
contar com a ameaça crescente duma agressão ocidental e a
controvérsia religiosa entre a Igreja bizantina e a Igreja laitina
identificou-se com a cansa do patriotismo bizantino e da sua
sobrevivência política.
Todavia, no princípio do século X I ninguém teria podido
prever o destino do mundo bizantino. Jamais o Império do
Oriente aparecera tão forte e tão próspero como durante os
últimos anos do reinado do imperador Basílio II. Ultrapassava

f 1) lEsipecialmente os patriarcas Fócio, Tarasius (784-806),


Sisinnius (906-008) e o próprio Miguel Cerulário.
Ô RENASCIMENTO BIZANTINO 203

de longe em riqueza e em civilização a Europa ocidental e a


conquista da Bulgária, ao mesmo tempo que a conversão da
Rússia, forneceram-lhe novas ocasiões de espalhar pelo exte­
rior, a sua cultura. Estavam lançadas as bases do desenvolvi­
mento, na Europa oriental, duma nova cultura bizantino-
-eslavónica, que parecia ter assegurado um tão belo futuro
domo a cultura romano-germânica, no Ocidente. Mas, de facto,
a primeira foi prematuramente detida no seu crescimento, ao
passo que a segunda ia dar origem à civilização moderna que,
partindo do Ocidente, devia acabar por abraçar o mundo
inteiro.
Causas de ordem exterior é que, em parte, fornecem
a explicação deste contraste. No fim do século X , a civilização
da Europa ocidental, por mais atrasada que estivesse, tinha
a possibilidade de se desenvolver livremente, ao passo que a
da Europa oriental se achava exposta aos risco® de perpétuas
e violentas intervenções exteriores. Menos de cinquenta anos
depois da morte de Basílio II, o império bizantino via cair
as suas províncias orientais nas mãos dos Turcos Seldjúcidas
e as incursões renovadas dos Pétehenegnes e dos Tátaros Ku-
manos das estepes do norte, punham em perigo as suas comu­
nicações com a Rússia. No século seguinte, estas invasões redu­
ziam quase ao nada a civilização cristã da Rússia de Kiev,
tão cheia de promessas e transportavam o centro de gravidade
da Rússia eslavónica para o nordeste, na região de Viadimi.ro
e de Moscovo, cujos territórios iam ser submergidos um século
depois, pela conquista mongol. Finalmente, no século X IV ,
os Turcos Otomanos penetravam na Europa, e, depois de terem
posto fim à carreira efémera da Sérvia medieval, destruíam
por completo -os últimos vestígios do poderio bizantino qne
tinham escapado aos ataques dos príncipes normandos e ange-
vinos da Itália do Sul, às conquistas dos cruzados francesies,
às empresas dois mercadores aventureiros italianos.
Mas estas causas de ordem exterior, qualquer que seja a
sua importância, não bastam para explicar a passagem pre­
matura e o declínio da civilização da Europa oriental. A civi­
204 A FORMAÇÃO DA EUROPA

lização bizantina tinha conservado, muito melhor que o Oci­


dente latino, as tradições clássicas, mas nunca chegou a pro­
pagá-las, a transmiti-las a outros povos. A cultura superior
constituiu em Bizâncio o privilégio duma classe pouco nume­
rosa e duma instrução adiantada, em ligação com a corte e
com a capital; os povos eslavónieos só herdaram o elemento
religioso e o elemento artístico da cultura bizantina. Por isso,
quando chegou o fim, a herança intelectual, constituída pelo
pensamento e pelas letras gregas, em nada aproveitou às suas
filhas espirituais, as civilizações da Europa orientai, mas às
suas inimigas e rivais inveteradas, as civilizações do Ocidente
latino.
A civilização bizantina conservou fielmente a tradição
que lhe era própria, mas foi impotente para criar novas for­
mas sociais e um novo ideal. A sua vida espiritual e social
tinha sido fixada nos moldes do Estado — a um tempo Igreja
e Estado, segundo a fórmula bizantina, — e quando este ruiu,
não havia outra base para um novo esforço social. No Oci­
dente, pelo contrário, durante a alta Idade Média, a cultura
estava menos intimamente ligada à política. A sociedade estava
estritamente reduzida aos seus elementos simples e o Estado
encontrava-se tão pobre e tão bárbaro que lhe era impossível
produzir uma civilização requintada. Foi para a Igreja, mais
que para o Estado, que, desde então se voltaram os espíritos
em busca dum guia; e, graças à independência espiritual de
que gozava, a Igreja dispôs, no terreno social e moral, dum
poder de iniciativa que faltava ao Oriente. E assim a civi­
lização da Europa ocidental, emíbora muito inferior à do impé­
rio bizantino, manteve em si um dinamismo qiue lhe permitiu
transformar, pela sua influência, a vida social dos novos povos.
No Oriente existia um foco único de civilização, o Império;
no Ocidente cada país e quase cada região possuía os seus focos
próprios de civilização, nas igrejas e nos mosteiros locais, que
em vez de estarem, como no Oriente, inteiramente votados ao
ascetismo e à contemplação, participavam, ac tivam ente, na
vida social. O símbolo do ideal bizantino é o isolamento sublime
0 RENASCIMENTO BIZANTINO 205

do monte Athos, mundo separado do mundo e da vida ordiná­


ria dos homens; o ideal da Europa ocidental incarnou-se,
pelo contrário, nas grandes abadias beneditinas que, como
'S. Gall, foram os principais focos da cultura ocidental ou que,
como Cluny, foram o ponto de partida de novos movimentos
que tiveram tão profunda influência na saciedade medieval.
T E R C E IR A PA RTE

A FORMAÇÃO DA CRISTANDADE
OCIDENTAL
C A P ÍT U L O XI

A IGREJA DO OCIDENTE
E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS

queda do Império do Ocidente no século V não teve


por resultado a formação imediata duma unidade cul­
tural independente na Europa ocidental. No século V I ainda
a cristandade do Ocidente dependia do Império do Oriente,
e a civilização ocidental mais não era que uma amálgama
inlforme de elementos bárbaros e romanos em que ainda não
era patente nem unidade espiritual nem princípio interno
de ordem social. A efémera ressurreição da civilização no
síéculo V I foi seguida dum segundo período de decadência e
de invasões bárbaras, que arrastou a cultura europeia a um
nível ainda mais baixo que o do século V ; e uma vez mais,
foi nas margens do Danúbio que a crise se produziu. A se­
gunda metade ido reinado de Justiniano assistira ao afrouxa­
mento gradual das defesas das fronteiras e uma série de inva­
sões destruidoras ameaçava as províncias dos Balcãs. Um
povo da Germânia do leste, relacionado com os Godos, o povo
dos Gépidas, substituíra os Ostrogodos na Panónia, ao mesmo
tempo que os Hunos Ootriguros ocupavam o baixo Danúbio
o levavam as suas investidas até às próprias portas de Cons­
tantinopla. Na sua .peugada vieram os Eslavos, que, pela p ri­
meira vez, emergem das trevas da pré-história, em que se per­
dem as suas origens. Perante tantos perigo®, o governo impe-
14
210 A FORMAÇÃO DÁ EUROPA

rial encontrou-se na impossibilidade de defender as suas fron ­


teiras pelas armas, e recuou para a diplomacia: incitou os
Utiiguros da estepe do Kuban a atacarem os Cotrigurois, impe­
liu os Hérulos e os Lombardos contra os Gépidas, e os Avaros
contra os Gépidas e os Eslavos. F oi assim que, em 576, depois
da morte de JustinianO', os Avaros se uniram aos Lombardos
para destruirem o reino Gépida, e que o governo de Justino II,
na esperança de reincorporar Sirmiuin no Império, abandonou
os Gépidas à sua sorte. Falsa manobra que se voltou contra
os Bizantinos, porque Bayam, famoso Cão dos Avaros, não era
nenhum pequeno ehetfe pronto a servir de instrumento à diplo­
macia imperial, mas um destes impiedosos conquistadores
asiáticos, cujo tipo foi fornecido por um Atila ou um Gengis-
-Cão. Em vez dum Eistado germânico relativamente estável,
o Império tinha doravante na, sua frente um1 belicoso povo
de nômadas, cu jo domínio se estendia do A driático ao Báltico.
A fronteira do Danúbio acabou por ceder à sua pressão, e as
províncias ilírieas, que durante perto de quatrocentos anos
tinham servido de base ao poder militar do Império e de berço
aos seus soldados e aos seus chefes, foram ocupadas por popu­
lações eslavas que dependiam dos Avaros.
Mas o Império não foi o único a sofrer. Toda a Europa
central s,e tornou presa dos conquistadores asiáticos. A s suas
investidas quase que atingiram as fronteiras do reino franco.
Os Suevos do norte foram constrangidos a evacuar os terri­
tórios de entre o E lba e o Oder, e a Germânia oriental fo i
colonizada por Eslavos, vassalos dos Avaros. Desta forma,
dos povos da Germânia oriental, que anterior mente tinham
governado a Europa do leste, do Báltico ao Mar Negro, os
Lombardos foram os únicos sobreviventes, e eles foram bas­
tante prudentes para tentarem medir forças com os seus alia­
dos asiáticos. Logo em seguida à queda do reino gépida, eva­
cuaram os seus territórios do Danúbio, e marcharam sobre a
Itália. De novo, em tais circunstâncias, o Império se mostrou
impotente para proteger os seus vassalos. A Lombardia e todo
o interior da península foram ocupados pelos invasores, eon-
A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 211

servando os Bizantinos autoridade somente sobre as regiões


costeiras e a Pentápole, o ducado de Roma, Génova, Amalfi,
Nápoles.
Isto deu à civilização perielitante da Itália o golpe de
misericórdia, e não devemos surpreender-nos de que aios 'homens
desta época parecesse iminente o fim do mundo. Os escritos
de S. Grego rio Magno refleetem os sofrimentos horríveis e o
profundo pessimismo dos contemporâneos. Elle chega mesmo
a bendizer a peste que então desvastava o 'Ocidente, corno um
refúgio perante os horrores que o rodeiam':

«Quando consideramos a maneira como morrem os


outros homens, encontramos uma consolação no pensa­
mento da morte que nos ameaça. Quantas mutilações e
crueldades nãoi temos nós visto infligidas a homens para
quem a vida era uma tortura e a morte o único remé­
dio!» G ).

Viu no destino de Roma realizar-se a profecia da mar­


mita fervente de que fala Ezequiel:

■«•Diz-se com razão desta cidade: A carne está cozida,


assim como os ossos que nela estão... Porque onde está
o Senado? Onde está o povo? Os ossos dissolveram-se,
as carnes consumiram-se, a pompa e ais dignidades do
mundo foram-se. Tudo está cozido. A alguns de nós,
que permanecemos apesar de tudo, todos os dias golpes
de espada, todos os dias aflições sem número nos aca­
brunham. É pois ocasião para dizermos: Ponde também
a marmita vazia soibre os carvões. Porque o Senado já
não existe, o povo pereceu, e contudo, no pouco que resta,
as dores e os gemidos não- fazem senão aumentar de dia
para dia, e Roma, já vazia, é devorada pelas chamas.
Mas que necessidade há de Ifalar dos homens — ■pois a

O Ep. X, 20, fcrad. Dudden, Gregory The Great, II, '38.


212 A FORMAÇÃO DA EUROPA

abra de ruína se propaga — quando na verdade vemos


edifícios a desmoronarem? Há pois razão para acres­
centarmos quando falíamos da cidade já vazia: Qu© o
latão se aqueça e se funda. Porque já se consome a mar­
mita onde primeiramente se consumiram a carne e os
ossos...» O ).

Mas o pior ainda não tinlha chegado. No século V II,


os Árabes conquistaram a Á frica bizantina, a mais civilizada
província do Ocidente, .© a grande Igreja de África, glória
'do Cristianismo latino, desapareceu então da história. No prin­
cípio do século V III, os muçulmanos invadiram a Espanha
cristã, e chegaram a ameaçar a Gélia. Entre o Sul muçul­
mano e o norte bárbaro, a cristandade tomara-se numa ilha
isolada.
Pois foi nesta época, em que tudo era ruína e destruição,
que os fundamentos da nova Europa foram postos por homens
que, tais corno S. Grego rio, nenhuma intenção tinham de ins­
taurar uma nova ordem social, mas que trabalhavam por salvar
a humanidade num mundo agonizante, porque o tempo urgia.
E foi preicisamente esta indiferença pelos resultados tempo­
rais que fez do papado, na decadência geral da civilização
europeia, um ponto de ligação para as forças de vida. Lê-se
na inscrição que o Papa João III mandou gravar na igreja
dos Santos Apóstolos: «Generoso numa época mesquinha, o
Papa recusou deixar-se esmagar debaixo do peso dum mundo
agonizante» O).
Precisamente quando o Império do Ocidente ruía, tra­
çara Santo Agostinho, no seu grande livro Da Cidade de Deus,

(*) Horn, in Ezech., II, V I, '22-23. Trald. Diidden, op. cit.,


II, 19-20. Cfr. a carta de S. Coíiinfbano ao papa Bonifácio I V
(Ep.V).
p) Largior existens angusto in tempore praesul
Despexit mundo deficiente premi.
H . Grisar, Rome and The Popes in The Middle Ages, Vol. I l l ,
p. 185 (trad. ingt.).
A IGREJA DO QOIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 213

o programa em que deviam inspirar-se os ideais dos novos


tempos. Considerava toda a história como o desenvolvimento
de dois princípios antagónicos, incarnados ,em duas sociedades
inim igas— a Cidade Celeste e a Cidade Terrestre — Sião e
Babilónia, a Igreja e o Mundo. 0 primeiro princípio não che­
gava a realizar-se definitivamente na terra: estava in via;
a sua pátria era celeste e eterna; o segundo realizava-se na
prosperidade terrestre, na saihedoria e na glória do homem;
encontrava em si mesma o seu fim e a sua justificação. O Es­
tado como tal, não era de forma alguma, é verdade, condenado.
Contanto que fosse cristão, servia os interesses da Cidade
Celeste. Mas era somente uma sociedade subordinada; era um
servo, não um senhor: a supremacia pertencia à sociedade
espiritual. No momento em que o Estado entrasse em conflito
com o poder mais elevado, no momento em que ele se pusesse
como fim de si próprio, identificar-se-ia com a Cidade Terrestre,
e perderia assim o direito de reivindicar outras sanções que
não sejam as da força, e do interesse próprio. 'Sem a justiça,
que é um grande reino senão uma quadrilha de ladrões, magnum
latracinium? Conquistar ou ser conquistado, isso a ninguém
faz nem bem nem mal. É um puro desperdício de energia, um
jogo de loucos, cu jo prémio é vão. O mundo terrestre é insu-
bstancial e provisório: a única realidade digna dos nossos
esforços é a realidade eterna, a Jerusalém celeste— ’ «a visão
de paz».
Este ideal dum poder supremo espiritual e independente
incarnou-,se principalmente no Papado ( 1). Antes mesmo da
queda do Império, o Bispo de Roma ocupava uma situação

(d « A teoria de S. Agostinho na Cidade de Deus, era já


a do papado medieval, sem que Roma fosse explicitamente nomeada.
N a própria Roma era fácil admitir a inserção dum domínio exercido
desde a antiga sede do governo, e tão universal e quase tão poderoso
como o do Império. O património das tradições imperiais de Roma,
abandonada, na ausência dum monarca civil, foi, em certa medida,
recolhido pelo Bispo cristão» (Prcif. C. H. Turner, in Cambridge
Medieval History, Vol. I, p. 178).
214 A FORMAÇÃO DA EUROPA

privilegiada como representante e sucessor de S. Pedro. Roma


era a «Sé apostólica», por excelência; e em. virtude desta
autoridade, tinha intervindo de form a categórica, ao mesmo
tempo contra Constantinopla e contra Alexandria, nas dis­
cussões doutrinais dos séculos IlV e V. A decadência do Im­
pério do Ocidente aumentou, como era natural, o seu prestígio,
porque o Bispo se tornou o representante da tradição romana
nas províncias conquistadas, e o mesmo se deu, muito mais
acentuaidamente, no caso da antiga capital. A velha tradição
imperial foi transportada para o domínio da religião. No sé­
culo V, S. Leão Magno, ao dirigir-se ao seu povo pela festa
de S. Pedro e S. Paulo, podia dizer:

«Foram eles que te elevaram a tal gloria como nação


santa, povo eleito, cidade real e sacerdotal, que, graças
à Santa Sé de S. Pedro, pudeste tornar-te a cafbeça do
mundo e pela divina religião estender a tua autoridade
muito mais além do que por meio dum império terres­
tre» ( a).

;0 papa foi sempre um súbdito leal do imperador, e


julgava a causa do Império inseparável da causa da religião
cristã. A liturgia associa os «inimigos do nome romano» e os
«inimigos da fé católiiea,», e o missal romano contém sempre
uma oração pelo Império Romano — «para que Deus permita
que o imperador submeta todas as nações bárbaras, no interesse

(a) Sermões de S. Leão Magno, 82. Ofr. Próspero, De ingra-


tis, 51 e seg. Da mesma forma tamhém, 'S. iColumJbano (Epístola V,
dirigida ao Papa Bonifácio) opõe a larga autoridade da Roma cristã
à do Império pagão: «Nós, Irlandeses, escreve eie, estamos ligados
de forma especial à Sé de S. Pedro, e por muito grande e gloriosa
que seja Roma, para nós, ela é grande e reputada somente pela
dita Sé. A fama da grande cidade espalhou-se pelo resto do mundo,
mas só chegou até nós quando o carro da Igre ja nos alcançou atra­
vessando as ondas do Ocidente, com Cristo como condutor e S. Pedro
e S. Paulo como cordéis».
A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÃRBAROS 215

da paz perpétua». Mas com o desaparecimento da autoridade


do governo imperial na Itália depois da invasão lombarda e
do pontificado de S. Gregórioi, foi ao Papa que coube a incum­
bência de doravante ter o cuidado de vigiar pela defesa de
Roma e pelo abastecimento dos seus 'habitantes. Roma tor-
nou-se, corno Veneza ou Querson, um membro semi-indepen-
denta do Estado Bizantino. Continuou a servir de interme­
diário entre o Oriente civilizado e o Ocidente barbarizado;
sem pertencer precisamente nem a um nem a outro, tornou-se
para ambos terreno de encontro.
Esta situação anormal foi muito favorável ao exercício
da autoridade pontifícia nos reinos bárbaros do Ocidente,
porque o papado pôde gozar do prestígio da sua união com
o Império do Oriente sem correr o> risco de ser tido por ins­
trumento da política imperial. F oi por isso que os reis francos
nenhuma objecção opuseram a que o bispo de Aries fosse no­
meado vigário apostólico para a Igreja da Gélia. Todavia o
poder do papado, e, ao mesmo tempo, o da Igreja Universal,
viu-se grandemente restringido pela fraqueza inerente às igre­
jas locais. A igreja do reino franco, em particular, supor­
tou a barbarização e a decadência intelectual que afectava
toda a sociedade.
O Bispo tornou-se, como o conde, um magnate territorial.
E quanto mais a' sua riqueza o o seu poder aumentavam, tanto
mais aumentava também o perigo da secularização do seu
múnus. Embora não tivesse a intenção directa de interferir
nas prerrogativas da Igreja, a realeza reivindicou, natural-
mente, o direito de nomear aqueles que deviam desempenhar
um tão grande papel na administração do reino, e os seus
candidatos foram muitas vezes personagens equivocas, como
certos «bispos bandoleiros», Salonius e Sagittarius, cujas faça­
nhas foram narradas por Gregário de Tours O ). Além disso,
a transformação do estado numa sociedade agrária e a deca­
dência progressiva da cidade exerceram sobre a Igreja uma

O Historia eclesiástica, Lib. IV , cap. 4 2 ; V , cáp. 20.


216 A FORMAÇÃO DA EUROPA

influência nefasta, porque o elemento campesino, bárbaro è


semi-pagão, levou de vencida o elemento urbano. Porque, ao
passo que no Oriente, onde o campo fora o primeiro a ser cris­
tianizado, os camponeses eram, poder-se-ia dizer, mais cristãos
do que os habitantes da cidade, no Ocidente a Igreja tinha-se
desenvolvido nas cidades, e assim não tinha podido exercer
uma tão profunda impressão sobre os camponeses e os habi­
tantes do campo. Estes últimos eram os pagani, os «pagãos»
que, à maneira dos camponeses, se conservavam fiéis aos cos­
tumes e às crenças imemoriais, observavam os ritos das semen­
teiras e da ceifa, e veneravam as árvores e as fontes sagradas.
'Contudo, a moral que está na base da nova religião,
não era alheia à vida campesina. Nascera entre pescadores
e campónios da Gulileia; e, no Evangelho, constantemente
são evocados o campo, o aprisco, a vinha. Mas o Cristianismo,
para penetrar no campo, precisava de mais alguma coisa além
do episcopado da cidade. Ora, precisamente no momento em
que a conversão do Império estreitava os laços entre a Igreja
e a política urbana, um novo movimento tendia a atrair os
homens para fora da cidade. Os heróis da segunda época do
Cristianismo, os sucessores dos mártires, foram os ascetas,
homens que, delibieradamente, recusavam todo o património
da civilização urbana para viverem uma vida de trabalho e
de oração, onde o conforto era reduzido ao mínimo indis­
pensável.
No século IiVv os desertos do Egipto e da Síria povoar
ram-se de colónias de monges e eremitas, que se tornaram
escolas de vida religiosa para todas as províncias do Império
e para os povos vizinhos do Oriente. Mas no Ocidente, em­
bora o seu ideal fundamental fosse o mesmo, os mosteiros, em
razão da diferença das condições sociais, foram obrigados a
adoptar uma atitude diferente para com a sociedade que os
cercava.
Nos distritos rurais do Ocidente, o mosteiro era o único
centro de vida e de ensino cristão, e foi sobre os monges, a
final de contas, mais que sobre os bispos e o seu clero, que
A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 217

recaiu o encargo de converterem a população campesina pagã


ou semi-pagã. Isto é evidente desde o século IV , e é disso prova
a vida do fundador do monaquismo gaulês, o ilustre S. Marti-
nho de Tours. Mas o grande desenvolvimento da instituição
é oíbra de João Cassiano, que pôs a Gália em contacto directo
com a tradição dos monges do deserto egípcio, e de Santo
Honorato, fundador de Lérins, o maior centro de vida monás­
tica na Europa ocidental no século V, um eentro cuja influên­
cia irradiou até bem longe.
Mas foi nos países celtas, recentemente convertidos, do
extremo Ocidente, que a influência do monaquismo se tornou
dominadora. Os inícios da instituição monástica nesta região
remontam ao século V, e a sua origem deve provavelmente
ser procurada na influência exercida por Lérins, onde S. Pa­
trício iestudara durante os anos que precederam o seu apos­
tolado, e onde, em 433, um monge inglês, Fausto, ocupara
o cargo abadai. Simplesmente, emlbora S. Patrício tivesse
introduzido a vida monástica na Irlanda, a organização que
ele adaptou para a sua Igreja, seguiu a.s linhas gerais da orga­
nização episcopal tradicional, tal como fora também o caso
para a Igreja inglesa no país de Gales. Todavia, como o bispo
da Igreja Romana era sempre o bispo duma cidade, o sistema
normal de organização eclesiástica não podia encontrar qual­
quer base natural em país celta, visto a unidade social ser aí,
não a cidade, mas a trilbo. É por isso que, ©m consequência
da grande extensão da influência e da cultura monástica no
decurso do século Vil, o mosteiro teve tendência para se subs­
tituir ao bispado, quer como centro de vida, quer como centro
de organização eclesiástica. Este movimento surgiu no sul
do país de Gales, onde o mosteiro de Santo Illtyd, na ilha
de Oaldey, se tomou, no princípio do século V I, uma grande
escola de vida monástica segundo o modelo de Lérins. O re­
nascimento monástico irradiou deste primeiro centro para a
Grã-Bretanha ocidental © para a Bretanha, graças a S. Sansão,
S. Cadoc de Llancarvan, S. Gildas e S. David. Além de que
a este movimento se liga estreitamento o importante incre­
218 A FORMAÇÃO DA EUROPA

mento tomado pedo monaquismo irlandês no século VII, com


os «santos da segunda ordem» (x) . S. Finiano die Glonard
( + 549), a quem se deve sobretudo a criação do novo tipo de
monaquismo, mantinha relações estreitas com S. Cadoe de
Llancarvan e S. Oildas; e se a tradição monástica de -S, Illtyd
se espalhou na Irlanda, àquele se deve e aios seus dicípulos,
especialmente S. Ciaran de Clonmacnoise ( + 549), S. Bren-
dan de Olonfert e S. Golumba de Derry e de lona. A impor­
tância destes factos é manifesta, não menos para a literatura
do que para o ascetismo, porque pelo menos quanto às disci­
plinas puramente eclesiásticas, a escola de Santo Illtyd e de
S. Cadoe liga-se às tradições das velhas escolas de retórica, e
fomentou o estudo da literatura clássiea.
Tal é a origem do movimento que termina na fundação
das grandes escolas monásticas de Clonard, de Clonmacnoise
e de Bangor, e que valeu à Irlanda uma posição dirigente na
civilização ocidental, a partir do fim do século V I. Todavia,
é possível qu,e as tradições indígenas tivessem a sua parte
no facto; porque os Irlandeses, diferentemente dos outros
povos 'bárbaros, tinham uma tradição própria de cultura, re­
presentada por escolas de poetas ou Filid, os quais possuíam
consideráveis riquezas e prestígio social. A s novas escolas
monásticas apropriaram-se, em certo sentido, do património
desta tradição nativa, e estiveram assim em condições de subs­
tituir as antigas escolas de druidas e de bardos, como órgãos
intelectuais da sociedade irlandesa. A cultura clássiea impor­
tada dos mosteiros cristãos veio a confundir-se gradualmente
com a tradição literária nativa, e assim se desenvolveu uma
nova literatura indígena, que apesar de se inspirar parcial-
mente na influência cristã, se baseou, parcialmente também,
nas tradições pagãs nacionais. Embora somente conhecida

f 1), Houve também uma corrente de influência estrangeira


que, partindo do mosteiro fundado por S. Niniano, em W ithorn,
no Galloway, é representado na Irlanda por Santo Enda de A ra n ;
mas, comparado com a tradição de Llancarvan' e de Glonaird, tem
uma importância secundária.
A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 219

por versões em médio irlandês, que datam da época medieval,


não 'há dúvida de que, na sua forma primitiva, esta literatura
remonta aos séculos V II e VIilI, idade de oiro da cultura irlan­
desa cristã, e de que a tradição literária da Irlanda medieval
mergulha as suas raízes no passado pré-histórico. É o que
a grande epopeia em prosa, ou saïga — ■o Tain Bo Cualgne —•
ilustra, de forma surpreendente. Elfeetivamente, leva-nos,
para além da Idade Média e da tradição clássica, até à idade
heróica da cultura céltica, e íaz-nos reviver um estado social
que recorda o mundo homérico. P or isso é que não houve
na Irlanda, como aconteceu noutras partes, uma rotura brusca
entre a velha tradição bárbara e a da Igreja; e entre esta e
as tribos celtas realizou-se uma fusão sem exemplo na história
da Europa ocidental. A organização jerárquiea da Igreja,
tal como existia no resto da 'Cristandade, esteve lá completa-
mente subordinada ao sistema monástico. Bem entendido que
os bispos continuavam a existir e a conferir as ordens, mas
deixaram de dirigir a Igreja. Os mosteiros irlandeses eram
não somente grandes centros de vida religiosa e intelectual,
mas também centros da jurisdição eclesiástica. O abade era
o chefe da diocese, ou paroechia, e mantinha geralmente na
sua comunidade um ou vários bispos para desempenharem ais
funções episcopais necessárias, quando ele próprio não era
bispo. O mais extraordinário é que, por vezes, esta espécie
de jurisdição quase episcopal era exercida por mulheres, p or­
que a Sé de Kildare, que dependia do grande mosteiro de
S. Brígida, tinha à sua frente, simultaneamente, um bispo
e uma abadessa; de tal form a 'que, conforme os próprios ter­
mos do seu biógrafo, era «uma sé ao mesmo tempo episcopal e
virginal» (*).
A organização monástica neste país estava estreitamente
ligada à das tribos, porque estava geralmente em uso escolher*S .

(') Ryan, Irish Monasticism, pp. 179-184. A posição de


S. Brígida era tão extraordinária, que as lendas chegaram a pre­
tender que ela tinha recebido ordens episcopais!
220 A FORMAÇÃO DA EUROPA

o abaide no .ciam & que pertencera o fundador. O Livro d ’A r-


magh recorda-nos, no século I X , que a igreja de Trim fora
governada, durante nove gerações, pelos descendentes do chefe
que dotara a sede no tempo de S. Patrício. D a mesma forma
os primeiros abades de lona pertenciam à família de S. Co-
lumba, da raça real dos Ui Niall do norte ( 1).
Pela organização e pela sua maneira de viver os mon­
ges irlandeses recordavam os seus protótipos do E gipto; pela
sua disciplina e pelo ascetismo da sua vida, podiam rivalizar
com os monges do deserto. Os seus mosteiros, longe de serem
grandes .edifícios, corno as aibadias beneditinas posteriores,
mais não eram que simples grupos ide choupanas e de pequenos
oratórios, semelhantes aos laura egípcios, e rodeados dum rath
ou construção térrea. De resto, continuavam fiéis 'à ideia
oriental: que a vida eremítica é a realização mais perfeita e
o fim supremo do estado monástico. Na Irlanda, porém, este
ideal revestiu uma forma que se não encontra em nenhuma
outra parte. Os monges tmlham o hábito de se consagrar a
uma vida de exílio voluntário e de peregrinação. O caso
narrado pela Crónica Anglo-saxónica (s.a. 891) dos três mon­
ges «que fugiram da Irlanda numa barca sem remos, porque
queriam viver na condição de peregrinos pelo amor de Deus,
pouco lhes importando onde», é um exemplo característico
deste desenvolvimento. F oi esta a origem duma série de via­
gens e de explorações que, sob uma forma lendária, evocam
as aventuras de S. Brendan, o Navegador. Quando o® Vikings

P ) 'Certas testemunhas confirmam a existência, nas tribos,


de bispos não monásticos, porque as leis parecem considerar como
normal que cada Tuath tivesse o seu bispo, o qual ocupasse o pri­
meiro lugar imediatamente depois do próprio rei (Ryan, ob. cit.,
p. 300, n. 2 ). Estes bispos de Tuath foram a origem das Sés epis­
copais da Irlanda no decorrer dos posteriores séculos medievais;
mas, nos primeiros tempos, a sua importância foi bem menor que
a das grandes jurisdições monásticas, e a sua autoridade foi enfra­
quecida com a existência dos numerosos bispos errantes do género
daqueles cuja existência no continente, no século ViIII, S. Bonifácio
deplora.
A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 221

descobriram a Irlanda, verificaram que os «papas» irlandeses


os tinham precedido, e que cada uma das ilhas dos mares do
Norte possuía a sua colónia de ascetas. Os marinheiros que
tinham elucidado Dicuil, geógrafo carolíngio, tinham já ultra­
passado a Islanda e atingido os gelos dos mares árticos.
Mas a importância deste movimento releva-se sobretudo
no impulso dado à actividade missionária; e foi como missio­
nários que os monges celtas contribuíram de forma mais efi­
caz para o desenvolvimento da civilização europeia. A s coló­
nias monásticas de S. Columba, em lona, e a do seu homónimo,
Columbano, em Luxeuil, foram os pontos de partida duma
grande expansão do Cristianismo. Deve-se ao primeiro a con­
versão da Escócia e do reino da Nortúmbria; ao segundo,
o renascimento do monaquismo e a conversão dos últimos
elementos pagãos do reino franco. Luxeuil, com os seus seis­
centos monges, tornou-se a metrópole monástica da Europa
ocidental e o centro duma grande actividade colonizadora
e missionária. Uma multidão de grandes mosteiros da Idade
Média, não só na França, mas também na Flandres e na A le­
manha, devem-lhe a sua fundação; entre outros Jumièges,
Sant Wandrille, Solignaic e Corbie na França; iStavelot e
Mailmédy na Bélgica; iSaint Call e Dissentis na Suiça; e
Bobbio, o último, que o próprio Columbano fundou, na Itália.
Dum extremo ao outro da Europa central, deixaram os monges
irlandeses errantes sinais da sua passagem; e a Igreja da
Alemanha, honra ainda, entre os nomes dois seus fundadores,
os de iS. Kilian, iS. Gall, iS. Fridolim e 'S. Corbiniano.
Compreender-se-á, sem dificuldade, a influência que
este movimento deve ter exercido nos camponeses. Era essen­
cialmente rural, evitava as cidades, buscava, nas florestas e
nas montanhas, os sítios mais afastados. Muito miais que a
prédica do bispo e do padre da cidade longínqua, a presença
destas colónias de ascetas, de sotaina preta, deve ter dado
aos camponeses o sentimento dum novo poder de força muito
superior aos espíritos da natureza, que a antiga religião cam­
pesina venerava. Além disso, os próprios monges irlandeses
222 A FORMAÇÃO DA EUROPA

eram camponeses que tinham pela Natureza e pelas coisas


bravias um amor profundo. O biógrafo ,de iS. Oolumbano conta
como os esquilos e os pássaros vinham, receiber as suas carícias
quando passeava na floresta, ,e «como saltavam e faziam ca-
briolas à sua volta como cãezinhos adulando o seu dono» (*).
Efectivamente, as lendas dos santos monges transbordam dum
sentimento quase íranciseano para com a natureza. Sem dú­
vida que o deserto era o ideai dos monges celtas; amavam a
floresta e principalmente a® ilhas desabitadas e inacessíveis,
como S. Kellig Michael, uma das residências monástica® mais
impressionantes e que recorda a que ainda hoje escolhem os
monges orientais, o Monte Atbos ou o Meteora; mas as coló­
nias monástica® viram-se obrigadas pela necessidade a conti­
nuar a tarefa dos camponeses: arrotear a floresta e cultivar
o solo. ® vidas dos santos monges gauleses e celtas do pe­
ríodo mierovíngio estão cheias de referências ao® seus trabalhos
agrícolas: desbravar as florestas, restituir ao cultivo a® terras
deixadas ,ao abandono durante o período das invasões. Muitos
destes monges, por exemplo S. Walarie, fundador de Saint-
-Valéry-sur-iSomme, eram mesmo de origem campónia. Outros,
mesmo que fossem1de nascimento nobre, passavam a sua vida
a trabalhar como camponeses, por exemplo S. Teodulfo, abade
de Saint-Thierry, perto de Reims, que nunca quis abandonar
o seu trabalho, e cuja charrua, à laia de relíquia, foi depen­
durada na igreja pelos lavradores.
Foram estes os homens a quem se deve a conversão dos
camponeses, porque estavam tão próximos da cultura campestre
que podiam infundir-lhe o espírito da nova religião. Foi gra­
ças a eles que o culto prestado aos espíritos da natureza come­
çou a ser prestado aos santos. As fontes sagrada®, as árvores
sagradas, as pedras sagradas continuaram a ser objecto da
devoção do povo, ma® foram consagradas aos novos poderes
e alterou-se a sua significação simbólica. Os camponeses dos
arredores de Reims prestavam homenagem a uma árvore sa-

(’ ) Jonas, Vita Columbani, I, 17.


A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 223

grada que, dizia-se, surgira por milagre da aguilihada que


S. Teodulfo espetara na terra. No Ocidente, as cruzes de pedra
dos santos substituíram os menchires do culto pagão 0 ) ; uma
capela de S. Miguel coroou o cume do grande túmulo de Car-
nac, e o dólmen de 'Plòucret transformou-se numa capela dos
Sete-iSantos.
Não foi sem dificuldade que a Igreja conseguiu triunfar
dos antigos costumes pagãos; e geralmente, para o conseguir,
foi-lhe preciso substituir por uma cerimónia cristã cada uma
das cerimónias pagãs. Quando o Liber poniificalis deelaira
que S. Leão instituiu :as cerimónias da Candelária para acabar
com as Lupereais, talvez esteja em erro; mas bem parece que
as Grandes Ladainhas e as procissões de 25 de A bril tenham
vindo ocupar o lugar dos robigalia e que a festa da Colecta
ou Oblatio tenha vindo substituir a que marcara o início dos
Jogos Apolinários. Mais frisante ainda é a concordância entre
as Têmporas e as festas pagãs (F eriae) das ceifas, das vindi­
mas' e das sementeiras. A liturgia dais Têmporas do Advento,
especialmente, está cheia de alusões às sementeiras, que são
associadas ao mistério da natividade divina.

;«A semente divina cai sobre nós, e, da mesma forma


que os frutos do campo sustentam, a nossa vida terrena,
dá esta celeste semente à noissia alma a imortalidade em
rópasto. A terra produziu o trigo, o vinho e o azeite, mas
eis que está prestes a natividade d ’Aquele que, na sua
misericórdia, dispensa aos filhos de Deus o pão da
V ida» ( 2).

O ' Por vezes chegou-se, na Bretanha, a cristianizar o


próprio menhir, pela adição duma peiquena cruz.
(2) Extraicto do Sacramentário Leonino cit. por Grisar
(ob. cit., IilI, 285). Grisar chama também a atenção para a notável
coincidência que existe entre uma passagem de Isaías que figurava
na Missa de quarta-feira de Têmporas do' Advento e os versos de
Ovídio em honra de Ceres por ocasião das Feriae sementivae (Fasti,
I, v. 597 e seg s.).
224 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Mas ©sta espécie de transfiguração litúrgica da religião


da natureza era de essência muito intelectual para que o cam­
pónio a compreendesse. Apesar de todos os esforços da Igreja,
os antigos ritos pagãos sobreviveram, e, dum extremo ao outro
da Europa, os camponeses continuaram a acender as fogueiras
estivais da véspera de S. João e a observar na primavera o
rito mágico da fertilidade 0 ) . A inda hoje, como o mostrou
Maurice Barrès em La colline inspiree, as sinistras forças da
antiga religião da natureza subsistem, embora latentes, nos
campos da Europa e prontas a afirmarem-se novamente sem­
pre que a nova ordem relaxa a sua vigilância. É contudo
notável que seja preeisamente nas regiões onde ainda são
mais visíveis as sobrevivências dos costumes pagãos, na B re­
tanha e no Tirol por exemplo, que a moral cristã mais influên­
cia exerceu na vida dos camponeses. Porque o Cristianismo
conseguiu, a final de contas, remodelar o espírito dos campo­
nesas: os antigos deuses desapareceram e os seus santuários
foram reconsagrados aos santos da nova religião. Sem dúvida
que o culto dos santuários locais e as peregrinações, que lá
se faziam, foram ocasião de toda a espécie de estranhas sobre­
vivências de que ainda hoje são uma prova os «perdões bre­
tões»; mas foi esta mesma continuidade de cultura, esta asso­
ciação do antigo com o novo, que abriu os espíritos dos cam­
poneses às influências cristãs que, doutra forma, não poderiam
ter aceitado; e, em tempos mais recentes, o desaparecimento

C) Possuímos um exemplo notabilíssimo da sobrevivência


da velha mágica da fertilidade em roupagens cristãs: é o do com­
plicado bruxedo anglo-saxão para uma terra estéril. 'Canta-se a
missa sobre quatro cantos do cataipo; põe-se na charrua incenso
e sal bento; e o agricultor, ao mesmo tempo que faz o primeiro
sulco, repete a seguinte invocação à Deusa-mãe: «iSalvé, ó terra,
mãe dos homens! Que o abraço de Deus te torne fértil e te encha
de alimento para uso dos homens» ( Anglo-Saxon poetry, trad, por
it. ,K. Gordon [Everyman Library'], pp. '98-100).
(H ail to Thee Earth, mother of men! '
Be fruitful in God’s embrace
Filled with food fo r use o f m en).
A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 2 25

dos velhos costumes campestres foi muitas vezes seguido duma


recaída num paganismo muito mais grave que o paganismo das
sobrevivências arqueológicas.
Todavia a evangelização dos campos da Europa du­
rante o período merovíngio não é mais que um caso particular
dos serviços prestados pelo monaquismo à causa da civilização
europeia. Estava ele também, destinado a tornar-se o prin­
cipal agente do Papado na sua tarefa de reforma eclesiástica
e a exercer uma influência vital na restauração política e inte­
lectual da sociedade europeia.
A mesma época que viu nascer na Irlanda o monaquismo
céltico foi também assinalada por um novo desenvolvimento
de monaquismo na Itália, o qual devia ter uma importância
histórica maior. Foi esta a obra de !S. Bento, «patriarca dos
monges do Ocidente», fundador, por volta de 520, do Mos­
teiro de Monte Cassino. Foi ele quem, pela primeira vez, apli­
cou o génio latino, feito de ordem e disciplina à instituição
monástica e quem completou a socialização da vida monástica
que 'S. Pacómio e S. Basílio tinham; começado. O ideal dos
Monges do Deserto, era o ascetismo individual, e os seus mos­
teiros eram comunidades de eremitas; o dos Beneditinos era
essencialmente cooperativo e social. O seu fim não 'era o cum­
primento de prodígios de ascetismo, mas a prática da vida
em comum, que era a seus olhos a «escola do serviço do Senhor».
Comparada às de S. Pacómio ou de 'S. Columbano, a
regra de íS. Bento afigura-se moderna e fácil, mas implica um
grau superior de organização e de estabilidade. O mosteiro
beneditino, era um Estado em miniatura, dotado duma jerar­
quia, duma constituição e duma vida económica bem fixadas.
Foi, desde o início, uma corporação proprietária, que possuía
«vilas», servos e vinhas; e a economia do Mosteiro ocupa na
regra de S. Bento um lugar muito maior do que em qualquer
regra anterior. Daí deriva a importância do trabalho coope­
rativo, que desempenhou um tão importante papel na vida
do monge beneditino; porque, S. Bento inspirava-se no ideal
exposto por Santo Agostinho no seu tratado B e Opere Mo-
226 A FORMAÇÃO DA EUROPA

nachorum e detestava tanto como ele, os monges preguiçosos


e «igiróvagos» ique tanto tinham contribuído para desacreditar
o monaiquismo do Ocidente.
Mas o primeiro dever do monge era, não o trabalho
'manual, mas a .oração, principalmente a recitação em comum
do ofício divino, exercício que S. Bento qualifica de «obra
de Deus». E nem o estudo era desprezado. É aos mosteiros
que devemos a conservação viva da tradição clássica depois
da queda do Império.
Eíectivamente o último representante no Ocidente das
tradições sábias da administração romana, Oassiodoro, foi
tamibém um fundador de. mosteiros e O' autor do primeiro pro­
grama de estudos monásticos. É verdade que a cultura literá­
ria ostentosa do velho retórico de Vivarium, acomodava-se
mal à 'simplicidade severa e à espiritualidade em que se ins­
pirava a regra beneditina; mas o monaiquismo do Ocidente
ia herdar das duas tradições. iSob a influência do Papado, a
regra de S. Bento tornou-se o modelo romano da vida monás­
tica e, finalmente, o tipo universal do monaquismo ociden­
tal 0 ) . Depois da expansão celta veio a organização latina.
A iniciativa desta missão universal dos beneditinos
deve-se à acção de S. Gregório, ele próprio monge beneditino.
Foi do Mosteiro do Monte Oélio que Santo Agostinho e os seus
monges se puseram a caminho paira converter a Inglaterra,
e o mosteiro beneditino de Oantuária provavelmente, a mais
antiga fundação beneditina fora da Itália, tornou-se o ponto
de partida dum movimento de organização e de unificação

0 ) .Segundo Dom Chapman, S. Bento teria redigido a sua


regra como código oficiall do monaquismo ocidental, a instâncias
ido Papa Hormisdas e de Dionísio o Exíguo, e descobrir-se-iam
sinais da sua influência na legislação monástica de Justiniano
{(Novelas) e nos escritos de Cassiodoro. E sta tese choca, aliás, com
Isérias dificuldades. Cfr. J. 'Chapman, Saint Benedict and the
ISexih Century (15 29), e as críticas de Dom Cahrol, in Dublin Re­
view, Julho de 1930.
A IGREJA DO OCIDENTE E A CONVERSÃO DOS BÁRBAROS 227

religiosas que teve por resultado a criação dum novo foco de


civilização cristã no Ocidente.
O r e a p a r e c im e n t o d u m a nova cultura anglo-saxónica
no século VM é talvez o acontecimento mais importante sur­
gido entre a época de Jusíiniano e a de Carlos Magno, porque
exerceu uma influência profunda no desenvolvimento inte­
lectual de todo o continente. Esta nova cultura é, originária-
mente, o produto, em partes iguais, das duas tfo rç a s que des­
crevemos: o movimento monástico celta e a missão dos bene­
ditinos romanos. Encontram-se elas, aliás, no norte da Ingla­
terra e foi lá que nasceu entre 650 e 680 a nova cultura cristã
graças à intervenção e à fusão dois dois elementos. O Cristia­
nismo fora introduzido em Nortúmbria pelo Romano Paulino,
qne íbaspfcizou o rei Eduíno (Edw in) em 627 e fez da antiga
•cidade romana de York urna sé m e t r o p o lit a n a ; mas a derrota
'de E duíno pelo pagão Penda e pelo galês Oadwallon a r r a s t a r
ram à ruína temporária a Igreja ângliea. F oi restabelecida
pelo rei Osvaldo em 634 com o concurso de Santo Aidan e dos
(missionários celtas que ele trouxe de lon a para Lindisfárnia,
e, enquanto ele reinou, reinou também como soberana a influên­
cia celta. Não foi antes do sínodo de 'Whitby em 664 que o
partido romano acabou por triunfar, graças à intervenção
de S. W ilfrid, que consagrou uma vida longa e tempestuosa
ao serviço da unidade romana. Com. o seu amigo e compa­
nheiro de trabalho S. Bento Biscop, fundou o monaquismo
beneditino no norte da Inglaterra. Mas a sua aotividade, não
foi importante, somente, do ponto de vista eclesiástico: foram
missionários tanto da civilização como da religião e deve-se-
-Ibes o nascimento duma nova arte âmglia. Traziam das suas
frequentes viagens a Roma e à Gália artífices e arquiteetos
hábeis, livros, pinturas, vestuário, músicos, e aS suas abadias
de Ripou, de Herham, de W e armou th e de Jarrow foram,
grandes centros da nova cultura.
Na mesma altura o arcebispo vreco-siríaco Teodoro e o
abade africano Adriano, enviados de Roma em 668, realizavam
no sul uma obra similar. Com eles podemos distinguir o apa-
228 A FORMAÇÃO DA EUROPA

reeimento duma nova valga de cultura superior vinda do


Oriente, que nos ajuda a compreender o levantamento das
ciências anglo-saxónieas e a superioridade do latim de Beda
e de Alcuíno sobre o estilo bárbaro de Gregário de Tours ou
do autor eéltico dos Hisperica famina. A cultura superior
tinha sobrevivido durante muito mais tempo nas províncias
bizantinas de Á frica e do Oriente, e a invasão, árabe trouxera
para Ocidente uma onda de refugiados, que desempenharam
no século V II aproximadamente o mesmo parpel que os refu­
giados gregos de Constantinopla no século X V . De 685 a 752
a Sé de Roma foi ocupada por uma sucessão de Gregos e de
Sírios, muitos dos quais foram homens notáveis, e a influência
oriental atingiu o seu auge não só em Roma mais também1em
todo o Ocidente. Ela é manifesta na arte anglo-saxónica desta
época. A partir de cerca de 670, sem dúvida em consequência
da 'actividade empregada por S. Bento Biseop, encontramos,
em vez da antiga arte germânica, uma. nova. escola de escul­
tura e decoração, de inspiração puramente ocidental, e cujo
tema principal é o motivo sírio das gavinhas de videira
entrelaçadas por aves ou feras, como se vê na, grande série
de cruzes ânglieas, especialmente nas famosas cruzes de Ru-
thwell e de Bewcastle que daitam provavelmente do princípio
do século V III. Que uma escola, de arte irlandesa tenha exis­
tido também em. Nortúmbria, o m agnífico livro dos Evangelhos
de Lindisfárnia o atesta, mas nenhum sinal da sua influência,
aparece, auer na arquitectura quer na escultura C1). Quanto
à arte da Inglaterra saxóniea, é muito mais compósita e sofreu
a influência, não somente do estilo oriental, ao mesmo tempo
sob as formais nortúmbrioa e merovíngia, mas também a da
arte irlan desa.
Todavia, sob todas estais influências estranj eiras, eneon-
trava-se um fundo de cultura indígena. A mesma época e

(’ ) Tal é o parecer de Brondsted, Early English Ornament,


p. 92. Por seu lado, o Prof. Baldwin Boixn considera o livro dos
lEvanigelhos de Lindisfárnia, como característico do génio anglo.
k ÍSSKJÀ ÖÖ OCÜMSNÍÈ 1 Á CO N V E R ßlo DOS b I r b ABOS 289

a mesma região que produziram as cruzes ãngdicas viram nas­


cer a literatura anglo-saxónica, F oi neste tempo que a antiga
lenda paigã de Beowulf recelbeu a sua forma literária; e mais
representativois ainda desta época foram os poetas cristãos,
Caedmon, pastor da abadia de W hitby, cuja história roma­
nesca Beda nos contou, e :Cynewulf, autor de vários poemas que
sobreviveram, entre outros Andreas, Elena, Juliana, e talveiz
também o nobre Sonho da Estrada, do qual está esculpido um
passo na Cruz de Ruthwell.
'Sem dúvida, o nascimento desta cultura vernácula deve
alguma coisa à influência da Irlanda, onde, como vimos, por
esse tempo se estava desenvolvendo uma cultura cristã nacional.
Mas a literatura anglo-saxónica tem as suas caraeterísti-
teas próprias que a distinguem da céltiea e da teutónica. Re-
conhecemo-la pela sua melancolia, que nada tem de comum
com a «melancolia déltiea» da tradição literária. É a dum
povo que vive no meio das ruínas duma civilização morta,
meditando num passado glorioso e na vaidade dos empreen­
dimentos humanos (x).
Mas esta tradição indígena não é forçosiamente anglo-
-saixóniea: remonta, ai uma época anterior. iCollingwood eixplica
o desabrochar súbito da arte angio-saxónica por um despertar
•do génio próprio do povo conquistado ( 2) e isto parece ainda

(a) V er, por exemplo, a seguinte passagem extraída de


The Wanderer: «O Criador dos homens tornou esta terra de tal
form a desolada que únicamente restam solitárias e vazias as anti­
gas moradas dos gigantes onde os Senhores já não fazem festejos.
Então o que, na sua sabedoria, conhece o fundo das causas e me­
dita nas trevas desta vida, pensa no seu coração, renova os nume­
rosos morticínios do passado e pronuncia estas palavras : Para onde
foi o cavalo? Que é feito do cavaleiro? Onde pára o que distri­
buía os seus tesouros? Onde está o lugar do festim? Onde as ale­
grias da grande sala? A i! a taça brilhante! A i! o guerreiro cou­
raçado! A i ! a glória do Príncipe! Como esse tempo fugiu e se
apagou, como se nunca tivesse existido». (Gordon, op. cit., p. 82).
V er também os trechos intitulados The ruin, Deor, The Seafarer, etc.
(3) R. G. Collingwood, Roman Britain, p. 101 da 1.” edição.
A tfOBMAÇiO DA ItffiÖDA

maia plausível quando se trata dos mais altos representantes


da religião e do pensamento. Entre outras coisas notar-se-á
que quase nada subsiste das colónias ânglicais pagãs ao norte
do Tees, na Bernieeia, centro do poder nortúmbrico do tempo
de Santo Osvaldo, o que nos leva a admitir a sobrevivência
de elementos indígenas numa região que tão importante papel
deisempetoha na história da cultura anglo-saxónica — a região
d o Tyne e o extremo oriental da muralha romana ( x).
Quase outro tanto se poderia dizer do Wessex, porque
AMIhelm e Bonifácio eram originários de regiões que os Saxões
não ocuparam nos primeiros tempos. É difícil atribuir somente
ao acaso o entusiasmo que os Anglo-Saxões retíentemente
convertidos, manifestaram’ pela cultura latina e a ordem ro­
mana. Um homem como Boda, que representa no mais elevado
grau, a cultura intelectual no 'Ocidente no decorrer do período
compreendido entre a queda do Império e o século I X , não
pode ter sido o produto artificial duma missão italiana aos
povos bárbaros germanos: nunca se conceberia o aparecimento
dum homem deste tipo na Dinamarca, por exemplo, mesmo
depois da conversão d o pais. Se a conversão dos Anglo-iSaxões
transformou até este ponto a Inglaterra, é porque ela é como
um ’r eaparecimento, uma nova afirmação da antiga cultura
tradicional depois da efémera vitória bárbara. Significava
o regresso da Grã-Bretanha à Europa e aio seu passado.
Eis por que a cultura cristã e monástica conheceu na
Inglaterra urna independência e uma autonomia que nunca
conseguiu atingir no continente, excepto por algum tempo
na Espanha. Nos territórios francos, a realeza conservou
sempre um pouco do prestígio do antigo Estado e exerceu,
como já vimos, urna fiscalização extensíssima sobre a Igreja.
Na Inglaterra, a Igreja incarnara a herança total da cultura
romana, ao lado de débeis e bárbaros estados de organização
tribal. Foi a Igreja, mais que o Estado, que preparou a uni-

0) Ofr. Thurlow Leeds, The Arehaelogy of the Anglo-


Saxon Settlements, pp. 70-71.
À IGREJA DG OCÍDÈOTE ffi  CONVÊRSÍO DOS bI rBAROS Í231

dade nacional, pela sua organização eolectiva, pelos seus síno­


dos anuais, pelas suas tradições administrativas. No domínio
político a cultura anglo-saxónica, foli singularmente estéril.
O Estado nortúmibricO delbilitou-se © -caiu na anarquia, muito
.antes que tivessem desaparecido a arte e a cultura dos Anglos.
A ideia que geralmente se faz do Anglo-fSaxão, como uma
espécie de John Buli medieval, afasta-se de form a deveras
■estranha da verdade histórica. iSdb o ponto de vista material,
a civilização angio-saxóniea foi uma Completa falência; a sua
principal indústria parece ter sido o fabrico e a exportação
de santos, e o próprio Beda, viu-se na olbriigação de protestar
contra a excessiva multiplicação das fundações monásticas,
que provocavam uma séria baixa nos recursos militares do
Estado i1)'.
Em compensação, jamais a Inglaterra exerceu maior
influência na cultura do continente. Os Anglo-lSaxões foram
no isiéeulo V III os mestres nas artes, na religião, no estudo, nas
letras. Enquanto a civilização do continente tinha atingido
o mais baixo nível, a conversão dos Anglo-iSaxÕes, provocou
mm refluxo da maré. Os peregrinos saxÕes afluíam a Roma,
centro do mundo cristão, e foi entre os monges e os missio­
nários anglo-saxõeis que o Papado encontrou os seus mais dedi­
cados aliados e servidores. 0 :s fundamentos da nova época
foram postos pelo maior de todos, S. Bonifácio de Creditou,
«apóstdlo da Germânia», e que exerceu na história da Europa
uma influência superior à de qualquer outro inglês em qual­
quer época. Diferentemente dos seus predecessores celtas,
não era um missionário individual, mas um homem de Estado
e um organizador que se fez principalmente, um servidor da
ordem romana. Deve-se-lhe a fundação da Igreja Germânica
medieval e a conversão final do Hesse e da Turíngia, coração

C) Beda, Epistola cud Egbertum. — Os mosteiros laicos de


que falia Beda nesta carta, parecem ter sido uma instituição eéltica;
mas geralmente, também se encontram na Espanha no século V I,
e S. Frutuoso de Braga cita-os na sua regra monástica.
k fCÉMAÇiô Ôá MtMÚffÀ

da Germânia, Com o auxílio dos seus monges e monjas anglo-


-saxÕes, abateu as últimas forças do paganismo germânico,
levantou abadias e bispados nos locais dos antigos Folkburgs
e santuários pagãos, corno, Buraburg, Amonaburg e Fulda.
No seu regresso de Roma em 739, aproveitou-se da sua auto­
ridade como vigário do Papa na Germânia para reorganizar
a Igreja bávara e para fundar as novas dioceses que desem­
penharam um papel tão importante na história da Germânia.
Porque a Germânia, passado o Reno, continuava ainda a ser
um país sem cidades, e fundar novos bispados era criar novos
focos de cultura. F oi mercê da obra levada a cabo por S. B o­
nifácio, que a Germânia começou a contar-se desde então em
o número dos membros activos da sociedade europeia.
Que os primórdios duma cultura propriamente germâ­
nica são bem a consequência desta influência anglo-saxónia G ),
não ressalta isso simplesmente do facto de os missionários
anglo-saxões terem levado consigo o hábito de acrescentar aos
textos latinos glosas em língua indígena, ou mesmo do facto
de os primeiros monumentos da literatura germânica — o an­
tigo Géniesis saxão e a epopeia religiosa de H eliand— pare­
cerem derivar da tradição literária anglo-saxóniea: a própria
ideia duma cultura indígena, que era fundamentalmente con­
trária às tradições da Igreja do continente, foi o produto
característico da nova cultura cristã da Irlanda e da Ingla--
terra, difundidas no continente graças às missões do sé­
culo YiEII.
A tudo isto, há a acrescentar que Bonifácio, foi o refor­
mador de toda a Igreja franca. A dinastia merovíngia no
declínio, já tinha abandonado a realidade do poder nas rnãos
dos Prefeitos do Palácio; mas se as suas proezas militares
tinham poupado a França da conquista árabe, em 735, nada
tinham feito pela cultura intelectual do país e somente tinham (*)

(*) Cf r. W . Braune, Angelsächisch und Althochdeutsch,


in Beiträge zur Geschichte der deutschen Sprache, puibl, por Paul e
Braune, t. X L III (19 18), pp. 361-445.
precipitado â decadência da igreja franca. Cartes Martel
tinha-se efect ivamente servido das abadias e dos bispados
para recompensar os sens partidários leigos e tinha procedido
à seeularização em massa dos bens do clero. Como Bonifácio
escrevia ao Papa

«A religião é calcada aos pés. Os benefícios são


'dados a leigos ávidos ou a clérigos impudicos e publi­
camos. Nem todos os seus crimes os impedem de chegar
ao sacerdócio. Por fim aumentando em categoria ao
mesmo tempo que aumentam em pecado tornam-se bis­
pos, e dentre estes os que se podem gabar de não serem
nem fornicadores nem adúlteros, são bêbados, caçadores,
soldados, que não receiam derramar o sangue cristão» ( x).

Todavia os sucessores de Calos Martel, Pepino e Oar-


lomano, mostraram-se favoráveis às reformas de S. Bonifácio.
Armado de poderes especiais na sua qualidade de legado da
Santa Sé e de representante pessoal do Papa, empreendeu a
dessecularização da Igreja franca. Numa série de grandes
concílios convocados de 742 a 747, restabeleceu a disciplina
da Igreja franca e pô-la em estreitas relações com a Sé de
Roma. B verdade que não conseguiu realizar todo o seu pro­
grama no que respeita ao estabelecimento dum sistema regular
de apelações das autoridades locais para Roma e ao reconheci­
mento dos direitos do Papado quanto à investidura dos bispos;
mas Pepino, embora reeusando-se a resignar o seu direito de
fiscalização na Igreja franca, ajudou-o a reformar a Igreja
e aceitou o seu ideal de cooperação e de acordo entre o estado
franco e o Papado. A dinastia carolíngáa, chegou mesmo a
patrocinar o movimento de reforma eclesiástica e encontrou
na Igreja e na cultura monástica, as forças que lhe eram ne­
cessárias para levar a bom termo, a sua reorganização política.

O Resumo da Ep. XLIX, dirigida ao papa Zacarias, ed.


Giles, I, lOl-ilOõ.
m á fQRMÂçio DA Eü&OPÁ

Porque foram os monge® anglo-saxõe®, e antes de tudo S. Bo­


nifácio, que realizaram pela primeira vez esta união do espí­
rito de iniciativa germânico e do espírito de ordem romana
que está na origem do desenvolvimento de toda a cultura
medieval.
C A P ÍT U L O XII

A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO
DO OCIDENTE E O RENASCIMENTO
CAROLÍNGIO

importância histórica do período carolíngio:, é muito


maior que os seus bons êxitos materiais poderiam fazer
supor. O pesado império de Carlos Magno não sobreviveu
muito tempo à morte do seu fundador, e nunca chegou a estar
de posse duma organização económica e social dum estado
civilizado. Não obstante, a sua história marea a primeira emer­
gência da cultura europeia, saindo do dilúculo da sua exis­
tência pré-natal para a consciência da vida activa. A té então,
os bárbaros tinham, vivido, passivamente, à custa do capital
da civilização que tinham espoliado; doravante, começam a
colaborar com ela, com urna actividade criadora. O centro
da civilização medieval já não está nas margens do Mediterrâ­
neo mas nos países do norte, entre o Loire e o Weser, no cora­
ção dos territórios francos. Foi lá que se formou a nova cul­
tura, e é lá que é preciso ir procurar a origem das novas con­
dições, que regeram o desenvolvimento da civilização medieval.
'O ideal do Império medieval, a situação política do Papado, a
hegemonia germânica na Itália, a expansão da G-ermânia para
leste, ais instituições fundamentais da sociedade da Idade Mé­
dia, tanto as da Igreja como as do Estado, a incorporação da
tradição clássica na cultura m edieval: outros tantos factos que
se não explicam senão pela história do período carolíngio.
A característica essencial da nova cultura é a sua feição
religiosa. Enquanto o estado mierovíngio era atnes de mais
nada profano, o império carolíngio era teocrátieo; é a expres­
são política duma unidade religiosa. Esta alteração na feição
da monarquia nota-se na forma como a nova dinastia teve
acesso ao trono: Pepino oibtlém do Papa a permissão de arre­
dar a antiga dinastia e recelbeu a unção reail em 752 das mãos
de S. Bonifácio, conform e o rito da coroação, estabelecido sob
a influência da Igreja, na Inglaterra anglo-saxónica e na
Espanha visi-gótica, mas até então desconhecida dos francos.
Desta forma, a legitimação do governo da casa earolíngia, selou
a aliança da monarquia franca e do Papado, para a qual !S. Bo­
nifácio tanto tinha trabalhado, e doravante, o rei franco é
tido como oampiião oficial e protector da Santa Sé. Já a polí­
tica inoclasta dos imperadores isaurianos tinha separado o
(Papado do império bizantino; a destruição, em 751, pelos Loro-
bardos, dos últimos restos do poderio bizantino em Ravena,
forçaram o Papa a procurar auxílio em outra parte. Em 754,
(Estêvão Iil •visitou Pepino em seu próprio reino, e obtém dele
um tratado, que asseguraria, ao Papado o exarcado de Ravena
e as antigas possessões bizantinas de Itália, mais os ducados de
Espoleto e de BeneventO'. Em compensação, Pepino foi nova­
mente consagrado rei dos Francos pelo Papa, que lhe con­
feriu também a dignidade de patrício dos Romanos. Este
acontecimento marea uma data: é até ele que remonta, não
só a 'fundação do Estado Pontifício, que subsistiu até 1870,
roas também o protectorado dos Carolíngios na Itália e o início
da sua missão imperial, quer como chefes, quer como organi­
zadores da cristandade do Ocidente,
Os Carolíngios estavam, naituralmentie, qualificados para
esta missão, como representantes que eram, sob o seu duplo
aspecto, da tradição europeia, Apresentando-se ao mesmo
Á RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 237

tempo, como 'descendentes dos guerreiros francos e dos bispos


ou dos santos galo-romanos, combinavam igual men te, ais faça­
nhas guerreiras dum Carlos Martel e o idealismo religioso dum
Oarlomano, renunciando ao trono para entrar num convento,
ou a sincera devoção dum Pepino à causa da Igreja, Mas é
com o sucessor deste último, Carlos Magno, que se encontra
a manifestação simultânea destes dois elemento®. Ante® de
tudo soldado, os seus talentos militares fizeram dele o maior
conquistador do seu tempo; ma®, apesar da sua crueldade e
duma ambição sem escrúpulos, não era um simples guerreiro
bárbaro: a sua política traduzia um ideal e desígnios de al­
cance universal. As suas conquistas, não eram somente o pro­
duto da política tradicional franca, de expansão militar : eram
também cruzadas para a protecção e a. unificação da cristan­
dade. Com a destruição do reino lombardo, libertou o Palpado
da ameaça que sobre ele pesava, e que, desde há duzentos anos,
comprometia a sua independência e fez entrar a Itália no
império franco. A sua luta internacional contra, os Saxões,
procedeu da vontade de acabar, ao mesmo tempo, com' a inde­
pendência saxónia e com os últimos restos do paganismo ger­
mânico. Pela sua vitória sebre os Avaros em 793-794, destruiu
este império de salteadores asiáticos, que tinha aterrorizado
toda a. Europa oriental, ao mesmo tempo que restabelecia a
autoridade dos cristãos nas províncias danubianas. A sua
íguerra contra os Sarracenos e a criação dais «Marcas» de Es­
panha, foram o primeiro acto da reaeção cristã, contra a vito­
riosa expansão do Islão. Em trinta anos de guerras con­
tínuas, empurrou, até ao Elba, o Mediterrâneo e o baixo Da>-
núbio, as fronteiras da; monanauia franca, e, fez da cristandade
do Ocidente um grande império.
A coroação de Carlos como imperador romano, e a res­
tauração do império do Ocidente, em 800, marcaram a fase
final da reorganização da cristandade ocidental e selaram a
união da monarquia franca e da Igreja romana, preparada por
>S. Bonifácio e Pepino. Bom é contudo qule não nos iludamos:
238 A FORMAÇÃO DA EUROPA

não é o título imperial que explica a existência dum elemento


teocrático no governo de Carlos Magno, como não é também
à tradição do imperialismo romano, que se deve ir buscar o
carácter universal da sua autoridade. Por influência do seu
conselheiro anglo-saxão Alcuíno, tão decisiva como o tinha
sido a de S. B onifácio na época anterior, já anteriormente
se tinha feito uma elevada ideia da sua autoridade, julgando-se
destinado por Deus para guiar o povo cristão. Mas este ideal
fundava-se miais no ensino da Bíblia e de Santo Agostinho, do
que na tradição clássica da Roma imperial. Porque, para
A lcuíno e para os autores dos Libri earolim, Roma, mesmo
sob a forma bizantina, representava sempre, o último dos im­
périos pagãos da profecia, o representante do Reino Terrestre;
,ao passo que o fei dos Francos, estava, investido da digni­
dade mais alta de chefe e guia do povo de Deu®. Carlos era
um novo David, um segundo Josias, e, como este último tinha
restaurado a lei de Deus, assim dava Carlos leis à Igreja e era
detentor das duas espadas; ao mesmo tempo, a da autoridade
espiritual e a da autoridade temporal ( x).
Este ideal teocrático domina, todos os aspectos do go­
verno earoilíngio. O novo Estado franco foi, mais ainda que
o império bizantino, um «Estado-ilgreja», em que o profano e
o religioso se encontram inextrieàvelmente misturados.
O rei é, ao mesmo tempo, o chefe da Igreja e o chefe
do Estado, e a sua legislação, fixa atié abs mais minuciosos
pormenores e com um rigor extremo, o que devem' ser a con­
duta do clero, a doutrina e o ritual. A s Capitulares não tratam
somente da defesa das fronteiras ou da administração econó-

(’ ). Libri carolini, I, 1, 3 ; II, 11, 19'; III, 15, etc. Alcuíno,


Ep. 198, etc. Alcuíno escreve que há no mundo três poderes supre-
Imos — •o Papado em .Roma, o Império em Constantinopla, e a digni­
dade real de C arlos— e que este último é o mais alto, pois que
Carlos foi designado por Cristo, como guia do povo cristão (efr.
Cambridge mediaeval history, Vol. II, p. 617). Em conformidade
com estas ideias, Alcuíno substituiu as palavras imperium christia-
num pelas palavras Romanorum na sua revisão dos livros litúrgicos.
A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 239

mica do reino; ocupam-se também da observância do Domingo,


do canto nas igrejas, das condições de entrada dos noviços nos
mosteiros. 'Carlos Magno chegou atié, uma vez, a pedir a. cada
cura de paróquia, uma resposta escrita, a um questionário,
referente à maneira como se administrava o baptismo; os bis­
pos estavam encarregados de fazer chagar as resposta ao seu
palácio, para que ele pudesse, em pessoa, proceder ao seu exame.
O governo de todo o império era, em larga escala, um
governo eclesiástico, porque o bispo partilhava igualmente
com o conde, a inspecção administrativa dos trezentos condados
em que o império estava dividido, e a administração central,
era na maioria confiada aos clérigos da chancelaria e da
capela rea'1, sendo o arquieapelão, o principal conselheiro do
rei e um dos maiis altos dignitários d o império (*). A fisca­
lização e vigilância da administração local eiram asseguradas,
pela instituição propriamente earolíngia dos misst ãominici,
que percorriam os condados, com o o virão a fazer mais tarde,
os Juízes da Correição na Inglaterra; e, ainda aiqui, as missões
mais importantes eram confiadas' aos bispos e aos abades.
O espírito teoerátieo, que animava o governo earolíngio,
ressalta à evidência, do curioso discurso, pronunciado por um
dos missi de Carlos M agno:

.«Nós fomos aqui enviados, por nosso Senhor o impe­


rador Carlos, para vossa salvação eterna, e exortamo-vos
a que vivais, virtuosamente, segundo a lei de Deus e,
justamente, segundo a lei do mundo. Queremos que
saibais antes de tudo, que deveis crer num só Deus, Pai,
(Filho e Espírito Santo... Amai a Deus, com todo o vosso

O No tempo dos carolíngios, a «capela» tornou-se uma


espécie de Santo Sínodo, sem deixar de desempenhar um papel
importante na administração secular. A «capela» era, originária-
mente, o grupo de eclesiásticos encarregados de vigiar pela capa
de S. Martinho, paládio do reino franco, e, comsequenteimente, não
se a f astavam da corte.
240 A ïORMAÇiO DA EUROPA

coração. Amai os vossos próximos, como a vós mesmos;


dai esmola aos pobres, segundo as vossas possibilidades...»

E, depois de ter enumerado os deveres próprios de cada


classe e de cada género de vida, desde a esposa ou o filho, até
ao monge, ou ao conde, ou ao funcionário público, conclui:

« A Deus nada é oculto. A vida é breve e desco­


nhecido o momento da morte. Estai sempre prepara­
dos» (*).

Este discurso sabe mais a O adi muçulmano, do que a


funcionário romano; o ideal augustiniano da Cidade de Deus,
grosseiramente simplificado, transformou-se em algo de peri­
gosamente análogo a uma espécie de versão cristã do Islão,
com Carlos Magno, como Guia dos Crentes. É a mesma assi­
milação da religião e da política, a mesma tentativa de fo r­
tificar a moralidade por meios legais e de espalhar a fé pela
guerra. Como Alcuíno o lastimava, a fé dos Saxões viu-se
«destruída pelos dízimos», e, os missionários, foram «mais
espoli adores (praerJones) do que pregadores (praedi cal ores)».
A religião de Carlos foi, como o Islão, a religião do sabre;
e, apesar da sua piedade sincera, a sua vida privada asseme­
lhou-se à dum príncipe muçulmano, o que aliás o não impediu
de reivindicar uma autoridade directa sobre a Igreja e até,
de imiscuir-se em matéria; de dogma. 'Segundo os termos da sua
primeira earta a Leão III, ele era «o representante de Deus,
que devia proteger e governar todos os de Deus»; era «senhor
e paá, rei e sacerdote, cihelfe e .guia de todos o® cristãos».
Era, evidentemente, difícil, conciliar estas pretensões
>com a autoridade tradicional do Papado. Carlos considerava
o Papa corno seu capelão, e, escrevia abertamente a Leão III,
que era ao rei que pertencia governar e defender a Igreja,

(’ ) Fustel de Coulanges, Les Transformations de la royauté


franque, p. 588.
A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 241

enquanto o dever do Papa, consistia em rezar. A destruição


do reino lombardo parece, por conseguinte, que só agravou
a situação do P ap a d o.' Deixou Roma isolada entre duas po­
tências im periais—■a monarquia franca e o império bizan­
tin o — e, nem uma nem outra, respeitavam, a sua indepen­
dência.
A s disputas que se seguiram, ao segundo Concílio de
Nieeia, em 787, puseram em relevo os perigos deste estado de
coisas. Este concílio marcava a vitória das forçais aliadas de
Roma e do helenismo, sobre a heresia oriental dos iconoclastas;
mas Carlos Magno, cuja religião tinha algo da simplicidade
militante dos imperadores isaurianos, recusou-se a aceitar-lhe
as decisões. Os francos tinham dificuldade em compreender
a importância, que os povos de tradição helénica ligavam à
questão do culto das imagens. Porque, como o demonstrou
Strzygotvski, embora exagerando as coisas, a arte dos povos
do norte identificava-se, fundamentalmente, com a dos povos
de leste, no seu gosto pela abstracção e no seu desprezo pela
imagem. Além disso, a influência do Antigo Testamento era
tão forte nos círculos carolíngios, que a questão da veneração
das imagens, bem como a da observância do Domingo, foi
objecto duma atenção quase puritana. P or isso, Carlos Magno
em pessoa, entrou em liça contra Bizâncio e contra Roma;
obrigou os seus teólogos a compilarem contra o concílio uma
série de tratados, que foram publicados com. o seu nome — •os
Libri 'carolini; enviou a Roma um embaixador (Missus), com
uma capitular de oitenta e cinco repreensões para esclareci­
mento do Papa; finalmente, em 794, reuniu todos os bispos do
Ocidente, em Franefort, num grande concílio, onde foi conde­
nado o concílio de Nieeia, e em que foram refutada» as dou­
trinas dos veneradores de imagens 0 ) .
A posição do Papa Adriano era delicadíssima, e necessá-(*)

(*) Carlos Magno mantém esta atitude até ao fim da vida,


assim como o seu sucessor Luís o Piedoso, que tentou, em 824-825,
desempenhar o papel de medianeiro entre o império bizantino e o
16
242 A FORMAÇÃO DA EUROPA

rio lhe era contemporizar. Pôs-se de acordo com o império


bizantino, contra o reino franco e a Igreja do Ocidente, em­
bora os bizantinos1 se tivessiem apropriado dos seus patrimó­
nios no Oriente e não tivessem por ele muito mais consideração
do que por um estrangeiro. Se tivesse surgido um cisma entre
o Oriente e o Ocidente, ter-se-ia visto isolado e impotente.
Porque, politicamente, dependia absolutamente dos Francos,
e por morte de Adriano, em 795, o seu sucessor prestou home­
nagem a iCarlos Margno como a seu suserano.
Esta situação anormal acabou, quando o Papa reconhe­
ceu Carlos Magno como imperador romano, e o coroou em Roma,
no Natal de 800. Até que ponto agiu o Papa, nesta conjuntura,
de sua própria iniciativa, e aité que ponto foi ele o instrumento
de ’C arlos Magno e dos seus conselheiros francos, é difícil
dizê-lo. 'O testemunho do biógralfo de Carlos Magno, Éginhard,
é favorável à primeira das hipóteses, mas, pelo menos em
França e na Inglaterra, os historiadores modernos dão-lhe
pouco crédito. É incontestável que, quem nisto ficou a ganhar
foi Carlos Magno, porque a sua autoridade universal no Oci­
dente, recebeu ,a sanção da lei romana e da tradição. Contudo,
para o Papado, o proveito não era menos evidente. A supre­
macia da monarquia franca, que ameaçava sobrepor-se à de
Roma, estava, doravante, associada a Roma, e por conseguinte,
ao Papado. Sob o ponto de vista político, o Papa deixava de
estar repartido entre a fidelidade, que, de jure, devia ao im­
perador de Constantinopla, e a que, de facto, devia ao rei
franco. Como rei, Carlos tinha sido estranho à tradição ro­
mana; corno imperador, ficava em relações jurídicas delfinidas
com o chefe da Igreja. O seu poderio continuava tão form i­
dável como no passado, mais deixava ide ser indefinido e incal­
culável. Além disso, a Igreja não podia passar sem um im­
pério romano; este, era para ela, sinónimo de civilização cristã,

IPapado. Ainda em 870, Hincmar rejeitava os cânones do segundo


concílio de Niceia e considerava o concílio de Francfort como ecu­
ménico e ortodoxo.
A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 243

enquanto continuava a considerar a domínio dos bárbaros,


como o equivalente do paganismo e da guerra, e a tal ponto,
que a liturgia identifica os «inimigos do nome romano», com
os «adversários da tfé católica». Não é pois de todo impossível,
que o Papado, 'em nome do universalismo romano que repre­
sentava, tenha tido, espontaneamente, no ano 800, a ideia de
restaurar o império, como veio a fazê-lo daí a setenta anos, em
benefício de Carlos o Calvo.
Beja corno for, o certo é que a restauração do Im pério
Romano, ou melhor, a fundação dum. novo Império medieval,
teve muito maior importância do ponto de vista religioso e
simbólico do que imediatamente, do ponto de vista político.
Foi indubitavelmente um trunfo diplomático para Carlos.
Magno, nas suais negociações com o Im pério do Oriente, mas
a sua coroação, nada alterou a sua maneira de viver nem a
sua maneira de governar. Nunca pretendeu macaquear um
César romano ou bizantino, como fizeram mais tarde Otão I I I
e outros imperadores da Idade Média: continuou sempre um
franco autêntico, nos seus hábitos, nas suas atitudes, como no
seu ideal político. Chegou mesmo a comprometer toda a sua
obra de unificação imperial, quando, cm 806, partilhou os
vseus territórios entre os herdeiros, conform e o antigo costume
franco, em1vez de adoptar o princípio romano da indivisibi­
lidade do poder soberano; e a mesma tradição, observada pelos
seus sucessores, foi fatal à unidade e continuidade do império
earolíngio.
Mais ainda que aos príncipes e aos estadistas, foi aos
clérigos e aos homens de letras, que, o ideal do Santo Império
Romano foi querido. Para eles, significava o fim dos Séculos
de barbárie e o regresso à ordem civilizada. Para Eginhard,
Carlos é um novo Augusto; julga a sua obra à luz do ideal
de Augusto; e o bispo de Auxerre, Modoin, apresenta o seu
tempo corno o do renascimento da antiguidade clássica.

Rursus in antiquo s mutataque saecula mores;


Aurea Roma iterum rew vatare nascitur orbe.
244 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Efectivamente, embora o saber da época carolíngia nos


pareça bem pequeno, quando o comparamos com o dos grandes
humanistas italianos, assiste-se então a um verdadeiro renas­
cimento, cuja importância para o desenvolvimento da cultura
europeia, não é menor que a do século X Y , aliás mais bri­
lhante. Juntar os elementos dispersos das tradições clássica e
patrística e reorganizá-los de modo a poderem servir de base
a uma nova cultura, tal foi a maior de todas as tarefas levadas
a cabo nos tempos carolíngios. Foi-o, graças à cooperação dos
dois factOres já indicados’: a cultura monástica dos monges
anglo-saxões e dos missionários irlandeses, e o génio de orga­
nização da monarquia franca. No princípio do século V III,
a cultura do continente tinha descido ao mais baixo nível;
a maré só começou a subir graças; à chegada dos missionário®
anglo-saxões. 0 próprio S. Bonifácio era um sábio e um poeta
à maneira de Aldhelm, e a sua actividade reformadora esten­
deu-se à instrução, tal como à disciplina do clero. Deve-se-lhe
um tratado de gramática inspirado ©m Donato, em Charisius
e em Diómedes; e a sua grande fundação, o mosteiro' de Fulda,
foi o centro dum despertar da cultura literária e da caligrafia,
cuja influência se fez sentir nas mais afastadas regiões orien­
tais do reino franco O -
Mas é à influência pessoal de Carlos Magno que este
renascimento deve a extensão que tomou, e nada há qu© mais
claramiente faça sobressair a grandeza do seu carácter, do que
o zelo com que este guerreiro, quase iletrado, se consagrou
em pessoa, à obra de restauração do saber e incremento da
instrução no seu reino. O renascimento cárolíngio, para as
letras como para as artes, teve o seu centro na Escola Palatina,
donde irradiou para todo o império por intermédio dos bis­
pados e dos mosteiros, tais como Fulda, Tours, os dois Oor-

O Os mestres da época carolíngia, exceptuando Alcuíno


e Teodulfo, foram todos monges ou alunos de Fulda: Eginhard,
Rábano Mauro, que foi abade de 822 a 84‘2, e os seus discípulos
'Walafrido Estrabão e iServatus GLupus.
A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 245

íbie, São Gall, Reichenau, Lorsch, iSão Wandrille, Ferrières,


Orleans, Auxerre e Pavia. De todas as regiões dos seus Esta­
dos, mandou Carlos vir, ao mesmo tempo, sábios e teólogos:
da Gália do Sul, Teodulfo e Agobardo; da Itália, Paulo Diá­
cono, Pedro de Pisa e Paulino de Aquileia.; da Irlanda, Cle­
mente e Dungai; do seu próprio território franco, Angilberto
e Eginhardo. Mas, tal como para o movimento anterior de re­
forma eclesiástica, fo i principalmente, às tradições da cultura
anglo-saxónica, que o novo movimento ficou a dever o seu
carácter. Mo França e na Itália, onde o latim era uma língua
viva, tinha ele perdido a sua pureza ao contacto com os falares
bárbaros. Ma Inglaterra era uma língua erudita, fundada no
estudo dois modelos clássicos e cultivada, sob o> impulso do entu­
siasmo pela tradição romana, com que se tinha alimentado a
cultura anglo-saxónica, desde a época de S. W ilfredo e de
Bento Biseop.
Foi o principal representante desta cultura anglo-saxó­
nica, Alcuíno, chelfe da escola de Iorque, quem serviu de •ele­
mento de ligação, entre o que Hailpbten chamou o «pré-renasci­
mento» anglo-saxão e o renascimento carolíngio. Entrou ao ser­
viço de 'Carlos Magno, em 782, como direetor da Escola Palatina,
e exerceu, desde então, uma influência decisiva na política
de Carlos Magno em matéria, de instrução, assim como em
todo o movimento literário. Não era um génio das letras, mas
sobretudo um professor e um gramático que, conformando-se
com. a tradição de Boécio, de Gassiodoro, de Isidoro e de Beda,
fundava o seu ensino, no velho programa clássico de estudos
dais sete artes liberais. Mas era precisamente dum professor
que então se precisava; e, graças ao auxílio prestado por seu
real discípulo, esteve apto a realizar as suas ideias em matéria
de educação — •em escala imperial — e a fazer da Escola Pa­
latina, modelo para a maior parte dos países da Europa oci­
dental. Foi sem dúvida a ele, que Carlos confiou a tarefa de
rever a Bíblia e os cerimoniários, começando assim a reiforma
litúrgica carolíngia, donde deriva a liturgia da Igreja mediei
val. Por influência dos Beneditinos, já a Igreija anglo-saxónica
246 A FOBMAÇAO DA EUROPA

tinha adoptado o rito romano, suplantando o antigo uso gali-


cano, que, com os rito© amibrosâano e moçárabe, partilhava o
resto da Europa ocidental, pondo de parte Roma e os bispados
súbunbicários. Mas a nova liturgia earolíngia conservou, con­
tudo, sinais da influência .gaiieana, e foi por esta via que um
considerável elemento galieano se infiltrou na própria liturgia
romana.
A influência de Alcuíno e da cultura anglo-saxóniea
nota-se ainda na reforma da escrita, nm dos factos mais ca­
racterísticos da época earolíngia. A nova cultura cristã da
Inglaterra e da Irlanda deveu a sua existência à transmissão
e à multiplicação de manuscritos, os quais provocaram um
notável desenvolvimento da caligrafia. F oi por isso, que os
letrados earoiíngios se voltaram para a Inglaterra, de prefe­
rência à própria Itália, em busca dos textos mais correctos,
não só da Bíblia e da liturgia romana, mas também: das obras
dos escritores clássicos; e, letrados ,e copistas angio-saxões ou
irlandeses acorreram em multidão, tanto à Escola Palatina
como às (grandes abadias do continente (*).
O próprio Carlos Magno tomou a peito vigiar pela mul­
tiplicação dos manuscritos e pela utilização dos textos correc­
tos. Entre as instruções as seus missi, encontrasse nina capi­
tular De scribis, ut non vitiose scribani, e queixa-se, frequen­
temente, da confusão introduzida nos ofícios da Igreja, por
culpa de manuscritos corrompidos. Foi em grande parte
devido aos seus .esforços e aos de Alcuíno, que, as várias escri­
tas cursivas ilegíveis da época merovíngia foram- substituídas
por uma nova espécie de escrita, que foi imitada em toda a
Europa ocidental, com exeepção da Espanha, da Irlanda e
da Itália do Sul: esta escrita, que se chama, a «minúscula
earolina», parece ter surgido na abadia de Corbie, na segunda
metade do século VTiIil, c ter atingido o seu ponto de perfeição

O Fui da, por exemplo, foi, em larga medida, uma colónia


anglo-saxóniea, e a sua escola de copistas, uma das mais impor­
tantes do continente, continuou a usar a escrita insular do tipo inglês.
A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE, 247

no famoso, scrvplorium, da abadia d© Aleuíno, em Tours. Deve


ela, seguramente, a sua grande difusão, ao emprego que dela
fizeram Aleuíno e os seus companheiros de trabalho, nas suas
cópias revistais dos livros litúrgicos, executadas por ordem
cio imperador.
iSolb este aspecto, o Renascimento carolíngio foi um digno
precursor do ítéeulo X V . Efe'ctivamen.te, exerceu neste uma
influência directa, porque a «escrita humanista» do Renas­
cimento italiano, outra coisa não é, que a ressurreição da mi­
núscula ©arolina, de que derivam directamente os nossos mo­
dernos caracteres de imprensa, do tipo latino. Além disso,
é aos copistas carolíngiosi que devemos a conservação duma
grande parte da literatura latina, e ainda hoje, a crítica dos
textos clássicos se funda, em larga medida, nos manuscritos
que esta época nos legou.
O Renascimento •carolíngio exerceu igualmente a sua
acção no domínio da arte e da aríquiteietura. A inda aiqu-i, foi
predominante, a influência: cia tradição imperial, e tem-se dito,
que Carlos Magno fundara uma «santa arquiteetnra romana»
como tinha fundado um «Santo Império Romano». Mas a
tradição clássica, desprezada nas letras, estava moribunda em
arte. Os artistas earolíngios sdfreram, por uma parte, a in­
fluência oriental-bizantina ou mesmo oriental-muçulmana, e
por outra, a da arte compósita anglo-eéltica, com o seu gosto
apaixonado pelos ornatos geométricos e elaborados desenhos
em espirais. A famosa igreja do palácio de Carlos Magno,
em Aiquisgrana, estava, construída sobre um plano octogo­
nal, de inspiração profundamente oriental, quer directamente,
quer por intermédio cia igreja de S. Vital de Raveiia, e que
se tornou, para o futuro, o modelo favorito dos arquitectos
earolíngios na Alemanha. Todavia, a arquiteetnra, as co­
lunas, a fonte de bronze e as portas deste monumento têm
algo de clássico, e existem mesmo outras igrejas, como a que
Eginhardo mandou construir .em .Steinbaeh, que mantém o
plano tradicional da basílica romana, com uma ábside e um
248 A FORMAÇÃO DA EUROPA

tecto de vigamento (x) . É delas que deriva o tipo mais tardio


de igreja alemã de 'estilo românico, com uma ábside em cada
extremidade e as suas quatro torres, que se tornou caracterís­
tica da Renânia e da Lombardia.
Foi na miniatura, e na iluminura, que a arte compósita
dos tempos carolíngios obteve os seus melhores resultados.
As numerosas escolas de pintura, que, da Renânia, irradiaram
até aos mosteiros alemães e aité Mote e Tours, Reims e Corbie,
amalgamaram, em proporções diferentes, os elementos orien­
tais e anglo-irlandeses, que já mencionámos. Mas, a sua ca­
racterística principal é a tendência para o regresso à tradição
clássica no tratamento da figura humana e ao emprego da
folha de acanto. Esta tendência neo-clássica é visível, prin­
cipalmente nos manuscritos da chamada Escola Palatina, por
exemplo, nos famosos Evangelhos de .Viena, sobre os quais,
a quando da sua coroação, os últimos imperadores germânicos
tinham o costume de prestar juramento. A influência do Re­
nascimento bizantino evidencia-se aqui com nitidez, sem dú­
vida propagada no norte por escribas vindos da Itália do
S u l (1). A arte earolíngia foi o antepassado directo das notá­
veis escolas de pintura que floresceram na Alemanha, e espe­
cialmente na Renânia, nos séculos X e X I, e exerceu desta
forma uma influência capital na formação do estilo artístico
da Idade Média.
O Renascimento carolíngio atingiu o seu apogeu na
geração, que se seguiu à morte de Carlos Magno, com os alunos
e os sucessores de Alcuíno, homens como Eginhardo, biógrafo
do grande imperador, como Rálbano Mauro de Fulda, e como
os s'eus alunos Walalfrido Estrabão, abade de Reichenau, .e
Servatus Lupus, albade de Ferrières. Eram todos grandes

O Já se tinham construído em Inglaterra, por S. W ilfredo


e S. Bento Biscop, basílicas semelhantes, do tipo normal de igreja
na Gália merovíngia.
C) Gfr. A. Goldschmidt, German Illumination (Carolingian
period), pp. 7-10.
A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 249

letrados, apaixonados pela literatura clássica, e foi, graças a


eles e aos seus iguais, que as 'bibliotecas monásticas e as esco­
las de copistas atingiram o seu pleno desenvolvimento. Os su­
cessores de Carlos Magno, espeeialmente Carlos o Calvo, con­
tinuaram a proteger os estudos, e no reinado deste último, a
Escola Palatina do reino franco do poente ocidental fo i posta
sob a direcção dum mestre irlandês, João Escoto ou Erígena,
que fo i um dos mais originais pensadores da Idade Média.
A sua filosofia, inspirada nos .escritos de Dionísio Areopagita
e, por seu intermédio, nos neoplatónicos, assemelha-se mais à
dos filósofos árabes e judeus dos séculos X e X I, do que à das
escolas do Ocidente; de forma que um sábio fransês, o, falecido
Pierre Duíhem, pôde chegar a denunciar a influência, que as
suas obras exerceram, direc tumente,,, na filosofia do judeu
espanhol Ibn Gebirol.
João Escoto era, além disso, notável pelo seu conheci­
mento do grego, embora, neste ponto, nã'o fosse o único da sua
espécie. Alguns dos seus compatriotas eram seus émulos, espe­
cialmente Sedúlio Escoto, um dos mais sedutores letrados e
poetas do seu século, que ensinou em Liège, em meados do sé­
culo IX . E de resto, o contacto que a Itália conservou com o
mundo bizantino manteve a cultura grega viva até certo ponto,
como o provam as traduções e a obra histórica de Anastácio, o
Bibliotecário, autor das últimas partes do Líber Pontificalis,
o qual foi a figura, central do renascimento efémero da cul­
tura e da actividade literária, de que Roma foi teatro, no
tempo de Nicolau I e de João V I I ! (858-882).
O outro chefe representativo deste movimento de renas­
cimento foi um amigo de Anastácio, João o Diácono, chamado
iHymónides, que pôs ao serviço do Papado uma entusiástica
dedicação pela cultura clássica e por Roma na qualidade de
herdeira da tradição latina. A sua Vida de 8. Gregário, que
ele dedicou ao papa João V III, porque via nele o represen­
tante «do povo de Rómulo», procede em tal medida deste ideal,
que o próprio S. Gregório aparece ai transformado num papa
humanista à maneira dum, Leão X ! «Quase se pode dizer,
250 A FORMAÇÃO DA EUROPA

escreve ele,, que na época de Gregório, a sabedoria construiu


para si um templo em Raima;., e as; sete artes liberais, como
sete colunas de pedra preciosa, sustentaram o vestíbulo da Sé
Apostólica. Nalqueles que serviam, o Rapa, do maior ao mais
pequeno, não se. notava, nem nas falas nem nos costumes, o
menor indício de barbarismo; e o .génio latino, revestido da
toga clássica, fez do palácio latino a sua morada» (x) .
'Dificilmente se poderia conceber uma descrição mais
inepta, da Roma de S. Gregório; mas nada há que melhor
ponha, em relevo o ideal 'humanista do Papado-, considerado
como protector da cultura clássica, ideal que, seis séculos
depois, a Roma do Renascimento devia realizar. Pequeno lugar
havia, todavia, para tal ideal, na Roma do século I X , amea­
çada corno estava pelo exterior pelos Sarracenos, e dilacerada
pelas lutas das facções locais. Depois do assassinato de
João I/Iü, feneceu o renascimento temporário da cultura em
Roma, e a tradição clássica só sobreviveu nas cidades do Sul
—‘ Nápoles, Am alíi, Salerno— onde se refugiaram os últimos
representantes da cultura romana. Foi lá, que, no fim do sé­
culo I X , um cios exilados romanos compôs a curiosa elegia
sobre a decadência de Roma, a qual constitui o mais antigo
exemplo conhecido das invectivas, tão comuns na literatura
medieval, contra a cupidez e a corrupção da sociedade ro­
mana (x). Diferentemente contudo, da maior parte dos poe-*()

O «'Sed togata quiritum more seu traíbeata latinitas suum


Latium in ipso latiali pal-atio singulariter obtinebat» (Johannes
Diaconus, Vita Gregorii, II, 13, 14). -Cfr. J. H. Dudden, Gregory
the Great, I, p. 238.
(*) Nilbilibus quandam fueras construcita patronis;
iSubdita nunc servis heu male Roima ruis.
-Deseruere tui tanto te tempore reges
iCessit et ad G-raecos nomen honosque tuus.
■In te nobilium reetorum nemo remansit
llngenuique tui rura Pelasga colunt.
iVuligus a(b extremis distractum partifous orbis
'Servorum servi nunc tibi sunt domini.

Poetae Aevi Carolini, e'd. Traube, III, jp. I56'5.


A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 251

mias similares, não procede de nenhuma ideia religiosa: a sua


inspiração é totalmente profana, o tom chega a ser anti-clerical,
e participa mais do espírito do Renascimento italiano do slé-
culo X Y , do que do Renascimento carolíngio do norte.
Mas foi somente nas Gidades-Estaãos semi-bizãntinas
da Itália, que uma tradição independente, de cultura profana,
sobreviveu. Em todas as outras partes, quer no centro, quer
no norte da Europa, a alta cultura estava inteiramente con­
finada aos círculos eclesiásticos. A s cidades não tiveram parte
nela. Toda a vida do espírito estava concentrada nas abadias
e nos palácios reais ou episcopais, sendo mesmo estes, uma
espécie de mosteiros. iSem ter desaparecido por completo, o
comércio e a aotividade urbana .já não existiam senão em estado
rudimentar, e quase toda a sociedade se tinha transiformado
numa sociedade agrária. A economia do Império, bem como
a da Igreja, baseava^se na propriedade do solo. A grande
propriedade, ou villa, era organizada como uma pequena so­
ciedade auto-suficiente e administrativa por um intendente,
segundo o antigo sistema de administração rural, sobretudo
derivado dos domínios senatoriais, nos tempos do Baixo-Im­
pério. Os seus produtos podiam alimentar o senhor e o seu
séquito, nas suas visitas periódicas, à maneira das «quintas
duma noite» das cartas saxónicas e normandas, mias a maior
paute das vezes, permitiam prover às necessidades da resi­
dência central do senhor, a qual 'constituía o coroamento do
edifício económico. O palácio carolíngio, como se vê das esca­
vações alemães de Ingelhein e doutras partes, era uma espaçosa
construção, um tanto irregular, destinada a alojar toda a
corte imperial. Com os seus pórticos, as sua® igrejas e as suas
salas, assemelhava-se mais a uma abadia ou ao antigo palácio
pontifício de Latrão, do que a uma residência real do tipo
moderno. Era, sobretudo, economicamente auto-suficiente, e
era rodeado de casas e de Oficinas, reservadas aos artífices e aos
operários cujos mesteres eram necessários à manutenção da
corte: cervejeiros, padeiros, tecelões, fiandeiros, carpinteiros,
operários metalúrgicos.
252 A FORMAÇÃO DA EUROPA

(O mesmo se verificava na abadia carolíngia. Tinha


deixado de ser uma colônia de ascetas economicamente inde­
pendente, transformada num grande c e n tr o . de actividade
social e económica, proprietária de vastos domínios, civilizava
os territórios conquistados e era um foco de vida intensa e
multiforme. Os grandes mosteiros germânicos do período earo-
língio, cuja origem se ligava, duma form a mais ou menos
directa, à oibra de S. Bonifácio, lembravam os antigos estados-
-templos da Ásia Menor e desempenharam um papel seme­
lhante na vida do povo. No século V III, só o mosteiro de Fulda
possuía 15.000 terras de lavoura; um pouco mais tarde, Lorseh
dispunha de 911 propriedades na Renânia. Em Cofbie, além
de trezentos monges, existia uma população completa de artí­
fices e de homens, dependentes da abadia e agrupados à sua
volta. Possuímos na famosa planta de 'Saint-Call, no século I X ,
uma imagem da abadia carolíngia ideal, — espécie de cidade
em miniatura, que encerra dentro dos seus muros igrejas, esco­
las, oficinas, celeiros, hospitais, banhos, moinhos e edifícios
agrícolas.
Nunca será exagerada, a importância que se atribuir à
abadia carolíngia, na história da civilização medieval primi­
tiva. Constituía ela uma instituição, baseada num sistema de
economia puramente agrária, e que, ao mesmo tempo, não
deixava de representar, um nível de cultura espiritual e inte­
lectual inigualado naquela época. A s grandes abadias, como
iSaint-Gall, Reichenau, Fulda e Corbie, não foram somente
os guias intelectuais e religiosos da Europa, mas também os
principais centros do trabalho material e da actividade artís­
tica e industrial. F oi lá que se desenvolveram as tradições
do saber, da literatura, da arte, da arquitectura, da música
e da liturgia, da pintura e da caligrafia, que estão na base
da cultura medieval. Porque esta foi, na origem, essencial­
mente litúrgica e concentrada no ofício divino — opus Dei —
princípio e fim da vida monástica. E no mesmo sentido se
poderia dizer, que as grandes riquezas dos mosteiros, não eram
A RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO DO OCIDENTE 253

simplesmente propriedade do abade e da comunidade, como


à primeira impressão se poderia crer: era o património do
santo, orago da igreja. Todo o território duma abadia e toda a
sua aetividade económica estavam submetidos a um governador
sobrenatural e gomavam duma protecção sobrenatural. Dai
vem, que os servos da Igreja pertencessem: a uma categoria,
diferente daquela em que enfileiravam os servos dos outros
senhores, e que se encontrassem homens livres que faziam o
sacrifício voluntário da sua liberdade, para se tornarem «ho­
mens dos santos», homines sanctorum ou «sainteurs», como
se dizia.
Em tais condições, facilmente se compreende, como é
que os mosteiros puderam desbravar florestas, secar pântanos,
fundar florescentes estabelecimentos, nos sítios outrora deser­
tos, como a ilha de Thorney, descrita por "William de Malmes-
íbury numa passagem célebre, onde se fez uma espécie de pa­
raíso, mo meio de charcos, com os seus arvoredos, os seus pra­
dos, as suas vinhas, os seus pomares : verdadeiro milagre da
natureza e d'a arte.
Finalmente, os mosteiros não eram somente grandes
centros agrícolas, eram também centros comerciais; e, graças
às imunidades de que gozavam, puderam estabelecer mercados,
cunhar moeda, e até desenvolver um sistema de crédito. Sob
uma forma rudimentar, serviram de bancos e de companhias
de seguros. Os proprietários de terras puderam adquirir lá
pensões, ou lá residir como oblatos (*).
Foi por isso, que, a civilização carotíngia pôde sobre­
viver por muito tempo ao próprio império carolíngio e pro­
longou a sua existência nos centros monásticos, como Saint-
-Gaill, berço dos quatro Eikkehard e dos dois Notker, quando
a Europa ocidental se abismnrava na anarquia e na mais pun­
gente miséria que jamais se viu talvez. No decorrer dos cem
anos de trevas, de miséria e de anarquia, que se estendem,

P) Ofr. Berlière, UOrdre monastique, pp. 103-106 e notas,


254 A FORMAÇÃO DA EUROPA

.de 850 a 950, os grandes mosteiros da Europa central, Saint-


-Grall, Reinehenau, 'Corvey, impediram que se extinguisse a
chama da civilização; de tal modo que entre a cultura da
'.época caroilíngia e a do novo império saxónico, não houve
qualquer solução de continuidade O ).

0) Possuímos na famosa Crónica de Saint-Gall de Ekke-


íiard IV (sécutlo X I ) , uma pintura extremamente viva da aetividade
social e intelectual duma grande albadia desta época. Por ela vemos
que, a prosperidade da abadia e da sua escola tinha atingido o seu
fetpogeu, no momento em que (Sífâ-ífòO), no seu conjunto, a Europa
ocidental estava numa situação desesperada.
CAPÍTULO XIII

A ÉPOCA DOS VIKINGS


E A CONVERSÃO DO NORTE

\ g IMOS com o a Europa ocidental realizou pela primeira


* vez a unidade de cultura na época carolíngia. O dua­
lismo intelectual característico do período das invasões acabou
ao levantar-se o império earolíngio. Os bárbaros do Ocidente
aceitam sem reserva o ideal de unidade representado ao mesmo
tempo pelo Império Romano e plela Igreja Católica. De modo
que a nova cultura compreende já todos os elementos que cons­
tituem a civilização europeia: a tradição política do Império
Romano, a tradição religiosa da Igreja Católica, a tradição
intelectual do saber clássico e as tradições nacionais dos povos
bárbaros.
Era todavia uma síntese prematura. As forças da bar­
bárie —•quer dentro quer fora do império oarolíngio — esta­
vam ainda muito vivas para que a assimilação completa fosse
então possível. No próprio seio do mundo oarolíngio, havia
um abismo quase incomensurável entre o humanismo artificial
de homens como Servatus Lupus ou 'Walalfrido Estrabão e a
neutralidade do nobre guerreiro ou do camponês servo; e, no
exterior, havia novos povos ainda não contagiados pela in­
fluência do Cristianismo e da civilização romano-cristã. Daí
resultou que um período de reacção violenta sucedeu à da
256 A FORMAÇÃO DA EUROPA

unidade earolíngia. Uma nova vaga de invasões ■esteve a ponto


de destruir toda a obra de Carlos Magno e dos seus predecesso­
res e de assim reduzir a Europa a um estado de anarquia e
de confusão pior ainda do que depois da queda do Império
(Romano, quatro séculos antes.
O perigo mais sério vinha da Escandinávia, que, desde
a época pré-histórica, tinha constituído um foco de cultura
activa e independente. Sempre com tendências, para formar
um mundo à parte, o centro nórdico de civilização tinha-se,
desde as migrações dos século® I Y e Y , isolado cada vez mais
do resto da Europa. A s causa® deste isolamento continuam
um tanto obscuras, embora se possa sem dúvida atribuí-lo
tem parte ao corte das suas relações comerciais, muito activas sob
o Império Romano. Mais difícil ainda é apresentar os motivos
da alteração súbita que provocou a explosão violenta de ener­
gia agressiva, característica do período das invasões norman-
das. Depois de se terem mantido em. paz durante séculos nos
estreitos limites dos seus territórios em torno do Báltico, os
povos do norte espalharam-se, numa febre de conquista, muito
para além dos limites do mundo europeu. No decorrer dos
séculos I X e X , a sua aetividade propagou-se da América do
Norte ao Mar Cáspio e do Oceano Ártico ao Mediterrâneo.
Atacaram Constantinopla, Pisa, a Pérsia do norte e a Espanha
muçulmana, ao mesmo tempo que as suas colónias e as suas
conquistas abraçavam a Gronelândia, a Islândia, a Rússia,
a Normandia, uma grande parte da Inglaterra., da Irlanda
e da Escócia.
Estes notáveis resultados explicam-se principalmente
pelo estado particular da sociedade e da cultura nórdicas.
Esta última era antiquíssima e sob alguns aspectos rdquinta-
díssima, embora não tivesse, em tempo de paz, ocasião para se
propagar. Durante os séculos de isolamento em que a Escan­
dinávia vivera, tinha-se lá levado a arte e a moral da guerra
a um grau de desenvolvimento sem igual. A guerra não era
simplesmente uma fonte de poderio, de riqueza e de prestígio
social; era também a preocupação dominantei da literatura, da
A ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORTE 257

religião e da arte. À frente do organismo social estava o chefe


guerreiro, ou «king». A sua autoridade era função, menos do
seu poderio territorial do que da sua valentia pessoal e da sua
habilidade para atrair um séquito de guerreiros. Como não
existia ,o direito de primogenitura, todo o homem descendente
de rei ou de chefe tinha a ambição de constituir um hird de
partidários e, à maneira de Beowulf, de criar glória e renome
pela guerra, pelas aventuras e por liberdades sem medida em
benefício dos seus sequazes.

«Beowulf, filho de 'Seyld, era famoso nas terras


escandinavas. A sua fama estendia-se em redor até longe.
'Todo o jovem assim deverá desfazer-se em larguezas e
dar magníficos presentes, mercê das riquezas do seu pai.
Então, quando vier a guerra, companheiros de coração
magnânimo defendê-lo-ão até na velhice, e o povo segui-
-lo-á. Em todas as tribos é fazendo-se amar sempre que
um homem prospera» i1).

"É verdade — como o faz notar com insistência o P r o f.


A. Olrik (2) — que existia um outro elemento na sociedade
nórdica: o trabalho construtivo do camponês e do rico pro­
prietário de terras, «que cultivava o solo e adorava a Deus».
No domínio espiritual, este elemento tinha a sua contrapartida:
a adoração das antigas divindades da terra e das potências
que dão a fertilidade — os Vanir (Frey, Freya e N jordr) —
consideradas como pertencendo a uma raça diferente da de
Ddin, deus dos reis, e do belicoso Aesir (3). E se a monarquia
sueca pôde desde bem cedo e tão solidamente estabelecer o seu
domínio nas terras férteis da Suécia oriental, fo i talvez sim­
plesmente porque estava em relações com o antigo santuário

0) Conforme o Anglo-Saxon Poetry, tradução em inglês


moderno por R. K. Gordon, p. 4.
(5) A . Olrik, Viking Civilization, pp. 102-103.
O Não esqueçamos contudo que, na época dos Vikings,
o deus dos proprietários era o guerreiro Thor e não Frey.
17
258 A FORMAÇÃO DA EUROPA

deste culto em. Upsala. Por toda® as outras partes .contudo,


e principalmente na Noruega, os pequenos reinos de quadro
tribal pareciam ter-se envolvido em guerras perpétuas que só
deixavam sobreviver os mais fortes; e, como se pode ver em
Beoivulf, a sua existência só na autoridade e no prestígio pes­
soal dos seus reis guerreiros repousava.
Nenhum testemunho histórico directo possuímos sobre
o que se passou na Escandinávia na época compreendida entre
as invasões bárbaras e as dos Vikings. Pod com certeza um
período de vida política e militar intensa, durante a qual os
reinos mais fortes firmaram a pouco e pouco a sua autoridade
à custa dos ©eus vizinhos. Assim: os Suecos destruíram, o
reino dos Geatts, e os Dinamarqueses, que já tinham fundado
um reino poderoso no século VOQM sob a direcção do rei Harold
(Dente de guerra), submeteram os Jutos e os Heathobardos.
Na Noruega, devido às características do país, vimos subsis­
tirem durante muito mais tempo duma forma independente
pequenas unidades de quadro tribal. Os testemunhos arqueo­
lógicos provam porém uma evolução análoga nos pequenos
reinos tribais da Noruega oriental — Romarike, Iledcmark,
íRingeriko e V estfold: os grandes túmulos dos reis pré-histó­
ricos em Rakneihauig no Romarike, em 'Svei no Hcdmark e iem
Borre no Vestfold, que pertencem ao número dos m'ais impo­
nentes monumentos europeus da espécie, atestam o progresso
da autoridade real em1força e em prestígio.
É fora de dúvida que estas transformações tiveram uma
certa influência no movimento de migração e dc colonização,
característica da época dos Vikings, e não há motivo para
contestar, no essencial, o valor das tradições irlandesas como
no-las conta, com •todos os seus pormenores, A ri o Sábio, no seu
notável livro sobre a colonização da Irlanda (*). Mas, por

(3) O historiador dos Normandos, Dudo, atribui o êxodo


dos Vikings- a uma crise de superpopulação causada pela prática
da poligamia. A influência desta não é duvidosa, como se vê no
çaso da luta entre Erdk Bioodaxe e os outros filhos de Harold Ca»
A ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORTE 259

outro lado, a Noruega ocidental e sobretudo os reinos ou fede­


rações -aristocráticas do Rogalaud e do Hordaland tinham-se
tornado o centro duma. notável actividade um século antes do
rei Harold Haarfaiger (a) ter destruído o poderio dos1 pe­
quenos chefes de trilhos (ou hersir) ocidentais na batalha de
HaJfrsfjord. Esta região possuía, havia muito, uma tradição
de cultura original que se distinguiu nos séculos V e V I pelo
seu carácter aristocrático e pela sua semelhança flagrante
com a cultura da Inglaterra anglo-saxónica, espeeiaimente
com a dos Midlands. 'Se dermos crédito ao P rof. iShetellig (*),
esta particularidade seria devida aio facto 'de que a Noruega
teria sido tocada pela mesma vaga de invasão germânica de
que resultou a entrada, dos Anglo-iSaxões na Grã-Bretanha,
a dos Francos e a dos Burgúndios na Gália. Estes invasores,
vindos do sul, teriam1conquistado a população indígena e fo r­
mado uma classe 'dirigente que teria conservado os seus anti­
gos ritos fúnebres e mantido relações com os outros povos ger­
mânicos do Ocidente, especialmente com os da Inglaterra anglo-
-saxónica. A Noruega ocidental ter-se-ia pois encontrado em
contacto com as Ilhas Britânicas vários séculos antes da vinda
dos Vikings. Efeetivamente é às suas relações marítimas que
o país deve o s-eu nome de N onvegr, isto é, «o caminho do
norte». De resto é possível que os progressos da arte de nave­
gar, nos séculos V II e V II I tenham permitido que os piratas
estendessem o seu raio de acção. Mas. seja oua.1 for a causa,
é um facto que a partir do final do siéculo V II I as costas das
Ilhas Britânicas foram quase todos os anos visitadas pelas
frotas dos Vikings noruegueses. Os grandes mosteiros das
ilhas e das .castas, que eram os principais focos da civilização
cristã do norte, ofereciam, uma presa fácil e tentadora aos

belo Loiro (a) , mas a poligamia era privilégio da classe dirigente


dos reis e dos grandes entre os quais se recrutavam geralmente
os chefes Vikings.
(a) No original inglês vem Fairhair. (N . do T .).
F) H . S'heteliig, Préhistoire de Norvège, pp. 183-188,
260 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Invasores. Lindisfárnia foi posto <a saque em 793, Jarrow em


794, lon a em 802 e 806.
Mas foi contra a Irlanda que os Vikings do Ocidente
concentraram os seus ataques. Durante a primeira metade
do século I X , foi toda a ilha invadida., de tal forma que, falando
como o cronista irlandês, «já não havia em todo o país uma
parcela de terra sem uma frota». A inda aí, eram as igrejas
e os mosteiros que ofereciam os mais fáceis pontos de aitaqne.
Não admira que a grande época da cultura monástica irlandesa
'acabasse em morticínio e ruína total. 0 grande chefe norue­
guês Turgeis, que, entre 832 e 845, começou a fundar um
autêntico Estado viking na Irlanda, parece ter procurado
destruir a cristandade irlandesa de propósito deliberado.
Expulsou de Armagh o comarba de S. Patrício e fez deste
lugar a capital do seu reino, enquanto que em 'Clonmacnoise,
o grande centro ecleciástico sobre o Shannon, profanava a
igreja de S. Ciaran onde fazia sentar a sua mulher, volva ou
profetiza pagã, no altar à laia de trono. A sua morte foi mais
que uma pequena pausa no desenvolvimento do poderio viking:
em 851 Olavo o Branco, filho dum rei norueguês, vem à Irlanda,
onde fundou o reino de Dublim, mie, sob o domínio de Tvar,
«rei de todos o.s escandinavos da. Irlanda e da Grã-Bretanha»,
e sob o dois seus sucessores, 'sobreviveu até ao século X II.
A Irlanda, onde se iniciara o renascimento da cultura
cristã na Europa ocidental na época pré-carolíngia, foi assim
a primeira a sucumbir à nova invasão bárbara, e arrastou den­
tro em breve consigo a cultura anglo-cristã que com tanto
trabalho criara. Em 835 começou uma nova série de ataiques
a ser levada a cabo pelos Dinamarqueses contra a Inglaterra
setentrional e oriental; acabaram, em 867, por destruir o
reino de Nortúmbria. Durante algum tempo se pôde então
crer que a Inglaterra inteira se tornaria uma coloria viking;
mas se os esforços do rei A lfredo permitiram salvaguardar a
independência do Wessex e da Inglaterra meridional, toda a
Inglaterra setentrional e oriental, ao norte do Tamisa e W at-
ling iStreet, ifoi colonizada pelos Vikings e recebeu o nomie de
A ÉPOCA DOS VIKÍNGS E A CONVERSÃO DO NORTE 261

«Danelaw». Mas os Escandinavos não ficaram por aqui: todas


as costas ocidentais foram incorporadas na zona de influência
irlando-viking, e, ao noroeste da Inglaterra, imensos territórios,
como o Cumberland e o Laike District, foram ocupados por
colonos noruegueses.
Assim se tinha formado, no fim do século I X , um im pé­
rio marítimo norueguês que se estendia da Islanda e das ilhas
Fser (Eer ao mar da Irlanda, englobando todas as ilhas de
menor importância dos mares ocidentais, uma enorme parte da
Irlanda, do norte da Escócia e da Inglaterra.
Entrementes, no continente, os Vikings tinham pro­
gredido duma forma um tanto diferente. Foram os Dinamar­
queses, e não os Noruegueses, que lá desempenharam o papel
essencial, e tiveram de enfrentar não já as forças dispersas
dais tribos celtas mas a formidável potência que constituía
o império carolíngio.
Desde o princípio da época merovíngia, o poderio franco
inspirava sempre aos Dinamarqueses temor e desconfiança,
como se vê na passagem do B.eowulf em que W iglaf conta
«como o rei merovíngio lhe recusou as suas boas graças» desde
o momento em que o Dinamarquês Hygelae invadiu, em 520,
o território franco. A tensão aumentou ainda quando a con­
quista dos países frisões e saxões pelos earolíngios, que punha
>0 seu império em contacto directo com a Dinamarca, pareceu
vir ameaçar a liberdade e a própria existência dos povos pa­
gãos do norte. A guerra rebentou entre eles e os Francos
em 808. Guthred mandou uma frota assolar a Frísia e amea­
çou Aquisgrana. O conflito acabou com o assassinato do rei
dinamarquês em 810; e, durante ois vinte anos seguintes o
império carolíngio só teve que se haver com1 sortidas isoladas
de bandos vikings, provavelmente originários da Noruega e
da Irlanda.
O sucessor de Carlos Magno, Luís o Piedoso, procurou
converter a Escandinávia por meios pacíficos. Cultivou a
amizade de Harold, filho de Guthred, e levou-o finalmente
a receber o baptismo em Mogúncia, (826) com o filho e qua­
262 A FORMAÇÃO DA EUROPA

trocentos dois seus homens. Esta aproximação preparou o


caminho às missões de Ebbo e de Santo Anscário na Dinamarca
e na iSuécia e ao estabelecimento em Hamburgo duma sé me­
tropolitana para os países do norte. Embora Santo Anscário
tenha sido bem recebido pelo rei da Suécia e conseguido fundar
urna igreja em Birka, mesmo no coração da Escandinávia,
e várias outras na Dinamarca, passaram-se século® antes do
seu trabalho produzir frutos.
A deposição de Luís o Piedoso em 833 marcou o início
dum período de rivalidades dinásticas -e.de guerras civis que
deixaram o império .sem defesa contra os seus vizinhos do
norte. Os Dinamarqueses estabeleceram-se na Frísia e na
Holanda e destruíram perto de Utreque o grande porto de
Duurstede que, havia gerações, se tornara o centro das relações
comerciais com -os países setentrionais. A seguir, depois de 840,
o imperador Lotário encorajou os ataques dos Dinamarqueses
contra os territórios dc seu irmão. Desde então as invasões
vikings mudaram de carácter: organizados em mais vasta
escala, com frotas que compreendiam centenas de embarcações,
os Vikings 'assolaram sistemática,mente todos os ano® as pro­
víncias ocidentais do Império. Durante perto de cinquenta
anos a importância das invasões não deixou de ir crescendo:
todas as abadias e cidades do oeste, de Hamburgo a Bordéus,
foram postas a saique, e grandes extensões, especialmente nos
Países-Baixos e no noroeste da França, foram convertidas
em desertos. Os .próprios santos tiveram de abandonar os
seus santuários; e algumas das mais famosas relíquia® do
Ocidente, como o corpo de sS. Martinho ou o de iS. Cuthbert,
•foram levadas durante anos dum refugio para o outro, à me­
dida que avançava a onda invasora.
Os esforços dos soberanos earolíngios — sobretudo os
de 'Carlos o Calvo, cujos Estados suportaram de 843 a 877
toda a violência da tempestade, — foram impotentes para repe­
lir os ataques do inimigo ou para prevenir a dissolução da
sociedade.
Os últimos vinte an os do século viram contudo reeonsti-
À ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORfE 263

tnir-se graduailmente as forças da cristandade. A s vitórias


—'dificilm ente obtidas — do rei A lfredo na Inglaterra em 878
e 885, a defesa de Paris por Eudes (O do), filho de Roberto o
Porte em 885-887, a vitória do rei A rnulío na Flandres em 891,
toarcam o refluxo, da maré. íSe foi impossível expulsar por
completo os invasores, quer da Inglaterra quer da França,
os sucessores do rei A lfredo foram bastante fortes para resta­
belecer a sua, autoridade no Danelaw, e, por outro lado, o tra­
tado concluído entre Carlos o iSimples e Rollo deu uma basie
feudal regular à ocupação vifcing da Normandia, ao mesmo
tempo que facilitou a assimilação dois colonos normandos.
Os cristãos contudo ainda não tinham esperança de paz,
porque os Vikimgs não eram os únicos inimigo® com que tinham
de contar. Enquanto os Yikings assolavam as províncias oci­
dentais, a Itália e as costas do Mediterrâneo' eram presa dos
Sarracenos. Em 827 os emires Aghlaibitas, que governavam
a Tunísia, instalaram-se na Sicília e estenderam-se a pouco
e pouco por toda a ilha. Daí passaram a atacar a Itália do
sul, estafoeleeeraunse em Bari e no Garigliaino e fizeram desta
região o centro da sua aetividade destruidora durante meio
século. 0 Património do Papa foi invadido por bandos muçul­
manos; a própria Roma foi atacada em 846, S. Pedro posto a
saque, e os túmulos dos Apóstolos, com horror do mundo cris­
tão, foram violados.
Entretanto as costas setentrionais do Mediterrâneo esta­
vam expostas aos ataques súbitos dos piratas muçulmanos
vindos de Espanha e das ilhas, Baleares, que acabaram por esta­
belecer uma base de, operações no continente em Fraxinetum,
perto de Baint-Tropez. Durante perto dum século, de 888
a 975, esta fortaleza de piratas foi o flagelo das regiões cir­
cunvizinhas. Os próprio» Alpes não estavam seguros porque
os Sarracenos emboscavam-se nos desfiladeiros suiças e pilha­
vam os peregrinos e os mercados quando estes desciam para
a Itália.
Finalmente, e na mesma altura em quie a pressão do norte
começava a afrouxar, uma nova ameaça vem do Oriente inquie-
264 A FORMAÇÃO DA EUROPA

tar novamente a Europa. A gora eram os Magiares, povo nô­


mada de origem mista, ao mesmo tempo finesa e turea, pare­
cidos com os Búlgaros, e que, na peugada de tantos invasores
provenientes das estepes da Ásia central e da Rússia meridio­
nal, se 'lançaram sobre a planície da Hungria. Destruíram ò
jovem reino cristão dos Eslavos da Morávia e começaram a
fazer grandes incursões, seguindo o exemplo dos Hunos e dos
Ávaros. Assolaram a parte oriental do reino carolíngio, tão
impiedosamente como os Vikings o tinham feito no Ocidente,
e estenderam a pouco e pouco o seu campo de operações, até
ao momento em que encontraram os 'bandos rivais dos Sarra­
cenos na Itália e na Provença,
Assim se encontrou a civilização ocidental, na primeira
metade do século X , à beira da ruína. Nunca ela conhecera
semelhante perigo, mesmo nas piores horas do século V III,
porque nessa altura o ataque provinha somente do Islão, ao
passo que agora vinha de todos os lados. A cristandade tor­
nara-se uma ilha cercada pela cheia devastadora da barbárie
e do Islão. 'Com a agravante de que se, durante as primeiras
invasões bárbaras, tinha por si a sua cultura superior que lhe
dava prestígio mesmo aos olhos dos seus inimigos, agora estava
privada desta vantagem: para o Ocidente o centro de alta
cultura encontrava-se, no século X , na Espanha muçulmana,
e o Islão levava de vencida a cristandade do Ocidente quer
do ponto de vista económico e político, quer do ponto de vista
intelectual. E se alguma actividade comercial existia ainda
na Europa, era devida aos Muçulmanos, que, não satisfeitos
com percorrerem todo o Mediterrâneo, estendiam o seu tráfico
da Ásia central ao Báltico pelo Cáspio, pelo Volga e pelas
colónias comerciais sueco-russas, como Novgorod e Kiev. Estas
relações explicam a existência de tesoiros ocultos constituídos
por moedas orientais, cunhadas em Tachkend, Samarcanda
ou Bagodá, que foram tão comuns na Escandinávia durante
este período, e de que até na Inglaterra se encontram exem­
plos no tesoiro de Goldsborough ou no cofre do exército viking
de Nortúmbria, em 911, que se descobriu há setenta anos perto
A ÉPOCA DOS VIKÍNGS É A CONVERSÃO DO NORTE 265

de Prestem, cheio de moedas e de numerosos objectos decora­


tivos dum desenho oriental. Uma prova mais curiosa ainda do
alcance da influência oriental nesta era é a cruz de bronze
doirado, agora no Museu Britânico, que foi encontrada num
pântano irlandês, com a inscrição Bismillah («em nome de
A llah»), em caracteres cúficos.
A sorte da cristandade dependia menos do seu poder
de resistência e das suas forças militares do que da sua capa­
cidade para assimilar a sociedade pagã do norte. Se os Russos
Varangianos tivessem aceitado a religião dos seus vizinhos
muçulmanos de preferência ao Cristianismo, teria sido bem
diferente a história da Europa. Felizmente para a cristandade,
a cultura da Europa ocidental, embora em farrapos, conser­
vava a sua vitalidade espiritual e mantinha junto dos povos
do norte uma força de atracção superior à do paganismo ou
à do Islão. No fim do século X já o Cristianismo tinha asse­
gurado um firme ponto de apoio nos países setentrionais, e
um representante do espírito viking tão típico como Olavo
Trygvasson não só se tinha convertido mas ele próprio se
pusera também a dilatar a fé à maneira viking O .
O recrudescimento de aetividade dos Yikings e os seus
renovados ataques à Inglaterra e à Irlanda nesta época não
conseguiam impedir que esta evolução prosseguisse. Na Irlanda
a batalha de Clontarf (1014) afastou definitivamente o pe­
rigo duma conquista viking; na Inglaterra, pelo contrário, o
sucesso dos Dinamarqueses só fez apressar o progresso da assi­
milação. Porque Canuto fez da Inglaterra o centro do seu
império e governou segundo as tradições dos seus antecessores
saxões com os quais rivalizava em devoção para com a Igreja
e em benevolência para com os mosteiros. A sua peregrinação
a Roma (1026-1027), onde assistiu à coroação do imperador

C) A Dinamarca já estava convertida ao Cristianismo desde


o reinado de Harold Blaatand (950-986) (a), e este acontecimento
coincide com o estabelecimento dum estado dinamarquês forte
e unificado.
(°) Dente A zul — Bluetooth— diz o original. (N . do T .).
 FORMAÇÃO DA ÉÜROPÀ

Conrado, é um dos mais significativos acontecimentos desita


época: marca a incorporação dos povos d o norte na sociedade
das nações cristãs c a aceitação por eles, do princípio de uni­
dade espiritual; © é isto o que exprim e' a compilação de leis
promulgada por Canuto na Inglaterra, nos últimos anos do
seu remado. Mostra ©la melhor que qualquer outro documento
da época até que ponto estava agora realizada a fusão do ele­
mento profano © do elemento cristão no Estado e como a legis­
lação crista se tornara a estrutura da nova sociedade post-bár-
bara que estava em vias de se constituir na Europa medieval.
As invasões dos Vikings aproveitaram pois, afinal de
contas, à Europa, pois infundiram uma vida nova e uma nova
energia à civilização um tanto anémica, e artificiai d o mundo
carolíngio. Os descendentes dos Vikings fizeram-se campiões
do 'Cristianismo, como se vê sobretudo no caso dos Normandos,
chefes e organizadores do novo movimento de expansão oci­
dental que principia no século X I. No entanto nem tudo foi
ganiho, pois se quebrou a. tradição duma cultura nórdica inde­
pendente. Quer na Normandia, quer na Inglaterra, quer na
/Rússia, os colonos escandinavos adoptairam a'civilização do seu
novo ambiente e fundiram-se a pouco e pouco na sociedade
que tinham conquistado; c a própria Escandinávia perdeu
rapidamente a sua civilização independente para se tornar,
com o decorrer do tempo, uma província exterior da cristan­
dade germânica.
Foi somente nas colónias norueguesas do extremo oci­
dental, entre o mar de Irlanda, a Islândia e a Gronelândia,
que as antigas tradições da época dos Vikings sobreviveram;
e nestes países tornaram-se elas a origem duma cultura bri­
lhante e original de que nenhum equivalente se encontrou na
Europa continental. Mesmo aí contudo a cultura nórdica não
ficou isolada; sofreu o contágio duma outra cultura que, como
a primeira, se tinha até então conservado à margem da prin­
cipal corrente de desenvolvimento do Ocidente — a cultura da
A ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORTÉ 2ôt

Irlanda eéltiea ( 1). Através de toda esta área, os colonos


vikings constituíam a classe dirigente; mas a massa da popu­
lação continuava celta, e eram frequentes as comunicações
entre os dois povos, bem como as uniões matrimoniais. E é por
isso que se assistiu ao desenvolvimento, no século IX , duma
cultura meio .eéltiea, meio nórdica, que reagiu sobre aquelas
donde era proveniente, tanto na Irlanda como na Escandinávia.
A influência por eia. exercida é perceptível 'sobretudo
no século X , no novo estilo do período Jellinge, que conheceu
um notável desenvolvimento da arte decorativa escandinava.
Não está aqui em questão o alcance e influência estrangeira;
mas já não sucede o mesmo no que respeita aio problema da
influência eéltiea na literatura escandinava, assunto de con­
trovérsia desde sempre. E é curioso que são os sábios escan­
dinavos os mais acalorados defensores da tese duma influência
eéltiea:; ao passo que os ingleses que têm escrito sobre o assunto
quase têm feito ponto de honra da reivindicação do carácter
puramente nórdico da literatura escandinava.
Assim Yigiusson atribuía, toda a mais importante poesia
do Eúda a uma escola literária nascida da cultura celto-nór-
diea das ilhas ocidentais; atribuía também algumas das passa­
gens mais características da literatura islandesa — sobretudo
a .própria criação da saga. em prosa — à influência eéltiea e
(’ ) O Prof. Olrik i(ViJcing Civilisation, p. 120) escreve:
« A considerarmos as coisas em conjunto, o que se encontra
de irlandês na cultura dos povos escandinavos é em si mesmo um
•facto que não coincide com. a corrente principal de civilização cristã,
tal como ela atravessa então a Europa. Dir-se-ia mais um enrique­
cimento e uma expansão da civilização da Europa setentrional na
sua form a nativa, do que uma manifestação da tendência nova a
que o mundo obedece em resultado da introdução do Cristianismo.
N a medida em que provocou o desaparecimento duma parte da
antiga herança, esta tendência poderia ter determinado uma brecha
por onde a nova corrente primacial se teria infiltrado; sabe-se de
resto que provieram da Irlanda algumas iniciativas cristas; mas
esta influência irlandesa teve também por resultado, e numa medida
não menor, o nascimento duma civilização especial que impediu um
tanto a rápida absorção do Norte pela Europa cristã».
268 A FORMAÇÃO DA EÜROPA

à existência do elemento eéltico na população. A s teorias de


Vigfusson acerca da origem «ocidental» dos poemas édicos
estão hoje abandonadas pela generalidade, salvo no caso do
Rigsihula que denota com toda a certeza uma forte influência
irlandesa; mas os seus pontos de vista respeitantes à influên­
cia céltica na cultura irlandesa são quase universalmente admi­
tidos ainda e têm a seu favor razões muito fortes. Uma grande
parte dos colonos que povoaram a Islanda vinha das ilhas
meridionais e trouxe consigo mulheres e escravos irlandeses;
alguns deles usaram nomes célticos, e uns poucos (por exemplo
a famosa Auta a Rica, viúva de Olavo o Branco, rei de Dublin,
ou Helge, neto de Uaerbhall, rei de Ossory) eram cristãos (x).
O elemento eéltico da população não era formado só de escra­
vos porque o Lmidnamabok narra como A uta fez doação de
terras em propriedade plena aos seus libertos de raça eéltica,
e as genealogias registadas nesta obra ou nas sagas provam
que algumas das miais nobres famílias da Islanda tinham san­
gue eéltico nas veias (2).
Julgamos pois que não há razão para pormos em dúvida
a presença na cultura islandesa dum elemento celta, que apa­
rece .simultâneamente no carácter do povo ,e na sua produção
literária. Porque os elementos que distinguem a literatura
islandesa da tradição mais antiga, comum aos povos germâ­
nicos, a saber: o desenvolvimento da prosa épica,ou saga, e o
da cuidada poesia rimada dos skalds, são precisamente os que
caracterizam a literatura irlandesa (3).

O iAri escreve de Helge (Landnamabok , III, X I V , 3 ) :


«Tinha uma fé muito híbrida. Depositava a sua confiança
em Cristo e era o Seu nome o que dera à sua morada; nem por
isso deixava de rezar a Thor no decorrer das suas viagens marí­
timas ou nas horas de aflição, ou ainda por tudo o que tinha mais
a peito».
O Ctfr. o Índice do t. I das Origines Islandicae de Vigfusson
<e Paweil. Todos os nomes celtas lá vêm marcados com um asterisco.
(3) 'Cfr. Olrik, Viking Civilisation, pp. 107-120. O autor faz
uma exposição geral da influência irlandesa na literatura escan­
dinava. Considera-a como incontestável no caso da saga e provável
A ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORTE 2 69

Que de resto o génio islandês — como se regista na his­


tória de quase todas as grandes civilizações que o mundo tenha
produzido — se tenha manifestado num solo fertilizado pela
amálgama de duas raças e de duas tradições intelectuais dis­
tintas, isso em nada lhe tira a sua originalidade e o seu valor
criador. Supondo mesmo que a literatura islandesa dera aos
'Deltas o uso da prosa narrativa, nada se poderá conceber de
mais afastado da retórica fantástica e das proesas mágicas
da poesia épica irlandesa do que o realismo sóbrio e a verdade
psicológica das sagas islandesas. A o passo que a primeira
parece conduzir o leitor, para além da Idade Média, até um
mundo que desapareceu, estes últimos, pela sua atitude perante
a vida e a natureza humana, parecem-nos mais modernos do
que qualquer obra da literatura medieval.
Verdade é que as grandes saigas em prosa do século III
— o século de Snorri e de Sturla, — o qual sai do quadro que
aqui nos propusemos, é que representam o fruto desta tradi­
ção, chegada à maturidade; mas elas são o acabamento directo
das tradições da época viking, e sobretudo do período de cem
anos—' de 930 a 1030 — que os próprios islandeses apelidam
de «idade da criação das sagas»: idade de heróis cujos feitos
são contados nas sagas; idade dos Vikings do tipo de E gil
Skalgrimsson, dos homens de leis do tipo de Njal, dos reis
do tipo de Olavo Trygvasson e de Olavo o Santo; idade de
marinheiros e de exploradores do tipo daqueles homens que
colonizaram a Gronelanda e descobriram a América do Norte.
Não é somente nas narrativas tardias das sagas que esta
época sobrevive; é-nos também conhecida pelos poemas con­
temporâneos de skalds como E gil Skailgrimsson e Kormac, e

no que respeita à poesia heróica ulterior e à nova «poesia pala­


ciana» dos skalds. É verdade que a poesia skaldica principiou na
Noruega ocidental; mas, como observa Olrik, «o primeiro skald
que se conhece, Bragi Boddasson, era casado com uma irlandesa,
emprega pelo menos uma palavra irlandesa no seu Ragnars-drapar»,
e o seu sistema de versificação lembra o da poesia irlandesa (ob. eit,
p. 120).
270 A FORMAÇÃO DA EUROPA

pela redacção definitiva dos antigos poemas (heróicos. A Islanda


fez mais que criar a saga: salvaguardou a Edda; e eis por que
lhe devemos quase tudo o que sabemos, no domínio intelectual
ou moral, das crenças e das ideias do tempo dos Vikings. A data
dos poemas édicos foi durante muito tempo assunto de con­
trovérsia; mas do que se não pode duvidar é de que a sua
composição se estendeu por todo o período viking. Efeotiva-
mente há um abismo entre a simplicidade bárbara e crueldade
dos poemas dos primitivos, tais como o Lay de A ü i ou o Lay
de Mamãir, e a sublime visão cósmica da Volospa; mas o
mesmo ideal e a mesma, concepção da realidade se manifestam
em todos eles. A concepção édica da vida é seguramente dura
e bárbara, mas também é heróica, no sentido pleno da palavra.
É mesmo um pouco mais que heróica porque as nobres
viragos e os heróis sedentos de sangue da Edda possuem um
valor espiritual que falta aos heróis do mundo homérico. 0 es­
pírito dos poemas édicos está mais próximo do de Ésquilo que
do de Homero, apesar das diferenças fundamentais na atitude
religiosa adoptada. Os seus heróis afastam-se dos heróis gregos
neste ponto: não buscam o triunfo ou a prosperidade como
fins em si — visam, para além do resultado imediato, uma
prova última que nenhuma relação tem com o sucesso. A der­
rota, e não a vitória, é que é a característica do' herói. Donde
esta atmosfera de fatalismo e de tristeza profunda em que
se movem as personagens do ciclo heróico. 'Semelhantes aos
•Átridas, os Nibelungos estão condenados ao crime e ao desastre
pelas potências do além; mas nada aqui se encontra que lem­
bre a húbris, personificação da confiança presunçosa na pros­
peridade. Quer se trate de Hogni ou de Grunnar, de Hamdis
ou de Sorli, os heróis do Edda têm a consciência de que caval­
gam para a morte, e vão ao encontro do seu destino de olhos
abertos. Não procuram, como os gregos, justificar a forma
como os deuses se comportam para com os homens, e ver nos
seus actos a prova duma justiça exterior ao mundo terrestre.
Os deuses, tal como os homens, são apanhados nas redes do
destino, Efectivamente os deuses d o Edda já não são as inu-
A ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORTE 271

mamas forças naturais divinizadas do antiigo culto escandi­


navo; humanizaram-se, em certo sentido espiritualizaram-se,
■até participarem elas próprias do drama heróico. Presseguem
contra as potências do caos urna guerra sem tréguas, na qual
não estão destinados a vencer. A s suas vidas são ensombradas
pelo conhecimento que têm da catástrofe finail: o Juízo dos
'Deuses, que será no dia em que Odin encontrar o Lobo. É o
único ponto onde aparece uma espécie de teodiceia, expli­
cando-se o proceder aparentemente arbitrário dos deuses para
com os heróis pelo facto de precisarem de aliados humanos,
como se vê, por exemplo, no Eiriksmal, em que Odin permite
■que Erik pereça, antes do seu tempo, «porque não se sabe com
exactidão o momento em que o lobo pardo se instalará no trono
dos Deuses».
Esta visão do mundo — absolutamente única — expri­
me-se à perfeição no grande apocalipse nórdico de Volospa,
provavelmente composto por um poeta islandês precisamente
no fim da época viking. Uma concepção quaise filosófica da
natureza, devida provavelmente ao contacto com a cultura
superior cristã, substitui-se ás crueldades da antiga mitologia
pagã. Especialmente as primeiras linhas (*), que descrevem
o caos original, assemelham-se de modo frisante aos versos em
antigo alto alemão da Oração de W essobrunner:

(«Não havia nem terra, nem céus, nem colinas, nem

p ). E i-los, seguindo a tradução inglesa de Belows:

Outrora era o tempo ©m que Y m ir vivia:


Não havia mar, nem frescas vagas, nem areia;
A terra ainda não existia, nem os céus, lá em cima;
Não havia senão um hiante vácuo e erva em parte nenhuma.

Partido do sul, o sol, irmão da lua,


■Estendeu a sua mão direita pelo bordo do céu;
Ele não sabia onde havia de ser o seu lar,
A lua ignorava o seu poder
iE as estrelas não conheciam os seus lugares.
272 A FORMAÇÃO DA EUROPA

árvores. O sol ainda não brilhava; nem. a lna nem o


mar glorioso espalhavam luz. Então havia o Nada, eterno,
imutável, e um Deus Omnipotente, o mais doce dos
homens» (1).

A descrição final do Juízo dos Deuses parece ter ido


buscar um pouco da sua cor à representação cristã do Juízo
Final. Há contudo neste poema elementos que não pertencem
nem ao mundo do pensamento cristão nem ao da religião es­
candinava da natureza, 0 que sobretudo nos parece estranho
é que apareça no poema de Volospa uma ideia que nos parece
tão difícil e tão escondida como a do eterno Retorno, do renas­
cimento do mundo e da repetição de tudo o que já aconteceu:

Os Aesir encontram-se nas pradarias do Ida:


Tornam a contar os altos feitos de outrora,
Decoram as antigas runes gravadas por Odin.
Estranha maravilha : no relvado, encontram-se
Entre as ervas, muito depois, as peças de oiro,
Os desenhos que possuíram na aurora dos tempos (2).

Mas, quando lemos os poemas édicos, ficamos incessan­


temente surpreendidos até ao fim pela amálgama de pensa­
mento profundo e de mitologia primitiva, de heroismo sublime
e de crueldade bárbara, que parece caracterizar o espírito
viking. É-nos igualmeníe difícil conciliar a brutalidade sel­
vagem de que dá prova o herói da saga de Égil com o intenso
sentimento pessoal que anima o seu grande poema lírico sobre
a morte dos seus filhos, o Sonatorrek, cuja composição, segundo
a saga, lhe teria restituído a vontade de viver quando estava
resolvido a suicidar-se (3). E esta contradição não é menos evi-

(’ ) W . P. Ker, The dark ages, p. 240.


(3) Conforme a tradução inglesa de B. S. Pliilpotts, in
Edda and Saga, p. 137.
(3) Eis (segundo a tradução inglesa de E. R. Eddison, Egils
Saga, 1930, p. 193) as estrofes finais nas quais Egil encontra no
A ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORTE 2 73

dente na história da própria sociedade islandesa, onde se de­


senvolveu uma cultura tão notável no mais rude ambiente
que se possa imaginar.
O facto desta ilha desolada, colonizada por piratas e
aventureiros que se revoltaram contra a sujeição social da
própria Noruega dos Vikings, ter produzido uma cultura re­
quintada e uma literatura que, no seu género, por nenhuma
outra foi ultrapassada na Europa medieval, constitui de facto
um dos milagres da história. É como se a No va-Inglaterra
tivesse dado lugar à literatura elisabetiana, ou o Canadá fran­
cês à do Grand Sièele. Contudo, como disse W . P. Ker, a
anarquia aparente da sociedade islandesa é enganosa. «A colo­
nização da Islanda parece a violenta incursão de chefes em
fúria, caindo desordenadamente sobre um país feio e indefeso,
um país de Cocanha. A verdade é que estes rebeldes e a sua
república tinham mais domínio sobre si, eram mais conscien­
tes dos seus fins, sabiam tornar razoáveis os seus aotos, melhor
que nenhuma outra república da terra, desde a queda de
Atenas» (x) . E ra uma comunidade profundamente aristocrá-

pensamento da sua arte uma compensação das suas desgraças


(os epítetos dos primeiros versos referem-se a Odin, e a irmã do
Lobo é Hei, deusa da m o rte ):

Eu nunca adoro, pois ó irmão de V ilir,


O Deus omnipotente, por meu belprazer
Contudo o amigo de Mimir concedeu-me,
Em compensação da minha desgraça, algo que vale muito mais,
[bem o creio.
Da minha arte fez-me dom o deus dos combates,
O grande inimigo de Fenrir: dádiva toda perfeita!
Fez-me dom deste carácter ao qual devo
Tantos inimigos notórios entre os velhacos.

Hoje tudo é duro de suportar. A irmã legítima do Lobo,


— Tudo, inimigos de meu pai — está nos promontórios.
Mas eu quero ser feliz; e, cheio de boa vontade,
Sem penas, esperarei que Hell venha.
P) W . P. Ker, The dark ages, p. 314.
18
274 A FORMAÇÃO DA EUROPA

tica na qual quase cada família possuía uma longa tradição


social: o isolamento em que se encontrava esta comunidade e
a falta; de riqueza material incitaram-na a tirar intensamente
partido de todas as suas tradições e do® recursos da sua vida
interior.
Esta Última Thule do mundo habitável, esta sociedade
que voluntariamente se tinha exilado e separado da unidade
europeia, e que não Obstante produziu os primeiros e mais
precoces frutos da cultura europeia moderna, quase parece
justificar as mais exageradas reivindicações do separatismo
nacionalista. Todavia as surpreendentes produções do génio
nativo dos países nórdicos não devem fazer-nos esquecer que
a cultura islandeisa,, na sua maturidade, deve características
essenciais ao mundo exterior. A influência do Cristianismo na
M anda não foi na vida do povo um elemento superficial e
exterior, como alguns escritores no® quiseram fazer crer: foi
um dos elementos fundamentais da sua cultura. Ê verdade
que a aceitação do Cristianismo pelo Althing no ano 1000 nos
é apresentado no Islendingabok principalmentie como um negó­
cio trivial e de ordem política, c que os apóstolos da nova fé,
um Thangibrand ou mesmo um Olavo Trygvasson, não foram
precisamente modelos de moralidade evangélica.; mas também
o não foram Constantino, nem Teodósio, nem Carlos Maigno.
A anarquia e o individualismo da sociedade viking eram, bem
entendido, desfavoráveis à estrita observância tanto da, lei
moral como do cerimonial da Igreja, e deivem-sc-lhe estranhos
tipos de cristão®: um Thormod, p or exemplo, o poeta que fez
voto de magro durante nove dias de festa, e de comer carne
durante nove dia® de abstinência, se conseguisse matar o seu
inimigo; e que, ao protesto indignado do chefe d'e cozinha
de Santo Olavo replicou: «Cristo e eu seremos suficientemente
bons amigos, ,se nada mais houver para no® separar que me­
tade duma salsicha» (*)•
Ma® eista é apenas uma das faces do quadro. A conversão

'O i Thormod saga, in Origines Islandicae, II, p. 705.


A ÉPOCA DOS VIKINGS E A CONVERSÃO DO NORTE 275

da Islaiida não foi exclusivamente um aeto político; marcou


a aceitação dum ideal espiritual mais elevado, como no-lo mos­
tra a atitude de Hialte, porta-voz dos cristãos, no Althing
de 1004:

«Os pagãos convocaram uma grande assembleia.


Decidiram nela sacrificar dois homens de cada distrito
e anunciar assim aos deuses pagãos que não consentiriam
que o Cristianismo se difundisse no país. Mas Hialte e
■Gizor reuniram uma outra assembleia, composta de cris­
tãos, e decidiram fazer tantos sacrifícios humanos como
os pagãos. Falaram assim: Os pagãos sacrificam os
'piores dos homens e lançam-nos dos rochedos e das falé­
sias; mas nós, pelo contrário, escolheremos os melhores
dentre nós, e chamaremos a este sacrifício penhor de
vitória para Nosso Senhor Jesus Cristo, ,e comprometer­
-nos-emos a viver melhor e com mais pureza que outrora;
■e, Gizor e eu, oferecer-nos-emos como penhor d,e vitória
do nosso distrito» ( 1).

Eifectivamiente os elementos superiores da cultura islan-


desa, tal como se manifesta em homens como Nial, o pacifi­
cador, Gisli Sursson, ou o autor do poema de Volospa, já tinham
ultrapassado o estádio bárbaro da antiga sociedade palgã que
praticava os sacrifícios humanos, o infanticídio, e que tinha
por dever a vingança pelo sangue. Mas o ideal viking era em
si demasiado destrutivo e demasiado estéril para poder dar
lugar a uma cultura de nível muito elevado. Não adquiriu o
seu alto valor intelectual senão depois de ter aceitado^ a lei
cristã e de se ter disciplinado e requintado por um contacto de
•mais de um século com a civilização cristã. Entre a época dos
•Vikings e a dais guerras e das lutais civis do tempo dos Stur-
lung interpõe-se uma idade de paz e de piedade durante a qual

O' Christne saga, V III, 1, in Origines Islandicae, I,


pp. 400-401.
276 A FORMAÇÃO DA EUROPA

os chefes do povo «ram homens de Igreja, como o grande bispo


Gizor o Branco, S. João de Holar, S. Thorlac de Scalholt.
■Lê-se na Christne gaga: «O bispo Gizor (1082-1118) fez reinar
no país uma tal paz que nenhuma grande luta houve entre os
•chefes, e o porte de armas foi quase abandonado. A maior
parte dos homens de renome era constituída por clérigos e
padres, embora fossem chelfes». Tal era a sociedade que criou
a nova tradição literária. Bom é, além disso, que nos recor­
demos que os seus fundadores, Saemund o Historiador e A ri
o Sábio, ambos eíles eram padres e homens de ciência e que
o primeiro até tinha feito os seus estudos em Paris. É a A ri
que devemos não só o conhecimento que possuímos dos primór­
dios da Islanda e das suas instituições, mas também a criação
do estilo literário que tornou possível a obra de Snorri Stur-
lason e dos grandes autores de sagas.
Mas, tal qual como a do reino anglo-saxão de Nortúm-
bria quatrocentos anos antes, esta cultura cristã de Islanda
era essencialmente uma cultura de transição. É o momento
em que o mundo agonizante do norte bárbaro entra: em con­
tacto efémero com a Europa cristã, agora renovada. Sobrevém
então uma decadência rápida durante a qual os elementos
anárquicos da sociedade nórdica, na falta de um derivativo
numa agressão exterior, se voltam uns contra os outros e a
si mesmo se destroem. Gomo na Noruega, a classe aristocrá­
tica, herdeira e guardiã das antigas tradições, é varrida pelas
guerras civisi e pelas confiscações, e, com o século X II I , o
mundo dos Vikings mergulha no pacífico estagnamento duma
sociedade camponesa empobrecida.
CAPÍTULO XIV

O APARECIMENTO DA UNIDADE
MEDIEVAL

vaiga de invasão bárbara, que caiu sobre a Europa no


século X , parece suficiente só por si, para explicar a
decadência prematura do império carolíngio e a dissolução da
unidade ocidental, de formação recente. Todavia, há a tendên­
cia para lhe exagerar a importância. Está bem longe de ser
a única influência actuante, e é quase certo, que a fortuna
do império carolíngio não teria seguido outro caminho, mesmo
que não tivesse suportado os ataques dos Vikings e dos
Sarracenos.
O estado carolíngio trazia consigo, desde nascença,
os germes da sua ruína. Apesar do seu exterior imponente,
não deixava de ser uma construção heteregénia, desprovida
de todo o princípio interno ou orgânico de unidade. O que
se dizia Im pério Romano, outra coisa não era, com eifeito,
senão a monarquia franca. Incarnava assim dois princípios
contraditórios: por um lado, o universalismo das tradições
romana o cristã; por outro lado, o partieularismo tribal da
Europa bárbara. Também, a despeito do seu nome, pouco se
assemelhava ao Império Roinano ou aos estados civilizados
do antigo mundo mediterrânieo; aproximava-se muito mais
dos impérios bárbaros dos Hunos, dos Avaros e dos Turcos
ocidentais, produtos efémeros da conquista militar, que, no
278 A FORMAÇÃO DA EUROPA

decorrer dos mesmos séculos se sucederam tão rapidamente


nos subúrbios do mundo civilizádo.
O Império Romano dos Carolíngios era um império
romano sem a lei romana, sem as legiões romanas, sem a Cidade,
sem o Senado. Era uma massa informe e não organizada à
qual faltavam os centros nervosos urbanos, e cuja vida econó­
mica, de nenhuma aotividade dava indícios. Os seus funcio­
nários não eram, nem magistrados públicos, nem: empregados
civis exercitados mas simples magnates territoriais e chefes
guerreiros de carácter semi-tribai. Contudo este império
encarava e representava um ideal —•e um ideai que, apesar do
seu revés aparente, se mostrou mais duradoiro, mais resis­
tente, que qualquer outra das realizações militares ou políticas
da época. Sobreviveu, efectivamente, ao Estiado a que dera
origem; sobreviveu, mesmo, durante o período de anarquia
que so seguiu, para se tornar finalmente o princípio da nova
ordem, que apareceu no Ocidente, no século X I.
Os campiÕes deste ideal, eram os grandes homens
de Igreja carolíngios, que desempenharam um papel tão
importante, na administração do império e na orientação da
política imperial, desde Carlos Magno até ao seu neto Carlos
o Calvo.
Enquanto os condes e magnates representavam inte­
resses locais e territoriais, os chefes do partido eclesiástico
pugnavam pelo ideal dum império universal, como encarnação
da cristandade e defensor da fé cristã. Agobardo de Lião
chega até a atacar o princípio, tradicional entre os Francos,
da lei pessoal, e a pedir o estabelecimento duma legislação
cristã universal, para a universal comunidade cristã. Em Jesus
Cristo, diz ele, não há nem Judeus, nem Gentios, nem Bárbaros,
nem Citas, nem Aquitânios, nem Lombardos, nem Burgui-
nhoes, nem Alamanos:

i«íSe Dens sofreu para que fosse suprimido o muro


da separação e da inimizade e para que todos se recon­
ciliassem no Seu Corpo, não será contrária, a esta divina
O APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 279

obra de unidade, a incrível diversidade das leis, que


reina não só em cada região ou em cada cidade, mas
ainda na mesma casa e quase à mesma mesa?» (x).

Assim o imperador deixou de ser o príncipe hereditário


e o chefe de guerra do povo fraineo; era quase um personagem
sacerdotal, ungido pela graça de Deus, para governar o povo
cristão, e guiar e proteger a Igreja, Isto implica, como já
vimos, uma concepção estritamente teocrática da realeza: de
modo que, a exemplo do basileus bizantino, o imperador caro-
Mngio foi considerado como o vigário de Deus e o ehelfe, tanto
da Igreja, como do Estado. Também Sedúlis Scotus (por
volta de 850) escreveu que o imperador foi ordenado por
Deus como seu vigário no governo da Igreja e que recebeu
dele a autoridade sobre as duás ordens, os governantes e os
governados; e Caiihulí chega a dizer que o rei, reina sobre o
seu povo em vez de Deus, a quem ele terá de dar contas no
dia de Juízo final, seguindo-se depois, em segundo lugar, o
bispo, corno representante de Cristo somente (2).
Mas a teocracia earoiíngia diferia da bizantina, por ser
uma teocracia inspirada e fiscalizada pela Igreja, Não existia
no Ocidente- burocracia laica, como no Império do Oriente:
em vez dela, -estava o episcopado, de cujas fileiras era recru­
tada a maioria dos conselheiros e dos ministros do imperador.
Por conseguinte, quando o pulso forte de Carlos Magno dei­
xou do dirigir, o ideal teocrático levou, não à subordinação
da Igreja ao poder secular, mas à exaltação do poder espi­
ritual e à clericalização do império.
Os chefes do partido eclesiástico, eram homens que

O Monumenta Germaniae Histórica, Epistolae, Vol. III


(ed Dümmler), p. 15-9 e segs. Cfr. Hincmar, De raptu vidua-
rum, C, 12.
(2) 'Carlyle, Mediaeval Political Theory in the West, t. I,
pp. 259-2'Gl. Cafclrulf tira com cert'eaa a sua teoria -das Quaestiones
Veteris et Novi Testamenti de Ambrosiaster, 35, (cfr. Carlyle,
ob. cit., t. I, p. 149).
280 A FORMAÇÃO DA EUROPA

tinham desempenhado um papel importante na fundação do


novo império — especial mente os dois sobrinhos de Carlos
Magno, Adalhard e W ala de Corbie e Agobardo de Lião. Du­
rante os primeiros anos do reinado de Luís o Piedoso, apesar
do desvalimento temporário de Adalhard em 814, o seu ideal
é que prevaleceu. Em 816 a coroação de Luís o Piedoso em
Keims, pelo Papa Estêvão, reafirmou de maneira solene o
carácter sagrado do império; e, no ano seguinte, a unidade
ficou assegurada pela Constituição de A ix que abandonava as
antigas regras de sucessão franca, em benefício do princípio
romano da indivisibilidade do poder soberano: Lotário devia
suceder a seu pai, como imperador único, ficando os seus
irmãos, Pepino e Luís, que recebiam, em doação, os reinos da
Aquitânia e da Baviera, rigorosamente subordinados à supre­
macia imperial.
Este acordo, marcou na vida nacional, o triunfo do ideal
religioso de unidade, sobre as forças centrífugas. Por isso,
quando Luís, influenciado pela sua segunda mulher, a impe­
ratriz Judite, tentou abandoná-lo para atribuir um terceiro
reino ao seu filho Carlos, chocou com uma resistência teimosa,
não só por parte de Lotário e dos outros interessados, mas
ainda por parte dos chefes do partido eclesiástico. Pela pri­
meira vez, a Igreja intervinha de forma decisiva na política
europeia, tomando parte nos acontecimentos dramáticos, que
culminaram na deposição provisória de Luís o Piedoso, em 833.
A bem compreensível simpatia dos historiadores para com o
desgraçado Luís, abandonado pelos seus partidários e humi­
lhado pelos seus filhos, à maneira do rei Lear, levou-os a enco­
brir a importância deste episódio; não viram, por consequên­
cia, nos acontecimentos de Colmar — «o campo da mentira» —
senão uma traição vergonhosa, inspirada pelo egoísmo e pela
cobiça. Contudo o movimento de oposição a Luís, não era a
obra exclusiva de prelados e de cortesãos oportunistas; devia
muito à acção dos idealistas e dos reformadores, que pugnavam
pelo que havia de melhor na tradição earolíngia — à acção
de homens como Agoibardo e Wala, Pascásio Radberto o fceó-
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL. 281

logo, Bernardo de Viena, Ebbo de Reims, o apóstolo do norte.


O seu desinteresse e a sua sinceridade, ressaltam à evidência
dos escritos do próprio S. Agobardo e de Pascásdo Radberto.
Este foi testemunha dos acontecimentos, e a sua vida de W ala
— o Epitaphium, Arsenii — é considerado por Manitius, como
uma das mais notáveis obras da época carolíngia 0 ) .
Agobardo representava a tradição ocidental de Tertu-
liano e de Santo Agostinho, na sua mais intransigente
forma ( 2), e é notável, p elo'vigor com que denunciou as supers­
tições populares, como a crença nas feiticeiras e a prática da
ordália, pelo vigor ainda com que reivindicou o® direitos da
Igreja e a supremacia do poder espiritual. "Wala defendia,
igualmente, idênticos princípios, mas com menos intransigência.
Pensava que o império carolíngio devia, acima de tudo, as
suas desgraças, ao movimento crescente de secularização, que
levava o imperador a usurpar os direitos da Igreja, a,o passo
que os bispos se consagravam aos negócios do Estado — o que,
de resto, não o impediu de intervir na questão da sucessão
imperial. Porque a unidade e a paz do Império não eram, a
seus olhos, uma questão de ordem puramente política: revestia
também um aspecto moral, e a Igreja tinha, consequentemente,
o direito e o dever de se pronunciar, mesmo que, fazendo-o,
tivesse de julgar o próprio imperador. Por isso, quando o
papa Gregorio IV, que tinha acompanhado Lotário a Colmar,
hesitava em transgredir a tradição bizantina da prerrogativa
imperial, foram W ala 'e Radberto que o animaram ( 3), recor­
dando-lhe que, como vigário de Deus e de S. Pedro, tinha o
direito de julgar todos os homens e de por nenhum ser jul- (*)

(*) Manitius, Geschichte des lateinischen Literatur des


Mittelalters, t. I, pp. 405-406.
(2) Agobardo foi um dos raros letrados da época que estu­
daram as obras de Tertuliano. Cfr. Manitius, ob. cit., t. I, p. 386.
(3) «Foi por isso que nós lhe apresentámos alguns textos, a
que a autoridade dos santos Padres e dos seus predecessores dá
apoio, textos que ninguém pode contradizer, e donde ressalta que
está no seu poder, isto é, no de Deus e de S. Pedro, ir e enviar repre-
282 A FORMAÇAO DA EUROPA

gado; persuadiram-no, afinai de contas, a desempenhar o pri­


meiro papel nos acontecimentos que acabaram na deposição
do imperador ( x).
Este episódio põe em evidência a pretensão do poder
espiritual a dominar o poder temporal, da Igreja em intervir
nos negócios d o Estado — pretensão nova e cuja evolução
se devia ver nos séculos ulteriores da Idade Média. O que é
significativo, é que ela tenha a sua origem não no próprio
Papado, mas no dero franco, e qne tenha estado intimamente
ligada à nova concepção teocrática do Estado, que o império
carolíngio implicava. O Estado já não era considerado como
distinto da Igreja, com direitos e poderes independentes; con­
sideravam-no como uma parte, ou melhor, como um aspecto
da Igreja, e, retomando os próprios1termos de que se serviram
os bispos numa carta dirigida a Luís o Piedoso em 829, como
que formando com ela «um só corpo regido por duas pessoas
supremas: o rei e o sacerdote». Já não é possível pois ter o
Estado por idêntico ao mundo e por essência não-espiritual:
torna-se, desde então, um órgão do poder espiritual no mundo.
Todavia a antiga concepção do Estado tinha-se tão profunda-
menté impregnado do pensamento cristão — graças sobretudo
aos escritos de Santo Agostinho — que nunca se conseguiu
eliminá-la por completo. E aSsim, durante todo o decorrer
da Idade Média, posto que o Estado tenha feito valer com

sentantes para junto de todos os povos para espalharem a fé cristã,


assegurar a paz das igrejas, pregar o Evangelho, dar testemunho
da verdade, e que nele reside toda a autoridade suprema de <S. Pedro
e o seu vivo poder, pelo iqual é necessário que todos sejam julgados,
não o sendo ele por nenhum» (Radberto, Epitaphium Arsenii, II, 16 ).
O Radberto escreve (ob. cit., II, 18) : « Tune ab eodem
sangto viro (Gregorio) et ab omnibus qui convenerant adjudicatum
est quia imperium tam praeclarum et gloriosum de manu patris ceei-
derat ut Augustus Honorius (Lotário) eum relevarei et aceiperet».
Isto contudo não se refere ao juízo solene, dado pelos bispos em
Soissons, dois meses mais tarde, sob a direcção de Ebbo e' de A go-
bardo. Nesita époica, W a la e o Papa tinham ambos retirado em sinal
de desaprovação.
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 283

insistência o seu direito divino de representante de Deus nos


negócios temporais, os espíritos religiosos tiveram sempre ten­
dência para considerá-lo, como um poder profano e terrestre,
nenhuma parte tomando na herança sagrada da sociedade
espiritual.
Não há dúvida de que, na época carolíngia, enquanto
o Império se conservou unido, se considerou, na verdade, o
imperador, corno o representante do princípio de unidade e
o chefe de toda a sociedade. Mas com a partilha da herança
carolíngia, entre os filhos de Luís, já não foi este o caso: o
episcopado torna-se, doravante, o guardião da unidade impe­
rial, o árbitro entre os príncipes rivais, e o seu juiz. O princi­
pal representante desta tendência, na segunda imetade do sé­
culo I X , foi o jgrande metropolita do relino franco do Ocidente,
Hincmar de Reims, campião temível, simultaneamente, dos
direitos da Igreja, contra o poder secular e da causa da paz
e da unidade no Império. Os próprios governantes admitiam
estes princípios, em especial Carlos o Calvo, que, nos termos
mais categóricos, se reconhece dependente do poder eclesiástico,
no manifesto que publicou em 859, quando se fez uma tenta­
tiva para o depor. Nele invoca o carácter sagrado da autori­
dade que recebeu pelo facto da unção real e acrescenta:

«Depois desta sagração, eu não podia ser deposto


por ninguém, sem pelo menos ser ouvido e julgado pelos
bispos, por cujo ministério eu fui sagrado rei, porque eles
são os tronos de Deus sobre os quais Deus preside e dá
as suas sentenças. Estive sempre disposto a submeter-me
à sua correeção paternal e ao seu juízo repressivo e
■agora me submeto» ( x).

C) Monumento, Germaniae histórica, Secção II, Vol. II,


n.° 300, cap. 3, citado na Political Theory de Carlyle, Vol. I, p. 252.
Foi nesta época, que a cerimónia e o ofício da coroação revestiram
a form a complicada, que foi adoptada em todo o Ocidente na Idade
Média, e que hoje, só na Inglaterra sobrevive. O rito sagrado da
coroação e da unção vem de tempos imemoriais do próximo Oriente;
284 A FORMAÇÃO DA EUROPA

A cerimónia da ■coroação, que até então não tivera senão


nma importância muito secundária, viu-se desta forma promo­
vida, se assim se pode dizer, à categoria de último fundamento
do poder real. Efectivaimente, é ela que fornece a Hincmar
a sua argumentação a favor da supremacia do poder espiritual:
porque, desde que os bispos nomeiem o rei, são-lhe superiores
e a autoridade do rei não é mais que um instrumento nas mãos
da Igreja, que tem por missão guiá-la e dirigi-la para o seu
fim verdadeiro. Mas o ideal de Hincmar dum império teocrá-
tico, fiscalizado por uma oligarquia de metropolitas, implicava
um conflito com a autoridade universal da Santa Sé, por um
lado, e com as reivindicações independentes do episcopado
local, pelo outro.
Foi no interesse deste último, que as Falsas Decretais,
publicadas com o nome de Isidoro Mercator, foram compiladas,
provavelmente em Le Mans ou em qualquer outro lugar da
província de Tours, entre os anos 847 e 852. Constituem a
mais importante das contrafacções da época caroiínigia; mas
não constituem um caso excepcional, porque os letrados desta
época, consaigravam-se à falsificação de documentos eclesiás­
ticos e hagiográficos, com tanto entusiasmo e ausência de escrú­
pulos, como os que deviam pôr os sábios do Renascimento em
imitar as obras da antiguidade clássica. Mantinham, em rela­
ção à história, uma atitude tão radicalmente diferente da
nossa, que nos é tão difícil condená-los corno absolvê-los. Toda­
via, no que respeita às Falsas Decretais, as razoes do falsário
são suficientemente claras. O seu autor queria estabelecer,
por meio de testemunhos circunstanciados e inequívocos, o
direito de os bispos apelarem directamente para Roma, contra
os seus metropolitas e de salvaiguardarem a independência da

mas não se saibe com exactidão, quando é que se espalhou no Oci­


dente. Faz a sua primeira aparição em Espanha, no século V II,
e provàvelmente pela mesma época nas ilhas Britânicas. O mais
antigo cerimonial é o do Pontifical de Egberto, que se data do sé­
culo V III, e foi provàvelmente da Inglaterra, e não da Espanha,
que o rito foi levado para o reino franco em 7'50.
O APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 285

Igreja, em relação a'o poder secular. Mais, qualquer que tenha


sido a sua importância para o desenvolvimento posterior do
direito canónico e para o progresso da centralização eclesiás­
tica da Idade Média, é impossível considerá-las, como directa-
mente responsáveis pelo prestígio crescente do Papado na
Europa ocidental, no .século I X . Foram mais o resultado, do
que a causa duma evolução, que se explica pelas circunstâncias
que acabámos de recordar.
Ainda menos podemos atribuir influência real na polí­
tica dos Papas à outra grande contraí'acção da época:: a Doa­
ção de Constar tino, porque os Papas do século I X parecem
tê-la ignorado, e foi só depois de meados do século X I, que se
serviram dela pela primeira ves, em Roma, em apoio de mais
vastas reivindicações .pontifícias. A inda hoje se não sa.be ao
certo quando, onde e porque é que foi ela composta. O antigo
ponto de vista, segundo o qual se trataria duma contrafacção
elaborada, em Roma, no século VTII (por volta de 175), para
assegurar a independência dos Estados da Igreja, é hoje um
tanto ou quanto discutido, e é possível que seja preciso situar
a feitura do texto, na mesrna época das Falsas Decretais.
A explicação mais plausível, seria talvez aiquela que faz dela,
obra do hábil e sinistro indivíduo que foi Anastásio o Biblio­
tecário; a composição situar-se-ia depois de 848, no tempo
em que Anastásio estava exilado de Roma e intrigava com
Luís II para obter a s'é pontifícia (1) . Um tal acto concilia-se,
com efeito, suficientemente bem, com a ambição desmedida e
a curiosidade histórica deste pouco escrupuloso letrado, em­
bora, à primeira vista, pareça harmonizar-se mal, com o que
se sabe das suas relações com Luís II. Este último contudo,
estava assás disposto a exaltar o Papado quando ele servia

C) Cifr. Schnürer, Kirche und Kultur, V ol. II, pp. 31-34.


Todavia Levison, numa memória intitulada Konstantinische Sehen
lcung und Sylvester Legend (Miscellanea Ehrte, Vol. II, Roma, 1924),
apega-se à primeira data. Diversa opinião é a de Grauert, que atri­
bui a contrafacção a Hilduíno de Sai nt-Denys com a data de 816
(mais ou m enos).
286 A FORMAÇÃO DA EUROPA

os seus interesses, especialmente, contra as pretensões rivais


do império bizantino, e foi ele, realmente, que sustentou a
opinião, adoptaida pelos cronistas ulteriores da Idade Média,
que a dignidade do imperador provém do facto de ser coroado
e consagrado pelo Papa O ).
Assim a hegemonia, que o Papado então adquiriu sobre a
sociedade da Europa ocidental, vem-lhe menos da sua própria
iniciativa do que de fora. 'Como escreve Carlyle a propósito
do desenvolvimento do Poder Temporal: «Quem estudar a
correspondência do® Papas e o Liber pontíf icalis, referentes ao
século V III, notará, julgamos nós, que o governo da respublica
romana no Ocidente, longe de ser procurado pelos Papas, antes
lhes fora imposto. F oi lentamente e contra vontade, que vie­
ram a libertar-ee da autoridade bizantina: porque, afinal de
contas, como membros civilizados do Estado romano, que eram,
preferiam os Bizantinos aos bárbaros» (2).
Da mesma forma, no século IX , o Papado sie submeteu
à fiscalização do império earolíngio e aceitou até a constituição
de 824, que fazia do imperador o senhor do1 Estado romano
e lhe dava, pràticamente, a fiscalização da nomeação do Papa.
Todavia esta aliança com o império earolíngio, aumentou a
importância política do Papado, e à medida que o império s!e
debilitava e se fraecionava, tendia o Papado, a ser cada ve,z
mais, considerado como representante supremo da unidade
ocidental. Assim, durante o curto lapso de tempo, que separa
a época de Carlos Magno e de Lotário — époica de apagamento
político para o P a p a d o—-e a da sua sujeição a facções locais,
no século X , o Papa pareceu substituir a dinastia carolíngia,
como chefe da cristandade do Ocidente. O pontificado de
Nicolau I (858-867) fez adivinhar as conquistas futuras do
Papado medieval. Efectivamente, fez frente à;s maiores per­
sonagens do seu tempo — aos imperadores do Oriente e do
O Na carta de Luís II ao imperador Basílio, cujo texto
nos foi conservado pelo Chronieon Salernitanum. C fr. Carlyle,
ob. cit., Vol. I , p. 284.
(2) Carlyle, Medicaeval political theory, Vol. I, p. 280.
O APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 2 87

Ocidente, a Hincmar, chefe do episcopado franco, e a Fócio,


o mais famoso dos patriarcas bizantinos — e conseguiu afirmar
a -autoridade espiritual e a independência da Santa Sé, mesmo
no momento, em que o imperador Luís II tentou impor a sua
vontade pela forca das armas.
Os sucessores de Nicolau I foram incapazes de conservar
tão elevada posição. Com João V III (827-882), contudo, o
Papado continuou ainda a ser o último baluarte do império
carolíngio, e foi graças à iniciativa pessoal do Papa, que'Carlos
o Calvo (em 874) e Carlos o Cerdo (em 881) foram coroados
imperadores. Mas esta derradeira restauração do império,
pouco mais foi, do que um gesto vazio de sentidoc entre esse
império e o de Carlos Magno, havia tão grande diferença,
como entre o fraco de espírito e epiléptico, Carlos o Gordo,
e o -seu magnífico antepassado. Efeietivamentie, o império já
não representava realidade política alguma, nem já estava
em situação de agir, como guardião da Igreja e da civilização.
«Buscámos a luz, escrevia o Papa, e contemplamos as trevas!
Gritámos por socorro e não ousamos aventurar-nos para fora
dos muros da cidade, onde vingam perseguições intoleráveis,
porque não recebemos auxílio, nem da parte do imperador,
nosso filho espiritual, nem da parte de homem algum de algum
país». Em 882 João V H I morreu às mãos dos seus inimigos,
e Poma tornou-se teatro de cenas carnavalescas, de morticí­
nios e de intrigas, a quie pôs remate a; sinistra farsa de 896,
quando se exumou o cadáver do papa Formoso, a quem o seu
sucessor, Estêvão V I — que foi por fim assassinado alguns
meses mais tarde — fez sofrer um simulacro de julgamento.
O Papado e o Império ajuntaram-se pois, da mesma forma,
num abismo de anarquia ie de barbárie que ameaçou devorar,
completamente, a civilização do Ocidente.
Dificilmente, se exagerariam os horrores e a confusão
da tenebrosa, época, que sucedeu ao colapso da experiência
carolíngia, As achas do Sínodo de Troslé, em 909, dão-nos
uma ideia do desespero, que se apossara dos chefes da Igreja
franca, à vista da ruína da sociedade cristã. Escrevem ©1-es:
288 A FORMAÇÃO DA EUROPA

« A s cidades 'estão despovoadas, os mosteiros arrui­


nados e queimados, o país convertido nnm deserto. Assim
como os primeiros homens viviam sem regras e sem temor
de Dens, abandonados às suas paixões, assim também
hoje toda a gente faz o quie mnito bem lhe apetece, com
desprezo das leis divinas e humanas e dos mandamentos
da Igreja. Os fortes oprimem os fracos; o mundo está
cheio de violência para com os pobres, roubam-se os bens
eclesiásticos. Os homens devoram-se uns aos outros, como
os peixes no mar».

Na realidade, a queda do Império implicou, além do


desaparecimento da unidade, mal acabada, da Europa ociden­
tal, a dissolução da sociedade política e a fragmentação dos
Estados carolíngios, numa multidão de unidades regionais
desorganizadas. O poder caiu nas mãos de quem quer que
fosse, suficientemente forte, para se defender a si próprio e
os que estavam na sua dependência, contra os ataques do exte­
rior. Nisto, é que é preciso ir procurar origem das novas dinas­
tias locais e semi-naeionais, que apareceram, na última parte
do século IX , graças à obra de homens como Radberto o Porte,
fundador da casa do Capetes, o qual lutou, energicamente,
contra os Vikings do Loire e do Sena; como Bruno, duque
da Saxónia, quie defendeu as suas possessões, contra os Dina­
marqueses e os Vendes; ou, ainda, como Boso da Provença,
coroado rei pelos bispos e pelos nobres de Borgonha, em 879,
porque tinham necessidade de um protector, contra os Vikings
do norte e contra os Sarracenos do Mediterrâneo.
Mas a força e a segurança, não fizeram menos falta
a estes reinos, do que aos Estados carolíngios, porque estavam
expostos às mesmas forças centrífugas, que tinham causado
a ruína do Império. No decorrer da segunda metade do sé­
culo I X , os funcionários locais, tinham-sie libertado da fisca­
lização do governo central; os ofícios de conde e de duque,
tornaram-se benefícios hereditários, cujos detentores tinham
usurpado todos os privilégios da realeza. De facto, o conde
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAD 289

era, pràtieamiente, rei do sem pagus ou cantão. A lei da força


e o seu correlativo, a necessidade de protecção, constituíam
o único princípio que regia a nova sociedade. A liberdade
pessoal deixou de ser um privilégio, porque o homiem sem
senhor, era um homem sem protector. A fidelidade e a home­
nagem tornaram-se, assim, p or toda a parte, o princípio das
relações sociais, e a propriedade da terra era acompanhada
duma amálgama de direitos e de oibrigaçÕes, ao mesmo tempo
pessoais, militares e jurídicos. B a mesma forma, as igrejas
e os mosteiro® viram-se constrangidos a procurar protectores,
e estes «advogados»— •Yôgte, avoués— adquiriram, pràtiea-
mente, um direito de fiscalização sobre as terras e os proprie­
tários rurais (tenants) dos seus olientes. Numa palavra, a
autoridade pública do Estado achou-se como que absorvida
no poder territorial local; a autoridade política e a proprie­
dade privada foram, uma e outra, confundidas nas novas relac­
ções estabelecidas pelo feudalismo, e em toda a parte, os direi­
tos de jurisdição ou os deveres militares, deixaram de ser con­
siderados, como revestindo um carácter público para serem,
de certo modo, anexados à terra, como privilégios ou cargos
de «temures» particulares.
Mas, posto que esta evolução para o feudalismo seja
uma característica dominante desta época, a feudalidade do
século X , 'esteve longe de ser o sistema, cuidadosamente, orga­
nizado e harmonioso, que encontramos no Domesãay Book
ou nos A r estos (assizes) de Jerusalém. Foi uma organização
muito mais frouxa e primitiva, uma espécie de compromisso,
entre as forma® dum Estado de base territorial e as condições
duma sociedade de carácter tribal. A centralização adminis­
trativa artificial do período oarolíngio tinha-se desvanecido,
e já não subsistiam senão os elementos brutos duma sociedade
bárbara: os laços da terra e do parentesco, por uma parte,
e por outra parte, os que uniam guerreiros ao seu chefe. Assim,
o que mantinha juntos os elementos da sociedade feudal, era
a lealdade dos guerreiros para com o seu chefe, e não a auto­
ridade pública do Estado; e podemos dizer que a sociedade
19
290 A FORMAÇÃO DA EUROPA

do século X , ora, sob certos aspectos, mais anárquica e bárbara


do que a antiga sociedade tribal, pois que, salivo na Germânia,
onde a velha organização tribal conservava ainda a sua vita­
lidade, a lei tradicional e o espírito da sociedade tribal, tinham
desaparecido, sem que o Estado cristão dispusesse ainda, duma
cultura e duma organização política, suficientemente fortes,
para a substituírem.
‘Seja como for, a Igreja permanecia, e continuava a vivi­
ficar as tradições duma civilização mais elevada. Com tanto
que elas sobrevivessem, a cultura intelectual e a vida cívica
dependiam, estreitamente, da sociedade eclesiástica. Eíectiva-
mente, o Estado tinha perdido todo o contacto com as tradi­
ções urbanas e tornara-se, inteiramiente, rural. Os reis © os
nobres levavam uma existência quase de nômadas, vivendo
dos produtos das .suas terras, e passando, à vez, dum domínio
para o outro. Uma tal sociedade, não precisava de cidades,
salvo para fins puramente militares; as chamadas cidades
que surgiram, nesta época— os «'burgos» da Flandres e da
Alemanha e os burhs da Inglaterra anglo-saxonica — ■eram,
praças fortes e lugares de, refúgio, como o tinham sido as fo r ­
talezas tribais dum período anterior. Por outro lado, as antigas
cidades tinham agora um carácter exclusivamente eclesiástico.
Para falar como o Proif. Pirenne, «um. regime teocrátieo tinha
substituído, completamente, o regime municipal da antigui­
dade». Era o bispo quem as governava, e deviam, a sua impor­
tância à sua catedral, à ,sua corte e aos mosteiros situados den­
tro dos seus muros ou aos que, como .Saint-iGOrmain-des-Prés, em
Paris, e Westminster, em Londres, se achavam na sua vizi­
nhança imediata. Cada uma delas era o centro administrativo
da diocese e dos domínios do bispo ou dos monges, e a sua
população era quase, exclusivamente constituída, pelo clero
e por homens deste dependentes. A única razão de ser do mer­
cado era prover às suas necessidades, e as grandes festas do
calendário eclesiástico, atraíam lá, um grande aglomerado de
O APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 291

população de fora. D e facto, eram mais cidaldes sagradas, do


que organismos políticos ou comerciais ( x).
Da mesma forma, a I,grega, e não o Estado feudal, é que
era o verdadeiro órgão da cultura. O saber, a literatura, a
música e as artes em geral, existiam1 sobretudo na Igreja e
para a Igreja, que representava a tradição latina de cultura
e de ordem, bem como, o ideal moral e espiritual do Cris­
tianismo.
O que é mais, é que todos os serviços sociais que consi­
deramos como funções naturais do Estado, por exemplo a
instrução pública, a assistência aos pobres e aos enfermos, eram
asseguradas, na medida em que o eram, pela Igreja. Na Igreja,
cada um tinha o seu lugar designado e podia reclamar os seus
direitos de cidade, no interior da sociedade espiritual, que ela
constituía, ao passo que, no Estado feudal, o camponês não
tinha nem direitos, nem liberdade e era, geralmente, consi­
derado como propriedade de outrem, como uma parte do gado
(livestock) necessário à exploração do domínio.
É impossível compreender a civilização primitiva da
Idade Média por analogia com o nosso mundo moderno, que
repousa na concepção do Estado soberano, englobando toda a
sociedade num quadro único. Na realidade, coexistiam, na
Europa medieval primitiva, duas sociedades e duas culturas :
dum lado, a sociedade pacífica da Igreja, concentrada nos
mosteiros ou nas cidades episcopais, e que tinha herdado a
tradição da cultura romana, dos últimos tempos; do outro lado,

O «A s cidades estiveram, doravante, exclusivamente su­


bordinadas, aos bispos. Já aí não se encontravam, com efeito, senão
habitantes ligados, mais ou menos directamente, à Ig re ja ... A sua
população compunha-se do clero da igreja catedral e das outras
igrejas, agrupadas à volta daquela; de monges dos mosteiros que,
especialmente, depois do século I X , vieram fixar-se, por vezes em
número considerável, na sede da diocese; de mestres e de estudantes
das escolas eclesiásticas; de servidores, e finalmente, dos operários,
livres ou servos, que eram indispensáveis às necessidades do culto
e às 'da existência diária do aglomerado clerical». H. Pirenne,
Mediaeval Cüies, p. 66.
292 A FORMAÇÃO DA EUROPA

•a sociedade guerreira dos nobres feudais e do seu séquito,


cuja vida se passava em contínuos combates e em guerras pri­
vadas. Embora a sociedade religiosa, cujos dirigentes eram,
muitas vezes, seus parentes, exereesse sobre eles uma influên­
cia pessoal, os feudais pertenciam a um grupo, sociallmente,
muito mais primitivo. Eram os sucessores das antigas aris­
tocracias tribais da Europa bárbara, e a sua ética era a do
guerreiro da tribo. Quando muito, mantinham um mínimo
de ordem soeiail e protegiam os seus súbditos da agressão exte­
rior. Mas, em muitos casos, eram puros bárbaros, rapinantes,
vivendo nas suas fortalezas, segundo um cronista da Idade
Média, «como feras nos seus covis», que .abandonavam para ir
queimar as aldeias dos seus vinzinhos e capturar os viajantes
para obter resgate.
0 problema vital do século X resumia-se, pois, nisto:
o feudalismo bárbaro ia apoderar-se da sociedade pacífica
constituída pela Igreja e absorvê-la? Ou, pelo contrário, che­
garia, esta última a impor o seu ideal e a sua cultura superior
à nobreza feudal, como o tinha anteriormente feito para com
as monarquias bárbarais dos Anglo-Saxões e dos Francos?
À primeira vista, as perspectivas pareciam ainda menos
favoráveis que a seguir às invasões bárbaras, porque a própria
Igreja corria, agora, o perigo de se afundar nas ondas da bar­
bárie e da anarquia feudal. Os príncipes e os nobres aprovei­
tavam-se da queda do Império para despojar as igrejas e as
abadias das riquezas que tinham acumulado na época anterior.
Na Baviera, A rnulfo secularizou em massa as terras da Igreja,
como Carlos Martel fizera no reino franco, no fim da época
mierovíngia, e os mosteiros bávaros perderam a maior parte das
suas possessões 0 ) . No Ocidente, a situação ainda foi pior,
porque os mosteiros quase tinham sido arruinados pelas des-(*)

(*) A abadia de Tegernsee perdeu nada menos que 11.746


mansus (a) das 11.860 que possuía. (Hanck, Kirchengschichte Deu­
tschlands, Vol. I I , p. 9, nota 3 ).
(a) «iManse» ou «mense»: renda abaeiaü. Termo .sem corres­
pondente em português. N. do T.
í> APARECIMENTO DÀ ÜNTDADE MEDIEVAL 293

vastaeões dos Normamdos, e a feudalização do reino franco do


Ocidente deixou a Igreja à mercê da nova aristocracia militar,
que empregou os seus recursos para a criação de novos feudos
para os seus partidários. Huigo Oapeto era abade laico de
muitas das mais ricas abadias do seu reim>, e cada potentado
local seguia a mesma política, embora em menor escala.
O desenvolvimento do feudalismo reduziu, assim, a
Igreja a um estado de fraqueza e de desordem ainda maior
do que no tempo da decadência merovíngia, antes da vinda
de S. Bonifácio. Os bispos © os abades— ' tal qual como os
outros feudatários — recebiam: a investidura do príncipe e
detinham os seus benefícios a título de «feudos espirituais»,
em recompensa dos seus serviços militares. Os mais altos car­
gos tinham-se tornado prerrogativa dos membros da aristo­
cracia feudal, muitos dos quais — por exemplo Archimbald,
arcebispo de Sons no século X — desperdiçavam as rendas
das suas sés com amantes e companheiros de folia. Mesmo
nos mosteiros, já se não observava estritamiente a regra da
castidade. Quanto aos membros do clero secular, viviam muitos
públicameintJe em estado marital e transmitiam os seius curatos
aos filho®.
O pior era que a Igreja já não podia encontrar em. Roma
uma direcção moral © um guia espiritual, porque o mal que
corroía as igrejas locais não poupara o próprio Papado. A Santa
Sé tornara-se o joguete duma oligarquia corrompida e turbu­
lenta; no governo de Teofiiato e das mulheres da sua casa —
sobretudo no da grande Marózia, a Senadora, amante, mãe e
matadora de Papas, — afundou-se na mais baixa degradação.
A situação não é, contudo, tão desesperada, como o
poderia fazer crer o espectáculo de todos estes escândalos e
de todos estes abusos. Eram, por assim dizer, as dores anun­
ciadoras do parto da nova sociedade; porque foi das trevas
e da confusão do século X que nasceram os novo® povos da
Europa cristã. A tradição carolíngia não estava completa-
mente esquecida: onde quer que se encontrasse uma força
construtiva em estado de dela se tirar partido, a sua aplica­
294 A FORMAÇÃO DA EUROPA

ção tornava-se possível aos agrupamentos regionais ou nacio­


nais, e as forças de ordem encontravam um ponto de reunião
e um princípio de governo no ideal carolíngio de realeza cristã.
A realeza era a única instituição comum às duas socie­
dades e que incarnava as tradições das duas culturas. Porque,
ao mesmo tempo que sucessor em linha recta do pequeno chefe'
de tribo e chefe de guerra da sociedade feudal, o rei era, tam­
bém, o herdeiro da tradição earolíngia da monarquia teocrá-
tica, e possuía um carácter quase sacerdotal, devido aos ritos
sagrados da coroação e da unção. E ra o aliado natural da
Igreja, e era, principalmente, sobre os bispos e os mosteiros,
que eie fazia repousar o seu poder. A este duplo carácter da
realeza medieval correspondem dois tipos de governantes, niti­
damente diferenciados: há os reis-guerreiros, como Sweyn
da Dinamarca ou Harold Hadrada que, embora professando
teoricamente o Cristianismo, seguem em tudo as tradições do
guerreiro bárbaro; e há os reis-pacíficos e santos, como Ven-
ceslau da Boémia, Eduardo o Confessor e o rei de França
Roberto II, que são, inteiramente, os servos da sociedade espi­
ritual e vivem como monges coroados. Mas é raro encontrar,
isolado, um ou outro destes elementos: o tipo normal da rea­
leza medieval reune estes dois caracteres. É o caso dos monarcas
como Santo Olavo, Cainuto, os imperadores saxões e os grandes
reis de Wessex.
Estes últimos têm uma importância especialíssima, pois
foram os primeiros a iempreender, conforme o espírito da tra­
dição earolíngia, a tarefa de reconstrução nacional, e a inau­
gurar a aliança entre a monarquia e a Igreja nacionais, que é
a feição característica da época. Tão completa foi a fusão no
"Wessex, que os sínodos e os concílios da Igreja anglo-saxónica
se confundiram com ais assembleias civis, e que a legislação
eclesiástica dos séculos X e X I é obra do rei e do seu conselho,
dum conselho, diga-se a verdade, em que os homens de Igreja
ocupavam os primeiros lugares, Da mesma forma, foi o rei
que tomou a iniciativa de reformar a Igreja e de restaurar a
vida monástica, que as invasões dinamarquesas quase tinham
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 295

aniquilado. É, além disso, no Wessex que podemos, muito


mais distintaimente que em qualquer outra parte, mostrar o
desenvolvimento duma nova cultura nacional, tendo por base
a tradição carolínigia, e que se desenvolveu soíb o patrocínio da
monarquia nacional. A s notáveis traduções do rei A lfredo,
de S. Gregório, de Orósio, de Boéeio e de Beda que ele levou
a caibo, com a ajuda de sábios estrangeiros, «u meu arcebispo
Plegmund, o meu bispo Asser e os meus padres Grimbald
e J o ã o » — como escrevia o rei — representam, efectivamente,
uma tentativa bem ordenada para adaptar às necessidades da
nova cultura nacional a cultura cristã clássica, até então reser­
vada ao mundo internacional de cultura latina 0 ) . E é o
que ele declara no seu prefácio da tradução da Pastorális cura,
de S. Gregário (o H erd B o o k ) :

'«(Parece-me bem traduzir também nesta língua, que


todos nós podemos compreender, alguns dos livros que
todos os homens deviam conhecer, e proceder de form a
que — na medida em que o pudermos, com a aguda de
Deus, ,e só no caso de termos paz — toda a juventude de
Inglaterra, todos os filhos de homens livres que tenham
meios, se possam dedicar ao seu estudo antes de estarem
aptos para outras ocupações, até que possam' ler bem a
escrita inglesa; e que se instruam na língua latina aqueles
que desejarem acabar a educação e de quem se queira que
cheguem a uma posição mais elevada».

A obra de restauração, inaugurada por A lfredo e seus


sucessores no reino anglo-saxão, foi prosseguida em maior
-------------------- -
5

O U m século depois, na Germânia, Notker Laibeo ( + 1022),


famoso mestre da eslcola de St. Gatl, prestava um serviço parecido.
Traduziu as obras de Boéeio (entre elas a sua versão das Categorias
de Aristóteles), Marti anus íCalpella, e vários outros livros. Mas
Notker foi mais ou menos o único da sua espécie, porque o renas­
cimento dos estudos clássicos no continente confirmou a supremacia
do latim, e a influência anglo-saxónica, que sempre fora favorável
à língua vulgar, foi em vão.
296 À FORMAÇÃO DA EUROPA

escala e com resultados mais duradoiros pelos reis saxões na


Germânia. É possível que se tenham inspirado nos seus pre­
decessores ingleses, porque Henrique o Paissarinheiro aliou-se
à casa de A lfredo pelo casamento do seu filho Otão I com a
filha de Atbelstan; e o® historiadores discerniram, em certos
pontos da sua política, a influência dos precedentes anglo-
saxãos 0 ) . Contudo, o próprio Henrique não era senão um
bárbaro iletrado que nenhum caso fazia da cultura, pouco
favor testemunhava à Igreja e governava a Germânia como
chefe de guerra duma simples confederação de tribos. O seu
poder repousava, não nos direitos universais da monarquia
carolíngia, mas na fidelidade dos seus companheiro® saxões,
que conservavam a sua antiga organização tribal e a sua tra**-
dição, sob uma forma mais pura que nenhum dos outros povos
da Germânia. Pode-se verificar na História dos Saxões de
'Widuking, que um hábito de patriotismo, puramente tribal,
anima dum extremo aio outro, a força deste apego à tribo,
embora alquela seja obra dum monge de Corvey, quartel gene­
ral da cultura eclesiástica da região, e tenha sido escrita depois
do restabelecimento do Império (1).
O filho de Henrique, Otão I, foi o primeiro a reatar a
tradição carolíngia, infundindo-lhe o patriotismo tribal do
povo saxão. Diferentemenfe do seu pai, não lhe bastou ser o
eleito dos magnate® laicos: teve o cuidado de se fazer coroar
e ungir em Aquisgrana, a antiga capital do Império, segundo
os ritos eclesiásticos solenes, e inaugurou uma política de e®-

(*) Sobretudo no que respeita à semelhança entre as suas


prescrições relativas aos «burgs» e fortalezas da marca de Wende
e a legislação de Eduardo o Antigo referente aos burhs do Danelaw.
Ofr. Cambridge Medieval History, Vol. III, p. 183 e nota.
(*) O Waltharius de Ekkelhard I, de Saint-'Gall (por 920-
-930)— notável tentativa de adaptação do molde clássico da epo­
peia latina à tradição épica nacional — permite apanhar ao vivo
esta assimilação dos elementos bárbaros pela cultura monástica
dominante. Mas aqui a influência das ideias cristãs é mais forte
e faz prever o aparedimenito das novas literaturas da cristandade
medieval.
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 29?

treita cooperação com a Igreja, que o levou a fazer do episco­


pado o fundamento mais sólido do poder real. Mais ainda que
no império caralíngio, o episcopado to m a te um dos órgãos
do governo civil. Porque o bispo tinha deixado de ser o coadju­
tor e o guardião do conde: tinha lançado mão das funções e
privilégios deste e tinha começado a tomar o duplo carácter
do príncipe-bispo medieval, chefe de principado eclesiástico'.
Bem entendido que este sistema era incompatível com a inde­
pendência espiritual da Igreja e com o princípio canónico da
eleição episcopal, pois que era essencial para o rei reservar-se
a nomeação dois bispos, uma vez que estes se tinham tornado
os únicos agentes da administração real com que se podia
contar. O ducado de Lorena, por exemplo, estava na posse
do arcebispo de Colónia Bruno, irmão de Otão I, e eram os
bispos que refreavam as desordens da nobreza feudal e man­
tinham a autoridade real em todo o território.
Contudo, esta fusão do poder real e da Igreja, não levou
somente à secularização desta; fez sair a monarquia do círculo
restrito da política tribal e pô-la em contacto com a sociedade
universal da cristandade do Ocidente. E como, apesar da sua
fraqueza e do seu aviltamento, o Papado continuava a chefiar
a Igreja, o príncipe, para assegurar, mesmo nos seus domínios,
a fiscalização da Igreja, Viu-se obrigado a cooperar com Roma.
De resto, a força d o precedente e da tradição carolíngia arras­
tava o novo Reino, inevitavelmente, para Roma e para a coroa
imperial.
Os historiadores nacionalistas modernos podem conside­
rar a restauração do Império como um sacrifício lamentável
dos verdadeiros interesses do reino germânico a um ideal irrea­
lizável. Mas para os homens de estado da época, a cristandade
era uma realidade tão palpável como a Germânia, e a restau­
ração da monarquia .carolíngia na Germânia teve como pro­
longamento natural a restauração do Império cristão. É ver­
dade que um intervalo de trinta e sete anos se tinha passado
desde a morte do último imperador nominal; mas, durante
a maior parte deste tempo, estava Roma nas mãos de Alberico,
298 A FORMAÇÃO DA EUROPA

o homem mais famoso da casa de Teofilaito, que fora suficien­


temente forte para conservar os possíveis rivais a distância
e designar uma sucessão de Papas que não eram indignos1dos
seu ofício. Pelo contrário, o seu filho, o infame papa João X II ,
incapaz de desempenhar um semelhante papel, foi levado a
seguir o exemplo dos papas do Século V III, chamando o rei
germânico eim seu auxílio, contra o reino de Itália.
Por consequência, Otão I não se lançava numa aventura
nova e não fazia miais que caminhar por atalhos 'batidos,
quando, a exemplo de tantos príncipes que o> precederam, e
respondendo ao apelo do Papa, entrava na Itália em 961 para
receber a coroa imperial. Nem por isso a sua chegada a Roma
deixou de produzir uma alteração profunda na situação euro­
peia. Pôs, uma vez mais, a Europa do norte em contacto com
o mundo civilizado mediterrânico, de que há tanto tempo esti­
vera separada. Porque a Itália, apesar das suas desordens
políticas, entrava finalmente num período de renascimento
económico e intelectual. A s ricas cidades comerciais do sul
e do A d riá tico—'Nápoles, Amalfi, Salerno, Ancona e V e­
neza — mantinham estreitais relações com os povos mais adian­
tados do Mediterrâneo oriental!; a sua cultura era, em grande
parte, bizantina; e a sua influência tinha um efeito estimu­
lador na vida económica e social do resto da península, espe­
cialmente nas cidades da planície lomíbarda e da Romauha.
Este despertar da cultura italiana foi acompanhado
dum renascimento do sentimento nacional e das antigas tra­
dições cívicas. 'O esplendor da jovem Veneza começava .a bri­
lhar no tempo do primeiro dos seus grandes doges, Pedro
Orseolo II; e até príncipes como Alberico ou Creseentius pro­
curavam reviver a memória da passada grandeza de Roma.
As antigas tradições dc cultura profana sobreviviam nas
cidades da Itália. No Ocidente eram as únicas que possuíam
escolas laicas, onde os gramáticos conservavam, bem vivo, o
antigo ideal das escolas clássicas dos retóricos. Formavam
letrados como Liudprand de Cremona, Leão de Vercelli, Es­
têvão e Gunzo de Novara, que rivalizavam em saber com os
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 299

seus émulos dos mosteiros do norte e que em muito os ultra­


passavam, pela vivacidade do seu espírito e pela subtileza da
sua linguagem, como podemos verificar na leitura da admi­
rável epístola em que GTunzo sobrecarrega com uma tempestade
de erudição e de injúrias um desgraçado monge de Saint-G-all,
que se aventurara a criticar a sua gramática, A persistência
de influências clássicas ,e até pagãs manifesta-se, também, na
curiosa história de Vilgard, gramático de Ravena, vítima da
sua confiança na inspiração literal dos poetas sagrados, Horá-
cio, Vergílio e Juvenal; manifesta-se duma form a mais sedu­
tora no encantador poemazinho: O admirábüe Veneris idolum,
composto por um clérigo desconhecido, de Verona. :Com cer­
teza que não devemos ver nisto mais que um dos aspectos da
cultura italiana, onde não faltavam os elementos religiosos.
O poeta que acabo de mencionar seria, também, na opinião de
Manitius, o autor de O Roma nobilis, expressão clássica do
ideal cristão de Roma, que inspirou igualmente o autor de
Sancta Maria quid estf — notável poema acerca da procissão
da festa da Assunção, quase o único produto literário da cul­
tura romana, do tempo de Otão IIT, que chegou até nós 0 ) .
Todavia, como no século X V , o renascimento da cultura
italiana e a sua completa independência em relação à dos paí­
ses do norte, tiveram como corolário incontestável o declínio
da religião e a desordem moral. A Santa Sé, vítima do nepo­
tismo e das facções políticas, perdeu a sua posição interna­
cional na cristandade; e a sua situação foi tanto mais arris­
cada quanto é verdade que, ao norte dos Alpes, a Igreja, con­
quistada pelo novo ideal moral que inspirava o movimento
de reforma monástica, começava, a pôr a ordem em casa. No
concílio de Saint-Basle de Verzy, em 931, os bispos franceses
declararam, ábertamemte, que temiam a bancarrota do Pa­
pado. «É a tais monstros (um papa João X I I ou um Boni­
fácio V ilI), mergulhados na ignomínia e desprovidos de toda

O Publicado em Novati, Uinflusso dei pensiero latino sopra


la civiltà italiana dei Medio Evo, ipp. 127-13 0.
300 A fcORMAÇÍO D A E Ü R O M

a ciência humana ou divina, que os inumeráveis sacerdotes


de Deus, espalhados através do mundo e notáveis pelo seu
safoer e pelas suas virtudes, devem leigalmente estar submeti­
dos?» pergunta o seu portai-voz Amoral de Orleães. «Assis­
timos, parece, à vinda do Anticristo, porque eis a ruína de
que faila o Apóstolo, não a ruína das nações, mas a das
Igrejas» O ).
Se a Itália tivesse ficado isolada da Europa setentrional,
Roma teria naturaimente gravitado à volta do império bizan­
tino, como paira tal tendia, deliberadamente, a política seguida
por Alberico e pelos outros chefes da aristocracia romana, e
teria havido, realmente perigo de se ver, no século X I, produ­
zir-se um cisma, não entre Roma e Bizâneio, mas entre o antigo
mundo mediterrânico e oriental, e os povos jovens da Europa
setentrional. De facto, este risco não se realizou. O movi­
mento de reforma que nasceu nos países do norte, não se voltou
contra o Rapado, como viria a acontecer no século X V I ; os
reformadores tornaram-se, pelo contrário, seus aliados; aju­
daram-no a renovar a vida religiosa da cristandade ocidental;
e o primeiro representante deste movimento, que ocupou a sé
pontifícia e preparou o caminho na éjpqca seguinte, foi o porta-
-voz do partido galicano no concílio de Saint-Basle, aquele
que consignou por escrito as suas declarações formais anti-ro­
manas: Goobert de Auriillac.
Esta alteração não se teria, contudo, produzido, se a
existência do Império do Ocidente não tivesse estado em jogo.
F oi o estabelecimento do Império que libertou o Papado da
sua sujeição às facções locais e que o 'entregou à Europa e a
si próprio. É verdade que a restauração do Império parece,
a princípio, nada mais ter significado, do que a submissão do
Papado a um príncipe germânico em vez de a um senhor local;
mas a nova situação teve, como efeito inevitável, alterar o

(1) Gerberti, Acta concilii Remensis (Monumento, Germa-


niae histórica, Scriptores, Vol. III, p. 672) ; Fleury, Histoire ecclé­
siastique, L , L V II, cap. X X I -X X V L
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL» 301

‘horizonte político dos imperadores e levá-los a alargarem o seu


programa, até lhe darem um alcance universal. O Império
perdeu a pouco e pouco o seu carácter saxão, para se tornar
uma potência internacional: Otão I casou com a rainha ítalo-
-burgonhesa Adelaide, e o seu filho Otão II com uma princesa
grega-, Teofamo, que trouxe consigo para o Ocidente as tradi­
ções da corte imperial bizantina; de form a que Otão III, nas­
cido do seu casamento, reuniu na sua pessoa a tradição do
Império cristão, na sua dupla forma, earolíngia e bizantina.
Graças a sua mãe e ao Grego .calabrês Philagatlhus, sofreu a
influência da cultura superior do mundo bizantino, ao mesmo
tempo que o seu preceptor Bernward de Hildeisheüm, que além
dum sábio era um artista e um homem de Estado, pôs ao seu
dispor a fina flor da tradição earolíngia do norte e ajuntou
ainda ,a profunda influência nele exercida pelas mais altas
autoridades espirituais da época, de que são testemunho' a sua
amizade com Santo Adalberto de Praga, e as suas relações com
os dois grandes ascetas da Itália, S. RomuaMo e S. Nilo.
Não é, pois, de admirar que, com um carácter e uma
educação tais, Otão I I I tenha concebido um imperialismo
mais bizantino do que germânico e que tenha consagrado a
•sua vida à realização dum programa e dum ideal de alcance
universal. F oi com este desígnio que ele rompeu com a tra­
dição secular, elevando ao pontificado o seu jovem primo
Bruno, em vez de escolher um membro do clero romano. Mas
foi em Gerberto, o mais douto e o mais brilhante sábio da
época, e não em Bruno, que ele encontrou uma verdadeira
alma irmã, capaíz de cooperar com ele na obra da sua vida.
Até então, tivera ele consciência da inferioridade da cultura
ocidental, comparada com o requinte da civilização greiga:
foi Gerberto quem lhe ensinou que, de facto, o herdeiro da
tradição romana era o Ocidente, e não Bizâncio; e foi ele
ainda quem lhe inspirou o desejo de recuperar este antigo
património.
«Que se deixe de crer, na Itália, escrevia Gerberto, que
só a Grécia se pode gloriar da filosofia dos seu® imperadores
302 A FORMAÇÃO DA EUROPA

e do poder romano. É a nós, sim a nós, que pertence o Império


Romano! A sua força repousa, na fértil Itália, na Gália e na
Germânia populosas e nos valorosos reinos citas. Tu és o
nosso Augusto, ó César, imperador dos Romanos, tu que, nas­
cido do mais nobre sangue dos Gregos, os ultrapassas em po­
der, tu que governas os Romanos em virtude do direito de
hereditariedade e estás acima duns e doutros, em sabedoria e
em eloquência!» (1).
Também, quando a morte prematura de Bruno permitiu
a Gerberto suceder-lhe como Papa com o nome de Silvestre II,
Otão empreendeu, com a sua ajuda, executar o seu programa
de reconstituição do Império e de restauração de Roma, com
o desejo de repô-la na sua oategoriai de cidade imperial e de
centro do mundo cristão. A sua tentativa, e sobretudo as fo r­
mas bizantinas de que ela se rodeou, é verdade que se torna,-
ram motivo de troça para os historiadores modernos, que não
veem nela mais que umia comédia pueril sob um disfarce bizan­
tino ( 2). Mas, na realidade, a. política de Otão, embora os seus
resultados políticos tenham sido nulos, tem uma significação
histórica muito miais importante do que qualquer das reali­
zações práticas dos políticos contemporâneos, porque marca
o aparecimento duma nova consciência europeia. Todas as
forças que contribuíram para form ar a unidade da Europa
medieval, aí se encontram: a tradição bizantina e carolíngia
dum Império cristão, o universalismo eclesiástico do Papado,
•o ideal espiritual dos reformadores monásticos, como S. Nilo
e S. Romualdo, o zelo apostólico dum Santo Adalberto, o huma-

O ' Lettres de Gerbért, n.° 1'8'7, p. 173 da ed. J. Havet.


O O elemento bizantino, na corte de Otão, não era pro­
veniente duma imitação artificial dum cerimonial exótico, como
têm suposto alguns historiadores modernos. E m o resultado natural
da tradição semi-bizantina da Roma do século X e do próprio Impé­
rio. Foi por isso que Carlos, o Calvo, se mostrara em traje bizantino
na assembleia de Ponthion em 876, para mostrar que tinha recebido
a coroa imperial. Cfr. Halphen, La cour d’Otton III à Rome, in
Melanges d’ar&heologie et d’histoire, publicadas pela Eeole fran~
caise de Rome, X X V (1905),
0 APARECIMENTO DA UNIDADE MEDIEVAL 303

nisrnio earolíingio dum G-erberto, a dedicação nacional de ita­


lianos à ideia romana, como Leão de Vercelli. E la marca o
ponto em que se reunem e se confundem, na nova cultura do
'Ocidente medieval, as tradições da época anterior; ligando-se
a Santo Agostinho e a Justiniano, ela faz prever Dante e o
■Renascimento.
É verdade que o sonho de Otão I II — ■um Império con­
cebido como urna comunidade de povos cristãos, governados
por um Imperador ,e por um Papa, agindo de pleno acordo,
embora de maneira independente, — jamais se devia realizar.
Nem por isso deixou ele de conhecer uma espécie de existência
ideal, semelhante à das ideias platónicas, pois não deixou de
tender a realizar-se materialmente na vida da sociedade me­
dieval. Porque o ideal de Otão III é precisamente aquele de
que devia alimentar-se o pensamento de Dante; e foi este
mesmo ideal que, no decorrer dois séculos intermediários, devia
fornecer uma fórmula inteligível, em que se exprimiu cons­
cientemente a unidade de cultura da Europa medieval. De
resto, não foi ela tão estéril em resultados práticos como ordi­
nariamente se supõe, porque os curtos anos do governo con­
junto de Otão e de Gerberto assistiram aio aparecimento de
novos povos cristãos da Europa oriental, e foi graças à sua
acção, inspirada em parte pela dedicação de Otão à memória
do seu amigo boémio Santo Adalberto, que os Polacos e os
Húngaros foram libertados da sua subordinação' à Igreja de
Estado da Alemanha e receberam uma organização eclesiás­
tica própria, condição indispensável para a libertação das
■suas culturas nacionais.
Isto marca uma modificação de importância vital na
tradição caroiíngia imperial: a unidade da cristandade deixa
de ser concebida como a unidade duma autocracia imperialista
—■duma espécie de tisarismo germânico — para se tornar uma
sociedade de povos livres, presidida pelo Papa e pelo Impera­
dor. A conversão ao Cristianismo tinha implicado atié então
a dependência política e a destruição das tradições nacionais;
e tinha sido esta a raizão por que os 'Wendes e os outros1povos
304 A FORMAÇÃO DA EUROPA

do Báltico tinham resistido tão tedmosamente à Igreja. Mas,


no declínio do século X , via-se nascer uma nova série de esta­
dos cristãos que se estendiam da Escandinávia ao Danúbio;
o século X I assiste ao desaparecimento do paganismo nórdico
e à incorporação de toda a Europa ocidental na unidade cristã.
A o mesmo temipo, o longo inverno da Idade das Trevas che­
gava ao ©eu termo; por toda a parte, dum extremo ao outro
do Ocidente, desponta uma vida nova, novas forças sociais
e espirituais despertam; a sociedade do Ocidente emerge das
trevas do Oriente e toma assento, com o unidade independente,
ao lado das mais antigas civilizações do mundo oriental.
CONCLUSÃO

Im impossível tirar uma linha de demarcação bem mítida,


“ “ entre um período e outro, sobretudo na história dum
curso tão vasto e tão complexo, como o desenvolvimento duma
civilização; e é por isso que, escolhendo a data que marca o
fim desta vista de conjunto, eu obedeci mais a considerações
de ordem prática do que a razões científicas. Não obstante,
o século X I marca, sem dúvida, um cotovelo decisivo da his­
tória da E uropa: é o fim da Idade das Trevas e o apareci­
mento da cultura ocidental. Anteriormente, no tempo de Jus-
tiniano e no de Carlos Magno, não tinha havido mais que um
renascimento parcial e temporário., de cada vez seguido duma
decadência, que parecia conduzir a Europa a um nível de
barbárie e a um estado de confusão, como nunca tinha conhe­
cido antes. Mas, com o século X I, inicia-se um movimento pro­
gressivo, que continuará, quase sem interrupção, até aos tem­
pos modernos. Este movimento manifestasse por novos modos
de vida, .em todos os domínios da aetividade social, no comér­
cio, na vida pública, na organização política, bem como na
religião, na arte e nas letras. Foi, então, que se puseram os
fundamentos do mundo moderno, não só porque se criaram
as instituições, que deviam ficar sendo características da nossa
cultura, mas, acima de tudo, porque se formou esta sociedade
de povos que, mais que uma simples unidade geográfica, cons­
titui o que chamamos a Europa.
Esta nova civilização estava, contudo, ainda longe de
abarcar a totalidade da nossa Europa, ou mesmo, da Europa
ocidental. No princípio do século X I, a Europa continuava
20
306 A FORMAÇÃO DA EUROPA

dividida, do ponto do vista da civilização — como o estivera


desde séculos — em quatro ou cinco províncias distintas, entre
as quais, o Ocidente civilizado não aparecia nem como a mais
poderosa, nem como a mais civilizada. Havia a civilização
nórdica da Europa do noroeste, que começava precisamente
a fazer parte do mundo cristão, conservando embora uma tra­
dição d e civilização independente. Havia, ao sul, a civilização
muçulmana ocidental da Espanha e da A frica do norte, a
qual abarcava pràticamente toda a bacia do Mediterrâneo
ocidental. A leste, a civilização bizantina dominava os Balcãs
e o mar Eigeu, sem ter ainda perdido, por completo, as suas
posições no Ocidente, onde sobrevivia na Itália do Sul, no
Adriático e nas cidades comerciais de Itália, tais como Veneza,
A m alfi e Pisa; ao passo que, miais ao norte, do Mar Negro
ao Mar Branco e ao Báltico, os Eslavos, os Baltais e os povos
fino-ugrianos continuavam pagãos e bárbaros, começando, pre­
cisamente então, ia sofrer a influência ao mesmo tempo da civi­
lização bizantina do sul, da civilização nórdica da Escandiná­
via, ,e ainda da civilização muçulmana da Ásia central e do
M ar Cáspio.
Em suma, a civilização que consideramos como caracte­
rística do Ocidente e da Europa estava confinada principal-
mente nos limites do antigo império carolíngio; tinha.por
centro, os antigos territórios francos do norte da França e
da Alemanha ocidental. No século X , como vimos, foi ela
comprimida de todos os lados, e teve até tendências para con­
trair as suas fronteiras. Mas, o século* X I assistiu à revira­
volta das posições, e esta civilização1 espalhou-se rapidamente
íem todos os sentidos. A ocidente, a conquista normanda arras­
tou a Inglaterra para fora da esfera de influência da civili­
zação nórdica, que durante dois séculos, ameaçava absorvê-la,
e incorporou-a na sociedade do continente; ao norte e a leste,
/os Eslavos do Ocidente foram atraídos a pouco e pouco, e a
{Escandinávia viu-se penetrada da mesma influência; do lado
do sul, finalmente, a Europa atirou-se, com a energia das Cru-
CONCLUSÃO 307

zadaís, à grande ,tairetfa de arrancar o Mediterrâneo ao poder


do Islão.
Assim, os povos do império franco impuseram a sua
hegemonia social e o seu ideal de civilização a todos os povos
circunvizinhos, de forma1que podemos, sem exagero, considerar
a unidade carolángia como o fundamento e o ponto de partida
de todo o desenvolvimento da civilização medieval no Ocidente.
"Verdade é que desde ha muito que o império carolíngio
•tinha perdido a sua unidade, e que a França e a Alemanha
tinham cada vez mais, a consciência das suas diferenças' na­
cionais. Amjbas se ligavam igualmente à mesma tradição caro-
língia, e a sua cultura era um composto dos mesmos elementos,
misturados em proporções diferentes. Eram sempre, essen-
icialmente, os dois reinos dos Francos ocidentais e orientais,
posto que, como duas irmãs das quais uma é parecida com o
pai e outra com a mãe, França e Alemanha teriam, muitas
vezes, mais o sentimento do que as distinguia, do que das suas
isemelhanças. Mas., eram as regiões intermediárias que cami­
nhavam à frente da civilização1, isto é, cm terra do Império,
as províncias mais latinizadas, e em França, aquelas em que
predominava o elemento germ ânico: França do norte, Lorena,
Burgonlha, Flandres, Benânia. Quanto à Normandia, onde se
•achavam 'reunidos, no mais frisante contraste e no mais ime­
diato contacto, o elemento nórdico e o elemento latino, estava
ela incontestavelmente à frente do movimento de expansão.
Esta zona intermediária, entre o Loire e o Beno, fo i o
verdadeiro lar da cultura medieval; foi ali que esta fo i belber
,a sua inspiração e a sua originalidade. F oi lá, o berço da ar-
Iquitectura gótica, das grandes escolas medievais, do movimento
de refowna monástica e eclesiástica; fo i lá, que se formou o
ideal das Cruzadas. F oi o centro donde irradiaram1 o feuda­
lismo, as comunas da Europa setentrional e a Cavalaria. F oi
lá, que se operou definitivamente a obra de aproximação e de
(fusão entre o norte germânico, a ordem eispiritual da Igreja
ie as tradições da cultura latina.
A época das Cruzadas assistiu ao aparecimento dum novo
308 A FORMAÇÃO DA EUROPA

ideal moral e religioso, que outro não é, — desta vez com forma
cristã — , senão o ideal heróico da cultura dos guerreiros nór­
dicos. Encontramos, na Canção de Bolando, os mesmos moti­
vas de inspiração que na antiga epopeia pagã: a fidelidade
do guerreiro ao seu senhor, as delícias da guerra pela guerra,
«e, principalmemte, a glorificação da derrota com honra. Mas,
tudo isso está, doravante, subordinado ao serviço da cristan­
dade e misturado a ideias cristãs. A teimosia com que B o­
lando reeusa tocar a busina, está em inteira conformidade
com a tradição da poesia antiga; mas, na cena da morte, a
atitude cristã de submissão e de arrependimento, substitui
o fatalismo provocador dos heróis nórdicos tais eomo Hogni
;e Hamdis:

«V oltou a face para o lado da Espanha; assim


fez, para que 'Carlos dissesse — e todos os seus com
ele —•que ele morrera eomo valente vassah> voltado para
o adversário. Então, escrupulosamente, confessa a® suas
culpa® e pelo® seus pecados, estende a sua luva aos
Céus» O ).

Certo é que o ideal heróico já tinha encontrado a sua


expressão na literatura dos povos cristãos, e sobretudo, nestes
grandioso® versos do nobre Lais de Maldon:

«Tornar-se-á mais firme o nosso pensamento, o


nosso coração será mais ardente, a nossa coragem há-de
'aumentar na razão inversa das nossas possibilidades».

Mas aqui, ainda há mais que uma aparência de senti­


mento cristão ( 2) : a antiga tradição sobrevive intacta.*

0) The Song of Roland, trad. J. /Crosland, versos 2.360-


*2.365. Cfr. versos 2.366-2.396.
O H á contudo algo de religioso nas últimas palavras de
Brytihnoth: «Dou-te graças, Senhor dos povos, por todas as alegrias
Ique conheci no mundo. Presentemente, gracioso Senhor, preciso
CONCLUSÃO

E, com dfeito, durante ,a Idade das Trevas, a sociedade


d o Ocidente fo i caracterizada por um dualismo moral, corres­
pondente a um dualismo de cultura. Havia, então, um ideal
do iguerreiro c um ideal do cristão, ei este último participava
ainda do espírito da barbárie do paganismo nórdico. Não foi
antes do século X I, que a sociedade militar se amalgamou com
a sociedade espiritual do Ocidente cristão sob a influência
do ideal das Cruzadas. A instituição da cavalaria é o símbolo
da fusão das duas tradições, a nórdica, e a cristã, na unidade
medieval: contínua característica da sociedade do Oriente
desde a época da Canção de Bolando atlé ao dia em que o seu
último representante, Bayard, «o bom cavaleiro», morreu como
Rolando, voltado para os Espanhóis, na passagem de Sesia, no
tempo de Lutero e de Maiquiavell. Porque a Idade Média é a
idade do catolicismo nórdico, e só durou, enquanto durou a
aliança do Papado com o N orte— aliança inaugurada por
Bonifácio e Pepino o Breve, depois consolidada, no século X I,
graças ao movimento de reform a eclesiástica dos países seten­
trionais, que principiou na Lorena e na Borgonha. Um outro
B onifácio e um outro rei franco, quebraram a aliança, no fim
do século X I I I ; mais, sem jamais recobrar, por completo, a
sua primitiva força, esta continuou a ser a pedra angular da
unidade ocidental, até ao momento em que o Papado foi com­
pletamente italiunizado, e em que os povos do norte deixaram
de ser católicos.
Mas, embora a cultura medieval tenha sido a cultura
da cristandade do norte, teve ela, como Rolando, a face voltada
para Sul, contra o Islão. E, do Tejo ao Eufrates, não houve

que dispenses ao meu espírito as tuas bondades, para que a minha


alma a ti se eleve, e passe em paz sob a tua guarda, príncipe dos
A njos». De resto não é aqui mas nas últimas palavras «do velho
companheiro», que se encontra a verdadeira tonalidade moral do
poema: «Sou vellho em anos; não quero ir-me daqui, mas tenciono
repousar ao lado do meu Senhor, do homem que tão profundamente
amo». V . a trad, em inglês moderno deste poema in R . K. Gordon,
Anglo-Saxon poetry, pp. Sôt-í!©?.
310 A FORMAÇÃO DA EUROPA

região, onde os guerreiros d o norte não tivessem derramado


o seu sangue. Príncipes normandos reinavam na Sicília e em
Antioquia, Lorenos em Jerusalém e em Odessa, Borguinhões
em Portugal e em Atenas, Flamengos em 'Constantinopla; e as
ruínas dos seus castelos do Peloponeso, de Chipre e da Síria
dão testemunho, ainda hoje, do poder e do espírito de iniciativa
dos barões francos. JÇ-ste contacto com a civilização- mais adian­
tada do mundo islamita e do mundo bizantino, exerceu uma
influência decisiva na Europa ocidental, e foi um dos factores
essenciais do desenvolvimento da cultura medieval. É a ele
que se devem fazer remontar não só o nascimento da nova
cultura palaciana e das novas literaturas nacionais, mas tam­
bém a assimilação da tradição científica greco<-árabe e o desen­
volvimento duma nova cultura intelectual no Ocidente ( x).
A influência de Bizâncio e do Islão, permaneceu preponde­
rante, até ao dia em que foi posta em cheque pelo Renasci­
mento da tradição clássica, o qual coincidiu com a conquista
d o Oriente pelos Turcos e com a separação entre a Europa
ocidental e o mundo islâmico. No fim da Idade Média, a E u­
ropa volta costas ao Oriente, e começa a olhar para o Ocidente,
para o Atlântico.
A unidade medieval não perdurou pois, porque tinha
por base, a união ida Igreja com os povos do norte e um fe r­
imento de influência oriental. A sua morte não significa, todar
via, o fim da unidade europeia. Pelo contrário, a cultura dos
países do Ocidente tornou-se mais autónoma, mais indepen­
dente e mais ocidental do que nunca o fora. A perda da uni­
dade espiritual não provoca a partilha do Ocidente entre dois
tipos de civilização, irredutíveis um ao outro, e hostis, como
teria sucedido com certeza, quatro o-u cinco Séculos antes. A pe­
sar da sua desunião religiosa, a Europa conservou a sua uni­
dade de cultura, mas esta teve, doravante, por base, uma tra­
dição intelectual comum e, de preferência a uma fé comum,

O Já tratei destes aspectos da -cultura medieval no meu


livro Mediaeval Religion and Other Essays (Sheed & W ard, 1036),
CONCLUSSO 311

um comum respeito pela tradição clássica. A gramática latina


teubstituiu a liturgia latina como laço de unidade intelectual;
o erudito e o .gentil-homem, como representantes da cultura oci­
dental, ocuparam o lugar do monge e do cavaleiro. A quatro sé-
'culos de catolicismo nórdico e de influência oriental, suce­
deram quatro séculos de humanismo e de autonomia ocidental.
H oje a Europa está ameaçada de ver naufragar a cul­
tura aristocrática secular, que serviu de base à segunda fase
da sua unidade. Mais uma vez, sentimos a necessidade duma
cunidade espiritual, ou pelo menos, moral; compreendemos que
Uma cultura, puramente humanista e ocidental, já não nos
convém; já não podemos satisfazer-nos, por mais tempo, com
uma civilização aristocrática, que encontra a sua unidade num
m undo exterior e superficial, sem ter em conta as necessidades
diais profundas da natureza espiritual do homem:. A o mesmo
tempo, já não temos ,a mesma fé na superioridade inata da
'civilização ocidental e no seu direito de dominar o mundo.
'Temos a consciência dos direitos das raças © das civilizações
'submetidas, e, simultâneamente, tornamos a sentir a necessi­
dade de nos protegermos contra as forças insurrectas do mundo
oriental e de entrarmos em contacto mais ©streito com ais suas
•tradições espirituais.
Como convém satisfazer estas necessidades, — se é que
nos é possível satisfazê-las— , não podemos sequer imaginá-lo
tia hora presente. Mas bom é, que não esqueçamos, que a uni­
dade da nossa civilização, não repousa, completametnte, na
'cultura laica e nos progressos materiais dos últimos quatro
Iséculos. A Europa possui tradições mais profundas; precisa-
imos de ir para lá do humanismo e dos triunfos superficiais
da civilização moderna, se temos a peito descobrir as forças
básicas sociais © espirituais, que conduziram à formação da
(Europa.
BIBLIOGRAFIA
Com 'a resenha de livros que se segure não pretendo apre­
sentar uma bibliografia completa. Omitem-se todas as referên­
cias às fontes originais, exeepto nas transcrições, e ainda um
certo número de obras modernas que me não foram acessíveis.
Por outro lado, tanto quanto me foi possível, fiz referência aos
mais recentes pontos de vista gerais respeitantes a este período
e a outros livros que provavelmente hão-de ajudar e interessa'!*
ao comum dos leitores.

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2 vols. Lovaina, 1925. (Trad, ingl, Londres, 1926).
INDICE O N O M Á S T I C O
A Alexandria, 27, 58, 62, 63, 129,
133, 134, 135, 140-8, 150, 190.
Abássidas (califas), 168-170, 175, Alfredo o Grande, 260, 263, 295,
177, 181. 296.
abadias carolíngias, 252. Ali, califa, 164-166, 177-178.
Abdallah ibn Mamun, 178. Ambrósio (Santo), 58, 63, 65, 66,
Abd or-Rahman III, califa de Cor­ 78.
dova, 182. Amiano Marcelino, 133 n.
Abu’l-Ala al-Ma’arri, poeta, 185. Ammonio, 83.
Abu Nawas, 169. Anastásio, imperador, 116.
Abissínia, 154, 157. Anastásio o Bibliotecário, 249,
Acácio, 135; —(cisma de), 199. 285.
Actium (batalha de), 30-1. Angilberto, 245.
Adalberto de Praga, S.to, 301-3. Anglos, 118 —ver também: An-
Adalhard, 280. glo-Saxões.
Adelaide, imperatriz, 301. Anglo- Saxões: conquista da
Adelhard de Bath, 172. Gran-Bretanha, 112-114; — in­
Adi ibn Zaíd, 154. vasões dos Vikings 259; —luta
adoradores de estrelas de Harran contra os Dinamarqueses, 261-3;
— ver: Sabeanos. — no tempo de Canuto, 265-6;
Aelius Aristides, 43, 72. nos séculos X e XI, 295; — arte,
Agapito, S.to papa, 87. 227, 228; — literatura, 229 232;
Agathias, 137-138. cristianismo, 227, segs.; — mis­
Agobard, arcebispo de Lião, 278, sões e organização no conti­
280, 281. nente, 237 segs.; — renasci­
Agostinho (S ), 44 n., 55 n., 62,63, mento da civilização anglo-sa-
75, 78, 80, 84, 212, 281, 303. xónia, 295.
Agostinho de Canterbury (S.),226. Anna Comenna, 194.
Aidan (Santo), 227. Anscário (Santo), 262.
Aix (constituição de 817), 280. Antioquia, 27.
Alanos, 109, 110, 112, 114. — ver: Síria.
Alamanos, 98, 99, llü, 116. Apocalipse, 49.
Alarico, 111. Apolinário de Laodiceia, 78, 80.
Alberic, 298, 300. Arábia, preislamita, 1*54-160; —
Alcuíno, 73, 228, 238. 240, 245-8. cristã, 154-155 — (judaísmo na),
Aldhelm, 230, 244. 158-160; — poesia, 154-155,158;
Alexandre de Afrodísias, 83, 174. — Sabeanos, 159; — nômadas
336 A FORMAÇÃO DA EUROPA

do norte, 158; — Meca antes do Averrois, averroísmo, 171, 174.


Islão, 159; — depois do estabe­ Avicena, 171, 184.
lecimento do Islão, 165-6, 169- Avito (Santo), 114.
-170, 180. Aziz (A1-), califa, 180.
Arboga8to, 107.
Arcádio, imperador, 107, 131. B
Archimbald, arcebispo de Sens,
293. Babak o Khorramita, 179.
arquitectura: bizantina, 140-3, Bagdad, 169, 180, 186.
196; — muçulmana, 166; caro- Banu Musa (família dos), 171.
língia, 247-249. bárbaros: no Ocidente, copiam
Aretas, 193. a sua civilização de Roma, 28;
Ari o Sábio, 258, 268 n., 276. — origem da Europa e das na­
arianismo, 62, 64, 107, 135, 139- ções modernas, 89; — civiliza­
-141, 144-5, 162-163. ção primitiva, 90 ; — organiza­
Aristóteles, aristotelismo, 83, 87, ção tribal, 91-2, 101-2, 111-112,
153,171, 174, 295 n. 117- 118, 218-9, 2 5 6 -7 ;-civili­
Ario, 77. zação guerreira e sociedades
Arménia, 145, 153, 190, 194, 195. camponesas, 92-3, 257; — Cel­
Arnóbio, 63. tas, 92-94; — Dácios e Marco-
Arnoul, bispo de Orleans, 300. manos, 97-99, 107 ; — Civiliza­
Arnulfo, rei da Germânia, 263, ção greco-romana na Rússia
292. meridional, 107 ; — pressão so­
Arsénio (Santo), 131. bre o Império romano, 106-107;
Arte: anglo-saxónia, 119-120, — migrações locais, 96-97; —
227-228; — bizantina, 119, 139- invasões do III século, 99; —
-143, 195-196; — carolíngia, invasões ulteriores, 108-112;
246-249; — irlandesa, 246-248; — infiltração no Império ro­
— irano gótica, 119; — muçul­ mano, 107, 108-110; — compro­
mana, 166; — mediterrânea na misso com o Império romano,
Escandinávia, 95-6; — da Euro­ llü-112; — sociedade tribal e
pa setrentional, 241; — Síria, agrícola na Germânia Occiden­
119; — escandinava, 119-120; — tal, 112-113; — na Gran-Breta-
germânica, 248. nha, 93; — tratam, na Gália, a
artes liberais, 72, 88, 250. civilização romana em pé de
Atanásio, 62, 63, 64, 77, 132, 133, igualdade, 113-5,115-9; — arte,
148, 199. 118- 120;—evangelização e cris­
Ataulfo, 110. tianismo, 107-8, 112-6, 119-121,
Atenágoras, 75. 196-7, 216-220, 227-8, 231-2, 265,
Átila, 114. 274-6 ; — Búlgaros, 195-6 ; —
Auda a Rica, 268. Magiares, 218 , 262-4; — se­
Augusto, imperador, 30-2, 36, 37, gunda vaga de invasões, 209-
39, 128. 213 — terceira v a g a : os Vi-
Aureliano, imperador, 127. kings, 255-260 e ver: Vikings.
Avaros, 195-6, 210, 237, 277. Bardas, imperador bizantino, 193.
ÍNDICE ONOMÁSTICO 337

Bardesano, 53, 191; bardesania- Bogomilos, 196 n.


nos, 178, Bokara, 183.
Barmécidas, 169, Bonifácio VII, papa, 299.
Basílio (S .), 62, 77, 150. Bonifácio (S .), 230-234, 236-238,
Basílio I, imperador, 196, 197. 252, 293.
Basílio II, imperador, 202, 203. Boris, tsar, 196, 197.
Basílides, 53. Bósforo (reino do), 96, 98.
Battani (A1-). 172. Boso, rei da Provença, 288.
Bávaros, 116. Brendan ( S .), 218, 220.
Baviera, 2y2. Bretanha ( Gran-), 113.
Bayan, khau dos Avaros, 210. — Ver também: Anglo-Saxões.
Beda, o Venerável, 228,229,230-1, Brígida (Santa), 219.
245, 295. Brunild, 117.
Beneditinos.—Ver: monaquismo. Bruno (Gregório V, papa), 301-
Bento 1S.), 225, 226. -302.
Bento Biscop (S.), 227, 228, 245, Bruno (S .), 297.
248 n. Bruno, duque de Saxónia, 288.
Beowulf, 229, 257. Búlgaros, 195-196.
Bernardo de Viena, 281. Burebista, 95.
Bernardo de Hildesheim, 301. Burgundos. 115, 117. 120.
Bíblia, 78, 82, 245. Buwaídas, 182.
Biruni (A1-), 171, 182, 183.
Bizâncio. — Ver: Império bizan­ C
tino.
bizantina (civilização): novo in­ Cadoc de Llancarvan (S.), 217,
teresse pela sua história, 130-2; 218.
— seu carácter religioso, 132- Cadwallon, 227.
-134, 143;—o renascimento Caedmon, 229.
grego do Século VI, 137-139; Calcedónia (concílio de), 149,
— a arte e a arquitectura, 139- segs., 199.
-143, 195-196, 203; — o seu de­ Camponeses, no império romano,
saparecimento no Egipto, 147- 35-6.
-l í8;—carácter greco-oriental, Canuto o Grande, 265, 266, 294.
139-143;—influências orientais, Carlomano, rei dos francos, 233.
189-190; — conflito entre as in­ Carlos Magno, 130, 195, 200,201.
fluências orientais e o hele- 227, 235 segs., 286, 278 segs.
nismo, 190-199;—renascimento Carlos o Calvo, imperador, 243,
grego e humanista, 194-6; —re­ 249, 262, 278, 283, 287, 302 n.
percussões na arte e na arqui­ Carlos o Gordo, imperador, 287.
tectura, 195; — estática e limi­ Carlos Martel, 233, 237, 292.
tada, 203; — civilização e arte Carlos o Simples, 263.
na Rússia, 198; — influências Carolíngia (civilização): renasci­
no império germânico, 301. mento humanista. 242 segs.;
Bodin ( João), 73. — síntese do imperialismo ro­
Boécio, 84, 87, 245, 295, 295 n. mano, do catolicismo, da tradi-
338 A FORMAÇÃO DA EUROPA

ção clássica e do «tribalismo» classicismo, tradição clássica:


bárbaro, 255-6; — elementos origem da cultura intelectual
anglo-saxões e irlandeses, 245; da Europa, 70 segs.
— desenvolve-se nas abadias, — tradição romano-helénica,
251 segs.; — aspecto litúrgico, 71 segs.
245; — arte e arquitectura, 246- — na ciência, 83; na filosofia,
-9; — caligrafia, 246; — filoso­ 84 segs.; — aliança com o
fia, 249; — poesia, 249; — ca­ cristianismo, 76 segs., 86 segs.,
rácter cosmopolita do ensino, 227, 244, 252, 253, 295.
245; — movimento intelectual —- triunfo entre os bárbaros do
na Itália, 249; renascimento Ocidente, 120-1; — renascimen­
do Século X, 299-300. to bizantino em bases helénicas
Carolíngios, — Ver: Império ca- e pagãs no século VI, 136 segs;
rolíngio. — do século IX ao século X,
Cármatos, 179. 193 —no Islão, 169 segs.; — no
Cassiano (João), 63, 217. mundo celta, 218; — anglo
Cassiodoro, 87-88, 112, 120, 223, saxão, 226; — carolíngio, 252;
245. — na Inglaterra, 226 segs., 295;
Cátaros, 191, Roma e na Itália meridional no
Catolicismo. — Ver Igreja. século IX, 250 segs.; — na Itá­
Cathulf, 279. lia no século X, 299,
cavalaria, 108. Cláudio II, imperador, 100.
Celtas, 29,90 segs. 113 segs. 217 Claudiano, 44, 45, 46.
segs., 227 segs., 244-5. Clemente I, 54.
— civilização celta, 268 segs. Clemente de Alexandria, 75,
Cerulário (Miguel), 198, 201, 202. Clemente de Irlanda, 245.
Chiah, chiitas, 166, 176-7, 182-3, Clontarf (batalha de), 265.
186; — Seitas chiistas secundá­ Clóvis, 115, 116.
rias, 178-82, 183-5. Columbano (S.), 212 n., 214 n.,
Cícero, 71, 72, 78, 82. 221 , 222 .
Cidades: no Império romano, 32
segs., 103, 127-8. Columba (S.), 218, 220, 221.
— no Império bizantino, 129,130 Commodiano, 63.
— na época carolíngia, 288-290; concílios: gerais 60, 61, 69.
— no Islão, 168, 169, 170. — de Calcedónia, 149 segs. 199.
Ciências, cultura científica, 72, l.° concílio de Constantinopla,
82 segs,, 137-138,153 segs., 171 134, 199.
segs. — 2.° 143; — concílio de Éfeso,
Cipriano (S.), 50, 51, 55, 62, 77, 149.
78. — de Francfort, 241; —1.® con­
Cirilo de Alexandria (S.), 137, cílio Niceia, 133, 134, 2.® 241;
149. — concílio de Saint-Basle, 300.
Cirilo e Metódio (SS.), 196. — de Sárdica, 67; concílio in
Cisma entre o Oriente e o Oci­ Trullo 201,
dente, 196 segs. Conrado, imperador, 266.
ÍNDICE ONOMÁSTICO 339

Constâncio II, imperador, 60, 61, E


64, 109 n, 133, 148.
Constantino Magno, imperador, Ebbo, 262, 281, 282 n.
42, 56, 60, 64, 100,107,127, 274. Eddas (os), 264 segs.
Constantino V, imperador, 190. Edessa, 145 segs.
Constantino VII, Porprogeneta, Eduardo o Antigo, 296 n.
imperador, 193. Eduardo o Confessor, 294.
Constantino, papa, 167 n. Edwin, rei de Nortümbria, 227.
Constantino Céfalas, 193. Éfeso. Ver: concílio.
Constantinopla. Ver: concílios. Efreni (S.), 152.
Corão (o), 161,162, 165. Eginhard, 242, 243, 244 n., 245,
Corbie (abadia de), 248, 252, 247, 248.
Çorbiano (S.), 221. Egipto, 38, 39, 40;—(o cristianis­
Córdova, lb2,185. mo no), 147 segs,; — muçul­
Corippus, 86. mano, 144, 180 segs.
coroação, 237, 284, 286, 296. Ekkehard ( os quatro), 253 ; —
Corvey (abadia de), 254, 296. Ekkehard IV, 254 n.
Crescentius, 298. Emesa, 52.
Crimeia, 96, 98. Encratistas (seitas), 191,
Cynewulf, 229. Enda (Santo), 218 n.
Episcopado, 54 segs., 66-8, 114,
D 115, 148, 215 segs., 232, 233,
239, 278-9, 284, 290 segs.
Dácia, 93 n, 97, 99, 107. Erasmo, 73, 79 n,
Damascius, 83, 137. Escandinávia, 95, 118, 255 segs.,
Damasco, 166. 261, 304 ; — Ver: Islanda. Vi-
Dâmaso (S.), papa, 134. kings.
Dante, 80, 303. Escotos, 113.
David (S ), 217. Eslavos, 196, 198, 209-210, 264;
Decretais (falsas), 284, 285. — civilização, 196.
Dhu Nuwas, 157. Espanha: muçulmana, 166, 181-
Dicuil, 221. -3, 185-8; — cristã, 237-238.
Dinamarqueses, Dinamarca Estêvão I, papa, 60.
— ver Vikings. Estêvão II, papa, 216.
Diocleciano, imperador, 38 segs. Estêvão V, papa, 280.
100 . Estêvão VI, papa, 287.
DYon Crisóstomo, 43. Estêvão de Novara, 298.
Dionísio o Areopagita (o Pseu­ estoicismo, 84.
do —), 132, 152, 249. Euclides, 83, 171.
doação de Constantino, 285. Eusébio de Cesareia, 56, 62, 66,
donatismo, 66 segs., 67. 67, 78. 127 n.
Dungal, 245. Eusébio de Nicomédia, 134.
340 A FORMAÇÃO DA EUROPA

F Germanos, Germânia, 29, 91, 98,


99, 106, 108, 112, 290, 294 segs.
Fadl ibn Sahl, 169. — na Escandinávia, 258; — ci­
Farabi (Al—), 171, 182. vilização, 231; — arte 247; —
Fatimita (califado), 180 segs. Ver: bárbaros, carolíngia (ci­
feudalismo: origens, 105 segs.; vilização), Império Carolíngio,
evolução, 252 segs., 290 segs. Baviera, SaxÕes.
fidai (os), 181. Ghassan, Ghassânidas, 156,158.
Filagatos, 301. Gildas (S ), 217, 218.
Filosofia, 82 segs., 132, 136, 137, Gisli Sursson, 275.
138, 150 segs., 170 segs., 181 Gizor, 275.
segs., 249. Gizor o Branco, 276.
Filoxenes de Mabong, 153. Gnosticismo, 52 segs., 151, 178,
Finiano (S.), 218. 179 191
Firmiiiano (S.), 60. Godos, 98, 99, 107, 110, 111, 112.
Flaviano, 149. 135; — Ostrogodos, 107 segs.;
Fócio, 193, 194, 198, 201, 287. — Visigodos, 107 segs.
Formoso, papa, 287. Górgias, 72.
França, 31-2,105, 111, 245.—Ver: Graciano, imperador, 66, 67, 107,
Gália, Francos, Império-caro- 109.
lingio. Gran-Bretanha. — Ver: Breta­
Francfort. — Ver: Concílios- nha, 102, 113, 114, 130.
Francos, 97, 98, 99, 106, 107, 110 Gregentius (S ), 160.
segs., 200 segs., 215, 230 segs., Gregório Magno (S.), papa, 44 n.,
259, 261, 278. — Ver: Império 58, 85, 120, 211, 212, 215, 226,
carolíngio, carolíngia (civiliza­ 249, 250, 295.
ção). Gregório III, papa, 167 n.
Fridolino (S.), 221. Gregório IV, papa, 281.
Fulda, 244. Gregório V, papa. — Ver: Bruno,
Fulgêncio, 85. 301.
Fustel de Coulanges, 106. Gregório de Nazianzo (S.), 62,
77, 80, 132, 152, 199.
G Gregório de Nissa (S.), 62, 77,
152.
Gália, 27, 34, 99, 106, 107, 108 Gregório o Taumaturgo, 76.
segs., 130. —Ver: Francos. Gregório de Tours, 116.
Galeno, 83, 153, 171. Grotius, 73.
Gall (S ), 221. guerreiros (civilização de): aris­
Gallieno, imperador, 99. tocrática e sobreposta a uma
Geats, 258. civilização campesina, 92-95,
Géminos, 83. 255-9; — na Escandinávia, 255-
Gépidas, 209, 210. -9 —absorvida finalmente pela
Gerard de Cremona, 171 n. civilização campesina, 276.
Gerbert (Silvestre II, papa), 301, Gunzo de Novara, 298.
303. Guthred, 261.
ÍNDICE ONOMÁSTICO 341

H Hygelac, 261.
Hypathia, 148.
Hakim (Al —), califa, 180.
Hamdânida8, 182. I
Hanifa, 160.
Harold Blaatand, 265. Ibaditas, 165.
Harold, filho de Guthred, 261. Ibn Gebirol (Aricebrou), 249.
Harold Haarfager, 259, Ibn Hazm, 169 n.
Harold Hadrada, 294. Ibn Mazarra, 185
Harith ibn Djabalah, 154. Ibn Tofaíl, 171.
Harum ar-Racchid, *69. Ibnu’l Nadim, 183.
Hassan ibn Sabbah (o «Velho da iconoclame, 190 segs., 199 n., 200,
Montanha»), 181. 241.
Heathobardos (os), 258. Idrisidas, 178.
Helenismo, civilização helénica, Igor, príncipe, 197.
27, 30, 48, 52, 70 segs., 98, 137 Igreja: origens orientais, 47; —
segs., 140 segs., 151, 152, 170 os mártires, 50 segs., 203, —
segs., 183 segs., 246, 309-310. combate as religiões de misté­
Helge, 268. rios, 52; — actividade econó­
Henrique o Passarinheiro, 296. mica, 57, 58; — a sua oposição
Heráclito, imperador, 135. à civilização e à vida social do
Hermunduros, 98. Império romano, 48, 53, 73; —
Herodes Alticus, 33. a sua aliança com a civilização
Hérulos, 210. helénica, 61, 75; — a sua acção
Hialte, 275. na civilização agrícola do Oci­
Hilário (S-), 63, 64, 65, 133. dente, 215, 222. — as suas rela­
Himiaritas, 187, 195. ções com a civilização anglo-
Himmérius, 76. -saxónia, 227, 231, 232. — com­
Hincmar de Reims, 242 n., 283, bate a barbárie feudal,290 segs.
284, 287. — lutas entre o orientalismo e
Hipias de Eleia, 72 n. o helenismo na Igreja do Orien­
Hipólito (S), 60 n. te, 190 segs. — aliança com os
Hira, 154, 158. Impérios romanos e bizantino,
Homero, 28. 55 segs., 64 segs., 133, 143,
Honain ibn Ichak (Johannitius), 149, 190 — atritos com o Impé­
171. rio romano, 64, 65, 66 — com o
Honorato (S ), 217. Império bizantino, 132, segs.,
Honório, imperador, 100. 198 segs., — relações com o
Horácio, 71, 78, 299. Império carolíngio (aliança, ten­
Hormisdas, papa, 226. são,interdependência),235 segs.
HosaTn, 166. 277 segs. — depois da queda
Hosius (S.), 133. dos carolíngios, 296, 297, 298,
Hugo Capeto, 293. 301. — deslocada pelos nacio­
Hunos, 108, 109, 111, 197, 277; — nalismos do Oriente, 145 segs.,
Catriguras, 209. — cismas entre o Oriente e o
342 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Ocidente, 60, 68, 69, 134 segs., Império carolíngio: origem da


143 — organização jerárquica, estrutura medieval da Europa,
49,52 segs., 57 segs., 134 segs., 235; — é uma teocracia, 239
143 e ver: episcopado — no segs.;—relações dos primeiros
Egipto, 147 segs.,—nos Bal- soberanos carolíngios com a
cans, 195-196 — entre os Cel­ Igreja, 232 segs., 277 segs.; —
tas, 113,217 segs., —na Rússia, sustentado pela Igreja, 236 segs.
196— na Alemanha, 231, 232, 277 segs.; — aliança com o pa­
296,297,301 .—entre os Franços, pado, 236, 241, 242, 280. -
114, 115, 200 segs., 221 segs., ameaça a independência ponti­
232 segs., — na Inglaterra, 227. fícia, 240 segs., 287; — supre­
— entre os Escandinavos, 26! macia do papa à sua custa, 281
segs.— na Islanda, 273 segs., sega. — administrado por clé­
— Ver: arianismo, concílios, rigos, 238, 239, 250; — pontos
episcopado, liturgia, monaquis- de semelhança com o Islão, 240.
mo, monofisismo, monotelismo, — fundação do Santo-Império
nestorianos, papado, teologia. romano, sua primeira significa­
Illtyd (Santo), 217, 218. ção, 237 segs., — falta de uni­
imans {os doze), 176 segs. dade interna, 277 segs.; parti­
Império bizantino: a sua impor­ lhas, 252, 253; — esforços da
tância, 127-8. — monarquia sa­ Igreja pela manutenção da uni­
grada de tipo oriental, 126 segs. dade, 280. — carácter rural da
— burocracia, 126. — sobrevi­ sua economia, 251. — invasão
vência das leis romanas, 128, dos Vikings, 261, 262; — a sua
129, 136, 137. — vida urbana, derrocada, 287 segs.; — restau­
129,130. —comércio, 130. — re­ rado pela dinastia saxónia, 296
lações com a Igreja católica segs.; — aliança com a Igreja,
(tendência para um césaro-pa- 296 segs.
pismo independente do papado), Império romano: lega o hele-
133 segs., 198 segs., 214, 215, nismo à Europa ocidental, 27
300. — influência latina, 135. segs.; — a sua civilização em
—renascimento romano do sé­ que se fundem o helenismo e a
culo VI, 136,137. — revolta das disciplina romana, 27, 28, 70
nacionalidades orientais contra segs. — união dum regime ba­
o Império, 145 segs. — relações seado na cidade e dum regime
com a Arábia pre-islamita, 155, de ditadura militar, 31, 32; —
156. — perda da maior parte da desenvolvimento das cidades,
Itália, 210, 211. — perda defini­ 32 segs.; — carácter superficial
tiva da Itália, 235,236. — recon­ e capitalista da civilização ur­
quista, 183, 189, 195 segs., — bana, 34; é ela destruída, 39,
reorganização, 189, 190. — con­ 42, 101 segs. — organização
quista da Bulgária, 196. — man­ militar, 34, 35; — converte-se
tém os Russos em respeito e num despotismo militar, 37, 38;
converte-os, 197.— sucumbe — monarquia sagrada, >26segs.;
aos ataques externos, 203, 204. desenvolvimento duma casta
ÍNDICE ONOMÁSTICO 348

militar de origem campesina, 162; primeiro período de con­


37-38; — a burguesia urbana quistas e puritanismo guerreiro,
substituida pelos camponeses 162 segs.; — cismas e seitas,
e pelos proprietários rurais, 164 segs.; — secularização, 165
102 segs.; — reorganização por segs.; — desenvolvimento da
Diocleciano, 39 segs.; — Roma heterodoxia, 168 segs.; — con­
deixa de ser a capital, 42, 43; flitos com a filosofia hetero­
extensão do direito de cidade, doxa, 173 segs.; — o Islão na
42 segs.; — a liberdade e o di­ Espanha, 185, 186; — invasões
reito, 43;— novas formas de muçulmanas do século IX na
patriotismo, 44 segs., 80, 81. Europa ocidental, 263; — civi­
— cosmopolitismo, 45; — cau­ lização islamita, o seu carácter
sas da decadência, 35 segs.; cosmopolita, 168 seg s., 182
bancarrota espiritual e neces­ segs. ; — arquitectura e arte,
sidades religiosas, 47 segs.; — 166, 167 ; — história, i83, 184;
o cristianismo dá a isso provi­ — matemáticas e astronomia,
dências, 57; — conflito com a 171, 172, 1 7 5 ;- medicina, 171;
Igreja. 48 segs.; aliança com filosofia, 171 segs., 184; —poe­
a Igreja, 56 segs., 64 segs., 80, sia, 183 segs ; — decadência
81. — relações tensas com a desta civilização, 186 ; — a sua
Igreja, 65, 134 — relações com sobrevivência na Espanha e em
os Celtas, 92 segs. — invasões Marrocos, 187;—comércio com
bárbaras, 96, 97, 98, 108 segs. a Europa, 263, 264.
— restauração com Justiniano, Islanda, 221, 258, 266 segs.; —
136, 137. civilização islandesa, 26b segs.;
Imru’ul-Qays, 154. — colonização, 273: — paga­
indiana (ciência), 172. nismo, 273 segs.; — cristianis­
Inglaterra. — Ver: Bretanha mo, 274 segs.
(Qran —) Ismaelitas, 178 segs., 183.
Irão, civilização iraniana. — Ver: Itália: renascimento intelectual
Pérsia. no século X, 298, 298.
Irineu (S.), 55. Ivar, 260.
Irlanda, Irlandês, 90, 113 segs.,
2.17 segs. 258, 259,265,266segs. J
— civilização irlandesa, 217
segs., 244, 266 segs. Jamblico, 137.
Irmãos da Pureza, 183, 184. Jerónimo (S.), 63, 78-80, 110.
Isidoro de Sevilha (S.), 120, 245. João III, papa, 2*2.
Islão: movimentos nacionais que João V, papa, 238 n.
o prepararam, 144 se g s.; — João VIII, papa, 202, 249, 287.
conquista do Oriente, vitória João XII, papa, 298, 299.
sobre o helenismo, 155 segs.; João Crisóstomo (S.), 77.
— precedentes árabes do Islão, João Damasceno ou Mansur (S.),
155 segs.; —vida e doutrina de 167, 192.
Maomé, 159 segs.; — hégira, João Diácono, 249, 250.
344 A FORMAÇÃO DA EUROPA

João de Holar (S ), 276. Leão III, papa, 240.


João de Salisbury, 73. Leão III, imperador, 190, 192.
João de Tessalónica, 193 n. Leão IX, papa, 198.
João Escoto ou o Erigena, 249. Leão, o Arménio, imperador, 190.
João Filopone, 83. Leão, o Tessalónico, 193 n.
João Laurentino, 138. Leão de Verceil, 298, 303.
João Malalas, 139. Libanius, 76.
João Mauropus, 193. liberdade, 26, 44.
João o Italiano, 193. Libri Carolini, 238.
João Zimisces, imperador, 196. liturgia, 142, 238 n., 245, 252; —
Jorge o Syncello, 193. ciclo litúrgico, 16.
Judaísmo: posição tomada pela Liutprand de Cremona, 298.
Igreja nos seus primórdios, 47; Lombardos, 260-261, 292-294, 297,
— na Arábia, 160; — na Meso- 293
potâmia, 169. Lotário, imperador, 262, 280, 286.
Judit, imperatriz, 280. Lopo (S.), 114.
Juliano, imperador, 74, 107, 151. Lucifer de Cagliari, 65.
Juliano, ex-prefeito, 138. Luís o Piedoso, imperador, 241 n.,
Juliano de Halicarnasso, 153. 261, 280, 282.
Júlio César, 27 segs. Luís de Baviera, 285, 287.
Justino II, imperador, 138.
Justino (S ), mártir, 75. M
Justiniano, imperador, 135, 136,
141, 143. Ma’an, 157.
Jutas, 118, 258. Macário, 148.
Juvenal, 72, 299. Macedonius, 138.
Juvencus, 80. Magiares, 264.
K Ma’in, 156, 157.
Mamud de Gazna, 186.
Kaaba (a), 159, 162, 180. Mamun, califa, 170 segs.
Kerbela (batalha de), 166. Mançur, califa, 167.
Kharidjitas, 1t>5. Mandeanos, 52 n , 169.
Khwarizmi (Al ), 172. Maniqueísmo, 52, 151, 153.
Kilian (S.), 221. Mansur.— Ver: João Damas-
Kindi (Al-), 170, 175. ceno.
Kirmani (AH, 185. Maomé, 155 segs., 176 segs.
Kisai (A1-), 169. Marboduus, 95.
Kormac, 269. Marciano, imperador, 149,150.
Krum, 195. Marciano Capela, 72 n., k95 n.
Marcião, 53.
L Marco-Aurélio, 43, 97.
Marcomanos, 95 segs.
La Tena (civilização de), 94. Mareb (dique de), 157.
Leão I Magno (S.), papa, 67, 85, Marósia, 293.
149, 214, 223. Martinho de Tours (S.), 63, 217.
ÍNDICE ONOMÁSTICO 345

mártires, 50, 81. Mustansir (A1-), califa, 180.


Maslama, 185. Mutamid (A1-), califa, 177.
Massalianismo, 191. N
Masudi, 183.
matemáticas, 171,172. Ver: ciên­ Nabigha (A1-), 154.
cias. Namatianus (Rutilius), 44,46, 131.
Máximo o Confessor (S.), 132. Nasiri Khosran, 181, 185.
Máximo de Madaura (S.), 74. neoplatonismo, 83 segs., 137, 152
Mazdakitas, 176,179. segs., 171, 183, 249.
Meca, 157 segs., 180. Nerva, imperador, 33.
Melquitas, 150. nestorianos, nestorianismo, 153,
Merobaude, 107. 164,171.
Merovíngios.— V er: C lóvis, Nial, 269, 275.
Francos. Nibelungos (epopeia dos), 120.
Metódio (S.), companheiro de Niceia. — Ver: concílios.
S. Cirilo, 196. Nicéforo, 193.
Metódio de Olimpo (S .), 76. Nicéforo Focas, imperador, 196.
Minúcio Félix, 75. Nicetas de Remesiana, 115.
missi dominici, 239. Nicolau I, papa, 201, 249, 286.
Nilo (S.), 202, 302.
mistérios (religiões de), 51, 53. Nimiano (S.), 113, 218 n.
Mitra (culto de), 52. Nizam el-Mulk, 186.
Moawwiya, 166. Nizar, 181.
Modoin, 243. Nonnus de Panópolis, 137.
Mohamtnira (al-), seita, 179. Nórdicos. — Ver: Escandinávia.
MoTzz (A1-), califa, 180. Normandos, invasões normandas
monaquismo, 6!, 63, 88; — no — Ver: Vikings.
oriente, 131; — no Egipto, 146; Noruega— Ver: Escandinávia.
— no Império bizantino, 201; Notker Labeo, 253, 295 n.
— no ocidente, 216 segs.; — Notker o Begue, 253.
nospaíse8 celtas, 113,217 segs.; Novaciano, 60 n.
— beneditino, 225 segs.; — no
tempo dos carolíngios, 244 segs-, O
290 segs. Olavo (Santo), 269.
monofisísmo, monofisitas, 136, Olavo o Branco, 260, 268.
143, 150, 151, 153 segs., 164, Olavo Trygvasson, 265, 269, 274.
169 190 segs. Olga (Santa), 197.
monotelismo, 135, 199 n. Ornar, califa, 163,166, 169 n.
montanismo, 151, 192. Omar Khayyam, 186.
Motawakkil (A1-), 175. Omíadas (califas), 166,168, 169 n.
mutazelitas, 175. Optato (Santo), 55 n.
Mukanna (Al->, 179. Orígenes, 59, 62, 63, 75 e segs.,
Mummolus, 117. 85, 151.
Mundhir (A1-), 154. Orósio, 85, 120, 295.
muçulmanos. Ver: Islão. Osroenes, 145.
25
346 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Ostrogodos — Ver: Godos. Plotino, 151.


Oswaldo (Santo), 227, 230. poesia: clássica ecristã, 80segs.;
Otão I, imperador, 296 e segs. — bárbara, 119 segs., — bizan­
Otão II, imperador, 301. tina, 136 segs. — litúrgica, 143;
Otão III, imperador, 299, 301. — siríaca, 146-147. — árabe pri­
Otman, califa, 166. mitiva, 153; — persa, 181. —
P — anglo-saxónia, 227; —germâ­
nica, 146, 231; —carolíngia, 248.
Pacómio (S.), 148, 225. — islandesa, 268; italiana, no
papado, 54, 57 segs., 78, 134, 142, século X, 299.
143,147 e segs., 167, 196, 198 e Porfírio, 74.
segs., 212 segs., 225 segs., 236 Probus, imperador, 99.
segs., 281 segs., 292 segs. Proclus, 152.
Papiniano, jurisconsulto, 43. Procópio de Cesareia, 137.
parabolani, 148. Procópio de Gaza, 137.
Pa8càsio Radberto, 280, 281. Próspero (S.) de Aquitânia, 85.
Patrício (S.), 113, 217 e segs. Prudêncio, 44 n, 45, 80, 81.
Paulicianos, 53, 191. Psellos, 193.
Paulino de Aquileia, 245. Ptolomeu, astrónomo, 83.
Paulino de Nola, 80, 81, 115. Q
Paulino de York, 227.
Paulo (S.), 73. Quintiliano, 72.
Paulo Diácono, 245. R
Paulo o Silenciário, 138.
Pedro Orséolo II, doge, 298. Raban Mauro, 244 n., 252.
Pedro de Pisa, 245. Radberto. — Ver Pascásio.
Penda, 227. Razi (A1-) ou Razés, 182, 183,
Pepino o Breve, 233, 236 segs. realeza na alta Idade Média,
Pepino, filho de Luís o Piedoso, 294, segs.
280. Reichnau (abadia de), 252, 254.
Pérsia (a), o Irão e a civilização retórica, 72, 75 segs., 88, 298,
iraniana, 96, 107, 108, 118, 130 Roberto de Chester, 172 n.
segs., 140 segs., 155, 166. — ci­ Roberto o Forte, 288.
vilização da Pérsia muçulma­ Roberto o Piedoso, rei de Fran­
na, 168 segs., 176 segs., 180, ça, 294.
183, 186. Rollon, 263.
Petechenegues, 196, 103. Romano de Emeso, himnógrafo,
Petrarca, 73. 142.
Pictos, 113. Roma. — Ver: Império romano.
Platão, platonismo, 83, 171, 193 Romualdo (S.), 301.
Ver : neoplatonismo. Rufino, 138.
Platão de Tivoli, 172 n. Rufino de Aquileia, 63.
Plegmond (S.), 295. rúnico (alfabeto), 96.
Plínio o Antigo, 83. Rússia, 195, 196, 197, 198, 200 n.,
Plínio o Moço, 33. 264, 265.
ÍNDICE ONOMÁSTICO 347

S arte, 140, 141; — poesia, 14-23,


145-146 ; — nacionalismo, 145-
Saba, 156 segs. -146 ; — cristianismo, 145-147,
Sabeanos (adoradores de estre­ 151-152 ; — monofisismo, 153;
las), 159, 169, 170-171, 175. —no domínio muçulmano, 163-
Saetnund, 276. -167,182; —imperadores sírios,
sagas, 268, 269. 166, m ; —papas, 117, 227; —
Saint-Basle de Verzy (concílio), influência na arte anglo-saxó-
299. nia, 227.
Saint-Gall (abadia de), 252, 253, Sisinnios, patriarca, 202 n.
254, 295 n., 296 n. socialismo : no Egipto antigo, 39;
Salamia, 30. — nos mazdakitas, 176.
Salviano, 44 n. Suécia. = Ver : Escandinávia.
Samânidas, 182. Suevos, 150-111,115, 210.
Sansão (S.), 217. sufitas, 183.
Santa Sofia, 141, 142. Suidas, 193.
São-Vital de Ravena, 141. Sviatoslav, 197.
Sapor, 126 Sweyn, rei dinamarquês, 294.
Sárdica (concílio de), 67.
Sarmatas, 98 segs., 106 segs. T
Sarracenos, 250, 268, 277, 278.
Sassânidas, 98, 129 seg s., 142 Tabari, 183.
segs., 169. Taciano, 53.
Saxões : na Gran-Bretanha (An- Tácito, 72, 77.
glo-Saxões), 112, 115, 237,240, Tarasius, patriarca, 202.
261, 288, 295, 296. Tártaros (Humanos), 203.
Sedulins Scotus, 249, 279. Teodora, imperatriz, 142,143.
Séneca, 84. Teodoreto, 137.
Sérgio I, papa, 167 n. Teodoro de Studion, 193, 199.
Sérgio, patriarca, 135. Teodorico, 86, 111.
Sérgio de Rechaina, 153 segs. Teodósio I, Imperador, 67, 107,
Servato Lopo, 244 n., 248, 255. 109, 134, 274.
Sérvia, 203. Teodósio II, imperador, 100, 129.
Servidão (origens da), 103-105. Teodulfo, 222-3, 244 n., 245.
Septímio Severo, 37. Teofânio, historiador, 192-193.
Severo de Antioquia, 153. Teófano, imperatriz, 301.
Sidónio Apolinário, 105, 114,120. Teófilo, imperador, 193 n.
Silvanus, 107. Teófilo, patriarca, 149.
Silvestre II, papa. — Ver: Ger- Teofilato, patriarca, 293, 298.
bert, 302. teologia católica, 62-3, 67-8, 76-7,
Símaco, 44, 46, 87. 151, 152.
Simplício, 83, 137. Tertuliano, 62-3, 65, 73-77, 77-80,
Syncello. — Ver: Jorge, 193. 281-
Síria : religiões de mistérios, 53; Thabit ibn Kurra, 172,174-5.
— comércio, 129, 130, 140 ; —• Thangbrand, 274.
348 A FORMAÇÃO DA EUROPA

Themistius, 76. continente, 261-63, 288 — na


Thorlac (S.) de Scalholt, 276. Normandia, 263-266—na Rússia,
Thormod, 274. 264- 265 — na Islanda, 266, 276.
Tiago de Saroug, 145, 153. — descobertas e colonização,
Tito Lívio, 71. 269. — império marítimo, 262,
Trajano, 33, 43,97. 265, 266. — conversão, 261-63,
tribus, tribal (organização), 90-93, 265- 6, 274-5; — comércio com o
94, 99-102, 112-114,117-118,218- Oriente, 264-265 — absorvidos
-219; — no Império carolíngio, pela civilização cristã, 265-266.
277-278, 288-289. Vilgard de Ravena, 299.
Trosly (Sínodo de), 287. «villa» romana, 32-33, 103-105. —
Trullo (concílio iti), 201. carolíngia, 251.
Turcos: Ghaznévidas, 186; Virgílio, 29, 30, 49, 71,78, 80,299.
— Otomanos, 203; Seldjúcidas, Visigodos. — Ver: Godos.
186-187, 203. Vitorino, 63.
Turgeis, 260. Vivarium (abadia de), 87, 226.
Vladimiro o Grande, 197.
U volospa (poema de), 272, 275.
Vulgata (a), 78.
Ulfila, 107, 119.
Ulpiano, 43. W
Ursácio, 133.
Utiguros, 210. Wala, abade de Corbie, 280, 283.
V Walafrid Strabão, 248, 255.
Walaric, 220.
Valente, imperador, 109. Walid I, califa, 167.
Valente, bispo, 133. Whitby (sínodo de), 227.
Valentino, 53. Widuking, 296.
Valentiniano I, imperador, 65-100. Wilfrid (S.), 227, 245, 248 n.
Valeriano, imperador, 126. William de Maltnesbury, 252.
Vândalos, 98, 110, 111,115, 136.
Varrão, 83. Y
Velho da Montanha, 181.
Venceslau de Boémia, 294. Yahyah ibn Massawaí, 171.
Vespasiano, imperador, 36.
vias comerciais, 118-120, 129-130, Z
156-157, 264-265.
Vigílio (S.), papa, 143. Zaíd ibn Amr, 160.
Vikings, 197, 220 — invasão, 255- ZaTditas, 182.
266 — irrupção súbita, 255-7 — Zaiditas (imans), 178.
sociedade e civilização na Es­ Zenóbia, 158.
candinávia, 256-259 — na Ingla­ Zenão, imperador, 135, 138.
terra, 259-260, 261-63,264-65 — Ziyáridas, 182.
na Irlanda, 259-260, 265 — no Zoroastro, 164, 165.
ÍN DICE
Págs.
In tro d u ç ã o ......................... ........................................ . 11
PRIMEIRA PARTE
Os fundamentos
Capítulo I — O Império romano............................... 25
Capítulo II — A Igreja católica.................................. 47
Capítulo III — A tradição clássica e ocristianismo. . . . 70
Capítulo IV — Os bárbaros.......................... ...................... 89
Capítulo V — As invasões bárbaras e a queda do Império
do Ocidente............................................ .... 101
SEGUNDA PARTE
Á supremacia do Oriente
Capítulo VI — O Império cristão e o desenvolvimento da ci­
vilização bizantina . . . . . . . . . 125
Capítulo VII — O despertar do Oriente e a revolta das nacio­
nalidades submetidas............................ 144
Capítulo VIII — A ascensão do Islão................................ 155
Capítulo IX — A difusão da cultura muçulmana.. . . . 168
Capítulo X — O renascimento bizantino e o ressurgimento
do Império do Oriente............................ 189
TERCEIRA PARTE
A formação da cristandade ocidental
Capítulo XI — Á Igreja do Ocidente e a conversão dos bár­
baros ...................................................... 209
Capítulo XII — A restauração do Império do Ocidente e o re­
nascimento carolíngio............................ 235
Capítulo XIII — A época dos Vikings e a conversão do norte. 255
Capítulo XIV — O aparecimento da unidade medieval . . . 277
Conclusão. .......................................................................... 305
Bibliografia................................................................... 313
índice onomástico.................................. 335

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