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damental de sua estratégia presidencial a determinação de dar um fim

ao grave problema social da fome no país. As duas décadas decorridas


desde os saques dramáticos na Paraíba não trouxeram a solução para
esse crônico problema social. Os senhores são naturalmente melhores
juízes do que eu jamais poderia ser para saber se o presidente Lula
conseguiu cumprir essa promessa solene. Mas ainda que a resposta a
A criseestruturalda políticaI essa pergunta fosse um enfático sim, do que duvido, as estatísticas
sombrias das Nações Unidas continuam a insistir na persistência do
ISTVÁNMÉSZÁROS
mesmo problema, com conseqüências devastadoras, em muitas partes
do mundo. Isso apesar do fato de os poderes produtivos à disposição
da humanidade terem hoje condições de relegar ao passado o total-
mente imperdoável fracasso social da fome e da desnutrição.
Seria tentador atribuir essas dificuldades, como freqüentemente se dá
no discurso político tradicional, a contingências políticas mais ou menos
facilmente corrigíveis,postulando assim ser o remédio adequado a subs-
tituição de pessoas na próxima oportunidade eleitoral estritamente ade-
Sintomas de uma crise fundamental quada e ordeira, o que seria a evasão usual, e não uma explicação
Gostaria de iniciar com um breve sumário dos acontecimentos plausível. Pois a persistência obstinada dos problemas em pauta, com
inquietantes - poderia dizer ameaçadores - do mundo no campo da todas as suas dolorosas conseqüências humanas, indicam ligações muito
política e do direito. Mas, sem mudar de assunto, permitam-me recor- mais profundamente arraigadas. Indicam alguma força de inércia apa-
dar a minha primeira visita ao país dos senhores, há muitos anos. rentemente incontrolável que por sua vez parece capaz de transformar,
Considerando as distâncias brasileiras, ela ocorreu a pouca distân- com freqüência deprimente, até mesmo as "boas intenções" de promis-
cia de Maceiá. Naquela ocasião, depois de um longo vôo de Londres sores manifestos políticos nas "pedras que pavimentam a estrada para
a Recife, fui levado de carro pela manhã até uma emissora de rádio o inferno", para usar as palavras imortais de Dante. Dito de outra
de João Pessoa para uma troca de opiniões. Dois minutos depois de forma, o desafio é enfrentar as causas e determinações estruturais
começada a transmissão ao vivo da nossa conversa com alguns cole- subjacentes que tendem a descarrilar pela força da inércia muitos pro-
gas e amigos, vimos uma grande comoção do outro lado da divisória gramas políticos criados para a intervenção corretiva, mesmo quando
de vidro que separava o estúdio da sala ao lado. Durante o intervalo os autores de tais propostas admitem de saída a sua insustentabilidade. v

comercial, descobrimos que a razão do que parecia ser uma discus- Escrevi há seis anos, para uma conferência pública apresentada G

~
são acalorada foi a preocupação expressa por um repórter com rela- em Atenas em outubro de 1999, que, ..
ção ao saque de alimentos que estava ocorrendo numa cidade próxi- Com toda probabilidade, a forma última de ameaçar um adversário no N
ma a João Pessoa. Esse incidente se deu em 1983. ~
futuro - a nova i'diplomaciadas canhoneiras"exercida pelo "ar patentea-
Passados mais de vinte anos, durante a campanha eleitoral do pre- do" - será a chantagem nuclear. Mas seu objetivo será análogo ao do
y
sidente Lula, fiquei sabendo que ele havia anunciado como parte fun- ~
passado, embora a modalidade imaginadaapenas acentue a inviabilidade
o absurda de tentar impor dessa forma a racionalidade última do capital às
'-' ~
partes recalcitrantesdo mundo? .<
I Conferênciade aberturaapresentadaem Maceió,Alagoas,no dia4 de maiode 2006, no
f--
13QCongresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. O original, em inglês, foi
publicadoem Monthly Review,vol. 58, n. 4, setembro de 2006. Traduçãodo inglêsde Paulo 2 Publicado em português em István Mészáros, O século XXI: socialismoou barbárie? (São
<C Castanheira; revisão de Reginaldo Melhado.
Paulo, Boitempo, 2003), p. 57.

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Em seis curtos anos essas práticas políticas potencialmente letais do
imperialismo global hegemônico tornaram-se não apenas uma possibili-
dade geral, mas também parte integrante da "concepção estratégica"
T
I
Já houve uma época em que a sigla MAD" - ou seja, "Destruição
Mútua Assegurada" - foi usada para descrever o estado de confronta-
ção nuclear. Hoje, quando os neoconservadores já não fingem que
neoconservadora abertamente adotada pelo governo dos Estados Uni- OS Estados Unidos (e o Ocidente em geral) estão sob ameaça de
dos. Esse perigo real de um desastre nuclear foi o que induziu um grupo aniquilação nuclear, a sigla se transformou em completa loucura,
de importantes físicos norte-americanos, entre eles cinco ganhadores do como a "legítima orientação política" da insanidade político-militar
Prêmio Nobel, a escrever uma carta aberta de protesto ao presidente institucionalizada. Mas a situação é ainda pior, porque todo um
George W. Bush, em 17 de abril de 2006, na qual aftrmaram que: sistema de "pensamento estratégico" institucionalmente arraigado e

É uma grave irresponsabilidadeos Estados Unidos, como a maior super- protegido que se concentra no Pentágono se oculta por trás dele. É
isso que torna essa loucura tão perigosa para todo o mundo, inclusi-
potência, considerarem linhas de ação que poderiam levar à destruição
ve até mesmo para os Estados Unidos, cujos piores inimigos são exa-
generalizada da vida no planeta. Pedimos veementemente à administra-
tamente esses "pensadores estratégicos".
ção que anuncie publicamente o abandono da opção nuclear no caso de
Tudo isso pode ser claramente visto num livro publicado em 2004
adversários não-nucleares, presentes ou futuros, e insistimospara que o
por Thomas P. M. Barnett4, resenhado na Monthly Review por Richard
povo norte-americanofaça ouvir a sua voz quanto a essa questã~.3
Peet. Cito aqui o artigo de Peet:
Estão as legítimas instituições políticas das nossas sociedades em
Segundo Barnett, o 11 de setembro de 2001 foi um grande presente, por
posição de solucionar as situações mais perigosas pela intervenção mais tortuoso e cruel que isso possa parecer. Foi um convite da história
democrática num processo real de tomada de decisão, como quer o
para os Estados Unidos acordarem dos sonhos da década de 1990 e impo-
discurso político tradicional apesar de todas as evidências em contrá-
rem novas regras ao mundo. O inimigo não é a religião (islã), nem o
rio? Somente os mais otimistas - e muito ingênuos - poderiam afir-
lugar, mas a condição de desconexão. Estar desconectado neste mundo é
mar e sinceramente acreditar na realidade dessa hipótese feliz. Pois
estar isolado, privado, reprimido e deseducado. Para Barnett, esses sinto-
durante os últimos anos as principais potências ocidentais já embar- mas de desconexão definem um perigo. Dito de forma simples, se um
caram, sem qualquer embaraço, em guerras devastadoras, valendo-
país está se perdendo para a globalização ou rejeitando grande parte de
se de instrumentos autoritários, sem consultar o povo sobre questões seus fluxos de conteúdo cultural, é provável que os Estados Unidos aca-
de tal gravidade e afastando deliberadamente a estrutura do direito
bem por mandar soldados para lá. [...J A visão estratégica dos Estados
internacional e os órgãos de tomada de decisão das Nações Unidas. Unidos deve se concentrar no "número crescente de países que reconhe-
Os Estados Unidos se arrogam o direito moral de agir como lhe cem um conjunto estável de regras relativas à guerra e à paz" - ou seja, as
aprouver, quando lhe aprouver, até o ponto do uso de armas nuclea- o
condições que tornam razoável a guerra contra os inimigos identificáveis
res - não só preventivamente, mas também preemptivamente - con- de "nossa ordem coletiva". Aumentar essa comunidade é simplesmente
a::

tra qualquer país que lhe aprouver, sempre que seus alegados "inte- identificar a diferença entre os bons e os maus regimes e incentivar os

N
resses estratégicos" assim o determinarem.. E tudo isso é feito pelos maus a rever suas posições. Os Estados Unidos, segundo ele, têm a res-
Estados Unidos na condição de pretenso defensor e guardião da
ponsabilidade de usar sua enorme força para tornar verdadeiramente glo-
"democracia e liberdade", seguidos e apoiados servilmente nessas L
bal a globalização. Caso contrário, partes da humanidade serão condena-
ações ilegais pelas nossas "grandes democracias". das à condição de estrangeiro que ao fim e ao cabo as definirá como
z
o .«
<.? 3 Essacarta,junto com os endereçoseletrônicosdos signatários,pode ser lidaem http:// >
physics.ucsd.edu/petrtion/physicistsletter.pdf. A iniciativa de 17 de abril de 2006 foi precedida, '" Em inglês, mad significa maluco, louco. A sigla MAD equivale, em inglês, a Mutual Assured
f-
f- Destruction. (N. E.)
no outono de 2005, por uma petição assinada por mais de 1.800 fisicos, na qual estes repudia-
a:: vam as novas políticas norte-americanas, que incluem o uso de armas atômicas contra adversá- 4 Thomas.F~ M. Bamett, The Pentagon's New Map: War and Peace in the Twenty-FirstCentury
« rios não-nucleares. (Nova York, G.P. Puttnam's Sons, 2004).

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inimigas. E urna vez que as tenham considerado inimigas, os Estados
T tivas reais. Mas as diferenças proclamadas sobre questões tão vitais
Unidos se lançarão à guerra contra elas, desencadeando morte e destruição. são, em geral, não mais que diferenças de fachada. Como já comen-
SegundoBarnett,não se tratade urna assimilaçãoforçada, nem a expansão tei em dezembro de 2002, bem antes da invasão do Iraque,
do império; trata-se da expansão da liberdade.' o presidente democrata Clinton adotava as mesmas políticas que seu suces-
Evidentemente, essa visão beira a insanidade. Suas implicações sor republicano, ainda que de forma mais camuflada. Quanto ao candidato
brutais são expostas numa entrevista dada por Barnett à revista Esquire, democrata, AI Gore declarou recentemente que apóia sem restrições a
respondendo a uma pergunta sobre os impactos de sua abordagem guerra planejada contra o Iraque, pois tal guerra não representaria urna
para os Estados Unidos e para o mundo: "Vou ser bem claro: os "mudança de regime", mas apenas o "desarmamento de um regime que
soldados não vão voltar. Os Estados Unidos não vão sair do Oriente possui armas de destruição em massa".7
Médio enquanto o Oriente Médio não se juntar ao mundo. É simples. Não se pode também esquecer que o primeiro presidente. norte-
Não sair significa uma estratégia de não sair"6. americano a bombardear o Afeganistão foi o risivelmente idealizado
De fato, é difícilser mais claro que Barnett nessa entrevista e em seu Bill Clinton. É compreensível que o respeitado escritor e crítico nor-
livro. Assim vemos a idealização gratuita da presunção absurda da "tre- te-americano Gore Vidal tenha descrito com amarga ironia a política
menda força" dos Estados Unidos e a correspondente projeção da norte-americana como um sistema de um partido com duas alas direitas.
"globalização" como a dominação norte-americana descarada, com o Infelizmente, os Estados Unidos não são de forma alguma o único
reconhecimento claro de que seu veículo é "morte e destruição". Se
país que se pode caracterizar nesses termos. Há ainda muitos outros
alguém imagina que Barnett é um escrivinhador inconseqüente, vai ficar em que - com a exceção de alguns partidos e movimentos pequenos
alarmado com os fatos. Pois Barnett é pesquisador estratégico sênior do e, nO que se refere ao processo de decisão governamental, absoluta-
Colégio de Guerra Naval, em Newport, Rhode Island, e um dos "ho- mente impotentes - as funções políticas de tomada de decisão são
menS de visão" do Departamento de Transformação pela Força, ligado monopolizadas por acordos institucionais consensuais, muito seme-
ao secretário de Defesa. Ademais, ele é considerado um "homem de lhantes e autolegitimadores, com muito pouca (se é que existe) diferença
visão" a ser ouvido e seguido com toda seriedade. entre eles, apesar da ocasional mudança de pessoal nOS níveis mais
Infelizmente, os mais altos escalões do "pensamento estratégico" nOS altos. Por restrições de tempo, devo me limitar sob esse aspecto à
Estados Unidos são ocupados por "homens de visão" como este, que discussão de um caso proeminente, o do Reino Unido (ou Grã-Bretanha).
estão determinados a acrescentar suas pedras ao pavimento das mais Tal como o poderoso Estado norte-americano, esse país em particu-
agressivas más intenções da estrada de Dante que conduz ao inferno. lar - que tradicionalmente se apresenta como a "Pátria da Democra-
Pois o grande poeta italiano nunca sugeriu que a estrada para o inferno cia" por causa do documento histórico que é a Magna Carta -, sob o
de que falava fosse pavimentada exclusivamente de boas intenções. governo de Tony Blair, pleiteia a mesma distinção dúbia do "sistema
O que torna tudo isso particularmente perturbador é que no que de partido único com duas alas direitas". A Guerra do Iraque foi
tange a todas as questões de maior importância - algumas das quais
aprovada nO Parlamento pelos dois partidos, Conservador e "Novo
podem resultar na destruição da humanidade - encontramos nOS Trabalhismo", com a ajuda mais ou menos óbvia de manipulações e
mais altos níveis de decisão nOSEstados Unidos um COnsenSOabsolu-
violações legais. Naturalmente, a denúncia dessas práticas por proemi-
tamente perverso, apesar dos rituais eleitorais periódicos para esco- nentes especialistas em direito com relação à "guerra ilegal de Bush e
lha do presidente e de parlamentares, que deveriam oferecer alterna- Blair"8não fazem a menor diferença. Pois os interesses do imperialismo
o
'"
, Richard Peet, "Perpetual War for a Lasting Peace", Month/y Review, vol. 56, n. 8, janeiro de
2005, p. 55-6. 7 István Mészáros, op. cit., p. 10.
>-
a:: 6 Publicada em Esquire, em junho de 2004. A íntegra pode ser lida em B Ver PhilippeSands,Law/essWorld:Americoand the Makingand Breakingor GlobalRufes
« wvvw.thomaspmbarnett.com/published/esquire2004.htm. (N. E.) (Londres, Penguin Books, 2005).

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hegemônico global - decididos e humilhantemente servidos pelo sis-
tema político consensual de uma antiga potência imperialista - devem
T A Proposta de Reforma Legislativa e Regulatória já foi aprovada numa
segunda leitura no Parlamento sem interesse para a maioria dos deputa-
prevalecer a qualquer custo. dos trabalhistase dos jornalistas;ainda assim ela é absolutamente totali-
As conseqüências dessa forma de regular as relações políticas e tária em seu alcance. L..J Vai significar que o governo pode alterar
sociais têm longo alcance. De fato, elas têm implicações devastadoras secretamente uma Lei do Parlamento,e que a constituiçãoe leis podem
para as pretendidas credenciais democráticas de todo o sistema legal. ser derrubadas por um decreto de DowningStreet.A nova proposta mar-
Três casos importantes deverão bastar para ilustrar essa questão. ca o fimda verdadeirademocraciaparlamentar;nos seus efeitos,ela é tão
O primeiro se refere à denúncia feita pelo famoso escritor John importante quanto o abandono pelo Congressonorte-americanono ano
Mortimer, que no passado sempre apoiou resolutamente o Partido Tra- passado da Carta de Direitos.ll
balhista Britânico e que não é de forma alguma uma figura socialmente Dessa forma, a manipulação e violação do direito nacional e inter-
,radical. Mas à luz dos recentes acontecimentos jurídicos e políticos, em nacional a serviço da justificação do injustificável trazem consigo
particular por causa da abolição da fundamentalmente importante salva- perigos consideráveis até mesmo para os requisitos constitucionais
guarda legal que é o habeas corpus, ele se sentiu na obrigação de protes- mais elementares. Sob pressão direta dos Estados Unidos, para asse-
tar com igual paixão, escrevendo num artigo de jornal que gurar para si mesmo apoio ilegal para suas intervenções e aventuras
hoje surge o fato condenávelde que a idéia de "modernização"do Novo militares em outros países, as alterações negativas - remoção de al-
Trabalhismoé nos levar de volta aos tempos anterioresà MagnaCartae à guns escrutínios e salvaguardas da estrutura legal e política de seus
Cartade Direitos,diassombriosem que ainda não tínhamosa presunçãoda "aliados" - não pode se limitar ao contexto internacional (imposto
inocência.L..JNum grande número de casos Tony Blairparece favorecer pelos Estados Unidos). Elas tendem a solapar toda a constitucionalidade
condenaçõessumáriasexaradaspela políciasem a necessidadede julgamen- em geral, com conseqüências incontroláveis para a operação do sis-
to. Descarta-seassimséculosde constituiçãode que tanto nos orgulha~os.9 tema legal interno dos "aliados dispostos", subvertendo suas tradi-
ções legais e políticas. Arbitrariedade e autoritarismo podem correr
O segundo exemplo mostra como o governo britânico reage às soltos como resultado dessas alterações altamente irresponsáveis, que
críticas graves apresentadas até pelos mais altos órgãos do Judiciário, não hesitam em desorganizar até mesmo a constituição estabelecida.
pela rejeição autoritária. O que ficou claro recentemente: Enquanto isso, tantos problemas graves clamam por soluções au-
O juiz de um tribunal superior classificouontem o sistemaadotado pelo tênticas que poderiam estar bem ao nosso alcance. Alguns deles nos
governode ordens de controlecontrasuspeitosde terrorismo"uma afronta acompanham há várias décadas, impondo terríveis sofrimentos e
à justiça" e decidiu que elas violam as leis de direitos humanos. L..JO sacrifícios a milhões de pessoas. Um exemplo notável de um país
Ministériodo Interior rejeitoua decisãodo tribunal.lO que se limita com o dos senhores é a Colômbia. Durante quarenta
anos as forças da opressão - internas e externas, dominadas pelos
O terceiro exemplo aponta para uma questão de fundamental
Estados Unidos - tentàram sem sucesso sufocar a luta do povo colom-
importância legislativa: a própria autoridade do Parlamento, ameaçada biano. As tentativas de chegar a um acordo negociado - "com a parti-
pelo "Projeto de Reforma" apresentado pelo governo do Novo
cipação de todos os extratos sociais, sem exclusão, para poder recon-
Trabalhismo. Citando John Pilger:
ciliar a faffil1iacolombiana"12,nas palavras do líder das Farc - foram
sistematicamente frustradas. Como escreveu Manuel Marulanda Vélez
numa carta aberta dirigida a um candidato à presidência:
o
'-'
9 E mais, escreveu John Mortimer: "Não posso acreditar que um govemo trabalhista se mos-
trasse tão pronto a destruir o nosso direito, nossa liberdade de expressão e nossas liberdades I1 "John Pilger sees freedom die quietly", New Statesman, 17 de abril de 2006.
I-
aO
civis",TheMail on Sunday,2 de outubro de 2005. 12 Manuel MarulandaVélez, "Três poderes atados à políticauribistae dos seus cúmplices",de
10"Terror Law an ajfront to justice", The Guardian, 13 de abril de 2006. abril de 2006. A carta pode ser lida em http://resistir.info/colombia/marulanda_abr06.html.
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Nenhum governo do bipartidarismo, liberal ou conservador, procurou uma
T A natureza da crise estruturaldo capital
solução política efetiva para o conflito social e armado. As negociações Sob esse aspecto é necessário esclarecer as diferenças relevantes
havidas foram utilizadaspara que nada mudasse de fato, para que tudo entre tipos ou modalidades de crises. Não é a mesma coisa; uma crise
ficasse na mesma. ['..J Todo o esquema político dos governantes para as na esfera social pode ser considerada uma criseperiódica-conjuntural,
negociações assentou na utilizaçãoda Constituiçãoe das leis como bar- ou algo muito mais fundamental. Pois, evidentemente, a maneira de
reira, sem que nada mude, para que tudo continue na mesma.13 enfrentar uma crise fundamental não pode ser concebida em termos
das categorias periódica ou conjuntural das crises.
Assim, quando os interesses sociais dominantes o ditam, a Antecipando um dos principais pontos desta palestra, no que se
"constitucionalidade" e as regras do "consenso democrático" são usa- refere à política, a diferença crucial entre os dois tipos nitidamente
das na Colômbia (e em outras partes) como instrumentos cínicos contrastantes de crises em questão é que as crises conjunturais ou
para contornar e adiar para sempre a solução até mesmo das questões periódicas se desenvo,lvem e se resolvem com maior ou menor su-
mais graves, não importando a imensidão do sofrimento imposto ao cesso dentro de uma estrutura dada de política, ao passo que a crise
povo. E pelo uso dos mesmos artifícios, num contexto social diferente, fundamental afeta a estrutura mesma em sua totalidade. Noutras pa-
mas sob o mesmo tipo de determinações estruturais profundamente lavras, em relação a um sistema socioeconômico e político dado,
arraigadas, são lançadas no descaso as mais gritantes violações da estamos falando da diferença vital entre as crises mais ou menos
constitucionalidade estabelecida, apesar da periódica alegação hipócrita freqüentes na política, por oposição à crise da própria modalidade
da necessidade de respeitar as exigências constitucionais. Nesse mesmo de política, com requisitos qualitativamente diferentes para sua pos-
sentido, quando o Comitê do Congresso norte-americano que investigou sível solução. É a última que me interessa hoje.
o escândalo "Irangate Contras" concluiu que o governo Reagan estava Em termos gerais, essa distinção não é simplesmente uma questão
envolvido na "subversão do direito e no solapamento da Constituição", da gravidade aparente dos diferentes tipos de crises. Pois uma crise
absolutamente nada aconteceu para condenar, muito menos afastar do periódica ou conjuntural pode ser dramaticamente grave - como o foi
cargo, o presidente culpado. a "Grande Crise Econômica Mundial de 1929-1933"-, e ainda assim ter
Como mostrei no início, não podemos atribuir os problemas crôni- uma solução viável dentro dos parâmetros do sistema dado. Interpre-
cos das nossas interações sociais a contingências políticas mais ou menos tar erroneamente a gravidade de uma crise conjuntural como se ela
facilmente corrigíveis. Há tanta coisa em jogo, e historicamente temos fosse uma crise sistêmica fundamental, como fizeram Stalin e seus
um tempo muito limitado para reparar de forma socialmente sustentá- conselheiros durante a "Grande Crise Econômica de 1929-1933", leva a
veios sofrimentos óbvios das classes sociais estruturalmente subordi-
estratégias erradas e voluntaristas, como declarar, no início dos anos
nadas. Não se pode fugir indefinidamente da pergunta por quê? - com 30, ser a socialdemocracia o "principal inimigo" que só poderia for-
relação às questões substantivas, e não simplesmente às falhas pessoais talecer, como de fato fortaleceu, as forças de Hitler. E da mesma forma,
contingentes, mesmo quando são graves, como o são os exemplos da mas em sentido oposto, o caráter "não-explosivo" de uma crise estru-
ampla corrupção política. É necessário investigar as causas e as deter- tural prolongada, por oposição às "tempestades" (Marx) por meio das
minações sociais profundamente arraigadas que estão nas raízes das quais as crises periódicas conjunturais se descarregam e resolvem, pode
tendências negativas perturbadoras da política e do direito para ser também levar a estratégias fundamentalmente mal concebidas, como
capaz de explicar sua persistência e agravamento obstinados em nossos resultado da falsa interpretação da ausência de "tempestades" como se
dias. "Por quê?" é a pergunta que desejo examinar agora. sua falta fosse evidência inegável da estabilidade permanente do "capi-
o talismo organizado" e da "integração da classe trabalhadora". Esse tipo
" de interpretação errada, que é pesadamente promovido pelos interesses
I-
ideológicos dominantes sob o disfarce da "objetividade científica", tende
131bidem, a reforçar a posição dos que representam a aceitação das abordagens
'"
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-,r-
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reformistas e acomodadoras pelos partidos e sindicatos operários mente empenhada na "administração da crise" e no "deslàcamento" mais
institucionalizados - que já foram autenticamente de oposição, e que ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia.
hoje são a "Oposição Oficial de Sua Majestade", como geralmente se L.,]
diz. Mas, mesmo entre os ct;íticos mais compromissados do sistema do Em termos simples e gerais, uma crise estrutural afeta a totalidade de um
capital, a mesma concepção errada relativa à perspectiva da ordem complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou
estabelecida estar indefinidamente livre de crises pode resultar na adoção subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada.
de uma postura dfifensiva paralisadora, como já vimos no movimento Diferentemente, uma crise não-estrutural afeta apenas algumas partes do
socialista ao longo das últimas décadas. complexo em questão, e assim, não importa o grau de severidade em
Nunca é demais salientar que a crise da política nos nossos dias não relação às partes afetadas, não pode põr em risco a sobrevivência contí-
é inteligível sem referência à ampla estrutura social de que a política é nua da estrutura global.
parte integral. Isso significa que, para esclarecer a natureza da persis- Sendo assim, o deslocamento das contradições só é possível enquanto a crise
tente e profunda crise da política em todo o mundo hoje, devemos for parcial, relativa e interiormente manejável pelo sistema, demandando
concentrar a atenção na crise do próprio sistema do capital. Pois, a apenas mudanças - ainda que importantes - no interior do próprio sistema
crise do capital que hoje nos acossa - pelo menos desde o início da relativamente autõnomo. Justamente por isso, uma crise estrutural põe em
década de 197014- é uma crise estrutural totalmente abrangente. questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua
Vejamos, em breve resumo, as características definidoras da crise transcendência e sua substituição por algum complexo alternativo.
estrutural que nos preocupa. O mesmo contraste pode ser expresso em termos dos limites que qual-
quer complexo social particular venha a ter em sua imediaticidade, em
A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspec-
qualquer momento determinado, se comparado àqueles além dos quais
tos principais:
não pode concebivelmente ir. Assim, uma crise estrutural não está
(1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular relacionada aos limites imediatos mas aos limites últimos de uma es-
(por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo trutura global.15
particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho,
com sua gama especifica de habilidades e graus de produtividade etc.); Assim, num sentido bastante óbvio, não há nada mais sério do
(2) seu aléance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e amea- que a crise estrutural do modo de reprodução metabólica do capi-
çador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países tal que define os limites últimos da ordem estabelecida. Mas ainda
(como foram todas as principais crises do passado); que profundamente grave em seus parâmetros gerais da maior im-
(3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em portância, a crise estrutural pode não parecer ter importância tão de-
lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital; cisiva quando comparada às dramáticas vicissitudes de uma grande
(4) em contraste com as erupções e colapsos mais espetaculares e dramá- crise conjuntural. Pois as "tempestades" pelas quais as crises conjunturais
ticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de se descarregam são paradoxais no sentido de que, em seu modo de
rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as funcionamento, não apenas se descarregam (e se impõem), mas também
convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se resolvem, até o ponto em que tal seja possível nas circunstâncias.
se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativa- Isso é possível exatamente em virtude de seu caráter parcial que não
coloca em questão os limites últimos da estrutura global estabelecida.
o Mas, ao mesmo tempo, e pela mesma razão, elas só podem "resolver"
CJ os arraigados problemas estruturais subjacentes - que necessariamente
14 Escreviem novembro de 1971, no Prefácioà TerceiraEdiçãode Marx'sTheoryof Alienation,
f- que a evolução dos acontecimentos e desenvolvimentos "enfatizava dramaticamente a intensi-
a:: ficação da crise estrutural global do capital". Em português, A teoria da alienação em Marx (São
« Paulo, Boitempo, 2006). 15 Citação da seção 18.2.1 de Para além do caPital (São Paulo, Boitempo, 2002), p. 796-7.

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se afirmam sob a forma de crises conjunturais específicas - de uma Sob esse aspecto, a grande pergunta é: até quando essa espécie de
forma estritamente parcial e temporalmente mais limitada. Ou seja, rompimento e reconstituição pode levar à efetiva coesão funcional
até que surja no horizonte da sociedade a próxima crise conjuntura!. do sistema dado, sem ativar a crise estrutural do capital? O ajuste
Em comparação, dada a natureza inevitavelmente complexa e pro- forçado das relações de força entre Estados não parece constituir um
longada da crise estrutural, que se desenvolve ao longo do tempo limite último. Afinal, é preciso lembrar que a humanidade foi obriga-
histórico, num sentido de eras, é a inter-relação cumulativa do todo da a sofrer, e sofreu, os horrores de duas guerras mundiais sem colo-
que decide a questão, ainda que sob a falsa aparência de "normalida- car em discussão a validade de o capital permanecer como controlador
de'. E é assim porque na crise estrutural tudo está em jogo, envolvendo da nossa reprodução metabólica social, o que se pode considerar
os limites últimos da ordem dada, de que não pode existir um exemplo não só compreensível, mas, pior ainda, aceitável, pois sempre per-
particular "simbólico/paradigmático". Sem entender as ligações tenceu à normalidade o fato de o capital estabelecer que "deve ha-
sistêmicas gerais e as implicações dos acontecimentos e desenvolvi- ver guerra se o adversário não puder ser dominado de outra forma".
mentos particulares, perdemos de vista as mudanças realmente signifi- Entretanto, o problema é esse tipo de "raciocínio" - que nunca foi
cativas e as correspondentes alavancas de intervenção estratégica po- tão racional quanto na afirmação de que "o poder está certo, apesar
tencial para afetá-Ias positivamente, no interesse da necessária das conseqüências" - ser hoje totalmente absurdo. Pois uma Terceira
transformação sistêmica. Nossa responsabilidade social exige uma cons- Guerra Mundial não vai parar no ponto da dominação apenas do
ciência crítica intransigente da inter-relação cumulativa emergente, em adversário denunciado: vai destruir toda a humanidade. Quando lhe
lugar da procura da tranqüilidade confortadora num mundo de nor- perguntaram com que armas se lutaria a Terceira Guerra Mundial,
malidade ilusória até que a casa desabe sobre nossa cabeça. Albert Einstein respondeu que não sabia, mas que tinha absoluta
Dada a crise estrutural do capital em nossos dias, seria um milagre certeza de que todas as guerras subseqüentes seriam lutadas com
absoluto a crise não se manifestar - num sentido profundo e de machados de pedra.
longo alcance - no domínio da política. Pois a política, ao lado da Sempre foi grande o papel da política na reconstituição da ne-
correspondente estrutura do direito, ocupa uma posição de impor- cessária coesão no sistema do capital. O sistema simplesmente não
tância vital no sistema do capital. Isso se deve ao fato de o Estado se manteria sem ela, pois tenderia a se quebrar em mil pedaços sob
moderno ser a estrutura totalizadora de comando político do capital, a força centrífuga de seus elementos constituintes. O que geralmen-
necessária (enquanto sobreviver a ordem reprodutiva estabelecida) te se apresenta na normalidade do capital como uma grande crise
para introduzir alguma espécie de coesão (ou unidade efetivamente política deve-se, num sentido mais profundo, à necessidade de pro-
funcional) - ainda que problemática e periodicamente rompida - na duzir uma nova coesão da sociedade em geral, de acordo com a
multiplicidade dos elementos centrifugos (os "microcosmos" produ- relação de forças materialmente alterada - ou em alteração. Assim,
o
tivos e distributivos) do sistema do capital. por exemplo, não se pode deixar livres as tendências monopolistas '"
Essa espécie de coesão só pode ser instável porque depende da de desenvolvimento sem causar problemas gravíssimos na sociedade.
sempre predominante, mas por sua própria natureza mutável, rela- De alguma forma, elas devem ser presas a uma estrutura relativa- N
ção deforças. Quando se rompe, devido a uma alteração significativa mente coesa pela política - a estrutura de comando totalizadora do
da relação de forças, ela deve ser reconstituída de alguma forma para capital -, o que deve ser feito mesmo que os passos regulatórios
se ajustar à nova relação de forças, até se romper novamente. E assim adotados geralmente não passem de uma gritante racionalização e
o
vai, como se fosse norplal. Esse tipo problemático de dinâmica auto- justificação ideológica da nova relação de forças, a ser relaxada em
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renovável se aplica internamente, entre as forças dominantes de cada favor das corporações monopolistas (ou quase monopolistas) como
país em particular, e internacionalmente, exigindo ajustes periódicos indicam as novas tendências subjacentes. Naturalmente, os desen-
f-- nas relações de poder que se alteram dos vários estados na ordem volvimentos monopolistas internacionais ocorrem sobre a base do
'" global do capital. mesmo tipo de determinação. Mas todos esses processos são em
«

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princípio compatíveis com a normalidade do capital, sem necessa- cupação do país avassaladoramente dominante, hoje os Estados Uni-
riamente resultar na crise estrutural do sistema. Nem na crise estru- dos, é, na condição de potência suprema do imperialismo hegemõnico
tural da política. Pois, no que se refere à questão da crise, ainda global, garantir e manter o controle sobre o sistema global do capital.
estamos falando de crises na política - ou seja, crises particulares Mas dados os proibitivos custos humanos e materiais, que têm de ser
que evoluem e se resolvem dentro dos parâmetros administráveis pagos de uma forma ou de outra, esse projeto de dominação global
do sistema político estabelecido -, e não da crise da políticÇl. carrega inevitavelmente consigo perigos imensos e resistência implíci-
As instituições políticas estabelecidas têm a importante função de ta, não só internacionalmente, mas também internamente.
administrar, no sentido de rotinizar, a forma mais conveniente e du- No período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, o "fim do
rável de reconstituir a 'coesão social necessária, em sintonia com os imperialismo" foi ingênua e apressadamente comemorado. Pois na
desenvolvimentos materiais em curso e com a correspondente altera- realidade vimos apenas um ajuste havia muito esperado da relação
ção da relação de forças, ativando também ao mesmo tempo o arse- internacional de forças, projetado no discurso de posse do presidente
nal cultural e ideológico existente a serviço desse fim. Nas socieda- Roosevelt, em que ele propõe a "política de portas abertas" em todo o
des capitalistas democráticas, esse processo no domínio político é mundo, inclusive nos territórios coloniais. O ajuste do pós-guerra trouxe
administrado sob a forma mais ou menos genuinamente contestada consigo a relegação das antigas potencias coloniais às segunda e terceira
de eleiçõesparlamentares periódicas. Mesmo quando a exigência dos divisões, como forças subordinadas do imperialismo norte-americano.
ajustes reconstituidores necessários não pode ser contida dentro des- Entretanto, durante vários anos - durante o período de reconstrução e
ses parâmetros, devido a mudanças importantes na relação de forças, de- relativamente tranqüila expansão econômica que auxiliaram no es-
gerando tipos ditatoriais de intervenção político-militar, ainda pode- tabelecimento e financiamento do Estado de bem-estar social após o
mos falar de crises na política controláveis pelo capital, desde que fim da guerra - a principal mudança saudada pela "política de portas
mais cedo ou mais tarde se veja uma volta à "constitucionalidade abertas" (ou melhor, abertas para os Estados Unidos), imposta pela
democrática" característica da normalidade do capital. força, combinou-se com a ilusão de que o imperialismo estava defini-
Mas é muito diferente quando processos e tendências de desenvol- tivamente relegado ao passado. Ela também se combinou com a ideo-
vimento profundamente autoritários começam a predominar não nas logia amplamente difundida, que infectou não apenas intelectuais, mas
regiões subordinadas, mas no núcleo - as partes estruturalmente domi- também importantes movimentos organizados da esquerda tradicio-
nantes - do sistema global do capital. Nesse caso, torna-se incontrolável nal, segundo a qual as crises admitidas da ordem socioeconômica e
o antigo padrão de "contabilidade dupla", que consiste em dominar política estabelecida antes da guerra pertenciam irrevogavelmente ao
implacavelmente (ou militar e imperialisticamente) outros países, man- passado. Essa ideologia foi promovida - junto com sua irmã gêmea
tendo ao mesmo tempo internamente as "regras do jogo democrático", que pregava o "fim da ideologia" - sob a premissa gratuita de que o
inclusive a total observância da constitucionalidade. Enquanto for viável, vivíamos agora no mundo do "capitalismo organizado" que conseguiu "'
o deslocamento das contradições é uma aspiração sistêmica do capital. dominar permanentemente suas contradições. .«
Dadas as hierarquias estruturais que predominam, e devem predominar Nas duas últimas décadas, vimos a intensificação da volta do im- N

sempre nas relações entre Estados, é parte da normalidade do sistema perialismo palpavelmente gritante, depois de ter sido, durante muito
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que os países dominantes tentem exportar - sob a forma de interoen- tempo, muito bem camuflado como o mundo pós-colonial da "de- ;[11I
ções violentas, inclusive guerras - suas contradições internas para outras mocracia e liberdade". E, nas circunstâncias atuais, assumiu uma for-
partes menos poderosas do sistema. ma particularmente destrutiva. Hoje, casado com a afirmativa clara z
o
Mas isso se torna tanto mais difícil- apesar da mitologia interesseira da necessidade de se engajar, no presente e no futuro, em "guerras
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da "globalização universalmente benéfica" - quanto mais entrelaçado ilimitadas", domina o palco histórico. Ademais, como já mencionado >
>- se torna o sistema do capital. Por isso, as mudanças significativas de- antes, ele não se furtou nem mesmo a decretar a "legitimidade moral"
"' do uso de armas nucleares contra países que não as possuem.
vem gerar graves conseqüências por toda parte. Pois a primeira preo-
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Desde o começo da crise estrutural do capital, no início da década cepção, apesar da sua terminologia enganosa, não é muito diferente
de 1970, os graves problemas do sistema se acumularam e agravaram da teorização de Thomas P. M. Barnett, citada anteriormente, de como
em todos os campos, entre eles o da política. Embora, contrariamen- lidar com a deplorada "condição de desconexão".
te a todas as evidências, o desejo da "glob~lização universalmente Se hoje existem "muitos Estados", não se pode pretender que eles
benéfica" continue sendo alardeado em toda parte, não temos órgãos deixem de existir. Nem podem eles ser destruídos pela devastação
políticos internacionais viáveis que poderiam reduzir as conseqüên- militar, de forma a estabelecer sobre tal base a felicidade globalizada
cias negativas claramente visíveis das tendências atuais de desenvol- da "nova normalidade". Interesses nacionais legítimos não podem
vimento. Mesmo o potencial limitado das Nações Unidas é anulado ser reprimidos indefinidamente. De todos os lugares no mundo, o
pela determinação norte-americana de impor ao mundo as políticas povo da América Latina pode eloqüentemente atestar essa verdade.
agressivas de Washington, como se deu no caso da guerra contra o A crise estrutural da política é parte integral da longa e pustulenta
Iraque justificada por premissas falsas. crise estrutural do capital. Ela é ubíqua e, conseqüentemente, não
Agindo assim, o governo dos Estados Unidos investiu em si próprio pode ser solucionada pela manipulação de forma autoperpetuadora
o papel indiscutível de governo global do sistema do capital, sem se e apologética de cada um de seus aspectos políticos isolados. Muito
perturbar pelo pensamento do fracasso necessário desse projeto. Pois menos ser resolvida pela manipulação da constitucionalidade, de que
não basta desencadear a "força avassaladora", como prescreve a dou- vemos vários exemplos alarmantes. Nem pela subversão e abolição
trina militar dominante, destruindo o exército do adversário e infligin- completa da constitucionalidade. Nosso modo estabelecido de con-
do ao longo das aventuras militares imensos "danos colaterais" sobre trole metabólico social está em crise profunda, e só pode ser curado
toda a população. Questão inteiramente diferente é a ocupação e do- pela instituição de outro radicalmente diferente, baseado na igualda-
minação sustentáveis e permanentes dos países assim atacados. Imagi- de substantiva que se torna viável na nossa época, pela primeira vez
nar que mesmo a maior superpotência militar possa fazê-Io, como na história. Muitas pessoas corretamente criticam os fracassos óbvios
parte da imposição da "normalidade forçada" ao mundo todo e sua da política parlamentar. Mas também sob esse aspecto, o necessário
estipulação nesse sentido como um dilema inalterável da "nova ordem reestudo do passado e presente do parlamentarismo não produzirá
mundial", é uma proposição totalmente absurda. resultados sustentáveis se não estiver inserido no seu contexto am-
Infelizmente, eventos e desenvolvimentos vêm apontando nessa plo, como parte integral da nova ordem metabólica social pretendi-
direção já há bastante tempo. Pois não foi o presidente George W. da, inseparável das exigências da igualdade substantiva. Muitos con-
Bush, mas o presidente Clinton, quem arrogantemente declarou que cordam hoje que - dada a sua escalada destrutiva, até mesmo no
"existe apenas uma nação necessária, os Estados Unidos". Os neo- plano ambiental, bem como na esfera da produção e da acumulação
cons só pretendem estar à altura desse credo e impô-Io ao mundo. perdulária de capital, sem mencionar as crescentes manifestações di-
o
Mas nem mesmo os chamados "liberais" têm condição de, no mesmo retas da mais irresponsável destruição militar - nossa ordem metabó- n::
espírito, pregar algo mais positivo que esse credo pernicioso. Eles se lica social não é viável no longo prazo. Entretanto, o que deve ser .",
queixam de que temos hoje no mundo "número excessivo de Estados", trazido para o primeiro plano de nossa consciência crítica das ten- N

e defendem a chamada "integração jurisdicional"16como solução viá- dências atuais dos desenvolvimentos e de seus impactos cumulativos
vel para esse problema. Ou seja, uma grotesca integração jurisdicional é o fato de o longo prazo hoje estar se tornando cada vez mais curto.
que na verdade significa a pseudolegitimação de um controle direto L
Nossa responsabilidade é fazer algo antes que seja tarde demais.
o
autoritário dos deplorados "muitos Estados" por um punhado de
z
potências imperialistas, principalmente os Estados Unidos. Essa con- .",
CJ

>
f- f-
n::

<C 16 Ver Martin Wolf, Why G/obolizotion Works? (New Haven, Yale University Press, 2004).

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