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Neste curso trataremos da filosofia da matemática em Quine. O americano Willard Van


Orman Quine (1908 – 2000) é uma figura fundamental da chamada filosofia analítica. Quine é
um filósofo sistemático e tanto a filosofia da matemática tem um papel muito relevante em
seu pensamento como ele tem uma influência muito grande na filosofia da matemática. O
naturalismo, o empirismo e o holismo são três aspectos centrais do sistema filosófico de Quine
como um todo e de sua filosofia da matemática em particular. Comecemos examinando esses
três aspectos.

O empirismo, em uma primeira aproximação, é a doutrina segundo a qual a base do


conhecimento está nas experiências dos sentidos, isto é, nas experiências visuais, auditivas,
táteis, olfativas e gustativas.

Observação: fizemos uma simplificação quando, acima, nos restringimos aos cinco sentidos
tradicionais, a saber, visão, audição, tato, olfato e paladar; poderíamos ter incluído também,
por exemplo, a diferença que conseguimos perceber sensorialmente entre subir uma ladeira
mais acentuada e subir uma ladeira menos acentuada; para os nossos propósitos neste curso,
podemos, ao menos por ora, ficar com a simplificação feita.

Observação: o grande rival do empirismo é o racionalismo, que, também em uma primeira


aproximação, é a doutrina segundo a qual a base do conhecimento está na razão e não nas
experiências dos sentidos.

O conhecimento matemático é considerado por uma parte expressiva da tradição filosófica


como a priori, isto é, uma parte expressiva da tradição filosófica entende que o conhecimento
matemático não tem como base as experiências dos sentidos. Aqui, um ponto importante a
esclarecer é que sustentar que o conhecimento matemático não tem como base as
experiências dos sentidos não é sustentar que um ser humano desprovido, por alguma razão,
de todos os sentidos poderia adquirir conhecimento matemático, mas sim que as experiências
dos sentidos não constituem evidência em favor do conhecimento matemático; afinal,
teoremas da matemática não são estabelecidos por experimentação ou observação, mas sim
por demonstração. Esse estado de coisas em que o conhecimento matemático é amplamente
visto como a priori combina com o racionalismo e torna especialmente difícil a construção de
uma filosofia empirista da matemática. Neste curso veremos como Quine lidou com esse
problema.

Outra característica que, segundo grande parte da tradição filosófica, o conhecimento


matemático possui é a de dizer respeito a objetos abstratos. É difícil caracterizar com precisão
e generalidade o que seja um objeto abstrato, mas para os propósitos deste curso podemos
dizer que objetos abstratos são aqueles que não têm localização espaço-temporal e não
participam de relações causais. Alguns exemplos de objetos abstratos seriam os objetos
matemáticos como números, funções, estruturas algébricas, conjuntos. Claro está que
uma(um) empirista, ou seja, alguém que, novamente, em uma primeira aproximação, defende
que a base do conhecimento está nas experiências dos sentidos, não se sente, em princípio, à
vontade tendo de lidar com objetos abstratos. Mais uma dificuldade, portanto, para a
construção de uma filosofia empirista da matemática. Entretanto, há uma outra doutrina
filosófica cujos proponentes ficam ainda mais desconfortáveis diante do discurso sobre objetos
abstratos. Essa doutrina é o nominalismo. Para as(os) nominalistas não existem objetos
abstratos e ponto final. O nominalismo tem uma origem medieval com Ockham (c.1285 –
1349) associada ao chamado problema dos universais. Por exemplo, tenho diante de mim uma
caneta vermelha e uma caneca vermelha. Essa caneta e essa caneca têm em comum a
vermelhidão. A vermelhidão é um universal. Vejo, ao longe, uma bela árvore e uma bela
montanha. Essa árvore e essa montanha têm em comum a beleza. A beleza é um universal. A
caneta, a caneca, a árvore e a montanha são particulares. Dizemos que a caneta e a caneca
instanciam ou exemplificam a vermelhidão e que a árvore e a montanha instanciam ou
exemplificam a beleza. Na antiguidade tanto Platão como Aristóteles são realistas quanto aos
universais, isto é, os dois entendem que os universais são reais, existem. Platão e Aristóteles,
contudo, defendem duas formas diferentes de realismo quanto aos universais. Para Platão,
vale a teoria da separação; grosso modo, os universais existem separados dos particulares que
os instanciam; a vermelhidão e a beleza, por exemplo, são formas perfeitas, eternas e
imutáveis; se destruirmos todos os particulares vermelhos, nada acontecerá com a
vermelhidão; se destruirmos todos os particulares belos, nada acontecerá com a beleza. Para
Aristóteles, vale a teoria da inerência (o predicado é inerente ao sujeito); novamente grosso
modo, os universais existem nos particulares que os instanciam; se destruirmos todos os
particulares vermelhos, a vermelhidão será destruída; se destruirmos todos os particulares
belos, a beleza será destruída. Já Ockham é antirrealista quanto aos universais, isto é, para ele
os universais não existem; os universais nada mais são que palavras (nome, em latim, por isso
a doutrina de Ockham é chamada de nominalismo). O nominalismo é uma corrente
importante na filosofia da matemática dos séculos XX e XXI. Embora tenha Ockham como um
precursor distante, o nominalismo em filosofia contemporânea da matemática tem uma vida
própria desvinculada das origens medievais; rejeitar o que seriam os objetos abstratos da
matemática, por exemplo, números, funções, conjuntos, é muito diferente de rejeitar a
vermelhidão ou a beleza, dentre outras razões porque objetos da matemática são
maciçamente utilizados na ciência e os nominalistas contemporâneos em filosofia da
matemática não querem, é claro, rejeitar a ciência. Podemos dizer que o nominalismo
contemporâneo em filosofia da matemática começa com Quine e Nelson Goodman (1906 –
98). Em 1947 eles publicaram o artigo “Steps toward a constructive nominalism” no Journal of
Symbolic Logic, 12, páginas 105 a 122. Eles começam esse artigo dizendo que não acreditam
em entidades abstratas. Mas Quine mudou de posição e não apenas passou a aceitar uma
parte expressiva dos objetos abstratos da matemática como construiu um sistema filosófico
em favor da realidade desses objetos. Não vamos estudar nesta disciplina a fase nominalista
de Quine. Sua doutrina realista em filosofia da matemática será examinada mais adiante no
curso.

No próximo texto continuaremos a tratar do empirismo de Quine.

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