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O jornalismo como gênero literário


Márcia de Oliveira Pinto
Departamento de Comunicação Social / UERN

Resumo - Definir a identidade que une a literatura e o jornalismo


não é simples. Não há fronteiras delimitadas entre eles. São dois
pólos que se confundem, ora se atraem, ora de repelem. Este tra-
balho, de cunho teórico, apresenta uma revisão bibliográfica das
relações entre a literatura e o jornalismo através do confronto/diál-
ogo de suas teorias. Este é um estudo que se pretende interdisci-
plinar e busca legitimar os lugares híbridos nos quais se inscrevem
o discurso literário e o jornalístico. “... no lugar de uma literatura
única, aparecem agora numerosos tipos de discurso que também
merecem nossa atenção”, conforme destaca Todorov (1980) sobre
a variedade do discurso literário. Nesse sentido, torna-se perti-
nente investigar o jornalismo como sendo um gênero da literatura,
apoiado na concepção metodológica e racional dos gêneros
literários, conforme propõe Amoroso Lima (1960) advogando a
favor do jornalismo enquanto uma das categorias da literatura,
com regras e estilo próprio.
Palavras-chave: Jornalismo. Literatura. Gêneros.

Abstract - To define the identity that links literature and journal-


ism is not a simple task. There’s no defining limit between them.
Literature and Journalism are two elements that sometimes merge,
sometimes repel or even attract each other. This Theoretical arti-
cle presents a bibliographic view of relations between Literature
and Journalism through the comparison of their theories. This is a
study that intends to have intedisciplinarity as well as search the
places in which the two subjects in focus merge. “…instead of an
unique literature, there are now several kinds of writing forms,
that also deserve our attention”, as written by Todorov (1980)
about the variety of written forms. Following this line of though,
it’s only fair to investigate journalism as a form of literature, seek-
ing basis on the method concept of literature itself, as proposed

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by Amoroso Lima (1960), who puts journalism as an actual liter-


ary form, with its own rules and characteristics.
Keywords: Journalism. Literature. Form.

Muito se questiona a ligação entre a literatura e o jornalismo. Esta


ligação deriva, muitas vezes, quer da proximidade dos códigos quer do tra-
tamento estético a que ambas as modalidades estão sujeitas. Essa é uma
questão antiga e ainda bastante discutida. As dificuldades partem da impos-
sibilidade de distinguir entre forma, estilo e, às vezes, conteúdo. Não há di-
ferença substancial na linguagem, os critérios mudam de acordo com a
época. Inclusive, mudam os conceitos de literatura e de gêneros literários.
Os teóricos da literatura não incluem na classificação dos gêneros
literários o jornalismo, enquanto alguns gêneros não-ficcionais, como a bio-
grafia, a epístola e a crítica, aparecem na classificação dos gêneros da lite-
ratura proposta por muitos estudiosos da literatura.
Por outro lado, alguns estudos (ainda que poucos) ligados à litera-
tura (AMOROSO LIMA, 1960; OLINTO, 1954) defendem o jornalismo
como sendo um gênero literário. Os argumentos contrários à não classifica-
ção do jornalismo na categoria literária valem-se da questão da ficcionali-
dade e da linguagem (estética). Mas onde a literatura vai buscar sua ficção,
senão na realidade? O repórter, ao relatar os fatos, já está inserindo na notí-
cia sua visão dos acontecimentos ou da linha editorial da empresa na qual
trabalha, e assim a notícia, ao sair do real, já ganha um contorno de ficção.
Quanto à linguagem, sabe-se, tanto a literária quanto a jornalística, valem-
se do mesmo código, portanto, o que poderia fazer a diferença seria o sis-
tema de valor: bom/ruim. Ora, se a linguagem literária assim for considerada
pelo mérito (valor: bom), então teríamos que afastar da literatura tudo aquilo
que pode ser considerado não-bom e, dessa forma, boa parte da ficção e da
poesia não deveria ser enquadrada como literatura. Do mesmo modo há que
se considerar que o texto jornalístico também se enquadra nessa noção de
valor: há os textos bons e os medíocres, e isto se concebendo tais textos den-

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tro de padrões absolutamente jornalísticos. Como não é possível “jogar na


lixeira” a produção literária (romance, conto e poesia) considerada ruim, da
mesma maneira não podemos etiquetar o jornalismo pelo fator qualidade. Há
que se considerar ainda que muitos teóricos da literatura colocam em jogo
fatores como conotação, plurissignificação, polissemia, opacidade do signo
lingüístico como responsáveis pela “literariedade”. Quanto a esse tipo de
critério (convenhamos que a questão é de cunho mais terminológico, uma
vez que, mutatis mutandis, todas essas expressões têm o mesmo signifi-
cado), também o jornalismo se serve, na construção do texto, de uma lin-
guagem não exclusivamente referencial nem unívoca. De modo que, “dado
o caráter heterogêneo da literatura, nem a ficcionalidade (...), nem a pluris-
significação constituem fatores que, isoladamente, possam definir satisfa-
toriamente a literatura” (SILVA, 1973, p.69) e servir de justificativa para
não classificar o jornalismo como um gênero dela.

O que é literatura?
Não é de hoje que se questiona o problema do conceito de litera-
tura. Desde a Antigüidade que se procura conceituá-la de modo convincente
e conclusivo. Mas por mais plausíveis que possam parecer as tentativas para
clarificar a questão, o problema continua aberto e os resultados inócuos ou,
no mínimo, pouco convincentes.
A palavra literatura encontra-se intensamente afetada pelo fenô-
meno da polissemia, impossibilitando definições claras e precisas. Pode-se
entendê-la sob diversos aspectos. Para alguns ela é a arte de bem escrever,
para outros, pura ficção. Há ainda quem a considere uma rejeição intencio-
nal dos hábitos lingüísticos (desvio). Múltiplas e desencontradas são as res-
postas dadas à pergunta: o que é literatura?
Segundo sua origem, o vocábulo literatura provém do latim “lit-
tera” e do grego “grammatiké”. Ambos significam a mesma coisa: letra, e
não esclarece em nada o que possa ser a literatura, quando muito, levaram

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a literatura para o âmbito da escrita.


A teoria clássica acreditava que a essência da arte apóia-se na imi-
tação da realidade (mimesis). Esse conceito de imitação remonta a Platão e
Aristóteles. Na “República”, de Platão, a imitação tem valor depreciativo,
tendo em vista que a realidade, para ele, era uma forma ideal. O trabalho
humano seria apenas uma cópia imperfeita por ser cópia da cópia. Entre-
tanto, na “Poética”, de Aristóteles, a imitação apresenta-se de forma positiva,
como representação ou recriação da realidade.
A partir do século XVIII, uma mudança de paradigma passa a de-
signar a literatura como uma atividade específica e assim a palavra ganha o
sentido de poesia, belas artes ou eloqüência. A evolução semântica da pala-
vra já nos revela dificuldade para se estabelecer um conceito incontestável
de literatura.
Para Hamburger (1975, p.02) literatura é ficção. E muitos são os
que concordam com essa perspectiva da literatura como uma escrita imagi-
nativa. Porém tal afirmação não é totalmente defensável. O que dizer, por
exemplo, das histórias em quadrinhos? Não são elas pura ficção? Entretanto,
como lembra Eagleton (1994, p.02), elas não são consideradas como literá-
rias. Ademais, como lembra Todorov (1980, p.15) “se tudo aquilo que é ha-
bitualmente considerado como literário não é forçosamente ficcional,
inversamente toda ficção não é obrigatoriamente literatura”. Assim, nem
toda ficção é literatura e nem toda literatura é ficção. Não se pode aplicar à
literatura a ficção como um aspecto determinante, mas talvez, como um
traço característico.
A verdade é igual dentro e fora da literatura, isto é, um conheci-
mento ordenado e publicamente verificável, conforme destaca Wellek e War-
ren (1976, p.37-38): “O oposto da ficção não é a verdade, mas o fato ou a
existência no tempo e no espaço. O fato é mais estranho do que a probabi-
lidade, e com esta é que tem a literatura de tratar.”
A linguagem é o material da literatura, e em si uma criação do

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homem, repleta da herança cultural e ideológica de um grupo lingüístico. O


estudo da literatura está intimamente ligado à história da civilização. A cria-
ção literária perfaz-se no seio da uma tradição técnico-literário e histórico-
cultural. “Se é certo que muitas das obras estudadas como literatura nas
instituições acadêmicas foram construídas para serem lidas como literatura,
também é certo que muitas não o foram”. (EAGLETON, 1994, p.09).
Há outra tendência, a de considerar-se literatura como sendo uma
escrita bela. Alguns teóricos se limitam ao estilo e à composição dos gran-
des livros, tendo como critério a estética. “Os julgamentos de valor pare-
cem ter, sem dúvida, muita relação com o que se considera – não
necessariamente no sentido de que o estilo tem de ser belo para ser literário,
mas sim de que tem de ser do tipo considerado belo”. (EAGLETON, 1994,
p.11). Porém, a palavra “belo” é tão problemática quanto a palavra “litera-
tura”. A estética, termo cunhado por Baumgartem no século XVIII tem por
objeto, como disse Hegel, “o vasto império do belo” e a questão da beleza
é extremamente particular. “O juízo do gosto é um juízo (...) que se baseia
em fundamentos subjetivos” como afirma o filósofo Kant. (RUSS, 1994;
MORA, 1983). Pode-se dizer que belo é o que agrada na tentativa de criar
um conceito universal. Mas tudo que agrada é necessariamente belo? Um
mesmo objeto não pode agradar a uma pessoa e desagradar à outra? Definir
a literatura apenas nesses moldes é insuficiente. Como se pode observar,
vincular a literatura ao problema estético não diminui as dificuldades.
Os formalistas russos verificaram os textos literários na prática,
aplicando à literatura os estudos lingüísticos. Para esses estudiosos, o cará-
ter “literário” advinha das relações diferenciais entre um tipo de discurso e
outro. Eles consideravam a literatura como um conjunto de desvios da
norma, uma “violência organizada contra a fala comum” (JAKOBSON apud
EAGLETON, 1994, p. 2). A diferença da linguagem literária estaria no fato
dela “deformar” a linguagem comum causando com isso uma espécie de es-
tranhamento. Caberia, portanto, se assim fosse, estabelecer a norma da qual

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a literatura se desvia. Há nesse caso uma grande dose de relativização, pois


as normas e os desvios se modificam de um contexto social e histórico para
outro. Parafraseando Eagleton (1994, p.06), ao dizer que o vestibular é “uma
pedra no meio do caminho”, estou usando uma linguagem literária ou não?
A frase provém de uma famosa poesia de Drummond que, por sua vez, já
dialoga com uma prática do uso “comum” da linguagem. A linguagem em
si não possui nenhuma propriedade ou qualidade que a diferencie de outros
tipos de discurso, ela não exige que nenhuma atenção particular lhe seja dis-
pensada enquanto desempenho verbal e, por isso, é falha a afirmação de que
o desvio garanta a caracterização do discurso literário. Pensar a literatura
dessa forma é trazer à prosa as técnicas utilizadas para a poesia, esquecendo
as outras formas literárias.
Dado o caráter heterogêneo da literatura, torna-se impossível de-
fini-la de forma objetiva visando estabelecer e clarificar o seu conceito.
“Têm falhado sempre todas as tentativas de descobrir leis gerais em litera-
tura.” (WELLEK e WARREN,1976, p.17). Todas as tentativas verificadas
dão conta de muitas obras habitualmente consideradas literárias, mas não
de todas.

A questão controversa dos gêneros


As mesmas dificuldades encontradas para conceituar literatura per-
sistem também na classificação dos gêneros, que desde a Antigüidade até os
nossos tempos têm sofrido múltiplas variações históricas devido à diver-
gência de concepções, permanecendo como um dos problemas mais árduos
da estética literária, o que torna inviável uma solução uniforme.
A palavra gênero deriva do latim “genus”, “generis”, que significa
“espécie”, “ordem” ou “tipo”. Sugere o interesse em classificar, de forma
conveniente, no caso da literatura, as obras literárias pelo que possam ter
em comum, de modo que certos caracteres são dominantes de determinados
gêneros. Esses caracteres, entretanto, longe estão de formar uma unidade,

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vale dizer, de se ter um consenso a respeito de cada gênero.


A dificuldade em se determinar os gêneros de forma científica
advém já da própria dificuldade de conceituação de seu objeto: a obra lite-
rária. Junte-se a isso o fato de que, pelo menos modernamente, uma obra
pode sobrepor-se, ou seja, pertencer a vários gêneros.
Para os clássicos, os gêneros eram “categorias artísticas” e deviam
ser puros, com o predomínio da forma como fundamental no ato criador.
Platão definiu como gêneros essenciais o Lírico, o Épico e o Dramático.
O século XVIII coloca em evidência a absoluta individualidade,
em nome da liberdade e da autonomia da criação literária, condenando a
teoria clássica dos gêneros. O filósofo italiano Benedetto Croce, no começo
do século XX, afirmava com veemência a falta de sentido da teoria dos gê-
neros como uma conseqüência da concepção intelectualista. Para ele, os gê-
neros artísticos e literários derivam de considerações errôneas de juízo e de
crítica, nas quais, em vez de determinar se é expressiva ou que coisa ex-
prima, pergunta-se se está conforme as leis do poema épico ou as da tragé-
dia? (Croce apud LIMA,1960, p.14). Croce rejeitava toda e qualquer
classificação genérica, baseando-se na “individualidade da expressão”.
A moderna teoria dos gêneros, conforme Wellek e Warren (1976,
p.282), é claramente descritiva. Não restringe as possibilidades de tipos nem
tampouco determina regras e formas. Apesar disso, nunca houve literatura
desvinculada da classificação em gêneros, é um sistema em contínua trans-
formação que, segundo Todorov (1980, p.49), funciona como “horizontes de
expectativa” para os leitores e como “modelos de escritura” para os autores,
que escrevem em função do sistema genérico existente, do mesmo modo
que os leitores também lêem em função do sistema genérico que conhecem
pela crítica, pela escola e por outros meios de aprendizagem. O que é certo
é que cada época possui seu próprio sistema de gêneros que permanece em
sintonia com a ideologia dominante.
Para Todorov (1980), os gêneros são classes de textos provenien-

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tes de atos de fala e, como tais, é sempre possível encontrar uma propriedade
comum a dois textos e, portanto, reuni-los numa categoria. O surgimento de
um novo gênero será sempre uma transformação por inversão, por desloca-
mento ou por combinação de um ou de vários gêneros antigos. De modo
que os gêneros não desaparecem, mas aparecem, então, com uma outra rou-
pagem. Dessa forma, embora surjam nomenclaturas novas, a lógica para
classificação é sempre a mesma. E embora todos os gêneros procedam de
atos de fala nem todos os atos de fala resultam em gêneros literários. O pro-
cesso de transformação de certos atos de fala em certos gêneros literários
obedece a critérios ideológicos de uma sociedade. Dessa forma, “o que co-
difica o gênero é, pois, uma propriedade pragmática da situação discursiva”.
(TODOROV, 1980, p.55). De acordo com o pensamento de Todorov, pode-
mos dizer, portanto, que noticiar é, sem dúvida, um ato de fala ou escrita. A
notícia em si, uma vez falada, escrita, publicada, é um gênero que pode ser
literário ou não. Como afirma Todorov (1980, p.58) “não há abismo entre a
literatura e o que não é literatura, (...) os gêneros literários têm por origem,
simplesmente, o discurso humano”.

E o jornalismo?
É sempre bastante complicado precisar a origem de qualquer prática
humana. Com a atividade jornalística não poderia ser diferente. Muitos his-
toriadores tentaram descobrir manifestações jornalísticas já na Antiguidade.
Os babilônicos mantinham historiógrafos encarregados no dia-a-dia de des-
crever os principais acontecimentos. Voltaire, no século XVIII, segundo Cos-
tella (2001, p.18), afirmou que desde milênios os chineses produziam gazetas.
Porém, tudo é muito impreciso. Cabe aos romanos, talvez, o título de pater-
nidade do jornal. AActa Diurna Populi Romani, criada por Júlio César em 69
a.C., já possuía características bem jornalísticas de atualidade e variedade.
Durante a Idade Média havia todo um enclausuramento da cultura
dentro dos limites dos palácios. As notícias só chegavam ao povo através da

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poesia e dos cantos dos trovadores e jograis. “O canto era o meio de propa-
gar a notícia” (PIDAL apud RIZZINI, 1977, p.14). Os romances e as can-
ções medievais eram como o prenúncio do periodismo, uma forma
embrionária da informação em movimento. Os trovadores eram incumbi-
dos de fazer a reportagem dos acontecimentos mais ou menos escandalosos
da época. Não transmitiam os fatos reais, mas a sua versão segundo o enredo
da corte e a mordacidade das ruas. Era o eco, o efeito dos acontecimentos
que os jograis levavam e expandiam, numa palavra: a opinião. Como disse
Gautier: “Devemos considerá-los um pouco como mercadores de novidades
políticas.” (apud RIZZINI, 1977, p.15).
Com a chegada do comércio, a troca de informações passou a ser
amplamente valorizada. Surgiram os primeiros comerciantes de notícias,
que atendiam aos interesses dos homens de negócios e de alguns nobres.
Quanto mais se libertavam dos entraves feudais e se entregavam ao comér-
cio, mais os homens reconheciam o valor da informação. Assim, o desen-
volvimento da civilização moderna a partir das revoluções comercial e
industrial e o crescente interesse pela informação promoveram o desenvol-
vimento do jornalismo.
Da metade do século XIX até às primeiras décadas do século XX o
jornalismo tinha ares literários, pois adotava o romance, o conto, a poesia, a
crônica, o teatro, substituindo o livro que era impresso em Lisboa, no Porto ou
em Paris. Além do mais, os escritores da época não conseguiam sobreviver so-
mente do mercado literário, e estavam em sua maioria trabalhando nos jornais.
Este veículo de comunicação era a grande vitrine dos escritores. O jornal con-
seguia, através dos seus folhetins, legitimar, por exemplo, a obra literária.
Assim, somente com a modernização da imprensa e com as mu-
danças que desde então se projetam na produção econômica e cultural, o
jornalismo se enquadra na atividade especializada da notícia, e a literatura
deixa de ser considerada uma parceira do jornal para ser uma profissão.
As definições de jornalismo se articulam, quase sempre, em torno

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da idéia de verdade. No entanto, qualquer que seja a definição, nenhuma ainda


chegou perto de uma certeza sobre a relação que se estabelece entre ambos.
Até que ponto o jornalismo é capaz de retratar a realidade em si e compro-
meter-se com a mesma? Até que ponto ele pode se manter fiel à verdade?
Para muitos, esse compromisso com a verdade é ilusório e inatin-
gível, pois “seria ingenuidade acreditar que, ao vestirem a armadura de jor-
nalistas, eles se desfaçam de suas paixões pessoais.” (ROSSI, 1994, p.11).
Assim sendo, os juramentos de neutralidade e objetividade cairiam por
terra, pois todo e qualquer jornalista, ao se predispor a relatar os fatos reais,
estará no fundo apenas relatando a sua própria percepção, pois entre o fato
e a versão há a mediação de um jornalista (ou vários), que carrega uma for-
mação cultural.
Ao redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma uma série de de-
cisões que são em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições
pessoais, hábitos e emoções. Até mesmo a fotografia jornalística capta uma
segunda imagem, a do fotógrafo. De modo que um fato, ao sair do real, já
perde um pouco a veracidade. Por outro lado, mesmo aquela notícia consi-
derada destituída do juízo, com uma linguagem “unívoca” voltada para a
evidência do fato, representa um corte da realidade e, nesse corte, houve
uma opção por parte do jornalista, silenciando todos os outros aspectos que
possam permear a notícia.
Se todas as definições de jornalismo giram em torno da verdade e
se o jornalismo está longe dessa verdade pretendida, como então conceituá-
lo? Rossi (1994, p.01) sugere uma opinião que, pela abertura que transpa-
rece, por não se aprisionar a um credo radical, parece-nos bastante pertinente.
Segundo ele, “o jornalismo é uma fascinante batalha pela conquista das men-
tes e corações de seus alvos, leitores, telespectadores ou ouvintes”.

Jornalismo e Literatura
As relações entre jornalismo e literatura são antigas, e como formas

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de comunicação coletiva, as duas acompanharam a sociedade humana desde


épocas remotas, com grande impacto social, tendo ambas sido profunda-
mente marcadas pelo surgimento da imprensa no século XV.
No Brasil, o jornalismo absorve desde os seus primórdios a litera-
tura como second métier (segundo ofício, profissão). Pode-se dizer que essas
duas carreiras crescem juntas na imprensa, uma influenciando a outra. É por
isso que na sua primeira fase até mesmo na fronteira da tecnologia eletrô-
nica, o jornalismo mantém no seu perfil marcante traço literário.
Definir a identidade que os une não é simples. T.S.Eliot (apud
BAHIA 1990, p.28) valoriza a condição literária do jornalismo, reconhe-
cendo-o como uma literatura sob pressão na medida em que o que dele per-
manece como literatura resulta de um exercício de criação – ainda que mais
de transpiração do que de invenção, mas nem por isso desprovido de “arte”
– sob a pressão das circunstâncias. A diferença reside na sutileza do jornalista,
na sua habilidade de criador de interesses. Ele dá a dimensão do tempo ao
transitório e valoriza o banal, extraindo dele algo peculiar. O que orienta a arte
no jornalismo é o espírito do jornalista. Antes de tudo, um sensível como
todos os artistas em geral na captação dos acontecimentos e na criação deles.
Sempre em busca de informações, o jornalista precisa discernir, entre tantos
fatos, aqueles que sensibilizarão o público e que repercutirão na curiosidade
popular. Pois o que perdura, como disse Olinto (apud KELLY, 1972, p.165),
não é o texto transitório, mas os efeitos duradouros na opinião pública.
Para Amoroso Lima, o jornalismo é um gênero literário, com regras
e estilo próprio. Apoiado na concepção metodológica e racional dos gêne-
ros literários, esse autor considera o jornalismo como um deles e o situa
como prosa de apreciação. Dessa forma, o jornalismo pode ser considerado
um gênero literário com suas regras próprias, sofrendo pressões específicas
que vão da avidez do tempo às limitações de espaço, mas de qualquer forma,
um gênero. De igual maneira o poema, o conto e o romance, com suas re-
gras próprias.

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Na narrativa literária, o conto costuma ser a forma mais curta, em


jornalismo, a reportagem é a mais longa. Mas as duas formas muito se as-
semelham: pode-se dizer que a reportagem é o conto jornalístico, um modo
especial de propiciar a personalização da informação ou aquilo que também
se indica como “interesse humano”. Na literatura, o conto apresenta um mo-
mento, uma fatia particular da existência de um personagem. No jornalismo,
tanto no livro-reportagem, quanto no jornal diário, a reportagem amplia a co-
bertura de um fato, assunto ou personalidade, dando-lhe maior intensidade,
sem a brevidade da forma-notícia.
É certo que Amoroso Lima é um dos poucos a propor o jornalismo
na classificação dos gêneros da literatura. Por isso que o tomamos como
base para concluir este trabalho acerca da relação entre jornalismo e litera-
tura. Desse modo, compreendemos que ou o jornalismo deve ser incluindo
na classificação de gênero literário, na proposta de Amoroso Lima, ou, por
outra, se dissolvem diversos gêneros que tradicionalmente são enquadrados
como literários em gêneros novos, na proposta de Todorov.

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Márcia de Oliveira Pinto -


72 O jornalismo como gênero literário

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