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Por Felipe Cherubin
René Girard é hoje tido como um filósofo, antropólogo e cientista social, mas
é fato que sua carreira começou por meio da literatura. Você poderia nos
explicar essa relação de Girard com a literatura?
Girard encontra fundamentalmente o que, num primeiro momento, foi para ele mesmo
uma grande surpresa, ou seja, a presença de um mecanismo semelhante na descrição de
desejo humano. Vale dizer, na análise de romances de tradições diversas e temporalidades
muito diferentes, Girard descobriu o mesmo mecanismo básico: é o mecanismo do desejo
mimético. A partir dessas obras, portanto, ele principiou a desenvolver sua teoria, com
base numa compreensão inovadora do desejo humano.
Numa fórmula polêmica, poderíamos sugerir que Dostoievsky seria um Nietzsche com
consciência do desejo mimético. Em outras palavras, o que Nietzsche realiza na filosofia,
Dostoievsky compreende radicalmente como sendo os desdobramentos do desejo
mimético. Esse exemplo demonstra a compreensão que Girard tem da literatura. Ele situa
a literatura num patamar absolutamente primordial. Ora, em alguma medida, é o caráter
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sistemático-especulativo da reflexão filosófica que afasta a compreensão profunda do
desejo mimético, pois cristaliza seu dinamismo em conceitos e teorias. Pelo contrário,
para a literatura abre portas novas ao entendimento do desejo mimético, pois não o
descreve como um conceito, mas o expõe através da trama e dos conflitos entre os
personagens.
Girard parte de uma observação que é simples, o que também é muito característico da
obra girardiana: partir de uma observação simples, porém tornando-a sempre mais
complexa, como se fosse uma verdadeira matriz de pensamentos. É muito comum nas
obras de Shakespeare que um personagem se apaixone por outro sem jamais tê-lo ou tê-la
visto. Como isso é possível? A resposta girardiana seria a seguinte: eu não me apaixono
por uma relação direta com o objeto do meu desejo, em geral, eu me apaixone por alguém
porque eu escuto coisas muito positivas sobre essa pessoa, porque eu sou induzido,
porque socialmente essa relação é favorecida. Em outras palavras, Girard encontra em
Shakespeare uma compreensão plena do desejo mimético. Além disso, ele vislumbra em
Shakespeare a encenação do mecanismo do bode expiatório, e isto em diversas peças.
Então, Girard surpreende em Shakespeare um inesperado tratado das diversas fases do
desejo mimético! Na obra do poeta inglês, o leitor atento pode identificar a compreensão
da natureza mimética do desejo. Isto, claro, em primeiro lugar. Depois, Shakespeare
revela um claro entendimento tanto da crise provocada pelo desejo mimético, quanto da
resolução dessa crise por meio do mecanismo do bode expiatório. E não é tudo:
compreende-se, ainda, que o mecanismo do bode expiatório consiste em transformar a
vítima do ritual expiatório em culpado, de modo a esquecer que a culpa pertence ao
próprio sistema mimético. Eis o sentido da extraordinária interpretação que Girard
propõe do Hamlet.
Há uma ligação muito forte com um conjunto de pensadores que em geral não associamos
de imediato a Girard. Por exemplo, há um diálogo profundo com Freud, com Lévi-Strauss,
com Nietzsche e, indiretamente, com Heidegger, Kierkegaard, entre outros. Nesses casos
em geral, a estratégia girardiana é demonstrar como existe nesses autores uma
compreensão profunda do desejo mimético, mas o que não há nesses autores é o
desvelamento completo das consequências do desejo mimético, assim como do caráter
genético desse desejo na formação da cultura humana.
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Há um momento na obra do Girard em que ele parece acreditar na possibilidade de uma
civilização sem violência, uma civilização idealmente cristã, por assim dizer, sempre
pronta a oferecer a outra face. Posteriormente, ele compreendeu que isso não é possível,
porque a violência é constitutiva do homem; e isto a partir da própria dimensão
apropriadora da mímesis. Recordemos os termos propostos por Girard: eu desejo o
mesmo objeto que você, quanto mais eu o imito tanto mais eu desejo o mesmo objeto, até
que em um determinado momento eu não quero mais apenas limitar-me a imitá-lo: eu
quero a posse do objeto, mesmo que para isso precise entrar em conflito com quem antes
fora meu modelo. Essa é a novidade girardiana, ao apontar, na dimensão apropriadora do
desejo mimético, a irrupção da violência, seja simbólica, seja física. A plena aceitação
dessa violência como elemento constitutivo do humano, por isso mesmo, fecundo, porém
potencialmente destruidor é uma das forças do pensamento girardiano.
Talvez o principal desafio de Girard ao lugar comum da cultura ocidental moderna seja o
questionamento da centralidade do sujeito. O que chamamos de modernidade é um
conjunto de pensamentos ou de gestos que situam o sujeito com centro do universo. Essa
é a mentira romântica. Mas a mentira romântica surge não pela colocação do sujeito no
centro do universo, mas pela crença de que o sujeito, colocado no centro do universo, é
autotélico e autocentrado. Girard não vai retirar o sujeito do centro e colocar, como
diriam alguns de seus críticos, a providência divina ou a revelação. Contudo, o sujeito
girardiano é acima de tudo um sujeito que somente pode definir-se a partir de sua relação
com um modelo. Somos sujeitos em relação com outros sujeitos, e o centro desse
princípio relacional é a natureza mimética do sujeito, pois implica pressupor que somente
defino meu objeto de desejo com o auxílio de um modelo que, consciente ou inconsciente,
adotei.
Girard não partiu de um sistema a priori, preconcebido para então encontrar evidências
de sua teoria. Pelo contrário, foi através da literatura que ele intuiu a natureza mimética
do desejo. Mas o desejo mimético, tal qual ele descreve em Mentira romântica e verdade
romanesca, é um desejo mimético presente em sociedades já constituídas, organizadas
através de disciplinas que criaram mecanismos extraordinariamente sofisticados de
controle da violência: o Estado, o exército nacional, as leis, a escola. Numa palavra: a
internalização de códigos. Então, há todo um aparato que permite controlar a violência
que não seja por meio do mecanismo do bode expiatório. Essa foi a primeira intuição
girardiana, a do desejo mimético. Porém, as derivações desagregadoras da mímesis
levaram Girard a perguntar-se sobre os primórdios da organização social, quando os
mecanismos modernos de controle da violência ainda não haviam sido desenvolvidos. Por
isso, ele passou uma década relendo os clássicos da antropologia. Esse estudo produziu
uma intuição rigorosamente radical. Afinal, a leitura da antropologia permitiu a Girard
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encontrar um instante histórico em que os mecanismos de controle da violência ainda não
estavam presentes ou eram muito recentes. Ao combinar essa leitura da antropologia com
a análise dos mitos e da tragédia grega, Girard pôde aprofundar sua teoria. O resultado
dessa década de leituras e reflexões é A Violência e o Sagrado. Neste livro, Girard estudou
as consequências da violência do desejo mimético não controlado, o que o conduziu à
hipótese do bode expiatório. Ou seja, quando a violência se dissemina, estamos no reino
da violência de todos contra todos, e o caos é inevitável. Contudo, quando a violência
passa a ser de todos contra um, surge o mecanismo do bode expiatório, que permite
resolver a crise mimeticamente engendrada, ao canalizar a violência da comunidade
contra um único alvo: o bode expiatório. Mas não se trata de uma abstração filosófica, não
se trata de uma especulação. Pelo contrário, Girard acredita ter encontrado esse
mecanismo a partir da comparação dos mitos mais distintos possíveis, em sociedades as
mais distantes entre si, que não tiveram nenhuma espécie de contato. Nas descrições
desses mitos aparece o mesmo mecanismo fundamental: o mecanismo do bode
expiatório, da canalização da violência contra o bode expiatório que é visto como culpado,
mas que, logo depois que é sacrificado, é considerado sagrado. Afinal, graças a seu
sacrifício, a paz retorna. Então, imediatamente, ele se transforma em um objeto sagrado,
por isso, a violência e o sagrado são duas faces da mesma moeda. Mais: a cultura humana
surge da relação tensa desses dois termos.
Os reality-shows possuem uma dimensão que talvez possamos compreender melhor com
o concurso da teoria mimética. Eles têm a seguinte estrutura: você reúne um grupo de
pessoas díspares numa casa. A disparidade é importante para a criação de conflitos.
Contudo, depois de duas semanas confinadas, essas pessoas são idênticas, fazem todas as
mesmas coisas! Elas tornam-se tão idênticas que o programa só existe porque, a cada
semana, todos se reúnem contra um ou dois dos participantes, indicando-os para o
famoso “paredão”. Por fim, o publico tem a tarefa de sacrificar um dos dois. Ora, o reality
show é uma teoria mimética em miniatura, pois, a cada semana, é necessário buscar o
bode expiatório e as justificativas são sempre as mesmas! Ainda mais: nesse caso, o
culpado é visto como culpado mesmo, pois ele só sai do programa porque foi “sacrificado”
por milhões e milhões de telespectadores. Em outras palavras, puro paganismo!
É a imposição de um modelo. Você deseja um corpo que você não tem, mas um terceiro
possui e, sobretudo, exibe. A propaganda no século 20 é uma fábrica de produção de
desejo mimético, como tantos girardianos já demonstraram, com destaque para a obra de
Jean-Pierre Dupuy.
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Outra contribuição da teoria mimética, mas que exige ainda uma reflexão que ainda não
está totalmente feita, é justamente o estudo das novas tecnologias de comunicação que
permitem uma capacidade infinitamente maior de contágio mimético. Por exemplo, hoje
um jovem, mesmo nos enclaves capitalista da China, dança a coreografia do último
videoclipe da Beyoncé. Há 20 anos na época do Thriller houve um concurso no mundo
inteiro para ver quem imitava melhor a coreografia do Michael Jackson e ganhou um
japonês. Há tecnologias de comunicação hoje que permitem uma difusão inédita do
contato mimético, havendo aí um vasto campo para a reflexão.
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