Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Seminário de Licenciatura I Professor: Rafael Haddock Lobo Aluna: Aline Sampaio Alli / DRE:115210425
Feira Grátis da Gratidão
Em meados de 2012 fui convidada a participar de um evento intitulado Feira Grátis da Gratidão cujo lema era "Pegue o que quiser ou nada, deixe o que quiser ou nada", que aconteceria em uma praça na zona sul do Rio de Janeiro. Na época, eu concluía Jornalismo e achei uma pauta interessante, além de ficar curiosa sobre a experiência. A Feira não possuía uma única pessoa responsável, a ideia era que qualquer um pegasse a ideia e fizesse a Feira onde quisesse. Tratei de separar coisas que eu não usava mais, que estavam paradas ali no meu quarto (alguns livros, algumas roupas e alguns objetos de decoração) e fui. Cheguei na praça combinada e vi alguns cartazes de cartolina espalhados, com o nome do evento e seu lema. E já havia algumas pessoas, umas expondo objetos sob cangas e tecidos e outras oferecendo abraços grátis. Tratei de expor o que eu havia levado. Aos poucos, quem já estava lá foi ver o que eu estava ofertando, algumas coisas foram levadas. Fiz o mesmo com as ofertas dos outros. Era uma Feira que não trabalhava com a ideia de lucro, que dizia que a “escassez era uma ilusão”. Quantas coisas temos de sobra e quantas nos faltam? Quantas coisas que temos em abundância podemos oferecer? A abundância que se referem é do que tem no mundo. E a ilusão da escassez é a de que se há abundância no mundo, não existe escassez. O que nos leva a pensar que o que há é uma má distribuição dos recursos. E como redistribuí-los? A Feira Grátis da Gratidão propõe reinventar a ideia de feira, que pressupõe ter coisas à venda, e convida os participantes a exporem com fins de doação tudo aquilo que está abundante para si. Esta me pareceu ser uma ação anticapitalista. Com o tempo frequentando outras edições da Feira Grátis, percebi que os passantes e pessoas que acabavam de conhecer sempre perguntavam como funcionava, se tinha algum limite de itens que podiam pegar e muitas delas demoravam um bom tempo para pegar coisas. A maioria dos frequentadores eram jovens. Os passantes que permaneciam, em sua maioria, também eram jovens. A maioria das pessoas passantes olhavam com estranhamento, alguns frequentadores anunciavam a feira e paravam os passantes para convidar a chegar e explicar do que se tratava. A explicação aparentemente parecia ser convidativa, quem que iria não querer produtos e experiências gratuitamente? Alguns achavam que era alguma pegadinha, outros achavam que era caridade e que não precisavam. Outra coisa que percebi é que haviam critérios diferentes tanto para escolha do que, e se, pegar, quanto para a escolha do que, e se, levar. E que algumas pessoas se incomodavam com as outras que usavam critérios muito diferentes do seu. Isto me fez pensar no quanto a democracia e liberdade são difíceis. Porque há quem considere seus critérios radicalmente atrelados aos ideais da feira e acabam tentando interferir no critério escolhido por outra pessoa, que talvez também considere ter seus critérios fiéis ao lema da Feira da Gratidão. Apesar dessa tensão entre critérios, a Feira continua sem estabelecer nenhuma regra além do “Pegue o que quiser ou nada, deixe o que quiser ou nada”. Um espaço democrático resistente. Além de me fazer pensar sobre democracia e liberdade, a Feira me fez pensar também em ecologia e sustentabilidade. Tudo o que as pessoas jogam no lixo, descartam, ficam livres de sua posse. Se alguém pegar o que eu joguei no lixo, não é roubo, eu descartei, não me pertencia mais. Lá na Feira, algumas pessoas levavam coisas que queriam se livrar, com a ideia de descarte mesmo. Pouco se via, de fato, pessoas levando coisas que para elas ainda tinha valor, mas que tinham em abundância e que por isso queriam dividir. A maioria encarava o espaço como um depósito de seus descartes ainda inteiros (às vezes nem isso, era comum ver roupas manchadas, furadas e objetos quebrados). Se encarado como um espaço de descarte é, no mínimo, um espaço de descarte ecológico quando um item ganha uma sobrevida nas mãos de outra pessoa que, em vez de comprar um novo daquele, fica com o que iria parar em algum aterro sanitário. Parece que pequenas ações como essa podem ser um respiro quanto ao volume de lixo que produzimos. Sobre o caráter anticapitalista da Feira, é interessante refletir no pequeno acesso que ela oferece às pessoas que não teriam como acessar aqueles bens e serviços através do dinheiro. E também é interessante pensar na ideia de lucro, que a Feira propõe que não haja. Embora pareça que se alguém não deixa nada, mas pega coisa, ela saia “lucrando”, na verdade, se ela não tem o que oferecer e pega alguma coisa, ela parece estar participando de uma ação muito poderosa contra o capitalismo, que tem como marca a miséria que ele gera em meio à abundância. Parece que a outra frase emblemática da Feira (a escassez é uma ilusão) vem para nos lembrar disto, que não se trata de um espaço de troca, mas de redistribuição e democracia. Penso também sobre o termo “poder aquisitivo”, que é a capacidade de poder adquirir bens e serviços. Quando você pode adquirir bens e serviços sem que seja através de troca do dinheiro pelo que deseja, também tem a ver com poder aquisitivo? Parece que tem, e no que isso implica? Qual é o papel do dinheiro no conceito de poder aquisitivo? Poder aquisitivo é diferente de poder econômico por quê? São questões que ainda não sei se me levarão a algum outro lugar. Será que é possível pensar uma nova relação com bens e serviços que seja democrática, livre e anticapitalista? Será que a redistribuição de recursos só deve ser pensada atrelada à ideia de liberdade de escolha? Quais são os graus desta liberdade de escolha? Estas são questões que reverberam ao pensar na Feira Grátis da Gratidão. Já em meados de 2015, um grupo da Feira Grátis da Gratidão foi criado, para que outras trocas pudessem ser negociadas pela internet. O grupo foi crescendo e em algum momento, para cada oferta de doação apareciam dezenas de pessoas comentando que queriam o item. Os itens começaram a ser disputados nos comentários, alguns dizendo que precisavam mais que outros. Outras vezes, a pessoa que foi doar surgia reclamando que a pessoa que demonstrou interesse não foi e que era um desrespeito com as outras pessoas da fila. Tiveram início longas discussões virtuais sobre o caráter da feira, se era caridade ou anticapitalismo, se era ecológica ou incentivava o consumo, se era para doar só para quem precisava, como mensurar a necessidade de quem queria os itens? Essas discussões provocaram o afastamento de muitas pessoas e a Feira ficou um tempo parada. Assim que retornou, continuou sem regras, apenas com o lema “Pegue o que quiser ou nada, deixe o que quiser ou nada”.