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As composições que se seguem foram escritas em Boa Vista durante o mês de agosto de1985. Em maio de
1987 foram publicadas no jornal Porantim. Em 1992 entraram a fazer parte do livro Mulher entre três
culturas, Edicon, São Paulo. Entre agosto e outubro de 2020 foram publicadas, separada e semanalmente, no
Caderno de Cultura de Pressenza – Agência Internacional de Notícias, sendo as versões originais em português
acompanhadas por versões em italiano.
I I
Tinha acabado de chegar de volta em Boa Vista. Ero da poco tornata a Boa Vista.
De manhã cedo, passei perto do Coreto: Di primo mattino, passai davanti al Coretto:
uma mulher loira e seu menino aí dormiam, una donna bionda e il suo bambino lì dormivano,
ela bonita e suja, com roupa esfarrapada, lei carina e sporca, con indumenti stracciati,
Ela parando para o menino esperar, Lei fermandosi per aspettare il bambino,
os pés inchados do menino cheios de feridas i piedi gonfi del bambino pieni di ferite sanguinanti.
sangrando.
II II
a mãe tentava proteger o menino cianótico. la mamma tentava proteggere il bambino cianotico.
Os passageiros olhavam desgostados a morte na cara: Disgustati, i passeggeri guardavano in faccia la morte:
redondíssimos olhos perdidos nas órbitas, rotondissimi occhi persi nelle orbite,
uma dura luta para conseguir descer. una dura lotta per riuscire a scendere.
Pai desse menino não tem carro. Il padre di quel bambino non ha automobile.
Parentes e amigos desse menino não têm carro. Parenti e amici di quel bambino non hanno automobile.
Nem uma ambulância disponível para esse menino. Nemmeno un’ambulanza disponibile per quel
bambino.
III III
Em Guarulhos hospedei-me numa casa de freiras. A Guarulhos mi ospitai in una casa di suore.
meu ouvido e minha alma começavam a sangrar, il mio udito e la mia anima cominciavano a sanguinare,
Televisão ligada dia e noite, rádio e som altos, Televisione accesa giorno e notte, radio e giradischi a
tutto volume,
e os meninos gritam para serem ouvidos.
e i bambini gridano per farsi ascoltare.
Adultos falando,
Adulti parlando,
e os meninos gritam na tentativa de serem ouvidos.
e i bambini gridano nel tentativo di farsi ascoltare.
Enquanto televisão e adultos
Mentre televisione e adulti
continuam vomitando palavras,
continuano a vomitare parole,
os meninos aprendem a gritar.
i bambini imparano a gridare.
E olhava pela janela telada: os jovens guerreiros, E guardavo dalla finestra con zanzariera: i giovani
guerrieri,
armados de arcos e flechas
armati di archi e frecce
proporcionais ao próprio tamanho,
proporzionali alla propria statura,
andavam ao redor, em pontas de pé,
camminavano nelle vicinanze, in punta di piedi,
retendo o fôlego para os bichinhos não alertarem;
trattenendo il respiro per non allarmare gli animaletti;
olhos e ouvidos atentos, pássaros e lagartos
procurando; occhi e udito attenti, cercando uccellini e lucertole;
com olhares e sinais comunicando entre si. con occhiate e segnali comunicando tra di loro.
No silêncio da mata que fala, brincando, Nel silenzio della foresta che parla, giocando,
No silêncio da mata que fala, escutando, Nel silenzio della foresta che parla, ascoltando,
e percorria uma avenida no coração de São Paulo. e percorrevo un viale nel cuore di San Paolo.
Seus profundíssimos olhos, cheios de vazio, I suoi profondissimi occhi, pieni di vuoto,
questionando por que meu colchão estava limpo, chiedendomi perché il mio materasso era pulito,
por que meu cobertor estava limpo, perché la mia coperta era pulita,
por que eu dormia dentro de uma casa. perché io dormivo dentro a una casa.
Rapidamente, Rapidamente,
foi construído um abrigo dentro da maloca, venne costruito un separé dentro alla maloca* ,
perto da área reservada à sua família extensa. vicino all’area riservata alla sua famiglia estesa.
Só saiu do abrigo após a segunda menstruação Uscì dal separé solo dopo la seconda mestruazione
e, nessa temporada, não conversou mais com ninguém: e, in quel periodo, non parlò più con nessuno:
Não foi em Calcutá, não, foi em São Paulo. Non è successo a Calcutta, no, è successo a San
Paolo.
Passei umas vezes por aquela rua
Passai alcune volte per quella via
e ele aí, sentado no chão.
e lui lì, seduto per terra.
Um pesado e escuro capote do qual saíam:
Un pesante e scuro giaccone dal quale uscivano:
uma cabeça de velho esquelético,
una testa di vecchio scheletrico,
uma mão segurando um saquinho de plástico
una mano reggendo un sacchetto di plastica
com algo para comer,
con qualcosa da mangiare,
um olho-de-mijo.
una pozza d’urina.
Nada mais,
Niente altro,
nem uma Madre Teresa por perto.
nemmeno una Madre Teresa vicino.
cullando i nipoti.
VI VI
“Tá bom louro, tá bom louro, tá bom louro”. “Va bene pappagallo, va bene pappagallo, va bene
pappagallo”.
Hora após hora,
Un’ora dopo l’altra,
um dia atrás do outro,
un giorno dietro l’altro,
um grito estridente após o outro,
un garrito stridente dopo l’altro,
o papagaio “civilizado” já aprendeu a falar,
il pappagallo “civilizzato” ha già imparato a parlare,
e a paciência da gente a inchar.
e la pazienza delle persone a gonfiare.
e as telhas batem uma contra a outra e i pannelli battono uno contro l’altro
e o armador de ferro, come seu ruído estridente, e il gancio di ferro, con il suo cigolio stridente,
Os homens, que já são máquinas, Gli uomini, che già sono macchine,
com esses barulhos nem se incomodam mais, con questi rumori nemmeno si incomodano più,
e minha exigência de silêncio não sabem entender e la mia esigenza di silenzio non sanno capire
sem ruídos, esfrega contra o pau, senza cigolii, sfrega contro il palo,
meu mundo de máquinas posso esquecer il mio mondo di macchine posso dimenticare
VIII VIII
sequência de paus, teto, praça central sequenza di pali, tetto, piazza centrale
e deram umas voltas no pátio central. e fecero dei giri nel patio centrale.
no choque com a violência de outras civilizações. nello scontro con la violenza di altre civiltà.
Soube que na Amazônia havia Yanomami. Seppi che in Amazzonia c’erano gli Yanomami.
sequência de paus, teto, praça central sequenza di pali, tetto, piazza centrale
e deram umas voltas no pátio central. e fecero dei giri nel patio centrale.
com tua vida e cultura está querendo acabar. con la tua vita e cultura vuol farla finita.
ainda, por cima de tudo, com sua cara de pau, ancora, oltretutto, con la sua faccia di bronzo,
tua primitiva civilização destruída vai querer alla tua primitiva civilizzazione distrutta vorrà rendere
homenagear. omaggio.
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Loretta Emiri nasceu na Umbria em 1947, e desde 1977 estabeleceu-se na Amazônia brasileira, onde por 18
anos sempre trabalhou com ou pelos índios. Os primeiros quatro anos e meio, viveu com os indígenas
Yanomami das regiões dos Catrimâni, Ajarani e Demini. Entre eles, desenvolveu trabalhos de assistência
sanitária e um projeto chamado Plano de Conscientização, do qual fazia parte a alfabetização de adultos na
língua materna. O objetivo era fornecer às comunidades novos conhecimentos que lhes dessem condições para
analisar criticamente o mundo dos brancos e assim se defenderem no contato com ele. Fruto da pesquisa
linguística e da experiência desenvolvida, naquela época produziu vários ensaios e trabalhos didáticos, entre os
quais: Gramática pedagógica da língua yãnomamè (Grammatica pedagogica della lingua yãnomamè),
Cartilha yãnomamè (Abbecedario yãnomamè), Leituras yãnomamè (Letture yãnomamè), Dicionário
Yãnomamè-Português (Dizionario Yãnomamè-Portoghese). Outras informações estão disponíveis em
https://lorettaemiriegliyanomami.wordpress.com/informazioni/.
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Como citar: EMIRI, Loretta. "Acareação-Faccia a faccia". In "Literatura Italiana Taduzida", v. 1, n. 12, dez. 2020.
Disponível em:https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/218051