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Acareação – Faccia a faccia, por Loretta Emiri

em ​dezembro 04, 2020

As composições que se seguem foram escritas em Boa Vista durante o mês de agosto de1985. Em maio de
1987 foram publicadas no jornal ​Porantim​. Em 1992 entraram a fazer parte do livro ​Mulher entre três
culturas,​ Edicon, São Paulo. Entre agosto e outubro de 2020 foram publicadas, separada e semanalmente, no
Caderno de Cultura de Pressenza – Agência Internacional de Notícias, sendo as versões originais em português
acompanhadas por versões em italiano.

I I

Tinha acabado de chegar de volta em Boa Vista. Ero da poco tornata a Boa Vista.

De manhã cedo, passei perto do Coreto: Di primo mattino, passai davanti al Coretto:

uma mulher loira e seu menino aí dormiam, una donna bionda e il suo bambino lì dormivano,

deitados no chão. sdraiati per terra.

Enquanto os contemplava, levantaram: Mentre li contemplavo, si alzarono:

ela bonita e suja, com roupa esfarrapada, lei carina e sporca, con indumenti stracciati,

meio hippie, eu pensei; mezza hippie, pensai;

ele pequeno e frágil. lui piccolo e fragile.

Ela na frente, o menino atrás. Lei davanti, il bambino dietro.

Ela cambaleando; Lei barcollando;

o menino pacatamente chorando, il bambino piangendo pacatamente,


devagarzinho andando, camminando lentamente,

querendo parar. volendo fermarsi.

Ela parando para o menino esperar, Lei fermandosi per aspettare il bambino,

ele não conseguindo andar. lui non riuscendo a camminare.

Ela descalça, Lei scalza,

os pés inchados do menino cheios de feridas i piedi gonfi del bambino pieni di ferite sanguinanti.
sangrando.

Nella società yanomami,


Na sociedade yanomami,
zie materne sono chiamate mamma,
tias maternas são chamadas mãe,
zii paterni sono chiamati papà.
tios paternos são chamados pai.
A prendersi cura dei bambini
Quem cuida das crianças
non è la sola famiglia nucleare,
não é apenas a família nuclear,
ma la comunità.
mas a comunidade.

II II

Eu ia de Guarulhos para São Paulo. Andavo da Guarulhos verso San Paolo.


Prensada no corredor do ônibus, Schiacciata nel corridoio del pullman,

a mãe tentava proteger o menino cianótico. la mamma tentava proteggere il bambino cianotico.

Os passageiros olhavam desgostados a morte na cara: Disgustati, i passeggeri guardavano in faccia la morte:

redondíssimos olhos perdidos nas órbitas, rotondissimi occhi persi nelle orbite,

moleira baixa, pele amarela. fontanella bassa, pelle gialla.

Na parada à altura do hospital, Nella fermata all’altezza dell’ospedale,

uma dura luta para conseguir descer. una dura lotta per riuscire a scendere.

Pai desse menino não tem carro. Il padre di quel bambino non ha automobile.

Parentes e amigos desse menino não têm carro. Parenti e amici di quel bambino non hanno automobile.

Nem uma ambulância disponível para esse menino. Nemmeno un’ambulanza disponibile per quel
bambino.

Quando Xaahemè percebeu


Quando Xaahemè percepì
que a filinha estava passando mal,
che la figlioletta stava male,
preocupada falou com seu irmão.
preoccupata parlò con suo fratello.
Ligeiro, ele saiu rumo à maloca vizinha.
Veloce, lui partì in direzione del villaggio vicino.
Pouco mais de duas horas depois,
Poco più di due ore dopo,
voltava acompanhado por Opomoxi,
tornava accompagnato da Opomoxi,
velho e renomado xamã.
vecchio e rinomato sciamano.
Logo começou a cura xamanista,
Subito iniziò la cura sciamanica,
enquanto na maloca
mentre nella ​maloca*​
as atividades se desenrolavam no ritmo habitual.
le attività si svolgevano a ritmo abituale.
Ninguém olhando para o xamã e sua pequena
paciente, Nessuno guardando lo sciamano e la sua piccola
paziente,
porém, todo mundo alerta,
però, tutti all’erta,
acompanhando a cura com ouvido atento,
accompagnando la cura con udito attento,
compartilhando da preocupação da mãe
condividendo la preoccupazione della mamma
e da fé do xamã.
e la fede dello sciamano.
Foto: Loretta Emiri

III III

Em Guarulhos hospedei-me numa casa de freiras. A Guarulhos mi ospitai in una casa di suore.

As freiras mantinham um jardim-de-infância. Le suore gestivano un asilo.

Os meninos do jardim-de-infância só sabiam gritar. I bambini dell’asilo sapevano solo gridare.

Quando, por causa dos gritos, Quando, a causa delle grida,

meu ouvido e minha alma começavam a sangrar, il mio udito e la mia anima cominciavano a sanguinare,

eu fugia atrás da discrição. io fuggivo alla ricerca di discrezione.

Televisão ligada dia e noite, rádio e som altos, Televisione accesa giorno e notte, radio e giradischi a
tutto volume,
e os meninos gritam para serem ouvidos.
e i bambini gridano per farsi ascoltare.
Adultos falando,
Adulti parlando,
e os meninos gritam na tentativa de serem ouvidos.
e i bambini gridano nel tentativo di farsi ascoltare.
Enquanto televisão e adultos
Mentre televisione e adulti
continuam vomitando palavras,
continuano a vomitare parole,
os meninos aprendem a gritar.
i bambini imparano a gridare.

Missão Catrimâni, quantas horas vividas


Missione Catrimâni, quante ore vissute
na pequena e bem equipada
nella piccola e ben attrezzata
secretaria/radiofonia/biblioteca/arquivo!
segreteria/radiofonia/biblioteca/archivio!
Às vezes, uns imperceptíveis movimentos A volte, alcuni impercettibili movimenti

chamavam minha atenção. richiamavano la mia attenzione.

E olhava pela janela telada: os jovens guerreiros, E guardavo dalla finestra con zanzariera: i giovani
guerrieri,
armados de arcos e flechas
armati di archi e frecce
proporcionais ao próprio tamanho,
proporzionali alla propria statura,
andavam ao redor, em pontas de pé,
camminavano nelle vicinanze, in punta di piedi,
retendo o fôlego para os bichinhos não alertarem;
trattenendo il respiro per non allarmare gli animaletti;
olhos e ouvidos atentos, pássaros e lagartos
procurando; occhi e udito attenti, cercando uccellini e lucertole;

com olhares e sinais comunicando entre si. con occhiate e segnali comunicando tra di loro.

No silêncio da mata que fala, brincando, Nel silenzio della foresta che parla, giocando,

aprendendo a caçar. imparando a cacciare.

No silêncio da mata que fala, escutando, Nel silenzio della foresta che parla, ascoltando,

aprendendo a viver. imparando a vivere.


IV IV

Eu tinha acabado de levantar Mi ero appena alzata

e percorria uma avenida no coração de São Paulo. e percorrevo un viale nel cuore di San Paolo.

A mocinha estava ainda deitada, La ragazza era ancora sdraiata,

num cobertor sujo enrolada, avvolta in una coperta sporca,

o colchão sujo jogado na calçada, il materasso sporco buttato sul marciapiedi,

na frente de uma loja ainda fechada. di fronte a un negozio ancora chiuso.

Seus profundíssimos olhos, cheios de vazio, I suoi profondissimi occhi, pieni di vuoto,

entraram em mim: entrarono in me:

questionando por que meu colchão estava limpo, chiedendomi perché il mio materasso era pulito,

por que meu cobertor estava limpo, perché la mia coperta era pulita,

por que eu dormia dentro de uma casa. perché io dormivo dentro a una casa.

A vagina de Perata Wakathautheri La vagina di Perata Wakathautheri

sangrou pela primeira vez. sanguinò per la prima volta.

Rapidamente, Rapidamente,

foi construído um abrigo dentro da maloca, venne costruito un separé dentro alla ​maloca*​ ,

perto da área reservada à sua família extensa. vicino all’area riservata alla sua famiglia estesa.

Só saiu do abrigo após a segunda menstruação Uscì dal separé solo dopo la seconda mestruazione

e, nessa temporada, não conversou mais com ninguém: e, in quel periodo, non parlò più con nessuno:

só escutou a comunidade dizer. soltanto ascoltò la comunità dire.

Entrou menina: Entrò bambina:

quando saiu do obrigo, quando uscì dal separé,

no rosto magro e pálido nel volto magro e pallido

brilhavam olhos de mulher. brillavano occhi di donna.


V V

Não foi em Calcutá, não, foi em São Paulo. Non è successo a Calcutta, no, è successo a San
Paolo.
Passei umas vezes por aquela rua
Passai alcune volte per quella via
e ele aí, sentado no chão.
e lui lì, seduto per terra.
Um pesado e escuro capote do qual saíam:
Un pesante e scuro giaccone dal quale uscivano:
uma cabeça de velho esquelético,
una testa di vecchio scheletrico,
uma mão segurando um saquinho de plástico
una mano reggendo un sacchetto di plastica
com algo para comer,
con qualcosa da mangiare,
um olho-de-mijo.
una pozza d’urina.
Nada mais,
Niente altro,
nem uma Madre Teresa por perto.
nemmeno una Madre Teresa vicino.

Porako, o mais velho dos Wakathautheri,


Porako, il più vecchio dei Wakathautheri,
pai de uma só filha natural
padre di una sola figlia naturale
e de muitos filhos adquiridos.
e di molti figli adottivi.
A mulher alimentando a fogueira.
La moglie alimentando il fuoco.
As filhas oferecendo os produtos da coleta.
Le figlie offrendo i prodotti del raccolto.
Os genros trabalhando na roça dele
e caçando para ele. I generi lavorando nel suo campo

Ele, que quase não anda mais, e cacciando per lui.

deitado na rede, Lui, che quasi non cammina più,

ninando os netos. sdraiato nell’amaca,

cullando i nipoti.

VI VI

“Tá bom louro, tá bom louro, tá bom louro”. “Va bene pappagallo, va bene pappagallo, va bene
pappagallo”.
Hora após hora,
Un’ora dopo l’altra,
um dia atrás do outro,
un giorno dietro l’altro,
um grito estridente após o outro,
un garrito stridente dopo l’altro,
o papagaio “civilizado” já aprendeu a falar,
il pappagallo “civilizzato” ha già imparato a parlare,
e a paciência da gente a inchar.
e la pazienza delle persone a gonfiare.

Na maloca dos Xekereikỳkètheri,


Nella ​maloca​* degli Xekereikỳkètheri,
os papagaios “primitivos” de estimação
i domestici pappagalli “primitivi”
só com suas cores incríveis
solo con i loro colori incredibili
chamaram minha atenção.
hanno richiamato la mia attenzione.
VII VII

Tecnologia do mundo ocidental: Tecnologia del mondo occidentale:

telhas de alumínio, tetto di pannelli di alluminio,

armadores de ferro, ganci di ferro,

homens como máquinas. uomini come macchine.

A chuva grossa cai La pioggia grossa cade

e as telhas batem uma contra a outra e i pannelli battono uno contro l’altro

com violência con violenza

e não deixam repousar. e non lasciano riposare.

A rede balança L’amaca oscilla

e o armador de ferro, come seu ruído estridente, e il gancio di ferro, con il suo cigolio stridente,

não deixa repousar. non lascia riposare.

Os homens, que já são máquinas, Gli uomini, che già sono macchine,

com esses barulhos nem se incomodam mais, con questi rumori nemmeno si incomodano più,

e minha exigência de silêncio não sabem entender e la mia esigenza di silenzio non sanno capire

e, tampouco, respeitar. e, tantomeno, rispettare.

Maloca do mundo primordial: Maloca​ del mondo primordiale:

a chuva grossa cai e, imperceptível, la pioggia grossa cade e, impercettibile,


bate contra o teto de folhas de ubim, batte contro il tetto di foglie,

para o sono conciliar. per il sonno conciliare.

A rede balança e a corda de curauá, L’amaca oscilla e la corda,

sem ruídos, esfrega contra o pau, senza cigolii, sfrega contro il palo,

para o sono conciliar. per il sonno conciliare.

Entre os yanomami, homens ainda, Fra gli yanomami, ancora uomini,

meu mundo de máquinas posso esquecer il mio mondo di macchine posso dimenticare

e minha exigência de silêncio, e la mia esigenza di silenzio,

em plenitude, posso viver. in pienezza, posso vivere.

VIII VIII

O circo chegou em Boa Vista. Il circo arrivò a Boa Vista.

Eu fui ao circo. Andai al circo.

A grande tenda: La grande tenda:

sequência de paus, teto, praça central sequenza di pali, tetto, piazza centrale

para a ilusão representar. per l’illusione rappresentare.

Os artistas, pintados e enfeitados, Gli artisti, dipinti e ornati,

entraram correndo, entrarono correndo,


gritando animados, gridando animati,

e deram umas voltas no pátio central. e fecero dei giri nel patio centrale.

Entre uma exibição e outra, Fra un’esibizione e l’altra,

houve uma homenagem aos Etruscos, ci fu un omaggio agli Etruschi,

antiga civilização destruída antica civiltà distrutta

no choque com a violência de outras civilizações. nello scontro con la violenza di altre civiltà.

Soube que na Amazônia havia Yanomami. Seppi che in Amazzonia c’erano gli Yanomami.

E vim à Amazônia. E venni in Amazzonia.

A grande maloca: La grande ​maloca​:

sequência de paus, teto, praça central sequenza di pali, tetto, piazza centrale

para a vida representar. per la vita rappresentare.

Os hóspedes, pintados e enfeitados, Gli ospiti, dipinti e ornati,

entraram correndo, entrarono correndo,

gritando animados, gridando animati,

e deram umas voltas no pátio central. e fecero dei giri nel patio centrale.

Yanomami, entre uma agressão e outra, Yanomami, tra un’aggressione e l’altra,

o violento branco civilizado il violento bianco civilizzato

com tua vida e cultura está querendo acabar. con la tua vita e cultura vuol farla finita.

E o dia em que o objetivo alcançar, E il giorno in cui l’obiettivo raggiungerà,

ainda, por cima de tudo, com sua cara de pau, ancora, oltretutto, con la sua faccia di bronzo,

debaixo de uma tenda de circo, sotto a una tenda di circo,

tua primitiva civilização destruída vai querer alla tua primitiva civilizzazione distrutta vorrà rendere
homenagear. omaggio.

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Loretta Emiri nasceu na Umbria em 1947, e desde 1977 estabeleceu-se na Amazônia brasileira, onde por 18
anos sempre trabalhou com ou pelos índios. Os primeiros quatro anos e meio, viveu com os indígenas
Yanomami das regiões dos Catrimâni, Ajarani e Demini. Entre eles, desenvolveu trabalhos de assistência
sanitária e um projeto chamado ​Plano de Conscientização,​ do qual fazia parte a alfabetização de adultos na
língua materna. O objetivo era fornecer às comunidades novos conhecimentos que lhes dessem condições para
analisar criticamente o mundo dos brancos e assim se defenderem no contato com ele. Fruto da pesquisa
linguística e da experiência desenvolvida, naquela época produziu vários ensaios e trabalhos didáticos, entre os
quais: ​Gramática pedagógica da língua yãnomamè (Grammatica pedagogica della lingua yãnomamè),
Cartilha ​yãnomamè (Abbecedario yãnomamè), ​Leituras yãnomamè (Letture yãnomamè), ​Dicionário
Yãnomamè-Português ​(Dizionario Yãnomamè-Portoghese). Outras informações estão disponíveis em
https://lorettaemiriegliyanomami.wordpress.com/informazioni/​.

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Como citar: EMIRI, Loretta. "Acareação-Faccia a faccia". ​In "Literatura Italiana Taduzida", v. 1, n. 12, dez. 2020.

Disponível em:​https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/218051

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