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Discursos do capital

"Os funcionários da governança tecnocrática do capitalismo


terão de operar num quadro social e econômico que podemos
caracterizar como barbárie", escreve o professor de Economia
da USP Eleutério Prado
12 de fevereiro de 2021, 20:30 h Atualizado em 12 de fevereiro de 2021, 21:11
   

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Manifestação em
Naypyitaw, capital de Myanmar, em 8 de fevereiro de 2021. (Foto: Reuters)
 
Por Eleutério F. S. Prado 

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(Publicado no site A Terra é Redonda)

Um artigo publicado como “working paper” pelo FMI causou


certo espanto em alguns economistas de esquerda no Brasil. O
seu título: Crenças acocoradas, vieses ocultos: elevação e
queda das narrativas de crescimento (Crouching
beliefs, hidden biases: rise and fall of growth narratives). Os
seus autores, Reda Cherif, Marc Engler, Fuad Hasanov,
mesmo sendo pouco conhecidos, conseguiram causar um
pequeno tremor no campo da teoria econômica. Todos os
economistas que frequentam o cercado
do mainstream parecem tratar o artigo de modo respeitoso.
Afinal, ele tem o endosso da principal organização controladora
do dinheiro em âmbito mundial.

A razão pela qual o conteúdo desse artigo ecoou entre os


economistas de esquerda é que parece expor a teoria
econômica como ideologia. Ademais, parece indicar também
que há um declínio da política de austeridade a qual combatem
com veemência. Nessa recepção do paper, há, porém, um
suposto implícito. Se até mesmo os economistas do centro do
sistema abandonaram esse discurso, os da periferia, menos
competentes segundo o preconceito, deveriam fazer o mesmo.
Os funcionários da governança tecnocrática do capitalismo no
Brasil precisam, portanto – e esse é o argumento –, alinharem-
se aos que estão na vanguarda, que operam no centro do
sistema.

Mas, o que há nesse artigo? Trata-se de um estudo sobre a


preponderância e a força performativa de certas arengas do
capital que se apresentaram na cena econômica ao longo do
desenvolvimento do capitalismo nos últimos setenta anos. O
comandante desse modo de produção, como se sabe, fala e
escreve por meio dos discursos dos economistas que atuam
como seu suporte. O estudo examinou um conjunto de 4920
relatórios feitos no âmbito dessa organização que abriga, como
bem se sabe, um importante núcleo de personificações do
capital mundializado. Esses relatórios analisam as economias e
orientam as políticas econômicas dos países que se submetem
às diretrizes e ao “aconselhamento” dessa organização.

A força performativa mencionada diz respeito ao uso da


linguagem como ação que é capaz de produzir mudanças no
comportamento das pessoas, ou seja, dos receptores dos
discursos. Ora, é justamente nessa perspectiva que os autores
do artigo compreendem o papel das “narrativas econômicas”:
“nosso mundo” – dizem eles – “é moldado pelas ideias e as
ideias dos economistas são particularmente influentes”. Keynes
observara – apontam – “que as ideias dos economistas e dos
filósofos políticos, sejam elas erradas ou certas, são mais
poderosas do que comumente se julga.” Na verdade, dissera
ele, “o mundo é regrado por elas e por quase nada além delas”.

Keynes – note-se – pensava ainda essa disciplina estritamente


como ciência. Não se pode esquecer que a Teoria geral do
emprego, do juro e do dinheiro veio à luz na forma de um
ressurgimento e renovação, durante a depressão dos anos
1930, da economia política clássica. Se ele se preocupava
nesse tempo tormentoso com o desempenho macroeconômico
da economia capitalista, não fugia da questão da repartição da
renda entre as classes sociais tal como aqueles antecessores
da primeira metade do século XIX.

A luta das classes para ampliar a participação no produto


líquido social é o fim condutor interno da obra de Keynes. É
assim, nesse balanço, que se define a demanda efetiva.
Portanto, para ele, as ideias formuladas pelos economistas
diziam respeito às condições internas do evolver do próprio
sistema econômico.

Os autores do artigo aqui examinado se valeram das idéias de


Robert Schiller, um economista superficial contemporâneo,
ganhador do Prêmio Nobel de 2013, que criara e divulgara
essa temática na econosfera. Para tanto, escreveu um artigo e
um livro com o sugestivo nome de Narrativas
econômicas (Narrative economics). Como bom investidor, ele
“enfatiza a importante influência das narrativas ou estórias
populares nos resultados econômicos”. Diferentemente de
Keynes, entretanto, sustenta que essas narrativas livre-
flutuantes determinam “a severidade de uma crise ou mesmo o
desemprego tecnológico”. Se a afirmação de Keynes já contém
um viés idealista, a suposta capacidade de moldar o mundo
das opiniões econômicas difusas torna-se notoriamente
fantasiosa em Schiller.

Por que esse último autor passa da ciência para a narrativa


econômica? A primeira consiste sempre num saber
supostamente racional sobre a natureza e o funcionamento do
sistema econômico; já as narrativas são engendradas com a
finalidade de construir consensos sobre as formas da
governança do capitalismo nas conjunturas históricas. Veja-se
que esses três autores parecem saber, pelo menos
implicitamente, que a própria teoria econômica estrutura-se
agora como um saber tecnonormativo que abandonou a
pretensão de ser um saber científico. E que ela é hoje
construída nos laboratórios do império, no centro e nas
periferias, não para dar conta dos fenômenos como tais – e
menos ainda dos seus nexos internos–, mas justamente para
legitimar formas específicas de política econômica.

A teoria econômica – não se pode deixar de registrar aqui – é


uma forma de saber decadente, em si mesma semelhante à
velha escolástica medieval, mas que mantém sempre uma
orientação instrumentalista que melhor convém ao próprio
capitalismo.

Cherif, Engler e Hasanov, de qualquer modo, descrevem em


seu texto quatro narrativas que foram difundidas, senão
impostas aos gestores, nos últimos cinquenta anos do
desenvolvimento do capitalismo em escala global. Eles as
denominam de “narrativas de crescimento”, mas aqui – como já
ficou claro – elas serão ressignificadas como arengas do
capital.

Aqui se pretende apresentar de modo resumido o conteúdo


desses discursos, mostrando os períodos em que
predominaram e porque se tornam necessários frente ao
próprio desenvolvimento do capitalismo. Tem-se como objetivo
mostrar que eles, longe de serem livre-flutuantes, responderam
às dificuldades objetivas da acumulação de capital no tempo
histórico. Não resta dúvida que há certa autonomia dos
discursos econômicos em geral, mas também é verdade que
eles estão condicionados e mesmo pressionados pelas
condições objetivas da acumulação de capital.

Como se sabe, o capital é um sujeito automático que tende à


desmedida, à superacumulação e à crise; conforme se
reproduz, ele cria barreiras para o seu próprio processo de
crescimento, supera em geral essas barreiras, mas apenas
para criar barreiras ainda mais elevadas, as quais passam a
dificultar o seu próprio desenvolvimento. Mas essa sabedoria é
atualmente um pouco insuficiente. Esse ensinamento que veio
do século XIX deve agora ser complementado com o saber de
que o movimento de acumulação no capitalismo
contemporâneo não depende mais só da espontaneidade do
capital; ao contrário, ele depende sempre da intervenção
constante e fundamental do Estado, das políticas econômicas
engendradas pelas instituições que dão suporte à reprodução
do capital.

A história do capitalismo no pós-guerra pode ser apresentada


sinteticamente por meio do gráfico que se segue e que
apresenta uma média ponderada da lucratividade do capital no
conjunto dos países que formam o G 20, onde se concentra em
torno de 85% do PIB mundial. Mesmo havendo ocorrido uma
queda tendencial da taxa de lucro ao longo dos últimos 70
anos, o período como um todo pode ser dividido em quatro
subperíodos: idade dourada, crise de lucratividade,
recuperação neoliberal e longa depressão.

O que determina essa periodização é obviamente o


comportamento ascendente ou descendente dessa variável.
Note-se que é o próprio movimento da taxa de lucro que
explica a sucessão de subperíodos. Nele se reflete a lógica
mencionada da produção e da superação das barreiras:
quando a taxa de lucro cai, o capitalismo tem de se transformar
para continuar prosperando. Ao prosperar, acaba produzindo
mais a frente uma nova queda da taxa de lucro.

Por falta de espaço, não se vai aqui explicar em detalhes o


desenvolvimento do capitalismo nesse período. Essa
explanação, que não prescinde de muitas outras considerações
teóricas, fatos históricos e evidências empíricas, encontra-se
num importante livro de Michael Roberts. Em A longa
depressão: porque aconteceu, como aconteceu e o que vai
ainda vai acontecer (The long depression: how it happened,
why it happened, and what happens next), ele apresenta uma
interpretação da história do capitalismo que aqui se segue em
grande medida. O próprio gráfico abaixo apresentado foi
construído por esse autor com base nas informações
estatísticas da Penn World Table 9.1. De qualquer modo, a
evidência que aí aparece parece bem significativa.

Como os três economistas chegam a conceber os quatro


mencionados discursos. Eles empregam uma técnica
estatística que consiste em selecionar um conjunto de palavras
significativas, em descobrir depois a frequência com que essas
palavras aparecem nos relatórios do FMI, para chegar até
aglomerados de significantes que são, então, tomados como
manifestações privilegiadas de certos discursos.

Fazendo isso, identificaram quatro ondas discursivas, em parte


sobrepostas, que formavam, segundo eles, “narrativas” típicas.
Elas foram assim denominadas: “estrutura econômica”,
Consenso de Washington, “reformas estruturais” e Constelação
de Washington. Ora, elas foram aqui ressignificadas como
discurso do capital industrial, discurso do choque neoliberal,
discurso das reformas estruturais neoliberais e discurso da
superação da estagnação, respectivamente. Essas ondas são
apresentadas na figura em sequência como linhas coloridas
num gráfico temporal.

O discurso do capital industrial começou antes de 1978; na


verdade, ele predominou no pós-guerra até o fim da década
dos anos 1970, quando começou a declinar. O que o demarcou
na pesquisa foram os termos produtividade, estrutura industrial,
competição, eficiência etc. Enquanto enunciação econômica
recebeu o nome genérico de keynesianismo. O seu
definhamento ocorreu junto com a crise de lucratividade
observada justamente na década dos anos 1979, a qual se
manifestou por meio da queda da taxa de crescimento do PIB,
das elevações abruptas dos preços do petróleo, do estagflação
e do ativismo sindical. Ele foi sucedido pelo discurso do
neoliberalismo e do capital financeiro a partir da década dos
anos 1980.

Os autores do estudo identificaram o discurso do choque


neoliberal, uma arenga que se projetou internacionalmente,
com o nome de “Consenso de Washington”. Os termos
privatização e liberalização foram as suas marcas registradas.
As medidas de política econômica que recomendava visavam,
em última análise, tirar os entraves à circulação nacional e
internacional do capital. Elas permitiram o processo da
globalização da produção industrial e, ao mesmo tempo, o
enfraquecimento dos sindicatos e da classe trabalhadora. Em
última análise, o objetivo era forçar uma recuperação da taxa
de lucro por meio da redução da parcela salarial, o quede fato
ocorreu como se pode ver no gráfico anterior.

Paralelamente, cresceu também o discurso das reformas


estruturais que visavam promover a liberalização dos mercados
e mudar o modo de atuação do Estado. Ele recomendava a
redução da proteção social dos trabalhadores para que o
Estado pudesse atender melhor à acumulação de capital
privado, em particular na esfera financeira. Marcou esse
discurso uma preocupação central com a qualidade das
instituições na perspectiva da redução dos custos das
condições da acumulação como infraestrutura, educação,
saúde etc. O seu objetivo central era consolidar
institucionalmente o regime de acumulação do neoliberalismo.

Mesmo quando o discurso do choque começou a declinar já na


virada do milênio, o discurso das reformas neoliberais
continuou cada vez mais importante. Ocorre que a taxa de
lucro voltou a cair depois de 1997, trazendo de volta a
preocupação com uma tendência persistente à estagnação que
se manifestou nos países centrais e em grande parte dos
países periféricos. Os próprios economistas do sistema
começaram a debater o que eles mesmos chamaram de
“estagnação secular”. Nesse quarto discurso começou a
aparecer uma preocupação com a elevação das desigualdades
de renda e riqueza, com a corrupção, com a questão ecológica,
com os impactos das tecnologias da informática e da
comunicação, assim como um questionamento keynesiano da
austeridade.

O artigo de Cherif, Engler e Hasanov menciona de passagem


que a realidade objetiva pode, sim, impactar no discurso dos
economistas que escrevem e falam em nome do capital –
mesmo se dizem e pensam ao contrário. Afirmam, por
exemplo, que “as crises dos anos 1970 e 1980 podem ter
acelerado a defesa das políticas de menor participação e
intervenção do Estado”. Mas lhes falta uma audácia maior.

Esses autores não tratam do futuro das arengas do capital.


Pode-se, entretanto, conjecturar que doravante vai ascender
um discurso marcado por uma certa dúvida crucial: se antes
predominara a tese de que “não há alternativa”, agora pode
prevalecer a questão sobre se “o capitalismo pode sobreviver”.

É bem evidente que esse modo de produção enfrenta agora


não apenas a crise renitente da COVID-19, mas também um
colapso ecológico generalizado, a ascensão do racismo e do
neofascismo, uma derrocada possível do castelo de areia
construído pelo sistema financeiro internacional. A euforia
neoliberal predominante dos anos 1980 em diante pode ser
substituída agora por um discurso depressivo que não poderá
ser amenizado pelo consumo de drogas psicoterapêuticas, mas
que afundará com elas, assim como com o consumo
generalizado de drogas mais pesadas. Esse discurso terá de
operar num quadro social e econômico que não poderá deixar
de ser caracterizado como barbárie.

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