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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIȆNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

ADRIANA MADRIÑÁN MOLINA

O Método de Divisão no Fedro de Platão

SÃO PAULO

2012
ADRIANA MADRIÑÁN MOLINA

O Método de Divisão no Fedro de Platão

Tese apresentada ao programa de Pós-


graduação em filosofia do Departamento de
filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Marco
Antônio de Ávila Zingano

São Paulo
2012
Para Jaime
Agradecimentos

Agradeço a Jaime por oferecer-me todo seu apoio, paciência e esmero no processo

árduo dessa pesquisa, transmitindo-me sua atitude crítica e exercendo o diálogo assíduo no

questionamento e maduração de minhas ideias, diálogo que influiu profundamente no

percurso da consistência de minha proposta interpretativa.

Agradeço ao professor Zingano por permitir-me desenvolver minha pesquisa de

mestrado sob sua orientação, transmitindo-me sua paixão e respeito pelos textos gregos,

indicando-me que um trabalho metódico em filosofia antiga passa tanto pela compreensão

do grego quanto pelo rigor argumentativo, condições necessárias para a propícia reflexão

filosófica.

Agradeço aos qualificadores de minha pesquisa, o professor Roberto Bolzani e o

professor Alfonso Correa, por suas oportunas sugestões y comentários. Agradeço também

a meus colegas Eduardo Wolf, Simon Noriega e Paulo Ferreira pelos comentários

cuidadosos e pontuais do uso sintático e gramatical correto do grego e do português.

A meus pais, Raúl e Julia María, agradeço seu amor incondicional, propiciando-me

o ambiente idôneo na consecução desses primeiros passos de minha trajetória académica.

A Marie, a Maria Helena e a Geni agradeço sua colaboração amável e generosa na

gestão das diligências burocráticas e dos trâmites académicos necessários para culminar de

modo satisfatório meus estúdios de mestrado no departamento de filosofia da Universidade

de São Paulo.

A presente pesquisa foi financiada por CAPES PROEX.


Comparecei aqui, nobres animais indômitos, e
persuadi a Fedro, o de bela descendência, de que
se não filosofa suficientemente, nunca será um
orador competente sobre nada.

Platão. Fedro, 261a3-5


Resumo

MOLINA, Adriana Madriñán. O Método de Divisão no Fedro de Platão 2012, 154 f.


Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

O objetivo da presente pesquisa é expor y testar uma hipótese exegética e filosófica sobre o

método de divisão proposto por Platão no Fedro. Segundo minha hipótese, esse método de

divisão visa a resolver a controvérsia através da formulação de argumentos e contra-

argumentos que examinam a consistência de definições opostas sobre um mesmo assunto,

com o fim de determinar sua definição correta. Para isso, no primeiro capítulo explico as

principais noções do método do Fedro e descrevo o modus operandi desse método. No

segundo e no terceiro capítulo, testo o modus operandi já descrito através da evidência

textual do Fedro.

Palavras chaves: a)na/mnhsij, controvérsia, forma, arte argumentativa, método de

divisão, sunagwgh/, diai¿resij e kat' aÃrqra v pe/fuken.


Abstract

MOLINA, Adriana Madriñán. The Method of Division in Plato’s Phaedrus 2012, 154 p.
Dissertation (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

The aim of the present research is to expose and test an exegetical and philosophical

hypothesis about Plato´s division method in his dialogue Phaedrus. According to my

hypothesis, Plato´s division is a method that aims to resolve controversies via the

formulation of arguments and counterarguments that test the consistency of opposed

definitions. Consequently, the method ends with a correct definition. To achieve this aim,

in chapter 1, I explain the principal notions of the method and describe the modus operandi

of this method. In chapter 2 and chapter 3, I submit to critical examination the

aforementioned modus operandi through the textual evidence founded in Phaedrus.

Key words: a)na/mnhsij, controversy, form, argumentative art, division method,

sunagwgh/, diai¿resij and kat' aÃrqra v pe/fuken.


Sumário

Introdução

O Problema da Unidade do Fedro de Platão 1

Capítulo I

A)ntilogikh/ Te/xnh: Uma interpretação para o método do Fedro 9

1. Uma explicação do método 9


1.1. Controvérsia
9
1.2. O procedimento de reunião (sunagwgh/)

1.3. O procedimento de divisão (diai¿resij) 21

1.4. O princípio de similaridade (kat' aÃrqra v pe/fuken) 26

1.5. O Problema da Dicotomia 29


2. Modus Operandi
32

41

Capítulo II

A sunagwgh/ do Método exposto no Fedro 50

Aplicação da sunagwgh/ do Método exposto no Fedro 77

Capítulo III

A diai¿resij do Método exposto no Fedro 88

Aplicação da diai¿resij do Método exposto no Fedro 100

Conclusão 136

Referências Bibliográficas

Bibliografia Primária 139

Bibliografia Secundária 140


Introdução

O Problema da Unidade do Fedro de Platão

O Fedro de Platão é uma miscelânea de formas e conteúdos diversos: o amor, a natureza da

alma, a teoria das formas, a retórica sofística, a arte retórica e seu método, a escritura, os

deuses e a filosofia, entre outros. A maioria dos estudiosos separa o Fedro em duas grandes

seções. A primeira delas contém três monólogos sobre o amor, sendo o primeiro o de Lísias,

os outros dois, de Sócrates, embora o último destes, também denominado palinódia, abranja

outros temas como a organização cósmica, a natureza e composição da alma e a visão prévia

das formas. A segunda seção avança com uma conversação entre Fedro e Sócrates sobre a

arte retórica e seu método, a filosofia e o valor da escritura. Os temas que geralmente

disputam a centralidade do diálogo são os seguintes: o amor, tema que sobressai na primeira

seção do Fedro; a retórica, tema que lidera a segunda seção do Fedro; e a filosofia,

concebida por alguns como tema fundamental que atravessa o Fedro do princípio ao fim.

Segundo o comentário de Hérmias (1901), muitos escolarcas debateram sobre o

tema principal do Fedro e nem sequer conseguiram concertar o subtítulo de este diálogo 1.

Os escolarcas têm opiniões diferentes sobre o escopo do Fedro (do/cai tou= skopou=, 8,

15), alguns dizem que é o amor, outros dizem que é a retórica, outros dizem que é o bem e

outros dizem que é o bem primeiro (prw½ton kalo/n). Hérmias diverge de todas essas

1 G. J. De Vries, na introdução a seu livro A Commentary on the Phaedrus of Plato, estabelece o seguinte:
““The unity of the Phaedrus” was matter for discussion already in Antiquity, as well as its subject-matter”
(1969: 22). De Vries afirma isso baseado no testemunho de Hérmias, um neoplatônico comentador de Platão,
que discutiu o problema da unidade temática do Fedro em seu texto In Platonis Phaedrum Scholia (ed.
Couvreur, Paris, 1901).

1
opiniões, exceto daquela de Jâmblico, que diz que o Fedro trata de uma proteica de bens

(periì tou= pantodapou= kalou= fhsiìn eiånai to\n skopo/n, 9,9).

O Fedro não somente é plural em temáticas, como também o é em sua forma

discursiva, pois ela muda de uma parte para outra do diálogo, oscilando entre narrações

alegóricas e discursos de alta complexidade argumentativa. Convém, então, perguntar, o

que confere unidade a toda essa variedade de temas e de estilos, a ponto de o tornar um

único e mesmo diálogo? Essa pergunta dá lugar ao famoso problema da unidade do Fedro,

frequentemente comentado por muitos estudiosos: é possível que o Fedro seja, apesar de

sua natureza fragmentária, coerente enquanto texto filosófico? Daniel Werner (2007)

apresenta quatro tipos de enfoque que tentam responder a este problema geralmente

nomeado “o problema da unidade do Fedro”:

(1) Enfoque temático: este enfoque pressupõe que o problema da unidade do Fedro

restringe-se à questão da unidade temática, pois somente considera o nível do tema

ou assunto sobre o qual versa o diálogo. A maioria dos estudiosos adota essa postura.

Nesse enfoque, é possível distinguir entre aqueles que adotam um enfoque temático

monista e aqueles que adotam um enfoque temático pluralista. Os primeiros

defendem uma hierarquização de temas: um tema principal, esteja ele explícito ou

implícito no diálogo, e outros temas subordinados ao principal2. Já, os pluralistas

2
O tema principal monista é geralmente a retórica, o amor ou a filosofia. De Vries comenta que o pensamento
de Platão não está fragmentado, mas bem organizado (1969: 22-23). Alguns estudiosos como Plass (1968),
Curran (1986), Nehamas & Woodruff (1995), Nichols (1998), entre outros, consideram a retórica como o tema
unificador. Beare (1913) afirma que o tema do amor é fundamental em ordem a entender as considerações
platónicas sobre a a)na/mnhsij; Helmbold and Holther defendem que a temática do amor é importante
também na segunda seção do Fedro: “Philosophy is what the lover should be whispering to his beloved; and
the conversation should be conducted in dialectic, so to speak” (1952: 407). Outros estudiosos como R.
Hackforth (1952), Guthrie (1976), G. R. F. Ferrari (1987), entre outros, defendem que o tema monista do
Fedro é a filosofia. Hackforth afirma que o Fedro consta de três propósitos interligados: (1) Vindicar a busca
da filosofia, de acordo com o significado dado por Sócrates e Platão a esta palavra, como a verdadeira cultura
da alma, em contraste com as afirmações falsas de retóricos contemporâneos para prover dita cultura. (2)
Propor uma retórica reformada, a qual deve estar ao serviço dos fins da filosofia e adotar seu método. (3)
Anunciar um método especial de filosofia, i.e. o método dialético de coleção e divisão. Mas, o propósito (1)

2
consideram igualmente importantes diferentes temas, sem que predomine um sobre

outro3.

(2) Enfoque não temático: este enfoque pressupõe que o problema da unidade do Fedro

não se restringe ao problema da unidade temática; pois, não considera somente o

nível do tema ou assunto a fim de encontrar a unidade do diálogo, mas também

considera outros níveis de elementos não temáticos nos quais Platão unifica o

diálogo, e.g. o drama, a unidade espaço-temporal, a estrutura formal e o estilo

linguístico constituído de palavras, imagens e símbolos recorrentes.4

(3) Enfoque dissolutivo: os enfoques (1) e (2) pressupõem que o problema da unidade

do Fedro é um problema textual genuíno e sugerem modos de resolução; este

enfoque, pelo contrário, não partilha dessa suposição, pois nega a força do problema

em si mesmo e consequentemente tenta dissolve-lo. Os estudiosos que se aderem a

domina e é mais importante que os outros dois, porque “it is present throughout, and is what gives the dialogue
its unity” (1952: 9). Nesta ordem de ideias, Guthrie escreveu que “The Phaedrus is not a manual of instruction
in rhetoric … but a plea to abandon it for philosophy” (1976: 123); e, Ferrari identifica “the major philosophic
concern [of the Phaedrus]” com “the vindication of the philosophic life against a life that seeks only its effects”
(1987: 222-3). De outra parte, David White (1993), na introdução a Rhetoric and Reality in Plato’s Phaedrus,
defende o enfoque temático monista enquanto argumenta que o tema principal é um tema vasto que suporta
todo o diálogo e está vinculado, de alguma maneira, com cada um dos assuntos nele mencionados: “The
approach taken in this study is based on the premise that the Phaedrus can be read as an account of reality,
and of how human nature must confront that reality in order to speak, and to live, as widely and well as
possible. Thus, one way in which the unity of the Phaedrus becomes apparent is to read the dialogue as a
variegated exercise in- to use a non-Platonic word- metaphysics, the Platonic concern to describe “the things
that are”. This approach is not without drawbacks. To sustain it throughout a convoluted dialogue means that
some aspects of the Phaedrus will receive scrutiny only as they bear on the structure of reality animating the
dialogue as a whole. But the unavoidable loss of interpretive discussion that results will, I feel, be more than
compensated for by situating these issues within a more articulated metaphysical position. The Phaedrus has
yet to receive its due as a concentrated discourse on metaphysical considerations, both substance and method”
(1993: 2-3).
3 Segundo Guthrie, no Fedro não há uma distribuição ordenada dos temas nem uma hierarquização dos

mesmos porque todos são igualmente importantes e, portanto, não deve haver um tema monista: “To seek a
‘main’ theme is to expect a tidy compartmentalization and hierarchization of ideas which do not exist in the
dialogues; indeed, as Guthrie noted, the beauty of the dialogue form is that it enables Plato to intertwine several
ideas which may be equally important to him” (1976: 117; itálicas minhas).
4
Veja Sallis (1996); Lebeck, quem em seu artigo seminal de 1972 mostra que o frutífero e filosoficamente
significativo poderia derivar-se de uma análise minuciosa do estilo textual dos diálogos de Platão; Rutherford
(1995), quem segue o caminho de Lebeck.

3
este enfoque afirmam que o sentido de unidade que os comentadores

contemporâneos pretendem encontrar neste texto de Platão é imposto à força por

eles mesmos e não se encontra no texto. Portanto, este enfoque admite que a falta de

unidade e a desagregação do Fedro é real e iniludível, mas existem razões históricas

para que isto seja assim, e admitir o contrário é um anacronismo.5

(4) Enfoque estratégico: este enfoque pressupõe a força do problema da unidade do

Fedro, mas não o resolve; pois, considera que a desunião do diálogo ou ao menos

sua aparente falta de unidade não é um erro de Platão, mas uma manobra deliberada,

i.e. uma estratégia filosófica e literária para atingir certos fins.6

No que segue não me deterei no exame dos argumentos destes quatro enfoques7.

Disponho-me a apresentar imediatamente minha resolução ao problema da unidade do

Fedro, apoiando-me nos enfoques (1) e (2). A meu ver, a aparente falta de unidade do Fedro

é clara e evidente, antes de tudo o contraste entre suas duas grandes seções, i.e. o passo

abrupto da discussão sobre o amor estabelecida na primeira seção (227a-257b) à discussão

sobre a retórica estabelecida na segunda seção (257c-279c), assim como também o passo

5 M. Heath (1989) foi o primeiro em defender o enfoque dissolutivo, quem defendeu que há uma diferença
significativa entre a estética literária grega e a nossa, especialmente entre o tipo de unidade que a audiência
grega esperaria encontrar num texto e o tipo de unidade que os intérpretes modernos esperam encontrar. Heath
concluiu que o problema da unidade do Fedro existe somente para nós e, por consequência, não existe para
uma audiência grega. Seguindo a Griswold (1996:11), Werner considera o enfoque dissolutivo um enfoque
insatisfatório para aproximar-se à leitura dos diálogos de Platão: “For one thing, appeals to external
considerations are generally far more speculative in nature tan appeals to the text itself. Moreover, it simply
seems to me to be far more charitable to the autor to seek a textual response to the problema of unity – looking,
for example, for deeper levels of unity – rather than attributing the composition of the text to cultural or
historical factors” (2007: 129).
6 Daniel Werner adere-se ao enfoque estratégico: “it claims that Plato intends us to feel such a change. In other

words, Plato deliberately inserts the thematic and stylistic contrast into the dialogue, using them as a mens of
making a philosophical point or achieving a certain end” (2007: 130); e, então, conclui que o contraste entre
as duas grandes seções do diálogo responde a sua manobra estratégica. Werner afirma que seu enfoque
estratégico é consistente com pressupor a unidade do diálogo (Cfr. 2007: 132-3).
7 Para examinar cada um de esses enfoques e seus problemas, veja o artigo completo de Daniel Werner (2007:

91-137).

4
dos extensos monólogos e narrações míticas apresentadas na primeira seção aos diálogos

conscienciosos apresentados na segunda seção.

No entanto, contrariamente ao que aparece à primeira vista, o Fedro é um texto

coerente e cuidadosamente organizado, como o mesmo Platão explicita com a expressão

“necessidade logográfica” nas linhas 264c. As múltiplas temáticas estão inter-relacionadas

ao longo do Fedro. Em cada uma das duas grandes seções sobressai um destes temas: o

amor e a retórica, respectivamente; mas, algumas passagens tornam explícita a relação entre

ambos os temas, e o tratamento dado por Platão a cada um desses temas não se restringe a

uma dessas seções, de modo que ambos os temas são recorrentes ao longo de todo o diálogo.

A variedade de estilos e tonalidades, por exemplo, o passo da palinódia ao diálogo, mostra

as limitações de cada estilo. O muthos expressa com vivacidade imagens, analogias e

símbolos metafóricos; entretanto, o logos expressa com precisão argumentos complexos.

Portanto, a diversidade textual não implica ipso facto a falta de unidade textual.

Contudo, defendo o enfoque temático monista porque considero que um tema

prevalece e determina a sequência de relações entre os outros temas. No que segue

examinarei qual é o tema que unifica o Fedro. Para isto preciso identificar o tema principal

e argumentar qual é sua primazia sobre seus possíveis contendores.

Face à diversidade temática do Fedro, considero que o amor ou a retórica poderiam

ser o tema principal e, assim, recuso qualquer outro tema como principal, pois considero

que somente esses dois são recorrentes e têm primazia no percurso do diálogo. No caso de

que não seja nenhum dos dois, poderia ser um tema implícito que abrangesse a ambos. No

Fedro há dois sentidos do termo retórica: um lato sensu, que não faz diferença entre a prática

e a rotina promovida pelos sofistas e um stricto sensu que alude à arte retórica que visa a

descobrir a verdade, a que Platão denomina arte argumentativa (h( o/gwn te/xnh, 260d4;

5
262c1; 266c3; 266d6; 267b4; 267c8; 270a7; 273d7), arte retórica (h( r(htorikh/ te/xnh, 261a7; 263b6;

269b3; 271a5), arte da oposição (h( a)ntilogikh/ te/xnh, 261d10). O sentido de retórica

relevante nas considerações do Fedro é seu segundo sentido, ao qual farei referência daqui

em adiante com a expressão ‘arte argumentativa’.

O Sócrates do Fedro afirma que ele tem a enfermiça paixão de escutar argumentos

(nosou=nti periì o/gwn a)koh/n , 228b6-7), e também que ele é um amante dos argumentos

(tou= tw½n o/gwn e)rastou=, 228c1-2; 230d; 236e5). Essas afirmações, desde o começo do

diálogo, indicam a estreita relação entre o amor e a arte argumentativa; pois, essa arte é

relativa a como fazer bons argumentos, e o amor pelo conhecimento, i.e. a filosofia, permite

argumentar bem para, assim, chegar a conhecer.

Para saber se o amor ou a arte argumentativa constitui o tema principal é necessário

determinar se um deles está subordinado ao outro, passando em revista às passagens que

explicitam a estreita conexão entre ambos os temas. Considerando tudo isto, pode-se

perguntar: há no Fedro uma subordinação do tema do amor ao tema da arte argumentativa

ou, ao contrário, há uma subordinação do tema da arte argumentativa ao tema do amor?

Referirei algumas passagens que estabelecem uma relação entre os temas que acabo

de mencionar. Na primeira seção do Fedro, Sócrates afirma que somente se deterá no

aspecto retórico do argumento de Lísias e não no seu conteúdo (t%½ ga\r r(htorik%½ au)tou=

mo/n% to\n nou=n proseiÍxon, 235a1-2). Mais adiante, Sócrates diz que o que importa não é

a novidade do que se diz, mas como se diz (cf. 236a3-4). No prelúdio aos dois argumentos

de Sócrates se simplificam os dois princípios metodológicos que regerão seu proceder

argumentativo (cf. 237c-d). Na segunda seção se recuperam os argumentos de Lísias e

6
Sócrates, com o propósito de examinar se esses estão privados ou não de arte e como eles

se servem do duplo procedimento metodológico (cf. 262c; 263c-d; 264e-265d).

Essas passagens revelam que o amor está a serviço da arte argumentativa na medida

em que serve como aplicação ao modo de proceder dessa arte. Embora os argumentos da

primeira seção versam sobre o amor, estes poderiam ter versado sobre qualquer outro

assunto controverso; pois, o que mais importa não é conhecer a natureza do assunto desses

argumentos, mas examinar se sua composição e organização segue o procedimento

metodológico adequado. Finalmente, a passagem 277b-c sugere o escopo do Fedro:

“Não antes de conhecer a verdade de cada uma das coisas sobre as quais fala ou escreve, não

antes de ser capaz de definir todo por se mesmo e, depois de ser definido, saber dividir de

novo segundo formas até chegar ao indivisível; de igual modo, não antes de conseguir

discernir a natureza da alma, descobrindo a forma à qual encaixa cada natureza, e compondo

e organizando seu argumento conforme a ela, oferecendo a uma alma composta um argumento

composto e um argumento simples a uma alma simples; não antes de fazer tudo isto se será

capaz de exercer a arte dos argumentos, no grau que a sua natureza o permita, já seja com o

propósito de ensinar ou de persuadir, como foi indicado em toda a argumentação precedente”

(Cfr. 277b5-c6; itálicas minhas).

O escopo do Fedro tem a ver com a arte argumentativa, tal como foi indicado em

todo o texto que precedeu a essa passagem. Portanto, pressuponho que o tema do amor está

subordinado ao tema da arte da argumentação e, assim, este constitui o tema principal do

Fedro.

No presente trabalho de pesquisa não farei uma análise completa de toda a arte

argumentativa do Fedro e seus pormenores, mas sim uma análise detalhada de seu método

procedimental que estará apoiada na minha pressuposição a respeito da unidade do Fedro.

O método responde, precisamente, a como fazer bons argumentos, condição sine qua non

7
para poder exercer a arte argumentativa. Meu propósito será 1. explicar as principais noções

do método do Fedro, 2. descrever o modus operandi desse método no primeiro capítulo, e

3. testar o modus operandi já descrito com a evidência textual do Fedro nos seguintes dois

capítulos.

Capítulo I

A)ntilogikh/ Te/xnh

8
O objetivo da presente pesquisa é elaborar uma interpretação do método proposto

por Platão no Fedro. Para levar a cabo este objetivo proponho caracterizar minha

interpretação à maneira de uma hipótese de trabalho (HT). Por consequência, meu propósito

na presente pesquisa consistirá em expor e testar minha HT. Nos capítulos II e III me

ocuparei da segunda tarefa e, no presente capítulo, me ocuparei da primeira. Assim, com o

propósito de expor com suficiente clareza minha interpretação, no que segue elaborarei uma

cartografia lógica das principais noções entrelaçadas na passagem 261 -266.

I. Uma interpretação para o método do Fedro

Minha interpretação visa a dois objetivos: 1. explicar as principais noções

entrelaçadas no método e 2. descrever o modus operandi do método. Minha agenda de

trabalho seguirá esta ordem.

1. Una explicação do método

1.1. Controvérsia

Platão estabelece, em 263, uma distinção entre dois tipos de asserções

(e(kate/rou tou= eiãdouj): asserções sobre as quais não controvertemos (sumfwnou=men,

263b1) na medida em que referem-se a coisas que se mostram claras ao pensamento (e.g.

asserções sobre o ‘ferro’), às quais denominarei asserções não-controversas (ANC); e

asserções sobre as quais controvertemos (a)mfisbhtou=men, 263a10) enquanto referem-se a

coisas que se mostram obscuras ao pensamento ( e.g. asserções sobre a ‘beleza’), às que

denominarei asserções controversas (AC) (cf. 263a-b) 8. Mas, quais poderiam ser as razões

8 Aqui o termo eiãdoj não é usado num sentido técnico. R. Hackforth traduz e(k ate/rou tou= eiãdouj por
“two kinds of words” (1952:127), porque em 263a6-7 Platão distingue entre os o)no/mata que significam o
mesmo para todos e aqueles que têm um significado que gera controversa. Friedrich Solmsen o traduz por

9
de Platão para ter estabelecido tal distinção? Se aceitamos a distinção entre ANC e AC,

teremos que aceitar dois corolários: 1. Não controvertemos sobre as ANC e 2. Temos que

aceitar que noções como ‘beleza’ e ‘justiça’ estão sujeitas a controvérsia.

Uma objeção imediata a essa distinção e a seus corolários consiste em

considerá-los triviais: a maioria das pessoas sabe que há noções evidentes e outras obscuras

e complicadas. Portanto, a distinção entre AC e ANC é trivial e não necessária. No entanto,

podemos responder que a distinção não é trivial uma vez que nos situamos num plano

dialógico. Observemos dois casos nos quais a distinção é útil. Imaginemos que duas

pessoas, S e G, encontram-se reunidas. No primeiro caso, S tenta estabelecer uma

controvérsia sobre se uma barra de ferro que repousa sobre uma mesa adjacente é

efetivamente de ferro. No segundo caso, S afirma “a justiça é a vontade dos poderosos”. Se

adotarmos a distinção estabelecida por Platão, temos a dizer que no primeiro caso não há

controvérsia, simplesmente S confundiu-se em sua percepção. No segundo caso podemos

dizer que S enunciou uma AC. Aceitaria G sem mais a definição de justiça de S? É plausível

pressupor que não, assim como também é plausível pressupor que G poderia asseverar “a

justiça é o conhecimento do bem comum”. Uma vez que S e G se encontrem nesta situação,

a controvérsia tem início. Assim, em primeiro lugar, Platão não se limita a estabelecer a

possibilidade de confundir ANC com AC, mas estabelece que essa confusão é usual. Em

“two kinds of things or of matters” (1986:23), porque considera a referencia a dianoeiÍsqai em a7 e a


aplicação feita a eÃrwj em c7-8. Não me convence nenhuma dessas traduções. Julgo que a tradução de
Hackforth reduz a um nominalismo o argumento proposto por Platão em 263a-b, e que a tradução de Solmsen
é ambígua e indeterminada. Eu proponho traduzir e(kate/rou tou= eiãdouj por “dois tipos de asserções”.
Porque, considero que esta expressão alude aos destinatários dos verbos a)mfisbhte/w de 263a10 e
sumfwne/w de 263b1. Aquilo sobre o que controvertemos uns com outros e com nós mesmos
(a)mfisbhtou=men a)llh/loij te kaiì h(miÍn au)toiÍj, 263a10) não são meros nomes; tampouco são
entidades ontológicas, já que as coisas em se mesmas, a diferença do que dizemos delas, não são controversas;
então, aquilo sobre o que controvertemos são as asserções contrapostas, já sejam ditas por outros ou já sejam
ditas por nós mesmos.

10
segundo lugar, a controvérsia é o quid da distinção: o controverso é aquilo que nos preocupa

e, portanto, nos ocupa enquanto pesquisadores: a controvérsia dá início à pesquisa.

Não há dúvida que afirmar que a controvérsia dá início à pesquisa é uma tese

plausível. A controvérsia sobre uma noção como ‘justiça’ ipso facto nos gera dúvidas e,

consequentemente, somos movidos a perguntarmos pelo tema: procuramos saber o que é a

justiça. Parece lícita a pretensão de passar da inquietude gerada pela controvérsia ao

conhecimento. De fato, estabelecer a distinção entre ANC e AC não teria o menor sentido

se Platão não pressupusesse que podemos conhecer. Portanto, o que está em discussão não

é a possibilidade de conhecer, mas a necessidade de esclarecer como conhecer em meio da

controversa. É este o ponto de partida de Platão para a sua discussão sobre o método.

Até o momento, Platão aceita que a controvérsia é inegável e iniludível e também

aceita que podemos resolvê-la. No entanto, o segundo membro desta conjunção não escapa

à controvérsia: não é otimista demais pressupor que podemos resolver a controvérsia? Essa

pergunta nos leva a contemplar três opções:

(1) Se podemos resolver a controvérsia, então podemos conhecer. Podemos resolver a

controvérsia. Portanto, podemos conhecer.

(2) Se não podemos resolver a controvérsia, então é possível que não possamos

conhecer. Não podemos resolver a controvérsia. Portanto, é possível que não

possamos conhecer. O curso de ação prudente é não se pronunciar sobre o assunto.

(3) Se não podemos resolver a controvérsia, então não podemos conhecer. Não podemos

resolver a controvérsia. Portanto, não podemos conhecer.

A situação é complicada porque, para dizer com certa comicidade, “há

controvérsia sobre a controversa”. No Fedro, Platão não considera esta dificuldade de

maneira direta. No entanto, suas considerações sobre o método parecem responder a esta

11
dificuldade. Portanto, aceitemos provisionalmente o argumento (1). Se (1) é o caso, quais

são as condições que deve satisfazer o método? Como resolver a controvérsia? Note-se que

aceitar (1) nos leva a considerar um conjunto possível de propostas rivais sobre o método.

Por exemplo,

(A) oferecer argumentos persuasivos é necessário e suficiente para conhecer.

Segundo Platão, aceitar (A) nos levaria a encarar a seguinte problemática: duas

pessoas oferecem argumentos igualmente persuasivos e opostos sobre uma mesma tese. Por

exemplo, S argumenta persuasivamente que “a justiça é a vontade dos poderosos” ao

mesmo tempo em que G argumenta com igual força persuasiva que “a justiça não é a

vontade dos poderosos”. De fato, se reconhecemos que ambos os argumentos são

igualmente persuasivos, como podemos discernir a verdade? É patente que se (A) é o caso,

então não podemos discernir a verdade. Mas, (A) tenta responder a (1). Portanto, (A) nos

leva a uma contradição.

Não obstante, esta objeção a (A) é justamente a posição de quem oferece o

argumento (2). Assim, Platão somente pode usar esta objeção para refutar a (A) sob pena

de refutar-se a se mesmo. Por consequência, ou Platão abandona a objeção anterior ou

mostra como refutar (A) usando (2) sem cair numa flagrante autofagia.

A solução de Platão dissolve o dilema acima: Platão aceita que a controvérsia

acontece e é iniludível, mas somente entre nós, quer dizer, toda controvérsia é ad hominem,

não ad rem. Assim, é preciso fazer uma qualificação muito importante a respeito disso: a

controvérsia é uma problemática epistemológica, não ontológica. Portanto, ainda que uma

controvérsia (e.g. sobre a justiça) não pudesse ser resolvida pela humanidade, disto não se

segue que não exista a justiça. Desta maneira, se poderia responder a quem adere a (2) e (3)

12
que seus argumentos são fruto de uma confusão. A possibilidade epistemológica de não

resolver uma controvérsia é totalmente razoável: ainda que em princípio pudéssemos

resolver a controvérsia sobre o que é a justiça, é possível que circunstancialmente jamais

seja resolvida. Mas tal possibilidade é epistemológica e, portanto, não afeta a ontologia da

justiça. Consequentemente, a verdade sobre a justiça não é uma decisão humana, nem é

fruto de nossa psicologia nem de nossa habilidade persuasiva.

Além disso, Platão pressupõe que conhecer é conhecer o ser de algo. Se conhecer

é conhecer o ser de algo, então não pode haver saberes opostos sobre algo, ou seja, algo não

pode ser duas coisas opostas. Supor o contrário seria aceitar que se S argumenta

persuasivamente que uma coisa é A ao mesmo tempo em que G argumenta com igual força

persuasiva que essa mesma coisa não é A, então uma mesma coisa é A e não é A, o que é

um absurdo. Platão argumenta que o ser de algo não pode ser o parecer de algo (Cfr. oÀsa

do/cei, 260a3) ou a opinião da maioria sobre esse algo (Cfr. ta\ do/cant' aÄn plh/qei, 260a2),

configurado em nossa alma mediante um processo de abstração de múltiplas percepções e

expresso em palavras mediante habilidade persuasiva; já que o parecer de algo é dependente

de nossas controvérsias e, assim, uma mesma coisa poderia parecer A e não parecer A.

Platão afirma que o ser de algo constitui uma realidade independente de nossas

controvérsias, ao que denominou forma (eiådoj o i¹de/a)9. Portanto, para estabelecer a

verdade sobre uma coisa não é suficiente armar-se de argumentos persuasivos, mas é

necessário conhecer sua forma. De modo que se poderia enunciar o argumento (1) nos

termos de Platão:

9Os termos eiådoj e i¹de/a que Platão usa num sentido técnico filosófico acostumam ser traduzidos por ‘forma’
ou ‘ideia’. Porém, prefiro traduzi-los por ‘forma’, porque hoje em dia ‘ideia’ sugere algum tipo de dependência
mental, e, eiådoj e i¹de/a no sentido estrito platónico denotam entidades independentes da mente, cuja
existência é objetiva.

13
(1´) Se podemos resolver a controvérsia sobre um assunto, então podemos conhecer a

forma do assunto sobre o que controvertemos. Podemos resolver a controvérsia

sobre esse assunto. Portanto, podemos conhecer a sua forma.

Numa controvérsia onde se expõem teses opostas sobre um mesmo assunto ou

nenhum dos oponentes conhece ou uma das partes conhece. Se nossas asserções são

verdadeiras, estas são verdadeiras na medida em que encontram suporte no conhecimento

de formas, entidades independentes de nossas controvérsias. Portanto, quando uma das

partes estabelecer a verdade sobre esse assunto, haverá terminado a controvérsia. Por

consequência, Platão pode manter sua objeção aos defensores de (A) e ao mesmo tempo

refutar os argumentos (2) e (3).

Até agora o ponto é o seguinte: Platão aceita que podemos conhecer e, se alguém

aceita que podemos conhecer, então está constrangido a proporcionar um método para

conhecer. No entanto, tal método tem que eliminar a controvérsia e não pode fazê-lo, agora

fica claro, baseado exclusivamente na persuasão. Sendo assim, unicamente um método que

permita a mediação com os objetos de conhecimento, i.e. as formas, poderá oferecer o fim

da controvérsia. Se o método é efetivo, então deve levar à forma. Por consequência, o

método de divisão do Fedro (o(d%½ divrh=sqai, 263b7)10 constitui a resposta de Platão à

necessidade de proporcionar tal peculiar método.

Para Platão, o método de divisão pertence à arte argumentativa (h( o/gwn te/xnh,

260d4; 262c1; 266c3; 266d6; 267b4; 267c8; 270a7; 273d7). Algumas vezes é referida como a arte

retórica (h( r(htorikh\ te/xnh, 261a7; 263b6; 269b3; 271a5), talvez para enfatizar em suas

10 De Vries comenta o seguinte: “o(d%½, methodically, systematically, not ei¹kv=” (1969: 207).

14
diferenças com a prática e rotina retórica dos sofistas, a arte argumentativa não visa

simplesmente debater: visa descobrir a verdade. Na linha 261d10, essa arte é referida como

a arte da oposição (h( a)ntilogikh\), porque os argumentos que se confrontam são

contrários e, inclusive, contraditórios.

O fim da arte argumentativa e seu método é conhecer e conhecer é, como disse

antes, conhecer o ser de algo, i.e. sua forma (eiådoj o i¹de/a)11 (Cfr. 247c-e): “Como diz o

espartano, não há nem chegará a haver uma arte argumentativa genuína senão guarda

relação com a verdade” (tou= de\ le/gein, fhsiìn o( A/kwn, eÃtumoj te/xnh aÃneu tou=

a)lhqei¿aj hÂfqai ouÃt' eÃstin ouÃte mh/ pote uÀsteron ge/nhtai, 260e5-7)12.

Não obstante, a postulação das formas parece suspeita: Como podemos

aproximar-nos às formas? Elas não estão além de nosso entendimento? Frente à

problemática de que o conhecimento é conhecimento de formas e as formas não são

particulares sensíveis nem constructos mentais, uma vez que as formas são independentes

do mundo sensível e de nós mesmos, Platão responde que nós temos “uma capacidade de

reconhecimento daquilo que conhecemos outrora” (a)na/mnhsij e)kei¿nwn aÀ pot' eiåden

h(mw½n h( yuxh\, 249c2). É assim que a resposta a essa problemática está na noção de

a)na/mnhsij, que passo a explicar brevemente agora. É o conhecimento, principalmente,

uma capacidade (du/namij). E, segundo Platão, nós chegamos a conhecer, ou melhor, a

reconhecer as formas, porque a nossa alma conheceu as formas outrora e tem a capacidade

11
Os termos eiådoj e i¹de/a que Platão usa num sentido técnico filosófico são usualmente traduzidos por
‘forma’ u ‘ideia’. Prefiro traduzi-los por ‘forma’, porque hoje em dia ‘ideia’ sugere algum tipo de dependência
mental e, eiådoj ou i¹de/a no sentido estrito platónico denotam entidades independentes da mente, cuja
existência é objetiva.
12 As passagens do Fedro citadas neste trabalho de pesquisa são extraídas da edição de Burnet (1901). E as

traduções das passagens citadas são próprias.

15
de recuperar esse conhecimento assim como a asa tem a capacidade natural (Pe/fuken h(

pterou= du/namij, 246d6) de levantar um corpo que caiu (Cfr. 246d-9b). Por conseguinte, o

conhecimento prévio das formas constitui a justificação de nosso conhecimento; dito de

modo anacrônico mas esclarecedor, a justificação do conhecimento das formas é a priori.13

Nosso reconhecimento das formas se expressa em definições. Não temos um

conhecimento direto das formas, mas um conhecimento indireto que está em relação de

correspondência com elas. Portanto, conhecer o ser de algo consiste em definir seu

conceito 14 conforme a sua forma. Por isso não se definem constructos mentais nem

particulares sensíveis, define-se a realidade de acordo com as formas que a estruturam. À

definição de justiça lhe corresponde uma forma de justiça que faz correta sua definição.

Acrescento que os particulares sensíveis podem servir de ponto de partida para

conhecer, o que não significa que o reconhecimento proceda do mundo sensível.

Observemos uma ilustração que pode ser útil para entender essa afirmação. S e G se

deleitam com a beleza de Helena. S afirma que para saber o que é a beleza é suficiente

com perceber uma mulher bela como Helena. G responde que, embora deleitar-se com a

beleza de Helena seja tão claro como pensar uma barra de ferro, pensar o que é a beleza se

apresenta obscuro ao pensamento. Para explicar isso melhor G pressupõe que todos os

13 Neste trabalho de pesquisa não aprofundarei na Teoria do Reconhecimento introduzida por Platão não
somente no Fedro, também em outros de seus diálogos como Menón e Fedón. A respeito dos estudos
especializados sobre este tema veja Moravcsik (1971; 1976: 1-20); Ackrill (1973: 177-95; 1997b); Scott
(1987: 346-66; 1995; 1999: 93-124); Bedu Addo (1991: 27-60); Vlastos (1995: 147-65); Kahn (2006: 119-
132).
14 No presente texto não entenderei o ‘conceito’ num sentido semântico, tampouco o entenderei como uma

abstração de uma multiplicidade de percepções que se faz extensiva a todas essas percepções, porque o
conceito procede das formas e não das percepções. Entenderei o termo conceito como a afeção que uma forma
imprime na psique conforme a seu ser quando a conheceu e que faz que a alma possa reconhecê-la. De esta
maneira, pode-se dizer que a reminiscência está constituída por um conjunto de afeções anímicas que procede
e está em correspondência com a estrutura das formas. Embora as percepções possam ser o ponto de partida
para conhecer o conceito de uma forma, as percepções não são a origem dos conceitos, as formas são o origem
dos conceitos.

16
homens de uma cidade aceitam sem discussão que Helena é a mulher mais bela, o que não

implica que Helena seja a resposta ao que é a beleza; pois, pode ser que designar Helena

como a mulher mais bela não seja digno de controvérsia, mas considerar o que é o ser da

beleza não é, em nenhum aspecto, indisputável. Se G seguisse uma posição como a de

Platão, ele concederia que a beleza de Helena nos leva a pensar na definição de beleza; mas,

também concederia que o conceito de beleza não é um sensível, tampouco é um constructo

da alma fruto de uma abstração de sensíveis dos que se predica que são belos. O conceito

de beleza é uma afecção da alma que procede da forma de beleza de que a alma teve um

conhecimento prévio e, portanto, o conhecimento da beleza é a definição de beleza que

corresponde a sua forma. Portanto, o conhecimento é a capacidade de definir um conceito

em correspondência com sua forma. Mais adiante esclarecerei em que consiste essa

correspondência.

De outra parte, as AC implicam definições opostas sobre um mesmo conceito. O

ponto é que ao confrontar um conceito como ‘beleza’, prima facie não sabemos sua

definição correta e isto faz com que controvertamos apresentando opiniões, teses, definições

e outras asserções contrárias e, inclusive, contraditórias. No entanto, a impossibilidade de

manter a verdade de duas asserções opostas nos leva a querer reconhecer a forma do

conceito em questão e, assim, poder argumentar por que ambas as asserções são falsas ou

por que uma delas é necessariamente verdadeira e a outra falsa.

Se o fim do método proposto no Fedro é definir um conceito (eÀkastoj) conforme

a sua forma15, então a definição de um conceito é correta quando é conforme a sua forma e

é incorreta quando não é conforme a sua forma. Assim, seja x uma variável que reja sobre

um conjunto de conceitos a definir. Como se estabelece uma definição de x mediante este

15
A finalidade do método é mencionada nas seguintes passagens: 269b5-7; 266b3-5; 273d-e.

17
método? Como saber se essa definição constitui sua definição correta? Prima facie não

podemos saber qual é a definição correta de x, pois somente dispomos de várias AC que

encontram apoio em definições opostas de x.

Então, o que é o método proposto por Platão? Como opera esse método? É bem

sabido que para quem defende o argumento (1), um método é a resposta a como resolver

uma controvérsia e o conhecimento é a consequência dessa resolução. Para Platão, (A) não

é suficiente para responder a este como, não é suficiente saber como compor argumentos

persuasivos porque podemos compor dois argumentos opostos sobre x igualmente

persuasivos; conhecer o ser de algo é necessário para responder a esse como. Conhecer o

ser de algo é conhecer uma forma, mas como não temos um conhecimento direto de uma

forma é necessário definir o conceito que corresponda a essa forma. Em vista disso o fim

do método de Platão é estabelecer a definição correta de x. Portanto, o argumento (1´) deve

ser modificado novamente:

(1´´) Se podemos resolver a controvérsia sobre x, então podemos estabelecer a

definição de x que corresponde a sua forma, i.e. a definição correta de x. Podemos

resolver a controvérsia sobre x. Portanto, podemos estabelecer a definição correta

de x.

Neste ponto, surgem vários questionamentos: como examinar se uma definição

de x é correta de maneira conclusiva? Como evitar uma regressão ao infinito de definições?

Se, para Platão, uma definição correta é uma definição conforme a sua forma, como se

explica essa correspondência? O que garante que uma definição de x seja conforme a sua

forma? Por consequência, o método proposto no Fedro deve responder satisfatoriamente a

estas três questões: C1. Como se estabelece uma definição para x. C2. Como se examina se

essa definição é sua definição correta. C3. Explicar a correspondência entre uma definição

18
de x e sua forma. Daqui em diante minha HT consistirá, precisamente, em expor e testar

cada uma dessas questões. Antecipo que o procedimento de reunião (sunagwgh/) do

método exposto no Fedro responde a C1, o procedimento de divisão (diai¿resij) deste

método responde a C2 e a expressão kat' aÃrqra v pe/fuken responde a C3.

Sucintamente exponho a seguir as noções envolvidas nessas três questões. O

método proposto por Platão no Fedro consiste em responder a como a argumentação pode

passar de uma definição de x a sua definição oposta. Platão o torna explicito em suas

aplicações metodológicas para a definição de amor, exemplo por antonomásia do Fedro,

como a argumentação pode passar da censura ao elogio do amor (w¨j a)po\ tou= ye/gein

pro\j to\ e)paineiÍn eÃsxen o( o/goj metabh=nai, 256c5-6). Para descrever esse passo,

Platão apresentará os dois tipos de procedimento (duoiÍn ei¹doiÍn , 265c9) aos que fez

oportuna alusão, i.e. o procedimento de reunião e o procedimento de divisão (Cfr. 266b3-5).

A oportuna alusão se remonta aos dois argumentos sobre o amor expostos por Sócrates na

primeira parte do Fedro (237b-257b), os quais são retomados desde 264e para tornar explícito

o vínculo entre eles e os dois tipos de procedimentos: afirmar que o amor é certa mania

(mani¿an ga/r tina e)fh/samen eiånai to\n eÃrwta, 265a6-7) implica o procedimento de

reunião, e afirmar que há dois tipos de mania (Mani¿aj de/ ge eiãdh du/o, 265a9) implica o

procedimento de divisão.

Contudo, o que quer dizer passar da censura ao elogio do amor? Uma explicação

a este passo se encontra perto de 261c: assim como os litigantes argumentam os dois lados

de um mesmo assunto nos tribunais e Palamedes de Elea faz aparecer um mesmo assunto

como idêntico e diferente, um e múltiplo, em repouso e em movimento (Cfr. 261c-d), o técnico

que reconhece o que é o ser de cada coisa (oÁ eÃstin eÀkaston tw½n oÃntwn) é aquele que

19
faz passar (eÃstai metabiba/zein) a outros, pouco a pouco e sem enganar-se a si mesmo,

desde o que é o ser de cada coisa levando-os a seu oposto (a)po\ tou= oÃntoj e(ka/stote

e)piì tou)nanti¿on) (Cfr. 262b5-8). Censura e elogio estão relacionados aos opostos daquilo a

que pertence o amor. O amor pertence à mania (265a6-7), mas a mania tem duas partes: uma

delas é a enfermidade humana e a outra a perturbação divina (265a9). A diferença de 265c6

e, depois, d7, em 264e8 Platão refere-se no plural à argumentação de Sócrates sobre o amor,

pois nesse momento Platão enfatiza que os dois argumentos (o/gwn) são, em certo, sentido

opostos ( ¹Enanti¿w pou hÃsthn, 265a2). Em 265e3 e, também, em 266a3 Platão refere-se

ao substantivo dual twÜ o/gw para descrever sua oposição. Estes dois argumentos são

opostos porque com eles Sócrates passa da definição do amor como uma parte da mania à

definição do amor como a outra parte da mania. O amor não pode ser definido como uma e

outra parte da mania, razão pela qual esses argumentos devem determinar de maneira

conclusiva a qual dessas duas partes pertence o amor. O argumento sobre a parte da mania

a que não pertence o amor é censurado, entretanto o argumento sobre a outra parte da mania

a que pertence o amor é elogiado. Portanto, o método é o passo argumentativo de um oposto

ao outro do conceito a que pertence x, com o fim de determinar a qual desse par de opostos

pertence x; tal como no caso particular do amor se passou de um oposto ao outro oposto da

mania, com o fim de definir o amor conforme ao que é. Por conseguinte, os dois

procedimentos do método tentam responder a como se faz este passo.

1.2. O procedimento de reunião (sunagwgh/)

Após abordar a noção de controvérsia é a vez de analisar o primeiro procedimento

do método, i.e. o procedimento de reunião, o qual responde a C1. É importante notar que eu

interpreto a sunagwgh/ como o primeiro de dois procedimentos complementares que

20
constituem o método do Fedro. Contudo, há discrepâncias interpretativas a respeito de se a

sunagwgh/ é realmente um procedimento metódico. A sunagwgh/ tem sido concebida ou

como a intuição que antecede ao método ou como uma parte constitutiva do método, e

concebida como parte do método as interpretações oscilam entre conceber a sunagwgh/

como um procedimento metodológico e concebê-la como um procedimento metodológico

acompanhado de intuição. No capítulo II analisarei minuciosamente este termo e

apresentarei os principais expoentes de cada uma dessas interpretações.16

O procedimento de reunião tem como fim estabelecer a mi¿a i¹de/a de cada

conceito a definir (eÀkastoj). O que é uma mi¿a i¹de/a e como se estabelece? Em primeiro

lugar, uma mi¿a i¹de/a não constitui uma locução absoluta, mas uma locução relativa, porque

seu uso sempre alude a mi¿a i¹de/a de um conceito e.g. o amor. A mi¿a i¹de/a de x é uma

característica comum a “certas AC de muitas maneiras dispersas” (ta\ pollaxv=

diesparme/na), mas não é uma característica comum qualquer, é uma característica

comum que define a x. O que isso quer dizer? A mi¿a i¹de/a de x é uma característica da

definição de x que constitui aquilo a que pertence x. Porém, a mi¿a i¹de/a de x não é igual a

sua definição completa, a mi¿a i¹de/a de x é igual à parte genérica de sua definição, pelo que

poderíamos dizer que constitui sua definição parcial. No entanto, devo reconhecer que falar

de ‘definição completa’ e ‘definição parcial’ não parece ser muito esclarecedor. Talvez seja

çiente indicar de maneira preliminar que a mi¿a i¹de/a de x é condição sine qua non para

definir x, mas é menos informativa (mas não por isto ambígua) que a característica distintiva

16A sunagwgh/ tem sido interpretada como intuição por F. M. Cornford (1960: 186-7, 267) e W.K.C. Guthrie
(1975); como procedimento sistemático acompanhado de intuição por Richard Robinson (1953); como um
dos dois procedimentos metódicos por W.D. Ross (1951), Hackforth (1952) e David White (1993).

21
do que é x. Por exemplo, dizer que o amor é uma mania indica que esta é a mi¿a i¹de/a do

amor. No entanto, as manias se dividem em prejudiciais e benéficas. Se o amor é comparado

à gula, uma vez que ambas são manias, e não especificamos a que parte da mania pertence

cada uma delas, então dizer “o amor é mania” e “a gula é mania” constituem asserções

pouco informativas.

A mi¿a i¹de/a de x é sua característica comum porque não constitui a característica

distintiva do que é x, mas a característica que x compartilha com outros conceitos. É por

isso que múltiplas asserções sobre o que parece ser x não dizem o que é x e, inclusive, dizem

o oposto do que é x, embora não deixam de ser asserções sobre conceitos que compartilham

com x uma característica definidora. A mi¿a i¹de/a de x é sua característica definidora

porque, apesar de ser comum, define a parte essencial de x. A respeito da mi¿a i¹de/a de x

devemos ter em mente que tudo o que se diz de sua mi¿a i¹de/a se diz de x, mas nem tudo o

que se diz de x se diz de sua mi¿a i¹de/a. A definição estrita de x não é sua mi¿a i¹de/a, mas

“certa parte” (ti¿j) de sua mi¿a iãdea, tal como a definição de amor não é a mania, mas certa

mania (mani¿an tina, 265a6). Isto significa que uma parte da mi¿a i¹de/a de x é x e a outra

parte da mi¿a i¹de/a de x não é x, porque uma mi¿a i¹de/a admite opostos em relação a um x

que é parte integrante dessa mi¿a i¹de/a, mas não é ela mesma. Eis como a definição incorreta

de x, apesar de estabelecer sua mi¿a iãdea, consiste em definir a x como a parte de sua mi¿a

iãdea que é oposta ao que é x; entretanto que a definição correta de x consiste em defini-lo

como a parte de sua mi¿a i¹de/a que corresponde a sua forma.

Pensemos outro exemplo que não seja o do amor; tomemos, a definição do

conceito ‘homem’. A mi¿a i¹de/a de homem é animal. O homem compartilha com outros

22
tipos de animal o fato de ser animal, pois se diz “o homem é animal” e se diz “o cavalo é

animal” e se diz “a águia é animal” e, assim, sucessivamente. Mas não se diz “o homem é

cavalo”, mesmo que se diga “o cavalo é animal”. Quando perguntamos o que distingue o

homem do cavalo ou de qualquer outro animal, dividimos sua mi¿a i¹de/a em duas partes

que ao relacionar-se a sua característica distintiva, uma delas constitui o que é o homem e a

outra constitui o que não é o homem. Deste modo, o animal admite os opostos “animal com

logos” e “animal sem logos” em relação ao que é o homem. A característica distintiva do

homem parece ser o logos, mas controvertemos sobre se o homem tem logos ou se o homem

carece de logos. Então o homem pode ser definido com um destes dois opostos: “o homem

é um animal sem logos” ou “o homem é um animal com logos”. Embora não saibamos qual

dessas definições é a definição correta de homem, é plausível que uma delas seja correta e

a outra incorreta; o fato é que é impossível que ambas as definições sejam corretas. Do

mesmo modo, o amor é mania. Controvertemos sobre se o amor deve ser definido como

mania prejudicial ou mania benéfica, de modo que procedemos a dividir a mania nessas

duas partes para determinar a qual delas pertence o amor.

Uma vez se estabelece a mi¿a i¹de/a de x, como ter certeza de que é essa a

característica comum e essencial de sua definição? Alguém poderia replicar que se trata de

uma mi¿a i¹de/a errada ou que não temos certeza de qual é o limite da reunião. Se não se

sabe qual é o limite da reunião, não se sabe onde se deve parar e nada impede que a mi¿a

i¹de/a de x seja a mi¿a iãdea de uma mi¿a i¹de/a e assim sucessivamente, sem puder evitar

uma regressão ad infinitum. Seguindo os exemplos acima mencionados, como ter certeza

de que a mi¿a i¹de/a de homem é animal e a mi¿a i¹de/a de amor mania? Imaginemos por

um momento que a mi¿a i¹de/a do homem é ser vivo e a mi¿a i¹de/a do amor psique. Se a

23
mi¿a i¹de/a do homem fosse ser vivo, então a característica distintiva do que é o homem

seria animal. Se a característica distintiva do que é o homem fosse animal, então não haveria

diferença entre o que é o homem e o que é o cavalo, logo, o homem seria cavalo. De igual

modo, se a mi¿a i¹de/a do amor fosse psique, então a característica distintiva de o que é o

amor seria mania. Se a característica distintiva do que é o amor fosse mania, então não

haveria diferença entre o que é o amor e o que é a gula. Destes exemplos se segue que a

mi¿a i¹de/a de x é a característica comum da definição de x e o ponto de partida adequado

para determinar a característica distintiva da definição de x.

Além disso, Platão disse que aqueles que dialogam e usam o método para

encontrar a verdade são os dialéticos (dialektikou/j, 266c1), i.e. aqueles que praticam a

arte argumentativa, aqueles que procuram um ponto de encontro para suas múltiplas AC,

que constituem o ponto de referência de sua argumentação. A mi¿a i¹de/a de x é este ponto

de convergência entre os dialéticos e de referência de sua argumentação metódica. Portanto,

aqueles que estabelecem a mi¿a i¹de/a de x constituem um grupo de interlocutores

competentes que não pensam nem falam contrassensos. Desta maneira, esses interlocutores

podem divergir em suas asserções e, inclusive, alguns deles podem partir de asserções

falsas, que mesmo falsas não deixam de ter sentido. Pelo contrário, haveria que pressupor

que aqueles que sintetizam por convergência múltiplas AC numa mi¿a i¹de/a chegam a um

contrassenso. Devemos lembrar que os dialéticos não partem da completa ignorância, mas

de um estado intermédio entre a ignorância e o conhecimento; pois, se fossem ignorantes,

não poderiam conhecer.

As AC estão suportadas em certa mi¿a i¹de/a de x que pode levar a uma definição

correta ou a uma definição incorreta de x. Se não leva a sua definição correta, em nenhum

24
caso será uma definição disparatada, pois implica sua mi¿a i¹de/a e esta constitui o ponto de

partida que é necessário estabelecer para que a argumentação proceda com claridade e

consistência. Como o procedimento de reunião determina a mi¿a i¹de/a de x desde AC que

estão suportadas em certa parte de essa mi¿a i¹de/a a que x poderia pertencer, se estabelece

essa parte como provisional entanto se examina se constitui sua definição correta. Portanto,

o procedimento de reunião leva a estabelecer uma definição provisional de x que encontra

suporte nas asserções das que partiu, ainda que a finalidade deste procedimento não seja

estabelecer uma definição provisional para x, mas estabelecer o ponto de partida que em

seguida permita examinar com argumentos qual é a definição correta de x.

Por conseguinte, o procedimento de reunião opera em dois passos: 1. Reunir AC

(ta\) em relação a x (e.g. o conceito de amor) que estão dispersas de muitas maneiras

(pollaxv= diesparme/na). 2. Estabelecer certa mi¿a i¹de/a de x que leva a uma definição

provisional de x compatível com as AC reunidas (e.g. o amor é certa mania, 265a6-7).

1.3. O procedimento de divisão (diai¿resij)

O método continua com o procedimento de divisão, o qual responde a C2. Com

este procedimento não se volta a dividir exatamente o que se reuniu, mas se divide o reunido

em conformidade com as junturas naturais das formas (kat' aÃrqra v pe/fuken, 265e1-2),

com o fim de estabelecer a definição correta de x. Em vista disso, em que consiste este

procedimento e como divide? O procedimento de divisão consiste em dividir a mi¿a i¹de/a

de x em duas partes, uma parte é denominada sinistra (skaio/j) e a outra é denominada

destra (decia/), para determinar a qual dessas duas partes pertence x e, assim, estabelecer

sua definição correta. Os termos ‘sinistro’ e ‘destro’ aludem a duas partes que são opostas,

25
porque basta com que uma parte seja sinistra para que não seja destra e vice-versa. Assim,

se x pertence à parte sinistra de sua mi¿a iãdea, essa parte constitui o que é x; e, se x no

pertence à parte sinistra de sua mi¿a i¹de/a, essa parte constitui o que não é x. E o que é x

constitui sua definição correta entanto o que não é x constitui sua definição incorreta. Por

exemplo, a mania se divide em duas partes, prejudicial e benéfica, que têm relação com o

amor, pois o amor pertence a uma dessas duas partes da mania. Isto significa que se o amor

é prejudicial, então o amor não é benéfico; e, se o amor é benéfico, então o amor não é

prejudicial. Dito de outro modo, há uma impossibilidade de que o amor seja prejudicial e

benéfico. Por isto, o quid do procedimento de divisão está em determinar a qual de duas

partes opostas de uma mi¿a i¹de/a pertence x, a parte a que pertença x constituirá sua

definição correta e a outra parte sua definição incorreta, e.g. a definição correta de amor é

“mania benéfica” e sua definição incorreta “mania prejudicial”. Agora falta responder a

como se divide.

O como se divide metodicamente é comparável aos dois litigantes que opõem

seus argumentos, um pro e o outro contra o delito que se imputa ao réu, ante um juiz que,

finalmente, tem o poder de ditar sentença. Assim também, os dialéticos apresentam

argumentos para discernir a qual das partes opostas em que se divida mi¿a i¹de/a de x

pertence x e, então, encontrar a verdade. Um argumento é uma composição cujos elementos

necessariamente estão um seguido do outro, isto é denominado por Platão necessidade

logográfica (tina\ a)na/gkhn logografikh\n, 264b7). Uma composição em que um de

seus elementos não se segue necessariamente do outro não poderia ser um argumento. Os

elementos de um argumento são início, meio e final como os membros que configuram um

animal são cabeça, extremidades e pés. Se um de seus elementos e.g. o início em vez de

estar no início estivesse no final, teríamos uma composição errada e não um argumento; tal

26
como, se um dos membros de um corpo e.g. a cabeça estivesse situada nos pés, este corpo

não seria um animal (Cfr. 264b-c). De modo que o procedimento de divisão examina duas

partes opostas da mi¿a i¹de/a de x através de dois argumentos, respectivamente. Cada

argumento consiste em examinar se o que se segue de estabelecer de modo provisional que

x é certa parte de sua mi¿a i¹de/a é consistente com o estabelecido, com o fim de provar se

essa parte constitui a definição correta de x. Se um argumento examina que o que se segue

de estabelecer uma definição de x é contraditório com essa definição, então esse argumento

refutará essa definição, quer dizer, provará o que não é x. A este argumento denominarei

argumento refutatório. De outro modo, se um argumento examina que o que se segue de

estabelecer uma definição de x é consistente com essa definição, então esse argumento

provará essa definição, é dizer, provará o que é x. A este argumento denominarei argumento

probatório.

O procedimento de divisão necessita argumentar os dois lados da mi¿a i¹de/a de x

em relação ao que é x, porque para saber de modo concludente o que é x também é necessário

saber o que não é x. Então, o procedimento de divisão consta minimamente de dois

argumentos para estabelecer de modo concludente a definição correta de x. Imaginemos que

um primeiro argumento prova que x pertence a certo lado de sua mi¿a i¹de/a, como ter

completa certeza de que isso é assim? Para estar seguros haveria que argumentar que x não

pertence ao outro lado de sua mi¿a i¹de/a, pois poderia acontecer que um segundo argumento

provara que x pertence ao lado oposto ao do primeiro argumento. No entanto, x não pode

pertencer a dois lados opostos, de modo que tudo parece indicar que houve um erro na

argumentação. O procedimento de divisão opera com dois argumentos que são opostos; isto

implica que é impossível que ambos os argumentos provem que ambas as definições opostas

são corretas: há somente uma definição correta de x.

27
Há dois tipos de argumentos opostos: os argumentos opostos contraditórios e os

argumentos opostos contrários. Os primeiros examinam definições opostas contraditórias

de um mesmo x, então uma dessas definições será necessariamente a definição correta de x.

Por exemplo, os argumentos que examinam se “o amor é mania prejudicial” ou se “o amor

é mania benéfica” são argumentos que examinam definições opostas contraditórias de amor,

porque o que é prejudicial necessariamente não é benéfico e o que é benéfico

necessariamente não é prejudicial. Os argumentos opostos contrários examinam definições

opostas contrárias, então ou ambas as definições serão incorretas ou uma delas será correta.

Por exemplo, os argumentos que examinam se “o desejo racional é a parte racional da

psique” ou “o desejo racional é a parte desiderativa da psique” são argumentos que

examinam definições opostas contrárias do desejo racional, porque pode ser que o desejo

racional não seja a parte racional nem a parte desiderativa da psique, mas uma parte que

está entre essas duas na medida em que acompanha a razão para moderar os excessos

desiderativos e, assim, lograr a harmonia entre as partes da alma humana (Cfr. Rep. 435a-

444e)17 .

1.4. O princípio de similaridade (kat' aÃrqra v pe/f uken)

17 Meu exemplo está baseado nas partes que constituem a psique segundo República IV. Platão tem
dificuldades para definir a psique desde a dualidade razão e desejo, pelo que lança mano de uma terceira parte
intermédia à razão e ao desejo. Platão introduz, em República IV, o princípio dos opostos (Cfr. 436b8-c1,
436e8 e 439b3-6) para explicar que não é contraditório que a psique seja unidade e por sua vez tenha três
partes: duas partes contrárias, a razão e o desejo (logistiko/n e e)piqumhtiko/n), e uma parte intermédia, o
desejo racional (qumoeidh/j). O Fedro também trata da definição da psique e suas partes. No Fedro Platão
serve-se do símil da biga alada para explicar a tripartição da alma humana. A biga está composta por um auriga
e dois cavalos que representam cada uma das partes da psique. Os dois cavalos são contrários e o auriga os
dirige, contendo as rédeas de um cavalo e tomando o outro cavalo à rédea solta, de modo que aquele cavalo
siga o movimento deste. Este símil é introduzido desde 246a para expressar com grande vivacidade a natureza
tripartite da alma humana. No entanto, sigo a terminologia empregada por Platão em República IV, com o
propósito de que minha ilustração ajude a aclarar antes que a obscurecer o dito sobre os opostos contrários.
Portanto, aqui a tripartição da psique de Platão é usada como exemplo para um propósito distinto ao de
entender o que é a natureza da psique para Platão.

28
Já é sabido que a definição de x é correta quando corresponde a sua forma. Não

temos um conhecimento direto das formas, mas um conhecimento indireto que está em

correspondência com o que elas são. O conhecimento indireto são as definições

estabelecidas através do método de divisão. Portanto, a definição de x deve corresponder a

sua forma. Mas, o que garante que a definição de x corresponde a uma forma? A resposta a

essa pergunta, como também a resposta a C3, está na expressão “conforme às junturas

naturais” (kat' aÃrqra v pe/fuken). Com essa expressão Platão faz referência ao modo

de garantir a correspondência entre o definido mediante o método de divisão e a sua forma,

porque ela designa o garante do método para dividir, e também para reunir, conceitos

conforme às junturas naturais. As junturas são os pontos em que se unem e se dividem as

coisas. As junturas dos conceitos são naturais se e somente se estão em correspondência

com as junturas das formas, do contrário não seriam naturais. O ponto natural que une x e

outros conceitos representa uma característica idêntica ao que são eles, i.e. todos têm a

mesma mi¿a i¹de/a. O ponto natural que separa x de sua mi¿a i¹de/a representa a característica

distintiva do que é x. Por conseguinte, a expressão “conforme às junturas naturais” designa

um princípio que regula a correspondência entre os nossos conceitos entrelaçados e as

formas que estruturam a realidade ao longo de todo o método. Com o procedimento de

reunião, a reunião dá-se conforme às junturas naturais, porque se estabelece a mi¿a i¹de/a de

x conforme à forma de que faz parte a forma de x. E, com o procedimento de divisão, a

divisão dá-se conforme às junturas naturais porque se estabelece a definição de x conforme

ao que é a sua forma. No exemplo do amor, o que une o conceito de amor com outros

conceitos é a característica que é idêntica a todos eles, i.e. a mania; e, o que os separa é a

característica que distingue o que é o conceito de amor de o que são os outros conceitos, i.e.

o amor é certa mania.

29
O que quer dizer que uma coisa corresponda a outra? Platão é influenciado pela

geometria de seu tempo, de modo que busca um modo de operação análogo ao do geômetra.

O modo de operação do geômetra é regulado pelos princípios de similaridade e congruência

entre as figuras geométricas. O princípio de congruência indica que duas ou mais figuras

têm igual tamanho e igual forma. O princípio de similaridade indica que duas ou mais

figuras têm igual forma. Estou interessada em enfatizar este último princípio da geometria,

já que ele também regula o modo de operação do método de Platão. Um triângulo é similar

a outro triângulo em que, pese o fato de que o primeiro seja maior que o segundo, ambos

são polígonos de três lados. Um triângulo é dissimilar a um quadrado, porque este é um

polígono de quatro lados e aquele um polígono de três lados. Por tudo isto, para Platão, a

correspondência que uma definição de x tem com uma forma consiste em que essa definição

de x é similar a essa forma. Portanto, a expressão “conforme às junturas naturais das formas”

constitui um princípio de similaridade que regula o método de divisão com a finalidade de

estabelecer a definição de x que seja similar a sua forma.

A metáfora do açougueiro ilustra que as divisões que não correspondem às

junturas naturais violam o princípio de similaridade e, portanto, levam à contradição. A falta

de correspondência não tem a ver com as formas, pois elas constituem a mesma realidade;

a falta de correspondência se deve a erros em nosso proceder, pois a realidade é como é, e

devemos adequar-nos a ela para conhecê-la.

O princípio de similaridade explica o vínculo indissociável entre a capacidade

humana de reconhecer (a)na/mnhsij) e o método de divisão. A capacidade de reconhecer

não é exatamente o conhecimento, ela nos permite chegar a conhecer. Nossa percepção dos

particulares sensíveis constitui o ponto de partida para reconhecer a realidade. Alguns

particulares sensíveis, como as coisas justas, são obscuros e controversos, então

30
necessitamos encontrar o caminho (o(do/j) que se adeque à realidade e, sem se importar

com o fato de que este seja longo e tortuoso, percorrê-lo para obter o conhecimento do que

é a justiça. Segundo Platão, somente há um caminho idôneo que consiste em fazer reuniões

e divisões conceituais de modo sistemático em conformidade com as junturas naturais das

formas. Esse caminho é o método de divisão, porque, o método de divisão é mais que um

método de análise conceitual, cujo fim é a definição; o método de divisão é um método de

discriminação das formas que estruturam a realidade, cujo fim é reconhecer o que nos

permite nossa capacidade de conhecimento.

O princípio de similaridade regula todo o método de divisão para garantir que o

definido constitua nosso reconhecimento de sua forma, porque não se trata simplesmente

de um método com o que se fazem divisões e reuniões; trata-se de um método com o que

se fazem divisões e reuniões naturais, já que estão em correspondência com a natureza das

formas. No entanto, essa explicação não é suficiente para garantir que se façam divisões

naturais. O último recurso argumentativo de Platão consiste em afirmar que temos um

conhecimento prévio das formas que recuperamos pela nossa capacidade. Por conseguinte,

o método de divisão é natural porque as reuniões e divisões conceituais estão em

correspondência com as formas que de antemão conhecemos, mas nossa última garantia de

que isto acontece está em que as formas são o suporte ontológico do nosso conhecimento.

Grosso modo, repito e concluo, as reuniões e as divisões naturais supõem uma capacidade

para reconhecer nosso conhecimento prévio, capacidade que exercita o dialético, cujas

pegadas devemos seguir, segundo Platão, como se fossem divinas.

1.5. O Problema da Dicotomia

A essa altura é importante deter-se num problema interpretativo de grande

envergadura que foi motivo de discussão entre os estudiosos do método proposto por Platão

31
no Fedro: o problema da dicotomia (PD). PD está relacionado tanto ao procedimento de

divisão como à expressão “conforme às junturas naturais” (kat' aÃrqra v pe/fuken). Esse

problema está baseado no fato de que as divisões conforme às formas devem ser ou em duas

partes ou, inclusive, em mais de duas partes. Além, dessas duas possibilidades surgem ainda

outras duas: i- as partes divididas da mi¿a i¹de/a de x correspondem a todas as partes de sua

forma; e, ii- as partes divididas da mi¿a i¹de/a de x não correspondem a todas as partes de

sua forma, aquelas correspondem às formas relevantes para o fim, i.e. definir x.

Na primeira possibilidade, ia- se uma forma sempre tem duas partes, então o

método deve dividir a mi¿a i¹de/a de x exatamente em duas partes; e, ib- se uma forma

tem mais de duas partes, então o método deve dividir a mi¿a i¹de/a de x exatamente no

número de partes que tenha a forma a que corresponde. N a segunda possibilidade, iia- se

uma forma sempre tem duas partes, o método não tem outra opção a não ser dividir a mi¿a

i¹de/a de x em duas; mas, iib- se uma forma tem mais de duas partes, então o método não

deve dividir a mi¿a i¹de/a de x conforme a todas as partes de sua forma, somente deve dividi-

la conforme às partes de sua forma que sejam relevantes para o fim. O conceito a definir

na divisão metodológica é uma das partes da mi¿a i¹de/a estabelecida. Para defini-lo, a

possibilidade i assinala a necessidade de conhecer todas as outras partes de sua mi¿a i¹de/a e

a possibilidade ii assinala a necessidade de conhecer somente as partes de sua mi¿a i¹de/a

que sejam relevantes a sua definição.

Pode-se formular o PD em termos das possibilidades de relação entre as divisões

metodológicas e as partes que compõem as formas. Alguns estudiosos consideram que as

dificuldades e inconsistências da dicotomia, a que Platão alude com o verbo diate/mnein

32
em 265e1 e o adjetivo dipla= em 265e4, surgem de pretender estabelecer uma

correspondência exata entre as divisões metodológicas e as partes das formas. As

possibilidades ia e iia não são problemáticas, porque descrevem os casos em que as divisões

metodológicas correspondentes às partes que compõem as formas são dicotômicas. As

possibilidades ib e iib descrevem os casos problemáticos. Em ib o método necessita

dividir a mi¿a i¹de/a de x no número total de partes da forma a que corresponde. Se sua

forma está composta de mais de duas partes, então essa mi¿a i¹de/a deve ser dividida em

todas a s suas partes. Em iib o método não necessita dividir a mi¿a i¹de/a de x conforme

a todas as partes de sua forma. Embora a forma a que corresponde uma mi¿a i¹de/a esteja

composta de mais de duas partes, essa mi¿a i¹de/a pode se r dividida em duas partes, as

duas mais relevantes em relação à definição de x. Contudo, a possibilidade i assinala que

as partes divididas da mi¿a i¹de/a de x estão determinadas por todas as partes de sua forma,

de modo que essa possibilidade implica uma correlação entre a divisão metodológica da

mi¿a i¹de/a de x e a configuração da forma a que corresponde. A possibilidade ii não implica

essa correlação.

Por conseguinte, esse leque de possibilidades oferece três posturas distintas frente

ao PD: A- As divisões metodológicas são necessariamente em duas partes porque todas as

formas têm duas partes (casos ia e iia). B- As divisões metodológicas não são

necessariamente em duas partes porque algumas formas têm mais de duas partes (caso ib).

C- As divisões metodológicas tendem a ser duas porque o critério para dividir não está dado

por quantas partes têm as formas, o critério está dado pelas partes que sejam determinantes

para a definição de x (caso iib). A última postura, à diferença das outras duas, não

estabelece uma correlação entre as divisões do método e as partes das formas.

33
Logo a seguir exponho os argumentos daqueles que defendem cada uma dessas

posturas. Alguns estudiosos afirmam uma divisão necessariamente dicotômica18 e outros

preferem defender uma divisão não necessariamente dicotômica19. Tratarei de um

representante para cada uma das três posturas do PD que acabo de mencionar:

A- Hackforth (1952) defende que as divisões metodológicas são necessariamente em

duas partes, porque na analogia que descreve o procedimento de divisão Platão

afirma que todas as formas devem ter duas partes.

B - White (1993) defende que as divisões não são necessariamente duas, porque

algumas formas têm mais de duas partes.

C- Ackrill (1997) defende que o método faz divisões em duas ou poucas partes, porque

o critério para dividir não está dado por quantas partes têm as formas, o critério está

dado pelas partes que sejam determinantes para o que se pretende definir. A última

postura, à diferença das outras duas, não estabelece uma correlação entre as divisões

do método e as partes das formas.

A postura de Hackforth defende divisões dicotômicas sucessivas. O esquema de

divisões dicotômicas sucessivas consiste em que qualquer conceito deve ser dividido

necessariamente em outros dois. Assim, da divisão de um conceito em dois se segue que

cada um deles é dividido de novo em ou tro s dois e cada um destes em outros dois e,

assim, sucessivamente. Segundo Hackforth, no parágrafo que descreve o procedimento de

divisão, Platão esquematiza os dois argumentos de Sócrates num processo formal e exato

18
Hackforth (1952: 133); Nuño (1962: 93-94).
19
Ackrill (1953: 279; 1997: 93-109); James Philip (1966: 345-6); J.M.E. Moravcsik (1973: 324-348); White
(1993: 219-20).

34
de divisões dicotômicas sucessivas. No entanto, Hackforth mostra que esses argumentos,

tal qual são formulados por Sócrates, não se ajustam a um esquema de divisões dicotômicas

e sucessivas, nem sequer a um esquema de divisões exatas e formais, já que neles divide-

se um número indeterminado de espécies de um modo informal. No seu primeiro

argumento, Sócrates inicia reunindo a eÃrwj no género e)piqumi¿aj, género que depois

será substituído pelo género uÀbrij, o qual tem muitas espécies, o que leva a mostrar que

eÃrwj é uma espécie de uÀbrij; mas, isto não se mostra por sucessivas dicotomias, indica-

se por uma discriminação informal de um número indefinido de outras espécies, entre as

quais Sócrates nomeia duas, gastrimargi¿a e eÃrwj. Somente, no segundo argumento,

Sócrates estabelece o conceito de ‘mania’ para o género de eÃrwj; tampouco há, nesse

argumento, um esquema de sucessivas divisões, sejam dicotômicas ou não, mas uma

simples e superficial divisão em quatro partes (Cfr. 1952:133). Hackforth conclui que o

procedimento de divisão opera como o esquema descreve, apesar de que os argumentos de

Sócrates apresentam divergências em matizes com esse esquema.

A writer with more concern for exact statement than Plato had, would have made Socrates say

something to the following effect: ‘I can illustrate these two procedures, Collection and

Division, by reference to my two speeches; if you think of them together, you will agree that I

was in fact, though not explicitly, operating with a generic concept, mani¿a, under which I

contrived to subsume two sorts of eÃrwj: though I grant you that my actual procedure was very

informal, and in particular that I tended to leap from genus to infima species, without any clear

indication of intermediate species.’ (1952: 133).

Segundo De Vries: “Against Hackforth (133, n.1) who finds difficulties and

inconsistencies in the present paragraph, Ackrill (Mind 1953, 279) rightly argues that there

35
is no suggestion that the analysis done within each speech was (or ought to have been)

dichotomous. There is one initial dichotomy and each speech investigates (not

dichotomously) one of the bits thus produced” (1969: 217). Ackrill, numa crítica à leitura

que Hackforth faz do parágrafo 265e-266b, assinala que a inconsistência e dificuldade de

sua leitura está em pressupor um procedimento de divisão dicotômico. Da analogia

oferecida nesse parágrafo não se segue que a análise feita com qualquer conceito seja

dicotômica. Além disso, a primeira divisão da mania se faz em duas partes, uma esquerda

e outra direita, justo como temos duas mãos com essas características; mas, a subsequente

divisão não precisa ser dicotômica assim como a subsequente divisão de uma mão se faz

exatamente em duas partes (Cfr. 1953: 279).

De outra parte, aqueles que defendem uma divisão não necessariamente dicotômica,

consideram que a divisão metodológica procede em conformidade com a natureza de uma

forma, a qual pode contar com uma, duas ou mais partes. Não podemos conhecer se uma

forma é dicotómica sem antes aplicar a ela o procedimento de divisão. Conhecendo sua

natureza conheceremos se é dicotómica. Neste ponto White defende o seguinte:

Nothing is said here about dividing dichotomously- rather, divisions proceed according to the

thing’s nature, i.e. an arrangement by classes (or Forms) governed by a unifying principle.

Thus, if a thing has a complex nature, then the appropriate divisions will isolate and identify

all constitutive Forms of that nature, arraying them side by side as it were, with no apparent

generic hierarchy established. From this standpoint, any dichotomy depends on whether or not

the thing’s natural joints are dichotomously arranged; if they are not, then according to

Socrates’ current theory dichotomous division would distort the thing`s nature. Such division

would dismember the nature of the thing, just as a bad carver would mangle something by

slicing it down the middle rather than at the joints (1993: 220).

36
White afirma que as divisões procedem em conformidade com a natureza das coisas.

Se uma coisa tem uma natureza composta, então as divisões apropriadas serão aquelas que

identifiquem todas as formas que a compõem. Pois, se dividimos cada forma

necessariamente em outras duas, corremos o risco de mutilar pela metade cada vez que o

corte não corresponda a sua juntura, distorcendo assim a natureza das formas. White

conclui que as divisões dicotômicas dependem de se as junturas naturais das coisas estão

dispostas dicotomicamente. De modo que, para White, a dissolução do problema da

dicotomia está na ênfase da sua leitura sobre a expressão “dividir conforme às junturas

naturais das formas” (diate/mnein kat' aÃrqra v pe/fuken, 265e1-2).

A postura de Moravcsik (1973) refere-se também a um método não dicotômico. Para

ele, o método de divisão está ao serviço da teoria das formas. Cada forma tem uma

característica distintiva e as formas estão inter-relacionadas entre elas, então o método

permite reconhecer estas inter-relações e, separando umas formas de outras, encontra suas

características distintivas. Mas, Platão não explica como se da o procedimento para

encontrar as partes naturais. Platão explica as configurações ontológicas a que se atinge com

o descobrimento das partes naturais. Em palavras de Moravcsik: “He does not tell us how

to arrive at them; he tells us what things look like when we have arrived at them” (1973: 344).

Ainda assim Moravcsik afirma que o descobrimento de tais partes, assim como o

descobrimento das verdades matemáticas, se dá por intuição intelectual criativa, sob o

pressuposto de que elas, bem como os números, existem. Essa postura é consistente com a

divisão de um conceito em mais de duas partes (Cfr. 1973: 344-5).

Finalmente, segundo Ackrill (1997), há abundantes passagens platônicas que afirmam que

as divisões não são necessariamente dicotômicas, tais como Filebo 16d, algumas

passagens do Fedro (265e, 270c, entre outros) e Político 287c.

37
In the Philebus passage already quoted, Plato recommends looking for a divisão into two, ‘if

the case admits of there being two, otherwise for three or some other number’ (16d). None

of the subsequent examples is dichotomous; nor does the later discussion of types of pleasure

and knowledge seek dichotomous kind-ladders. The Phaedrus account stresses the crucial

importance of following the natural articulation of the item under examination (265e); and

though the illustrative description of the division of madness refers to left-hand and right-

hand lines of division, the actual practice followed was not dichotomous (e.g. 238a-c; 244-

5). Later on (270c) Socrates says that the way to think about the nature of anything is to ask

whether it is simples or multiform, and if it is multiform, to enumerate the forms. The

principle is then applied to types of speech and types of soul, in which discussion there is no

suggestion of dichotomous division. The Stranger’s recommendation of division in the

Politicus makes no reference to dichotomy, and it is immediately followed by an enquire into

kinds of productive skill which is explicitly non-dichotomous. ‘It is difficult to cut them into

two… So since we cannot bisect, let us divide them as we should carve a sacrificial victim

into limbs. For we ought always to cut into the number as near as possible to two’ (287c).

The metaphor of the natural carving of a joint is that of the Phaedrus; the principle of

minimizing the cuts is that of the Philebus (1997: 102-3).

Para Ackrill, Platão sugere que quem usa o método d e v e f a z e r dois ou ao

menos poucos cortes em cada etapa, porque uma divisão desleixada em muitas espécies,

muito provavelmente, levará a tão importantes similitudes entre elas que as suas diferenças

passaram inadvertidas. A sugestão consiste em reduzir as divisões ao me nor número

possí vel, com o fim de que as divisões correspondam à estrutura natural ou real do

assunto a definir. O método não busca conhecer a estrutura de um gênero completo, mas

atingir a definição de uma espécie em particular. Para este propósito, em cada etapa é

necessário focar nos subgêneros relevantes em relação ao gênero superior, deixando de

lado os subgêneros irrelevantes. (Cfr. Ackrill, 1997: 103).


38
Minha postura sobre o PD está mais perto de C. O procedimento de divisão consiste

em testar a consistência lógica das partes opostas da mi¿a i¹de/a de x as que poderia pertencer

x. O teste geralmente é feito através de dois argumentos opostos, um argumento refutatório

e um argumento probatório, sobre o conceito a definir. O argumento refutatório é aquele

que divide uma das partes opostas da mi¿a i¹de/a de x até chegar a estabelecer a definição

incorreta de x. O outro argumento é aquele que divide a outra das partes opostas da mi¿a

i¹de/a de x até chegar, justamente, a estabelecer a definição correta de x. Considero, assim,

que na maioria das vezes o procedimento de divisão opera de modo homônimo e

dicotômico; homônimo, porque se argumenta sobre um mesmo x; e, dicotômico, porque

acostumam ser dois os argumentos opostos, quer sejam contrários, quer sejam

contraditórios, um dos quais estabelece o que não é x enquanto que o outro estabelece o que

é x. Cada argumento, claramente, estabelece as divisões necessárias para atingir uma

definição de x, mas essas divisões não devem ser confundidas com as divisões

metodológicas que acostumam dividir x em duas partes, em o que é x e em seu oposto. Se

numa divisão dicotômica não se pode determinar o que é x, então se divide sua mi¿a i¹de/a

no menor número possível de partes até chegar, justamente, a estabelecer a definição correta

de x. E, as divisões procedem conforme às junturas naturais, porque dividir conforme à

realidade é o princípio de correspondência que garante que o método de divisão atinja a seu

fim.

Enfim, o que foi exposto acima permite-me enunciar as quatro sub-hipóteses envolvidas

em minha hipótese interpretativa:

(1) O método constitui a via adequada para resolver a controversa. Seguindo o argumento

(1´´): Se podemos resolver a controvérsia sobre x, então podemos estabelecer a

definição de x que corresponde a sua forma, i.e. a definição correta de x. Podemos

39
resolver a controvérsia sobre x. Portanto, podemos estabelecer a definição correta

de x.

(2) A sunagwgh/ do método tem por objetivo determinar a mi¿a i¹de/a de x.

(3) A diai¿resij do método tem por objetivo testar a consistência lógica das partes

opostas da mi¿a i¹de/a de x às que poderia pertencer x. Se as respectivas divisões de

uma de suas partes levam a contradições, então essa parte deve ser recusada. Se as

divisões de sua outra parte chegam a bom termo em virtude da necessidade

logográfica, então essa parte deve ser aceita.

(4) A expressão kat' aÃrqra v pe/fuken constitui um princípio de similaridade ao

qual devem obedecer os procedimentos metódicos sunagwgh/ e diai¿resij. Este

princípio estabelece a correspondência entre os aspectos ontológico e

epistemológico.

Em suma, enuncio minha HT: o método de divisão proposto no Fedro é um método

que visa a resolver a controvérsia através dos argumentos que testam a consistência de

definições opostas de x, com o fim de determinar qual é a sua definição correta. Nos

capítulos II e III mostrarei a evidência textual da HT.

II. Modus operandi

Em numerosas passagens se faz explícita a conexão existente entre os dois

argumentos sobre o amor e o método de divisão. Na primeira parte do Fedro, Sócrates

compõem dois argumentos sobre o amor e, na segunda parte, estes argumentos são

retomados muitas vezes para mostrar se estão ou não privados de arte e como neles usa-se

40
o duplo procedimento metódico (Cfr. 262c; 263c-d; 264e-265d). Para saber se os argumentos de

Lísias e Sócrates são bons argumentos é necessário saber se estão privados ou não da arte

argumentativa (262c5-7). A arte argumentativa necessita, antes de tudo, fazer uma divisão

metódica sobre o conceito a definir (263b6). Portanto, para saber se os argumentos de

Sócrates são bons argumentos, é necessário saber se esses seguiram os procedimentos do

método assim como se estão regulados pelo princípio de similaridade. A passagem

imediatamente anterior ao parágrafo da descrição do método recupera os dois argumentos

de Sócrates, com o propósito de assinalar que, apesar desses argumentos serem opostos,

com eles se passa da censura ao elogio do amor. Para responder a como se dá esse passo,

Platão introduz a descrição do duplo procedimento metódico: o procedimento de reunião e

o procedimento de divisão (Cfr. 264e7-265d1).

Figura 1

Platão formula, no prelúdio aos dois argumentos de Sócrates, os princípios

metodológicos fundamentais para a consecução de uma boa argumentação (Cfr. 237b7-d3).

Antes de tudo, nesse prelúdio afirma-se que, para quem pretende discutir adequadamente

41
qualquer tese, há um único ponto de partida (mi¿a a)rxh\): deve ter noção sobre o que será

sua discussão ou necessariamente incorrerá num erro (237b7-c2).

Em seguida estipulam-se os dois princípios que devem reger um argumento:

(I) Estabelecer de comum acordo uma definição para x (o(mologi¿#

qe/menoi oÀron, 237d1).

Não concordar quanto a uma definição para x desde o início da discussão leva a

opiniões discordantes entre os participantes. A falta de um ponto de partida comum faz com

que opiniões inconsistentes não possam resolver-se, caindo em aporia. É assim que Platão

explicita uma consideração que na prática argumentativa muitas pessoas transgridem, sem

conseguir entrar em acordo em algum ponto nem com os outros, nem consigo mesmos.

(II) Ter em mente essa definição como ponto de referência

(a)poble/pontej kaiì a)nafe/rontej, 237d1-2)20 enquanto examina-se se x é ou

benéfica ou prejudicial (Cfr. 237d1-3).

Segundo Platão, uma vez que se estabeleça uma definição para x, procede-se a

examinar se x é ou benéfica ou prejudicial. Mas, o que Platão quer dizer exatamente com

isso? Trata-se de examinar os opostos que se seguem de sua definição, os termos benéfico

e prejudicial equivalem aos termos sinistro e destro mencionados no parágrafo da descrição

do método. De início, estabelece-se o que é o amor, isto é, o amor é mania; examina-se, a

seguir, a qual dos opostos da mania pertence o amor, isto é, se o amor é uma mania benéfica

ou uma mania prejudicial. Assim como os dois princípios metodológicos estão a serviço da

20 Essa expressão constitui uma expressão estipulativa na obra de Platão (Cfr. Fedón 75b, 76d; Rep. 484c).

42
argumentação sobre o amor, os opostos mencionados são neste caso benéfico e prejudicial.

Portanto, o princípio metodológico (I) constitui a definição de x e o princípio metodológico

(II) constitui a resposta aos dois opostos que traz consigo a definição de x.

A tese envolvida na discussão sobre o amor é formulada de ao menos três modos

distintos:

(T1) O amor é algo benéfico ou prejudicial (Cfr. 237d2-3, 238e1-2, 245b5-6).

(T2) Deve-se ter amizade com aquele que ama ou com aquele que não ama (Cfr.237c7-

8, 245b2-4).

(T3) Deve-se conceder favores àquele que ama ou àquele que não ama (Cfr. 238e1-2,

241d5-6, 243e5-6, 244a3-5, 265a2-3).

Essas três variantes em sua formulação representam asserções disjuntivas, pois

somente uma das duas partes que as constituem é verdadeira. T2 e T3 são corolários de T1.

Pois, se o amor é benéfico, então deve-se ser amigo e conceder favores àquele que ama. Se

o amor é prejudicial, então deve-se ser amigo e conceder favores àquele que não ama. Para

simplificar, daqui em diante somente considerarei a T1: o amor é ou benéfico ou prejudicial

(eiãte w©feli¿an eiãte bla/bhn, 237d2-3)21.

Como os dois princípios metodológicos estão claramente referidos ao caso particular

do amor, a seguir complemento a formulação que faz Platão desses princípios:

I) Estabelecer de comum acordo uma definição de amor, sobre o que está e que

capacidade tem (periì eÃrwtoj oiâo/n t' eÃsti kaiì hÁn eÃxei du/namin, o(mologi¿#

21 As itálicas são minhas.

43
qe/menoi oÀron, 237c8-d1).

II) Ter em mente a definição acordada como ponto de referência entanto

examina-se se o amor é ou benéfico ou prejudicial (ei¹j tou=to [o(mologi¿# qe/menoi

oÀron] a)poble/pontej kaiì a)nafe/rontej th\n ske/yin poiw¯meqa eiãte w©feli¿an

eiãte bla/bhn pare/xei, 237d1-3).

No seu primeiro argumento, à altura de 238d8, Sócrates começa a fazer uso do

princípio metodológico (II): “Nós temos dito e definido o que é aquilo sobre o que temos

que argumentar e, com essa definição em mente, digamos o restante, que benefício ou

prejuízo pode esperar-se de parte de quem ama e de quem não ama àquele que lhes concede

favores” (oÁ me\n dh\ tugxa/nei oÄn periì ou bouleute/on, eiãrhtai¿ te kaiì wÐristai,

ble/pontej de\ dh\ pro\j au)to\ta\ loipa\ le/gwmen ti¿j w©feli¿a hÄ bla/bh a)po/ te

e)rw½ntoj kaiì mh\ t%½ xarizome/n% e)c ei¹ko/toj sumbh/setai, 238d8-e2). Esse

parágrafo, assim, marca o limite entre os dois princípios. A parte I do primeiro argumento

põe em prática o princípio (I), porque estabelece a definição de amor; enquanto que, a parte

II do primeiro argumento e todo o segundo argumento são conduzidos pelo princípio (II),

porque examinam qual dos dois opostos da mania constitui o que é o amor. É assim que, a

meu ver, os princípios (I) e (II) são uma versão assaz simplificada da descrição posterior

dos procedimentos de reunião e divisão. Considero que a formulação do princípio (I) é uma

ligeira antecipação da descrição do procedimento de reunião e a formulação do princípio

(II) da descrição do procedimento de divisão.

Em suma, a parte I do primeiro argumento estabelece a mi¿a i¹de/a do amor. Sua

parte II e o segundo argumento examinam os opostos que se seguem de sua mi¿a i¹de/a, i.e.

44
é o amor algo benéfico ou algo prejudicial, com o propósito de resolver a disjunção T1. Essa

argumentação pode ser representada na seguinte implicação: Se A é o que é o amor, então

T1 é ou benéfico ou prejudicial. T1 tem dois opostos contraditórios, ou ser amigo de um

amante é benéfico ou ser amigo de um amante é prejudicial; e, conclui-se, mediante um

exercício argumentativo sistemático, o que é o amor e, assim, se prova a falsidade de um

destes dois opostos e necessariamente a verdade do outro.

Convém anotar que a argumentação sobre o amor não aparece ex nihilo, mas ela faz

parte de um contexto argumentativo. Sócrates parte do seguinte pressuposto

(u(poti¿qesqai, 236b1): Quem ama está mais enfermo que quem não ama (to\n e)rw½nta

tou= mh\ e)rw½ntoj ma=llon noseiÍn, 236a8-b1), o que corresponde a uma premissa do

argumento sobre os prejuízos de amar apresentado por Lísias. Sócrates quer mostrar qual

foi o erro de Lísias e para fazê-lo deve apresentar um argumento diferente ainda que

condicionado por uma mesma premissa; pois, somente assim ambos os argumentos

poderiam ser comparados, com o fim de decidir qual deles é o melhor (Cfr. 236b1-4). É assim

que os argumentos de Sócrates estão inseridos num contexto discursivo que se remonta às

considerações que Lísias expõe frente a um tema assaz controverso: a natureza do amor e

seus efeitos prejudiciais. É preciso, para discutir esse tema, ao menos conceder uma das

premissas de Lísias, pois mudá-las completamente implicaria pôr fim à discussão. Portanto,

toda discussão consiste em contrapor argumentos que compartilhem uma mesma base, seja

uma ou mais premissas, seja uma definição sobre o assunto em discussão. Por exemplo,

numa discussão sobre as vantagens da administração da justiça numa comunidade política,

uma pessoa parte definindo a justiça como dar a cada um o que a ele corresponde, e outra

pessoa inicia estabelecendo que a justiça é a obediência ao mais forte. Como poderiam essas

pessoas discutir a tese anterior se cada uma delas está presa em sua própria definição de

45
justiça sem conceder algum ponto a seu interlocutor? A única maneira de dar curso à

discussão é que uma das partes aceite partir da definição da outra.

O critério para discutir adequadamente temas controversos não está na novidade,

mas na disposição dos argumentos (Cfr. 236a3-6). Platão explica que a disposição dos

argumentos consiste em que umas asserções se seguem de outras e, do mesmo modo, uns

argumentos se seguem de outros, e denominou isto de necessidade logográfica. Há uma

necessidade para que o disposto em segundo lugar esteja em segundo lugar, pois o segundo

se deriva do primeiro, é dependente de sua relação com o primeiro, e não pode ser colocado

em outro lugar. Essa explicação leva-nos a perguntar: o que faz com que o primeiro seja

primeiro? O primeiro é o que estabelecemos como ponto de partida da argumentação, é o

que pressupomos e sobre o que não podemos controverter para, assim, poder controverter

sobre tudo o que dele se segue. Platão faz explícito, em 263c9, que a definição de amor é

controversa. Então, se quer defender-se ou refutar alguma tese sobre esse conceito, é preciso

estabelecer um ponto de partida de comum acordo com o seu opositor. Sócrates diz, em

263d2-3, antes de tudo, que é necessário estabelecer uma definição de amor. O erro

argumentativo de Lísias consiste, precisamente, em não ter definido o amor ao começo de

sua argumentação (Cfr. 262e-264e). Podemos notar que a definição do primeiro argumento de

Sócrates acomoda-se ao pressuposto por Lísias; pois, se não fosse assim, não haveria

discussão e, por consequência, Sócrates não poderia refutar a tese de Lísias. Por

conseguinte, Sócrates dispõe os seus argumentos em partes relacionadas enquanto uma

parte se segue da outra. De outro modo, Lísias não da ao amor o tratamento próprio de um

tema controverso e transgride a disposição argumentativa própria das AC.

Pois bem, é minha HT consistente com a evidência textual do Fedro? Responder a

essa pergunta será o propósito dos capítulos II e III. Para tais efeitos, farei uma análise

46
detalhada do parágrafo 265d-266a no qual Platão propõe-se descrever o método; também,

mostrarei de que modo os procedimentos metódicos de reunião e divisão põem-se em

prática nos dois argumentos sobre o amor expostos por Sócrates na primeira parte do Fedro.

A aplicação do método ao caso particular do amor ajuda a entender como opera o método,

especialmente como os argumentos refutatório e probatório procedem, para finalmente

estabelecer a definição correta de x.

Permitam-me colocar um exemplo sucinto de um argumento refutatório

apresentado por Platão no Teeteto. Este exemplo mostra como se aplica o método para

argumentar e encontrar a verdade de uma tese. No Teeteto Platão parte da seguinte AC: o

conhecimento e a percepção sensorial são idênticos. Platão pressupõe essa asserção para

examinar o que dela se segue. Se o conhecimento e a percepção sensorial são idênticos,

então a visão é idêntica ao conhecimento enquanto a visão é um tipo de percepção sensorial.

Isto significa que uma pessoa que vê algo também conhece o que vê, e uma pessoa que não

vê algo tampouco conhece o que não vê. Agora suponhamos que uma pessoa que vê algo e,

então, seguindo a AC, também conhece esse algo, logo a seguir fecha seus olhos. Desde o

momento em que fechou seus olhos ela não vê esse algo e, então, seguindo a AC, tampouco

conhece esse algo. No entanto é claro, apesar de que agora seus olhos estejam fechados, que

a pessoa conhece o que viu quando seus olhos estavam abertos. Portanto, a AC pressuposta

leva-nos a dizer que a pessoa não conhece uma coisa e que a pessoa conhece essa mesma

coisa. É assim que a asserção segundo a qual o conhecimento e a percepção são idênticos

leva à contradição. Se essa asserção é contraditória, então necessariamente a oposta

contraditória será verdadeira: o conhecimento não é idêntico à percepção sensorial (Cfr.

Teeteto, 151e-187a).

47
Segundo o método de divisão, não é suficiente estabelecer a definição oposta à que

incorre em contradição, é necessário provar sua consistência. Em vista disso, o método de

divisão não é erístico porque não tenta somente defender um dos dois lados opostos; o

método de divisão é dialético na medida em que ele argumenta ambos os lados com o firme

objetivo de encontrar a verdade. Portanto, no caso do amor exposto no Fedro, não basta a

Sócrates provar a contradição dessa definição: “o amor é uma mania prejudicial” e passar

imediatamente a estabelecer sua definição oposta contraditória: “o amor é uma mania

benéfica”. Sócrates precisa provar que o amor é benéfico e, inclusive, que o amor é a mais

benéfica de todas as manias, mediante um argumento extenso e consistente.

48
Capítulo II

A sunagwgh/ do Método exposto no Fedro

Neste segundo capítulo me proponho analisar e entender o que é e como opera

a sunagwgh/ do método proposto por Platão no Fedro. Para isto, em primeiro lugar, farei

uma análise exegética dos termos e expressões centrais do parágrafo 265d, no qual Platão

descreve a sunagwgh/ do método. Em segundo lugar, apresentarei de modo sucinto as

principais interpretações sobre a sunagwgh/ e defenderei a interpretação segundo a qual a

sunagwgh/ é um dos dois procedimentos complementares do método. Em terceiro lugar,

examinarei a conexão que sugerem o parágrafo da sunagwgh/ e o parágrafo 249b-c que

menciona a a)na/mnhsij, com o fim de defender que a a)na/mnhsij é a capacidade humana

para reconhecer, ergo, a condição sine qua non do procedimento de reunião e de todo o

método. Em quarto lugar, responderei ao que é aquilo que reconhecemos e para isso me

servirei do parágrafo 270c-d. Em quinto e último lugar, mostrarei de que modo aplica-se o

procedimento de reunião na parte I do primeiro argumento sobre o amor exposto por

Sócrates em 237b-241d, para finalmente entender o que é e como opera esse procedimento

metodológico.

49
Platão descreve, a partir de 265c9, em que consiste o método de divisão. Platão faz

menção explícita de dois princípios (du/o eiådoj), que seria grato organizar numa arte

sistemática (cf. 265c9-10). O método, assim, está composto de dois princípios, as divisões e

as reuniões (tw½n diaire/sewn kaiì sunagwgw½n, 266b4). Primeiro insere-se, no parágrafo

265d3-7, o princípio de reunião (sunagwgh/):

Ei¹j mi¿an te i¹de/an22 sunorw½nta aÃgein ta\ pollaxv=23 diesparme/na,

iàna eÀkaston o(rizo/menoj dh=lon poiv24= periì ou aÄn a)eiì dida/skein

e)qe/lv25. wÐsper ta\ nundh\ periì ãErwtoj - oÁ eÃstin o(risqe/n26eiãt' euÅ

22
Não há uma tradução que encerre o sentido completo da expressão mi¿a i¹de/a; ela não é uma forma, porque
o método não procede com, nem sequer chega a, entidades ontológicas; não é uma classe porque, para teoria
de conjuntos e suas aplicações matemáticas, uma classe é uma coleção de objetos matemáticos que podem
ser definidos sem ambiguidade por uma propriedade que todos os seus membros compartilham; não é um
gênero, porque uma mi¿a i¹de/a não é absoluta nem sempre se reduz a essa categoria aristotélica.
23
O termo pollaxv= pode ser traduzido por ‘muitas vezes’, ‘muitas maneiras’, ‘muitos modos’ ou ‘muitos
lugares’, para denotar uma pluralidade temporal, modal ou espacial respectivamente. Opto por uma tradução
modal do termo. Os especialistas acostumam dizer que ‘as coisas’ (ta\) referem-se a particulares sensíveis, a
formas ou a ambas, “The question is whether at this point Plato is thinking of particulars or of ideias” De Vries
(1969: 216). Portanto, não se duvida que a expressão completa “ta\ pollaxv= diesparme/na” é ambígua.
Tanto os particulares quanto as formas têm aspectos ou características variadas, mas somente as formas são
intemporais e estão por fora do mundo fenomênico. Por conseguinte, a tradução que abrange ambas as
entidades e as diversas características que pode apresentar cada uma delas, inclusive suas características
espaço-temporais, é a tradução ‘muitas maneiras’ ou ‘muitos modos’. Não obstante, considero que a expressão
“ta\ pollaxv= diesparme/na” não faz referência a entidades ontológicas, ergo, não faz referência direta a
particulares sensíveis ou formas. Essa expressão refere entidades epistemológicas que podem ser opiniões,
teses e definições, seja sobre os particulares sensíveis, seja sobre as formas ou, seja sobre ambos.
24
De Vries anota que, “The subject of poiv is implied in sunorw½nta aÃgein” (1969: 216).
25
Sigo o comentário de De Vries para traduzir a seguinte expressão: periì ou aÄn a)eiì dida/skein e)qe/lv,
d 4-5. “For periì ouÂ, cp. 264e8 periì lo/gwn skopeiÍn. There is no periphrasis, as Bluck (on Meno 90b)
supposes: dida/skein is absolute, a)eiì is distributive (cp. 238b 3-5)” (1969: 216).
26
“[…] o(risqe/n being assimilated to the gender of oÁ because the definition consists in the predicate. In fact,
the only definition of love, given so far, was its subsumption under mani¿a” De Vries (1969: 216).

50
eiãte kakw½j-27 e)le/xqh28, to\ gou=n safe\j kaiì to\ au)to\ au(t%½

o(mologou/menon dia\ tau=ta eÃsxen ei¹peiÍn o( lo/goj.

Vendo-as em conjunto, levar coisas de muitas maneiras dispersas a mi¿a i¹de/a

para que, ao definir, torne claro cada item sobre o qual pretende instruir em

cada ocasião. Foi o que ainda agora se fez na argumentação sobre o amor:

tenha ele sido definido de modo correto ou não, ao menos a argumentação foi

capaz de proceder de maneira clara e consistente consigo mesma.

A sunagwgh/ do método, grosso modo, é descrita como uma dupla ação, unir

“coisas de muitas maneiras dispersas” e estabelecer algo diferente, mas comum a essas

coisas. Farei, a seguir, uma exegese filológica de alguns dos termos usados nesse parágrafo,

pois a relevância filosófica desses termos determina importantes diferenças de

interpretação.

A expressão “coisas de muitas maneiras dispersas” (ta\ pollaxv= diesparme/na)

é ambígua e Platão não explica a que faz referência com tal expressão. De Vries afirma:

“The question is whether at this point Plato is thinking of particulars or of ideias” De Vries

(1969: 216). R. S. Bluck, seguindo uma anotação de Hackforth (1945)29, assinala o seguinte:

27
27
Coloco o hífen após kakw½j em vez de manter-lo após o(risqe/n eiãt' para facilitar a
tradução “tehna o amor sido definido de modo correto ou não”.
28
Na frase ta\ nundh\ periì ãErwtoj oÁ eÃstin o(risqe/n eiãt' euÅ eiãte kakw½j e)le/xqh (d5-6), “Schanz’s
to\ for ta\, accepted by Vollgraff and defended by Hacforth, makes the sentence too smooth” De Vries (1969:
216). A explicação oferecida por Hackforth para fazer o substituição desses artigos é convincente: “I accept
Schanz’s to\ for ta\ in d5 and would remove Burnet’s dashes, which seem inhelpful: to\ periì eÃrwtoj oÁ
eÃstin o(risqe/n is perfectly normal Greek for ‘the definition which stated what love is’. By ‘definition’ here
we should understand no more than the determination of the genus of eÃrwj, viz. mani¿a” (1952: 132, n.5).
Assim, estimo sensata a proposta de tradução feita por Verdenius: “the things said about love, what it is if
defined” (1955: 284). Mas, como ‘as coisas ditas sobre o amor’, ou melhor, ‘o dito sobre o amor’ num discurso
são argumentos, então prefiro ser mais específica e traduzir por ‘o argumento sobre o amor’ ou ‘a
argumentação sobre o amor’.
29
Veja o final do libro Plato’s Examination of Pleasure de R. Hackforth.

51
“Phaedrus 265d may refer to a collection of Forms, or to a preliminary collection of sensível

particulars, it may even be intentionally ambiguous, being intended to cover both” (1955:

147, n.4). Portanto, muitos especialistas debatem se o multiplamente disperso refere-se a

particulares sensíveis, propriedades desses particulares ou formas30. Alguns excluem os

sensíveis do método31, outros os incluem32. A única passagem que tem semelhanças com

esse parágrafo usa a expressão pollw½n ai¹sqh/sewn (249b7-c1), que levou a alguns

especialistas a afirmar que o método ao menos está relacionado aos sensíveis.

Sendo a expressão “coisas de muitas maneiras dispersas” ambígua e confusa,

considero que o jargão usado para interpretá-la não é de muita ajuda para seu

esclarecimento. O método responde à necessidade de conhecer o que prima facie apresenta-

se como controverso, pois não faz sentido que o método conheça o que se apresenta claro

ao pensamento. De modo que o método inicia com o que é controverso e procede

sistematicamente a defini-lo, é assim como dissolve a controvérsia. O que é controverso não

são as coisas, sejam entendidas como particulares sensíveis ou como formas, porque as

coisas constituem entidades ontológicas e a controvérsia não se da num plano ontológico,

30
Veja Plato’s Examination of Pleasure (1945: 109) e Plato’s Phaedo de R. S. Bluck (1955: 147, n.4).
31
Hérmias (234, 20 ss.) assinala que Platão parece optar pelos particulares em 246b6 ss., mas deixa a questão
sem resolver em 265d3-4. Segundo F. M. Cornford, o método é de formas, através de formas e para formas:
“The new method of Collection and Division is thus wholly confined to the world of Forms; and Collection
must not be confused with the Socratic muster of individual instances (e)pagwgh/). Collection is a survey of
specific Forms having some prima facie claim to be members of the same genus” (1960: 186). Raven afirma
que o método não tem nenhum contato com particulares, ele trabalha exclusivamente com Ideias (cf. 1965:
190). Para Santa Cruz, a dialética do Fedro opera com conceitos que excluem toda intervenção da sensação
como ponto de partida (cf. 1990: 151).
32
R. Hackforth assinala que a sunagwgh/ opera em dois níveis: 1. De particulares a uma classe ou forma:
reunir múltiplas experiências numa propriedade de particulares. 2. De classes ou formas a uma forma: reunir
diferentes propriedades de particulares numa única forma (cf. 1952: 132, n.4). R. Robinson (1953) descreve
um processo ascendente que vai dos particulares ao mais universal, e os particulares podem ser as sensações.
Robinson subscreve-se à interpretação de Rodier, que diz que o processo de reunião é empírico, indo das
sensações a sua unidade pelo raciocínio, entretanto a divisão procede dispensa dos sentidos. Em termos de
Robinson, a generalização pega o mais universal dos particulares e esses particulares podem ser sensações (cf.
1953: 163). De outra parte, Christopher Rowe (1986) entende sunagwgh/ por juntar no raciocínio as coisas
que estão dispersas na experiência sensorial. Para David White (1993), o primeiro procedimento parte de uma
pluralidade de coisas e essa pluralidade pode referir-se às sensações ou às formas.

52
mas sim num plano epistemológico. O que é controverso são asserções contrapostas sobre

as coisas, sejam asserções sobre particulares sensíveis ou sobre nomes que abstraem

propriedades de particulares. Excluo qualquer asserção sobre formas, porque as asserções

das que parte o método são controversas e é contraditório que asserções controversas versem

sobre formas. As formas são o que são necessariamente, então as asserções sobre formas

têm o carácter de asserções necessariamente verdadeiras. Considero que o método inicia

com “certas asserções” (ta\) que têm o carácter de AC, que Platão também denomina

opiniões (ta\ do/cant', 260a2), que podem ser verdadeiras ou falsas; pois, aquele tem uma

opinião sem conhecimento não pode saber se sua opinião é necessariamente verdadeira.

Por conseguinte, proponho que a expressão ta\ pollaxv= diesparme/na deve ser

traduzida por “certas asserções de muitas maneiras dispersas”. “Certas asserções” (ta\)

pertencem às AC mencionadas por Platão em 263a-b, as quais têm como característica ser

asserções opostas sobre um mesmo x. O método acostuma iniciar com asserções opostas ao

que a maioria ou a tradição ou alguém que ostenta saber diz sobre x, para provar se é correta

a definição de x que parte dessas asserções. As AC estão “de muitas maneiras dispersas”

(pollaxv= diesparme/na), porque se apresentam como opiniões, teses, definições e

outras asserções a respeito de x.

No parágrafo 265d se diz que une-se o que está de muitas maneiras disperso com o

fim de estabelecer uma mi¿a i¹de/a. É difícil entender o que Platão quer dizer com essa outra

expressão. O termo i¹de/a nesse parágrafo tem sido traduzido por ‘forma’, ‘gênero’, ‘classe’,

‘nome’, todas essas traduções procuram ser fieis ao sentido técnico do termo grego. Prefiro

não traduzi-lo por ‘forma’ ou qualquer outro tipo de entidade ontológica porque o método

não está diretamente relacionado a nenhuma entidade ontológica, mas a seu conhecimento

53
expresso em definições. Até agora não consigo dar com uma tradução satisfatória para a

expressão mi¿a i¹de/a, me deterei a entender seu sentido antes de me apressar a propor uma

tradução.

Uma mi¿a i¹de/a, antes de tudo, não constitui uma locução absoluta, mas uma

locução relativa, porque sempre alude à mi¿a i¹de/a de x. A mi¿a i¹de/a de x é uma

característica comum a “certas asserções de muitas maneiras dispersas” (ta\ pollaxv=

diesparme/na). Não é uma característica comum qualquer, mas uma característica comum

que define x. O que isso quer dizer? A mi¿a i¹de/a de x é sua característica comum porque

não constitui a característica distintiva do que é x, mas a característica que x compartilha

com outros conceitos. É, assim, que múltiplas asserções sobre o que parece ser x não dizem

o que é x e, inclusive, dizem o oposto do que é x, embora sejam asserções sobre conceitos

que compartilham com x uma característica definidora. A mi¿a i¹de/a de x é sua característica

definidora porque, pese a ser comum, define parcialmente a x; tal como, para Aristóteles, o

gênero define a x. Hackforth anota o seguinte: “By ‘definition’ here we should understand

no more than the determination of the genus of eÃrwj, viz. mani¿a (called alternatively in

the next paragraph para/noia and to\ aÃfron th=j dianoi¿aj), which is alleged to be

common to both Socrates’s speeches” (1952: 132, n. 5).

A mi¿a i¹de/a de x, ainda que não seja a definição estrita de x, é parte essencial de

sua definição, tal como o evidência as expressões o(rizo/menoj (265d4) e o(risqe/n (265d5).

Pois, a mi¿a i¹de/a de x admite dois lados opostos que distinguem o que é x do que não é x,

e por isso a mi¿a i¹de/a de x constitui o ponto de partida que permite proceder a definir

corretamente a x. Por exemplo, a mi¿a i¹de/a do amor é a mania. O amor, a gula e a poesia

54
são conceitos comuns na medida em que os três são manias. A gula e a poesia, pese a ser

manias, distinguem-se porque a primeira é mania prejudicial e a segunda mania benéfica.

A respeito do amor se diz que ele mania prejudicial e, também, que ele mania benéfica. De

modo que a característica distintiva da definição de amor está relacionada a esse par de

opostos: prejudicial e benéfico, ainda que controvertamos sobre qual desses opostos é o

amor. No entanto, não há dúvida de que a mania é a mi¿a i¹de/a do amor e não outro gênero

de amor, e.g. a psique. A psique está composta por dois princípios anímicos, que podemos

referir como mania e razão . Se o amor é parte da mania e a mania é parte da psique, por

que não considerar a psique em vez da mania como a mi¿a i¹de/a do amor? A resposta é

muito simples. Controvertemos sobre se o amor é benéfico ou prejudicial, mas não

controvertemos sobre se o amor é mania ou razão . Daqui se segue que o ponto de partida

para resolver a controversa sobre o amor deve ser a mania. Convém anotar que o controverso

da definição de x está na característica distintiva de sua definição. No caso do amor, sua

característica distintiva não poderia ser a mania; pois, se assim fosse, se diria que “o amor

é gula”. Portanto, o ponto de partida da resolução da controversa sobre x é sua mi¿a i¹de/a.

Esse ponto de partida é concertado pelos dialéticos ao início de sua argumentação. Por isto,

seguindo o dito por Platão no parágrafo da sunagwgh/, o fim da sunagwgh/ é estabelecer

a mi¿a i¹de/a de x; pois, seja x definido de modo correto ou seja x definido de modo incorreto,

ao menos sua mi¿a i¹de/a concede um ponto de partida à argumentação dos dialéticos que a

torna clara (dh=lon poiv, 265d4), que permite a ela proceder de maneira clara e consistente

com seu ponto de partida (to\ gou=n safe\j kaiì to\ au)to\ au(t%½ o(mologou/menon dia\

tau=ta eÃsxen ei¹peiÍn o( lo/goj, 265d6-7).

55
O método inicia com AC que encontram apoio em um dos lados opostos da mi¿a

i¹de/a de x. O método pode iniciar com AC que encontram apoio em qualquer de seus lados,

isso depende do contexto argumentativo, embora acostumem iniciar com AC que encontram

apoio no lado que se opõe ao que diz a maioria, ou a tradição ou uma autoridade no tema,

ou seja, no lado que nos parece mais controverso. Portanto, o fim da sunagwgh/ é

estabelecer a mi¿a i¹de/a de x, mas como esta se estabelece ao reunir certas asserções,

realmente estabelece-se o lado da mi¿a i¹de/a de x que seja compatível com essas asserções.

Esse lado constitui uma definição de x, que pode ser sua definição correta ou sua definição

incorreta. Contudo, o fim da sunagwgh/ não é estabelecer um ou outro lado da mi¿a i¹de/a

de x, mas simplesmente estabelecer sua mi¿a i¹de/a, já que esta é o ponto de partida que

concede clareza e consistência à argumentação. A respeito do lado estabelecido devo dizer

que constitui uma definição provisional de x, pois ainda não se procedeu a argumentar se é

ou não a definição correta de x.

Por conseguinte, a sunagwgh/ do método é descrita em dois passos (te

sunorw½nta aÃgein, 265d3): 1. Reunir AC sobre x, geralmente as que se opõem ao que diz

o sentido comum ou a tradição ou alguém que ostenta saber sobre x, que estão dispersas em

modo de opiniões, teses, definições e outras asserções referentes a x, e.g. o conceito de

amor. 2. Estabelecer, em seguida, uma das partes opostas da mi¿a i¹de/a de x que leva a uma

definição provisional de x que é compatível com as AC reunidas, e.g. o amor é certa mania

(mani¿an ga/r tina e)fh/samen eiånai to\n eÃrwta, 265a6-7).

56
Isto posto, a sunagwgh/ tem sido interpretada ou como intuição 33, ou como

procedimento sistemático acompanhado de intuição34, ou como um dos dois procedimentos

metodológicos35; porque, a sunagwgh/ ou bem opera numa sequência temporal, passo a

passo, para estabelecer a mi¿a i¹de/a de x, ou bem apreende imediatamente e sem necessidade

do raciocínio, ou bem opera com ambas. A intuição não é necessariamente anterior ou

posterior ao método, pode acompanhá-lo em seu percurso uma, duas ou mais vezes. No

entanto, método não é intuição nem vice-versa, porque método e intuição são excludentes

por definição.

F.M. Cornford argumenta que a Reunião (sunagwgh/) não constitui nenhum

procedimento metodológico. A Reunião é o ato de adivinhar por intuição a Forma genérica

(mi¿a i¹de/a), porque para reunir não se podem seguir regras. A Forma genérica é o carácter

comum a todas as espécies pelas que ela se estende; e, entre essas espécies, está a Forma

que se quer definir. O fim da Reunião é adivinhar por intuição a Forma genérica que, logo

a seguir, se procede a dividir. Portanto, Cornford interpreta a sunagwgh/ como um ato

intuitivo, preliminar ao método, que divide a Forma genérica com o fim de definir uma de

suas espécies. Em palavras de Cornford:

The Division should be preceded by a Collection, to fix upon the genus we are to

divide. This is done by ‘taking a comprehensive view and gathering a number of widely

scattered terms into a unity’. Here no methodical procedure is possible. The generic Form

must be divined by an act of intuition, for which no rules can be given. The survey will

include the Form we wish ultimately to define, with others that may be ‘widely scattered’

and have little superficial resemblance to it or to one another. […] These are the scattered

33
Veja F. M. Cornford (1960: 186-7, 267); W.K.C. Guthrie (1975: IV, 411).
34
Veja Richard Robinson (1953: 62-69).
35
Veja W.D. Ross (1951: 80-82); Hackforth (1952:132, n.4); David White (1993).

57
species to be collected, including the specific Form (or Forms) that we wish ultimately to

define. The dialectician surveys the collection and ‘clearly discerns’ by intuition the common

(generic) character ‘extended throughout’ them all. So he divines the generic Form that he

will take for division (1960: 186-7, 267).

Seguindo as palavras de Cornford, a sunagwgh/ e a intuição (sunora/n)

identificam-se; pois, a sunagwgh/ não constitui um procedimento que se serve de regras

para examinar todas as coisas que têm um carácter comum, mas constitui o ato de vê-las

diretamente. Guthrie adota uma postura similar, a sunagwgh/ não pode ser um dos

procedimentos do método, mas sim pode ser seu prelúdio (cf. 1975: 411).

Richard Robinson representa a aqueles que defendem que a sunagwgh/ é método

acompanhado de intuição. Robinson assinala que nós acostumamos estabelecer a oposição

entre a intuição e um método ordenado e sistemático. O método propõe uma sequência

temporal, passo a passo. Platão assinala que o método caracteriza-se por ser um longo rodeio

(makra\n periballome/nouj, 272d3; makra\ h( peri¿odoj, 274a2), no há caminhos curtos

nem atalhos, mas caminhos extensos e escabrosos para conhecer. O processo de sínteses ou

generalização (sunagwgh/) é uma ensambladura gradual de espécies diversas sob um

gênero apropriado (mi¿a i¹de/a), gênero que a sua vez é uma espécie mais entre as seguintes

espécies agrupadas sob outro gênero e assim sucessivamente, sempre ascendendo até chegar

ao gênero maior (cf. 162-163). Ao considerar esse processo ascendente, assim como seu

processo inverso, surge a possibilidade da intuição. Segundo Robinson, o método e a

intuição têm uma relação de complementariedade para Platão . No entanto, a intuição é

própria de quem domina o método. Portanto, a oposição é entre um método que se

acompanha da intuição e os esforços aleatórios e infrutuosos (cf. 1953: 62-69).

58
Muitos especialistas entendem a sunagwgh/ exclusivamente como procedimento

metodológico. Um deles é Hackforth, que afirma que a Reunião (sunagwgh/) constitui

junto com a Divisão o método dialético. Os dois argumentos de Sócrates são um exemplo

do par procedimental, pois mani¿an tina e)fh/samen eiånai implica Reunião e eiãdh du/o

implica Divisão. A Reunião consiste tanto em juntar particulares sob uma mesma Forma ou

classe quanto em subsumir uma Forma menor numa maior. É, assim, para Hackforth, que

as “coisas de muitas maneiras dispersas” são particulares ou Formas/classes, e a mi¿a i¹de/a

é uma Forma/classe menor ou uma Forma/classe maior respectivamente. Pelo contrário, a

Divisão não opera com particulares e seu fim é atingir a uma espécie ínfima; porque, tal

como se menciona em Filebo 16e, quando se chega a ela se deve parar de dividir (cf. 1952:

132, n.3-4).

Do mesmo modo, David White afirma que a Reunião (sunagwgh/) é o processo de

subsunção que estabelece uma relação parte/todo entre o elemento dos particulares a

unificar (e.g. o amor) e a unidade da Forma relevante (e.g. mania) (mi¿a i¹de/a). O fim da

Reunião é estabelecer uma definição parcial, porque inclusive uma má definição traz clareza

e consistência ao discurso. Um discurso que define o amor como um tipo de mania

estabelece uma consideração sobre o amor consistente e clara, embora não constitua sua boa

definição (cf. 1993: 217-18).

De outra parte, W.D. Ross afirma que o par procedimental está envolvido no

conceito o(ri¿zesqai, captando a Ideia mais amplia o gênero (mi¿a i¹de/a) e, posteriormente,

dividindo-a em espécies (eiãdh). No procedimento de reunião se reconhece a afinidade entre

certas Ideias (ta\ pollaxv= diesparme/na), entanto que no procedimento de divisão se

estabelecem as linhas de demarcação dentro do gênero (cf. 1951: 80-82).

59
Interpreto a sunagwgh/ como um dos dois procedimentos complementares do

método, porque comparte as características próprias de qualquer método enquanto método:

ser sempre o método de uma arte, ser o meio mais adequado para atingir o fim, poder ser

aprendido e ensinado, e praticá-lo em inúmeras ocasiões cf. Robinson (1953: 61-92). Sob minha

interpretação, o procedimento de reunião (sunagwgh/) é o procedimento paulatino de

reunir múltiplas asserções opostas sobre o que geralmente nos parece que é x numa

“característica comum a essas asserções que define a x de modo provisório” (certa mi¿a

i¹de/a de x). Se, no entanto, se aceita que a sunagwgh/ é um procedimento metodológico

sem intuição, é problemático justificar o limite de tal procedimento; pois, como saber onde

parar? Por exemplo, como saber que o limite do amor está relacionado à mania? Não

considero que a solução a esta problemática esteja em interpretar a sunagwgh/ como um

procedimento metodológico que se serve da intuição para estabelecer seu próprio limite; e,

então, aderir-me ao argumento de Robinson (1953), segundo o qual se conclui que não há

oposição entre a intuição e um método ordenado e sistemático, mas entre um método que

se acompanha de intuição e os esforços aleatórios e infrutuosos. Considero que a melhor

solução é interpretar a sunagwgh/ como um procedimento metodológico praticado pelos

dialéticos, aqueles que estabelecem o limite da reunião por convergência e não por intuição.

Esse limite é o ponto de partida que dará clareza e consistência à argumentação do outro

procedimento. Concluo que o limite do procedimento de reunião é a mi¿a i¹de/a de x, porque

ela constitui o ponto de partida da argumentação metodológica que leva a estabelecer a

definição correta de x. E esse ponto de partida é fruto de um acordo entre as teses

controversas e opostas dos interlocutores que estão dispostos a conhecer.

60
Essas considerações são suficientes para, novamente, apresentar minha tradução do

parágrafo 265d, mas agora a apresentarei com as adaptações concernentes a minha

interpretação:

Vendo-as em conjunto, levar certas asserções controversas de muitas

maneiras dispersas a mi¿a i¹de/a para que, ao definir, torne claro cada item

sobre o qual pretende instruir em cada ocasião. Foi o que ainda agora se

fez na argumentação sobre o amor: tenha ele sido definido de modo correto

ou não, ao menos a argumentação foi capaz de proceder de maneira clara

e consistente consigo mesma.

Em vista disso, não posso eludir as similitudes que tem a primeira frase desse

parágrafo com esta outra frase: “Pois é necessário que o ser humano compreenda o que é

dito segundo formas, indo de muitas sensações a uma unidade, reunindo pelo raciocínio”

(deiÍ ga\r aÃnqrwpon sunie/nai kat' eiådoj lego/menon, e)k pollw½n i¹o\n ai¹sqh/sewn

ei¹j eÁn logism%½ sunairou/menon, 249b6-8). Ambas as frases aludem ao ato de reunir

que, tal como o indica a expressão “por raciocínio” (logism%½), se dá no âmbito intelectual.

A expressão e)k pollw½n ai¹sqh/sewn deixa claro que a reunião tem seu ponto de partida

nas sensações, entanto que a expressão ta\ pollaxv= diesparme/na deixa aberta a

questão sobre se as múltiplas asserções referem-se a sensações ou não. No entanto, o que

quer dizer Platão com o verbo sunairou/menon na passagem 249b? É o ato de reunir uma

intuição, um procedimento metodológico, ou o que pode ser? É preciso, para cortar esse nó

górdio, entender o sentido completo do parágrafo em que está inserida a frase 249b6-8:

ou) ga\r hÀ ge mh/pote i¹dou=sa th\n a)lh/qeian ei¹j to/de hÀcei to\ sxh=ma.

61
deiÍ ga\r aÃnqrwpon sunie/nai kat' eiådoj lego/menon36, e)k pollw½n

i¹o\n ai¹sqh/sewn ei¹j eÁn logism%½ sunairou/menon: tou=to d' e)stiìn

a)na/mnhsij e)kei¿nwn aÀ pot' eiåden h(mw½n h( yuxh\ sumporeuqeiÍsa

qe%½ kaiì u(peridou=sa nu=n eiånai¿ famen, kaiì a)naku/yasa ei¹j to\ oÄn

oÃntwj.

A <alma> que jamais conheceu a verdade não poderá atingir esta figura [viz.

a figura humana]. Pois é necessário que o ser humano compreenda o que se

diz segundo formas, indo de muitas sensações a uma unidade, reunindo pelo

raciocínio. E isso é a capacidade de reconhecimento37 daquilo que outrora

nossa alma conheceu quando andava junto com a divindade, quando olhava

com desprezo para as coisas que agora dizemos que são e erguia sua cabeça

para o que realmente é (249b5-c4).

Nesse parágrafo se afirma que nossa alma outrora conheceu as formas, quando

estava junto com a divindade e teve um conhecimento direto do que realmente é; entanto

que agora nossa alma conhece o que é dito segundo formas quando procede a reunir de

múltiplos dizeres ao que se diz segundo formas, e isso mediante o raciocínio. Mas, o que é

uma forma (eiådoj) para Platão? O que significa que conhecemos, mais especificamente,

que re-conhecemos as formas que conhecemos outrora? Por que podemos re-conhecer?

36
A formulação kat' eiådoj lego/menon tem problemas textuais que geram traduções diferentes e, portanto,
interpretações diferentes. Veja os comentários de De Vries (1969:145-6) e LuisGil, “Notas ao Fedro”, em
Emérita XXIV (1956:320-5); as traduções de Hackforth (1952:86,n.1), ‘the language of Forms’; C.J. Rowe
(1988: 67 e 182), ‘what the said universally’; Nehamas & Woodruff (1995:36), ‘speech in terms of geral
forms’; Santa Cruz & Crespo (2007:127), ‘o que se diz segundo uma forma’. Baseio minha tradução no
comentário de Rowe (1988:182), ele assinala que kat' eiådoj lego/menon significa ‘o que se diz de acordo
com/em relação a eiådoj’, onde eiådoj tem o sentido de ‘classe’ mais que de ‘forma’, ou talvez de ambas.
37 Itálicas minhas.

62
As formas consistem em ser o que realmente são (ou)si¿a oÃntwj ouÅsa, 247c7). As

formas caracterizam-se por ser incoloras, informes e intangíveis (h( a)xrw¯mato/j te kaiì

a)sxhma/tistoj kaiì a)nafh\j, 247c6-7 ); ser visíveis somente ao intelecto, piloto da

psique (yuxh=j kubernh/tv mo/n% qeath\ n%½, 247c7-8)38; ser aquilo sobre o que versa o

tipo de conhecimento verdadeiro (periì hÁn to\ th=j a)lhqou=j e)pisth/mhj ge/noj, 247c8);

e, estar na região supraceleste (tou=ton [u(peroura/nion to/pon] eÃxei to\n to/pon, 247c8-

d1 ). As formas diferem dos sensíveis, porque os sensíveis mudam e, assim, podem deixar

de ser o que são; por consequência, o tipo de conhecimento que versa sobre sensíveis é um

tipo de conhecimento diferente ao das formas (cf. 247d7-e1)39. O conhecimento é, stricto

sensu, conhecimento do ser, pois não se pode conhecer o que não é. Portanto, as formas são

as únicas coisas que são realmente conhecidas (oÀ e)stin oÄn oÃntwj e)pisth/mhn ouÅsan,

247c6-e1). Christopher Rowe anota o seguinte: “physical things, which we see and touch, are

only qualifiedly what they claim to be – e.g. because they are subject to change; any

knowledge we have which relates exclusively to them is therefore also qualified. The Forms,

on the other hand, are immaterial, graspable only by the mind, each of them just what it is

and never anything else; knowledge which comes from that source will be knowledge pure

and simples” (1988: 179).

O que significa que conhecemos as formas que outrora conhecemos? Os particulares

sensíveis são visíveis, tangíveis e mutáveis. Os conceitos ou constructos mentais são

afecções da psique, de modo que são dependentes de nós; e se nós controvertemos uns com

outros e com nós mesmos sobre a realidade, estabelecemos relações conceituais que levam

38O termo n%½ está em aposição a kubernh/tv. O mito do auriga representa o intelecto ou a mente humana.
39
Platão oferece algumas considerações importantes sobre as diferenças entre os sensíveis e as formas em
250b1-253a5.

63
a opiniões opostas sobre ela. As formas, segundo as características mencionadas acima, são

diferentes aos sensíveis e aos constructos mentais. Por consequência, o conhecimento da

realidade é independente do mundo fenomênico e da psique. Portanto, a afirmação de que

conhecemos, mais especificamente, que reconhecemos o que conhecemos outrora, significa

que nosso conhecimento da realidade tem uma justificação prévia. Se as formas são

incoloras, informes, intangíveis, imutáveis e ocupam a região supraceleste, então as formas

não podem estar no mundo sensível e tampouco podem estar em nossa alma; ergo, as

conhecemos antes de ter uma figura humana.

Não obstante, por que podemos reconhecer as formas? Porque nossa alma, mais

especificamente, o intelecto de nossa alma, tem uma capacidade para reconhecer

comparável à capacidade natural da asa (Pe/fuken h( pterou= du/namij, 246d6)40. Assim

como a asa é um corpo leve capaz de elevar o pesado desde seu lugar natural até a morada

dos deuses, a alma que tem figura humana é capaz de reconhecer o que conheceu de

antemão.

A a)na/mnhsij é a capacidade intelectual humana para reconhecer. Essa capacidade

não consiste em construir nem em renovar conhecimento, essa capacidade consiste em

recuperar o conhecimento da realidade que se conheceu de antemão. O parágrafo 249b6-c4

oferece uma explicação precisa da a)na/mnhsij. Nesse parágrafo Platão assinala o seguinte:

deiÍ ga\r aÃnqrwpon sunie/nai kat' eiådoj lego/menon, e)k pollw½n i¹o\n ai¹sqh/sewn

40 O sujeito de kekoinw¯nhke é h( pterou= du/namij. O que quer dizer que a asa, entre as coisas corpóreas,
é a que tem algo de divino (cf. 246d8); pelo que a asa é a palavra com a que Platão alude, metaforicamente,
a alma. O alma tem uma capacidade divina que lhe permite elevar-se à morada dos deuses para conhecer as
formas. No entanto, não todas as almas têm essa capacidade, porque Platão afirma que a alma que nunca viu
a verdade não poderá ter uma figura humana (cf. 249b5-6). As almas que têm essa capacidade são as almas
humanas, embora entre elas umas conhecem mais e outras menos. Segundo o preceito de Adrastea, as almas
que têm uma figura humana, dependendo do grau de verdade que contemplaram, reencarnam em um dos nove
tipos (cf. 248e-249d). A alma do filósofo é a única que tem asas (pterou=tai, 249c4), porque é a única capaz
de recuperar o conhecimento perdido e, por essa razão, sua capacidade é relativa à memoria (mnh/mv, 249c5).

64
ei¹j eÁn logism%½ sunairou/menon: tou=to d' e)stiìn a)na/mnhsij […]. O pronome

demonstrativo tou=to ou faz referência direta à frase que lhe precede ou abrange todo o

entorno linguístico do qual depende seu sentido, remontando-se assim à linha 246a6.

Portanto, podemos interpretar que a a)na/mnhsij é o procedimento, a intuição, ou ambas,

de reunir muitas sensações numa unidade através do raciocínio; ou, a capacidade natural da

razão (cf. 246d6) de reunir o múltiplo em uma unidade. Logo voltarei sobre essas duas

leituras alternas, quando estabeleça a comparação com o parágrafo da sunagwgh/. Basta

dizer por agora que adoto a segunda interpretação.

No começo desse parágrafo se afirma que é necessário que o ser humano

compreenda o que se diz conforme às formas. As formas constituem a realidade que

conhecemos de antemão. Mas, se a alma humana não está agora em possessão desse

conhecimento, poderá recuperá-lo? É claro, para Platão, que podemos recuperá-lo, pois

contamos com a a)na/mnhsij. Grosso modo, seja x a capacidade de agrupar muitas

sensações numa coisa diferente delas e seja z o conhecimento que nossa alma teve antes, a

a)na/mnhsij constitui a relação R tal que para todo x e todo z, xRz. Como esse tipo de

relação o indica, a a)na/mnhsij é sempre a a)na/mnhsij de algo, nesse caso deaquilo

(e)kei¿nwn) que nossa alma conheceu quando morava na região divina (cf. 249c1-2), de modo

que e)kei¿nwn alude às formas. A capacidade x implica z; porque, se e somente se a alma

conheceu as formas, então tem a capacidade de reconhecê-las. De modo que não é suficiente

afirmar que a a)na/mnhsij é a capacidade de reunir muitas coisas numa diferente delas. A

a)na/mnhsij é, antes de tudo, a capacidade anímica que encontra apoio no pressuposto de

65
que a alma conheceu as formas de antemão, pois assim é capaz de reconhecê-las cada vez

que reúne unas coisas em outras41.

Por conseguinte, a passagem 249b6-c4 torna explícitas duas características centrais

da a)na/mnhsij: 1. Capacidade da psique para conhecer. 2. A psique tem um conhecimento

prévio. Portanto, a a)na/mnhsij designa a capacidade da alma humana para recuperar seu

conhecimento prévio.

A comparação entre os parágrafos da a)na/mnhsij e da sunagwgh/ depende da

interpretação que se dê ao pronome tou=to. Há três interpretações possíveis da relação

comparativa entre ambos: 1. Identidade entre a)na/mnhsij e sunagwgh/: ambas são o

procedimento metodológico, a intuição ou o procedimento metodológico acompanhado de

intuição. A expressão e)k pollw½n i¹o\n ai¹sqh/sewn corresponde à expressão ta\

pollaxv= diesparme/na, de modo que descrevem procedimentos de reunião similares

cujo ponto de partida são as sensações. 2. Distinção entre a)na/mnhsij e sunagwgh/: a

a)na/mnhsij é a intuição prévia ao método e a sunagwgh/ é um dos procedimentos do

método. A expressão e)k pollw½n i¹o\n ai¹sqh/sewn não corresponde à expressão ta\

pollaxv= diesparme/na, porque a a)na/mnhsij tem seu ponto de partida nas sensações

e o ponto de partida da sunagwgh/ é ambíguo. 3. Relação de implicação entre a)na/mnhsij

e sunagwgh/: a frase 249b-c é uma descrição geral de nossa capacidade de reconhecimento

de formas, indo de sensações e reunindo-as numa unidade mediante o raciocínio. A frase

265d é uma descrição de um dos dois princípios que compõem o método de divisão. A

41A capacidade de reconhecer as formas mencionada no Fedro deve ser entendida como a capacidade de
conhecimento exposta em República (cf. Rep., 477d7-9).

66
primeira descrição não faz referência ao método, simplesmente menciona a capacidade que

nos permite adquirir o método, que a sua vez encontra apoio no pressuposto segundo o qual

temos um conhecimento prévio do que é o ser, já que para Platão podemos conhecer o ser

e esse conhecimento está por fora tanto do mundo fenomênico quanto de nossa alma. Segue-

se que a a)na/mnhsij é condição necessária da sunagwgh/ e de todo o método, posto que

somente se contamos com a capacidade para conhecer, podemos pensar em como fazê-lo.

“Thus in the middle dialogues the possibility of knowledge is dependent, for Plato, on the

assumptions of the recollection theory” Gulley (1962: 111).

Norman Gulley dedica todo um capítulo de seu libro Plato’s Theory of Knowledge

a analisar o vínculo entre o método do Fedro, especialmente, seu procedimento de reunião,

e a noção de a)na/mnhsij:

The close link between method and theory is established at 249b-c, where Plato first describes

the method of collection in its application to sensível particulars, a process of generalisation

and abstraction culminating in the recognition of a single common Form. This recognition is

then said to be the recollection of that ‘true reality’ which the soul once knew. And though

recollection is mentioned only with this first description of collection it is clear that this first

description is closely related to the later description of it in 265d ff., where it is linked with

the method of division […]. It is to be noted too that, although it is to ‘collection’ as a process

of direct abstraction from sensíveis that recollection is explicitly related, Plato indicates that

this process of abstraction is simply a first step in recollection, to be followed by a further

stage of methodical analysis (249c-d). The obvious implication, once we take into account

the relation between the earlier and later descriptions of ‘collection’, is that this further stage

in the process of recollection has as its instruments the methods of collection and division

(1962: 108-9).

Segundo Gulley, o “processo de reunião” (recollection) é um processo extenso que

67
consta de dois passos que operam um seguido do outro. O primeiro passo é um processo de

abstração que vai dos particulares sensíveis às formas. O segundo passo é um processo de

reconhecimento de semelhanças que vai de formas a formas, o qual tem como instrumento

aos métodos de reunião e divisão. A posição de Gulley adequa-se à interpretação 2., já que

a a)na/mnhsij (recognition) é o processo de abstração direto e a sunagwgh/ (collection)

é o processo que faz uso dos métodos de reunião e divisão. A meu ver, é forçoso pensar que

Platão deixe tantas linhas entre as descrições do primeiro e do segundo passo do “processo

de reunião”, além de estar insertas em contextos diferentes. A a)na/mnhsij, não o método,

é descrita na palinódia. Por isso, considero que a descrição da a)na/mnhsij não antecipa

nem faz parte do procedimento descrito em 265d.

David White (1993) comenta que Platão, em 249b-c, não menciona um

procedimento metodológico. A reunião referida na linha 249c é atingida por uma intuição

que é análoga ao aceso direto que a alma teve das formas. Essa linha pode entender-se

somente à luz do parágrafo que a contém, o qual faz referência à a)na/mnhsij. White, para

explicar o que é a a)na/mnhsij segundo Platão, afirma que a alma humana reúne uma

pluralidade de sensações numa forma porque a alma, antes de estar no corpo, conheceu essa

forma. Mas, de que modo isso está relacionado ao parágrafo do método? “As a result,

collection becomes the methodological counterpart to anamnesis, […]. In fact, collection

presupposes anamnesis, the recollection of direct contact with the Forms as realities.

Although division also includes recollection for purposes of selecting and applying the

appropriate Forms, […]” (1993: 216). Assim, a reunião metodológica é a contraparte da

a)na/mnhsij, sendo o método o aceso indireto às formas e a a)na/mnhsij seu aceso direto.

Concordo com a postura de White, que corresponde à interpretação 3., segundo a qual os

68
procedimentos do método, tanto o de reunião quanto o de divisão, pressupõem a

a)na/mnhsij.

Defendo que as noções a)na/mnhsij e sunagwgh/ estão relacionadas sob a

interpretação 3., na que se afirma que a a))na/mnhsij é condição sine qua non do

procedimento de reunião e, inclusive, de todo o método. Ambas as noções estão

relacionadas ao verbo sunairew/, porque ambas referem a ação de congregar o múltiplo

na unidade. O parágrafo da a)na/mnhsij faz uma descrição geral da reunião, sem considerá-

la como método. Se o ato de reunir consiste em unificar o múltiplo mediante o raciocínio,

em 249b-c não se menciona como isso acontece; pois, de um lado, mostra que a psique pode

reunir porque tem uma capacidade que lhe permite razoar e desse modo conhecer as formas

e, de outro lado, indica qual é o garante de sua capacidade de conhecimento. Entretanto, o

parágrafo do procedimento de reunião descreve como a psique reúne com o fim de conhecer.

Através desse procedimento estabelece-se uma mi¿a i¹de/a, que constitui a primeira parte do

fim do método. Além disso, as múltiplas sensações (pollw½n ai¹sqh/sewn) são o ponto de

partida do conhecimento, entanto que as opiniões e outras asserções controversas são o

ponto de partida do método. Afirmar que as sensações são o ponto de partida do

conhecimento não é o ponto relevante do parágrafo da a)na/mnhsij, mas sim o fato de que

a a)na/mnhsij é o fundamento do conhecimento que atinge-se através do método. Por

conseguinte, a relação não é somente entre a a)na/mnhsij e o procedimento de reunião,

também entre aquela e o procedimento de divisão. Logo, a a)na/mnhsij relaciona-se com

todo o método de divisão.

Apesar de que a a)na/mnhsij é nossa capacidade de reconhecimento das formas,

não podemos reconhecê-las tal como antes as conhecemos. Nosso conhecimento das formas
69
expressa-se em definições porque não temos aceso direto às formas, através de uma análise

conceitual definimos um conceito em correspondência com sua forma. Assim, nosso

conhecimento é um nexo de relações conceituais que estão em correspondência com as

formas que estruturam a realidade. No entanto, se não temos aceso direto à realidade, o que

é o que podemos conhecer dela? Qual é o critério para saber que a definição de x está em

correspondência com sua forma? E, como já disse antes, o que podemos conhecer não

depende das sensações provenientes do mundo sensível nem das construções conceptuais

que estabelece nosso intelecto. No parágrafo 270c-d, Platão explica o que é que podemos

conhecer:

aÅr' ou)x wÒde deiÍ dianoeiÍsqai periì o(touou=n fu/sewj: prw½ton me/n,

a(plou=n hÄ polueide/j e)stin ou pe/ri boulhso/meqa eiånai au)toiì

texnikoiì kaiì aÃllon dunatoiì poieiÍn, eÃpeita de/, aÄn me\n a(plou=n vÅ,

skopeiÍn th\n du/namin au)tou=, ti¿na pró\j ti¿ pe/fuken ei¹j to\ dra=n

eÃxon hÄ ti¿na ei¹j to\ paqeiÍn u(po\ tou=, e)a\n de\ plei¿w eiãdh eÃxv, tau=tà

)riqmhsa/menon, oÀper e)f' e(no/j, tou=t' i¹deiÍn e)f' e(ka/stou42, t%½ ti¿

poieiÍn au)to43\ pe/fuken hÄ t%½ ti¿ paqeiÍn u(po\ tou=;

Acaso não se deve agora refletir sobre a natureza do item, qualquer que seja ele?

Primeiro, se é simples ou composto aquilo sobre o qual desejamos ser técnicos ou

capazes de tornar técnicos a outros. A seguir, caso seja simples, deve-se examinar que

42De Vries comenta o seguinte sobre a expressão e)f' e(no/j, ... e)f' e(ka/stou: “For e)pi¿, “ in the case of”, cp.
Rep. 475a, 524e, 597b, Laws 662d. e(n denotes the a(plou=n of d1 and 3, e(ka/ston the component parts of
the polueide/j” (1969: 236).
43Seguindo o comentário de De Vries, au)to denota e(ka/ston eiådoj (1969: 236).

70
capacidade tem por natureza para agir relativamente a quê, ou que capacidade tem por

natureza para padecer sob ação de quê. E, caso tenha muitas formas, após enumerá-

las, <deve-se> examinar em cada caso precisamente o que <é examinado> no caso da

<forma> unitária: o que pode fazer por natureza relativamente a quê, ou o que pode

padecer por natureza sob ação de quê (270c10-d7).

Me deterei, sucintamente, na exegese filológica do parágrafo. Aqui a expressão

o(touou=n fu/sewj equivale ao termo eiådoj, que traduzo por ‘forma’ porque é usado em

seu sentido técnico de entidade objetiva independente da psique. Em 270d5, a expressão

plei¿w eiãdh faz referência ao termo polueide/j de d1. Na linha 270d6 (e)f' e(no/j, ... e)f'

e(ka/stou)), e(n denota uma forma simples (a(plou=n) e e(ka/ston denota as partes que

compõem a forma composta (polueide/j) cf. De Vries (1969: 236). O au)to de d7 faz

referência ao e(ka/ston eiådoj de d6 cf. De Vries (1969: 236). Se a forma composta tem plei¿w

eiãdh, então é claro que as partes que a compõem também são formas. Se o e(ka/ston é uma

das formas do polueide/j, então o e(ka/ston é uma unidade tal como o é a forma simples.

No entanto, o que podemos conhecer mediante uma arte não são as formas tal como foram

caracterizadas em 247c-e, começando porque elas estão na região supraceleste; o que

podemos conhecer mediante uma arte é a unidade (e(n) que faz que uma forma seja o que é

e não seja o que não é. Tanto as formas simples quanto as formas compostas são unidades.

Como é isso possível? Se uma forma composta tem mais de uma forma, como podemos

dizer que é unitária? A continuação explicarei em que consiste a unidade de uma forma.

Moravcsik (1973) usa a terminologia parte/totalidade (part/whole) com o propósito

de entender a configuração das formas simples, as formas compostas e suas relações.

Moravcsik pressupõe que as totalidades (wholes) são mais de que a somatória de suas partes

71
e somente as totalidades podem ter partes: (a) todas as formas são totalidades, (b) algumas

formas também são partes, (c) não todas as partes de formas são formas (ou totalidades). A

partir dessas características, ele classifica quatro tipos de intensões44:

1. Formas genéricas: totalidades que têm partes e não são em si mesmas partes. Para

Moravcsik, a mi¿a i¹de/a do amor é uma forma genérica, e.g. a mania.

2. Formas intermédias: totalidades que têm partes e são partes.

3. Formas mínimas ou indivisíveis: totalidades que não têm partes e são partes. Não

têm partes, ainda que particulares sensíveis participem delas. As formas mínimas ou

indivisíveis são as formas definidas através do método, e.g. o amor.

4. Intensões que não são formas ou falsos intermédios: não são totalidades, não têm

partes e são partes. Não se podem dividir metodologicamente (cf. 1973: 340).

Por conseguinte, para Moravcsik todas as formas são totalidades e estão distribuídas

nos tipos 1. a 3., entanto que as intensões do tipo 4. não são formas. As formas que a sua

vez são partes de outra forma pertencem aos tipos 2. e 3.

A meu ver, a terminologia de Moravcsik é útil para entender as formas e as suas

relações. Mas, não aceito sua classificação das formas; pois, o fato de que uma forma seja

genérica ou intermédia ou indivisível é relativo à forma que se deseja conhecer em cada

ocasião. Além disso, uma forma é indivisível não porque não tenha partes, a filosofia é uma

parte da forma de amor e a forma de amor é colocada como exemplo de forma indivisível.

Uma forma é indivisível na medida em que é unitária e todas as formas são unitárias; logo,

todas as formas, em certo sentido, são indivisíveis45. Circunscrevo-me a classificar as

44
Veja o artigo completo The Anatomy of Plato’s Divisions para entender a que Moravcsik refere-se com o
termo intensão. Para Moravcsik, as formas são tipos de intensões e não de extensões como algumas
concepções contemporâneas pretendem justificar.
45 Voltarei sobre esse ponto no capítulo III.

72
formas em simples e compostas, ainda que as formas compostas, em certo sentido, são

simples. Desse modo, defendo que todas as formas são simples e algumas delas também

compostas. Mas, como conciliar que uma mesma forma seja simples e a sua vez composta?

Retomarei três considerações importantes do parágrafo 270c-d:

1. A natureza de uma forma é simples ou composta (a(plou=n hÄ

polueide/j, 270d1).

2. Una forma simples consiste em ter uma capacidade natural ativa ou

passiva. A capacidade ativa é a capacidade para agir sobre algo e a capacidade

passiva é a capacidade para receber um efeito sob ação de algo (cf. 270d3-5).

3. Una forma composta consiste em que cada uma das formas que a

compõe tem uma capacidade natural ativa o passiva, seja para agir sobre algo ou

para padecer sob ação de algo, respectivamente (cf. 270d5-7).

“A natureza de item” (o(touou=n fu/sewj) está relacionada às formas ser simples e

compostas. Ser simples significa ser unidade (e(n) e ser composta significa estar constituída

por mais de uma forma. Um dos grandes pressupostos da filosofia de Platão afirma que o

ser é unidade, devido a que é contraditório afirmar que uma mesma coisa é ao mesmo tempo

uma e múltipla (cf. Rep., 436b9–11). Então, como conciliar que uma forma seja simples ao

mesmo tempo que composta? Permita-me elucidar essa questão com uma analogia sugestiva

para nossa época, mediante a qual concluirei que há unidades simples e unidades compostas.

De acordo com nossas teorias químicas, o agua é uma molécula formada por dois átomos

73
de hidrogênio e um de oxigênio (H2O). Por um lado, o átomo de oxigênio é uma unidade

simples porque não é divisível em partes. Por outro lado, o enlace entre dois átomos de

hidrogênio e um de oxigênio constitui uma unidade composta, divisível em três átomos,

cada um dos quais constitui uma unidade simples. Essa ilustração mostra que o um e o

múltiplo são contraditórios, mas o um e o composto não o são. Portanto, o composto é

diferente do múltiplo; assim como H2O é um composto mas não uma multiplicidade, já que

suas partes estão entrelaçadas para dar lugar ao elemento agua.

A unidade da forma está determinada por sua capacidade para agir em relação a algo

ou para receber o efeito devido a algo. A relação entre a capacidade (du/namij) e a ação

(poie/w) de algo é igual a sua função (ergo/n). Embora no Fedro Platão não torna explícito

seu termo técnico ergo/n , é claro que a capacidade de algo por si mesma não constitui a

atividade desse algo e agir ou padecer implica ter uma capacidade. Dessa maneira, a função

de algo consiste em pôr em exercício sua capacidade (cf. Rep. 352e–354a; Rep.477c1-4)46.

Portanto, a unidade de uma forma está determinada pela função que lhe é própria. Daqui se

segue que uma forma pode ser uma e estar constituída de partes, se e somente se existe uma

harmonia entre as funções de cada uma de suas partes47. Assim, se há formas simples e

compostas, também há funções simples e compostas.

Platão, no parágrafo 270d, usa indiferentemente os termos e(n e a(plou=n48. A

unidade de uma forma, seja simples ou composta, é dada por sua função. No entanto, os

termos e(n e polueide/j, nesse parágrafo, não são idênticos. Isto faz que a forma composta

seja simples somente em certo sentido, i.e. a forma realiza uma função. A isso acrescento

46
Em República 352e-354a e 477c1-4, Platão esclarece o sentido técnico dos conceitos ergo/n e du/namij,
respectivamente.
47 Veja a argumentação sobre a psique unitária e tripartida em República 435a-444e.
48 Veja De Vries (1969: 236).

74
que as predicáveis simplicidade e composição admitem graus. Ao início do Fedro Sócrates

pergunta se sua psique é uma fera mais complexa (poluplokw¯teron) e selvagem que

Tifão; ou, um animal mais manso e simples (a(plou/steron), que participa de um aspecto

divino e não tifónico por natureza (cf. 230a3-6). Essas palavras de Platão indicam que as

formas são mais ou menos compostas. Por isto, é preciso enumerar as partes (tau=tà

)riqmhsa/menon, 270e3-4) que compõem a natureza de uma forma, para saber exatamente,

como no caso da psique, se é uma e uniforme ou uma e composta como a forma do corpo

(cf. 271a5-7).

Em suma, podemos conhecer a unidade de uma forma. A função é o critério para

saber em que consiste sua unidade, porque a função de uma forma é o que faz que ela seja

o que é e não seja o que não é. De modo que a unidade de uma forma está determinada por

sua função. A função de algo é a relação entre sua capacidade, ativa ou passiva, e sua ação

ou afecção. A função de uma forma é simples ou composta. A função de uma forma

composta consiste em que as funções de suas formas simples estejam em harmonia umas

com outras para constituir uma nova função; pois, claro está que a função do oxigênio é

diferente à função do agua, apesar de que o agua tenha o elemento oxigênio em sua

composição. Portanto, as formas simples e as formas compostas são unidades porque ambas

têm funções, funções simples e compostas respectivamente. O que expressamos em

definições são as funções simples e compostas das formas. A definição de x está em

correspondência com sua forma se e somente se diz a função de sua forma. Mas, a última

estratégia argumentativa de Platão, para explicar que a definição de x está em

correspondência com sua forma, é sua pressuposição de que temos um conhecimento

prévio.

75
Não basta com afirmar que podemos conhecer a função de uma forma para de fato

conhecê-la. Dito de outro modo, a a)na/mnhsij é necessária mas não suficiente para

conhecer. Para conhecer é preciso saber como fazê-lo. E a resposta a como conhecer uma

função está no método de divisão, o qual consiste em reunir e dividir conforme às formas,

“de acordo com as junturas naturais” (kat' aÃrqra v pe/fuken, 265e1-2). O esclarecimento

da expressão kat' aÃrqra v pe/fuken é necessário para entender de que modo as reuniões

e divisões estabelecem a definição de x que está em correspondência com a função de sua

forma.

Aplicação da sunagwgh/ do Método exposto no Fedro

Para entender melhor em que consiste e como opera o procedimento de reunião,

mostrarei de que modo esse procedimento aplica-se ao caso por antonomásia do Fedro, o

conceito de amor, exposto ao longo de dois argumentos em 237b-257b. A parte I do

primeiro argumento usa o procedimento de reunião com o fim de estabelecer uma definição

de amor. Já, a parte II do primeiro argumento assim como todo o segundo argumento usam

o procedimento de divisão para examinar se o amor, tal como foi definido, é ou benéfico ou

prejudicial. Por conseguinte, no presente capítulo me ocuparei de aplicar o procedimento

de reunião às premissas da parte I do primeiro argumento de Sócrates (237b-241d).

A partir de 237b7, Platão esboça dois princípios metodológicos usados, logo a

seguir, na argumentação sobre o amor; o princípio da definição (I) e o princípio da resolução

do que é o ser do amor (II), que equivalem aos procedimentos metodológicos de reunião e

divisão respectivamente.49 Aqui me interessa apresentar a formulação do princípio (I), pois

a considero uma ligeira antecipação da descrição posterior do procedimento de reunião.

49 No capítulo I faço uma exposição dos princípios metodológicos referidos em 237b7-d3.

76
(I) Estabelecer de comum acordo uma definição de amor, sobre que está e que capacidade

tem (periì eÃrwtoj oiâo/n t' eÃsti kaiì hÁn eÃxei du/n amin, o(mologi¿# qe/menoi oÀron,

237c8-d1).

Afirmar que se estabelece uma definição (qe/menoi oÀron) equivale a afirmar que se

estabelece uma mi¿a i¹de/a e em isso consiste, precisamente, o fim do procedimento de

reunião. A definição de amor é dada por sua capacidade e sobre o que está; pois, como se

diz em 270c-d, a definição de x é a capacidade ativa ou passiva da que dispõe por natureza.

A capacidade ativa está relacionada ao agir sobre algo e a capacidade passiva está

relacionada ao padecer por causa de algo. Além disso, a definição deve assentar-se de

comum acordo entre os participantes da discussão sempre que se procure seguir

argumentado de maneira clara e consistente. A seguir apresento as premissas da parte I do

primeiro argumento de Sócrates (237b-241d), com o propósito de mostrar como se estabelece

a definição de amor, mais especificamente, como se estabelece sua mi¿a i¹de/a:

P1 O amor é algum desejo (e)piqumi¿a tij o( eÃrwj, 237d3).

P2 Os que não amam também desejam coisas belas (kaiì mh\ e)rw½ntej e)piqumou=si

tw½n kalw½n, 237d4-5).

O amor é concebido como desejo (e)piqumi¿a). Em pró da discussão, Sócrates

empresta o termo desejo do argumento de Lísias e a partir das AC apresentadas por Lísias,

tais como “o amor é prejudicial”, “é preciso conceder mais favores ao que não ama que ao

que ama”, “não se deve ter amizade com o que ama”, “o que ama está mais enfermo que o

77
que não ama” (cf. 236a8-b4)50, procede a defini-lo. Tais asserções são controversas porque

são opostas às asserções que são urbanas e de uso comum (a)steiÍoi kaiì dhmwfeleiÍj,

227d1-2) para Sócrates e muitos de nós (e)moi¿ kaiì toiÍj polloiÍj h(mw½n, 227d1) (cf. 227c-

d)51, entre eles antigos sábios antigos como Safo e Anacreonte, que refutariam a Lísias (cf.

235b-c). No entanto, Sócrates as pressupõe ao início de sua argumentação para estabelecer

uma definição compatível com elas e, a seguir, examinar se essa definição corresponde à

definição correta de amor.

O sentido do termo desejo é ambíguo e controvertido. Em P1 afirma-se que o amor

é algum desejo e isto sugere que há outros muitos desejos. Em P2 afirma-se que também os

não amantes têm desejos. Portanto, a noção de desejo abrange aos amantes e aos não

amantes.

P1 e P2 caracterizam-se por ser opiniões geralmente aceitas. P1 é evidente a todos

(aÀpanti dh=lon, 237d4). P2 está subordinada ao verbo principal “sabemos” (iãsmen, 237d5),

assim, sabemos que amantes e não amantes sem distinção desejam coisas belas (oÀti kaiì

mh\ e)rw½ntej e)piqumou=si tw½n kalw½n, iãsmen, 237d4-5)52. Essas opiniões não

distinguem amar de não amar, mas elas levam a inferir sua distinção, se se quer levar a uma

definição de amor. É claro, para Platão, que se a primeira ou as primeiras premissas de seu

argumento são aceitas, o que se segue delas deverá ser igualmente aceito e, assim, a

50 Fedro lhe concede a Sócrates pressupor a seguinte asserção ao início de sua argumentação: O que ama está
mais enfermo que o que não ama (to\ me\n to\n e)rw½nta tou= mh\ e)rw½ntoj ma=llon noseiÍn dw¯sw soi
u(poti¿qesqai, 236a8-b1).
51 Ao início do Fedro Sócrates assinala que a asserção “é preciso conceder favores ao que não ama mais que

ao que ama” (xariste/on mh\ e)rw½nti ma=llon hÄ e)rw½nti, 227c7-8) não é, de fato, uma asserção urbana e
de uso comum como o são as seguintes asserções: “é preciso conceder favores ao pobre mais que ao rico, e ao
velho mais que ao jovem” (xrh\ pe/nhti ma=llon hÄ plousi¿% , kaiì presbute/r% hÄ newte/r%, 227c9-
10).
52 As itálicas são minhas.

78
definição a estabelecer desfrutará de consenso comum. Assentar ambas as premissas

corresponde a um primeiro passo do procedimento de reunião; porque, o primeiro passo

para estabelecer uma definição é aceitar uma ou mais premissas, preferivelmente boas

opiniões ou lugares comuns, apesar de que sejam controversas.

P3 Em cada um de nós há dois princípios que nos rijem e nos guiam, os que seguimos

onde quer que nos guiem; um é nosso desejo inato de prazeres, o outro é nossa aquisição de

opinião que tende ao melhor (deiÍ auÅ noh=sai oÀti h(mw½n e)n e(ka/st% du/o tine/ e)ston

i¹de/a a Ãrxonte kaiì aÃgonte, oiân e(po/meqa v aÄn aÃghton, h( me\n eÃmfutoj ouÅsa

e)piqumi¿a h(donw½n, aÃllh de\ e)pi¿kthtoj do/ca, e)fieme/nh tou= a)ri¿stou, 237d6-9).

P4 Esses dois princípios que há em nós umas vezes conciliam, mas outras vezes são

irreconciliáveis; então, umas vezes um deles tem o controle, outras vezes o tem o outro

(tou/tw de\ e)n h(miÍn tote\ me\n o(monoeiÍton, eÃsti de\ oÀte stasia/zeton: kaiì tote\

me\n h( e(te/ra, aÃllote de\ h( e(te/ra krateiÍ, 237d9-e2).

P5 Quando a opinião através do raciocínio guia ao melhor e tem o controle, esse

controle é denominado moderação (do/chj me\n ouÅn e)piì to\ aÃriston o/g% a)gou/shj

kaiì kratou/shj t%½ kra/tei swfrosu/nh oÃnoma, 237e2-3).

P6 Quando o desejo sem raciocínio nos leva ao prazer e rije em nós, esse princípio

reitor recebe o nome de lascívia (e)piqumi¿aj de\ a)o/gwj e(lkou/shj e)piì h(dona\j kaiì

a)rca/shj e)n h(miÍn tv= a)rxv= uÀbrij e)pwnoma/sqh, 238a1-2).

Uma vez aceitam-se duas opiniões que conectam o amor com o desejo, se passa a

considerar a natureza do desejo ao que pertence o amor. P1 e P2 implicam que há muitos

desejos e o amor é um deles. Para diferenciar o desejo do amante dos outros desejos,

79
incluindo o desejo de quem não ama, procede-se a questionar o que é o desejo, a dividir

suas partes e a estabelecer suas diferenças. Em P3 afirma-se que há dois princípios que rijem

e guiam em cada um de nós (h(mw½n e)n e(ka/st%). Em P4 afirma-se que ambos os princípios

podem ou não conciliar em nós (e)n h(miÍn ). Se não conciliam, somos controlados por um

deles. Em P5 afirma-se que se o controle é exercido pela opinião acompanhada de raciocínio,

esse princípio nomeia-se moderação. Pelo contrário, em P6 afirma-se que se somos

controlados pelo desejo carente de raciocínio, esse outro princípio leva o nome de lascívia.

Por conseguinte, o desejo está “em cada um de nós” (h(mw½n e)n e(ka/st%; e)n h(miÍn), mais

especificamente, está em nossa alma. Se o desejo constitui nosso princípio reitor, o desejo

deve nomear-se lascívia (uÀbrij).

Embora não se explicite que a uÀbrij seja parte da e)piqumi¿a, primeiro reúne-se o

amor no conceito genérico e)piqumi¿a e, depois, esse conceito é substituído pelo de uÀbrij;

considero que é plausível pensar que uma forma é parte da outra devido à estreita conexão

de sentido entre ambos os conceitos. O próprio Hackforth oferece um comentário a respeito

disso: “It is not said that uÀbrij is a kind of e)piqumi¿a: rather it is the name of that psychical

state which results from the victory of irrational desire for pleasure over rational belief,

which aims at good; nevertheless the connexion of uÀbrij with e)piqumi¿a is so close that

the speaker treats the species of the one as species of the other, and in the end arrives at a

definition of love which, as were led to expect at the outset, makes it a kind of desire, and

carefully states its specific difference” (1952: 40-41).

As premissas P3 a P6 correspondem a um segundo passo do procedimento de reunião,

no qual amor reúne-se no desejo lascivo. A primeira reunião define o amor como desejo. A

segunda reunião define o amor como desejo lascivo e, a sua vez, define a lascívia como um

80
dos dois princípios que está em nossa alma. Isto quer dizer que a mi¿a i¹de/a do amor é certo

desejo (e)piqumi¿a) denominado lascívia (uÀbrij) e a mi¿a i¹de/a da mi¿a i¹de/a do amor é

nossa alma (e)n h(miÍn). Essa segunda reunião demarca o escopo da discussão, pois reunir o

amor em seu conceito genérico permite proceder adequadamente, para finalmente distinguir

desejos opostos, i.e. o desejo do amante não é o desejado e, desse modo, chegar a uma

definição de amor.

Em P3 descreve-se à lascívia como desejo inato de prazeres (h( eÃmfutoj e)piqumi¿a

h(donw½n) e ao outro princípio como opinião adquirida que tende ao melhor (h( do/ca

e)fieme/nh tou= a)ri¿stou). Convém anotar que o fato da opinião ser adquirida e o desejo

inato sugere que esses princípios não têm o mesmo tipo de relação com a psique. O desejo

lascivo é parte de nossa alma ab initio, entanto que a opinião é um princípio epistêmico que

chega a ser parte de nossa alma. Em P5 e P6 alude-se às características distintivas e opostas

dos dois princípios, a moderação caracteriza-se por ser racional (o/g%) e o princípio lascivo

caracteriza-se por ser irracional (a)o/gwj). Apesar de que a moderação caracteriza-se por

ser racional e tender ao melhor, ela não é um princípio inato em nós.

P7 A lascívia tem muitos nomes porque tem muitas partes e muitas formas (uÀbrij

poluw¯numon - polumele\j ga\r kaiì polumere/j, 238a2-3).

P8 E dessas formas, a que sobressai em cada ocasião dá seu próprio nome ao que a

tem (kaiì tou/twn tw½n i¹dew½n e)kpreph\j hÁ aÄn tu/xv genome/nh, th\n au(th=j

e)pwnumi¿an o)nomazo/menon to\n eÃxonta pare/xetai, 238a3-5).

81
P9 Se o desejo que está em relação à comida tem o controle sobre o raciocínio pelo

melhor e os outros desejos, esse desejo é nomeado gula e esse mesmo nome terá aquele que

o tem; entanto que se o desejo que está em relação à bebida tiraniza, levando a quem o tem

em essa direção, é claro o apelativo que receberá (periì me\n ga\r e)dwdh\n kratou=sa

tou= o/gou te tou= a)ri¿stou kaiì tw½n aÃllwn e)piqumiw½n e)piqumi¿a gastrimargi¿a

te kaiì to\n eÃxonta tau)to\n tou=to keklhme/non pare/cetai: periì d' auÅ me/q aj

turanneu/sasa, to\n kekthme/non tau/tv aÃgousa, dh=lon ou teu/cetai

prosrh/matoj, 238a6-b3).

P10 O desejo sem raciocínio que, tem o controle sobre a opinião que impulsa a

alguém ao reto, inclina-se ao prazer das coisas belas e, reforçando sua força por meio de

desejos próximos a esse, leva à beleza dos corpos, tomando seu nome de sua mesma força,

é denominado amor (h( ga\r aÃneu o/gou do/chj e)piì to\ o)rqo\n o(rmw¯shj krath/sasa

e)piqumi¿a, pró\j h(donh\n a)xqeiÍsa ka/llouj, kaiì u(po\ auÅ tw½n e(auth=j suggenw½n

e)piqumiw½n e)piì swma/twn ka/lloj e)rrwme/nwj r(wsqeiÍsa nikh/sasà )gwgv=, a)p'

au)th=j th=j r(w¯mhj e)pwnumi¿an labou=sa, eÃr wj e)klh/qh, 238b7-c4).

Não basta com afirmar que o desejo está em nossa alma, pois o desejo está disperso

de muitas maneiras nela. P7 a P10 seguem a procura pela natureza do desejo. Em P7 afirma-

se que o desejo lascivo tem tantos nomes quanto partes tem. O desejo lascivo é uma forma

composta e o amor é uma de suas partes. Para diferenciar o amor das outras partes do desejo

lascivo se procede a dividir. A divisão consiste em enumerar suas partes e distinguir a

função de cada parte, ou seja, o que faz cada parte e relativamente a quê (cf. 237c-d; 270c-d).

Com P9 e P10 enumeram-se três partes, duas delas são nomeadas: a gula e o amor, e

distinguem-se na função de cada parte, i.e. o que faz cada parte e relativamente a quê. Aqui

82
o ato de dividir constitui o ato de enumerar e distinguir as partes que compõem uma forma.

No entanto, esse sentido de divisão difere de seu sentido estrito que constitui a divisão quase

sempre dicotômica própria do segundo procedimento do método, a qual divide o que é o

amor de seu oposto. Apesar de que o método esteja constituído por dois procedimentos

sequenciares, um dos quais leva o nome de reunião e o outro de divisão, as reuniões e as

divisões operam ao longo de todo o método, reguladas pela expressão “de acordo com as

junturas naturais”, para estabelecer e examinar uma definição de amor. As reuniões e as

divisões constituem os dois lados de uma mesma moeda, já que se reúne o que está dividido

e se divide o que está reunido.

É preciso perguntar se as três formas do desejo lascivo representam ou não uma

divisão exaustiva de suas partes. A expressão tau=ta a)riqmhsa/menon do parágrafo 270d

pode entender-se como a enumeração de todas as partes que compõem uma forma ou como

a enumeração de suas partes relevantes para a parte a definir. No caso estudado, o desejo

lascivo é a forma composta. A gula, o excesso de bebida e o amor são suas partes. Então, o

desejo lascivo enumera exaustivamente suas partes; ou, o desejo lascivo não necessita

enumerar todas suas partes, mas somente algumas para estabelecer com suficiência a

característica distintiva do amor. Porém, a enumeração das partes do desejo lascivo não

garante atingir a uma definição de amor. Mais do que enumerá-las é preciso distinguir suas

funções. Considero importante, para enumerar e distinguir as partes de uma forma

composta, situar-me na parte que se procura definir e, assim, a divisão dessa forma não

necessita ser exaustiva, basta com dividir as partes relevantes para a parte a definir. O

esclarecimento da expressão “de acordo com as junturas naturais” poderá ajudar a entender

melhor por que as divisões que fazemos conforme às partes de uma forma não necessitam

ser exaustivas, voltarei sobre essa expressão no capítulo III.

83
Em P8 assinala-se que adotamos um nome segundo o tipo de desejo que recebemos

e devido a que em P9 oferecem-se dois exemplos de desejos lascivos: a gula e o excesso de

bebida. Por exemplo, quando o desejo que domina sobre nossa opinião reta tem como objeto

a comida, seremos nomeados glutões. Em P10, finalmente, distingue-se o amor dessas partes.

O amor é o desejo lascivo de prazer que leva ao belo. Quando o desejo lascivo que domina

nossa opinião reta está destinado às coisas belas, seremos nomeados amantes.

As premissas P7 a P10 correspondem a um terceiro e último passo no procedimento

que reúne o amor em sua mi¿a i¹de/a, que é o desejo, mais especificamente, o desejo lascivo.

O primeiro passo consiste em reunir o amor no desejo e o segundo passo consiste em reunir

o amor em um dos princípios da psique, o desejo lascivo. O terceiro passo consiste em

dividir as partes que compõem a mi¿a i¹de/a do amor em correspondência com a função de

cada uma de suas formas ou conforme a suas junturas naturais. Repito, o terceiro passo

consiste em estabelecer relações de semelhança entre as partes reunidas. Por um lado, a

gula, o excesso de bebida e o amor são idênticos na medida em que eles são desejos lascivos

que exercem seu poder em nós. No entanto, os três desejos diferençam-se no que fazem e

no destinatário de suas ações, e.g. não é o mesmo desejar comer que desejar deleitar-se com

um homem belo e o desejo de comer não pode estar sobre um corpo belo. Nesses casos, o

destinatário determina o tipo de desejo, pois a comida, a bebida o as coisas belas determinam

se o que se faz é comer ou beber ou amar.

Parece que prima facie em nada difere o fazer de quem ama do fazer de quem não

ama, pois ambos desejam deleitar-se com a beleza e seu desejo está sobre o mesmo objeto,

i.e. os corpos belos. Faltaria qualificar a função em um e outro caso. Segundo Sallis, a

distinção entre quem ama e quem não ama está na intensidade do desejo. “The result is,

then, that there is no real difference between lovers and non-lovers but, at most, only the

84
difference between more and less intense desire” (1996: 126). No entanto, considero que a

diferença não é somente de intensidade. O controle que exerce um dos princípios que está

em nós é oposto ao controle exercido pelo outro; pois, um age impulsivamente em busca do

prazer, e o outro age racionalmente em busca do bem. Quem ama deixa-se levar pelo prazer,

tornando-se um homem lascivo. De outro modo, quem não ama guia-se conforme à opinião

reta, sendo moderado e assim controlando seus desejos. Por conseguinte, a diferença está

em que quem ama é controlado por um desejo irracional de beleza e quem não ama, embora

também deseja deleitar-se com as coisas belas, é controlado por um desejo racional e, assim,

sua opinião que tende ao bem se impõe sobre seu desejo impulsivo de prazer.

Apesar de que na parte I do primeiro argumento de Sócrates mencionam-se os

termos e)piqumi¿a e uÀbrij em vez do termo mani¿a para referir-se à mi¿a i¹de/a do amor,

é preciso resolver essas dificuldades terminológicas para entender como o método é

aplicado por Sócrates em sua argumentação. De modo que a e)piqumi¿a equivale à mani¿a

na medida em que constitui a mi¿a i¹de/a do amor. E, a uÀbrij equivale a certa mania que é

prejudicial na medida em que constitui um tipo de desejo que é irracional, entanto que o

outro princípio de nossa alma equivale à outra mania que opõe-se na medida em que se

caracteriza por ser um desejo racional.

Dito isto, mostrei como o procedimento de reunião estabelece a mi¿a i¹de/a do amor.

O amor é definido como desejo lascivo de prazer que está sobre as coisas belas. Esse

procedimento metodológico opera em três passos consecutivos nos que se reúne o amor no

desejo e, mais especificamente, no desejo lascivo de nossa alma; depois, divide-se o

reunido, o desejo lascivo, um dos dois princípios que rijem nossa alma, tem três partes entre

as quais está o amor. Falta esclarecer a expressão kat' aÃrqra v pe/fuken, a qual é

mencionada ao início do parágrafo que descreve o procedimento de divisão, para entender

85
como se distingue exatamente a função própria do amor e estabelece-se sua definição

correta. No próximo capítulo me deterei no que é e como opera o procedimento de divisão.

Para isso, analisarei o parágrafo que o descreve, de modo que aproveitarei para esclarecer

em que consiste essa expressão.

Capítulo III

A diai¿resij do Método exposto no Fedro

Repito que a partir de 265c9 Platão descreve em que consiste o método de divisão.

Platão torna explícitos os dois tipos de procedimento (du/o eiådoj), que gostaria de organizar

numa arte sistemática (cf. 265c9-10). Assim, o método está composto de um duplo

procedimento, as divisões e as reuniões (tw½n diaire/sewn kaiì sunagwgw½n , 266b4). O

86
parágrafo 265d3-7 descreve o procedimento de reunião, que foi analisado no capítulo II. A

seguir analisarei o parágrafo 265e1-266b1, que descreve o segundo dos du/o eiãdoj, o

procedimento de divisão (diai¿resij):

To\ pa/lin kat' eiãdh53 du/nasqai diate/mnein kat' aÃrqra vÂ

pe/fuken54, kaiì mh\ e)pixeireiÍn katagnu/nai55 me/roj mhde/n, kakou=

magei¿rou tro/p% xrw¯menon: a)ll' wÐsper aÃrti twÜ lo/gw to\ me\n

aÃfron th=j dianoi¿aj56 eÀn ti koinv= eiådoj e)labe/thn57, wÐsper de\

sw¯matoj e)c e(no\j dipla= kaiì o(mw¯numa pe/fuke, skaia/, ta\ de\

decia\ klhqe/nta, ouÀtw kaiì to\ th=j paranoi¿aj w¨j <eÁn> e)n h(miÍn 58

pefuko\j eiådoj h(ghsame/nw twÜ lo/gw, o( me\n to\ e)p' a)ristera\

temno/menoj me/roj, pa/lin tou=to te/mnwn ou)k e)panh=ken59 priìn e)n

au)toiÍj e)feurwÜn o)nomazo/menon skaio/n60 tina eÃrwta e)loido/rhsen

ma/l' e)n di¿kv, o( d' ei¹j ta\ e)n deci#= th=j mani¿aj a)gagwÜn h(ma=j,

53 M. Schanz aceita a leitura de Madvig kaiì ta\ eiãdh e, inclusive, Vollgraff elimina kat' eiãdh.
54 A expressão kat' aÃrqra v pe/fuken também aparece em Cratilo 386d e ss.; e em Político 259d, 261a,
287c.
55 Em consonância com a expressão mh\ e)pixeireiÍn katagnu/nai, Cícero, De Fin. II 9,26, afirmou “hoc est

non dividere, sed frangere”; assim como Séneca, Ep. 89,2, afirmou “philosophiam in partes, non in frusta
dividam; dividi enim illam, non concidi utile est”.
56 A expressão to\ aÃfron th=j dianoi¿aj equivale ao termo th=n mani¿an. Traduzo ambas por ‘mania’.

57 O verbo e)l abe/thn tem o sentido de “conceived of” De Vries (1969: 217). Hackforth o traduz por

“postulated” (1952: 133). Parece-me adequada a tradução de Hackforth, dado que o sujeito desse verbo é twÜ
lo/gw.
58 Seguindo a De Vries (1969), e)n h(miÍn é igual a e)n a)nqrw¯p oij.

59 Seguindo L.S.J. II 2, e)p anh=k en é o intransitivo de e)pani¿hmi.

60 Aqui o termo skaio/n tem um sentido metafórico (L.S.J. III 2).

87
o(mw¯numon me\n e)kei¿n%, qeiÍon61 d' auÅ tina eÃrwta e)feurwÜn kaiì

proteina/menoj e)pv/nesen w¨j megi¿stwn aiãtion h(miÍn a)gaqw½n.

Novamente ser capaz de dividir segundo formas, de acordo com suas junturas

naturais, e procurar não causar roturas em nenhuma parte ao modo do

açougueiro inexperiente – tal como há pouco os dois argumentos

estabeleceram a mania como certo eÁn eiådoj comum – e, assim como um

corpo tem naturalmente pares de mesmo nome, chamados sinistro e destro,

igualmente os dois argumentos consideraram o <eiådoj> da mania como eÁn

eiådoj naturalmente em nós: o primeiro, recortando para si a parte situada do

lado esquerdo, e dividindo-a novamente, não cessou até descobrir ali um amor

chamado sinistro e o repreendeu com toda justiça, ao passo que o segundo,

tendo-nos levado às partes da mania situadas do lado direito, descobriu e

apresentou um amor de mesmo nome, mas divino, e o enalteceu como causa

dos maiores bens para nós.

No parágrafo 265e1-266b1 descreve-se o procedimento de divisão. Platão usa os

verbos diate/mnein e te/mnein para referir-se à ação de recortar, dividir, uns conceitos de

outros. Mas, o que é dividir? Como temos que dividir? Hérmias usa a expressão

“te/mnonta kai¿ diairou=nta”(235, 10) para referir-se ao modus operandi da diai¿resij

do Fedro. Se dá-se primazia ao verbo te/mnein, os cortes podem ser em dois, três ou mais

partes. Mas, se tem prevalência o verbo diate/mnein, os cortes devem ser em duas partes

61 Aqui o termo qeiÍon é usado como em 265b2.

88
ou ao menos tentam ser em duas. Segundo De Vries, o verbo diate/mnein é o mais

adequado para caracterizar a operação (cf. 1969: 216). Não obstante, o termo pa/lin em

266a4 sugere que, após recortar o conceito de mania em duas partes, temos que volver

a recortar cada uma delas. A questão é se se torna a recortar em outras duas partes. Aqui

o adverbio pa/lin motiva a dúvida e confusão a respeito de se todas as divisões

metodológicas são dicotômicas ou somente a divisão inicial. Então a pergunta pelo como

pode ser formulada nestes termos: quantas divisões é necessário fazer quantas divisões para

que o método atinja a seu fim? Por conseguinte, o problema que envolve a análise e a

compreensão total do procedimento de divisão consiste em saber se as divisões são sempre

em duas partes.

Esse problema é bem conhecido como o problema da dicotomia (PD) e consiste em

determinar se o procedimento de divisão é um procedimento que divide segundo formas,

ou de acordo com suas junturas naturais, a mi¿a i¹de/a de x em duas partes o em mais de

duas partes, com o fim de examinar e, finalmente, provar qual dessas partes constitui a

definição correta de x. O PD está relacionado ao procedimento de divisão e à expressão “de

acordo com as junturas naturais” (kat' aÃrqra v pe/fuken). Três posturas englobam as

diversas interpretações a PD: A- O procedimento de divisão divide mi¿a i¹de/a de x

necessariamente em duas partes porque sua forma tem duas partes. B- O procedimento de

divisão não divide mi¿a i¹de/a de x necessariamente em duas partes porque sua forma pode

ter mais de duas partes. C- O procedimento de divisão tende a dividir a mi¿a i¹de/a de x em

duas partes porque o critério não é dado por quantas partes tem sua forma, o critério é dado

pelas partes que sejam determinantes para definir x. Minha interpretação circunscreve-se à

postura C. No capítulo I formulei por extenso em que consiste esse problema e expus

brevemente os argumentos de três representantes: Hackforth (1952), White (1993) e Ackrill


89
(1997), às três posturas: A, B, e C, respectivamente. A presente análise do procedimento

de divisão assim como o esclarecimento da expressão “de acordo com as junturas naturais”

me permitirá defender com seguridade minha interpretação a PD.

No terceiro capítulo proponho-me analisar e entender o que é e como opera a

diai¿resij do método proposto por Platão no Fedro. Para isso, analisarei detalhadamente

o parágrafo descritivo do procedimento de divisão e testarei a aplicação desse

procedimento nos argumentos da primeira parte do Fedro. Em primeiro lugar, esclarecerei

o sentido da expressão “de acordo com as junturas naturais” (kat' aÃrqra v pe/fuken,

261e1-2) mencionada na primeira parte do parágrafo descritivo do procedimento de divisão

(265e1-4), e interpretarei essa expressão como um princípio de similaridade que regula todo

o método. Em segundo lugar, analisarei o que é dividir e como divide o segundo

procedimento do método tomando como referência a divisão dicotômica e homônima

(dipla= kaiì o(mw¯numa, 266a1) da analogia mencionada na segunda parte desse parágrafo

(265e4-266b1). Em terceiro e último lugar, mostrarei de que modo aplica-se o procedimento

de divisão nos dois argumentos sobre o amor expostos por Sócrates na primeira parte do

Fedro (237b-257b), com o propósito de entender com clareza meridiana como opera esse

procedimento metodológico e o método completo e, assim, deixar testada minha HT.

Examinemos passo a passo as linhas 265e1-4 do parágrafo do procedimento de

divisão: “Novamente (pa/lin) pode-se dividir segundo formas (kat' eiãdh), de acordo com

suas junturas naturais (kat' aÃrqra v pe/fuken), e procurar não causar roturas em

nenhuma parte ao modo do açougueiro inexperiente como por exemplo os dois argumentos

de há pouco estabeleceram a mania como um eÀn koinv= eiådoj”. O termo pa/lin indica

que os dois procedimentos metodológicos operam segundo formas, de acordo com suas

junturas naturais. Um exemplo de que também o procedimento de reunião procede segundo

90
formas é que os dois argumentos de Sócrates estabeleceram a mania como o eÀn koinv=

eiådoj do amor. Se Sócrates estabeleceu a mania como o eÀn koinv= eiådoj do amor desde a

parte I do primeiro argumento, então Sócrates argumentou seguindo as junturas naturais e

não como acostuma fazer o açougueiro que desconhece seu oficio. As expressões eÀn koinv=

eiådoj de 265e4 e eÀn eiådoj de 266a2 têm o mesmo sentido da expressão mi¿a i¹de/a de

265d3. Tampouco as traduzo; pois, estão relacionadas à definição de amor e a sua forma,

mas não são nem uma coisa nem a outra. Mas, o que quer dizer exatamente Platão com

“dividir segundo formas, de acordo com suas junturas naturais”?

Afirmar que a divisão procede segundo formas é igual a afirmar que a divisão

procede de acordo com as junturas naturais, pois kat' eiãdh e kat' aÃrqra v pe/fuken

são expressões intercambiáveis. De maneira que essas afirmações alternas têm o mesmo

sentido. Platão continua afirmando o que não é c a u s a r r o t u r a s e m dividir de modo

metodológico: dividir não é romper alguma parte como acostuma fazer o açougueiro

inexperiente. Hérmias comenta que a diai¿resij procede “kaqa/per kalo/n ma/geiron

kat' aÃrqra te/mnonta kai¿ diairou=nta, kai¿ mh\ kata\ to\n a)fuh= ma/geiron

sugklw½nta ta\ me/rh” (235: 10-119).

O critério para dividir de modo correto é dividir segundo formas e dividir segundo

formas significa dividir de acordo com suas junturas naturais. Então, o critério para dividir

metodologicamente é dividir, exclusivamente, em suas junturas naturais. Recortar numa

juntura não natural implica não exercitar nossa capacidade natural (a)fuh=) e fazer uma

separação forçada, que se parece aos péssimos cortes de um açougueiro que não sabe quais

são os pontos em que convergem as partes da res ou não tem a prática suficiente para fazer

o corte certeiro. No entanto, estabelecer as divisões nas junturas naturais e não em outro

91
tipo de articulações é problemático; pois, como saber quando divide-se segundo uma

juntura natural e quando não? Começarei por dilucidar o termo pe/fuken, que aparece

reiteradamente nesse parágrafo:

1. diate/mnein kat' aÃrqra v pe/fuken (265e2): onde estão as

junturas das formas para ser divididas.

2. wÐsper sw¯matoj e)c e(no\j dipla= kaiì o(mw¯numa pe/fuke

(266a1): como as junturas de um corpo são divididas.

3. ouÀtw kaiì to\ th=j paranoi¿aj w¨j <eÁn> e)n h(miÍn pefuko\j

eiådoj (266a3): como a mania, como uma forma, está em nós White (1993: 278).

O parágrafo 270c-d ajuda a esclarecer o termo pe/fuken, porque em ele afirma-se

que a natureza de um ser é simples ou composta. Uma forma é simples ou composta.

Portanto, a natureza de um ser é sua forma. Podemos conhecer, em primeiro lugar, se é

simples ou composta a natureza de um ser; e, depois, qual é sua capacidade natural para

agir sobre algo ou para receber um efeito por causa de algo. Sua capacidade natural

constitui sua unidade. Mas, a capacidade de uma forma por si mesma não constitui sua

atividade, apesar de que para fazer algo é necessário ter uma capacidade. Em República,

Platão afirma que a função de algo consiste em pôr em execução a capacidade que lhe é

própria62. Portanto, a unidade de uma forma está determinada por sua função. Dessa

maneira, dividir segundo as formas ou de acordo com suas junturas naturais consiste em

dividir segundo as funções das formas ou de acordo com os pontos que unem e ao mesmo

tempo separam umas funções de outras.

62 Veja República 352e-354a.

92
Falta esclarecer a pergunta, como dividir de acordo com as junturas naturais? As

junturas naturais denotam os pontos de união e separação entre as formas, o que faz pensar

que as formas estão entrelaçadas. Um dos sentidos dados à preposição kata/ com acusativo

é o sentido de ação e efeito de corresponder o corresponder-se63. A preposição kata/ indica

que se dividem conceitos em correspondência com as formas ou em correspondência com

as junturas naturais (kat' eiãdh du/nasqai diate/mnein kat' aÃrqra v pe/fuken, 265e1-

2). No entanto, em que consiste essa relação de correspondência? Consiste em que as

divisões metodológicas são similares às relações entre formas; já que não podemos dividir

diretamente as formas, dividimos os conceitos que são similares às formas. Os conceitos

são afecções da alma que procedem das formas das que a alma teve um conhecimento

prévio, e através do método podemos reconhecê-las. O reconhecimento está regulado pela

expressão “de acordo com as junturas naturais”, que denomino princípio de similaridade64,

porque, já que as reuniões e as divisões dos conceitos são naturais se e somente se são

similares aos pontos de união e separação naturais. Portanto, o procedimento de divisão,

também o procedimento de reunião, é regulado por esse princípio que garante que as

divisões conceituais são similares às relações das formas que estruturam a realidade.

Para estabelecer a definição correta de x é preciso saber em que pontos se une e

separa de outros conceitos com os que está reunido numa mi¿a i¹de/a, que constitui a

característica comum e definidora de todas elas. A partir de 262a5, Platão afirma o seguinte:

“Distinguir exatamente a semelhança e dessemelhança entre as coisas” (th\n o(moio/thta

tw½n oÃntwn kaiì a)nomoio/thtà )kribw½j dieide/nai, 262a6-7). Diai¿resij corresponde a

63 Veja L.S.J., kata/ B, IV.


64 Veja capítulo I.

93
a)kribw½j dieide/nai assim como kat' aÃrqra v pe/fuken corresponde a o(moio/thta

tw½n oÃntwn. Quando se reúne e/ou divide a mi¿a i¹de/a de x de acordo com suas junturas

naturais, o que se faz é relacionar de modo correto a x com os conceitos com os que é

susceptível de semelhança. As relações de semelhança consistem em identificar as

características idênticas e diferentes que x tem com as outras partes que compõem sua mi¿a

i¹de/a.

Em 277b, Platão assinala o seguinte: “Até que um homem não conheça a verdade

do que fala ou escreve, e chegue a ser capaz de definir cada conceito por si mesmo, e

definindo-o, saiba dividi-lo de novo, segundo formas, até atingir a sua unidade indivisível,

[…]” (Priìn aÃn tij to/ te a)lhqe\j e(k a/stwn ei¹dv= pe/ri wÒn le/gei hÄ gra/fei, kat'

au)to/ te pa=n o(ri¿zesqai dunato\j ge/nhtai, o(risa/meno/j te pa/lin kat' eiãdh

me/xri tou= a)tmh/tou te/mnein e)pisthqv, 277b5-8)65. Platão explicita que o processo de

divisão tem um limite e esse limite é a definição correta de x. Essa definição marca sua

simplicidade, porque não permite seguir com as divisões para chegar a novas definições. A

expressão me/xri tou= a)tmh/tou designa a divisão que não pode seguir sendo dividida,

trata-se de uma divisão indivisa, que constitui a unidade de x. Em suma, dividir conceitos

de acordo com as junturas de suas formas até chegar à definição correta de x consiste em

identificar as semelhanças exatas entre x e outros conceitos até conhecer a máxima

simplicidade ou unidade indivisível de x (me/xri tou= a)tmh/tou), a qual está determinada

pela função de sua forma.

65 As itálicas são minhas.

94
Uma coisa é saber que é necessário dividir de acordo com as junturas naturais e outra

coisa é saber como fazer para dividir de acordo com essas junturas. A pergunta, como como

opera o procedimento de divisão?, ainda não foi respondida. A primeira parte do parágrafo

265e1-266b1 descreve em que consiste a divisão metodológica, entanto que a segunda parte

descreve, através de uma analogia, como se divide.

A partir da linha 265e3, Platão usa uma analogia para descrever como se divide de

acordo com as junturas das formas. A analogia tem a seguinte estrutura:

Assim como A = a1 um corpo a 2 tem naturalmente pares de mesmo

nome, chamados sinistro e destro, igualmente, B = b1 os dois argumentos

consideraram o ˂ eiådoj ˃ da mania como eÁn eiådoj naturalmente em nós: b2

o primeiro argumento, recortando para si a parte situada do lado esquerdo, e

dividindo-a novamente, não cessou até que descobriu ali um amor chamado

sinistro e o reprendeu com toda justiça, ao passo que o segundo argumento,

tendo-nos levado às partes da mania situadas do lado direito, descobriu e

apresentou um amor de mesmo nome, mas divino, e o enalteceu como fonte

dos maiores bens para nós.

Assim como A igualmente B

Assim como a1 e a 2 igualmente b1 e b2

Essa analogia compara: A a 1 a constituição de um corpo e a2 como é preciso dividi-

lo de acordo com sua constituição com B b1 a mania, que é a mi¿a i¹de/a do amor

estabelecida nos dois argumentos de Sócrates, e b2 como é preciso dividi-la de acordo com

sua forma. Um corpo está composto por muitos membros e o corpo como um todo é comum

95
a seus membros. Então, como se separa algum dos membros de um corpo sem causar

roturas? Tomemos algum dos membros de um corpo, por exemplo, um braço no caso de

um corpo humano. Antes de dividi-lo é preciso advertir que um corpo não tem somente um

braço, um corpo tem dois braços e, do mesmo modo, tem todos os seus membros em pares,

os situados do lado esquerdo (skaio/j) e os situados do lado direito (decia/), levando o

mesmo nome. Em primeiro lugar, procede-se a recortar os membros do lado esquerdo até

chegar ao braço esquerdo e, em segundo lugar, procede-se a recortar as partes situadas à

direita até chegar ao braço direito do corpo. Do mesmo jeito, tomemos a parte da mania

que Sócrates pretende definir, i.e. o amor. Num sentido analógico, a mania tem duas partes

que poderiam ser o amor. Um primeiro argumento procede a recortar as partes sinistras da

mania, entre as quais está um amor sinistro (skaio/n tina eÃrwta) que é preciso reprender

com toda a razão; e um segundo argumento procede a recortar as partes destras até chegar

a um amor divino (qeiÍon tina eÃrwta), digno dos maiores elogios.

A analogia descreve como Sócrates procedeu a dividir em seus dois argumentos

sobre o amor (twÜ lo/gw, o( me\n […] o( d' […]), com o fim de estabelecer a definição

correta de amor. Embora a analogia está circunscrita a esse caso particular, podemos inferir

que se procede a dividir de maneira análoga em qualquer caso. Repito, antes de tudo, que

o fim do procedimento de divisão é estabelecer a definição correta de x. Para isso, divide-

se a mi¿a i¹de/a de x em duas partes, uma parte é denominada sinistra (skaio/j) e a outra

é denominada destra (decia/), para determinar a qual dessas duas partes pertence x e, assim,

estabelecer sua definição correta. Os termos sinistro e destro aludem a duas partes que são

opostas, porque basta com que uma parte seja sinistra para que não seja destra e vice-versa.

É, por isso, se x pertence à parte sinistra de sua mi¿a iãdea, então essa parte chega ao que é

96
x e, assim, constitui sua definição correta; de outro modo, se x não pertence à parte sinistra

de sua mi¿a i¹de/a, então essa parte chega ao que não é x e, assim, constitui sua definição

incorreta.

Cada uma das partes da mi¿a i¹de/a de x às que poderia pertencer x é examinada

através de um argumento. As partes da mi¿a i¹de/a de x que estão em relação a x

caracterizam-se por ser uma sinistra e a outra destra, quer dizer, que caracterizam-se por ser

opostas. Por consequência, os argumentos que examinam cada uma dessas partes são

opostos. Cada argumento consiste em examinar se o que se segue de estabelecer de modo

provisional que x é certa parte de sua mi¿a i¹de/a é consistente com o estabelecido, com o

fim de provar se essa parte constitui a definição correta de x. Se um argumento examina que

o que se segue de estabelecer uma definição de x é contraditório com essa definição, então

esse argumento refutará essa definição. A esse argumento denominei argumento

refutatório. Ao contrário, se um argumento examina que o que se segue de estabelecer uma

definição de x é consistente com essa definição, então esse argumento provará essa

definição. A esse argumento denominei argumento probatório.

O procedimento de divisão necessita argumentar os dois lados da mi¿a i¹de/a de x em

relação ao que é x; porque, para saber de modo conclusivo o que é x, é necessário saber o

que não é x. Seu modus operandi é semelhante à confrontação de argumentos opostos sobre

um mesmo caso judicial num tribunal, para determinar qual desses argumentos se adequa à

verdade dos acontecimentos. Para conhecer o ser de x é necessário argumentar o que é e o

que não é x; pois, do contrário, se poderia confundir a x com um conceito que tem muitas

semelhanças com x, mas não é x, já que não é similar a sua forma. Somente através de um

97
método que exija examinar os dois lados de um mesmo assunto, se poderá determinar qual

deles adequa-se à verdade.

Os argumentos opostos são contraditórios ou contrários. Os argumentos opostos

contraditórios são necessariamente um argumento refutatório e um argumento probatório,

porque cada um deles examina uma das definições opostas contraditórias de x e

necessariamente uma dessas definições é a definição correta de x. Os argumentos opostos

contrários são ou os dois argumentos refutatórios ou um probatório e o outro refutatório,

porque cada um deles examina uma das definições opostas contrárias de x e essas duas

definições podem ser incorretas ou uma delas pode ser correta. Os argumentos de Sócrates

sobre o amor são argumentos opostos contraditórios, porque as partes opostas da mania a

respeito do que é amor são “a mania prejudicial” e “a mania benéfica”. Não há

intermediários entre o prejudicial e o benéfico, pois negar que x é prejudicial é igual a

afirmar que x é benéfico.

Em síntese, a diai¿resij do método testa a consistência lógica das partes opostas

da mi¿a i¹de/a de x às que poderia pertencer x. Se as respectivas divisões de uma de suas

partes levam à contradições, então essa parte deve ser recusada. Se as divisões de sua outra

parte não levam à contradições, então essa parte deve ser aceita. A divisão metodológica de

x em duas partes opostas, no que é x e no que não é x, não deve ser confundida com as

divisões que se fazem para examinar a consistência lógica de cada parte. A expressão kat'

aÃrqra v pe/fuken constitui um princípio de similaridade que regula que o método atinja

a seu fim, pois vincula os aspectos epistemológico e ontológico e, assim, regula que nossa

análise conceitual expressada através do logos seja similar à realidade.

Aplicação da diai¿resij do Método exposto no Fedro

98
Na primeira parte do Fedro, Sócrates compõe dois argumentos sobre o amor e, na

segunda parte, esses argumentos são retomados varias vezes para mostrar como neles se usa

o duplo procedimento (cf. 262c; 263c-d; 264e-265d). A passagem imediatamente anterior ao

parágrafo da descrição do método recupera os dois argumentos de Sócrates, com o propósito

de assinalar que, pese aos dois argumentos ser contrários, com eles se passa da censura ao

elogio do amor. Para responder a como se dá esse passo, Platão introduz a descrição do

duplo procedimento metodológico: o procedimento de reunião e o procedimento de divisão

(264e7-265d1). O parágrafo da descrição do método alude aos dois argumentos de Sócrates

(twÜ lo/gw, 265e3), com o fim de ilustrar através de uma analogia como opera o método. Não

obstante, a pesar de que esse parágrafo descreve em que consiste o duplo procedimento

metodológico, não descreve detalhadamente como procede. Embora a analogia é uma

tentativa por descrever o como, sua compreensão depende dos dois argumentos sobre o

amor, expostos por Sócrates em (237b-257b).

Com o propósito de esclarecer como se usa o método de divisão, analisarei as

premissas e a estrutura lógica dos dois argumentos sobre o amor expostos por Sócrates.

Esses argumentos, considerados exclusivamente como aplicação do método de divisão, me

permitirám interpretar a analogia com clareza e, assim, entender como os procedimentos de

reunião e divisão operam passo a passo. No capítulo II, analisei a parte I do primeiro

argumento de Sócrates, que constitui a parte relativa ao procedimento de reunião. No que

segue, a parte II desse argumento, cuja estrutura e premissas representam um caso de

argumento refutatório; e, todo o segundo argumento de Sócrates, oposto ao primeiro pese

a tratar sobre o mesmo assunto, cuja estrutura e premissas representam um caso de

argumento probatório. Finalmente, interpretarei a analogia à luz dessa análise e defenderei

a seguinte tese: a divisão metodológica é uma divisão dicotômica e homônima.

99
No exórdio à argumentação sobre o amor esbouçam-se dois princípios

metodológicos: o princípio da definição (I) e o princípio da resolução do que é o amor (II),

que equivalem aos procedimentos metodológicos de reunião e divisão respectivamente.66

Agora me interessa apresentar a formulação do princípio (II), que simplifica a descrição

posterior do procedimento de divisão:

III) Ter em mente a definição acordada como ponto de referência na medida que

se examina o amor é ou benéfico ou prejudicial (ei¹j tou=to [o(mologi¿# qe/menoi

oÀron] a)poble/pontej kaiì a)nafe/rontej th\n ske/yin poiw¯meqa eiãte w©feli¿an

eiãte bla/bhn pare/xei, 237d1-3).

Ao início da parte II do primeiro argumento de Sócrates volta-se a mencionar o

princípio (II): “Nós dissemos e definimos o que é aquilo sobre o que temos que argumentar

e, com essa definição em mente, digamos o restante, que beneficio ou prejuízo pode esperar-

se que proceda do que ama e do que não ao que lhes concede favores” (238d8-e2). Entretanto

a parte I do primeiro argumento de Sócrates estabelece uma definição de comum acordo, a

parte II desse argumento e o segundo argumento de Sócrates examinam o que se segue da

parte I. Examinar o que se segue de uma definição de amor quer dizer examinar se essa

definição ou sua definição oposta é consistente com o que é o amor. A seguir exponho as

premissas da parte II do primeiro argumento:

P11 Quem ama deseja obter de seu amado o que lhe seja mais prazenteiro (238e3-4).

66 No capítulo I faço uma exposição dos princípios metodológicos referidos em 237b7-d3.

100
P12 Todo o prazenteiro para quem ama é o que não é igual ou superior a ele (238e4-

5).

P13 Quem ama não está disposto a aceitar que o objeto de seu amor seja igual ou

superior a ele; de outro modo, o torna sempre mais débil e inferior (239a1-2).

P14 O homem ignorante é inferior ao sábio (hÀttwn a)maqh\j sofou), o cobarde ao

valente, o inexperiente para falar ao retórico e o lerdo ao ágil (239a2-4).

P15 Quem ama se deleitará necessariamente quando encontre esses maus intelectuais

e muitos mais, já sejam inatos ou adquiridos, em seu amado (239a4-7).

P16 Quem ama será ciumento e impedirá que seu amado participe em associações

proveitosas, causando-lhe o maior prejuízo porque o afasta da associação que o tornaria

mais sábio e, assim, melhor homem (239e7-b3).

P17 A associação da divina filosofia (h( qei¿a filosofi¿a) é a associação mediante

a qual um homem chega a ser sábio (239b2-4).

P18 O maior prejuízo é a completa ignorância e a completa dependência intelectual

(239b6-8).

P19 Quem ama busca que o físico de seu amado seja delicado e não fornido, o qual

contribui a que ele seja temeroso e falto de coragem (239c3-d7).

P20 Quem ama preferirá que seu amado esteja despossado de bens materiais e

privado de outras relações afetivas (239d8-240a8).

C Amar é prejudicial porque prejudica as propriedades do amado, sua condição

física e, em maior medida, a formação de sua alma; ergo, jamais se deve conceder favores

101
a quem ama, que está necessariamente despossuído de bom juízo, longe disso se deve

conceder favores a quem não ama e tem bom juízo (241b5-c5).

Isto posto, testarei se, de fato, P11 a P20 são consistentes com a definição de amor

que se estabelece de P1 a P1067. Me referirei à definição de amor estabelecida como ponto

de partida da argumentação de Sócrates com a sigla Def.A1. Essa definição estabelece o

seguinte: O amor é um de nossos desejos prazenteiros irracionais e seu objeto de desejo é

um homem belo. Sócrates afirma que o objeto do amor está cheio de maus intelectuais como

a ignorância e a cobardia, e maus físicos como a debilidade corporal, além de estar privado

de bens materiais e amigos (P15, P16, P19, P20). Pois, quem ama procura um homem com tais

características e impede a esse homem adquirir bens, afastando-o assim de reuniões

proveitosas para sua própria formação física e intelectual (P16). As coisas más são coisas

feias entanto que as coisas boas são coisas belas. Convém dizer que o Fedro de Platão sugere

uma estreita conexão entre o belo e o bom, ainda que algumas vezes se oponha certo tipo

de beleza prazenteira ao bem. Rowe (1988) assinala o seguinte: “Plato frequently suggests

a close connection, if not an actual identity, between the classes of beautiful things and of

good things, i.e. good for us (cf. e.g. Symposium 201 c 2, with Dover’s note); and he tends

to treat it as a simples fact about human beings that all desire the good (e.g. Republic 505 d

11)” (Rowe, 1988: 155). Assim, se um homem está cheio dessas más características, então é

um homem mau. E, se quem ama procura um homem com essas más características, então

seu objeto de desejo é uma coisa má. Falta dizer, seguindo P12 e P13, que o desejo de quem

ama será mais prazenteiro entre maiores sejam as características más de seu amado. No

entanto, afirmar que o objeto de desejo é um homem ignorante, débil e cobarde é

contraditório com o objeto de desejo da Def.A1.

67 Veja a aplicação do procedimento de reunião exposta no capítulo II.

102
Em P18 afirma-se que o maior prejuízo para um homem é a completa ignorância, o

que implica que seu maior beneficio é a sabedoria. Portanto, o amado está privado de seu

maior beneficio. Daqui se segue que quem ama não se dirige ao maior bem. Em P17

pressupõe-se que a divina filosofia é o meio para chegar a ser sábio. Aqui o termo filosofia

não tem o sentido técnico platónico e deve ser entendido como foi usado no século IV a.n.e.,

cujo uso restringe-se a seu sentido etimológico, sendo a filosofia o amor à sabedoria, quer

dizer, amor ao exercício do intelecto. E, aqui, o termo ‘divina’ é um adjetivo que tem o uso

convencional de enaltecer, qualificando assim à filosofia. 68 Daqui se segue que a filosofia é


69
um tipo de amor e a filosofia enquanto exercício intelectual é racional. No entanto,

segundo Def.A1, o amor é um tipo de lascívia, ergo, o amor é irracional70. Desse modo,

afirmar que a filosofia é um desejo racional é contraditório com definir o amor como desejo

irracional.

O primeiro argumento de Sócrates é um caso de argumento refutatório. Um

argumento refutatório consiste em provar a negação da definição estabelecida como ponto

de partida desse argumento. No contexto argumentativo do Fedro, o que se segue da Def.A1

é contraditório com essa definição, logo, é necessário negar e recusar essa definição.

O ponto de partida do primeiro argumento de Sócrates é a Def.A1: o amor é um

desejo prazenteiro irracional por um objeto belo (h( aÃneu o/gou e)piqumi¿a pró\j h(donh\n

a)xqeiÍsa ka/llouj, 238b7-c1), além do pressuposto aceito por Lísias: aquele que ama está

mais enfermo que aquele que não ama. Uma vez estabelece-se que a mi¿a i¹de/a do amor é

o desejo, o amor é definido como um desejo irracional. Entre os gregos é geralmente aceito

68
Veja De Vries (1969: 91); Rowe (1988: 159).
69
A esse respeito Sallis afirma o seguinte: “Philosophy, by the very word, is a kind of love – at least, a kind of
philia if not of eros ” (1996: 127).
70 Veja capítulo II, P , P e P
6 7 10.

103
que um desejo irracional é um desejo despossuído de bom juízo e o que carece de bom juízo

é prejudicial, logo, o desejo apetitivo é prejudicial. Essa definição de amor é precisamente

controversa; porque, para muitas pessoas e, entre elas, para os antigos sábios o amor é um

desejo benéfico. É por isso que Sócrates propõe-se examinar se o amor é um desejo

prejudicial. Seu exame, que vai de P11 a P20 incorre numa contradição de termos e

definições. Pois, a definição de x está dada pelo “objeto” sobre o que está e a capacidade

que tem (oiâo/n t' eÃsti kaiì hÁn eÃxei du/namin, 237c8-d1). A filosofia é por definição um

tipo de amor cujo objeto de desejo é a sabedoria. No entanto, segundo Def.A1, o amor é um

desejo irracional cujo objeto de desejo é o que aparece a nossos olhos como belo. A

capacidade e o “objeto” sobre o que está a filosofia são contraditórios com a capacidade e

o “objeto” sobre o que está o amor. Por consequência, define-se o amor como um desejo

prazenteiro irracional por um objeto que não é belo; mas, o fato de que a filosofia seja um

tipo de amor, leva a afirmar que o amor é um desejo prazenteiro racional por um objeto i.e.

realmente belo (Def.A1 e ¬ Def.A1). Essa fragrante contradição introduz a negação de Def.A1

e, de passo, refuta que o amor seja um desejo prejudicial.

Sócrates menciona, perto de 241a, um par de opostos: “bom juízo e moderação

contra amor e mania” (nou=n kaiì swfrosu/nhn a)nt' eÃrwtoj kaiì mani¿aj, 241a3-4)71.

Bom juízo opõe-se a amor e moderação opõe-se a mania. Na parte I desse argumento, a

moderação opôs-se à lascívia (uÀbrij), a primeira é racional e a segunda irracional. Se agora

a oposição é entre moderação e mania, o mais plausível é pensar que Sócrates substituiu o

termo uÀbrij pelo termo mani¿a, concebendo a mania como mania irracional.

71 Nessa passagem se introduz o termo mani¿a por primeira vez no Fedro.

104
As premissas P11 a P20 correspondem a um primeiro passo do procedimento de

divisão. Como já disse, o procedimento de divisão testa a consistência lógica das partes

opostas da mi¿a i¹de/a de x que poderiam constituir o que é x. Neste caso, Sócrates testa a

consistência dos opostos do desejo, melhor, da mania, que poderiam constituir o que é x.

Para isso, em seu primeiro argumento, que expus de P1 a P20, Sócrates define o amor como

um desejo prejudicial (parte I) e examina que o que se segue dessa definição a contradisse,

o que o leva a refutar essa definição. Em seu segundo argumento examina a consistência da

definição oposta de amor, i.e. o amor é um desejo benéfico. Dado que prejudicial e benéfico

são opostos contraditórios, se se nega que o amor seja um desejo prejudicial,

necessariamente o amor será um desejo benéfico. Mas, por que não é suficiente para

Sócrates com estabelecer a definição oposta de amor? Por que é preciso prová-la? Porque o

procedimento de divisão procede a argumentar dialeticamente. Não se pode estabelecer de

modo conclusivo a definição correta de amor se somente se argumenta um de seus dois

lados, de modo que é necessário argumentar ambos os lados.

No que segue exponho as premissas do segundo argumento de Sócrates:

P1’ Se a mania fosse simplesmente um mau, então o amor seria algo prejudicial

(244a3-6).

P2’ Mas não é o caso que a mania seja sempre um mau, porque os maiores dos bens

chegam a nós através da mania dada por dom divino (ta\ me/gista tw½n a)gaqw½n h(miÍn

gi¿gnetai dia\ mani¿aj, qei¿# me/ntoi do/sei didome/nhj, 244a7-8).

P3’ A mântica é a belíssima arte de predizer o futuro por inspiração divina (244b1-

c4).

105
P4’ A oionística é o questionamento do futuro que fazem os homens que têm bom

juízo, por meio de aves e outros signos (244c5-d1).

P5’ A mania enviada pelos deuses é melhor que a moderação adquirida pelos

homens, porque a mântica é mais completa e mais digna de valor que a oionística tanto por

seu nome quanto por seus efeitos (244d2-5).

P6’ A mania aparece quando se manifestam as mais grandes enfermidades e

sofrimentos em certas famílias, as quais procedem de alguma antiga cólera divina, e age

como intérprete para encontrar os meios necessários de cura, tais como as pregarias e o culto

aos deuses, assim liberando a quem está retamente maníaco e possuído (244d5-e5).

P7’ A terceira forma de possessão e mania provê das Musas, toma uma alma virgem

e a acorda a um frenesi báquico de expressão na lírica e outras formas da poesia, para

glorificar os inumeráveis atos do passado e, assim, educar às futuras gerações (245a1-5).

P8’ O poeta sem a mania das Musas, persuadido de que sua arte é suficiente para ser

um bom poeta, será um poeta incompleto e sua poesia da moderação será eclipsada pela

poesia da mania (245a5-8).

P9’ Todos os anteriores são os bons efeitos da mania proveniente dos deuses (245b1-

2).

P10’ Permita-se levar o premio da vitória se prova que o amor enviado pelos deuses

não é benéfico (245b4-6).

P11’ Devemos provar o oposto (h(miÍn a)podeikte/on auÅ tou)nanti¿on), que a mania

é dada pelos deuses para que atinjamos a maior felicidade (245b7-c2).

106
No primeiro argumento de Sócrates, o amor faz parte da lascívia (uÀbrij) e, pese a

não ser explícito, é admissível pensar que a lascívia é uma parte do desejo (e)p iqumi¿a)72.

Ao contrário, no segundo argumento, o amor faz parte da mania (mani¿a). Por que o amor

deixa de ser desejo e passa a ser mania? Desde o início do segundo argumento se usa o

termo mani¿a73 e não se volta a usar os termos e)p iqumi¿a e uÀbrij. Embora o termo mani¿a

aparece por primeira vez ao final do primeiro argumento, se introduz como substituto do

termo uÀbrij, já que com ele alude-se ao oposto da moderação. Talvez essa substituição

terminológica deva-se à retratação de Sócrates quando revela que o amor é algo divino (ti

qeiÍon, 242e2-3) e, então, o termo mais apropriado para referir-se a algo divino não é desejo,

mas mania.

Perto a 242e, Sócrates manifesta que é preciso fazer uma palinódia para retratar-se

da censura a Eros, tal como Estesícoro o fez depois de censurar a Helena; porque, se Eros

é, como de fato é, um deus o algo divino, não poderia ser nada mau (ei¹ d' eÃstin, wÐsper

ouÅn eÃsti, qeo\j hà ti qeiÍon o( ãErwj, ou)de\n aÄn kako\n eiãh, 242e2-3). Portanto, o amor

72
Hackforth oferece um comentário sobre isso: “It is not said that uÀb rij is a kind of e)piqumi¿a: rather it is
the name of that psychical state which results from the victory of irrational desire for pleasure over rational
belief, which aims at good; nevertheless the connexion of uÀbrij with e)piqumi¿a is so close that the speaker
treats the species of the one as species of the other, and in the end arrives at a definition of love which, as were
led to expect at the outset, makes it a kind of desire, and carefully states its specific difference” (1952: 40-41).
73
Nem sequer há uniformidade nos termos usados na analogia do parágrafo descritivo do método, nela o
conceito genérico de mania é expresso de três modos diferentes: to\ aÃfron th=j dianoi¿aj (265e3-4),
paranoi¿a (266a2) e mani¿a (266a6). Hackforth manifesta que apesar da variedade de termos gregos para
referir-se ao conceito de mania, o sentido entre uns e outros é muito similar, pelo que podemos dizer que
Platão consolida uma relação entre a mania, entendendo-a em sua concepção mais geral de perturbação
anímica, e o amor: “It should further be remembered that the word mani¿a did occur in Socrate's first speech,
although more or less casually: the lover whose passion was spent was described as metabalwÜn aÃllon
aÃrxonta e)n au(t%½ kaiì prosta/thn, nou=n kaiì swfrosu/nhn a)nt' eÃrwtoj kaiì mani¿aj (241a).
Moreover, when introducing his palinode Socrates has said ou)k eÃst' eÃtumoj o/goj oÁj aÄn paro/ntoj
e)rastou= t%½ mh\ e)rw½nti ma=llon fv= deiÍn xari¿zesqai, dio/ti dh\ o( me\n mai¿netai, o( de\ swfroneiÍ
(244a). These passages, taken in conjunction with our present passage, will justify a belief that the conception
of mani¿a as the genus of eÃrwj was present in Plato's mind from outset of the dialogue” (1952: 133-134).

107
é uma parte de nossa mania divina. Agora é preciso esclarecer estas questões: por que nós

somos divinos? Como se explica nossa dupla natureza humana e divina? Em que consiste

nosso lado divino? E, o que faz divino ao amor?

A partir de P1’ e P2’ conclui-se que há dois tipos de mania: a mania prejudicial e a

mania proveniente dos deuses ou a mania divina (qei¿a mani¿a)74. Em P2’ afirma-se que a

mania divina é a que gera nossos maiores bens e em P11’ afirma-se que a mania divina nos

permite atingir à maior felicidade. No primeiro argumento refutou-se que o amor seja uma

mania prejudicial. Portanto, o amor é necessariamente uma mania divina. Essa última

afirmação constitui a definição de amor da qual parte o segundo argumento, a ela me

referirei com a sigla Def.A2.

As três partes da mania nomeadas de P3’ a P8’ fazem parte de seu lado divino e

surtem belos efeitos, tal como é referido em P9’. Antes de examinar o dito nessas premissas,

é preciso questionar se essas partes junto com o amor representam ou não uma divisão

exaustiva das partes da mania divina. Considero que para estabelecer a característica

distintiva do amor não é necessário enumerar e distinguir todas as partes do conceito de

mania divina que estão em correspondência com todas as partes de sua forma. Além disso,

pode-se errar na enumeração das partes de um conceito, como aconteceu no primeiro

argumento, quando se enumerou ao amor como uma das partes do desejo lascivo.

Em P3’ enumera-se a mântica (mantika/), uma das formas divinas da mania. A

mântica é uma arte de adivinhação por inspiração divina. Essa arte é praticada pelas

sacerdotisas de Delfos, que oferecem muitos e belos serviços às pessoas da Hélade. Em P4’

afirma-se que a oionística é uma adivinhação feita por homens de bom juízo. Tanto a

74Platão refere-se à mania divina com os termos qei¿a mani¿a (244a6-7, 244d4, 245b1-2) e e)nqousia/zwn
(241e5, 249d2, 249e1, 263d2).

108
mântica quanto a oionística são práticas divinatórias benéficas baseadas na razão, mas a

oionística carece de inspiração divina e, por isso, ajuda-se de augúrios como o voo das aves,

o fogo, etecetera. Com P5’ conclui-se que a mania divina é melhor que a moderação humana,

assim como a mântica é mais completa e perfeita que a oionística, pois seu nome e os

serviços emprestados são melhores. Portanto, a oionística não faz parte da mania porque é

racional, mas não divina; tampouco faz parte do desejo porque é humana, mas não

irracional. A oionística é uma prática humana racional e, assim, faz parte da moderação.

Em P6’ enumera-se uma forma particular de mania (h( mani¿a… profhteu/sasa),

uma arte curativa das exaltações, perturbações e outras enfermidades anímicas, através da

interpretação da divindade. Essa arte é revelada às vítimas frenéticas para que cheguem a

ser intérpretes dos deuses, servindo-se de pregarias e ritos. Hackforth diz o seguinte: “The

second type of qei¿a mani¿a is that which effects the care of sickness by means of

'purifications and rites' discovered by, or rather revealed to, the sufferer; the frenzy is

conceived as at once the climax of the malady and the source of healing. This is really a

particular sort of divination, as Socrates indicates by the words h( mani¿a …

profhteu/sasa” (1952: 59).

Em P7’ enumera-se a poesia das Musas (Mousw½n poihtiko/j), uma criação

artística dada por inspiração divina. Em P8’ refere-se à poesia que se faz sem estar em

possessão das Musas (aÃneu mani¿aj Mousw½n ). A primeira é parte da mania e a segunda

é parte da moderação. Para ser poeta é necessário conhecer a técnica para compor frases,

mas para ser um bom poeta isso não é suficiente, também se necessita estar inspirado pelas

Musas. É por isso que uma obra de arte criada por um poeta com bom juízo é ofuscada por

109
uma obra de arte de um poeta possuído. Portanto, a poesia da moderação será incompleta e

inferior à mania poética.

Ambas, mania divina e moderação, são benéficas. No entanto, sua diferença é a

diferença que há entre a mântica e a oionística, entre a poesia que está em possessão das

Musas e a poesia que não está em possessão das Musas, simplesmente uma é divina e a

outra é humana. Essa diferença determina que a moderação dá-nos mesquinhos bens mortais

(cf. 256e4-6) e a mania divina o maior de nossos bens (cf. 245b-c, 249e). Por essa razão, afirma-

se que a mania divina é melhor e mais completa que a moderação. A mania divina opõe-se

ao desejo lascivo, entanto que a moderação está em meio delas. Não é desejo lascivo porque

é benéfica, mas ainda assim falta algo para que seja divina. O amor está situado do lado

divino da mania e junto com a mântica e a poesia das Musas, por isso o amante com bom

juízo é melhor que o não amante com bom juízo.

No segundo argumento prova-se o oposto (a)podeikte/on auÅ tou)nanti¿on, 245b7):

a mania é dada pelos deuses para que atinjamos à maior felicidade (e)p' eu)tuxi¿# tv=

megi¿stv para\ qew½n h( toiau/th mani¿a di¿dotai, 245b7-c1). Nenhuma das formas de

mania enumeradas: mântica, poesia e a forma particular de mania mencionada em P6’,

corresponde à forma de mania que nos leva à maior felicidade. O amor é definido como

uma mania divina, mas não é nenhuma dessas três formas. De modo que no segundo

argumento se provará se o amor é a mania que nos leva à maior felicidade. Para isso se

precisa dar resposta às questões por que e como somos divinos.

110
A prova inicia com o argumento da imortalidade da alma (245c-246a)75, que

responde a por que somos divinos , mais especificamente, a por que a psique76 é divina. É

evidente para todos que os deuses são divinos, mas não acontece o mesmo a respeito de

nossa condição divina. Por isso é necessário, antes de tudo, provar se há uma característica

idêntica a homens e a deuses, do que se seguiria que nós somos, em certo sentido, divinos.

O argumento 245c-246a conclui que a alma, seja humana ou divina, é imortal; então, nós

somos, em certo sentido, divinos. Esse argumento deve ser de um tom incontrovertível, pois

se fosse posto em dúvida, não se poderia prosseguir. Por essa razão, ele constitui o ponto de

partida ou o princípio da prova (a)rxh\ de\ a)podei¿cewj hÀde, 245c4)77.

Sócrates dá-lhe ao argumento da imortalidade da alma um tratamento muito preciso

e parco, manifesto em sua clareza e perspicácia lógica, sequencia bem entrelaçada,

repetições cuidadosas, uso de partículas lógicas e privação de narrações alegóricas; que

contrasta com o tratamento dado aos outros argumentos da prova, como por exemplo o

dado à alegoria da biga alada que vem imediatamente depois, manifesto em sua imprecisão,

linguagem florida, figuras metafóricas e variedade de matizes. Essas diferenças estilísticas

levaram a alguns comentaristas a considerar o argumento da imortalidade da alma mais

importante que os outros argumentos, o único realmente filosófico de toda a prova, e a

75 O argumento da imortalidade da alma apresentado no Fedro é influenciado pelo argumento proposto pelo
pitagórico Alcmeão de Crotona. Aristóteles introduz o argumento de Alcmeão em Sobre a Alma‫ ׃‬fhsiì ga\r
au)th\n a)qa/naton eiånai dia\ to\ e)oike/nai toiÍj a)qana/toij: tou=to d' u(pa/rxein au)tv= w¨j a)eiì
kinoume/nv: kineiÍsqai ga\r kaiì ta\ qeiÍa pa/nta sunexw½j a)ei¿, selh/nhn, hÀlion, tou\j a)ste/raj
kaiì to\n ou)rano\n oÀlon (An. 405a30-b1 = D.K. Fr. Vors. 24, A 12). Segundo W.K.C. Guthrie, Platão toma
a Alcmeão como seu ponto de partida, mas aperfeiçoa o argumento e o expõe mais logicamente. Alcmeão
baseia-se com certa ingenuidade na analogia com os corpos celestes. A principal melhora em relação a
Alcmeão é a distinção entre o que se move a si mesmo e o que é movido por outro (cf. Hist. Gr. Philos. I,
351). Sobre a relação entre ambos os argumentos e a influencia do argumento do pitagórico no argumento de
Platão veja J. Barnes (1982: pp. 116-20). Também veja Hackforth (1952: 68); De Vries (1969: 120-21).
76 Seguindo a Julia Annas (1981:6), na obra de Platão nossa alma ou a psique faz referencia a nós ou aos

homens. Para ele não há diferença essencial entre o homem e a alma humana, já que o homem é por excelência
sua alma.
77
De Vries comenta que em 245c4 o termo a)rxh \ é usado em uma conotação filosófica, cujo significado é
“começo” ou “ponto de partida”; e o termo hÀde denota o que chega a ser (1969: 20).

111
concentrar um interesse intrínseco nele, até o ponto de estudá-lo como uma porção de lógica

isolada. A meu ver, não há um argumento mais importante que o outro, cada um deles

cumpre uma função argumentativa diferente de acordo com seus propósitos e a parte

ocupada ao interior da prova. O argumento da imortalidade da alma na medida em que é o

ponto de partida da prova precisa consolidar-se como um argumento não controverso;

entretanto, a alegoria da biga alada tem como propósito argumentar a que se parece a

natureza da alma (%Ò eÃoiken) e não o que ela é (oiâon e)sti), já que isto requereria outro

tipo de exposição.78 No que segue reconstruo o argumento da imortalidade da alma:

P12’ O que move a outro e é movido por outro, quando cessa de mover-se, cessa de

viver (245c5-7).

P13’ O que se move a si mesmo não cessa de mover-se, porque não pode deixar de

ser si mesmo (245c7-8).

P14’ O que se move a si mesmo é diferente do que é movido por outro (Premissa

Implícita).

P15’ O que se move a si mesmo é o princípio do movimento do que se move (245c8-

9).

P16’ Um princípio é algo que não pode chegar a ser desde outra coisa, porque todo o

que chega a ser o faz desde um princípio e, se um princípio chegasse a ser desde outra coisa,

então não poderia fazê-lo desde um princípio (245cd1-3).

78 A esse respeito veja R. Bett (1986‫ ׃‬2-3).

112
P17’ O que não chega a ser não pode deixar de ser, porque se um princípio deixasse

de ser, então jamais teria chegado a ser desde outra coisa nem outra coisa desde ele (245d3-

6).

P18’ O que não chega a ser nem deixa de ser é o que se move a si mesmo (Conclusão

implícita).

P19’ Portanto, o princípio do movimento é o que se move a si mesmo (245d6-7).

P20’ Imortal é o que não chega a ser nem deixa de ser (Def. Inmortal).

P21’ O que se move a si mesmo é imortal (245e2-3).

P22’ Um movente que tem seu princípio de movimento fora de si é um movente sem

alma, mas um movente que tem seu princípio de movimento em si mesmo é um movente

com alma (245e4-6).

P23’ A alma é o princípio do movimento do que se move (245e4-6).

P24’ A alma não é outra coisa que o que se move a si mesmo (245e7-246a1).

C A alma é imortal (246a1-2).

A estrutura básica do argumento da imortalidade da alma está constituída por duas

premissas e uma conclusão:

1) O que se move a si mesmo é imortal.

2) A alma é o que se move a si mesmo.

Por conseguinte, 3) A alma é imortal.79

79J.Ackrill refere essa estrutura para assim sintetizar todo o argumento (cf. 1953: 1789). De outra parte, R.
Bett propõe uma estrutura um pouco diferente: “1) Soul is that which is its own source of motion. 2) That

113
A conclusão (3) é apresentada duas vezes, antes do argumento em 245c5 80 e ao final

do argumento em 246a1-2. A premissa maior (1) também é apresentada duas vezes, junto

com a primeira apresentação de (3) mediante a conjunção explicativa ga\r: “toda a alma é

imortal, porque o que sempre se move é imortal” (Yuxh\ pa=sà )qa/natoj. to\ ga\r

a)eiki¿nhton a)qa/naton, 245c5), e na metade do argumento ‫ “׃‬o que se move a si mesmo é

imortal” (a)qana/tou de\ pefasme/nou tou= u(f' e(autou= kinoume/nou, 245e2-3). A

premissa menor (2) aparece somente uma vez: “a alma não é outra coisa que o que se move

a si mesmo” (mh\ aÃllo ti eiånai to\ au)to\ e(auto\ kinou=n hÄ yuxh/n, 245e7-a1), que

corresponde à definição de alma. A primeira apresentação de (1) e (3) é anterior ao

desenvolvimento do argumento e simplesmente antecipa o que com ele quer-se provar,

entanto que a segunda apresentação de (1) constitui a conclusão à que chega a primeira parte

do argumento. Porém, devemos pôr em questão que as afirmações 245c5 e 245e2-3 sejam

a mesma premissa (1); pois, acaso dizer “o que sempre se move” é igual a dizer “o que se

move a si mesmo”?

Não obstante, o papiro Oxirrinco 1017 introduz uma variante à premissa (1) que

se apresenta antes do argumento: “toda a alma é imortal, porque o que se move a si mesmo

which is its own source of motion is immortal. Therefore 3) Soul is immortal” (1986: 3), pois nela a ordem
das premissas é alterada; além disso, substitui o termo meio “o que se move a si mesmo” por esse outro termo
“princípio do movimento”.
80Aqui a afirmação (3) usa a expressão “toda a alma” (Yuxh\ pa=sa), que é ambígua porque pode ser lida ou

bem coletivamente, “toda a alma é imortal”, ou bem distributivamente, “cada alma é imortal”. Estudiosos
antigos e modernos dividem-se entre uma e outra leitura. Hérmias 102, 10 refere a Posidônio (s. I a.n.e.) a
primeira leitura e a Harpocration a segunda leitura. Por outra parte, Frutiger examina o uso dado a Yuxh\
pa=sa com ou sem artigo (cf. 1930: 80). O uso com artigo (\pa=sa h( yuxh\ o h( yuxh\ pa=sa) geralmente
tem um sentido coletivo e o uso sem artigo (yuxh\ pa=sa), que é o caso da expressão de 245c5, acostuma ter
um sentido distributivo. Hackforth tem um comentário minucioso sobre o dito por Frutiger, mas ele mesmo
afirma que em alguns casos como no caso de 245c5 não se faz ênfase em um ou outro sentido, talvez ambos
sentidos são apropriados, o certo é que “the distinction between collective and distributive senses is not here
before his mind” (1952: 64). A meu ver, aqui o importante é anotar que Platão faz referência tanto a alma
divina quanto a alma humana, trate-se de todas as almas em geral ou de cada alma em particular. Concordo
com D. White quando assinala: “We know at this point that “all” must encompass both “divine and human
soul”, since Socrates indicated this distinction in his statement of the problem.” (1993: 78).

114
é imortal” (to\ ga\r a)utoki¿nhton a)qa/naton, 245c5).81 Os comentaristas adotaram uma

das duas alternativas para 245c5. L. Robin (1950) adotou a leitura do papiro, e W.D. Ross

(1953) e Ackrill (1953) a aceitaram. De outro modo, Hackforth (1952) a recusa, porque ele

considera que a premissa maior deve ser um axioma, especificamente, um eÃndocon, e a

afirmação “o que se move a si mesmo é imortal” não pode ser considerada um eÃndocon

(cf. 1952: 65). A meu ver, as expressões “o que se move a si mesmo” (to\ a)eiki¿nhton,

245c5; to\ kineiÍsqai, 245e3) e “o que sempre se move” (o\ ga\r a)eiki¿nhton a)qa/naton,

245c5) são equivalentes semanticamente e, portanto, intercambiáveis. Pouco importa qual

das duas expressões é usada na premissa 245c5, pois ambas têm o mesmo sentido

semântico. No entanto, em pró de simplificar o argumento, prefiro unificar as expressões.

Assim, a premissa (1) é repetida como conclusão da primeira parte do argumento e, o fato

de que precise encontrar apoio em outras premissas faz com que não possa ser um axioma

ou um eÃndocon. Isso me leva, de um lado, a refutar a postura de Hackforth; de outro lado,

a aderir-me à postura de Ackrill‫˝ ׃‬There is, after all, no need for the first sentence in a proof

to state an axiom; it can perfectly well express a proposition required for the main proof

though itself needing to be established by a subordinate proof˝ (1953‫׃‬278), assim como

também à postura de Zingano (2011): ˝l’argomento è in buona parte uma prova di questà

affermazione, e questo conduce in verità a confutare l’ipotesi che sia uma opinione

autorevole (eÃndocon) quella da cui l’argomento prende le mosse" (2011‫ ׃‬382).

81A maioria dos manuscritos lê “o que sempre se move” (to\ a)eiki¿nhton), e os comentários e traduções dos
antigos baseiam-se nessa leitura, como por exemplo Tusculanas I.53 de Cícero. Não obstante, o papiro de
Oxirrinco 1017 lê “o que se move a si mesmo” (to\ a)utoki¿nhton), variante que preferem alguns
comentaristas contemporâneos, pois eles defendem que “as far as the logic of the argument goes the papyrus
reading is better” Ackrill (1953: 278).

115
Por conseguinte, para provar que a alma é imortal não é suficiente com enunciar

as premissas (1) e (2), já que essas premissas não são evidentes e, por isso, devem ser

provadas. Todo o argumento consta de dois sub-argumentos, cada um dos quais prova as

premissas (1) e (2) respectivamente, e essas a sua vez apoiam a conclusão (3). O primeiro

sub-argumento vai de P12’ a P21’ e o segundo sub-argumento vai de P22’ a P24’. Ambos os

sub-argumentos são complementares e o segundo depende do primeiro.

O primeiro sub-argumento parte estabelecendo uma distinção exclusiva para aquilo

que se move. O que se move ou move-se a si mesmo o é movido por outro (P12’ a P14’).

Para explicar tal distinção requer-se apelar à noção de princípio. Duas condições são

necessárias para dizer de x que é um princípio: (a) não chegar a ser e (b) não deixar de ser.

Deixar de ser implica chegar a ser; porque, o que pode ter fim necessariamente teve começo,

de modo que (a) é condição suficiente para (b), o que não teve começo não terá fim, sempre

foi, é e será sem ter-se originado de outra coisa. Além disso, (a) tem preeminência sobre

(b), porque para deixar de ser primeiro é preciso chegar a ser. Se x não satisfaz (a) e (b) ou

somente satisfaz (b), então x não é um princípio. Se x satisfaz (a) e (b), então x é um princípio

(P16’ e P17’). Pressuponha-se agora que x é aquilo que se move a si mesmo. O que se move

a si mesmo não pode deixar de mover-se, porque fazê-lo seria deixar de ser o que é82,

aniquilar sua própria natureza e isso é contraditório. Entretanto, aquilo que é movido por

outra coisa externa a ele depende de que aquilo que o move continue movendo-o, mas nada

impede que em qualquer momento deixe de movê-lo e, por consequência, deixe de ser, se

se trata de um ser vivo se diz que deixa de viver. Noutras palavras, aquilo que se move a si

mesmo satisfaz (a) e (b) (P18’), e aquilo que é movido por outro não satisfaz ambas as

82
Segundo L.S.J. A II 1, a tradução literal de a)poleiÍpon é abandonar(se). No contexto do presente
argumento, a afirmação: to\ au(to\ kinou=n ou)k a)poleiÍpon e(auto (245c8), significa que o auto movimento
consiste em não abandonar sua essência cf. De Vries (1969: 122).

116
condições ou, ao menos, tem-se certeza de que não satisfaz (a). De maneira que aquilo que

se move a si mesmo é certamente um princípio, o princípio do movimento (P15’ e P19’).

Daqui conclui-se que aquilo que se move a si mesmo é imortal (P21’) na medida em que o

imortal é por definição o que sempre é, i.e. o que não chega ser e, por consequência, jamais

deixa de ser (P20´).

O segundo sub-argumento defende que a alma é o princípio do movimento, porque

nós dizemos que uma coisa não tem alma quando seu princípio do movimento é externo e

que uma coisa tem alma quando seu princípio do movimento é interno (P22’), o que implica

que a natureza da alma é auto movimento. O argumento anterior identificou o princípio do

movimento com aquilo que se move a si mesmo e, agora, afirma-se que a alma é a única

coisa da que dizemos que é semovente; portanto, devemos definir a alma como princípio do

movimento do que se move (P23’). Desse modo, para provar a conclusão final (C), a alma é

aquela coisa que tem natureza imortal, se precisa provar P21’ e P23’ que a sua vez constituem

premissas que apoiam todo o argumento.83 Finalmente, é preciso dizer que o começo da

prova sobre a natureza divina do amor é o argumento da imortalidade da alma, porque com

ele estabelece-se a identidade entre deuses e homens, i.e. sua condição imortal, com o firme

propósito de afirmar que temos uma parte divina. Agora falta perguntar-nos em que consiste

nossa divindade.

A prova segue com o argumento da natureza da alma humana e divina (246a-249d;

253c-257a), porque “de fato, primeiro é necessário compreender a verdade sobre a natureza

da alma, divina e humana, contemplando sus afecções e operações (deiÍ ouÅn prw½ton

yuxh=j fu/sewj pe/ri qei¿aj te kaiì a)nqrwpi¿nhj i¹do/nta pa/qh te kaiì eÃrga

83
Para aprofundar na análise e compreensão dos pormenores do argumento da imortalidade da alma sugiro os
comentários de Hérmias (1901), Hackforth (1952), Ackrill (1953), Ross (1953), Bett (1986), T. Robinson
(1971), F. Miller (2006) e Zingano (2011).

117
ta)lhqe\j noh=sai, 245c2-4), com o propósito de contrastá-las e, assim, estabelecer a

característica distintiva de nossa alma. O argumento da natureza da alma limita-se a

apresentar a que se parece a alma; pois, argumentar o que é a alma requerer uma exposição

extensa que nos afastaria do propósito final da prova e do segundo argumento de Sócrates

(cf. 246a3 ss.).

A alma se parece à união das capacidades de uma biga de cavalos e seu auriga alados

(e)oike/tw dh\ sumfu/t% duna/mei u(popte/rou zeu/gouj te kaiì h(nio/xou, 246a6-7). O

alma divina está constituída por dois cavalos e um auriga bons e alados que se elevam nas

alturas e governam o mundo inteiro; entanto que a alma humana está constituída por um

auriga que governa dois cavalos contrários, um deles é bom e alado, o outro mau e sem asas

(cf. 246a3-d5). Como essa apresentação das almas divina e humana está dada em estilo

alegórico, para compreendê-la é preciso saber que representam as capacidades dos cavalos

e o auriga em cada uma dessas almas. Comumente aceita-se que as capacidades dos cavalos

e o auriga representam as três capacidades da alma introduzidas em República IV.84 No

entanto, em República trata-se exclusivamente a natureza da alma humana. A capacidade

do auriga é a capacidade racional (logistiko/n), a capacidade do cavalo bom e alado

corresponde à capacidade do desejo racional (qumoeidh/j) e a capacidade do outro cavalo

corresponde à capacidade do desejo apetitivo (e)piqumhtiko/n).85

Segundo 270c-d, para conhecer a alma é preciso examinar se sua natureza é simples

ou composta. Em caso que seja simples examinar qual é sua função. Em caso que seja

84 Hackforth pressupõe que a análise da natureza da alma do Fedro coincide com sua análise da República:
“It is of course obvious that the charioteer with his two horses symbolises the tripartite soul familiar to us from
Rep. IV” (1952: 72; itálica mía). De igual modo, Zingano señala: “l’allegoria della bigà lata guidata dall’auriga
segue chiaramente il modello della tripartizione dell’anima introdotto nella Repubblica IV” (2011: 386; itálica
minha).
85 Veja a comparação entre República e Fedro a respeito do tema da natureza da psique em Hackforth (1952:

72-6) e White (1993: 89-93).

118
composta enumerar as partes que a compõem e examinar cada uma de suas partes como se

fosse uma forma simples. Essas considerações a respeito da natureza de uma coisa e a

afirmação de que dividimos cada alma em três partes (trixv= diei¿lomen yuxh\n

e(ka/sthn, 253c7-d1), leva-nos a inferir que a natureza da alma conhece-se dividindo-a em

partes conforme a suas funções respectivas. Portanto, a tripartição da alma responde a uma

composição ontológica em três capacidades (cf. 246a). Não se trata de três capacidades

quaisquer, mas daquelas que em certa ordem cumprem com a função própria da alma.

Repito, o argumento sobre a natureza da alma do Fedro é sucinto e alegórico. Longe

disso, o argumento sobre a natureza da alma de Rep. é longo e é exposto num estilo formal

e não simbólico. Deve-se isso a que esses diálogos têm propósitos diferentes. No Fedro esse

argumento forma parte do segundo argumento de Sócrates, com o qual se quer definir a

natureza do amor e não a natureza da alma. Porém, apresentar algumas considerações de

Rep. permite entender em que consistem as funções das três capacidades da alma e como

elas unem-se na única função que determina a unidade da alma; e, a partir disso, entender a

relação da psique e suas capacidades com a mania e o amor.

A opinião comumente aceita entre os sábios contemporâneos a Platão era que a alma

é unidade racional, de modo que eles concebiam a alma como uma capacidade que

corresponde à razão. No entanto, é um fato que em alguns casos a alma humana age contra

a razão e as considerações que nesse momento apoiavam a opinião da unidade racional da

alma não conseguiam sair avante a essa contradição. Platão oferece uma saída que consiste

em mostrar que a alma tem necessariamente mais de uma capacidade. Em Rep. IV Platão

afirma que a alma também é capacidade desiderativa, sob o pressuposto de que os desejos

são os móbiles de nossas decisões e ações, por exemplo, o desejo entendido como desejo

119
apetitivo procura satisfazer nossas paixões. Aqui convém perguntar, qual é a necessidade

de considerar uma terceira capacidade?

Em Rep. IV 437b Platão menciona que os apetites movem a alma a agir ou padecer

para satisfazê-los. O desejo apetitivo procura satisfazer paixões corporais, entre elas o

alimento, a bebida, a procriação. Até aqui temos duas capacidades: a razão e o desejo

apetitivo. O problema surge quando uma mesma alma deseja e não deseja satisfazer igual

apetite ao mesmo tempo. Alguém poderia responder que casos como “desejo beber e rejeito

a bebida que se me oferece” levam à contradição. Nesse ponto Platão esclarece que se trata

de falsas contradições, porque tais contradições obedecem ao uso ambíguo das expressões

que referem uma mesma ação. Entenderei aqui como expressão ambígua aquela que não

especifica o referente dessa ou aquela ação. Por exemplo, a expressão “desejo beber e não

beber” é ambígua porque manifesta a intencionalidade sem indicar o referente nem a

temporalidade. Quando o desejo de beber restringe-se a uma bebida específica, convém

perguntar que tipo de bebida deseja beber. Consequentemente, Platão distingue entre

desejar beber sem mais porque se tem muita sede e desejar beber um tipo de bebida; pois,

uma coisa é manifestar um desejo geral e outra coisa é manifestar um desejo particular (cf.

437b – 439b). Ainda assim, a alma com duas capacidades pode contradizer-se em casos como

o seguinte: “desejo agora beber e não beber agua”; pois, neste caso não é toda a alma, mas

sim uma de suas capacidades a que se contradiz.

As objeções mais fortes à coexistência de duas capacidades na alma procedem de

casos como o de Leôncio. O relato conta que Leôncio subia ao Pireu quando percebeu uns

cadáveres jogados do lado de um verdugo público. Leôncio experimentou o desejo de olhá-

los e a sua vez repugnância e repulsa de olhá-los. O jovem debateu-se internamente; mas,

vencido por seu desejo, abriu os olhos e correu até os cadáveres com a intenção de

120
satisfazer-se com tão belo espetáculo (cf. 439e 6 – 440a 6). No relato fica claro que a

manifestação do desejo de ver tende exatamente ao mesmo referente.

Casos como o de Leôncio são contraditórios inclusive afirmando duas capacidades

na alma. Platão deve engenhasse-as para sair avante. Ele introduz duas capacidades de

desejo diferentes, uma é o desejo apetitivo e a outra o desejo racional, cuja oposição consiste

em que o desejo apetitivo padece paixões desordenadas entanto que o desejo racional

encaminha suas afecções conforme à razão. Se consideramos duas capacidades na alma,

uma que razoa e outra que apetece colocando a alma em movimento, então as ações são

geradas somente por uma capacidade. No entanto, a alma pode agir ou não agir em

conveniência com a razão. É por isso necessário estabelecer uma capacidade desiderativa

que aja de acordo com a razão cumprindo, assim, sua função. Portanto, a saída de Platão

consiste em mostrar como almas similares à de Leôncio insultam-se a si mesmas. A ação

de Leôncio é fruto de uma oposição onde não prevaleceu a função da razão. Por isto, não é

suficiente afirmar que a alma tem uma capacidade racional e duas capacidades desiderativas

opostas, é necessário que as três cumpram sua função para, assim, a alma cumprir a função

que lhe é própria e que preserva sua unidade racional.

A função da razão consiste em deliberar sobre todas as coisas a partir do

conhecimento que tenha delas. Quando se cumpre essa função se diz que a alma é sabia. A

função do desejo racional consiste em aliar-se à razão e agir conforme a suas prescrições.

Quando se cumpre essa função a alma é denominada valente. A função do desejo apetitivo

consiste em deixar-se governar pela razão e o desejo racional, reprimindo as paixões

desordenadas. Assim, a alma que cumpre essa função é moderada. As funções da razão e o

desejo racional consistem em controlar toda a alma, a uma deliberando e a outra a

121
acompanhando e agindo conforme a suas deliberações86 (cf. 442b-d). Dessa maneira, Platão

defende a tese da unidade racional da alma. A alma tem três capacidades; mas, somente se

cada capacidade cumpre com a função que lhe é própria, a razão prevalece sobre os desejos

unificando a função tripartida da alma, i.e. deliberar em vistas ao melhor para viver bem

sem jamais insultar-se a si mesma como lhe aconteceu ao jovem Leôncio e, assim, ser feliz.

O Fedro serve-se da analogia do auriga e seu par de cavalos para explicar cada uma

das funções da alma assim como da função que a determina como tal. Perto de 253d ss.,

encontramos uma descrição detalhada do físico oposto dos cavalos, com o fim de ilustrar o

que faz bom ao cavalo bom e o que faz mau ao cavalo mau (cf. 253d2-3). O bom cavalo tem

a pelagem branca, os olhos pretos, o nariz caucasiano e o pescoço erguido, é dócil e

obediente ao mando de seu auriga, que não necessita fustigá-lo porque o doma facilmente

com uma palavra ou o toque suave do látego. O mau cavalo tem a pelagem preta, os olhos

glaucos, o nariz achatado, o pescoço curto e carnoso, e é de temperamento sanguíneo e

indómito ao mando de seu auriga, pois se resiste com força e obstinação aos violentos

látegos (cf. 253d-e). Ilustra-se, mais adiante, que quando as boas capacidades dominam a

alma, ela desfruta de uma vida ordenada e da filosofia, já que essa alma caracteriza-se por

levar uma vida harmoniosa, autocontrolada e moderada. No entanto, se as boas capacidades

não sempre dominam a alma, ela alimenta-se das opiniões da maioria e do amor aos honores;

e, se a alma está privada do domínio da razão, ela suporta uma vida desordenada e sem amor

ainda que se deleite com bens mortais e mesquinhos (cf. 256a-257a). Essa analogia adequa-se

à exposição longa e formal de Rep. A capacidade racional coincide com o trabalho do auriga

de conduzir a carruagem e as duas capacidades desiderativas coincidem com a parelha de

86
Em palavras de Platão: “E não serão essas duas mesmas capacidades as que melhor controlem toda a alma
e a todo o corpo contra os inimigos de afora, uma deliberando, a outra acompanhando ao que manda e
cumprindo com valentia suas deliberações?”(Rep., 442b5-9).

122
cavalos. Eles, análogos aos desejos da alma, são idênticos em sua espécie, mas com

características físicas e de comportamento opostas.

Não obstante, o argumento sobre a natureza da alma do Fedro tem suas diferenças

com o de Rep., começando porque suas pretensões são diferentes. No Fedro, o segundo

argumento de Sócrates tem como escopo conhecer a natureza do amor e não a natureza da

alma. O mesmo Hackforth concede esse ponto: “But there is much in the present section

and in the pages which follow that cannot be so translated, and that Plato does not intend to

be translated” (1952:72). Enunciarei, logo a seguir, algumas diferenças importantes no

tratamento do argumento mencionado em ambos os diálogos:

O argumento do Fedro alude às almas divina e humana (cf. 245c). De outra parte, o

argumento de Rep. alude exclusivamente à alma humana, tal como Platão o torna explícito

quando afirma que examinou adequadamente as formas da alma na vida humana (Rep., 612a4-

6). Ambos os argumentos defendem que a alma é tripartida, inclusive a alma divina que é

composta de um auriga e dois cavalos bons. Mas, se o bom cavalo corresponde ao desejo

racional, então as duas capacidades desiderativas da alma divina são realmente uma e a

mesma. Portanto, a alma divina tem duas partes e não três como no caso da alma humana,

já que não tem um cavalo mau, quer dizer, não tem um desejo que se oponha ao desejo

racional. Além disso, o desejo racional e a razão constituem uma unidade, já que ambas as

partes compartem o mesmo desejo (cf. 254a)87. Entretanto, a alma humana está composta de

varias partes em virtude de sua interação com as coisas mortais (cf. 611b-d; 252c-257a). Mesmo

87Hackforth admite uma identidade entre o auriga e o bom cavalo na medida em que compartilham o mesmo
desejo: “[...] the charioteer and the good horse are so much one in purpose and function that their distinction
can hardly be maintained if we seek to go behind the imagery .The most that we can say is that continence is
conceived as in one aspect intellectual, its source being knowledge or recollection of ideal beauty, and in
another as emotional” (1952: 107).

123
assim, Platão afirma que a alma humana comparte com a alma divina seu ser imortal88,

como é isso possível? É isso possível quando a parte racional e sua aliada controlam a parte

do desejo apetitivo.

Os dois cavalos têm características contrárias assim como as capacidades

desiderativas de Rep. IV são contrárias, pois fazem o contrário apesar de que seu destinatário

seja o mesmo, tal como o ilustram os exemplos desejar beber e não beber uma mesma bebida

ou desejar ver e não ver uma mesma fileira de cadáveres. No entanto, em Rep. IX 580d,

Platão defende que cada parte da alma exercita-se num desejo diferente e está sobre um

destinatário diferente, por isso, lá as duas capacidades desiderativas não tem o mesmo

referente como acontece com os casos de Rep. IV. Porém, o argumento do Fedro amolda-

se mais ao dito em Rep. IV. É sua diferença principalmente terminológica e consiste em que

os cavalos ilustram manias contrárias e não desejos contrários. Embora o primeiro

argumento de Sócrates aluda ao desejo como forma que reúne ao amor, seu segundo

argumento substitui o termo desejo pelo termo mania. Para explicar essa mudança Sócrates

assinala que para os antigos a mania é algo bom dado por dom divino, razão pela qual

concordaram em nomear mánica (manika/) ou mântica (mantika/) à bela arte de predizer

o futuro (cf. 244b-c).

Note-se, também, que o primeiro argumento define o amor como desejo prejudicial

e o segundo argumento define o amor como mania benéfica, o que nos leva a pensar que o

termo mania é mais apropriado que o termo desejo para ressaltar a característica benéfica

do amor. Entanto no primeiro argumento a alma humana é bipartida na medida em que está

constituída por dois princípios opostos, o desejo que é o apetite excessivo de comida, bebida

88
O tema da imortalidade da alma é recorrente nos diálogos de Platão. Em Fedón afirma-se que a imortalidade
da alma encontra apoio em sua simplicidade. Em Rep. X afirma-se que a alma humana é, por um lado, imortal
e, por outro lado, mortal (611b-c). Em Fedro afirma-se que a identidade entre as almas divina e humana é a
imortalidade. Em Timeo distingue-se uma alma imortal de outras formas diferentes (69c).

124
ou sexo, e a moderação que não distingue entre razão e desejo racional; no segundo

argumento a alma humana é tripartida porque está constituída por três capacidades análogas

a um auriga e dois cavalos opostos. Sem considerar a comparação com Rep. IV, o Fedro

alude especificamente a uma capacidade para conhecer (a)na/mnhsij)89 e a duas

capacidades de movimento: um movimento ascendente relativo às perturbações divinas, o

desejo humano pelo conhecimento; e, um movimento descendente relativo às perturbações

mundanas, identificadas com bens mortais mesquinhos (256e) ou enfermidades e

sofrimentos humanos (265a) (cf. 246d-249d). O fato de que o primeiro argumento use o termo

desejo num sentido negativo, faz com que o segundo argumento use o termo mania em vez

do termo desejo; pois, a mania, como seu próprio nome indica, é uma perturbação que vem

dos deuses, assim que acostuma ter um sentido positivo, embora também haja perturbações

próprias de nossa condição mortal.

A última diferença que devo considerar é a seguinte: no segundo argumento, o amor

não é um desejo como o foi no primeiro argumento e, também, em Rep. IV; mas, uma mania

divina que move a alma a conhecer. Sabe-se que na narração alegórica, as asas dos cavalos

simbolizam o movimento, as asas do cavalo bom movem-se ascendentemente, porque o que

está acima simboliza o que é divino; as asas do cavalo mau movem-se descendentemente,

porque o que está abaixo simboliza o que é mau. O conhecimento é bom e divino, assim

que o movimento em direção ao conhecimento é um movimento ascendente. Falta saber

qual é exatamente esse movimento e como se da (cf. 246d e ss.). Sócrates, a seguir, apresenta

o último argumento da prova (249d4-252c2), no qual mostrará que o amor é a mania que move

a psique em direção ao conhecimento.

89A capacidade de conhecer é, antes de tudo, a capacidade de reconhecer, porque se trata de conhecer o que
se conheceu de antemão (Veja Cap. I).

125
O último argumento que compõe o segundo argumento de Sócrates é um argumento

sobre a quarta forma de mania. A narrativa alegórica também aparece nesse argumento, mas

despojado dela diz assim:

P25’ O amor é o desejo da psique de mover-se a conhecer a verdadeira beleza quando

vê a beleza daqui e reconhece nela semelhanças com a verdadeira (oÀtan to\ tv=de/ tij

o(rw½n ka/lloj, tou= a)lhqou=j a)namimnvsko/menoj, 249d5-6) (249d5-250b1) (Def. A2).

P26’ A alma humana conheceu em virtude de sua natureza as coisas que são (249e4-

5).

P27’ Não é fácil reconhecer as coisas que são a partir do que nos parece que são

(250a1-2).

P28’ No caso de muitas formas que é importante conhecer, tais como a justiça, a

moderação e a sabedoria, nossos confusos órgãos dos sentidos não reconhecem nas coisas

daqui mais semelhança que sua característica geral (250b1-5).

P29’ No caso excepcional da forma de beleza, o mais claro e agudo de nossos

sentidos reconhece nas coisas que parecem belas uma grande semelhança com sua forma.

C O amor é a melhor de todas as formas de inspiração divina (tw½n e)nqousia/sewn

a)ri¿sth, 249e1) (249e1-4).

Esse último argumento não somente conclui que o amor é a quarta forma benéfica

de mania, mas que é a melhor de todas as manias, e assim prova-se que o amor é a mania

dada pelos deuses para nossa maior felicidade (cf. 245b7-c1). A narração alegórica joga com

expressões como “mover para acima” e “mover para abaixo”, “essas coisas daqui” e “as

coisas verdadeiras” para ilustrar “como se conhece” e “como se opina”, “o que parece ser

126
ou as coisas opináveis” e “o que é ou as formas”. As formas são imutáveis, intangíveis,

estão por fora do mundo fenomênico, são conhecidas somente pelo intelecto e seu

conhecimento é sempre verdadeiro. De outro modo, as coisas opináveis são coisas

controversas, quer dizer, elas podem ser e não ser, elas são coisas físicas que mudam, elas

estão no mundo fenomênico, o tipo de conhecimento sobre essas coisas é diferente ao das

coisas que são porque para conhecê-las é preciso servir-se do sensível e seu conhecimento

pode ser falso (cf. 247c-e). A resposta a como se opina está na retórica dos sofistas, prática e

rotina para acessar ao que parecem ser as coisas ou às opiniões da maioria; entretanto, a

resposta a como se conhece está na verdadeira retórica, arte argumentativa que acede ao

conhecimento verdadeiro das coisas através do método de divisão (cf. 259e-263b).

Em P25’ prova-se Def.A2. Essa é a definição correta de amor, um desejo positivo ou

benéfico, que leva o nome de mani¿a em vez de e)piqumi¿a. O amor é o desejo de

conhecimento, é o desejo de conhecer o que é a beleza a partir das coisas belas. De P26’ a

P29’ se explica essa definição. Segundo P26’, a psique teve um conhecimento prévio em

virtude de sua natureza imortal, o qual garante que volte a conhecer uma vez exercite sua

capacidade para conhecer. Reconhecer a partir das múltiplas opiniões que nos oferece o

mundo sensível é difícil (P27’), pois nossos sentidos somente identificam com muita

dificuldade um conceito geral a uma multiplicidade de opiniões (P28’). Não obstante, o

conhecimento excepcional da forma de beleza necessita lançar mão do sensível (P29’). Por

essa razão, o conhecimento da beleza deve-se considerar como o trampolim para conhecer

as outras formas que não se servem do sensível. Portanto, o amor é o desejo que permite

passar das opiniões ao conhecimento do ser, mediante a consideração das semelhanças que

aquelas tem com o conhecimento. Mais adiante, afirma-se que o maior bem para a psique

é amar a sabedoria (cf. 256b) e o pior de seus prejuízos a completa ignorância (257a). Por

consequência, o amor é a melhor de todas as formas de mania divina (C).


127
As premissas P1’ a P29’ correspondem ao segundo passo do procedimento de divisão.

Na parte I do primeiro argumento estabeleceu-se a mi¿a i¹de/a do amor, i.e. o desejo, ou

melhor, a mania, que constitui o ponto de partida que permite à argumentação proceder de

maneira clara e consistente. Na parte II do primeiro argumento examina-se que o que se

segue de definir provisionalmente ao amor como a parte prejudicial da mania é contraditório

com essa definição e, por consequência, essa definição é refutada. Se o amor não é uma

mania prejudicial, necessariamente o amor é seu oposto contraditório e, assim, o amor é

definido como uma mania benéfica. Para estabelecer de modo conclusivo que essa definição

é a definição correta de amor é preciso prová-la; assim, num segundo argumento, que expus

de P1’ a P29’, examina-se que o que se segue de definir o amor como a parte benéfica da

mania é consistente com essa definição e, por consequência, essa definição é provada.

Platão, perto de 265a, retoma os dois argumentos de Sócrates. O primeiro que disse

sobre eles é que são opostos ( ¹Enanti¿w pou hÃsthn, 265a2), pois um deles é a favor de

quem ama e o outro em contra de quem ama. O amor é definido como uma parte da mania

(mani¿an ga/r tina e)fh/samen eiånai to\n eÃrwta, 265a6-7). Mas, há dois tipos de mania:

uma procede das enfermidades humanas e a outra procede de um transtorno divino que nos

afasta de nossas condutas habituais (Mani¿aj de/ ge eiãdh du/o, th\n me\n u(po\

noshma/twn a)nqrwpi¿nwn, th\n de\ u(po\ qei¿aj e)callagh=j tw½n ei¹wqo/twn nomi¿mwn

gignome/nhn, 265a9-11). Divide-se a mania divina em quatro partes (Th=j de\ qei¿aj

tetta/rwn qew½n te/ttara me/rh dielo/menoi, 265b2): a mântica (mantika/), a teléstica

(telestika/)90, a mania poética (Mousw½n poihtika/) e a mania amorosa (e)rwtika/

90 A teléstica corresponde a aquele tipo particular de mania mencionado no segundo argumento de Sócrates.
De maneira que aqui se retomam as quatro partes da mania, já enumeradas no segundo argumento.

128
mani¿a). Nesse momento a mania divina é dividida em quatro partes que correspondem às

quatro partes enumeradas no segundo argumento.

Por conseguinte, não é suficiente definir o amor como uma parte da mania, mas sim

como uma parte da mania divina e a melhor de todas (a)ri¿sta, 265b5). Assim como há uma

mania oposta à divina, deve haver uma parte que seja oposta ao amor. Em 265b6 se introduz,

por primeira vez no Fedro, o nome de experiência amorosa (to\ e)rwtika/ pa/qoj) para

essa parte. De modo que a experiência amorosa é parte da outra mania, a qual nos permite

atingir a uma verdade parcial sobre o que é o amor91. A experiência amorosa não nos leva

a uma verdade completa porque seu destinatário não é o conhecimento, mas as opiniões, as

quais o mais que podem é assemelhar-se a ele. A opinião de x é semelhante ao conhecimento

de x quando se opina que x é o que realmente é; mas, a mera opinião fica sem saber a razão

pela que x é isso e não outra coisa parecida. Portanto, a definição correta de amor é que o

amor é uma mania divina, porque essa definição é similar à forma do amor. De outro modo,

a definição incorreta de amor é que o amor é uma experiência amorosa, porque essa

definição não é similar à forma do amor.

Em suma, o segundo argumento parte da Def.A2 para, finalmente, provar que essa

definição é consistente e que o amor é a melhor de todas as manias e a que nos traz a maior

felicidade (cf. 245b7-c1; 249e1; 265b5). A prova é formada por três argumentos: o argumento

da imortalidade da alma, o argumento de a natureza tripartida da alma e o argumento que

explica que parte da mania é o amor. Os dos primeiros argumentos examinam a natureza da

alma, o primeiro com o fim de conhecer a característica comum a às almas humana e divina,

91Platão
o diz da seguinte maneira: “[...] ou)k oiåd' oÀpv to\ e)rwtiko\n pa/qoj a)peika/zontej, iãswj me\n
a)lhqou=j tinoj e)fapto/menoi, ta/xa d' aÄn kaiì aÃllose parafero/menoi, kera/santej ou)
panta/pasin a)pi¿qanon o/gon [...]” (265b6-8).

129
e o segundo com o fim de conhecer a diferença entre essas almas. O terceiro argumento

examina a natureza do amor e sua relação com a alma humana. As almas divina e humana

compartilham a característica da imortalidade, mas diferenciam-se em que a alma humana

tem duas partes contrárias, as quais seriam a mania divina e a mania humana às que alude

265 a e ss. A análise da natureza da alma humana de Rep. também faz menção a duas partes

contrárias, mas lá são apresentadas com os nomes de desejo racional e desejo apetitivo.

Talvez, essa diferença terminológica procura enfatizar na parte positiva da alma, que a sua

vez encontra apoio na sua condição imortal. Desse modo, a alma humana é a mi¿a i¹de/a em

que estão reunidas ambas as manias e a mania divina é a mi¿a i¹de/a em que está reunido o

amor. A psique tem como função exercitar sua capacidade racional com a ajuda da mania

divina e domesticando a outra mania, com o fim de conhecer o que são as coisas e, ergo,

ser feliz. A mania divina é composta de quatro partes que se diferenciam entre si por suas

funções respectivas. Embora todas essas manias são tipos de conhecimento, diferem em seu

modo de conhecer e no destinatário de seu conhecimento. O amor é, precisamente, o

encarregado de dar impulso à função da alma; pois, o amor move a alma em direção à forma

de beleza, que é a que está mais próxima do sensível, com o fim de conhecê-la; quando a

alma a conhece e sem retornar ao sensível, prossegue a conhecer as outras formas. Portanto,

foi provado que o amor é benéfico e o mais benéfico de tudo, já que nos encaminha à

felicidade.

Contudo, os dois argumentos de Sócrates põem em prática o método de divisão. A

prática desse método esclarece muito mais sua descrição sobre como se deve argumentar

em pró de conhecer e não simplesmente opinar como o fizeram Lísias e outros tantos

sofistas no tempo de Platão. A descrição do método de divisão (265c-266b) apresenta dois

procedimentos complementares e descreve o que é cada um deles, o que é o procedimento

130
de reunião (265c-d) e o que é o procedimento de divisão (265e-266b), descuidando a descrição

pelo como, a qual se reduz a uma mera analogia. E, tal analogia somente pode ser entendida

à luz dos dois argumentos de Sócrates:

Assim como um corpo tem naturalmente pares de mesmo nome, chamados

sinistro e destro, igualmente, os dois argumentos consideraram o ˂ eiådoj ˃

da mania como eÁn eiådoj naturalmente em nós: o primeiro argumento,

recortando para si a parte situada do lado esquerdo, e dividindo-a novamente,

não cessou até que descobriu ali um amor chamado sinistro e o reprendeu

com toda justiça, ao passo que o segundo argumento, tendo-nos levado às

partes da mania situadas do lado direito, descobriu e apresentou um amor de

mesmo nome, mas divino, e o enalteceu como fonte dos maiores bens para

nós (265e3-266b1).

A analogia com os membros pares, denominados sinistro e destro respectivamente,

e homônimos do corpo humano (sw¯matoj dipla= kaiì o(mw¯numa skaia/, ta\ de\ decia\

klhqe/nta, 266a1-2) tem como finalidade mostrar como o procedimento de divisão conhece

o amor. Os argumentos de Sócrates (twÜ lo/gw) têm o mesmo nome, quer dizer, são

homônimos (o(mw¯numa) porque ambos versam sobre a definição de amor. Os argumentos

de Sócrates são dois argumentos situados um do lado esquerdo e o outro do lado direito

(dipla= skaio/j, ta\ de\ decia/) porque são dois argumentos opostos. O primeiro

argumento (o( me\n) refuta que o amor seja prejudicial e o segundo argumento (o( d') prova

que o amor é benéfico. Esses argumentos são necessariamente dois argumentos opostos

porque examinam definições opostas contraditórias de amor. Mas, a analogia não se limita

a assinalar que, assim como há membros do corpo humano pares e homônimos, há pares de

131
argumentos opostos ainda que homônimos. O ponto central da analogia consiste em mostrar

como o método procede a dividir dicotomicamente a controvérsia sobre o amor.

A analogia precisa considerar os dois argumentos de Sócrates para entender passo a

passo como se divide um mesmo assunto controverso, trate-se do amor ou de qualquer outra

coisa, em argumentos opostos e a maioria das vezes dicotômicos. Antes de apresentar os

dois argumentos opostos sobre o que é x92 é preciso estabelecer como ponto de partida a

mi¿a i¹de/a de x, acordada pelos interlocutores do diálogo. A primeira parte de um primeiro

argumento estabelece uma definição provisional de x (Def.X1), a segunda parte desse

argumento examina a consistência dessa definição. Um segundo argumento estabelece


2
outra definição de x oposta à do primeiro argumento (Def. X ), seja porque é contrária ou

seja porque é contraditória, e examina a consistência dessa outra definição. A definição

correta de x é somente uma, porque x corresponde somente a uma forma. A maioria das

vezes, um desses argumentos refuta uma definição e o outro prova a outra definição. Raras

vezes, em alguns casos de argumentos opostos contrários, os dois argumentos identificam

contradições nas duas definições e, portanto, refutam ambas as definições.

Minha interpretação a PD está relacionada ao procedimento de divisão e ao princípio

de similaridade. Minha postura interpretativa defende que esse procedimento tende a dividir

o conceito a definir em dois argumentos opostos, os quais examinam qual dos dois opostos

estabelece uma definição desse conceito similar a sua forma. A correlação não é entre as

partes em que se divide a mi¿a i¹de/a de x e as partes de sua forma, a correlação é entre a

parte em que se divide a mi¿a i¹de/a de x que constitui a definição correta de x e a forma de

x. Não se trata de que as partes da mi¿a i¹de/a de x correspondam a todas as partes de sua

92Todo assunto a definir através do método de divisão é um assunto controverso.

132
forma, mas somente que uma das partes da mi¿a i¹de/a de x corresponda a uma parte de sua

forma, i.e. a forma do conceito a definir.

Considero que o procedimento de divisão opera de modo homônimo e dicotômico a

maioria das vezes, como o mesmo Platão o afirma em sua analogia com o corpo, os

membros do corpo são dicotômicos e homónimos (dipla= kaiì o(mw¯numa, 266a1). Esse

procedimento é homônimo, porque argumenta-se sobre um mesmo x; e, dicotômico, porque

tendem a ser dois argumentos opostos, contrários ou contraditórios, um dos quais estabelece

o que não é x e o outro o que é x. Mas, se em uma divisão dicotômica não se pode determinar

o que é x, então se divide no menor número possível de partes que permita estabelecer a

definição correta de x.

Analisei o método de divisão considerando a descrição do método e sua prática

entorno ao caso particular do amor. Em suma, o método de divisão é um método

argumentativo, cujo primeiro procedimento estabelece o ponto de partida da argumentação,

entanto que o segundo procedimento examina a consistência de duas definições opostas

para x. Como o método de divisão aplica-se em contextos argumentativos nos que algum

interlocutor faz passar a x por seu oposto, dadas suas semelhanças e poucas diferenças com

o que é x, o segundo procedimento divide o que poderia ser x em dois argumentos, um deles

nega que x seja seu oposto e o outro afirma o que é x.

Platão defende que a verdadeira retórica é a arte da oposição (h( a)ntilogikh\,

261d10), capaz de fazer semelhante tudo o que é susceptível de semelhança, até o ponto de

argumentar sobre o oposto de x como se fosse x (cf. 262b5-8). Para não enganar-se a respeito

do que é x e não confundi-lo com seu oposto, inclusive quando seu argumento faça passar

133
a x como se fosse seu oposto93, é condição sine qua non conhecer a forma de x. É possível

conhecer porque se tem uma capacidade de reconhecimento. Mas, para chegar a conhecer

não é suficiente ter essa capacidade, é necessário fazer um longo rodeio (mega/lwn ga\r

eÀneka periite/on, 274a3). Esse longo rodeio consiste em aplicar o método de divisão, com

o fim de chegar a definir x conforme a sua forma. Para entender como esse método procede

é necessário interpretar a analogia de 265e3 e ss. à luz da aplicação que se faz do método

de divisão na primeira metade do Fedro.

Conclusão

No percurso da pesquisa precedente me propus expor e testar

HT: o método de divisão proposto no Fedro é um método que visa a resolver

a controvérsia através dos argumentos que testam a consistência de definições

opostas de x, com o fim de determinar qual é sua definição correta.

93
A respeito disso, Platão assinala que o verdadeiro retor é aquele capaz de fazer passar tudo semelhante a
tudo, e.g. faz passar uma lei umas vezes como justa e outras vezes como injusta, tal como Palamedes de Eléia
fazia aparecer uma mesma coisa como igual e diferente, uma e múltipla, em repouso e em movimento (cf.
261c10-d8).

134
Em vista disso, no primeiro capítulo, expliquei as principais noções entrelaçadas no

método do Fedro e descrevi seu modus operandi; no segundo e terceiro capítulo, testei o

modus operandi já descrito através da evidência textual do Fedro. A seguir exporei

sucintamente as conclusões às que cheguei durante essa pesquisa.

Segundo Platão, podemos resolver a controvérsia porque temos uma capacidade

para reconhecer o que outrora conhecemos outrora, que Platão denominou a)na/mnhsij. O

que outrora conhecemos não são particulares sensíveis nem constructos mentais, são formas

(eiådoj o i¹de/a).

Não obstante, para resolver a controversa não é suficiente com ter a capacidade para

resolvê-la, é necessário saber como resolvê-la adequadamente. Por consequência, o método

de divisão proposto no Fedro constitui a via adequada para resolver a controvérsia. O fim desse

método é reconhecer a forma de x, e.g. amor; porém, esse reconhecimento expressa-se na

definição correta de x, i.e. a definição de x que está em correspondência com sua forma,

especificamente com a função de sua forma que é aquilo que faz com que seja o que é. As

formas são unidades que podem ser simples ou compostas, ergo, as funções podem ser

simples ou compostas.

Dito isto, se podemos resolver a controvérsia sobre x, então podemos estabelecer a

definição correta de x. Podemos resolver a controvérsia sobre x. Portanto, podemos

estabelecer a definição correta de x.

De outra parte, o método de divisão proposto no Fedro consta de dois procedimentos

complementares: a sunagwgh/ e a diai¿resij. A sunagwgh/ é descrita no parágrafo

265d3-7 e aplicada na parte I do primeiro argumento sobre o amor expostos por Sócrates.

A sunagwgh/ do método tem por objetivo determinar a mi¿a i¹de/a de x. Convém lembrar

135
que a sunagwgh/ é o primeiro de dois procedimentos complementares, no qual os

dialéticos marcam o limite da reunião por convergência e não por intuição.

A diai¿resij é descrita no parágrafo 265e1-266b1 e aplicada na parte II do primeiro

argumento e em todo o segundo argumento sobre o amor expostos por Sócrates. A

diai¿resij do método tem por objetivo testar a consistência lógica das partes opostas da

mi¿a i¹de/a de x às que poderia pertencer x. Se as respectivas divisões de uma de suas partes

levam à contradições, então essa parte deve ser recusada. Se as divisões de sua outra parte

levam a bom termo em virtude da necessidade logográfica, então essa parte deve ser aceita.

Convém anotar que a diai¿resij tende a ser uma divisão dicotômica e homônima (dipla=

kaiì o(mw¯numa, 266a1), porque consiste em dividir as duas partes opostas da mi¿a i¹de/a x,

i.e. a parte sinistra de x e a parte destra de x.

Cada uma das partes da mi¿a i¹de/a de x à que poderia pertencer x é examinada

através de um argumento. Esse argumento é um argumento refutatório se examina a parte

da mi¿a i¹de/a de x à que não pertence x. Esse argumento é um argumento probatório se

examina a parte da mi¿a i¹de/a de x à que pertence x.

A respeito dos argumentos de Sócrates, convém anotar que seu primeiro argumento

é de natureza refutatória e conclui que o amor não é desejo (e)piqumi¿a tij o( eÃrwj, 237d3).

Entretanto, o segundo argumento de Sócrates é um argumento probatório que diz que o

amor é mania divina (qei¿a mani¿a, 244a6-7; 244d4; 245b1-2), também nomeada inspiração

divina (e)nqousia/zwn, 241e5; 249d2; 249e1; 263d2).

136
A expressão kat' aÃrqra v pe/fuken constitui um princípio de similaridade ao

que devem obedecer os procedimentos metodológicos sunagwgh/ e diai¿resij. Esse

princípio estabelece a correspondência entre os aspectos ontológico e epistemológico. Esse

princípio de similaridade permite estabelecer uma relação entre a a)na/mnhsij e os dois

procedimentos metodológicos, pois a a)na/mnhsij é a condição sine qua non do método.

Contudo, posso concluir que o método de divisão proposto no Fedro não é um

método incipiente que somente serve como prelúdio do método de divisão exposto e

desenvolvido nos diálogos posteriores como Filebo, Sofista e Político; o método de divisão

do Fedro é, antes de tudo, um método central e autossuficiente e que não requer da leitura

de outros diálogos para ser esclarecido e completado.

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