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dossiê piauí
U
m grau de latitude separa Belém da linha do Equador. De dia, o sol
fustiga a cabeça, os ombros, o rosto, os postes, as casas, os prédios, as
calçadas, os carros, os ônibus. O sol fustiga tudo.
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se mostra seco demais, pois jamais decorrem três semanas consecutivas sem
algumas pancadas de chuva.” Ele elogia o viço das folhagens e a atmosfera
amena da cidade, qualidades que atribui “ao frescor e à sombra
proporcionada por sua exuberante vegetação”.
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A Belém de Mário é muito mais urbana que a de Bates. Ali pouco se fala de
flora e ainda menos de fauna, salvo a aprisionada no zoológico do Museu
Goeldi. Mário admite ter mais prazer em admirar a natureza do que em
descrevê-la, o que ajuda a compreender o sabor essencialmente citadino de
suas anotações. Mas é possível que essa sua Belém não seja fruto apenas da
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O
sol que hoje nasce em Belém bate numa cidade que se separou de sua
paisagem. De manhã cedo, a vista do alto de um prédio é de fogo
sobre concreto e ferro. Por trás das ondas de calor que o asfalto refrata,
surge a silhueta incerta dos espigões, centenas deles, espalhados por toda
parte sem ordenamento urbanístico aparente. A cena é cinza, e nela os
trópicos foram eliminados. Calhou de a cidade estar ali, poderia estar em
outro lugar. A impressão é de que Belém já não sabe onde está.
“Uma cidade com cara de nada”, na expressão do fotógrafo Luiz Braga, que
vem documentando sua terra natal há décadas. No plano temático, seu
trabalho não se espalha, antes se adensa, para conhecer cada vez mais uma
coisa só. Ele retorna, retorna e retorna aos mesmos lugares, como que
seguindo a recomendação do explorador norte-americano John Burroughs:
se quiser aprender algo novo, refaça o caminho que fez ontem. No passado,
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Braga fotografou a vida nos bairros ribeirinhos, com seus bares coloridos e
paredes em que artistas populares pintavam a floresta. A cidade empurrou
várias dessas comunidades para as periferias e muitas sucumbiram ao
processo de degradação que marca a vida urbana brasileira. “Voltei a esses
lugares e eles estavam bege.” Sumiram as cenas da mata.
Não muito longe dali, num dos maiores supermercados da cidade, seria
difícil encontrar a maioria desses produtos. As gôndolas centrais da seção de
frutas terão maçãs, peras, morangos, tamarindos, romãs e pitaias, todas
espécies exóticas; as amazônicas, com exceção da papaia e do abacaxi, não
estão à vista. Dentre as muitas geleias, apenas duas de fruta nativa, a de
goiaba e a de abacaxi. Para alcançar a castanha-do-pará, seria preciso esticar
o braço e, dependendo da altura do interessado, ficar na ponta dos pés – o
produto é estocado na prateleira mais alta da gôndola; à altura dos olhos,
Fandangos, Ruffles, Cheetos e fileiras de amendoim japonês. Rente à boca
do caixa, além de chicletes e aparelhos de barbear, amêndoas importadas
dos Estados Unidos, nas variedades honey roasted e wasabi and soy sauce.
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“O outro lado do rio” – o lado dos ribeirinhos – “tem uma inteligência que
não chega aqui, que não se incorpora ao conhecimento”, diz Luiz Braga num
café em Belém. A floresta sumiu da vida das pessoas. Quando era menino,
conta, toda casa burguesa na cidade tinha um quadro de Arthur Frazão. Eles
“traziam a floresta para dentro das residências da elite. Na década de 1960,
eu me lembro de ver esses quadros na casa dos amigos dos meus pais”.
Naquelas imagens acadêmicas e muitas vezes ingênuas, o elemento
essencial era a conexão com o entorno, a sensação de enraizamento que elas
figuravam. “Hoje essas cenas desapareceram. Existe um deslocamento das
pessoas que têm dinheiro em relação ao lugar onde elas estão.”
Não que representações da mata nas paredes de casa fossem uma garantia
de relação mais harmoniosa com a floresta. A ausência de vínculos com o
mundo natural não era novidade. Henry Walter Bates já identificara o
fenômeno. Ao voltar para Belém depois de anos embrenhado na mata, foi
cumulado de atenções por seus amigos: “Fiquei bastante surpreso com o
grande apreço que as pessoas mais importantes da cidade deram aos
trabalhos que eu havia realizado”, registrou. “A verdade é que o interior do
país ainda é considerado ‘sertão’ – uma terra incógnita para a maior parte
dos habitantes da orla marítima – e um homem que havia passado sete anos
e meio explorando esse sertão com objetivos exclusivamente científicos não
deixava de ser uma curiosidade.”
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Resto também para boa parte de quem planta nela, cria boi nela, tira minério
dela, mora nela. O homem de terno preto sob o sol do Equador é o retrato
desse desconcerto, a figura de um impasse. Ele é o boi, a soja, o garimpo, o
machado, a serraria, o modo como essas coisas ocuparam a floresta e
substituíram uma paisagem por outra sem nunca pôr em questão a
viabilidade da troca.
L
uiz Gonzaga tem uma propriedade em Capitão Poço, município a cerca
de 200 km de Belém. Ali ele planta uma árvore das florestas tropicais
do Sudeste Asiático – a teca – cuja madeira é empregada na indústria
moveleira. Antes ele se dedicava à atividade dominante na região, a
pecuária, coisa que “dá pra fazer em qualquer lugar”, diz.
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O pai de Luiz Gonzaga veio de São Paulo para o Pará em 1964. Estava atrás
de terras para explorar e, como todo mundo na época, nos anos seguintes
receberia financiamento do Estado para abrir a floresta. Uma terra sem
homens para homens sem terra, dizia a propaganda oficial. O programa,
financiado pela Sudam, a Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia, concedia empréstimos a juros subsidiados a quem desmatasse o
bioma com o intuito de ocupá-lo.
“Ninguém sabia nada de floresta”, diz Luiz Gonzaga. “A pessoa vinha até
aqui a cavalo, avançando pelos igarapés porque não tinha estrada. Meu pai
nos trouxe com ele, éramos meninos pequenos. E só aqui ele se deu conta de
que o cavalo ia morrer. Não existia capim no meio da floresta. Durante três
dias o cavalo comeu banana.” É uma história típica da grande onda
migratória dos anos 1960, 1970 e 1980. Centenas de milhares vieram para a
Amazônia sem ter noção do que ela era.
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E
m sua biografia do naturalista alemão Alexander von Humboldt, A
Invenção da Natureza, a historiadora Andrea Wulf observa que no
século XVIII ideias de perfectibilidade da natureza dominavam o
pensamento ocidental. Era preciso aperfeiçoá-la, expurgá-la do que fosse
confusão. Campos cultivados refletiam a civilização, enquanto matas densas
representavam o que ainda escapava à empresa humana. Nada encarnava
tão bem esse descontrole quanto as florestas do Novo Mundo, “uma ‘selva
desolada’ que tinha de ser conquistada”, escreve Wulf.
Nas três primeiras páginas de seu relato, Euclides emprega palavras como
desapontamento (o Rio Amazonas), monotonia (a paisagem), vazios (os
horizontes), desordem (a natureza), imperfeita (a flora), monstruosa (a
fauna), paleozoicos (os anfíbios), desprezível (um pássaro), incompleta (a
natureza). “A impressão dominante que tive”, escreveu, “é esta: o homem,
ali, é ainda um intruso impertinente.” Não apenas impertinente, mas
também indesejado, que é a sina de todos os intrusos: “Aquela natureza
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A cada dobra dos rios, os espanhóis eram atacados por indígenas que
apareciam “por água e por terra” para lhes fazer a “crua guerra”, a ponto de
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Cada amazona guerreava como dez índios. Muito altas e alvas, tinham
cabelos compridos que enrolavam em tranças na cabeça. “São muito
membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus
arcos e flechas nas mãos.” O dominicano não afirma que essas adversárias
destemidas eram as amazonas da mitologia grega. Pode ter empregado o
vocábulo apenas como analogia – não se sabe ao certo o que ele viu nas
margens do Nhamundá. Os espanhóis haviam sido advertidos da existência
de uma tribo de índias guerreiras antes mesmo da refrega famosa, e talvez
estivessem impressionados pela sugestão de que poderiam encontrar
mulheres parecidas com aquelas de que fala Homero. Não se descarta a
hipótese de que, no fragor da batalha e condicionado por seu repertório
cognitivo de europeu, o dominicano tenha tomado homens amazônidas por
mulheres mitológicas.
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N
ão é fácil descrever a floresta. De modo geral, os autores acabam adotando
uma (ou mais de uma) das três estratégias narrativas seguintes:
adjetivismo apoteótico, panteísmo mágico ou derrotismo fatalista.
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É
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É o que faz Henry Walter Bates ao narrar como uma lagarta constrói o
casulo dentro do qual se transformará em borboleta: “Quando inicia o seu
trabalho, a lagarta prende o fio na ponta da folha escolhida e vai descendo,
pendurada nele, até alcançar o comprimento desejado […] Sua feitura leva
quatro dias. Terminado o casulo, a lagarta encerrada dentro dele se aquieta,
sua pele se enruga e racha, e por fim só se vê lá dentro uma crisálida esguia
grudada num dos lados do invólucro de seda.” Quatro dias de trabalho,
quatro dias de atenção, um exercício de rigor tanto do inseto que tece quanto
do naturalista que o observa.
A pensadora francesa Simone Weil dizia que a atenção é a forma mais rara e
mais pura da generosidade. A floresta sempre precisou de atenção, mas
poucos lhe dispensaram esse cuidado simples. Populações indígenas e
tradicionais, sim. Naturalistas, exploradores e cientistas, sim. Alguns
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É fruta
É terra
É chão
Caminho de muita esperança
De luta
De ouro
Muita gente buscando
Um novo torrão.
E
m setembro de 1978, o governo federal, por intermédio de seus órgãos
fundiários – pelo menos quatro deles operavam na região, causando
uma barafunda legal jamais resolvida –, abriu uma licitação para
empresas interessadas em adquirir uma imensa extensão de terra nas
margens da Rodovia PA-279 e construir ali toda a infraestrutura necessária à
vida de quem se dispusesse a desbravar a aquele pedaço do sudeste do
Pará. Venceu a Colonizadora Andrade Gutierrez, Consag, empresa criada
pela empreiteira mineira homônima com o propósito de implantar uma
proposta de colonização que seria batizada de Projeto Tucumã.
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“Colonização era melhor do que plantation, né?”, diz Lian Andrade. Outros
projetos de ocupação da Amazônia propunham transformar a floresta em
pastos e monoculturas. O casal imaginava que a futura Tucumã poderia ser
diferente. Sem as limitações da clandestinidade, os dois teriam ali a chance
de testar seus ideais políticos, assentando homens pobres numa região
extraordinariamente fértil da Amazônia. Como informam Schmink e Wood,
os 400 mil hectares escolhidos por Manoel Costa para o plano, equivalentes
a três vezes o município do Rio de Janeiro, abrangiam a maior extensão de
terras roxas encontradas no Sul do Pará; não há solo mais fértil na
Amazônia.
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A
Andrade Gutierrez certamente tinha mais de um motivo para se lançar
à empreitada. Havia o aspecto político: para uma empresa cujas
receitas dependiam em boa parte de contratos com o Estado, participar
da ocupação da Amazônia representava um gesto simpático ao poder, na
medida em que se alinhava ao Programa de Integração Nacional, uma
obsessão do pensamento militar que, a título de resguardar nossa soberania
sobre a região, propunha um amplo programa de colonização da floresta
por brasileiros recrutados em outras partes do país. O Sul do Pará era um
território particularmente sensível para os militares. As disputas pela terra
na região do Araguaia traziam consigo o fantasma do retorno da guerrilha
que o governo combatera e dizimara poucos anos antes. Um projeto como o
de Tucumã, com seu viés de socialização fundiária, era uma forma de
enfrentar o problema e distender o ambiente. Além disso, do ponto de vista
econômico poderia ser um bom negócio. A empreiteira conhecia bem o
terreno; já construíra uma estrada na área e saberia transferir a experiência
para o projeto de colonização.
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Andrade, “mas é apenas uma hipótese, não tenho nenhuma evidência disso.
Acontece que, com aquela mentalidade de quem fazia hidrelétrica, eles
começaram a construir muita estrada, mais de 500 km recortando todo o
projeto – o que, aliás, foi um erro –, e talvez, nesse processo, tenham se dado
conta de que havia muito mogno ali. O interesse pode ter surgido aos
poucos.”
Boa parte dessas histórias ainda circula pela cidade de Tucumã. Velhos
colonos oferecem suas versões e contraversões. O que ninguém contesta é o
empenho de Lian Andrade e Manoel Costa em que o projeto fosse executado
segundo as coordenadas sociais traçadas por eles. Todos os que viram
Tucumã nascer atribuem ao casal a inspiração do projeto. “Eles foram os
idealizadores”, diz o advogado Montenegro Jorge. Muitos se lembram das
visitas que fizeram para acompanhar o andamento das obras. Eram
acessíveis e bons ouvintes. O elemento ideológico – a ideia de uma
comunidade de pequenos agricultores nascida dos sonhos igualitários de
dois militantes de esquerda – foi um vetor da criação de Tucumã tão
determinante quanto a motivação política e econômica.
No dia 29 de agosto de 1981, data que ele não esquece, Valdir Rostirolla
chegou a Tucumã. Tinha 30 anos e levara três dias e três noites para vir de
sua cidade natal, Getúlio Vargas, no Rio Grande do Sul, até o
empreendimento que o atraíra para o sudeste do Pará. Seu impulso era igual
ao dos milhares de colonos pobres de toda parte do país que desde a década
de 1960 haviam tomado o mesmo rumo. “Terra lá no Sul é cara. Quem não
tem condições vem pro Norte.” Não conhecia nada da Amazônia. “Vim pra
cá aventurando”, ele diz.
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Era essa a utopia que levara Valdir Rostirolla ao Pará. Seu pouso na primeira
noite que passou em Tucumã foi a sala de reuniões da Andrade Gutierrez.
Desde o início, a empresa visou colonos sulistas como ele, contratando
corretores para circular pelas cidades do Sul do Brasil e promover o slogan
Vida nova no Sul do Pará.
A empresa sabia que nem todas as pobrezas eram iguais no país. Pequenos
agricultores do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina ou de São Paulo
podiam vender os respectivos palmos de chão e, com o dinheiro, comprar
lotes bem maiores no Norte. Paraenses não tinham esse luxo. O custo de
erguer Tucumã no meio da floresta precisava ser repassado e, assim, quando
se foi atrás do colono do Sul, buscaram-se duas características: tradição
agrícola e algum capital para investir.
“Claro que nós gostaríamos que o projeto fosse ocupado por colonos da
região, mas quem iria financiar?”, explica Lian Andrade. Àquela altura, abril
de 1980, as tensões entre a empreiteira e o casal começavam a se acirrar. Eles
haviam dedicado os três anos anteriores à elaboração do projeto, mas agora,
chegada a hora de implementá-lo, seriam impedidos de assumir a liderança.
“‘Nessa empresa não se aceita que projetos sejam dirigidos por não
engenheiros’, esse era o argumento”, ela conta. O casal pediu demissão:
“Nós não vamos nos subordinar à direção de engenheiros”, responderam.
Voltaram para o Sul, onde se engajaram nos movimentos em prol da
redemocratização.
V
aldir Rostirolla chegou ao Pará poucos meses depois de Lian Andrade
e Manoel Costa deixarem o projeto. Vinha na companhia de outros
dezesseis colonos e o que trazia no bolso bastava apenas para dar
entrada no lote. Ocupou sua nova propriedade, olhou em torno e viu que
tudo era floresta. Começou imediatamente a trabalhar. “Dei sorte”, conta,
“logo encontrei mogno. Fui dos primeiros a chegar, ocupei o lote antes de a
Andrade Gutierrez ter tido tempo de abrir a terra e ficar com as árvores.
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Cortei os mognos, só com seis deles paguei tudo e ainda sobrou dinheiro.
Aí, desmatei.”
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Por exigência dos órgãos fundiários, a empreiteira separara 10% dos lotes
para distribuir sem custo aos colonos mais pobres. A promessa de terra
gratuita, aliada à chance de enriquecer com o ouro, fez com que um
ajuntamento de barracas surgisse espontaneamente às portas do Projeto
Tucumã. Forjado pela anarquia e a informalidade, esse acampamento logo
ganhou o nome de Ourilândia do Norte.
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novo para lá. Era uma última tentativa de salvar o projeto. Amigos seus de
militância, “médicos humanitários”, haviam se mudado para Tucumã,
acreditando no experimento social concebido por ela e o marido. “Como é
que trouxeram a gente pra cá e agora nos deixam?”, questionavam.
P
or volta de 1985, a Colonizadora Andrade Gutierrez começara a virar
o jogo da produção. Os técnicos agrícolas da empresa haviam
aprendido com os insucessos iniciais e agora já compreendiam melhor
as características regionais do solo e do clima. Segundo Schmink e Wood, a
produtividade de certas variedades de café foi tão alta que superou em três
vezes a média nacional por hectare. Cacau, pimenta-do-reino, seringueira e
diversas frutas apresentaram resultados promissores.
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V
aldir Rostirolla é hoje um homem que conta sua história com a
serenidade de quem fez o melhor com as cartas que recebeu e sabe
disso. Veio de quase nada, fez-se por si próprio e chega à quadra final
da vida respeitado pela comunidade que ajudou a criar. Aos 69 anos, dedica
boa parte do tempo ao Clube dos 50, associação recreativa de Ourilândia
que presidiu por catorze anos e da qual hoje é tesoureiro. Pode ser
encontrado ali na parte da manhã, inspecionando com seu andar lento as
quadras de futebol, a piscina e o salão de festas onde parte das lideranças
locais se reúne.
São amplas as instalações do clube, mas não há luxo nem beleza. Ourilândia
e Tucumã não conseguiram se livrar da precariedade das respectivas
histórias de origem. O improviso impregna o arruamento confuso, as
calçadas esburacadas, a poluição visual do comércio, os loteamentos
insalubres e os prédios mal-acabados que servem ao descanso daqueles que
com trabalho, esforço e astúcia construíram tudo aquilo. É o legado de uma
elite.
Ele não se arrepende de ter deixado o Sul. “De jeito maneira”, diz com sua
voz mansa, marcada pela melodia do sotaque gaúcho. “Lá eu ia ser um
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A
história de Valdir Rostirolla é a de um homem que tinha um projeto e o
cumpriu. Foi mais bem-sucedido do que muitos e menos do que
alguns. A julgar por suas convicções, o jovem que dormiu no chão da
Andrade Gutierrez na sua primeira noite em Tucumã não é essencialmente
diferente do senhor que despacha no Clube dos 50. Foi a floresta que se
adaptou a ele, não ele à floresta.
Witeck é um homem bonito na casa dos 60 e tantos anos. Forte feito uma
tora, de estatura mediana, tem o rosto sulcado de quem passou a vida
debaixo de sol. Nasceu no Paraná, de uma família de imigrantes que mistura
sangue tcheco (Witeck), francês (Michaux, sobrenome da avó paterna) e
alemão (Müller e Rauber, pelo lado da mãe). Fala baixo e com grande
fluência, traços arraigados desde os tempos de seminarista versado nas
sutilezas dos tratados teológicos e na dialética da literatura marxista.
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pai e pediu que ele o emancipasse. Mentiu, contudo, sobre a razão, astúcia
necessária perante um homem profundamente conservador que apoiava o
regime militar. Sendo necessário mentir, mentiu completamente: queria a
maioridade para poder se alistar no Exército e ajudar a nossa soldadesca a
combater as forças comunistas que se agrupavam no Norte do país. O pai
concordou.
Chegou ao Pará por Belém e, de lá, saiu à cata dos revolucionários. Antes de
alcançá-los, porém, contraiu leishmaniose, doença infecciosa grave que, se
não tratada, provoca úlceras cutâneas, desfigurações e até morte. Witeck
começou a ficar cego. Sem condições físicas de se aventurar na mata,
renunciou aos sonhos guerrilheiros no leito do hospital público onde
acabaria por se curar. Agora era um jovem sem dinheiro e sem planos,
largado num lugar em que tudo lhe era estranho. Para sobreviver, foi
arrumar emprego.
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“Não posso reclamar, não.” Num balanço sentimental da vida, ele conta qual
é o seu maior orgulho: “Ter conseguido formar minha filha na faculdade. Ela
é dentista.” A grande tristeza foi a morte do filho: “Tive essa infelicidade. Ele
foi para os Estados Unidos tentar fazer a América, chegou lá e faleceu num
acidente de trabalho”, diz com voz pequena. Em outros termos, Witeck
tentou a mesma coisa: “Sim, sim. Vim pro Norte sem nada. Cheguei em
Tucumã, só tinha um caminhãozinho. E devendo prestação ainda, né?” O
rapaz que saíra de casa para tornar o mundo mais justo acabaria, também
ele, por se beneficiar da anarquia da região. A sua América foi o Pará.
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