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Carlos Zacarias de Sena Júnior, Demian Bezerra de Melo

e Gilberto Grassi Calil (orgs.)

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA
HISTORIOGRAFIA REVISIONISTA

CONSEQUÊNCIA
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Quadro de Childe Hassan, 1902

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Sen474c Sena Júnior, Carlos Zacarias de.


Contribuição à crítica da historiografia
revisionista / Carlos Zacarias de Sena Júnior,
Demian Bezerra de Melo e Gilberto Grassi
Calil. — 1. Ed. – Rio de Janeiro :
Consequência Editora, 2017.
380p. ; 16x23cm.

ISBN 978-85-69437-25-3 (broch.)

1. Historiografia. 2. História.
3. Escrita. 4. Memória. 5. Crítica.
I. Melo, Demian Bezerra de. II. Calil,
Gilberto Grassi. III. Título.

CDD 907.2
SUMÁRIO

Prefácio ......................................................................................................................... 7
Virgínia Fontes

Introdução ................................................................................................................... 17
Carlos Zacarias de Sena Júnior, Demian Bezerra de Melo, Gilberto Grassi Calil

Revisão e revisionismo ............................................................................................... 27


Enzo Traverso

PRIMEIRA PARTE. Ditadura e Democracia

A “boa memória”: algumas questões sobre revisionismo na historiografia


brasileira contemporânea .......................................................................................... 41
Carlos Zacarias de Sena Júnior

Elio Gaspari e a ditadura brasileira: uma interpretação revisionista .................. 79


Gilberto Grassi Calil

Uma história no futuro do pretérito?: Armas e sutilezas da nova


historiografia do Golpe de 64 ................................................................................... 113
Eurelino Coelho

SEGUNDA PARTE. Revolução e Contrarrevolução

A suspensão da ideia de Revolução na contemporaneidade.


O caso português ........................................................................................................ 143
Manuel Loff e Luciana Soutelo
Anticomunismo nas transições: negação dos conflitos e caminho aberto
para o fascismo ............................................................................................................ 163
Carla Luciana Silva

Revisitando o fascismo: o revisionismo e a relativização do


conservadorismo ......................................................................................................... 193
Tatiana da Silva Poggi de Figueiredo

Revolução Russa e revisionismo historiográfico: o retorno neoliberal da


“tese da continuidade” entre bolchevismo e stalinismo ......................................... 225
Marcio Lauria Monteiro

TERCEIRA PARTE. Capitalismo e Luta de Classes

O capitalismo e os historiadores: o revisionismo sobre o padrão de vida


durante a Revolução Industrial inglesa ..................................................................... 259
Demian Bezerra de Melo

O revisionismo a serviço da segregação urbana: a obra de Maurício


Dominguez Perez e a reabilitação das remoções de favelas ................................... 299
Marco M. Pestana

Culturalismo e sociedades “de uma classe só” nos estudos do banditismo ......... 331
Igor Gomes

Sobre os(as) Autores(as) ............................................................................................ 367


O capitalismo e os historiadores:
o revisionismo sobre o padrão de vida
durante a Revolução Industrial inglesa

Demian Bezerra de Melo

O ambiente cultural brasileiro tem sido marcado nos últimos anos


por uma presença cada vez maior do pensamento neoliberal,1 presença
esta que em vários casos tem implicado uma reinterpretação, no plano
da memória, de processos e eventos chave da história contemporânea.
Como defendi alhures,2 a operação revisionista na historiografia
contemporânea tem uma afinidade profunda com a emergência do
neoliberalismo entendido como fase específica do desenvolvimento
capitalista contemporâneo.3
Eventos como a Grande Depressão, por exemplo, reconhecidamente
abalariam a crença na racionalidade das chamadas “leis de mercado”.
Revisando os pressupostos teóricos do liberalismo ortodoxo, muitos
defensores do sistema buscariam saídas para seu salvamento. É bastante
lembrado que o contexto possibilitou o triunfo de noções como
planejamento econômico e do pleno emprego, sendo a Teoria geral do
emprego, do juro e da renda (1936) de John Maynard Keynes (1883-
-1946) considerada a obra emblemática desse momento da história do
pensamento econômico. Todavia, naquele mesmo ambiente, o britânico
Lionel Robbins (1898-1984) e o francês Jacques Rueff (1896-1978), além

1
DEMIER, Felipe; HOEVELER, Rejane Carolina (org.). A onda conservadora. Rio de Janeiro:
Mauad, 2016.
2
MELO, Demian Bezerra de. Revisão e revisionismo na historiografia contemporânea (Intro-
dução). In. MELO, Demian Bezerra de (org.). A miséria da historiografia. Rio de Janeiro: Con-
sequência, 2014, p.17-49.
3
HARVEY, David. Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008. JONES, Da-
niel Stedman. Masters of the Universe. Hayek, Friedman, and the Birth of Neoliberal Politics. Prin-
ceton University Press, 2012. SAAD FILHO, Alfredo. Neoliberalismo: uma análise marxista.
Revista Marx e o Marxismo, v.3, n.4, jan/jun 2015. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova
razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

259
260 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

dos austríacos Ludwig Von Mises (1881-1973) e Friedrich Von Hayek


(1899-1992), por exemplo, atribuíram às intervenções políticas de viés
reformista (“coletivistas”) que vinham sendo implementadas desde o
último quartel do XIX a causa do desastre de 1929.4 Como bem observou
Karl Polanyi (1886-1964), embora a crise da década de 1930 tenha
assinalado o colapso do liberalismo econômico, contraditoriamente
fortaleceu as posições mais dogmáticas que podiam recorrer ao argumento
de que “seus princípios não foram aplicados até o fim”.5
Entretanto, se naquele período de crise do capitalismo foram
produzidas visões pretendendo salvá-lo moralmente, os períodos de
crescimento da economia capitalista precisariam também de defesa
ideológica? Seria necessária também a produção de uma representação
idílica para tais momentos, ou o próprio crescimento econômico já
não seria suficiente para justificá-lo moralmente? Uma boa entrada
nessa questão apareceu no século XX num debate clássico: o padrão
de vida durante a Revolução Industrial na Inglaterra. Processo decisivo
na afirmação da hegemonia mundial inglesa no século XIX, aquela
Revolução tornou-se um paradigma do desenvolvimento econômico
na modernidade. Todavia, no que toca aos seus custos humanos, a
Revolução Industrial foi percebida como uma verdadeira catástrofe para
as pessoas mais pobres, cadinho de onde surgiria a chamada “questão
social” no século XIX.
O problema do crescimento da pobreza em meio à opulência moveu
até a reacionária Igreja Católica – instituição que havia rejeitado todos
os progressos da modernidade desde a Reforma, o Iluminismo e a
Revolução Francesa –, que apresentou uma “doutrina social” no fim
daquele século, com a encíclica Rerum Novarum (1891) do papa Leão
XIII. E não seria exagerado notar que o problema do pauperismo nas
sociedades industriais contribuiu para o surgimento de um novo campo
do saber científico como a Sociologia, que teve este como um de seus
primeiros objetos de estudo.6

4
Cf. DARDOT; LAVAL, A nova razão do mundo, op. cit., p.77.
5
POLANYI, Karl. A Grande Transformação. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.175.
6
Cf. BOTTOMORE, Tom. Introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p.18.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 261

O livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra de Friedrich


Engels (1820-1895), publicado em 1845, por exemplo, não teria sido
fruto da imaginação do jovem comunista e está inserindo numa ampla
gama de narrativas literárias que apareceram na Europa da Revolução
Industrial dedicadas à chamada “questão social”. Só a título de exemplo,
na apresentação que escreveu à mais recente edição brasileira do livro
de Engels, José Paulo Netto anota uma série de livros que naquela época
se dedicaram à “questão social”: Peter Gaskell, A população trabalhadora
das manufaturas da Inglaterra (1833); Alban de Villeneuve-Bargemont,
Tratado de economia política cristã ou pesquisas sobre o pauperismo
(1834); Aléxis de Tocqueville, Memória sobre o pauperismo (1835);
Louis-René Villermé, Quadro do estado físico e moral dos operários
das manufaturas de algodão, lã e seda (1840); Eugène Buret, A miséria
das classes trabalhadoras na França e na Inglaterra (1840); e Édouard
Ducpétiaux, Da condição física e moral dos jovens operários e dos meios
de melhorá-la (1843).7 Naquelas décadas iniciais da Revolução Industrial
até mesmo o eminente liberal William Gladstone (1809-1898), em 13 de
fevereiro de 1843, declarou:

Uma das características mais melancólicas da situação social do país é que a dimi-
nuição da capacidade de consumo do povo e o aumento das privações e da miséria
da classe trabalhadora é acompanhada, ao mesmo tempo, de uma acumulação cons-
tante de riqueza nas classes superiores e de um crescimento constante de capital.8

É claro que em sua trajetória posterior Gladstone abandonaria tal


preocupação em favor de uma visão benevolente do “sistema de fábricas”,
mas a opinião dele expressa àquela altura não pode ser compreendida
senão como uma evidência de uma percepção generalizada. E como não
lembrar de romancistas emblemáticos do século XIX, como Charles
Dickens (1812-1870), o escritor mais popular da Inglaterra vitoriana
que conheceu de perto o pauperismo e a desumanização no sistema

7
PAULO NETO, José. Apresentação de ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p.30.
8
Times, 14 de fev.1843, apud MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. São
Paulo: Boitempo, 2013, p.726.
262 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

fabril inglês,9 e que eternizou seu retrato em livros como Oliver Twist
(1837) e Tempos Difíceis (1854). Neste último, Dickens fala de uma
classe trabalhadora que não só é desesperadamente pobre, mas também
desumanizada a partir do advento das máquinas.10 Vê-se que o problema
do pauperismo não era apanágio do pensamento socialista.
Contudo, já na primeira metade do século XX surgiria uma importante
corrente da historiografia que buscou contrariar essa percepção
catastrófica sobre as consequências sociais da Revolução Industrial. Ao
contrário do que estava consagrado na literatura e na memória social,
agora o início do século XIX na Inglaterra era representado como uma
era onde a enorme prosperidade levava os sujeitos sociais a agora se
escandalizarem com algo, a pobreza, que “sempre constituiu a paisagem
social”. De acordo com esta leitura conformista, a Revolução Industrial
não tinha relação direta com aquele quadro, sendo na verdade a grande
responsável pelo “desaparecimento do trabalho infantil” (sic) e da
“criação de bem-estar-social” a partir de “milhões de empregos” nas
indústrias e dos novos bens produzidos pelo sistema fabril e disponíveis
para o consumo de massas. Não obstante a natureza marcadamente
ideológica da proposição, seus defensores recorreram a dados estatísticos
sobre as curvas salariais e produziram uma série de artigos publicados
em respeitadas revistas acadêmicas. Afirmando seu ponto de vista como
uma contribuição científica, essa operação revisionista (que não levou
este epíteto à época)11 foi alvo de crítica da emergente história social
britânica, que demonstrou a frágil base teórica e empírica desta posição,
conseguindo avançar para uma posição que não era só uma reiteração
da visão canônica, mas uma síntese muito superior. Estamos falando
das contribuições de Edward Palmer Thompson (1924-1993) e Eric
Hobsbawm (1917-2012), dois dos mais importantes historiadores do
século XX. Como veremos neste capítulo, a posição revisionista acabaria

9
Sendo o primogênito da família, em razão da prisão do seu pai provocada por uma dívida, teve
que trabalhar aos doze anos para sustentar sua mãe e irmãos.
10
Cf. DICKENS, Charles. Tempos Difíceis. São Paulo: Boitempo, 2014.
11
Cf. LOSURDO, Domenico. Il resivionismo storico: Problemi e miti. 5ª edição. Roma-Bari: La-
terza, 2002. Remetemos também ao nosso capítulo MELO, Revisão e revisionismo na historio-
grafia contemporânea, op. cit.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 263

por desaparecer no horizonte acadêmico, e esse debate historiográfico


foi francamente vencido pela história social.
Recentemente, com a mencionada difusão do ideário neoliberal no
ambiente cultural brasileiro, voltou a circular a tese revisionista sobre o
padrão de vida durante a Revolução Industrial inglesa. Em sites, blogs
e no mercador editorial difunde-se novamente aquele discurso. Por
exemplo, no panfletário Guia politicamente incorreto da história do mundo
o jornalista Leandro Narloch aborda o assunto com as seguintes palavras:

É uma distorção dos fatos dizer que as fábricas arrancaram as donas de casa de seus
lares ou as crianças de seus brinquedos”, conta Ludwig von Mises, um dos maiores
economistas do século 20 [sic]. “Os proprietários das fábricas não tinham poder para
obrigar ninguém a aceitar um emprego nas suas empresas. Podiam apenas contratar
pessoas que quisessem trabalhar pelos salários que lhes eram oferecidos. Mesmo que
esses salários fossem baixos, ainda assim eram muito mais do que aqueles indigen-
tes poderiam ganhar em qualquer outro lugar. Aquelas mulheres não tinham como
alimentar os seus filhos. Aquelas crianças estavam carentes e famintas. Seu único
refúgio era a fábrica; que as salvou, no estrito senso do termo, de morrer de fome.12

Em suma, de acordo com o raciocínio revisionista de um dos papas


do pensamento neoliberal mobilizado por Narloch, os capitalistas
praticamente fizeram um “favor humanitário” ao empregar aquelas
miseráveis criaturas em suas fábricas. Que von Mises seja descrito como
“um dos maiores economistas do século XX”, diz muito sobre o tipo de
literatura que estamos comentando.
O best-seller de Thomas Piketty O capital no século XXI, lançado
em 2013,13 trouxe uma contribuição importante para o balanço
do capitalismo nos dois últimos séculos, especialmente no que diz
respeito aos dados sobre a distribuição/concentração de renda. A crise

12
NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do mundo. São Paulo: Leya,
2013, p.59. É importante também observar que os tais Guias politicamente incorretos não são
uma iniciativa da chamada nova direita brasileira, e na verdade se originam nos Estados Uni-
dos, idealizado por Jeffrey Rubin, editor do Conservantive Book Club. Reúne uma coleção de
dezenas de números dedicados a uma espécie de guerra cultural contra aquilo que a nova direita
daquele país considera uma presença supostamente hegemônica da esquerda nos meios cultu-
rais, na mídia e no sistema universitário particularmente.
13
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014 [2013].
264 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

global iniciada com o crash de 2008 forneceu um ambiente bastante


favorável à recepção de uma obra como esta.14 Afinal, em O capital
do século XXI, partindo de uma ampla base empírica, o economista
francês demonstra que a concentração de riqueza se ampliou de
forma acachapante nos últimos dois séculos. É necessário lembrar que
Piketty não é propriamente um crítico do capitalismo, ao contrário, se
apresenta explicitamente como seu defensor, contudo um defensor de
uma modalidade regulada do capitalismo, calcada na defesa da taxação
das grandes fortunas e na constituição de mecanismos de segurança
social. Ainda assim, há passagens de seu livro que sugerem uma crítica
muito tímida ao neoliberalismo, como quando afirma que não é possível
“retroceder” para “políticas protecionistas”.
Não obstante sua orientação política pró-capitalista, de acordo
com David Harvey as conclusões de Piketty confirmam as tendências
históricas do capitalismo apresentadas por Karl Marx (1818-1883)
em seu O capital – em suma, a tendência contraditória de produzir,
ao mesmo tempo, riqueza concentrada num polo e miséria em outro
–,15 e talvez sejam precisamente as implicações políticas subjacentes
a esta confirmação que fazem o economista francês deixar claro
desde as primeiras páginas de seu livro sua discordância com a teoria
marxiana.16 Fundamentalmente, o livro de Piketty jogou uma luz
importante sobre os impulsos imanentes do capitalismo em produzir
miséria. Comentando a configuração da cena pública no século XIX

14
Diga-se de passagem, também a crítica de Marx ao capitalismo voltou à cena no mercado
editorial por causa da crise, com reedições de O capital em vários idiomas, incluindo uma nova
tradução publicada no Brasil pela editora Boitempo, do livro I em 2013, e do livro II, em 2014
(aguarda-se o livro III). Em 2008, a BBC noticiava que a editora alemã Karl Dietz havia vendido
mil e quinhentas cópias de O capital, duzentas só em setembro daquele ano. 1 “Crise aumenta a
procura por obras de Karl Marx na Alemanha.” BBC Brasil, 20 de outubro de 2008. Disponível
em http://bbc.in/2qEilbJ
15
“David Harvey: ‘O que os muitos dados reunidos por Piketty fazem é sugerir que Marx está
certo’”, O Globo, 29/11/2014. Disponível em https://glo.bo/2pK15wO
16
Sua crítica à abordagem de Marx é alvo de inúmeros problemas, feita a partir de uma leitura
no mínimo superficial. Ver DE PAULA, Patrick Galba. Apontamentos para uma crítica marxista
ao O capital no século XXI de Thomas Piketty. Marx e o Marxismo, v.2, n.3, pp.316-334. Além
disso, o próprio conceito de capital de Piketty é evidentemente neoclássico, dificilmente eficiente
em uma crítica ao sistema. Ver HARVEY, David. Reflexões sobre “O capital”, de Thomas Piketty.
Blog da Boitempo, 24/05/2014. Disponível em http://bit.ly/1pfA1V1
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 265

na Europa ocidental, escreve algo ligado justamente ao padrão de vida


durante a Revolução Industrial:

O fato mais marcante da época era a miséria do proletariado industrial. A despeito


do crescimento, ou talvez em parte devido a ele, e em razão do massivo êxodo rural
provocado pelo aumento da população e da produtividade agrícola, os operários
se amontoaram em cortiços. As jornadas de trabalho eram longas, e os salários,
muito baixos. Uma nova miséria urbana se desenvolveu, mais visível, chocante e,
sob certo aspecto, extrema do que a miséria rural do Antigo Regime. Germinal,
Oliver Twist e Os miseráveis não brotaram apenas da imaginação de seus autores,
bem como as leis que proibiram o trabalho de crianças menores de oito anos nas
fábricas – como na França em 1841 – ou menos de dez anos nas minas – como no
Reino Unido em 1842. O Tableau de l’état physique et moral des ouvriers employés
dans les manufactures [Quadro do estado físico e moral dos operários empregados
em fábricas], publicado em 1840 na França pelo Dr. Louis René Villermé e que
inspirou a tímida legislação de 1841, descreve a mesma realidade sórdida que A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra, publicado em 1845 por Engels.17

E a seguir, afirma: “Dos anos 1800-1810 aos anos 1850-1860, os salários


dos operários estagnaram em níveis muito baixos – próximos ou
mesmo inferiores aos do século XVIII e aos dos séculos anteriores.”18
Como se vê, Piketty em tais assertivas posiciona-se claramente ao lado
da visão canônica no debate sobre os custos humanos da Revolução
Industrial, muito diferente daquela visão que serve de suporte para o
livro panfletário de Narloch que, bem ao estilo da nova direita brasileira,
apresenta uma posição específica de uma controvérsia acadêmica como
se fosse parte de um “consenso científico”.

Origens do revisionismo

A origem do revisionismo sobre o padrão de vida dos trabalhadores


na Inglaterra industrial se localiza ainda no primeiro pós-guerra,

17
PIKETTY, op. cit., p.15.
18
Idem, p.15.
266 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

quando Dorothy George em 1925 publicou London life in the eighteenth


century, que serviu para afirmar que a situação social no século XIX
era menos deplorável que no XVIII.19 Um ano depois, em 1926 John
Harold Clapham publicou o livro Economic History of Modern Britain,
estudo que apresentou dados estatísticos para sustentar a tese de que,
na verdade, teria havido um aumento constante dos salários entre
1790 e 1850, tendo, por isso, a situação da classe trabalhadora inglesa
melhorado naquele período.
No mesmo ano de 1926, W. H. Hutt publicou o artigo “The factory
system of the early nineteenth century” na prestigiada revista Economica
(do Departamento de Economia da London School of Economics).20
O alvo era desconstruir as narrativas A History of Factory Legislation
de Hutchins e Harrison, e principalemente The Two Labourer (1917)
e Lord Shaftesbury (1923), do casal John L. e Barbara Hammond,
autores identificados com o socialismo fabiano21 que se valeram do
relatório produzido pelo “Comitê Sadler” em 1832. Hutt aponta uma
enorme fragilidade empírica nestes trabalhos, já que o Comitê Sadler
reconhecidamente ficaria conhecido como parcial. O próprio Engels,
como lembrou Hutt, havia censurado essa fonte.22
O objetivo explícito do artigo de Hutt é desqualificar as bases que
justificaram moralmente a Legislação Fabril (as leis trabalhistas),
numa argumentação que não tem pudores de defender a “civilidade”
do trabalho infantil e de afirmar que a redução da jornada de trabalho

19
Para reconstituição deste debate utilizamos as informações contidas em: HARTWELL, Ronald
Max. The Rising Standard of Living in England, 1800-1850. The Economic History Review, v.13,
n.3, 1961. HOBSBAWM, Eric J. O padrão de vida inglês de 1790 a 1850. In. Os Trabalhadores.
Estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e Terra, 2000 [1957-1963], p.83-129.
20
Utilizamos a republicação em HUTT, W. H. The Factory System of the Early Nineteenth Cen-
tury. In. HAYEK, Friedrich Von (org.). Capitalism and the historians. Chicago: The Univertity of
Chicago Press, 1954, p.160-188.
21
BARKER, Rodney. Socialismo Fabiano (Verbete). In. BOTTOMORE, Tom; OUTWHITE,
William (org.). Dicionário do pensamento social no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.705.
22
Cito: “relatório era nitidamente parcial, preparado exclusivamente por inimigos do sistema fa-
bril e para servir a fins partidários – Sadler, levado por sua nobre paixão, deixou-se enredar pelas
afirmações mais absurdas e insensatas; por seu próprio modo de formular as questões, induziu
a respostas que, se é certo que continham parte de verdade, revelavam-se de modo unilateral e
distorcido.” ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, op. cit., p.206.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 267

“prejudicou os trabalhadores”. Para Hutt, todos os relatos de degradação


física e moral do trabalho infantil são simplesmente “calúnias”. Nenhuma
das evidências apontadas por médicos que embasaram a campanha
pela redução da jornada de trabalho infantil são confiáveis para Hutt,
que afirma simplesmente que as “opiniões médicas (em oposição às
observações), não têm valor”.23 Contudo, as observações de médicos
que participaram do Comitê dos Lords de 1818 são tomadas como
evidência confiável de que, na verdade, havia uma “grande exagero”
quanto às péssimas condições de trabalho, não obstante ter sido esse
Comitê dos Lords tão viciado quanto o Comitê Sadler, entretanto num
sentido plenamente favorável aos fabricantes.
Desses médicos que ele considera dignos de atenção recolhe
depoimentos que afirmam que o trabalho infantil não era degradante
(não produzia deformidades, nem crescimento atrofiado das
crianças, e os casos existentes não tinham relação com o sistema
fabril), afirmando categoricamente que as restrições ao trabalho
infantil foram responsáveis por uma piora geral, pois a entrada de
irlandeses no lugar das crianças (um fato empírico) trouxe uma
péssima influência moral para os ingleses.24 O racismo imperialista é
seguido, naturalmente, pelo darwinismo social. Cita Herbert Spencer
de The Man versus th State (1884)25 para levantar suspeitas sobre as
verdadeiras intenções dos inspetores de fábrica, que estariam mais
interessados em disseminar uma imagem de degradação no ambiente
das fábricas como forma de valorizar sua própria função social do
que de cumprir com o seu dever. Essa desqualificação de todo o
trabalho de investigação das condições sanitárias e da qualidade de
vida da classe trabalhadora tem uma explícita intenção de fazer uma
apologia ao laissez-faire de um modo tão partidário como o daqueles
que Hutt visa combater.

23
HUTT, The Factory System of the Early Nineteenth Century, op. cit., p.166.
24
“Eles eram descritos como ‘uma raça incivilizada’, e pode ser que sua tradição social inferior
tenha reagido ao resto da população.” HUTT, op. cit., p.176.
25
Voltaremos ao significado dessa obra de Spencer a seguir.
268 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

O fato dos benefícios aparentes das primeiras Leis Fabris serem, em grande par-
te, ilusórios, é sugerido pela melhoria constante que sem dúvida ocorreu antes de
1833, em parte como resultado do desenvolvimento do próprio sistema fabril.26

Sua conclusão é a de que existe uma tendência geral de exagerar os


“males” (aspas dele) do sistema fabril “antes do abandono do laissez-faire”,
que a legislação trabalhista não foi essencial para o desaparecimento
daqueles “supostos males”, e que na verdade esta trouxe “desvantagens”
aos trabalhadores. A mensagem final é a de que as Leis Fabris serviram
para “obscurecer e dificultar remédios mais naturais e desejáveis”.
E se no plano mais ideológico o propósito do revisionismo de George,
Clapham e Hutt era desqualificar os trabalhos matriciais do pensamento
socialista, no plano imediato sua polêmica era com as obras The Village
Labourer (1911), The Town Labourer (1917) e The Skilled Labourer (1919),
publicadas pelo casal Hammond, e cujo conteúdo se assemelha ao teor
do livro de Engels de 1845. E não por acaso foi John L. Hammond quem
primeiro respondeu diretamente Clapham e Hutt no artigo “The Industrial
Revolution and Discontent”, na Economic History Review de janeiro de 1930
(II, n.2). Todavia, sua réplica pode ser considerada decepcionante, já que
não buscou problematizar os dados empíricos apresentados por Clapham,
aceitando-os acriticamente e introduzindo uma frágil argumentação
moralizante sobre a “felicidade” dos trabalhadores como forma de refutar
o argumento revisionista sobre o suposto crescimento dos salários.
Pode-se dizer que é neste ponto que se estabeleceu a controvérsia
entre, de um lado, uma escola que se passou a chamar de “pessimista”,
contra outra “otimista”, sendo a “pessimista” constituída por uma longa
lista de autores que iam dos críticos socialistas como Marx e Engels, de
inspetores de fábrica aos romancistas como Charles Dickens, chegando,
como veremos, aos historiadores sociais do século XX. Os “otimistas”,
que chamamos aqui de revisionistas, apresentaram evidentemente suas
credenciais acadêmicas, fazendo parecer que se tratava de um debate
entre “ideólogos” versus “cientistas”. Nada, aliás, mais ideológico que
tratar uma controvérsia científica em termos tão mistificadores.

26
HUTT, op. cit., p.185.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 269

O revisionismo dos neoliberais

Após a Segunda Guerra Mundial o tema dos resultados humanos da


industrialização voltou à tona, só que agora enquadrado na dinâmica
política da Guerra Fria. A necessidade de justificar ideologicamente o
capitalismo e oferecer um modelo de desenvolvimento para os processos
de reconstrução na Europa Ocidental deveriam contar com o apoio de
especialistas acadêmicos no plano ideológico.
Já em 1949 o historiador e economista Thomas Southcliffe Ashton
publicou no Journal of Economic History o artigo “The standard of life
of the works in England, 1790-1830”,27 cuja argumentação era a de que
a situação da classe trabalhadora inglesa melhorou depois de 1820,
pelo menos no que se refere a maior parte dela, embora fosse possível
identificar uma pequena parte da mesma que não teve tanta sorte.
Assim, o número de beneficiários com o progresso econômico seria
muito maior, mas como existiu uma parcela com menos sorte, Ashton
argumenta que as imagens pessimistas sobre o padrão de vida da classe
trabalhadora seria resultado de um olhar unilateral sobre estas. Um dos
pontos mais fortes de seu argumento é o da constatação do crescimento
demográfico e da expectativa de vida durante as primeiras décadas da
Revolução Industrial inglesa. Por sua vez, os dados sobre o crescimento
dos salários, central na argumentação de Clapham, é mencionado
de passagem por Ashton, a verdade é que seu artigo não apresenta
novas evidências para a opinião “otimista”, mas tão somente uma nova
argumentação, mais equilibrada, é verdade, mas nada mais que isso.
Publicada em 1949, Ação Humana – um tratado de economia é
considerada a grande obra de Ludwig Von Mises, de onde Narloch
tira a citação que vimos acima. Pois bem, nesse trabalho, no capítulo
denominado “Trabalho e Salários” (21 da parte IV), há um subitem
denominado “Consideração quanto à interpretação popular da
‘Revolução Industrial’”, onde todo o argumento revisionista da “visão

27
Republicado em HAYEK, Capitalism and the Historians, op. cit., p.127-159.
270 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

otimista” é sintetizado.28 É absolutamente cristalino no texto que o


objetivo da intervenção de Von Mises na controvérsia era o de abolir
a base do argumento moral que embasou a legislação trabalhista e
legalização dos sindicatos.
Pouco tempo depois, uma mesa redonda internacional sobre o tema
foi organizada em 1951 na cidade francesa de Beauvallon pela Sociedade
Mont Pélèrin, presidida por Friedrich A. Hayek, o mais conhecido
discípulo de von Mises, também membro de tal sociedade. O espírito
da Sociedade era a oposição a tudo aquilo que cheirasse ao que Hayek
chamou de “construtivismo social”.29 Recém chegado nos EUA para
atuar na Universidade de Chicago, Hayek já era conhecido do público
anglo-saxão devido a sua atuação como docente no Departamento
de Economia da London School of Economics desde 1931, na crítica
ao planejamento econômico expressa em trabalhos como Collectvist
Economic Planning (1935) e na autoria do afamado panfleto The road
to serfdom [O caminho da servidão], de 1944.30 Da mesa redonda em
Beauvallon participaram Hayek, Ashton, L. M. Hacker e Bertrand de
Jouvenel, cujos papers foram editados em livro por Hayek, que incluiu
no volume os já mencionados artigos de Hutt (1926) e Ashton (1949).
Publicado com o nome de Capitalism and the historians,31 é certamente
um marco importante na controvérsia historiográfica, por sintetizar os
principais argumentos desta corrente revisionista “otimista” e assim vale
situar a natureza da iniciativa de edita-lo.
Como já é bastante conhecido na literatura sobre o neoliberalismo,
a Sociedade Mont Pélèrin foi fundada em 1947 por um grupo bastante

28
VON MISES, Ludwig. Ação Humana – um tratado de economia. 3ª Ed. São Paulo: Instituto
Ludwig von Mises Brasil, 2010, p.704-711.
29
Cf. PRADO, Eleutério. (Neo)Liberalismo: da ordem natural à ordem moral. Outubro, São
Paulo, n.18, 2009.
30
The road to serfdom foi utilizado pelos apoiadores do conservador Winston Churchill no
contexto da proximidade das eleições gerais na Inglaterra, ocorridas em 1945 e onde saíram
vitoriosos os trabalhistas. Seu pressuposto é o de que qualquer tentativa de “engenharia social”
ou de “planejamento social” conduz inevitavelmente a experiências “totalitárias”. Cf. HAYEK,
Friedrich. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército/ Instituto Liberal, 1994.
31
HAYEK, F.A (ed.). Capitalism and the historians. Chicago: The Univertity of Chicago Press,
1954.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 271

singular de intelectuais de direita que rejeitavam, naturalmente, o


socialismo, mas também as soluções keynesianas de regulação do
capitalismo que estiveram em voga na maior parte dos países capitalistas
centrais após a Segunda Guerra Mundial, incluindo os Estados Unidos
e a Inglaterra.32 Durante as décadas de 1950 e 1960, as ideias desse
grupo não eram capazes de sensibilizar os formuladores de políticas
públicas e mesmo entre intelectuais de direita,33 e só na década de 1970
conseguiram dar o tom.34
É preciso lembrar que aquele era também um contexto em que os
países centrais do capitalismo conheciam importante crescimento
econômico, ao mesmo tempo em que eram desafiados pela expansão do
mundo socialista em vastas regiões do planeta. Os influxos da Guerra
Fria naturalmente pontuaram as intervenções naquele seminário, cujos
autores assumiam para si a tarefa da defesa moral do capitalismo.
E não por acaso, logo na Introdução à Capitalism and the historians,
Hayek apresenta o tal seminário de 1951 como realizado por um
“grupo internacional de economistas, historiadores, e filósofos sociais”,
que regularmente se reuniam para discutir os problemas referentes à
“preservação da sociedade livre contra a ameaça totalitária”.35 Vejamos o
conteúdo dessa Introdução.
Em primeiro lugar é interessante como Hayek trata a controvérsia
como uma oposição entre uma opinião pública mal informada versus
História Econômica Moderna (objetiva, acadêmica etc.). Curiosamente
ele também fala da interpretação Whig da história inglesa como muito

32
Formada ainda em 1947, agrupando pensadores como Hayek, von Mises, Milton Friedman,
Robbins, Karl Popper, James Buchanan, Walter Euken, Wilhelm Röpke, Alexander Rüstow, Wal-
ter Lippmann entre outros, e existe até hoje. JONES, Masters of the Universe, op. cit., p.59-66. A
decisão de publicar os papers da sessão de 1951 foi uma exceção na regra da sociedade, que era
o de manter as discussões dos encontros no seu circulo interno.
33
Um exemplo digno de nota é expresso por Daniel Bell, que num livro de teor claramente anti-
comunista escreveu diretamente contra Hayek: “Poucos liberais ‘clássicos’ insistem hoje em que
o Estado se mantenha à margem da economia, e poucos conservadores sérios – pelo menos na
Inglaterra e no continente da Europa – veem o Welfare State um ‘caminho da servidão’. BELL,
Daniel. O fim da ideologia. Brasília: Ed.UNB, 1980, p.236.
34
HARVEY, O neoliberalismo, op. cit.
35
HAYEK, Capitalism and the historians, op. cit., p.v.
272 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

superior à interpretação socialista, só que esta, escreve Hayek, “tem


governado o pensamento político nas últimas duas ou três gerações”.36
Com base nesta avaliação, afirma que a visão canônica sobre o padrão
de vida durante a Revolução Industrial seria na verdade uma “lenda”,
um “mito”, um “um mito supremo que mais do que qualquer outro
tem servido para desacreditar o sistema econômico a que devemos
nossa civilização atual”.37
Enfim, basicamente Hayek afirma que os estudos acadêmicos da
História Econômica já havia refutado a “visão pessimista”, contudo a
opinião pública não tinha absorvido esse “esclarecimento” e continuava
a professar aquele “mito supremo”. Ele exemplifica esse continuísmo do
“mito” mencionando sua aceitação por diversos autores, mesmo liberais,
como o italiano Guido de Ruggiero. Entre os culpados pela divulgação
da “visão pessimista” estão naturalmente os seguidores de Karl Marx,
os socialistas fabianos (os Hammonds, os Webbs e Bertrand Russel),
mas também a Escola Histórica Alemã (a velha adversária da Escola
Austríaca de Economia)38 na figura de Werner Sombart, e os chamados
institucionalistas americanos (ele não cita, mas estamos falando de
pessoas como John Kenneth Galbraith), todo mundo acusado de
“socialismo”.
Para Hayek, não se tratava simplesmente de negar a existência da
miséria, mas de explica-la como resultante das estruturas pré-capitalistas,
de modo que a prosperidade provocada pelo “sistema industrial” fosse
apontada como responsável pelo aguçamento da consciência social
para um problema que “sempre existiu”.39 Assim, “socialistas de todos os
matizes” que estudaram o assunto o fizeram com base em preconceitos,
ajudando a moldar uma opinião pública anticapitalista.

36
HAYEK, Friedrich A. History and Politics. In. HAYEK, Capitalism and the historians, op. cit., p.7.
37
Idem, p.9-10.
38
Fundada por Carl Menger no último quartel do século XIX, tendo feito parte da chamada “Re-
volução Marginalista” que deu origem à Economia Neoclássica, a Escola Austríaca teve como
seu primeiro embate a controvérsia do método com a Escola Histórica Alemã, capitaneada por
Gustav Schmoller. Cf. FEIJÓ, Ricardo. Economia e Filosofia na Escola Austríaca. Menger, Mises,
Hayek. São Paulo: Nobel, 2000, p.15 e passim.
39
HAYEK, History and Politics, op. cit., p.18-19.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 273

Na reunião da Sociedade de Mont Pélèrin em 1951, a discussão


girou em torno do paper “The Treatment of Capitalism by Historians”,
de T. S. Ashton.40 O texto inicia-se com um lamento sobre a influência
da leitura “pessimista” nos currículos universitários, com o “curso da
história inglesa desde 1760 até a fundação do Estado-providência em
1945 tendo sido marcado pelo suor e opressão”. Seria tão somente uma
história reconstruída de forma parcial, com base, por exemplo, nos
Livros Azuis, e nas narrativas produzidas pelos supostos “inimigos
do sistema fabril”, entre os quais enquadra Marx e Engels, que
teria transmitido sua influência aos socialistas fabianos ingleses,
à Escola Histórica Alemã e à história econômica de viés reformista
exemplificada por Arnold Toynbee. Deste modo, o revisionismo
“otimista” (apologético, seria o melhor termo) apresenta dados
estatísticos questionáveis (como veremos) para dizer que o próprio
dinamismo econômico dos anos iniciais da Revolução Industrial
produziu “justiça social” até a década de 1850.

Digressão: o lugar do neoliberalismo na operação revisionista

O lugar do neoliberalismo na história do liberalismo é talvez a


melhor chave para iluminar a razão pela qual um autor como Hayek
se empenhou em organizar uma intervenção de fôlego no debate sobre
o padrão de vida durante a Revolução Industrial. Como bem pontuou
Michel Foucault (1926-1984), o neoliberalismo não pode ser entendido
como uma simples retomada dos pressupostos do liberalismo clássico,
como muitas vezes se repete.41 Trata-se de uma corrente nova, que, por
exemplo, abole o compromisso que havia entre a tradição clássica e o
princípio do laissez-faire.42

40
ASHTON, T. S. The Treatment of Capitalism by Historians. In. HAYEK, Capitalism and the
historians, op. cit., p.31-61.
41
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.158-165.
42
Idem. DARDOT; LAVAL, A nova razão do mundo, op. cit.
274 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

Uma das grandes realizações burguesas do século XIX foi a ordem


liberal na Inglaterra. Contudo, ao contrário de uma ordem supostamente
natural, a ordem liberal resultou de uma série de iniciativas legislativas
que criaram os quadros institucionais básicos do livre mercado, a
saber, o mercado de trabalho competitivo, o padrão-ouro automático
e o livre comércio internacional, que resultaram de uma legislação que
compreendeu a Bank Act de 1844, o Anti-Corn Law Bill de 1846 e antes
deles a Poor Law de 1834.43 O fato é que a própria Revolução Industrial
contou inicialmente com um ambiente muito distinto daquele presente
na mitologia manchesteriana, e o protecionismo na indústria têxtil foi a
regra na sua primeira fase.
No que se refere ao pensamento liberal, vale um breve comentário
que localize o sentido da operação revisionista em tela. A verdade é
que a própria tradição liberal clássica é muito mais complexa, e já no
XIX pôde-se observar uma bifurcação entre duas grandes vertentes no
liberalismo.44 A primeira, calcada no utilitarismo de Jeremy Bentham
(1748-1832) e que culmina em John Stuart Mill (1806-1873), onde há
um compromisso entre compatibilizar as noções de livre mercado com
a reforma social e a democracia, daí Stuart Mill ser considerado um dos
primeiros democratas liberais. Por outro lado, em oposição a essa mesma
tendência, temos aquela cuja maior expressão é Herbert Spencer (1820-
-1903) que se opõe à reforma política e social, seja a extensão do sufrágio
universal, sejam as leis fabris que limitaram os termos da exploração da
força de trabalho. Por exemplo, em 1884, no mesmo ano em que ocorre
a reforma eleitoral inglesa que incorporou o conjunto dos cidadãos do
sexo masculino no universo dos direitos políticos, Spencer publica o já
mencionado The Man versus the State [O indivíduo contra o Estado],
onde a noção generosa presente no liberalismo de Adam Smith (1723-
-1790) – segundo a qual a busca egoísta de cada indivíduo pela satisfa-
ção de suas necessidades privadas produziria o aumento do bem-estar

43
Sobre o intervencionismo político na instauração da ordem econômica liberal, Cf. GRAMSCI,
Antonio. Cadernos do cárcere. Vol.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.47.
44
MERQUIOR, José Guilherme. Liberalismo – antigo e moderno. 2ª Ed. São Paulo: É Realiza-
ções, 2014.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 275

geral –45 é substituída pela noção de “sobrevivência dos mais aptos”, onde,
portanto, se pressupõe a eliminação dos indivíduos “não adaptados”.
De acordo com Polanyi, a lista de “restrições à liberdade” arroladas
por Spencer neste livro é simplesmente patética, pois inclui medidas
destinadas a impedir o emprego de crianças em atividades não só
insalubres como fatais, a criação do corpo de bombeiros e até o controle
público sobre alimentos, medicamentos e vacinas obrigatórias.46 Para
Spencer, tais regulações seriam um “atentado à liberdade”, num raciocínio
de sabor malthusiano que seria retomado por autores neoliberais como
von Mises e Hayek no século XX.
Ora, qual seria o “caminho abandonado” assinalado pelo panfleto
hayekiano de 1944 senão a reiteração da mesma lamentação de
Spencer contra a democracia e reforma social?47 Não por acaso que, se
em 1944 Hayek ainda visa combater o socialismo identificando-o com
toda forma de planejamento econômico como matriz de experiências
totalitárias (num argumento que parece reivindicar a democracia
como garantia da liberdade), em fins dos anos 1970 (quando suas
ideias começaram a serem levadas à sério e inspiraram as experiências
pioneiras do neoliberalismo) Hayek deixou clara sua “desilusão” com
a democracia.48 Em suma, para o velho Hayek a democracia militava
contra a liberdade de mercado, um raciocínio que é uma espécie de
coroamento de sua obra.49

45
É o que está sugerido na famosa metáfora da “mão invisível”.
46
POLANYI, A Grande Transformação, op. cit., p.178.
47
Cf. FOUCAULT, Nascimento da biopolíica, op. cit., p.158 e passim. DARDOT; LAVAL, A nova
razão do mundo, op. cit., p.45-55.
48
Isso irá aparecer de forma cristalina no último volume de sua trilogia Law, Legislation and
Liberty, onde se lê: “(...) o termo democracia deixou de designar uma concepção definida, que
alguém possa abraçar sem maiores explicações. Em alguns dos sentidos em que é hoje frequen-
temente empregado, tornou-se mesmo uma grave ameaça aos ideais que outrora pretendeu ex-
pressar. Embora eu acredite firmemente que o governo deve agir segundo princípios aprovados
pela maioria do povo, sendo isso indispensável à preservação da paz e da liberdade, devo ad-
mitir com franqueza que, se a democracia é entendida como governo conduzido pela vontade
irrestrita da maioria, então não sou um democrata e considero inclusive tal governo pernicioso
e, a longo prazo, inexequível.” HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade. Vol.III. A
ordem política de um povo livre. São Paulo: Visão, 1985 [1979], p.43.
49
MERQUIOR, Liberalismo..., op. cit., p.227.
276 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

Em sua tese de PhD em História na Universidade da Pensilvânia,


Masters of the Universe,50 Daniel Stedman Jones refaz a trajetória do
neoliberalismo a partir de uma periodização bastante interessante sobre
o desenvolvimento de sua teoria. Localiza o momento de gestação do
neoliberalismo entre a década de 1920 e 1950, sendo o debate sobre
o “cálculo socialista” protagonizado por Mises na década de 1920 e
posteriormente retomado por Hayek como um momento originário que
culmina na realização do Colóquio Walter Lippmann, em 1938 na capital
francesa. A partir da constituição da Sociedade de Mont Pelerin em 1947
inicia-se uma segunda fase, que ganharia força entre a década de 1950 até
os anos 1980. Enquanto na primeira fase a moderação no discurso era o
tom, nessa segunda fase há uma defesa mais estridente do livre mercado
e da desigualdade social como motor do progresso social e econômico.
Está aqui a chave para o entendimento da intervenção de Hayek e dos
historiadores “otimistas”, então, nesse sentido a caracterização dessa
corrente como neoliberal não é mero clichê esquerdista.

Engels, Marx e as condições de vida da classe trabalhadora

Até agora o leitor deve ter observado que o revisionismo “otimista”


priorizou a interlocução com a obra dos socialistas fabianos, deixando de
lado a polêmica com o marxismo. É hora de uma mirada nos principais
pontos da contribuição de Marx e Engels nessa controvérsia para em
seguida discutir como a historiografia marxista inglesa se posicionou.
O que torna mais interessante o relato produzido por Friedrich
Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra é fato de que
foi resultado de um profundo trabalho de campo que o jovem alemão
realizou nas áreas industriais inglesas, particularmente na emblemática
Manchester. Fixando-se no início da década de 1840 para administrar os
negócios que sua família possuía na região, contrariou as expectativas,
tornando-se comunista. Na Inglaterra, Engels fica de novembro de 1842

50
STEDMAN JONES, Master of the Universe, op. cit.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 277

até agosto de 1844, quando retorna a Prússia, publicando o livro em 1845.


Será com base em suas observações in loco, além da documentação ao
qual recorre (os relatórios dos inspetores da saúde pública, a imprensa
etc.) que Engels apresenta os relatos tocantes presentes em seu livro. Cito:

O relatório da Comissão Central constata que: os fabricantes raramente empregavam


crianças de cinco anos, com frequência as de seis anos, muitas vezes as de sete anos e,
na maior parte dos casos, as de oito ou nove anos; a jornada de trabalho durava de ca-
torze a dezesseis horas (não incluídos os horários de refeição); os fabricantes permitiam
que os vigilantes maltratassem, inclusive espancando, as crianças e, muitas vezes, eles
mesmos o faziam. Dá notícia do caso de um industrial escocês que, a cavalo, perseguiu
um operário fugitivo de dezesseis anos, agarrou-o e trouxe-o de volta, espancando-o
com um enorme chicote e fazendo-o correr à velocidade do cavalo (...)51

No que toca às fontes, Engels é bastante cuidadoso na utilização


dos relatórios dos inspetores, e, como o próprio Hutt assinala, tece
considerações críticas a Comissão Sadler com as seguintes palavras:

relatório era nitidamente parcial, preparado exclusivamente por inimigos do sis-


tema fabril e para servir a fins partidários – Sadler, levado por sua nobre paixão,
deixou-se enredar pelas afirmações mais absurdas e insensatas; por seu próprio
modo de formular as questões, induziu a respostas que, se é certo que continham
parte de verdade, revelavam-se de modo unilateral e distorcido.52

Não obstante, é capaz de assinalar as parcialidades também presentes no


“contra-relatório” encomendados pelos industriais. Diz Engels:

Trata-se de um relatório que se aproxima, se comparado àquele da comissão


Sadler, um pouco mais da verdade, mas suas distorções, naturalmente, vão na
direção oposta. A cada página, patenteia-se a simpatia pelos industriais, a des-
confiança diante do relatório de Sadler e a hostilidade em face dos operários
que se organizam autonomamente e dos defensores da lei das dez horas; jamais
reconhece aos operários o direito a uma existência humana, a atividades inde-
pendentes e a opiniões próprias; censura-os pretextando que, ao defenderem a
lei das dez horas, estavam mais preocupados consigo mesmos do que com a pro-

51
ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, op. cit., p.188-189.
52
Idem, p.206.
278 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

teção das crianças; aos operários que reivindicam mais ativamente, chama-os
demagogos, maus elementos e mau-intencionados etc.

Assim, embora com todos os limites, tal relatório não consegue esconder
argumentos favoráveis à elaboração de uma lei que limitaria a jornada
de trabalho em dez horas diárias (lei conquistada só em 1847, e assim
mesmo com muita ressalvas, como veremos mais à frente). E ainda
com todas as limitações, o mesmo relatório acabou por impulsionar a
aprovação da primeira lei fabril de 1833, que limitava o trabalho infantil.
A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, contudo, não ficaria
imune à onda revisionista promovida pela chamada escola “otimista”
do século XX. O historiador Eric Hobsbawm evidenciou a ambição já
assinalada de desacreditar as bases empíricas de um trabalho como o de
Engels, embora o alvo preferencial, como vimos, fossem os trabalhos dos
Hammonds. Uma crítica endereçada à Engels aparece na apresentação
de uma reedição de 1958 de A situação da classe trabalhadora inglesa,
escrita por W.H. Chaloner e W.O. Henderson. Sobre estes, Hobsbawm
teceu o seguinte comentário:

O fato de os Drs. Chaloner e Henderson terem se concentrado em Engels é devido


ao fato de que o seu livro sobre as condições da classe trabalhadora era a única
obra contemporânea importante que tentava tratar da classe trabalhadora como
um todo, de que foi impressa constantemente, e é geralmente considerada (e com
razão) pelos historiadores não-Marxistas como “um relato digno de confiança que
eles podem recomendar com segurança aos seus alunos”(...)53

Em sua ambição em desacreditar o relato engelsiano, Chaloner e


Henderson chegam ao ponto de culpar os próprios trabalhadores pelas
suas condições de vida nas primeiras décadas do século XIX. De acordo
com eles, em vez de “racionalizar seus gastos”, os trabalhadores tinham
despesas “inúteis”, como “bebidas, jogo e fumo”.54 Seria praticamente
impossível entender a onda de protestos operários ocorrida na Inglaterra

53
HOBSBAWM, Eric. A História e as “satânicas fábricas escuras”. In. Os Trabalhadores. Estudos
sobre a História do Operariado. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.135-136.
54
Idem, p.143.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 279

na primeira metade do século XIX, cujo auge foi a agitação do movimento


Cartista (1838, 1842 e 1848), se houvesse alguma razão neste tipo de
argumentação revisionista. E na verdade esse que é o ponto: o revisionismo
busca, tão somente, deslegitimar toda a trajetória do movimento operário
e socialista como algo ilegítimo, sem razão de ser, que é a outra face da
moeda da apologia ao capitalismo, conclui Hobsbawm.55
Vejamos agora como Marx tratou a questão.
No capítulo dedicado à grande indústria em O capital, Marx inicia
sua exposição ironizando o comentário de John Stuart Mill em seus
Princípios de Economia Política (1848), de que as invenções mecânicas
até aquele momento “não tinham servido para aliviar a labuta diária dos
trabalhadores”. “Não é esta a finalidade da maquinaria quando utilizada
no modo de produção capitalista”, diz Marx para em seguida explicar:

Como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, ela deve


baratear mercadorias e encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador
necessita para si mesmo, a fim de prolongar a outra parte de sua jornada, que ele
dá gratuitamente para o capitalista. Ela é o meio para a produção de mais-valor.56

Sob as condições do modo de produção capitalista, a Revolução


Industrial significou a entrada de mulheres e crianças (de até 6 anos!)
na linha de produção, já que as inovações deslocaram a necessidade da
força física permitindo que até a mão de obra infantil pudesse operar
as máquinas, e assim possibilitando que os capitalistas pudessem
baratear seus custos com o pagamento de salários mais baixos.57
Significava também a total perda de controle sobre o processo e até o
ritmo de trabalho, controle esse que os trabalhadores possuíam durante
a fase manufatureira do capitalismo, estabelecendo aquilo que Marx
denominou de subsunção real do trabalho ao capital. E quebrando essa

55
HOBSBAWM, O debate do padrão de vida: um pós-escrito, In. Os Trabalhadores, op. cit.,
p.149-154.
56
MARX, O capital, op. cit., p.445.
57
“Com a incorporação massiva de crianças e mulheres ao pessoal de trabalho combinado, a
maquinaria termina por quebrar a resistência que, na manufatura, o trabalhador masculino
ainda opunha ao despotismo do capital.” Idem, p.475.
280 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

resistência, se permitia também forçar o prolongamento da jornada


de trabalho (ou seja, do mais-valor absoluto), além da intensificação
do próprio trabalho. Contra essa tendência imanente ao modo de
produção efetivamente capitalista, foram estabelecidas leis fabris que
se destinavam a evitar que a sociedade conhecesse uma pauperização
descontrolada, limitando paulatinamente a jornada de trabalho, primeiro
para crianças e só depois para o conjunto da classe trabalhadora. Trata-
-se daquilo que, a partir de outro registro teórico, Polanyi denominou
de contramovimento protetor da sociedade contra o livre mercado.58
Voltando à crítica marxiana, a mencionada lei fabril de 1833 insere-
-se nesse processo como a primeira grande iniciativa para deter a sanha
desmedida do capital em extrair o mais-valor. Antes disso, desde 1802
o Parlamento já havia aprovado cinco leis trabalhistas. Contudo, como
lembra Marx, o Parlamento “foi esperto o bastante para não destinar
nem um centavo para sua aplicação compulsória, para a contratação de
funcionários necessários ao cumprimento da lei etc.”59 Como assinalou
um relatório de inspetores de fábrica, de abril de 1860, citado por Marx,
“O fato é que, antes da lei de 1833, crianças e adolescentes eram postos
a trabalhar a noite toda, o dia todo, ou ambos, ad libitum [à vontade].”60
O aumento da mortalidade infantil durante o século XIX na
Inglaterra foi um dos elementos que moveu o mundo político inglês
a promulgar as chamadas leis fabris, que, não obstante a grita de
industriais livre-cambistas, almejaram limitar a taxa de exploração dos
trabalhadores. Marx localiza a evolução da legislação sobre a jornada de
trabalho desde o Estatuto do rei Eduardo III (1349) até o fim do século
XVIII como tendo elevado-a até as 12 horas diárias. Com a Revolução
Industrial ultrapassou-se rapidamente essa barreira, e a existência de
jornadas de 16 horas generalizou-se, sob as condições mais desumanas,
até que uma reação na sociedade colocasse um freio à voracidade do
capital pelo mais-trabalho.61

58
POLANYI, A Grande Transformação, op.cit., p.178.
59
MARX, O capital, op. cit., p.350.
60
Idem, p.350.
61
“A consolidação de uma jornada de trabalho normal é o resultado de uma luta de 400 anos entre
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 281

No balanço dos dez primeiros anos da aplicação da Lei de 1833, os


inspetores de fábrica escreveram em seus relatórios queixas sobre a
impossibilidade de aplicação daquela legislação. Através de diversos
artifícios, os industriais burlaram os limites legais ao trabalho infantil.
Todavia, aquela foi também uma década de muita agitação operária, de
organização do movimento Cartista (1838-1848) e da campanha pela
jornada de 10 horas para todos os trabalhadores. Seria só com a lei adicional
de 1844 que questões básicas da primeira lei fabril foram efetivadas, como
a de adotar um relógio público para a regulação do tempo da jornada, e
a obrigatoriedade de que fossem afixados avisos em que estipulassem o
horário de entrada e de saída, das pausas para refeições etc. A partir daí
as crianças que trabalhavam no turno da manhã não poderia continuar
na fábrica após 1 da tarde, e necessariamente o turno da tarde deveria
ser preenchido por outras crianças. Embora direcionada às crianças,
a legislação fabril teve consequências para a regulação da jornada dos
trabalhadores adultos, já que o trabalho era feito de forma cooperada.
Deste modo, ainda segundo Marx, no período de 1844 a 1847 a jornada
de 12 horas acabou sendo implementada na prática.
Representantes dos fabricantes, os liberais se batiam pela retirada do
protecionismo que protegia a renda fundiária dos produtores de trigo
(base social dos tories [conservadores]), formando a Anti-Corn Law
League. Entre 1846 e 1847 essa Liga fez grandes progressos: revogaram-

capitalista e trabalhador. Mas a história dessa luta mostra duas correntes antagônicas. Compare-
-se, por exemplo, a legislação fabril inglesa de nossa época com os estatutos ingleses do trabalho
desde o século XIV até meados do século XVIII. Enquanto a moderna legislação fabril encur-
ta compulsoriamente a jornada de trabalho, aqueles estatutos a prolongam de forma igualmente
compulsória. Decerto, as pretensões do capital em estado embrionário – quando, em seu processo
de formação, ele garante seu direito à absorção de uma quantidade suficiente de mais-trabalho
não apenas mediante a simples força das relações econômicas, mas também por meio da ajuda do
poder estatal – parecem ser muito modestas se comparadas com as concessões que ele, rosnando
e relutando, é obrigado a fazer quando adulto. Foi preciso esperar séculos para que o trabalhador
“livre”, em consequência de um modo de produção capitalista desenvolvido, aceitasse livremente,
isto é, fosse socialmente coagido a, vender a totalidade de seu tempo ativo de vida, até mesmo sua
própria capacidade de trabalho, pelo preço dos meios de subsistência que lhe são habituais, e sua
primogenitura por um prato de lentilhas. É natural, assim, que o prolongamento da jornada de
trabalho, que o capital, desde o século XIV até o fim do século XVII, procurou impor aos trabalha-
dores adultos por meio da coerção estatal, coincida aproximadamente com a limitação do tempo
de trabalho que, na segunda metade do século XIX, foi imposta aqui e ali pelo Estado para impedir
a transformação do sangue das crianças em capital.” Idem, p.343.
282 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

-se as leis dos cereais, aboliram-se as tarifas de importação do algodão (e


outras matérias primas), proclamando, assim, o livre-câmbio como pilar
da arquitetura econômica inglesa. Em busca de retomar a iniciativa, os
tories aliaram-se à agitação operária pela Lei das 10 Horas, que então
conhecia seu auge, e tal lei foi aprovada em junho de 1847. A aplicação
plena da lei foi marcada para o 1º de maio do ano seguinte, e não
obstante toda a agitação livre-cambista que se seguiu, entrou em vigor
naquele turbulento ano de 1848.
Contudo, o malogro do movimento Cartista na Inglaterra em abril
de 1848, a derrota sangrenta do operariado parisiense nas Jornadas
de Junho naquele mesmo ano e da própria Primavera dos Povos
na Europa central alteraram a relação de forças favoravelmente ao
capital, contribuindo para um movimento de revolta generalizado
dos industriais contra toda a legislação promulgada desde 1833. Uma
autêntica “rebelião pro-slavery [pró-escravidão] em miniatura”, como
assinalou Marx.62 Em vários casos, o trabalho tenaz dos inspetores de
fábrica encontrava seu limite na atuação da magistratura, quase toda
dominada pelos industriais que bloqueavam as intimações.63
Até que em 8 de fevereiro de 1850, de um dos quatro tribunais superiores,
a Court of Exchequer, decidiu-se que a Lei das 10 Horas estava revogada,
o que provocou nova agitação nos meios operários.Um compromisso
foi estabelecido em 5 de agosto de 1850, quando o Parlamento aprovou
nova lei fabril adicional que determinava: prolongamento da jornada de
trabalho para “jovens e mulheres” de 10 para 10 horas e meio durante a

62
Idem, p.357.
63
“Nesses tribunais, os próprios senhores fabricantes sentavam-se para julgar a si mesmos. Um
exemplo. Um certo Eskrigge, fabricante de fios de algodão, da firma Kershaw, Leese&Co., apre-
sentara ao inspetor de fábrica de seu distrito a planilha de um sistema de revezamento elaborado
para sua fábrica. Ao receber uma recusa, comportou-se, de início, passivamente. Alguns meses
mais tarde, um indivíduo de nome Robinson, também fabricante de fios de algodão e, se não seu
Sexta-Feira, de todo modo um parente de Eskrigge, apresentou-se aos Borough Justices [juízes
de paz locais] em Stockport sob acusação de haver implementado um sistema de revezamento
idêntico ao de Eskrigge. Quatro juízes formaram o tribunal, entre eles três fabricantes de fios de
algodão, tendo à frente o infalível Eskrigge. Este último absolveu Robinson e declarou que o que
era de direito para Robinson era justo para Eskrigge. Baseado em sua própria decisão judicial,
implementou imediatamente o sistema em sua fábrica. Certamente, a composição desses tribu-
nais já era por si só uma violação aberta da lei.” Idem, p.360-361.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 283

semana, e diminuída para 7 horas e meia nos sábados; a jornada deveria


ser realizada entre 6 horas da manhã e 6 horas da tarde, com uma hora
e meia para refeições, de acordo com as regras de 1844; o sistema de
revezamentos, que os industriais inventaram para burlar as limitações
da jornada de trabalho, foram definitivamente abolidas. Por outro lado,
os fabricantes de seda garantiram “para si direitos senhoriais sobre as
crianças proletária,”64 pois, alegando a necessidade da “delicadeza” da
mão de obra infantil, puderam continuar explorando crianças de 11 a 13
anos 10 horas e meia por dia. Foi necessário que uma nova emenda em
1853 introduzisse a proibição de que os industriais continuassem a esfolar
crianças em suas fábricas.65
Nos anos seguintes a aplicação da legislação fabril se ampliou para
todos os setores da indústria, processo que se intensificou a partir dos
anos 1860, com retomada do movimento operário na Inglaterra e no
continente europeu, que organizou-se na Associação Internacional
dos Trabalhadores. Foi, aliás, este o contexto histórico em que,
profundamente envolvido na militância, Marx concluiu a etapa decisiva
de seus estudos que o levaram à publicação do primeiro volume de O
capital, em 1867. A lógica da expansão desmedida do capital, esmiuçada
neste livro na Lei Geral da Acumulação Capitalista, assinalava a lógica
subjacente deste modo de produção em produzir uma superpopulação
relativa, ampliando a miséria social no mesmo movimento de criação
de uma riqueza de dimensões faraônicas. Vejamos sua relação com a
questão do padrão de vida.
A dinâmica da acumulação capitalista produz uma população
excedente que assume quatro formas básicas: uma população flutuante,
que são atraídos e repelidos pelas empresas de modo fluido; uma
população latente, localizada à margem e a espera de oportunidades para
estabelecer-se na indústria; uma população estagnada, empregadas em
funções deterioradas e mal remuneradas; e uma população pauperizada,
formada pelos indigentes, doentes e incapacitados para o trabalho de

64
Idem, p.364.
65
Idem, p.352.
284 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

forma geral. É sintomático que precisamente no capítulo dedicado


a essa Lei Geral existam tantas referências às condições precárias da
habitação operária como uma das resultantes desta tendência imanente
da acumulação capitalista, assunto que seria também objeto das
preocupações posteriores de Engels.66 Indo além da vida no ambiente
fabril, Marx penetra nos temas da dieta e da habitação, trazendo em sua
obra um quadro geral da situação da classe trabalhadora na Inglaterra
vitoriana. Pessoas vivendo amontoadas em cortiços, epidemias de cólera,
tifo, varíola, escarlatina etc., ausência de procedimentos de segurança no
processo de trabalho (o que tornava algumas atividades extremamente
perigosas), além de longas jornadas, trabalho infantil e num plano mais
geral uma experiência no trabalho que remetia sempre à escravidão nas
Américas compõem a cena deste longo capítulo d’O capital.67 Lançando
mão de relatórios (“Reports”) dos inspetores de fábrica, da Comissão
sobre o Trabalho Infantil (“Children’s Employment Commission”)
e de sanitaristas (“Reports on Public Health”), material produzido
principalmente por médicos, Marx construiu uma forte base empírica
para sua argumentação sobre as leis tendências do desenvolvimento do
modo de produção capitalista e as implicações sociais das mesmas.
Fica a questão se Marx então produziu uma “teoria da pauperização
absoluta dos trabalhadores sob o capitalismo”? De acordo com Ernest
Mandel, por exemplo, essa leitura seria equivocada, embora baseada
em posições que Marx defendeu em textos juvenis, como o Manifesto
Comunista, que escreve junto com Engels. Todavia, o economista
marxista belga lembra que tal texto foi produzido quando Marx não

66
Cf. ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. São Paulo: Boitempo, 2015.
67
Há, a propósito, uma fecunda retomada da problemática do trabalho escravo submetido à
lógica capitalista na historiografia recente. Enquanto autores como Dale Tomich retomam cri-
ticamente as proposições clássicas de Eric Williams em Capitalismo e escravidão (1944), Marcel
van der Linden busca reconstruir um conceito de classe trabalhadora de modo ampliado, que
incorpore trabalhadores livres e escravizados no âmbito do capitalismo histórico. Assim, en-
quanto Tomich busca avançar a partir de uma leitura mais precisa da obra marxiana, van der
Linden estabelece distância critica quanto as proposições presentes em O capital. Cf. TOMICH,
Dale. Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Ed.USP, 2011.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1944].
VAN DER LINDEN, Marcel. Trabalhadores do mundo. Ensaios para uma história global do tra-
balho. Campinas (SP): Ed.Unicamp, 2013.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 285

havia elaborado ainda sua teoria do capitalismo, que só receberia um


primeiro tratamento em seu manuscrito de 1857-1858, publicado
posteriormente como Grundrisse.68 Categorias centrais da crítica
da economia política marxiana como mais-valor (ou mais-valia, na
tradução mais usual), em suas formas absoluta e relativa, a distinção
entre capital constante e capital variável etc., só aparecem na obra
marxiana a partir desse manuscrito, sendo, portanto, só aí que Marx
apresenta uma compreensão teórica consistente da exploração, cuja
forma de exposição mais acabada figuraria em O capital, onde a questão
do pauperismo encontraria uma solução mais adequada.
O que ocorre é que, de acordo com Marx, em primeiro lugar a
dinâmica da acumulação capitalista “implica uma crescente exploração
dos trabalhadores, que inclui um crescente desgaste da força de trabalho,
especialmente através da intensificação do processo de produção”.69 Essa
tendência imanente ao aumento da taxa de exploração, que conduz à
formação de um exército industrial de reserva que em tempos de
crise só tende a aumentar, cria uma superpopulação excedente. Deste
modo, ainda de acordo com Mandel, o que Marx apresenta em sua obra
madura é uma teoria da tendência a pauperização relativa da classe
trabalhadora, e isso por duas razões básicas: em primeiro lugar, pelos
trabalhadores tendencialmente receberem uma parte cada vez menor do
novo valor que produzem, que é justamente a tendência ao aumento da
exploração, incrementando a taxa de mais-valor; em segundo lugar, pois
mesmos quando os salários dos trabalhadores crescem não conseguem
atender a todas as suas demandas. Além disso, Marx teria observado
também uma outra tendência em direção a uma pauperização periódica
absoluta, fundamentalmente em função do movimento do desemprego
decorrente das flutuações cíclicas da economia, das crises periódicas.

68
MANDEL, Ernest. El Capital – Cien años de controversias en torno a la obra de Karl Marx. 2a
ed. México/Madrid: Siglo XXI, 1998, p.67-70.
69
Idem, p.67.
286 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

A história social britânica responde o revisionismo

No mesmo ano em que Hayek publicava seu panfleto O caminho


da servidão, aparecia a obra seminal de Karl Polanyi, A Grande
Transformação, uma das mais originais apresentações da constituição
da sociedade de mercado. O tema do padrão de vida durante a
Revolução Industrial não poderia estar ausente. Para Polanyi, “No
coração da Revolução Industrial do século XVIII ocorreu um progresso
miraculoso nos instrumentos de produção, o qual se fez acompanhar de
uma catastrófica desarticulação nas vidas das pessoas comuns.”70
Como assinala o autor, processo tão violento quanto o cercamento
dos campos (enclosures) – que esteve na base da formação dos mercados
de trabalho e de terras na Inglaterra –, a Revolução Industrial foi
percebida como uma “catástrofe” por “Escritores de todas as opiniões e
partidos, conservadores e liberais, capitalistas e socialistas, referiam-se
invariavelmente às condições sociais da Revolução Industrial como um
verdadeiro abismo de degradação humana.”71 A Revolução Industrial,
para o autor, produziu:

uma avalanche de desarticulação social, superando em muito a que ocorreu no


período dos cercamentos, desabou sobre a Inglaterra; que esta catástrofe foi simul-
tânea a um vasto movimento de progresso econômico; que um mecanismo insti-
tucional inteiramente novo estava começando a atuar na sociedade ocidental; que
seus perigos, que atacaram até a medula quando primeiro apareceram, na verdade
jamais foram superados, e que a história da civilização do século XIX consistiu, na
sua maior parte, em tentativas de proteger a sociedade contra a devastação pro-
vocada por esse mecanismo. A Revolução Industrial foi apenas o começo de uma
revolução tão extrema e radical quanto as que sempre inflamavam as mentes dos
sectários, porém o novo credo era totalmente materialista, e acreditava que todos
os problemas humanos poderiam ser resolvidos com o dado de uma quantidade
ilimitada de bens materiais.72

70
POLANYI, A Grande Transformação, op. cit., p.51.
71
Idem, p.58.
72
Idem, p.58.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 287

Como vimos, o mecanismo institucional novo a que se refere


Polanyi são o mercado de trabalho livre, o padrão ouro e o comércio
internacional livre que resultaram de iniciativas legislativas, e, portanto,
do Estado. Contudo, de forma espontânea e não planejada, produziu-
-se um contramovimento protetor da sociedade contra a sociedade de
mercado, impondo limites, também a partir de iniciativas do Estado.73
Esse movimento pendular, em direção à sociedade de mercado e contra
ela ocorre pois, caso contrário, a resultante seria a desagregação total do
tecido social. E a degradação das condições de vida da classe trabalhadora
amplamente percebida foi um dos móveis desse contramovimento.
Não obstante a influência da obra de Polanyi, pode-se dizer que
até o início dos anos 1950 a operação revisionista desencadeada por
Hutt, Clapham, Ashton e Hayek estava dando o tom. Até que ocorre
a intervenção dos historiadores marxistas ingleses, Hobsbawm e
Thompson. Em 1957 Hobsbawm publicou o artigo “The British Standard
of Living, 1790-1850” na Economic History Review, onde afirmava
categoricamente que as bases empíricas mobilizadas pelos “otimistas”
eram fracas, e havia evidências mais confiáveis que corroboravam com a
leitura pessimista canônica.74 Para ele, “a opinião otimista não se baseia
numa evidência tão forte como se pensa muitas vezes. Nem há motivos
teóricos avassaladores a seu favor.” Ao mesmo tempo, “parece não haver
nenhum motivo importante para abandonar a opinião tradicional”.75
Em seguida, em 1958 publica um comentário crítico à já mencionada
Apresentação escrita por Chaloner e Henderson a uma reedição do livro
de Engels. Esses artigos foram compilados no livro Labouring Men em
1964,76 que reunia diversos outros artigos e ensaios de Hobsbawm.
No artigo de 1957 Hobsbawm retoma o fio da meada do debate, desde
as intervenções de Clapham e Ashton, demonstrando a fragilidade

73
Idem, p.178.
74
HOBSBAWM, Eric J. The British Standard of Living, 1790-1850. Economic History Review,
2nd ser., 10, no 1, pp.46-68, agosto de 1957. Republicado em HOBSBAWM, O Padrão de Vida
Inglês de 1790 a 1850, In. Os Trabalhadores, op. cit., p.83-116.
75
Idem, p.90.
76
Publicado no Brasil só em 2000, como Os Trabalhadores, op. cit.
288 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

das estatísticas nas quais se baseiam suas respectivas releituras, sem


esquecer de assinalar a natureza marcadamente ideológica da escola
dita “otimista” em eximir o capitalismo de responsabilidades sobre a
degradação das condições de vida dos trabalhadores num contexto de
nascimento da forma sua madura. No que se refere a Clapham, assinala os
problemas dos dados sobre os salários organizados por Bowley e Wood
(que estão na base da reinterpretação de Clapham), que também são
falhos por não apresentarem, por exemplo, dados sobre a abrangência
do desemprego.77 Hobsbawm chega a notar que o próprio Ashton de
certo modo deslocou esse cerne da argumentação de Clapham de sua
explanação que, como assinalamos acima, não traz também nenhuma
nova evidência, e tão somente um novo argumento.
No artigo de Hobsbawm ele apresenta uma série de dados
negligenciados pela escola otimista, como a taxa de mortalidade, a
abrangência do desemprego (particularmente sensível nos períodos
de crise cíclica, como em 1826 e especialmente na de 1841-1842, que
Hobsbawm considera a maior do século), como também dados sobre
o consumo. No que se refere a expectativa de vida, a mortalidade geral
abaixo dos 50 anos não pode ser ignorada, embora seja reconhecido que
nos primeiros anos da Revolução Industrial houve uma melhora, a partir
da década de 1810 houve uma aumento constante até 1840.78 Quanto ao
desemprego, Hobsbawm introduz uma questão metodológica capital
quanto ao desemprego estrutural:

“O impacto do desemprego estrutural não pode ser medido. Os que foram afetados
por ele foram muitas vezes precisamente aqueles pequenos artesãos independen-
tes, trabalhadores de fora ou trabalhadores em meio-expediente cujos sofrimentos,

77
Aqui, mais uma vez, cabe pensar na perspectiva paradigmática que anima o revisionismo
“otimista”, já que para o pensamento neoliberal o desemprego não é visto como um problema
da sociedade, exceto para os próprios desempregados que são os verdadeiros responsáveis pela
sua própria condição segundo seus teóricos. Talvez isso indique que não se trata simplesmente
de negligência.
78
HOBSBAWM, O Padrão de Vida Inglês..., p.91-93. “(...) o crescimento das taxas de mortalida-
de no período de 1811 a 1841 é evidentemente de algum peso para o caso pessimista, ainda mais
à medida que o trabalhador moderno, especialmente os estudos da Holanda durante e depois da
II Guerra Mundial, tende a ligar tais taxas muito mais diretamente ao total da renda e consumo
de alimentos do que outras condições sociais.” Idem, p.92-93.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 289

à baixa da catástrofe absoluta, se refletiam na queda dos preços por peça, no sub-
emprego, em vez de na cessação do trabalho. Os sofrimentos dos maiores grupos
entre eles, aqueles que operavam o meio-milhão ou coisa parecida de teares à mão
(que podem ter representado talvez um milhão e um quarto ou mais de cidadãos)
têm sido amplamente documentados.”79

Ainda sobre o tópico do desemprego, Hobsbawm discute a dinâmica


de degradação social que envolve até mesmo aquele trabalhador que
consegue voltar ao mercado de trabalho tão logo o ciclo econômico se
encontre novamente em ascensão. Em todo artigo, aliás, percebe-se uma
capacidade analítica aguçada pelo ponto de vista com o qual o autor
entende a condição do proletariado, algo que explicitamente está ausente
na historiografia “otimista”, que apaga a vida social nos dados estatísticos.
Sobre o consumo, Hobsbawm mobiliza os dados disponíveis sobre
produtos importados (chá, açúcar e fumo), carnes vermelhas, trigo,
batatas, peixe e sobre a corriqueira adulteração dos produtos. Sobre
este ponto vale destacar que só a partir da metade da década de 1840
que se pode perceber um aumento no consumo de chá, açúcar e fumo,
sendo importante lembrar que a imunidade do mercado de chá às
crises cíclicas indica que o mesmo não era um produto que fizesse parte
da dieta dos trabalhadores. No que se refere ao consumo de carnes
vermelhas, sua substituição pelo peixe, embora este de valor nutritivo
significativamente maior, não era percebida pelos trabalhadores como
uma melhora do padrão de vida, muito ao contrário.

“Indubitavelmente isto melhorou o valor nutritivo da dieta do pobre, embora não


possa indicar que ele sentisse estar comendo melhor; porque o pobre sempre teve
um preconceito marcante contra este alimento barato e abundante, e ‘a classe mais
baixa de pessoas alimenta a ideia de que o peixe não é alimento bastante substan-

79
Idem, p.94. “Muitas vezes se esquece que alguma coisa como o desemprego ‘tecnológico’ não
se limitou puramente àqueles trabalhadores que foram realmente substituídos pelas novas má-
quinas. Ele pode afetar quase todas as indústrias e ofícios pré-industriais que sobreviveram na
era industrial; isto é, muitos, como mostrou Clapham.” Idem, p.102. “Se outros estudos nos der
números mais adequados sobre o desemprego na primeira metade do século é uma questão a
discutir. Eles certamente serão incapazes de medir adequadamente o desemprego ocasional,
sazonal ou intermitente e os grosso permanente de subemprego, embora nenhuma estimativa
de salários reais que negligencie isto valha muito.” Idem, p.103.
290 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

cial para elas, e preferem a carne’. Eles bem podiam ter passado para o peixe porque
não tinham recursos suficientes para a carne.”80

O mesmo pode ser dito da substituição do trigo pelas batatas, embora


seja mais controverso alegar que o valor nutritivo destas era superior à
da matéria-prima do pão, que era a base da dieta das classes populares
desde as décadas que antecedem a Revolução Industrial no século XVIII.
Por fim, a adulteração de alimentos, vista em toda a sorte de produtos
destinados ao consumo popular era também parte da percepção geral de
que o padrão de vida foi cada vez mais degradante até meados da década
de 1840. Da farinha de aveia ao leite, eram comumente adulterados,
sendo o açúcar uma exceção importante (“90 por cento do qual parece
ter sido puro, embora muitas vezes sujo”).81
No que se refere à crítica à Apresentação de Chaloner e Henderson,
Hobsbawm assinalava como a escola “otimista”, face às suas fragilidades
empíricas, direcionava-se para desacreditar uma das narrativas mais
emblemáticas sobre o padrão de vida na primeira metade do século
XIX na Inglaterra. E para isso, os autores não se furtaram a negar e pelo
menos diminuir a existência de práticas opressivas dos patrões contra
suas operárias, ao mesmo tempo em que procuravam desqualificar
moralmente Engels, insinuando que ele “conhecia bem essa relação” por
ter tido como “amante” (termo usado pejorativamente) uma ex-operária
irlandesa, Mary Burns. Como bem pontuou Hobsbawm, “algumas pessoas
acham difícil distinguir entre um chefe que seduz sua equipe ameaçando
despedi-la, e um homem que vive maritalmente com uma antiga moça
de fábrica durante 18 anos até a morte dela, sendo a moça reconhecida
como sua mulher efetiva mesmo entre ‘meus conhecidos filisteus’”.82 Com
a intervenção de Hobsbawm, a escola “otimista” passou à defensiva.
A resposta a Hobsbawm veio com o artigo do historiador Ronald
Max Hartwell no artigo “The Rising Standard of Living in England,

80
Idem, p.110.
81
Idem, p.110.
82
HOBSBAWM, A História e “as satânicas fábricas escuras”. In. Os Trabalhadores, op. cit., p.142.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 291

1800-1850”, também publicado na Economic History Review em 1961.83


Tal como vários dos componentes da chamada escola otimista, Hartwell
buscava apresentar a controvérsia como uma disputa entre uma
“memória popular baseada em informações falsas” contra uma história
econômica “científica”, embora não seja muito difícil encontrá-lo nas
sessões da Sociedade de Mont Pelerin, de quem foi membro honorário
e sobre a qual escreveu uma história oficial.84 Seria preciso boa dose
de ingenuidade para acreditar que os autoproclamados “defensores da
sociedade livre” e dos “progressos da industrialização” não tivessem
motivos evidentemente políticos os movendo. Hartwell acusou críticos
como Hobsbawm de “exagerarem” e “sobre-dramatizarem” os eventos
do início do século XIX, ao mesmo tempo em que solenemente ignorou
todas as críticas metodológicas feitas por Hobsbawm aos “otimistas”.85
A controvérsia teve uma espécie de solução favorável à opinião
canônica quando da intervenção decisiva de E. P. Thompson em sua
obra seminal A formação da classe operária na Inglaterra, publicada
em 1963. Contra a visão apologética da situação da classe trabalhadora
na Inglaterra no início da Revolução Industrial inglesa, no segundo
tomo de sua A formação da classe operária na Inglaterra, o autor tece o
seguinte comentário:86

“Assim como a geração anterior de historiadores que também foram reformistas


sociais (Thorold Rogers, Arnold Toynbee, os Hammond) permitiu que a simpa-
tia pelos pobres levasse a uma confusão momentânea entre história e ideologia,
descobrimos que as simpatias de alguns historiadores econômicos atuais pelo em-

83
HARTWELL, Ronald Max. “The Rising Standard of Living in England, 1800-1850”, Economic
History Review, v.13, Issue 3, pp.397-416, 1961.
84
HARTWELL, Ronald Max. A history of the Mont Pelerin society. Indianápolis: Liberty Fund, 1995.
85
Hartwell também reuniu um conjunto de outros ensaios sobre o assunto e publicou no livro
HARTWELL, Ronald Max. The Industrial Revolution and Economic Growth. Londres: Metheun
& Co Ltd., 1971.
86
Alexandre Fortes considera que o livro de Thompson é uma crítica avant la lettre ao neolibera-
lismo, no que tem certamente razão. FORTES, A. “Miríades por toda a eternidade”: a atualidade
de E. P. Thompson. Tempo Social, São Paulo, vol. 18, n.1, junho de 2006. O autor afirma que,
como são muito comentadas as críticas de Thompson ao marxismo ortodoxo, muitos leitores
não entenderam que o objeto principal da crítica de A formação da classe operária inglesa é o
livro Capitalism and the historians.
292 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

presário capitalista gerou uma confusão entre história e apologética. O ponto de


transição foi marcado pela publicação, em 1954, de um simpósio sobre Capitalism
and the historians, editado pelo professor F. A. Hayek, trabalho de um grupo de
especialistas “que se reuniu regularmente durante alguns anos para discutir os pro-
blemas da preservação de uma sociedade livre contra a ameaça totalitária”. Desde
que esse grupo internacional de especialistas decidiu considerar “sociedade livre”
como a definição de sociedade capitalista, os efeitos de tal mistura de teoria econô-
mica com um julgamento particular foram deploráveis: não foge a este problema
nem mesmo o trabalho de um dos seus colaboradores, o professor Ashton, cujas
descobertas cautelosas de 1949 estão hoje transmutadas na afirmação vazia de que
“geralmente se aceita que o ganho do salário real foi substancial para a maioria”.”87

De acordo com Thompson, a controvérsia sobre o padrão de vida se


tornou realmente interessante quando a tentativa irreal de determinar
o valor do salário de um trabalhador hipoteticamente definido como
“médio” deu lugar aos dados sobre, de um lado, os artigos de consumo
(alimentação, vestuário e habitação), de outro a expectativa de vida,
que envolve as condições de saúde e da mortalidade da população. A
modificação radical na dieta da classe trabalhadora, com a paulatina
substituição do pão branco e da farinha de aveia pela batata, a redução no
consumo de carne e a substituição da cerveja pelo chá foram percebidas
como sinal de degradação nas condições de vida. Quanto às condições
de moradia, entre o final do século XVIII e 1840 a deterioração era ainda
mais acentuada, inclusive nas cidades onde a historiografia revisionista
buscou apresentar dados sobre o aumento nos salários. A generalização
do trabalho infantil nos distritos industriais, que aumentou de forma
constante entre 1790 e 1840 é outra evidência que Thompson arrola
para refutar o argumento revisionista.
Os historiadores revisionistas haviam buscado apresentar o
argumento de que a introdução de batatas no cardápio da classe
operária inglesa havia melhorado suas condições de vida, dada a alegada
“riqueza calórica” da nova dieta. Thompson desmonta o absurdo deste
argumento discutindo, entre outras coisas, o fato que os artesãos e

87
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária na Inglaterra. Tomo II. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987, p.35-36.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 293

operários ingleses consideravam o pão branco um alimento digno,


mas entendiam as batatas como “comida de irlandês”, que significava
“pobretão” na linguagem dos trabalhadores. Assim, a classe operária se
via mais explorada pela privação em comer o pão branco, em detrimento
de batatas. Escreve Thompson:

Os especialistas em nutrição podem atestar, hoje, as virtudes da batata: certamen-


te, a adição da batata à dieta, tornando-a mais variada, num momento em que
o padrão de vida subisse o suficiente para permiti-la, representava um avanço.
Contudo, a substituição do pão e da farinha de aveia pela batata era considerada
uma degradação. Os imigrantes irlandeses e sua dieta de batatas (Ebenezer Elliot
chamou-os de “hordas alimentadas por raízes da Irlanda”) serviam como uma pro-
va significativa, e muitos ingleses concordaram com Cobbett de que havia uma
conspiração contra os pobres, para reduzi-los ao nível dos irlandeses. Durante a
Revolução Industrial, o preço do pão (e da farinha de aveia) era o principal índice
para avaliar o padrão de vida, na opinião do povo.88

Além da degradação na dieta, as condições péssimas de habitação e


sanitárias era outro ponto destacado pelo autor de A formação da classe
operária na Inglaterra, que entre outras coisas lembra que a iniciativa
de industriais de construir melhores habitações para os trabalhadores
de suas fábricas só ocorreu após as revelações de investigadores
que apontaram essa como uma das causas das epidemias de cólera e
tuberculose, entre 1831 e 1848.89
O crescimento da mortalidade infantil nas cidades industriais,
decorrentes entre outras coisas da exploração de mão de obra de crianças,
largamente revelada pelas fontes, é outro ponto que E. P. Thompson
destaca em sua crítica ao revisionismo liberal, a quem acusa de cinismo
em sua pretensão de desqualificar como “tendenciosas” as informações

88
Idem, p.180-181. Marcelo Badaró me alertou deste ponto na obra de Thompson, trazendo ainda a
lembrança do famoso quadro da primeira fase do pintor Van Gogh, O comedor de batatas, de 1885.
O cenário de miserabilidade social é patente, o que revela a importância semiótica desta representa-
ção social sobre “o irlandês” na linguagem das classes subalternas ao longo do século XIX. A grande
fome de 1846, que devastou a população irlandesa, constitui-se no ponto de partida de uma grande
leva migratória para os EUA e o mote dessa imagem. Cf. MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson
e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2012.
89
THOMPSON, A formação da classe operária..., p.185-186.
294 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

levantadas nos relatórios dos investigadores médicos.90 Lembra ainda


como a ausência de qualquer lei fabril que protegesse mães levavam ao
aumento da mortalidade infantil:

Esta elevada taxa de mortalidade infantil entre os filhos de trabalhadores fre-


quentemente citados como beneficiários da Revolução Industrial pode ser
atribuída, em parte, às condições sanitárias do ambiente. Pode também estar
associada a uma deformação típica – o estreitamento da ossatura pélvica – das
meninas que trabalhavam nas fábricas desde a infância, trazendo dificuldades
para os partos, com a debilidade dos recém-nascidos cujas mães trabalhavam
até a última semana de gravidez, e, acima de tudo, com a falta dos necessários
cuidados com os recém-nascidos. As mães, temendo perder seus empregos,
retornavam à fábrica três semanas após o parto, ou mesmo antes. Em algumas
cidades de Lancashire e de West Riding, durante a década de 1840, os recém-
-nascidos eram levados para as fábricas, para que pudessem ser amamentados
no horário da refeição.91

E. P. Thompson submete os autores revisionistas a pesadas e


demolidoras críticas. O mencionado artigo de Hutt é caracterizado
como “superficial, pouco documentado e francamente tendencioso
em vários aspectos”,92 enquanto o argumento de Ashton é tratado
como uma advocacia dos interesses industriais, já que Ashton
busca isentá-los da responsabilidade sobre as condições de vida dos
trabalhadores. Para Thompson tal procedimento (pretensamente
objetivo) desconsidera “um processo que permitiu a alguns homens
se beneficiarem à custa das necessidades dos outros”.93 Por fim, sobre a
tentativa revisionista de justificar o largo uso de trabalho infantil pelos
industriais como algo “que sempre existiu”, Thompson usa as seguintes
palavras: “a exploração das crianças, na escala e na intensidade
com que foi praticada, representou um dos acontecimentos mais
vergonhosos da nossa história.”94

90
Idem, p.193.
91
Idem, p.196-197.
92
Idem, p.208.
93
Idem, p.187.
94
Idem, p.224.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 295

Em seus trabalhos sobre o padrão de vida durante a Revolução


Industrial, Thompson e Hobsbawm trabalhavam no mesmo
sentido, e não é difícil concluir que isto se deve a filiação comum
ao marxismo e especialmente a interpretação de Karl Marx para
o capitalismo.95 Como marxistas, Hobsbawm e Thompson não
poderiam desconsiderar a luta da classe trabalhadora como
constituinte da relação de forças que eventualmente produzia uma
tendência no sentido de melhorar sua sorte. As conquistas das
primeiras leis fabris, embora as dificuldades de sua implementação
não sejam negligenciadas, seriam consideradas “vitórias da
economia política do trabalho sobre a economia política do capital”,
como certa feita se referiu Marx. Assim, tanto Hobsbawm quanto
Thompson apresentam um quadro muito mais complexo em suas
respectivas intervenções neste debate historiográfico do que uma
mera reiteração das proposições canônicas da escola “pessimista”.
Enquanto Hobsbawm afirma que “o grosso das pessoas do nordeste
da Europa estavam materialmente em melhores condições em 1900
do que em 1800”,96 Thompson afirma categoricamente que:

Durante o período de 1790-1840, houve uma ligeira melhoria nos padrões ma-
teriais médios. No mesmo período, observou-se a intensificação da exploração,
maior insegurança e aumento da miséria humana. Por volta de 1840, a maioria
da população vivia em melhores condições que seus antepassados cinqüenta anos
antes, mas eles haviam sentido e continuavam a sentir essa ligeira melhoria como
uma experiência catastrófica.97

95
Neste ponto a leitura da obra thompsoniana proposta por Sergio Silva, segundo a qual A
formação da classe operária inglesa seria uma refutação de O capital de Marx é insustentável. Só
a intervenção apaixonada de Thompson na controvérsia sobre o padrão de vida nos termos ex-
postos aqui, sem falar nas recorrentes menções ao argumento de Marx em A formação da classe
operária, desautoriza a interpretação de Silva. Cf. SILVA, Sergio. Thompson, Marx, os marxistas e
os outros. In. NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses e outros
artigos. Campinas (SP): Ed.Unicamp, 2010, p.59-71.
96
HOBSBAWM, O padrão de vida inglês..., op. cit., p.84.
97
THOMPSON, A formação da classe..., op. cit., p.38.
296 CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA HISTRIOGRAFIA REVISIONISTA

Palavras finais

Como assinala a literatura sobre o neoliberalismo, sua consolidação


envolveu, entre uma série de outras coisas, sua hegemonia no âmbito
acadêmico, nos departamentos de Economia, Administração e
especialmente nas chamadas Bussines Schools [Escolas de Negócios],
o implicou em no âmbito da história econômica o predomínio
de posições como a da “escola otimista”. Contudo, no âmbito da
disciplina História, o que ocorre é um paralelo desprestígio da História
Econômica em razão da História Social (e posteriormente, a Cultural),
o que acaba por ser francamente desfavorável aos cardeais da escola
“otimista”. Sem entrar no mérito do debate propriamente dito, neste
item seria necessário apenas reafirmar a superioridade da contribuição
da história social inglesa no plano mais geral. Quando morreu, em
1993, E. P. Thompson era um dos historiadores mais citados do século
XX, e o prestígio de Eric Hobsbawm é indiscutível. E isso naturalmente
favorece a posição deste no debate.
No que se refere propriamente ao debate sobre o padrão de vida, não
deve existir dúvidas quanto ao caráter politizado da controvérsia. E dizer
isso não é corroborar com o argumento fácil de que os representantes
esquerdistas do “pessimismo” estavam “fazendo política”, como se a
historiografia patrocinada por próceres da Sociedade de Mont Pelerin
fosse elaborada por “livres pensadores”, ou “cientistas desinteressados”.
E se a posição “otimista” continuou a ser cultivada e reafirmada ao longo
das últimas décadas,98 sua influência na opinião pública e nos meios
acadêmicos continua francamente minoritária.
Quando numa obra como a de Narloch se divulga as batidas posições
revisionistas em tom de quem estaria supostamente “desfazendo uma
falsa leitura”, simplesmente omitindo as réplicas no debate (as críticas
de Hobsbawm e Thompson são simplesmente ignoradas em seu livro

98
Cf., p.ex., LINDERT, Peter H. WILLIAMSON, Jeffrey G. English workers’ living Standards
during the Industrial Revolution: a new look. Economic History Review, 2s, v.XXXVI, No 1,
fev.1983. GRIFFIN, Emma. Liberty’s Dawn. A people’s history of the industrial revolution. New
Haven/ Londres: Yale University Press, 2013.
O CAPITALISMO E OS HISTORIADORES: ... 297

pretensamente “esclarecedor”), estamos diante de um procedimento


manipulatório evidente. A manipulação é cristalina quando se afirma
que os historiadores se dividem quanto ao tamanho da “alta de
salários”, sendo os “otimistas” os que defendem que em 1850 comprava
150% daquilo que compravam em 1780,99 e os mais “pessimistas” que
calculavam esse em 15%, quando, na verdade, mesmo cardeais do
revisionismo “otimista” como Ashton acabaram deixando de lado as
séries sobre salário para defender sua posição no debate. Quando, quase
que com a certeza da impunidade defende que a Revolução Industrial
“acabou com o trabalho infantil”.

99
NARLOCH, Guia politicamente incorreto da história do mundo, op. cit., p.60.

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