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Água alcalina não cura nada e nem devolve a juventude

Uma médica explica o que é a água alcalina e por que ela não traz benefícios especiais
Por Alicia Kowaltowski, médica, para a Revista Questão de Ciência* - 10 Jul 2019, 11h49

Tem gente atribuindo verdadeiros milagres à agua alcalina. Não caia nessa!

Há anos, circulam pela internet textos e vídeos sugerindo que beber água alcalina pode curar ou prevenir
praticamente qualquer doença, e também evitar o envelhecimento. Há inclusive um médico que afirma
categoricamente que idosos são “ácidos”, enquanto crianças são “básicas”. Segundo esse mesmo médico, o
pesquisador francês Alexis Carrel pôde manter um coração de galinha batendo – fora do corpo do animal –
por 27 anos, ao trocar diariamente o líquido em que o coração era mantido, provando que a idade é
determinada pelo meio ambiente, e não pelo passar do tempo.
Parece estranho demais para ser verdade? É porque é estranho mesmo! Se fosse, rejuvenescer seria tão
simples quanto beber um pouco de água sanitária, produto doméstico bastante alcalino (e, por favor, não faça
isso!). Se bases rejuvenescessem, você perderia anos toda vez que tomasse leite de magnésia, outro produto
alcalino. Lamento dizer que leite de magnésia funciona pra azia, mas infelizmente não nos devolve anos de
vida…

A verdade é que o pH sanguíneo nas artérias de um recém-nascido é exatamente igual ao de uma pessoa idosa
(entre 7,35 e 7,45), e se mantém muito bem controlado, nessa mesma faixa, durante toda a vida, a não ser que
a pessoa fique seriamente doente.

E nem preciso dizer que Alex Carrel não fez um coração de galinha bater fora do corpo do animal por 27
anos. Isso é simplesmente ridículo: a coisa mais próxima disso, de alguma forma associada a Carrel, foi uma
cultura de células de coração de galinha – não um órgão vivo inteiro! – que realmente parece ter durado
bastante tempo, em condições de laboratório muito específicas. E mesmo esse resultado foi posto em questão
por outros cientistas. O pesquisador francês merece mais ser lembrado por desenvolver técnicas cirúrgicas
muito importantes, motivo pelo qual foi laureado com o Nobel em 1912.

Mas afinal, o que é pH? É uma medida da acidez de uma solução (“solução” é um tipo de mistura em que
uma ou mais substâncias, os solutos, se dissolvem em outra, o solvente; o solvente mais comum, no planeta
Terra, é água).

Não precisamos entrar em muitos detalhes aqui. De modo simplificado, quanto mais baixo o pH, maior a
acidez da solução. Uma solução ácida é aquela que tem uma predominância de íons de hidrogênio (H+), e tem
pH menor que 7. Soluções com pH maior que 7 possuem predominância de íons hidróxido (OH-). Deste
modo, saber que o sangue humano tem pH entre 7,35 e 7,45 significa saber que o nosso sangue tem uma
ligeira predominância alcalina.

Se o pH do sangue é ligeiramente alcalino, não deveríamos beber água com o mesmo pH para manter tudo
igual? Essa ideia não faz o menor sentido, porque o sangue arterial é apenas um dos muitos componentes do
nosso corpo, e cada componente tem um pH próprio, em pessoas saudáveis. O pH dos nossos intestinos é
normalmente em torno de 6 (ácido), do estômago é entre 1,5 e 3,5 (muito ácido), e a água que bebemos passa
por ambos, antes de ser absorvida e ir ao sangue.
 A maior fonte de acidificação dos nossos corpos é, de fato, o metabolismo. Todos precisamos de
metabolismo – é o processo que degrada a comida (ou as nossas gordurinhas) para gerar a energia necessária
para nossos corpos funcionarem. Degradar comida ou gorduras armazenadas significa quebrar moléculas
grandes, com sequências longas de átomos de carbono encadeados, em moléculas de gás carbônico (CO2),
cada uma com apenas um carbono. Geramos energia continuamente deste modo.

Acontece que o CO2, quando se dissolve na água (que temos em todas as nossas células) se combina com
uma molécula de água (H2O), gerando uma molécula de ácido carbônico (CO2+ H2O → H2CO3), que, como
bem diz o nome, é um ácido. Deste modo, viver, gerando energia através de metabolismo, acidifica nossos
corpos. Isso acontece a vida toda, independentemente de sermos jovens ou adultos. É natural, saudável, e
necessário gerar ácidos em nossas células através do metabolismo.

Um ser humano adulto gera, em média, cerca de 900 gramas de CO2, todos os dias, a partir da metabolização
da comida que consome. Para efeitos de comparação, uma lata típica de refrigerante contém cerca de 0,7
gramas de gás carbônico (o gás dos refrigerantes também é CO2). Ou seja, uma lata de refrigerante tem
menos de um milésimo de todo o CO2 que produzimos por dia.

Vamos deixar claro que não há nada de saudável em beber refrigerante: eles contêm muito açúcar e nenhum
nutriente útil. Porém, o pH dessas bebidas não é seu problema – se fosse, beber suco de limão ou colocar
vinagre na salada (ambos têm pH semelhante ao de refrigerantes) seria perigoso. Produtos ácidos como esses
podem causar alterações locais (afetando, por exemplo, os dentes e o estômago), se consumidos em excesso,
mas não têm como alterar o pH do corpo inteiro. Muito menos do sangue.
Na verdade, o que comemos ou bebemos de produtos ácidos no dia a dia é insignificante perto do ácido que
produzimos metabolicamente. Pra se ter uma ideia, se fôssemos beber água alcalina para neutralizar todo o
ácido derivado daqueles 900 gramas de CO2 que produzimos a cada dia, teríamos que beber 205 mil litros
de água com pH de 10 (um bocado alcalina).
Isso é mais água do que um ser humano bebe na vida inteira, até porque beber água demais é tóxico. A partir
desses dados, já dá pra perceber por que pagar mais para beber água alcalina é besteira, algo como colocar
uma gota de água alcalina num oceano.

Mas como, então, estamos vivos se produzimos tanto ácido assim? Estamos vivos porque temos mecanismos
fisiológicos excelentes para manter o pH do corpo humano exatamente como deve ser. Isso inclui
principalmente os pulmões, que eliminam gás carbônico continuamente do sangue, portanto eliminando o
ácido carbônico dele. São cerca de 450 litros de gás carbônico eliminados todos os dias pela respiração, sem
que você precise nem pensar nisso! Seus rins também ajudam a manter seu pH estável, eliminando ácidos e
bases em excesso, conforme a necessidade, e automaticamente.

Portanto, esqueça esse modismo da água alcalina, economize dinheiro e invista em beber água normal,
confiando aos seus pulmões e rins a tarefa que eles vêm cumprindo muito bem, de manter seu organismo
saudável.

*Alicia Kowaltowski é médica e professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São


Paulo. Este conteúdo foi produzido originalmente para a Revista Questão de Ciência.

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