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São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2001

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HISTÓRIA E VERDADE
Embora muitos acreditem que a história seja a ciência dos
fatos relativos à vida de um povo, é fenômeno relativamente
comum que, de um mesmo evento, dois historiadores
extraiam teses diametralmente opostas. Livros didáticos de
história, como mostrou reportagem publicada pela Folha na
semana passada, não escapam a essa tendência.
Atualmente, um livro brasileiro pode ser criticado seja por
tratar Francisco Solano López como líder paraguaio que
desejava construir um país forte e soberano seja por tratar
todos os grupos étnicos de negros que aqui chegaram apenas
como "africanos".
São críticas que, diga-se, fazem algum sentido. Quando se
comenta a história da Guerra do Paraguai, é sem sombra de
dúvida importante indicar que Solano López se opunha ao
imperialismo inglês, mas não dá para deixar de mencionar
que o homem era um caudilho.
Analogamente, é simplificação preconceituosa tratar como
iguais todos os tipos de negros que vieram ao Brasil sem
nem tentar mencionar que havia principalmente bantos e
sudaneses, que, por sua vez, se subdividem em várias
dezenas de etnias. É realmente desconcertante que o Brasil, a
segunda maior nação negra do planeta, menor apenas do que
a Nigéria, insista em ignorar tão olimpicamente a história
africana.
Reparos à parte, convém registrar que houve uma evolução
importante. Não muitos anos atrás, os livros escolares ainda
enalteciam o duque de Caxias como grande herói nacional.
Embora o patrono do Exército brasileiro tenha cumprido a
missão que lhe foi dada e possa ainda hoje ser considerado
um herói, atualmente questiona-se o papel do Brasil num
conflito com contornos genocidas como foi a Guerra do
Paraguai.
Toda "verdade" histórica é antes de mais nada uma versão
para um conjunto de fatos. Essa é uma concepção de história
bastante disseminada hoje, no que representou significativo
avanço em relação aos tempos em que se acreditava numa
história neutra, objetiva e baseada unicamente em fatos
indisputáveis.
O risco da interpretação mais moderna é desembocar no
desprezo pelo fato. Se tudo é uma questão de juízos, de
ideologia, então por que o autor não fica apenas com a sua
tese e adapta os fatos a ela? De certo modo, isso ocorre. E
não se pode afirmar que os historiadores que seguiram
exclusivamente essa linha tenham trazido uma grande
contribuição para a ciência histórica. O que trouxeram foi
falsificação, às vezes consciente, às vezes não. Às vezes
evidente, às vezes não.
Existe, obviamente, uma grande e interminável discussão
teórica, que deveria, em algum grau, estar presente nos
próprios livros didáticos. O fato (se ainda é lícito falar em
fato) é que, pela diversidade de interpretações hoje à
disposição de alunos e de professores, ficou mais fácil
começar a entender história. Existe aqui um pouco do que
Hegel chamou de dialética.

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