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Devir-afroindígena: “então vamos fazer o que a


gente é”1

Cecília Campello do Amaral Mello


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p223-239 palavras-chave Afroindígena; Movimentos


culturais; Subjetividade; Heterogênese; Devir;
resumo Fruto de uma releitura do material Bahia.
etnográfico sobre a atuação de um movimento
cultural do extremo sul baiano, este artigo pre- Becoming-afroindigenous: “so let’s do what
tende discutir a noção de afroindígena tal como we are”
concebida pelo grupo, a partir de uma perspec-
tiva pragmática. O exercício aqui proposto não abstract As a result of a reinterpretation of eth-
é enquadrá-lo em categorias já conhecidas ou nographic material on a cultural movement from the
familiares, mas buscar analisá-lo mantendo in- extreme south of Bahia, this article discusses the no-
tacta uma certa “rugosidade” característica dos tion of afroindígena, from a pragmatic perspective.
modos de fazer e pensar ao qual está associado. The exercise proposed here is not to fit it into known
Para o grupo, o conceito de afroindígena não categories, but seek to analyze it while preserving the
seria um modelo, a partir do qual seria possível group’s characteristic ways of doing and thinking. The
identificar uma etnia ou reconhecer um concept of afroindígena would not be a model from
grupo em uma base natural de identificação. which it would be possible to recognize a ethnic group
Afroindígena não é tampouco algo da ordem on a natural basis for identification. Afroindígena is
da identidade, nem mesmo do pertencimento. neither something of the order of identity, even of be-
O conceito de afroindígena seria da ordem do de- longing. The concept of afroindígena would be of the
vir, funcionando, por um lado, como um meio, order of becoming, as a means traversed by ideas, po-
um intercessor por onde passam ideias, ações po- litical actions, works of art and beings of the cosmos
líticas, obras de arte e seres do cosmos, e, por ou- and, secondly, as an unfinished product or interim ef-
tro lado, como um produto inacabado ou efeito fect of encounters that involve flows of “history” and
provisório de encontros singulares que envolve- “memory”; people and techniques; a relationship of
riam fluxos de “história” e “memória”; pessoas e alliance between African and indigenous ancestors
técnicas; uma relação de aliança entre antepassa- and the creation of sculptures, understood here as a
dos africanos e indígenas e a criação de esculturas, process of self-modeling subjectivities.
aqui entendida como um processo automodela- keywords Afroindigenous; Cultural move-
dor de subjetividades. ments; Subjectivity; Heterogenesis; Becoming; Bahia.

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Artista2 palmeira, vinha em seguida, acompanhado por


índios portando saias, caneleiras e braçadeiras
arte isso de palha de taboa, além de cocares de folhas,
arte manha arco-e-flechas e pinturas corporais.
artista façanha Aos índios seguia-se a bateria, composta
de teia de aranha por meninos jovens, vestindo uma bata feita
assanha cromossomicamente a partir de técnica de reaproveitamento: sacos
as garras do amor de plástico entrelaçados pintados de preto com
da fome, da guerra aplique de tecido amarelo na gola. Os instru-
luta que brinca mentos multicoloridos haviam sido feitos pelos
artista é isto próprios jovens, com latas e tubos de PVC de
arte de aranha diferentes tamanhos, cobertos por pratos e pa-
manha de isca nelas. Atrás da bateria, a grande cobra: cinco
belisca, petisca homens e um menino com um lençol cor-de-
a arte engole o artista   -rosa enrolado da cintura para baixo evoluíam
sob um pano pintado como cobra-coral, cola-
O bloco saiu ao entardecer, quando uma do a uma cabeça com grandes dentes à mostra
luz amarelo-ouro tomou a avenida principal feitos de papelão. Ao lado da cobra, um jovem
da cidade. À frente do cortejo, Zumbi, com vestindo apenas uma tanga diminuta e argo-
um escudo e uma lança, acompanhado por um las nos pés, enlaçado por uma cobra feita de
grupo de jovens princesas africanas de expres- pano: era Oxumaré. A grande cobra, inspirada
são séria, evoluindo em uma dança cadencia- nos dragões do ano-novo chinês, soltava uma
da. Em torno das princesas, algumas mulheres fumaça vermelha e seguiu o desfile todo desa-
mais velhas, vestidas com roupas brancas fei- fiando e dançando com Oxumaré.
tas de panos e lençóis amarrados com cordões No fim do bloco, após a ala das batas, dan-
feitos de isopor. Um capataz com espingarda, çavam algumas mães com crianças de colo ou
botas e olhar ameaçador seguia os passos de ainda sem idade para desfilarem sozinhas, todas
Zumbi. vestidas com saia e bustiê branco e pintadas com
Logo atrás, um elefante branco imponen- tinta branca. Logo atrás, vinham as crianças
te feito com técnica de papietagem, símbolo maiores, vestidas de vermelho e verde: eram os
“da África e das obras da prefeitura que são escravos que trabalhavam nos cafezais da região.
verdadeiros elefantes brancos, não servem de Todas traziam elaboradas tranças nos cabelos,
nada para a maior parte da população”. Em mas tiveram que cobri-las com um lenço: ter a
cima do elefante, destacava-se a rainha Anne, beleza tolhida faz parte da condição de escravo.
corpo pintado de branco, seios nus, portando A última ala era composta pelos jovens do
uma coroa feita de um cano de plástico san- grupo, jogando capoeira e maculelê. Embora
fonado amarelo e palha e carregando um es- seja chamado de “bloco” e saia no carnaval,
tandarte com motivos coloridos onde se lia: os integrantes do Umbandaum não definem
Umbandaum, o nome do bloco, emprestado do o desfile como um “bloco de carnaval” co-
disco Um Banda Um, de Gilberto Gil, lançado mum ou um “bloco de rua”. Ele é o momento
em 1982. Oxóssi, orixá guerreiro das matas, de apresentação pública do trabalho artísti-
adornado com longas folhas de samambaia e co desenvolvido pelo grupo ao longo do ano

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anterior e uma forma de manifestação política em que vai sair. A estratégia de “tomar a rua” a
que encena por meio de uma expressão pro- qualquer instante é uma forma do grupo ocupar
priamente artística a pouco conhecida história o espaço público da cidade e ser conhecido e re-
dos afroindígenas. conhecido – “a rua é pública”. A apresentação é
No meio do bloco, uma ala visualmente entendida como uma forma de se manifestar pú-
destoante das demais: a ala das pessoas que blica e politicamente, “como se fosse uma passe-
os integrantes do movimento definem como ata”. Desde as primeiras performances do grupo,
“de fora”, tais como turistas, moradores da mantém-se o costume de “se apresentar quando
Rua3, pesquisadores de passagem pela cidade4 eles [os moradores do centro, a elite da cidade]
e demais simpatizantes do movimento. Alguns menos esperam”. Embora respeitem os outros
membros-fundadores antigos e colaboradores grupos (como as escolas de samba) que even-
eventuais também desfilam nessa ala, indican- tualmente estiverem na frente, o Umbandaum
do que a classificação nativa “de fora” refere- prefere ter que fazer um trajeto diferente a se
-se antes a graus de afastamento relativos do submeter à organização oficial do carnaval.
núcleo central do movimento do que a uma O desfile do Umbandaum é apresentado
simples divisão binária dentro/fora. Aí encon- como um teatro-performance, em que os com-
tramos tanto aqueles que já tiveram algum tipo ponentes incorporam personagens e traduzem
participação no movimento, como os que não suas características por meio de expressões fa-
possuem qualquer tipo de relação prévia com ciais e corporais. Em alguns casos a “incorpo-
o grupo, mas que decidiram sair no bloco du- ração” é tão perfeita que diz-se haver possessão
rante o carnaval e para tanto adquiriram uma ou irradiação (ver MELLO, 2013). Assim, por
bata5. O fato dessa ala enredar as pessoas lite- exemplo, evita-se incorporar o seu próprio ori-
ralmente para dentro do bloco, faz com que xá pessoal, sob pena de “instigá-lo” a querer se
ela funcione como um dos centros de atração, manifestar. Zumbi, ao mesmo tempo em que é
contágio ou irradiação do grupo na relação atormentado pelo capataz que o persegue, rece-
com o seu fora. A cobra grande evolui, provoca be a proteção dos orixás que o circundam. As
e circunda seus integrantes, ameaça engoli-los crianças expressam tristeza e cansaço ao ence-
e os irradia com o axé do caboclo Cobra Coral. narem o fardo do trabalho escravo nas lavouras
Naquele ano de 2002, foram feitas bonitas de café, mas estão protegidas pelo caboclo co-
batas amarelas e pretas estampadas com moti- bra coral, trabalhador incansável.
vos tribais, onde lia-se: Castro Alves: da África à Personagens históricos e orixás caminham
Bahia – o tema do carnaval definido pelo mo- lado a lado e interagem entre si; objetos na-
vimento – e Umbandaum: Grupo Afroindígena turais (como urucum, cipós, palhas e folhas)
de Antropologia Cultural, autodefinição do gru- misturam-se ao que o grupo denomina como
po, enigmática à primeira vista e objeto das dis- “o natural da indústria” (plástico, PVC, tecido
cussões propostas a seguir. TNT); artesanato em taboa mistura-se a técni-
O bloco sai da frente do Dandara, espaço de cas de costura em overlock; pinturas indígenas
ensaios e shows organizados pelo Movimento aliam-se a tecidos estampados com silk-screen;
Cultural Arte Manha, e toma o rumo do cen- o próprio nome do bloco é um misto de ho-
tro histórico da cidade sem aviso prévio. O menagem a um dos maiores artistas da MPB
Umbandaum se recusa a notificar a Secretaria de e à religião umbanda, ela mesma produto e ló-
Turismo e Cultura da Prefeitura sobre o horário cus de uma fusão bastante original; esculturas

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humanas (como a cobra grande) alinham-se a Trata-se aqui de tirar algumas consequên-
esculturas em papel machê; o elefante branco é cias dessa proposta de “provocar discussão”.
a um só tempo animal-símbolo do continen- Como o grupo, também acredito que pensar
te africano e emblema do poderio das grandes (ou criar) não é algo natural ou induzido por
construtoras na macropolítica brasileira. uma boa vontade, pela “verdade” ou pela “au-
O bloco em marcha apresenta todos esses tenticidade”. Provocar discussão tem a ver com
elementos à primeira vista díspares como uma o efeito que a arte suscita naquele que a produz
totalidade sincrônica tão bem desenhada, que e naquele que a recebe ou é obrigado a recebê-
seu efeito no espectador é o de desestabilizar -la (caso dos moradores da “Rua” sendo inva-
quaisquer esquemas prévios que busquem algo didos ou contagiados pelo bloco). Este efeito é
como uma “autenticidade”, tornando indiscer- sempre, em certa medida, fortuito e incomen-
nível ou vã quaisquer tentativas de delimitação surável, já que não se dá entre a intencionalida-
de supostas fronteiras entre “mito” e “história”, de de um sujeito “emissor” de uma mensagem
“invenção” e “verdade”, “moderno” e “tradi- e um suposto “receptor”. Daí a precariedade
cional”6. O bloco funciona assim mesmo: em da ideia de conscientização, diagnosticada pelo
bloco. Suas partes não podem ser separadas grupo. As únicas relações possíveis são, por um
analiticamente nem remetidas a supostas ori- lado, a do artista com sua própria obra e, por
gens mais ou menos autênticas; funciona como outro lado, da obra, ou dos afectos e perceptos
um todo e a condição para tal é simplesmente distribuídos por ela, com essa multiplicidade
pôr-se em movimento. chamada público; nunca do artista diretamen-
Além de celebrar o carnaval e encenar o que te com o público, por mais que o autor seja ele
poderíamos chamar de uma versão recalcada mesmo sua obra, como é o caso das performan-
da (ou pela) história, o bloco é uma forma de ces do grupo.
manifestação, isto é, de afirmação pública da A intenção do artista – se é que isso existe
autonomia e da capacidade crítica e inventiva de forma consciente – não se dirige a um públi-
do modo de vida de um segmento sempre visto co. O artista é muitas vezes surpreendido pelas
como estando à margem da “boa sociedade”. mais diversas interpretações de sua obra, em
Segundo seus integrantes, as performances do que podem ser lidas coisas inimagináveis por
Umbandaum produzem um efeito de perturba- ele, louváveis ou deploráveis. Assim, o que há é
ção dos setores mais conservadores e/ou racis- a relação artista-obra e uma esperança, ou me-
tas da cidade, ou, como prefere Dó Galdino lhor, uma confiança de que ela provoque algo.
– um dos principais artistas do grupo – o bloco A discussão que o grupo enseja provocar por
e as performances do grupo logram provocar onde passa poderia ser desdobrada no plano in-
discussão: telectual/conceitual para discutirmos a noção
de afroindígena. Neste caso, a pergunta não
A arte é um caminho para a autoafirmação do seria de ordem ontológica ou semântica (o que
ser humano, dele mostrar sua capacidade. A arte é ser afroindígena, ou o que significa ser afroin-
tem essa possibilidade revolucionária: quem ia dígena), mas pragmática: como isso funciona7?
saber que o 13 de maio é a falsa abolição se o Como funciona essa multiplicidade composta
movimento não tivesse lançado essa questão? pelo encontro singular de termos tão hetero-
Não é tanto conscientizar, mas principalmente gêneos? Quais territórios constituiu e constitui
provocar discussão. em seu contínuo processo de heterogênese8?

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Para o grupo, o conceito de afroindígena não povos originalmente “puros”, mas como grupos
diz respeito à ideia de raça tomada como uma que já estariam de algum modo em contato e,
expressão de um fenótipo, fundada em diferen- portanto, misturados, antes e após a conquista
ças naturais. Não se trata de um modelo, a par- das Américas; e, por fim, (4) o processo artísti-
tir do qual seria possível identificar uma etnia co de criação de esculturas em madeira morta,
ou classificar ou reconhecer um grupo em uma movimento que integra os três planos anteriores
base natural de identificação. Afroindígena não e “abre o canal”, como lá se diz, que produz a
é tampouco algo da ordem da identidade (ou fusão entre pensamento, desejo e ação, mate-
da identificação), nem mesmo do pertenci- rializando-se nas esculturas propriamente ditas.
mento (SERRES, 1997), produto de uma série Interessa-nos aqui descrever esses fluxos que
de “influências” que poderiam ser remetidas atravessaram o movimento e o que foi feito de-
a origens bem delineadas ou “autênticas” e a les, isto é, qual seu efeito no processo de hetero-
um processo de “imitação” das técnicas ou de gênese do grupo. Cada um desses planos atuou
“identificação” com uma matriz original. e atua segundo uma lógica intensiva e não-de-
Como afirma Dó Galdino, “afroindígena terminista que constituiu e constitui os proces-
é uma linguagem”, um meio para se expressar sos de “se pôr a ser” do grupo. O conceito de
algo, uma forma de manifestação nos múltiplos afroindígena seria, portanto, da ordem do devir,
sentidos embutidos neste termo: manifestação daquilo que se torna, do que se transforma em
enquanto expressão ou revelação de um pensa- outra coisa diferente do que se era e que, no
mento, de uma ideia, de uma criação artística; entanto, “não produz outra coisa senão a si mes-
manifestação enquanto ato político de se fazer mo” (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 291).
reconhecer em público e manifestação como
incorporação, meio pelo qual uma entidade Devir-negro
espiritual se dá a conhecer no mundo sensível.
Se a noção de afroindígena é, por um lado, Mesmo os negros, diziam os Panteras Negras,
um meio, um intercessor por onde passam têm que entrar num devir-negro.9  
ideias, ações políticas, obras de arte e seres do
cosmos, ela também pode ser lida, por outro Quando completou 18 anos, Jamilton
lado, como um produto inacabado ou efeito Galdino Santana, um dos fundadores do movi-
provisório de encontros singulares que envol- mento cultural em Caravelas, foi para Salvador
veriam, no mínimo, quatro planos: (1) fluxos para prestar serviço militar. Lá, conheceu um
de “história” e “memória”, ou, posto de outra modo de vida contracultural, descobriu que era
forma, de acontecimentos molares e molecu- negro e que vivia numa ditadura. Diz sua tia
lares que marcaram a vida dos integrantes do Val, com quem Jaco, como é mais conhecido,
movimento em seu processo de devir-negro, foi morar:
devir-índio e devir-afroindígena; (2) pessoas e
técnicas com quem cruzaram em sua trajetória, Jamilton ficou uns 2 anos. Conheceu toda a ma-
dos quais retiraram ou “resgataram” algo, como lucada que frequentava lá em casa. Ele veio a
os artistas populares e foliões que fazem o Bloco conhecer outra visão, começou a fazer entalhes.
de Índio e o Bloco das Nagôs; (3) uma relação Os primeiros quadros. Eu fazia ioga, meditação.
de aliança entre seus antepassados africanos Tinha shows de artistas que ele nunca tinha
e indígenas, entendidos não como polos ou visto, Gilberto Gil, Rita Lee, Novos Baianos,

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conheceu tudo lá. Apesar de que, na vida deles, Arte Manha. O Umbandaum foi inventado
a mãe dele encaminhou eles para a vida cultu- em 1988, seguindo um modelo muito seme-
ral. A mãe deles movimentava o carnaval, bloco lhante aos blocos afro de Salvador10, cujo de-
de índio em Caravelas. Tava no sangue dele. E senvolvimento foi testemunhado pelos dois
Jaco fazia poesia, cada poesia linda... Conheceu dos fundadores do movimento. Tanto Jaco
os poetas da praça em Salvador, um movimento como Itamar saborearam uma época febril, de
que se reunia na praça da Piedade. E ali era pro- efervescência política e cultural, que, segundo
testo, era o momento de passar os panfletos, de eles, provocou uma mudança radical em suas
avisar das reuniões da UNE na casa de fulano, vidas. Estamos falando do início dos anos
na porta da reitoria, polícia botando cachorro 1980: época da chamada redemocratização po-
atrás e a gente corria.   lítica do país, do fortalecimento dos movimen-
tos negros, da reafricanização do carnaval de
O cotidiano de Jaco em Salvador se divi- Salvador (RISÉRIO, 1981, 1995) e, na cidade
dia entre duas vidas completamente diferentes: de Caravelas, da influência da teologia da liber-
a vida da caserna e a vida dos meios políticos tação nas pastorais da juventude católica e da
e artísticos alternativos. Como recruta, Jaco visibilidade de indivíduos e grupos adeptos de
acordava de madrugada, participava de treinos, um estilo de vida alternativo ou contracultural.
repetia frases fascistas e aprendia a matar. À Foi em Salvador que descobriram-se negros.
noite, escondido, arranhava poesias nos armá- Diz Jaco: “eu não sabia que eu era negro, não.
rios de ferro dos alojamentos. Nas horas de fol- Em Caravelas me sentia igual a todo mundo,
ga, Jaco corria para a casa da tia Val. No início, era moreno. Fui descobrir esse lance da discri-
aquele jovem soldado que chegava à noite no minação e do movimento negro em Salvador”.
meio das festas repletas de artistas e revolucio- Conheceram uma versão diferente da histó-
nários provocou alguns mal entendidos, hoje ria do Brasil que lhes ensinaram no colégio.
risíveis, à época nem tanto. Precavido, passou Descobriram um continente chamado África.
a andar com um saco de estopa e, ao deixar o Assistiram aos afoxés e aprenderam danças
quartel, costumava entrar num bar, tirar o uni- afro. Conheceram mais de perto a ditadura,
forme e vestir uma bata africana, indumentária palavra então não pronunciada em Caravelas,
mais apropriada ao ambiente em que circulava. mas presente na censura imposta pelo diretor
Jaco observava os movimentos políticos, da escola aos jornais de poesias que editavam.
artísticos ao mesmo tempo em que experimen- Conheceram intelectuais, políticos, artistas e
tava na pele “as coisas como eram no quartel. contraculturais em geral na casa da tia Val, que
Isso tudo começou a tocar na mente e no cora- reunia todos os “loucos” de Salvador. Tiveram
ção dele, ele se chocava mesmo” (Val). Salvador notícias dos movimentos negros nos EUA, do
também atraiu Itamar dos Anjos, amigo de apartheid na África do Sul, do black power.
infância de Jaco, um jovem de uma região de Deixaram de lado suas roupas de meninos do
Caravelas conhecida como Avenida, e que, interior, vestiram batas, trançaram seus cabe-
como ele, tinha dotes artísticos e vontade de los, fizeram dreadlocks. E voltaram a Caravelas
conhecer o mundo. Alguns anos mais tarde, com a certeza de serem belos e cultos e com o
os dois integrariam o grupo de teatro Avesso coração tomado por ideias revolucionárias.
em Cena e criariam o bloco Umbandaum, em- A viagem a Salvador foi o primeiro aconteci-
briões do que hoje é o Movimento Cultural mento que deu novos contornos à subjetividade

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de Jaco e Itamar, dois agentes centrais do movi- dos pataxó da Barra Velha ou dos tupinambá
mento. Essa viagem produziu um processo de de Olivença, grupos indígenas do extremo-sul
desterritorialização que fez brotar o desejo de e do sul baianos. O visitante de fora pergunta:
constituir em Caravelas um bloco como aque- “mas são ou não são índios?” Antes de tomar
les que os haviam emocionado. A estes encon- as ruas, o bloco se reúne num canto da casa
tros somam-se outros, com universitários que de alguém e Piaba pede licença aos caboclos,
passavam por Caravelas via Projeto Rondon, aos encantados e demais entidades indígenas
jovens professores, funcionários públicos e ban- para a realização da brincadeira. O pedido de
cários, figuras oriundas de um meio urbano, licença é também um pedido de proteção e
universitário e politizado, cujas ideas, terríveis uma expressão de respeito. Apesar disso, é co-
e encantadoras, em parte entraram no reper- mum que algumas mulheres caiam durante o
tório de concepções mais ou menos explícitas percurso pela cidade, isto é, que os caboclos se
que norteiam a atuação do movimento. Desses manifestem.
encontros múltiplos11 nasceu o Umbandaum e, É noite de lua e o Bloco de Índio está fa-
um pouco mais tarde, o movimento cultural zendo a aruanda na quadra a céu aberto do
Arte Manha. Movimento Cultural. Dona Tata, uma vizinha
branca, idosa e beata católica que mora a pou-
Devir-índio, devir-afroindígena cos passos do sítio-sede do movimento, obser-
va a roda e é repentinamente tomada por um
O virtual é a insistência do que não está dado.12  caboclo. Sua presença é saudada, mas Dona
Tata/o caboclo é logo levada/o para um canto.
Os relatos sobre a existência de blocos de Movem seus braços para baixo e chamam-na
índio em Caravelas datam da década de 1950. pelo seu nome, retirando-a do transe.
A participação nos blocos de índio é lembrada Embora dona Tata frequente apenas a igreja
nostalgicamente por Dó, Preto e Jaco, irmãos Católica, soube mais tarde que ela já “foi do
e criadores do movimento cultural. A falecida santo”, mas o terreiro que frequentava fechou.
mãe Dona Benedita – tida como uma grande Segundo sua filha, “mamãe não pode ouvir um
“festeira” da Avenida – liderava a organização tambor que logo cai”. O caboclo foi rapida-
do bloco e levava todos os filhos para desfilar mente despachado, em consideração à saúde
quando eram crianças, com ornamentos e pin- de dona Tata, que poderia não suportar o ar-
turas de índio. Piaba, que sempre saiu nos “ín- rebatamento. Embora se tomem todas as pre-
dios”, é hoje quem “põe o bloco” na rua. cauções para que os caboclos fiquem afastados
O Bloco de Índio Tupinambá faz sua e apenas protejam a festa, eles são intimamen-
“brincadeira” todos os anos no carnaval. No te desejados por todos: quando um aparece, é
bloco saem mulheres e homens pintados de saudado; algumas pessoas aproveitam para se
urucum, vestidos com saias de taboa cuida- consultar, mas, de um modo geral, é rapida-
dosamente elaboradas e com blusas vermelhas mente despachado. A aparição de um caboclo
doadas por vereadores e/ou candidatos. Eles durante o bloco de índio é reveladora de que
fazem a roda, a aruanda ou brincadeira e des- o local onde o bloco está – naquela noite, a
filam traçando círculos e cantando pontos de sede do movimento cultural – tem muito axé,
caboclo pelas ruas da cidade. O efeito é algo muita energia; é isso o que faz os caboclos não
perturbador: visualmente não diferem muito resistirem e descerem para participar da festa.

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É também indicativa de que o bloco está forte, de mais expressivo no nosso trabalho. Aparece
cantando e dançando bonito. pela nossa raiz aqui, nessa região é mais forte o
A maior parte dos participantes do bloco índio. Então a gente denominou afroindígena.
de índio tem ou tiveram uma relação com a As influências se juntaram e você não tem mais
umbanda ou o candomblé, em maior ou me- como falar só de afro.  
nor grau: alguns são filhos ou filhas de santo,
outros apenas participam das festas nos terrei- Essa descoberta só veio à tona e se tor-
ros. O nome Tupinambá é uma homenagem nou visível nos trabalhos “depois de prontos”.
aos caboclos, os orixás indígenas, os chama- A herança indígena surgiu inesperadamente,
dos “donos da terra”13. Tupinambá é também independente da vontade deles, é algo que pos-
um ponto de macumba, que chama os caboclos. suíam até então sem saber, que traziam dentro
O fato dos caboclos manifestarem no Bloco de de si e que encontrou seu lugar de expressão na
Índio evidencia que os índios do bloco não são criação artística:
meras representações teatralizadas dos caboclos
tupinambá: são eles próprios, os índios tupi- Quando a gente ia fazer um corte de cabelo,
nambá que decidem vir participar da festa e a gente via: “isso não é negro, isso aí é índio”.
assim o fazem incorporando-se eventualmente Até que a gente fazia um esforço de ser só afro,
em algum dos índios do bloco ou em alguém do um pouco ingênuo, entende? Mas saía índio. A
público. Há, portanto, uma zona de indiscer- gente tocava tambor com um corte de cabelo
nabilidade (ou de continuidade cosmológica) diferente. Metia a navalha no cabelo de todo
entre os índios do Bloco de Índio e os espíritos mundo, mas ficava tudo tupinambá. Caramba!
dos índios tupinambá que habitavam a região, Então vamos fazer o que a gente é! A gente, en-
que se evidencia na recorrente identificação tão, sentiu a necessidade de rever os nossos indí-
discursiva entre ambos e na perturbação visual genas, dar mais importância a eles.  
que produzem no público ao desfilar: “mas são
ou não são índios?”. Os índios respondem com No entanto, afroindígena não é apenas a
uma sonora gargalhada. justaposição de dois polos ou de duas formas
Como vimos, no início o movimento cultu- de expressão – africana e indígena – distintas
ral se definia como um “grupo afro” e se agen- e irredutíveis entre si. Afroindígena seria uma
ciou com as emanações discursivas e estéticas terceira forma, com características próprias que
do processo de “reafricanização” do carnaval de revelam um processo de aliança ou uma entre-
Salvador. Porém, num determinado momen- -captura entre negros e índios tendo como
to da sua trajetória, surgiu um novo elemento marco o início do processo de colonização.
que redefiniu a forma como os integrantes do Observemos as palavras de Preto:
grupo se veem: o componente indígena, que
surgiu de uma espécie de revelação oriunda da Eu creio que tenho um pouco de sangue índio.
produção artística do grupo. Dó explica: Eu sou meio índio, eu sinto. Porque o Brasil
foi descoberto em Porto Seguro e a maioria da
Toda vez que começamos a fazer o nosso traba- raça aqui é indígena. Todo mundo que nasceu
lho, não deixamos nunca de expressar os traços na Bahia, de Ilhéus para cá, tem um pouco de
indígenas. Por mais que a gente se esforce em sangue indígena. Meu pai tem uma mistura, é
ser apenas afro, os traços indígenas são o que há meio caboclo; minha mãe é mistura de índio

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com negro. Eu sou meio indígena, sou caboclo. de proximidade com a África: “são índios afri-
Minha mãe gostava muito de índio, colocava canos, afroindígenas”.
o [bloco de] índio assim na rua. Eu sinto que A relação que o grupo estabelece entre afro
tenho um sangue um pouco assim de índio e e indígena não é meramente de proximidade
acho que tenho uma mistura, através de ser ín- ou justaposição entre dois mundos paralelos;
dio e ser negro: índio-afro. Tem um pouco san- tampouco trata-se de uma fusão entre esses
gue de índio e sangue de África. Essa história dois mundos que os tornaria indiscerníveis
de Caravelas é como Salvador, onde descia os ou indiferenciados. A semelhança entre orna-
navios negreiros para vender os negros. É aí que mentos, máscaras e adereços sul-americanos e
mistura o negro e o índio.   africanos aponta para a percepção de um en-
contro – real ou virtual, pouco importa – entre
Afroindígena, segundo esta chave de leitura, índios e africanos. Esta relação entre grupos
seria uma forma de aliança, que se constituiu africanos e grupos indígenas é entendida como
no processo histórico de colonização das terras anterior. Anterior no sentido literal, na medida
que vieram a se chamar Brasil, quando houve o em que afirmam que os índios do litoral teriam
encontro entre os povos que aqui viviam com tido efetivamente algum tipo de contato com
os povos africanos escravizados. Há uma suti- a África antes da conquista e daí derivaria sua
leza aí: uma pessoa ou grupo afroindígena seria diferença em relação aos índios do interior, da
descendente desta aliança entre negros e índios Amazônia, estes tidos como mais parecidos
e não dos negros, de um lado, e dos índios, com os “índios andinos”. Anterior também
de outro, tomados como polos primeiros e ou no sentido de que “Brasil e África já foram um
matrizes originais. No caso da família Galdino só continente” e aí os sentidos cronológico e
Santana: de um lado seus membros identificam mitológico se misturam, permitindo-nos falar
uma marca “mais negra” da mãe e uma marca numa relação atemporal entre esses grupos.
“mais indígena” do pai, mas nenhum dos dois Por fim, é importante ressaltar que, do pon-
é definido como exclusivamente negro ou indí- to de vista do grupo, essa relação prévia que se
gena, mas sim como descendentes de fluxos já estabelece entre negros e índios traduziria uma
misturados desde o início. analogia estrutural entre negros e índios no pre-
Por outro lado, afroindígena aponta para sente: “os afroindígenas são os grupos historica-
uma relação virtual entre negros africanos e ín- mente excluídos”, afirmam.
dios sul-americanos entendida como anterior à
conquista europeia. Um dos artistas mostrou- Arte afroindígena e afroindígena
-me um livro de ilustrações feito por Noêmia como arte
Mourão, que retrata máscaras e adereços in-
dígenas. Estava impressionado com a seme- Pegar um povo em “flagrante delito fabular” é,
lhança da ornamentação indígena e a africana. de certa maneira, isto: pegar o povo (minoria
Apontando para um manto de palha indígena, criadora) no salto (devir-minoritário) de uma
disse: “olha esse, como parece Omolu! Olha criação14.  
esse, como lembra Oxóssi!”. Revelou-se tam-
bém intrigado com pranchas de Debret que Se, para o grupo a arte é mais do que uma
retratam índios que lhe pareciam muito seme- narrativa sobre um mundo tido como dado,
lhantes aos africanos, denotando uma relação constituindo-se num dispositivo capaz de

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desencadear encontros potencialmente trans- de perigoso manuseio. Diz Preto, um dos


formadores, caberia indagar: como e em quais escultores:
direções se processa esta transformação? Como
ela ganha consistência a partir das ações mais vi- Eu penso assim: estou ressuscitando a natureza.
síveis ou “tangíveis” do grupo em seu fazer artís- Ela está morta. É uma nova vida e todos vão olhar
tico, mas também numa direção pré-individual, para ela, vão prestigiar, elogiar aquela madeira.
molecular? Por outro lado, quais seriam seus Imagina se ela tivesse lá no mato? Ninguém ia
efeitos políticos molares, no que tange às tensões olhar para ela. A gente traz do mato para a cida-
e assujeitamentos a que estão submetidos e aos de e ela está sendo prestigiada. Eu acho que essa
objetivos de autonomia definidores do grupo? madeira ainda vai rir muito com a gente.
Em primeiro lugar, o processo propriamen-
te artístico de criação dos móveis e esculturas, A relação que se estabelece com a matéria-
segundo os artistas do movimento, funciona -prima não é simplesmente utilitária; a madeira
por meio da busca sistemática de uma espécie é percebida como um ser animado e a relação
de revelação da forma que se supõe oculta ou do artista com ela é uma relação de respeito
em potência na madeira bruta. Um tipo de di- e reconhecimento mútuo. Afirma um dos
álogo se estabelece com o material durante o artistas:
processo criativo no momento em que o artista
observa a forma da madeira e tenta auscultar É ótimo isso, você ressuscitar quem está morto.
ou decifrar seu sentido implícito, a forma que Ela vai agradecer a gente de um jeito que a gente
“a natureza está dando” e que precisa ser revela- não vai ver, mas eu sinto assim, esse trabalho, a
da. Diz um dos escultores: madeira, ela olha pra mim e fala assim: “obri-
gada, muito obrigada por você ter me trazido
Se você cai numa forma natural de uma ma- para aqui”. Eu gosto deste trabalho, porque eu
deira, de um galho ou uma raiz, você tem que trouxe uma vida; trouxe ela aqui para a cidade,
primeiro observar e começar a desenhar isso em ela estava morrendo e eu trouxe, estou recriando
mente, memorizar, gravar para não perder os ela e todo o mundo está vendo.  
traços naturais que ela já tem. Senão você cor-
re o risco de atropelar o que a própria natureza Ao mesmo tempo em que é afetado pelo
deixou. material, o artista põe em marcha sua imagi-
nação, submetendo o material que ora está
Por outro lado, o trabalho artístico sobre sendo esculpido à inspiração que nasce no
uma madeira que estava jogada fora é entendi- próprio momento em que é manipulado e ca-
do como o meio pelo qual se atribui uma nova vado. A criação, portanto, não é o resultado
vida à madeira, ressucitando-a. A motossera é de um projeto previamente definido; é, an-
utilizada aqui com uma finalidade inusitada, tes, o produto da relação que se estabelece no
como um formão elétrico de grandes pro- momento em que as ideias e habilidades do
porções: com ela, retira-se a parte “podre” da artista se encontram com a forma da madeira,
madeira a golpes milimetricamente controla- isto é, com a agência específica do material.
dos, uma operação que demanda apuro téc- Segundo os escultores, o tempo da criação ar-
nico para “domar” a máquina e certa dose de tística de reaproveitamento é incomensurável,
coragem, já que trata-se de um instrumento pois é possível que o artista observe por anos a

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fio uma raiz e não enxergue sua forma natural, (GUATTARI, 1990), que coloca o artista em
até que, certo dia, venha um desenho na men- contato com sua própria sensibilidade, per-
te, uma espécie de epifania, que lhe revele sua cepção, história, relações sociais, fantasmas
forma implícita e o leve a trabalhar febrilmen- etc. O artista não esculpe o que quer sobre a
te por dias a fio até a finalização da obra. Nas raiz envelhecida que encontra jogada na beira
palavras de Dó: do mangue. Não há um projeto prévio, tam-
pouco contingência total: há, antes, um jogo
Essa outra escultura quase vira uma cabeceira lúdico entre a arte do escultor e as manhas do
de cama. Eu não enxergava em nenhum instan- material. O artista
te um corpo humano, só enxergava um pé de
mesa, era um absurdo! Então eu vim desenhan- não fala apenas com as coisas, mas através das
do, desenhando... Ia ser uma mulher, mais vi coisas: narrando, através das escolhas que faz
que tinha algo muito mais rústico, aí exagerei e entre possíveis limitados, o caráter e a vida de
fiz um homem, um bailarino. Chegou um ins- seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o
tante, eu comecei a observar o movimento de bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si
um corpo humano. Então aquilo explodiu de (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 35)15.
uma vez. Eu pensei, que forma humana estava
me inspirando? Aí pensei no orixá. Qual orixá? Além de funcionarem como catalisador
Você se faz um monte de pergunta, começa a de processos infra-pessoais de autopoiesis16, os
questionar um monte de coisas. Não é muito fá- objetos de arte produzidos pelos escultores do
cil. Dá uma piração arretada! Tem o trabalho de grupo exprimem a recomposição de territórios
pesquisa de orixá, tem que conciliar a forma na- existenciais outros, distintos daqueles a que
tural com o elemento que você quer trabalhar. estariam destinados, se não lhes fosse possível
O orixá veio, porque encontrei uma forma hu- traçar linhas de fuga por meio da arte. O artis-
mana e aí tive que procurar o mito que se iden- ta, ao entrar em contato com sua interioridade,
tificava melhor com o tronco. Aí veio Oxumaré, se reapropria de componentes de sua subjeti-
porque o tronco é bem sinuoso e Oxumaré tem vidade e, desse modo, produz um processo de
como simbologia a cobra. singularização, isto é, um processo automode-
lador, em que constrói suas próprias referências
Esse encontro entre a concretude da ma- práticas e teóricas, suas próprias cartografias17
téria-prima e a imaginação do artista engen- (GUATTARI, 1986, p. 33).
dra uma espécie de ciclo: ora o artista é um No entanto, na medida em que a subjeti-
agente que esculpe a madeira, ora o produto vidade é parte constitutiva de todo processo
daquilo que o artista produz o transforma em de produção social e material, ela é inevitavel-
“paciente em relação à agência que ele exer- mente agenciada pelas “concatenações de rela-
ce” (GELL, 1998, p. 45). Isto é, a agência ções sociais, econômicas, maquínicas”, sendo
exercida pelo artista o afeta reciprocamen- “aberta a todas as determinações sócio-antro-
te. Temos aí um processo de criação artís- pológicas, econômicas etc.” (GUATTARI;
tica que é, ao mesmo tempo, um processo ROLNIK, 1986, p. 68). Daí a tensão perma-
de automodelização da subjetividade, uma nente, no âmbito da subjetividade dos agentes
vez que o diálogo com a madeira funciona do movimento cultural, entre singularidade e
como uma espécie de catalisador existencial individualização, isto é entre a tentativa de se

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produzir formas de subjetivação mais autôno- decomposto em vários ângulos, tornando indis-
mas e originais e o processo geral de serializa- cernível uma só expressão. O abdômen e o braço
ção da subjetividade que caracteriza a sociedade traduziriam uma influência “realista”, pois um
que Guattari denominou capitalística, na qual antigo capoeirista da cidade posou para Dó. A
estamos inseridos18. escultura produz no espectador uma espécie de
Ribeiro (2014, p. 80) descreve este processo ilusão de ótica: à primeira vista, não se nota que o
de serialização como um corte, uma separação bailarino só tem um braço e uma perna. Devido
entre um corpo e sua potência: ao efeito de movimento que o artista conseguiu
imprimir à escultura, tem-se a sensação de que
Faz parte de toda rede de atualização, da forma- ele possui todos os membros intactos.
-Estado, da axiomática capitalista e dos micro- Eis a forma como este processo é descrito:
fascismos que nos assolam cotidianamente nos
separar daquilo que podemos. Separar-nos de O bailarino russo teve as duas pernas amputadas
nossa potência, nos determinar funções e enca- e continuou fazendo todo o trabalho de perfor-
minhamentos normais demais. Assim, separam- mance. E aquilo demonstrou para mim uma
-nos da virtualidade que insiste em abrir um força interior imensa. Você ter a tua forma toda
campo de possibilidades, para além daquelas natural e, de repente, se deparar com um aciden-
enquadradas para se atualizarem.   te e conseguir forças para continuar numa área
que depende totalmente das pernas, dos mem-
O processo de criação da escultura Bailarino bros que você usa para trabalhar. E você buscar
Russo seria um exemplo de exercício de combate força nos outros membros – ele perdeu as pernas
a este corte, uma espécie de “antídoto” à sepa- e foi buscar a força nos braços. A escultura não
ração entre um corpo e sua potência, fornecen- tem uma perna e um braço e foi inspirada nessa
do uma “liga” para unir o que o mundo quer questão. Então, o dançarino, esse ser humano
separar (pensamento, desejo e ação), por meio que tem uma dificuldade perante essa situação
da linha de fuga traçada ou atualizada durante toda, encontrou na arte a solução. Oxumaré
o processo de expressão criativa. O pedaço de que é a questão de religiosidade e de humanis-
madeira de reaproveitamento levava Dó a en- mo nessa questão toda, que é delicada. Os exus
xergar apenas um pé de cama com um abajur na mitologia africana são elementos que vêm
acoplado à cabeceira. Até que um dia, assistindo dar proteção aos seres discriminados, desprote-
à televisão, viu uma apresentação de um bailari- gidos, como crianças menores, homossexuais,
no russo que teve suas pernas amputadas e que, mendigos. O Exu é um garoto avante dentro da
ao contrário de todas as expectativas, foi capaz mitologia africana. Às vezes pregam, dependen-
de continuar seu trabalho de dança, executando do da circunstância, que ele pode fazer um mal,
os movimentos somente com a força dos bra- mas em situação de combate, como proteção.
ços. Aquilo afetou intensamente Dó e o levou Mas é um orixá que vem a dar proteção para
a trabalhar febrilmente numa escultura, deno- os excluídos, os desprotegidos. A capoeira tem
minada Bailarino Russo. Trata-se de uma escul- toda essa questão também de força interior que
tura impactante e de grandes proporções, de os negros buscaram para sair de uma situação
um homem fazendo um movimento de torção de guerrilha. Os negros descobriram uma for-
do corpo, como se jogasse capoeira ou danças- ça interna que era uma arma, a capoeira inicial.
se. O rosto tem uma influência “cubista” – foi Transformar sua capacidade física, misturando

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com os movimentos do balé rudimentar que algo que ela não tem, algo que não tá dentro
eles tinham e começaram a inserir golpes dentro daquelas possibilidades.
da dança, para transformá-la numa arte marcial -E se você cismar que quer porque quer um for-
para combater os feitores em guerrilha. E, ao mato tal?
meu ver, uma força interior, uma estratégia in- - Não se faz o que se quer com a madeira. Se você re-
teligentíssima para sobreviver na época, quando solver que quer fazer uma escultura toda vazada, pode
não tinha capacidade de adquirir outras ferra- ser que a madeira não resista, que ela rache ou quebre.
mentas. A ferramenta que eles encontraram era - E como faz pra saber se vai dar para fazer o que
o corpo humano, o corpo físico. E batalharam está na sua cabeça?
um bom tempo com essa arma.   - É que nem com as pessoas: uma questão de
intimidade. De conhecer o outro, o jeito de ser
Embora à primeira vista desconexos, há do outro, as manias do outro. E isso só com o
uma evidente analogia entre a madeira morta tempo. Tem que conviver, testar, ver os limites,
que ganha nova vida a partir do trabalho de as possibilidades. Experimentar, arriscar. Tem
reaproveitamento, o bailarino russo com sua que estar atento às tramas e nós da madeira.
forma natural desfigurada que reafirma sua - E quando se descobre que as possibilida-
vontade de dançar, o escravo capoeirista que des daquela madeira são muito limitadas?
transforma uma dança numa estratégia de re- - Quando o artista não se emociona mais com
sistência e o próprio trabalho do movimen- aquela madeira, é hora de deixá-la pra trás.
to cultural afroindígena, que a todo tempo Hora de parar, ficar quieto, observar ao redor.
afirma a vontade de constituir sua existência Às vezes ele está caminhando e topa de repente
como alternativa aos modos dominantes de com uma bela madeira nova. Às vezes, ele tem
subjetivação. A descrição da elaboração da que partir em longas expedições até encontrá-
escultura Bailarino Russo revela uma com- -la. Mas ele só tem como saber que é aque-
posição singular, que estabelece conexões la madeira que procurava depois de arriscar
lógicas até então insuspeitas entre seus ele- conhecê-la. Como eu disse, é tudo uma ques-
mentos, traduzindo, a um só tempo, a pers- tão de tempo, mas também de intimidade. Só
pectiva ética e estética que os integrantes do ganhando intimidade com a madeira que ela
movimento cultural têm sobre o mundo em vai mostrar todas as possibilidades que contém
que vivem e criam. dentro de si, as tramas escondidas. Ele pode
encontrar coisas maravilhosas e é claro que
Considerações finais vai topar com entraves e limites. Mas se tiver
medo e evitar ser íntimo, simplesmente nunca
Afirma Jaco19: vai saber se encontrou o que procurava. Arrisca
jogar fora a madeira certa ou perder muito
- Uma coisa que eu aprendi é que todo mundo tempo com a errada.
tem algo pra dar, alguns mais, outros menos. - Então se é certo que a madeira é a matéria-
Aprendi a não esperar das pessoas uma coisa di- -prima do artista, o artista também é matéria-
ferente do que elas podem dar. Você tem que -prima da madeira...
captar o que é que cada um tem pra oferecer. E - Sim, o artista tem que se deixar entalhar pela
pegar, receber. É que nem quando faço escultura madeira. Você vai sentindo, conhecendo os nós,
com madeira: você não pode querer tirar dela ganhando intimidade e o resultado nunca é

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exatamente como você imaginou. Não é nem afroindígena foi forjado segundo a mesma lógi-
mais você, nem a madeira. É uma outra coisa. ca que orienta a técnica de reaproveitamento da
- E o que é essa outra coisa? madeira morta, matéria dotada de uma anima
- Essa outra coisa é o novo.   que no limite nunca se extingue: afroindígena
é uma espécie de reatualização por bricola-
A proposta aqui em jogo foi a de uma gem dos fluxos de acontecimentos molares e
discussão em torno do conceito de afroindí- moleculares que definem a trajetória do gru-
gena, tal como concebido pelos artistas do po, articulados ao processo de dupla-captura
Movimento Cultural Arte Manha, situado (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 17) entre
em Caravelas, cidade do extremo sul baiano. índios e negros, produzido a partir de um en-
Busquei traçar suas linhas de composição, contro entendido como atemporal entre povos
narrando os percursos delineados pelo movi- que lograram traçar linhas de fuga no processo
mento e seus integrantes ao longo de sua traje- de enfrentamento à espoliação a que foram – e
tória, nos quais multiplicam-se encontros com são – submetidos.
fluxos minoritários e embates frente aos fluxos A arte afroindígena é uma destas linhas
majoritários que atravessam seu processo de traçadas pelos integrantes do grupo no sen-
“se pôr a ser”. tido de dar consistência a um território exis-
O bloco Umbandaum invade o centro tencial que, embora não isento de tensões
histórico da cidade e, com sua narrativa hete- permanentes, conjura o risco sempre presente
róclita que sustenta em um mesmo plano de de captura da autonomia criativa do grupo
imanência mito, história, crítica social, festa, em geral e de seus integrantes em particu-
manifestação política e alegorias ecléticas, pro- lar. Ao provocar a discussão, isto é, instigar as
voca algo nos moradores da “Rua”, a elite da pessoas a pensar, a arte produzida pelo grupo
cidade. Este algo é em grande medida impre- funciona como um catalisador existencial que
visível: há quem irá se “contagiar” pelo mo- afeta tanto os fluxos que vem “de fora”, isto é,
vimento, há quem se manterá à distância do os fluxos majoritários com que lidam cotidia-
grupo; mas de algum modo todos são afetados namente, quanto “o fora dentro da gente”, a
pela passagem do bloco. relação de si para si, atuando na produção de
Do encontro com os movimentos ne- uma subjetividade pré-individual e de grupo
gro, estudantil, artístico e contracultural na que busca fugir ou escapar aos modos de sub-
Salvador de inícios dos anos 1980, os jovens jetivação dominantes e, assim, ser capaz de
do Umbandaum entraram num devir-negro; criar o novo.
do encontro com um virtual que se manifes-
ta à sua revelia, por meio das possessões por Notas
caboclos durante a passagem do Bloco de
Índio Tupinambá e da aparição não inten- 1. As discussões ora apresentadas neste artigo são fru-
cional de formas indígenas em suas criações to de uma releitura do material etnográfico que deu
artísticas, os integrantes do movimento cul- origem as minhas dissertação de mestrado e tese de
tural entram num devir-índio e, daí, num doutorado, defendidas no PPGAS-MN-UFRJ, res-
devir-afroindígena. pectivamente, em 2003 e 2010, sob orientação do
Analisando seu processo de criação de Prof. Marcio Goldman, a quem sou profundamente
esculturas, observa-se que o conceito de grata pela generosidade intelectual com que pontuou

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todo o processo. Agradeço, em particular, as sugestões das micromultiplicidades, das micromáquinas, das
ao presente artigo. O grupo estudado poderia ser de- máquinas desejantes, das formações moleculares. [...]
finido como um dos muitos “novos movimentos cul- A única questão é como isso funciona, com intensi-
turais” (GOLDMAN, 2009) que emergiram na cena dades, fluxos, processos, objetos parciais, todas coi-
política contemporânea articulando de forma singular sas que não querem dizer nada”. (Deleuze, 1992, p.
uma atuação política indissociável de um processo de 33-34).
criação cultural ou artística. O exercício aqui proposto 8. Heterogênese é aqui entendida no sentido dado
não é enquadrá-los em categorias já conhecidas ou fa- por Felix Guattari (1990), como o processo contí-
miliares, mas buscar analisá-los mantendo intacta uma nuo de ressingularização de grupos e subjetividades.
certa “rugosidade” característica de seus modos de fa- Subjetividades e não indivíduos, pois este estaria em
zer e pensar. O grupo estudado atua há 25 anos na posição “terminal” em relação aos vetores de subjeti-
cidade de Caravelas, extremo sul baiano, e se organiza vação: “A interioridade se instaura no cruzamento de
enquanto movimento cultural, articulando pessoas li- múltiplos componentes relativamente autônomos uns
gadas por laços de parentesco, vizinhança e amizade em relação aos outros e, se for o caso, francamente
em torno de uma produção artística – dança, música, discordantes” (GUATTARI, 1990, p. 18).
teatro, performance, escultura e, mais recentemente, 9. Deleuze; Guattari (1980, p.357).
vídeo – que se entende inseparável de um fazer po- 10. Sobre este tema, ver Cunha (1991; 2000); e Agier
lítico e da produção de subjetividades que se querem (2000).
dissonantes. 11. Para uma instigante tese que explora o conceito de en-
2. Poesia de Napoleão Herval Silva (1989). contro em relação a um movimento cultural negro do
3. Como é chamado o centro histórico de Caravelas, sul Bahia, ver Silva (2004).
onde vive a classe média e a “elite” caravelense. 12. Zourabichvili (2003, p.89).
4. Caravelas (BA), por ser o porto mais próximo do 13. Para uma análise detalhada da figura do caboclo no
Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, atrai há candomblé da Bahia, ver Santos (1992; 1995). Sobre
décadas pesquisadores das áreas das ciências naturais como a imagem do “índio” é construída e experimen-
que estudam a fauna e os ecossistemas marinhos. tada por meio dos diferentes sentidos atribuídos ao
5. Nesse sentido, as batas funcionam também como caboclo numa área de baixa renda de Salvador, ver
forma de levantamento de fundos para arcar com os McCallum (1997). Sobre o processo de africanização
custos do desfile do Umbandaum. dos blocos de índio, ver Risério (1981) e Agier (2000).
6. Para uma discussão sobre invenção da tradição na 14. Ribeiro (2014, p. 95).
Antropologia, ver Briggs (1996) e Mello (2003). 15.Em sua clássica análise sobre a bricolagem, Lévi-
7. Inspiramo-nos aqui em Deleuze (1992, p.33), “so- Strauss estabelece uma analogia entre o trabalho do
mos puramente funcionalistas: o que nos interessa é bricoleur e a lógica que rege o pensamento mítico.
como alguma coisa anda, funciona, qual é a máqui- O bricoleur é aquele que reaproveita elementos de an-
na”. Trata-se, portanto, de contribuir para responder tigos conjuntos, peças com uma forma pré-moldada,
não o que isso é ou o que isso quer dizer, mas como mas não totalmente acabadas, “que podem sempre
funciona. Segundo Deleuze, “o que explica o fracas- servir” (LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 31). São elemen-
so do funcionalismo é que tentaram instaurá-lo em tos semiparticularizados, “cada elemento representa
domínios que não são os seus – grandes conjuntos um conjunto de relações ao mesmo tempo concre-
estruturados: estes não podem formar-se, não podem tas e virtuais; são operadores, porém, utilizáveis em
ser formados da mesma maneira que funcionam. Em função de quaisquer operações dentro de um tipo”
compensação, o funcionalismo impera no mundo (Lévi-Strauss, p.31). Da mesma forma, o pensamento

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mítico se exprime a partir de um repertório de com- ______. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed.
posição heteróclita, extenso, porém limitado. O 34, 1992 [1990].
pensamento mítico seria, portanto, uma espécie de GELL, Alfred. Art and Agency: an anthropological theory.
bricolagem intelectual (LÉVI-STRAUSS, 1962, Oxford: Clarendon Press, 1998.
p.30). GOLDMAN, Marcio. Introdução: Políticas e
16. Varela, Fernando (1989) apud Guattari (2012). Subjetividades nos “Novos Movimentos Culturais”.
17.
A singularização designa “processos disruptores no Ilha – Revista de Antropologia da UFSC, Florianópolis,
campo da produção do desejo: trata-se dos movimen- v.9, n. 1 e 2, p. 9-22, 2007.
tos de protesto do inconsciente contra a subjetividade GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica.
capitalística, através da afirmação de outras maneiras Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
de ser, outras sensibilidades, outra percepção etc.”. GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus,
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 45). 1990.
18. Como afirmam Guattari e Rolnik, “é num só movi- ______. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo:
mento que nascem os indivíduos e morrem os poten- Ed. 34, 2012.
ciais de singularização”. “Há sempre algo de precário, LATOUR, Bruno. Petite Réflexion sur le culte moderne des
de frágil nos processos de singularização. Eles estão dieux faitiches. Collection Les Empêcheurs de Penser
sempre correndo o risco de serem recuperados, tanto en Rond. Paris: Synthélabo Groupe, 1996.
por uma institucionalização quanto por um devir gru- LÉVI-STRAUSS, Claude. La Pensée Sauvage. Paris: Plon,
pelho” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 53). 1990 [1962].
19. Uma análise mais detida do diálogo que se segue en- LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. O Pensamento Selvagem.
contra-se em Mello (2010). Campinas (SP): Papirus, 1997.
MCCALLUM, Cecilia. The Redskin Within: Popular
Referências bibliográficas Indianism and Official Nationalism in Salvador da
Bahia. In: Mimeo, 1997.
AGIER, Michel. Anthropologie du Carnaval. La ville, la MELLO, Cecília C. do A. Obras de arte e conceitos: cultura
fête et l’Afrique à Bahia. Marseille: Ed. Parenthèse, e antropologia do ponto de vista de um grupo afro-indígena
2000. do sul da Bahia. Dissertação (Mestrado) – Programa de
BRIGGS, Charles. The of in on the ‘‘Invention of ”. Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Cultural Anthropology, v.11, n.4, p.435-469, 1996. Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.
CUNHA, Olívia Gomes. Corações Rastafari. Lazer, ______. Política, Meio Ambiente e Arte: percursos de um
Política e Religião em Salvador. Dissertação movimento cultural do extremo sul da Bahia. Tese
(Mestrado em Antropologia Social) – Programa de (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
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autora Cecília Campello do Amaral Mello


Professora Adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e Pesquisadora do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 223-239, 2014

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