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A inauguração do deserto

A última notícia sobre o que estava acontecendo ao norte, foi dada por um Ministro, o dos
Negócios Imobiliários, cargo criado pela necessidade de se controlar a especulação, não
somente nas grandes cidades, como em toda área do litoral, onde os loteamentos se
sucederam, velozes e devastadores.
Na verdade, o Ministro cuidou voraz e imediatamente de proteger o seu grupo. Controlou
a entrada de arrivistas, eliminou concorrentes. Uma tarde, célebre, ele declarou na
televisão: “Devemos estar orgulhosos pela conquista que acabamos de fazer. Um grande
feito deste governo que pensa no futuro”.
Porque, disse ele, a história vai nos registrar como o Esquema que deu ao país uma das
grandes maravilhas do mundo. Não é apenas a África que pode se orgulhar do seu Saara,
o deserto que foi mostrado em filmes, se tornou ponto turístico, atração, palco de
aventuras, celebrado, glorificado.
A partir de hoje — e ele sorriu, embevecido — contamos também com um deserto
maravilhoso, centenas de vezes maior que o Saara, mais belo. Magnificente. Estamos
comunicando ao mundo a nona maravilha. Breve, a imprensa mostrará as planícies
amarelas, dunas, o curioso leito seco dos rios.”
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A punição do cientista que denunciou o deserto

Foi quando se deu a punição ao cientista. Quero dizer, a primeira após os Abertos
Oitenta. Penso que esta pena marcou o início de um novo tempo. Nestes últimos anos,
saltamos rapidamente de um ciclo para outro. Mal nos acostumamos a um, precisamos
mudar. Incessantemente.
Fomos ingênuos. Como eu, muitos. Tínhamos nas mãos posições através das quais era
possível, lentamente, instilar um gesto de lucidez, um pouco de consciência. Semente de
inquietação. Alarme. Mesmo com toda a vigilância. Afinal, um professor em quem alunos
confiam, é muito mais que um pai.
Sim, aquele cientista protestou. Teve coragem. Quem lembra seu nome, hoje? Havia na
universidade um livro negro. Intenso relato da perseguição que professores,
pesquisadores, médicos, cientistas, sofreram. Até o momento em que os registros não
adiantaram. A exceção virou normalidade.
Convivemos com ela, nos habituamos. O cientista punido não me sai da cabeça. Eu
estava no hall da universidade, quando ele passou. Soube antes, pelos noticiários da
tarde. Ficou esperando, o reitor desceu com um comunicado para a sala dele. Saiu, sem
abrir uma gaveta, sem levar um só papel.
Ao passar por nós, no hall, parecia o mesmo homem de todos os dias. Nem a cabeça
abaixada, derrotado. Nem erguida, sinal de orgulho e indiferença. Homem normal. Tinha
acabado de perder os seus direitos. O de professor, o de circular, comprar, conversar com
os outros. O de viver, enfim.
Eu estava chocado. Não fazia ainda idéia exata do que se abatera sobre aquele homem.
Um biólogo com teses nos Estados Unidos e Europa. Dava aulas há dezenove anos.
Filhos e netos. Pouco mais e levaria vida tranqüila. No entanto, ele se ergueu. Sua voz
indignada clamou. Contra o deserto.
Não calculávamos os resultados. A reação foi violenta. Deixou nos confusos. Que raios de
pesquisadores éramos, se não tínhamos sequer possibilidades de analisar lucidamente a
situação? Pessoas com as nossas informações de realidade política e social deviam estar
preparadas.
Prontas a calcular, misturar os dados, observar. Concluir os caminhos aos quais
estávamos sendo levados. Nem era questão de previsão. Bastava contemplar os fatos e
tirar ilações naturais. Como beber água quando se tem sede. A punição daquele homem
foi a chave que nos forneceram, o aviso.
Não a utilizamos. Levei alguns meses perplexo, até a vergonha tomar conta de mim. Senti
que devia ter atravessado o hall e me colocado ao lado do professor. Tivéssemos todos
feito isso, algo poderia ter mudado. Os gestos decisivos faltaram em bons momentos de
nossa história.
Dar as mãos simbolicamente. Penso muito nisso. Já se passaram tantos anos e ainda me
imagino. Nós, juntos, diante da universidade Ou aniquilavam todos, ou voltavam atrás.
Permitimos. Não me conformo. Culpa que carrego. Ela me corrói. Nada pior que a
memória do gesto não realizado.
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Sobre o sistema instaurado

Dos anos setenta em diante, fomos conduzidos dentro de indefinições. Rodeados por
coordenadas paradoxais. Sistemas duros, ares democráticos. Repressões justificadas e
justificativas aceitas. Democracias em clima de ditadura. Regimes amorfos a respeito dos
quais não sabíamos pensar.
Nunca nos ocorreu que era uma nova forma de sistema. Sem contornos definidos. O
nosso erro foi procurar na própria história os moldes. Esquecidos que os tempos e os
homens tinham se modificado, substancialmente. Como poderíamos chamar a esta nova
fórmula? Sistemas dissimuladores?
Assemelham-se, porém não são. São, mas não se assemelham. Um jogo de esconde.
Como se entrássemos num labirinto de espelhos, e perdêssemos a imagem verdadeira.
Ou todas imagens à nossa volta dadas como verdadeiras. Aceitar todas, admitindo a
multiplicidade, ou permanecer em busca da única?

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Sobre a prática da falação ou o Breve Período de Repouso de Gargantas Indignadas


e Inflamadas.

Um país onde há séculos se deita falação. Desde a carta de Pero Vaz de Caminha. A falação foi
uma característica que os Esquemas souberam capitalizar, introduzindo na psicologia
popular. Fizeram com que a falação se transformasse numa cortina de fumaça,
encobrindo tudo que fosse possível.

O processo de falação obedece a uma seqüência invariável. Um primeiro momento, o da


chamada denúncia. Alguém levanta o problema. Em seguida, uma fase delicada. A das
vozes indignadas, governamentais ou não, que se erguem exigindo providências. O
terceiro momento requer habilidade.
É a fase das promessas. Garante-se a formação de comissões de inquérito, promovem-se
passeatas controladas, editoriais consentidos na imprensa, entrevistas categóricas. Este
período é essencial, exige uma avalanche de falação contínua, exacerbada, exasperante.
Falar até o total sufoco.
Não deixar ninguém raciocinar. Repisar indefinidamente o assunto, até o ponto de
completa saturação. Falar, falar até o esgotamento. E então, de repente, ninguém mais
pode ouvir sequer comentar as tais denúncias. Elas se esvaziam. Os que tentam são
classificados como Intolerantemente Aborrecidos. Os sistemas de governo se sucederam,
as noções políticas se modificaram, menos a falação. Esta prosseguiu, como tara
hereditária. Constantemente aperfeiçoada.
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Sobre o ataque a casa dos vidros de água e o surgimento da grande solução

As 14 horas de hoje, o Museu dos Rios Brasileiros, conhecido popularmente pela


designação de a Casa dos Vidros de Água, localizado no que antigamente foi o Largo do
Arouche, recebeu uma afluência fora do comum. De repente, para espanto dos vigilantes,
centenas de pessoas começaram a entrar e a se espalhar. Aparentemente, queriam
apenas olhar os milhares de litros que continham as águas dos rios, riachos, ribeirões,
nascentes, lagos, lagoas, fontes e olhos de água de todo o Brasil. A Casa dos Vidros de
Água foi o mais completo e admirado museu hidrográfico do mundo, apreciado por
especialistas do universo inteiro que ali sempre fizeram suas pesquisas hídricas.
Organizado na década de oitenta por cientistas da Universidade de São Paulo, do Rio
Grande do Sul, do Espírito Santo e da Paraíba, teve a colaboração de pesquisadores de
todo o país. A cooperação popular foi grande. Levou-se doze anos para se atingir a
perfeição atual. Em dezenas de salas, cada uma abrangendo uma região, podia-se ver os
litros, de colorações diferentes, além de gravuras, fotos, mapas, gráficos, legendas. A
biblioteca e a filmoteca completavam o conjunto. A discoteca guardava relíquias, como o
ruído das cachoeiras, principalmente da Foz do Iguaçu, o som da extinta pororoca, o
murmúrio de regatos. Quando os vigilantes se despreocuparam, relaxando a fiscalização,
tudo aconteceu. Em questão de minutos. Sem que houvesse qualquer chance de impedir.
As pessoas passaram a abrir os vidros e a beber a água. Bebiam e se molhavam. Saíam
com as roupas ensopadas. Quando os Civiltares chegaram, minutos depois, sobrava um
só vidro fechado. A maioria dos depredadores fugiu, arrebentando portas e janelas.
Alguns foram presos. Suspeita-se que tenham sido aliciados por alguma organização.
Sabe-se que no começo da tarde, espalhou-se o boato de que a Casa dos Vidros de
Água estava sem corpo de guarda. E que havia muita água estocada lá dentro. Um dos
presos, durante a verificação disse: quem é que queria ver água de rio? A gente tinha
sede, isso sim. Então, fomos beber a água que era nossa, por direito. Eu procurei a água
de um riacho que passava atrás de minha cidade. Um rio onde nadava quando criança.
Foi dele que bebi. A água está aqui na minha barriga. Podem tirar se quiser.

O que teria levado homens a destroçar o acervo, torna-se um mistério que os Civiltares,
preocupados, estão ansiosos para desvendar. Os presos estão submetidos ao tratamento
habitual. Este tratamento persuasório, científico e indolor, destina-se a fazer com que
narrem, em espontânea vontade, como os fatos se passaram. O objetivo é determinar,
como se suspeita, se houve um provocador. Este é o perigo.
Pessoas entrevistadas disseram que ninguém suportou o calor hoje. Foi o dia mais
quente do ano, registrado nos institutos oficiais. O sol deve ter alterado o comportamento
de todo mundo. Meteorologistas acentuam que a temperatura tende a subir, ainda mais
que nos aproximamos dos meses que, em outros tempos, correspondiam ao verão. O
Esquema está de prontidão para tomar duas providências. Impedir que a migração para
esta cidade continue, uma vez que ela é causa de graves problemas. Em segundo lugar,
adotar medidas, como a construção de gigantesca Marquise para proteger o povo do sol e
da intensa onda de calor que se abate sobre o país.
A marquise ou os bobalhões que acreditaram

Ninguém sabia, exatamente, o que eram as Marquises. Imaginamos abrigos


racionalmente organizados, como aqueles construídos na Europa, durante a segunda
guerra mundial. Ou como os Shelters contra a radiação atômica. Algo como a Pequim
subterrânea que disseram ter existido em Oitenta.
Esperávamos espaço, sistema de ventilação, certa comodidade, banheiros, bebedouros.
Nunca pensei vir aqui, mas julgava que fosse assim, a partir da Intensa Propaganda
Oficial. Como se pudéssemos esperar alguma coisa do Esquema. Que não saibam destes
pensamentos pessimistas, ou me isola
Logo percebemos tudo. A construção do século não passa de milhares de colunas
sustentando uma laje de concreto.
Marquise que se perde de vista. Nenhum sinal de sistemas de ventilação, quem ficar nas
partes centrais vai padecer. Pouquíssimos bocais com lâmpadas pequenas. Os banheiros
devem estar escondidos pela multidão acotovelada. Bebedouros? Mesmo que existissem,
só quem está em volta poderia beber.
“Estabilidade, ambiente selecionado e refrigerado”. Todo o potencial dos setores de obras
empregado, durante meses, nas Marquises. Nenhuma outra obra foi tão grandiosa. Nem
a Ponte RioNiterói, os Canais do Nordeste, a Ferrovia do Aço, a Hidroelétrica de Itaipu, a
Transamazônica Recuperada.
Instituíram a Taxa Calamidade, a população financiou a imensa construção, obra
faraônica, destinada ao orgulho brasileiro. Deitou-se falação, arquitetos elogiaram a
vigésima maravilha, comparável aos Jardins Suspensos da Babilônia, ao World Trade
Center, à Torre Eiffel, ao Colosso de Rhodes.
Fotografadas do espaço, pelo satélite, viu-se que as Marquises formavam a palavra
Brasil, visível até da lua. Falação nos Círculos Oficiais, Setores Governamentais, Altas
Hierarquias Civiltares, Clubes Resistentes, Bocas de Distrito, Círculos de Assessores
Embriagados, Repartições.
Tivemos nomes para todas as épocas. Nenhuma ficou sem ser habitada, nomeada.
Pergunto: e este momento, como será chamado? Se é que alguém vai sobrar, para poder
continuar a personificar períodos históricos. Será o Tempo dos Aglomerados à Espera da
Morte? Ou os Bobalhões que Acreditaram?
Acreditamos em tudo, somos incorrigíveis. Esperávamos até que os empreiteiros
negassem a longa tradição de construírem o imediatamente obsoleto. Camadas isolantes,
ventilação, conforto. Acaso os construtores se imbecilizaram a ponto de generosamente
pouparem seus gordos lucros?

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ATENÇÃO! MUITA ATENÇÃO! AVISO GERAL! Aos que se encontram protegidos pelas
saudáveis e seguras Marquises extensas, programadas e entregues pelo Ministério de
Obras Faraônicas Populares.
A dúvida é: quem resistirá? Nós ou a Marquise? Essa laje de carregação vai suportar a
tensão, provocada pelo calor? E se suportar, será que agüentaremos? Podemos estar
mortos, quando elas racharem e caírem. E se estivermos vivos, corremos o risco de
caírem em cima de nós.
A isto se chama nenhuma escolha. Bicho pega, bicho come. No entanto, tais são
hipóteses para o futuro. E de que adianta pensar nele, se nem problemas presentes serão
solucionados? Um destes problemas é o cansaço. A busca de uma posição que se revele,
ao menos, razoável. Mais acomodada.
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ATENÇÃO! MUITA ATENÇÃO! AVISO GERAL! Informam os setores de segurança das
Marquises que as pessoas devem se conservar distantes das bordas. Não ultrapassem as
faixas amarelas do chão. Os bolsões de calor atingiram toda a região. Sair debaixo das
Marquises representa a morte imediata. Morte imediata.

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ATENÇÃO! MUITA ATENÇÃO! ATENÇÃO! Ficar na borda da Marquise representa perigo.
Você pode escorregar ou ser empurrado. Cuidado! Morte imediata ao sol!
Não suportamos mais os alto-falantes. Sabemos de tudo. Ninguém quer se aproximar da
borda. Mas alguém tem que ficar mais perto dela. Por isso é que nas beiradas existe um
movimento contínuo. Pessoas tentando, a todo custo, trocar de posição, sem conseguir. E
quem perde? Quem é empurrado?
Os mais fracos, os mais velhos. Foram empurrados, pouco a pouco. De tal maneira que
na proximidade dos perigosos limites amarelos, só se vê magrelinhos, mulheres e velhos
assustados. Eles se agarram aos que estão próximos. Os agarrados se desesperam,
tentam se descartar, lutam.
Não adianta gritar para que fiquem quietos. Os gestos consomem energia. Qualquer
movimento, mínimo, representa menor possibilidade de duração. Esta é a nossa
derradeira poupança. Não dá para respirar. O ar é fogo que entra pela narina. Até os
pelinhos do meu nariz estão queimando.
Antigamente, reclamávamos dos cheiros. Mil vezes melhor. Passamos por eles,
chegamos aqui. Estamos vivos. Obra e graça de algum imponderável. Como se os
últimos anos não tivessem sido uma sucessão de imponderáveis. Agora, trata-se de saber
quem resistirá menos. Nós, ou a laje?
Pode ser que, quando a laje ceder, a gente já tenha cedido. Estou obcecado com isso.
Imaginem. O sol é tanto, tão forte, que parece levantar poeira. Como a hélice de um
helicóptero. A poeira baixa, de tempo em tempo, e vislumbramos o chão cruciante, casas
distantes, ossos amontoados.
Há uma tranqüilidade excessiva, mesmo sabendo que daqui a pouco (quando?) podemos
ser parte desses ossos. Podemos estar integrados a essa poeira que circula em
redemoinhos. Se há redemoinho, deve haver vento. E não há vento algum. Os físicos que
expliquem os fenômenos. Se puderem.
A marola humana, neste fluir e refluir incontrolável, me conduziu ao limite extremo da
Marquise. Tenho que voltar para o meio. Só rindo de mim. Não é à toa que me julgavam
um pretensioso na universidade. Querer voltar é o mesmo que tentar atravessar uma
parede de cem metros.
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É preciso tomar alguma atitude
A idéia apareceu num dos primeiros encontros. Foi sussurrada, como se o próprio autor
tivesse receio da ousadia. E logo nos assustamos, era verdadeira demais. Discutimos até
conseguirmos nos afastar dela. Queríamos tempo, nada mais que tempo, para nos
habituarmos, aceitarmos.
Tempo para conviver com a noção de desligamento. Amadurecer a certeza de que daria
certo. Não era novidade na história. Os judeus tinham tentado e conseguido, por duas
vezes. Ao sair do Egito, na antiguidade, e ao voltar para Israel, com a formação do
estado, nos anos quarenta.
Ninguém pense que foi fácil o acordo. Rolamos noites e dias, suamos (de medo, não de
calor) e nos angustiamos à medida que a idéia foi saindo do fundo, até se solidificar.
Cristalizada. Sei, estou sendo dramático, superespetaculoso, outra vez. É um vício. Mas
desta vez foi assim, juro.
Me lembro que, quando caminhamos para a deliberação definitiva, nossos passos
pesavam mais que a inquietação. De maneira estranha, ao ouvir o final da votação,
estávamos seguros. Atrevidos. Serenos de que não havia outra maneira. Porque, olhando
em volta, não víamos o presente. E o futuro onde estava?
Ficou enterrado nas areias contaminadas de Angra dos Reis. Tinha escorrido pelo leito
seco dos rios. Perdido nas dunas amarelas do deserto amazônico. Estraçalhado nas
ruínas dos postos de gasolina. Tinha sumido nos terremotos e nos incêndios de bairros,
vilas, cidades, matos e campos.
Nossos organismos estavam decompostos com as comidas fertilizadas, os alimentos
factícios. Evacuamos dia a dia pedaços do estô- mago, do fígado, dos intestinos, tossimos
pulmões esbranquiçados, fragmentos de faringe. Que não pareciam tecidos humanos e
sim fragmentos de plástico, apodrecidos.

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