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Susana Magalhães Beck

Compulsão, no Dicionário
Freudiano de José Luis Valls
(1995), está descrita como sendo
uma característica irrefreável pró-
pria de alguns atos, ocorrências,
fantasias, sintomas, incluindo ras-
gos de caráter ou limitações do Ego;
a raiz de uma grande intensidade
psíquica e (de um intenso desloca-
mento). São representações inibidas
que o ego sente como estranhas a si
mesmo. A Compulsão se origina
das pulsões ou das defesas contra
elas e, mais comumente, de ambas.
Susana Magalhães Em 1920, no artigo intitulado
Beck “Além do princípio do prazer”,
Freud vai falar desse aspecto do
funcionamento do aparelho psíqui-
co, porém, com uma palavra a mais:
“Repetição”. Apesar de já aparecer
desde o artigo “Recordar, repetir e elaborar” (1914), é em “Além...” que
Freud irá descrever, de forma bastante polêmica, o termo Compulsão à
Repetição. Ele fala dessa característica como algo que se impõe, com força
e intensidade, na repetição do que é desprazeroso. É com a Pulsão de Morte
que passamos a lidar.
Podemos pensar no quanto a lógica romântica da época sofreu com
esse novo vértice ou, nos dias de hoje, o incômodo ante esse fenômeno, de
acordo com o modelo “hollywoodiano” do final feliz.
Falando em Hollywood, acho que a maioria das pessoas vai lembrar
de um filme não tão antigo, mas que já pode ser chamado de um clássico
sobre neurose obsessiva, e que retrata, com muita fidelidade, um neurótico
obsessivo nos seus mais floridos sintomas. O filme “Melhor impossível”
traz Jack Nicholson no papel de um escritor de romances bem-sucedido
profissionalmente. Esse personagem, que vivia de escrever sobre o amor,
mostra-se na sua vida um homem extremamente insensível. Ele é, no con-
vívio social, indelicado, para não dizer áspero e grosseiro, na maioria das
vezes, e absurdamente voltado para si mesmo e para seus rituais e exigên-
cias patológicos, que o limitavam no dia-a-dia. Esses começavam ao le-
vantar da cama, tendo que tocar três vezes o chão, com a ponta dos dedos
do pé, em cada lado do chinelo, para só então poder calçá-lo. Lavava as
mãos com água fervente e usando somente um sabonete de cada vez. Era
indispensável o uso de luvas para tocar em coisas que pudessem sujá-lo,
assim como levar talheres de plástico descartáveis para o restaurante. Para
caminhar pelas ruas, ele tinha que evitar o rejunte das pedras das calçadas
ou dos pisos por onde passava, além disso, não poderia encostar nos outros
transeuntes. Esses são somente alguns dos muitos exemplos de situações
torturantes que ele vivia.
O filme expõe, com muita sensibilidade e inteligência, que, na verda-
de, a tarefa mais árdua a ser alcançada, na vida desse personagem, era a de
poder conviver com o outro e com aspectos de si mesmo que o iam afastan-
do das pessoas.
Roger Dorey diz que o obsessivo procura exercer sua dominação so-
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bre o outro não no plano do desejo erótico, mas no registro do poder e na
ordem do dever. Seu império é totalitário, dominando o conjunto da perso-
nalidade sobre a qual tentou reinar. É por isso, diz ele, que essa vontade de
potência faz do obsessivo, muitas vezes, um tirano. Seu poder é tanto mais
eficaz quanto mais controla permanentemente, e por intrusões repetidas,
violando a intimidade do outro, quebrando os limites do seu espaço pes-
soal. Ele ainda diz que imobilizar o outro, petrificá-lo, congelando o curso
dos acontecimentos, é construir um mundo monolítico e sem falhas, e que
por isso se aparenta com a morte.
Voltando aos sintomas, na neurose obsessiva, a compulsão à repetição
de um ato desprazeroso faz parte da cena patológica. Conhecemos vários
exemplos disso, como verificar diversas vezes se o gás foi desligado, se as
luzes foram apagadas, se a porta está bem trancada, etc., etc., etc. Existem,
também, os rituais de limpeza, que podem ser intermináveis e dolorosos,
psíquica e fisicamente.
Mas isso é só a ponta do iceberg. Pensando bem, essa associação gela-
da tem uma conexão forte com o que virá a seguir.
Na superfície, o neurótico obsessivo parece inabalável. Ele lida per-
feitamente com o raciocínio da lógica matemática e da lógica moral do
certo e do errado, sem espaço para o meio-termo. Geralmente, sente-se
superior aos outros mortais. Ele é o mais limpo, o mais organizado, o mais
correto, o mais econômico. Mas se colocarmos um sinal “menos” nessas
virtudes, encontraremos os verdadeiros traços da obstinação rígida, da ra-
bugice teimosa e de uma grande sovinice. Convivem, lado a lado, a perse-
verança e a tendência a deixar tudo para fazer no último minuto. Os aspec-
tos retentivos da neurose obsessiva impedem o dar e, conseqüentemente, o
receber.
Assim, a emoção (em-moção), ou seja, o movimento para Eros e para
as ligações, os vínculos com o outro, o aquecimento da pulsão de vida,
torna-se truncada, paralisada, “economizada”.
Uma das defesas utilizadas na neurose obsessiva é a transformação da
agressão no seu oposto. Mas, como sempre, no script psicanalítico, essas
defesas nunca são um sucesso total, e o que era para ser amor transforma-se
num arremedo deste. Matam-se dois coelhos com uma cajadada só, pois a
agressão não fica tão exposta e nem muito vulnerável ao julgamento inter-
no e/ou público, mas consegue passar pelas entrelinhas. Quem não se irrita
com o famoso “querida” ou “querido”, quando ditos de uma forma que soe
estranha, como uma bajulação irritante? É que, no momento em que ex-
pressões de uma intenção amorosa são o produto de uma forma de reação,
as palavras são faladas num nível de decibéis abaixo do que pode ser alcan-
çado pelo aparelho auditivo, mas que a comunicação inconsciente, e às
vezes nem tão inconsciente, escuta e apreende, percebendo que a verdadei-
ra motivação está longe de ser afetuosa.
A tendência à ambivalência também é um dos traços que caracterizam
o neurótico obsessivo. Ele ama e odeia, ao mesmo tempo, o mesmo objeto,
e consegue manter lado a lado os investimentos libidinais mais contraditó-
rios.
Por baixo da capa do super-herói da hiper-racionalidade, porém, en-
contramos uma boa dose de sofrimento, pois lidar com a própria agressão é
algo que gera muita culpa. Os esquemas montados para anular os pensa-
mentos agressivos que surgem compulsivamente, como por exemplo te-
mores de que algo ruim aconteça a alguém muito próximo, são verdadeiras
tramas, enredadas num complexo trajeto da mente. Esse trajeto leva do
executar uma sentença de morte de um ente querido, na fantasia incons-
ciente, a imediatamente desfazer isso por meio de algum ritual, e então
aplicar um dispositivo de castigo a si próprio, que fica isolado do pensa-
mento agressivo e, portanto, ininteligível, para depois começar tudo de
novo. É desse isolamento que falaremos a seguir.
Na pessoa em que predominam os aspectos obsessivos, os afetos fi-
cam neutralizados pelo isolamento entre estes e suas representações. É uma
forma de se defender das fantasias de amor e ódio que ficam proibidas no
aparelho psíquico. Dessa forma, pensamentos que tenham ligações entre si
e que possam, por associação, desvendar os mistérios da mente, ficam sem
nenhum contato. Assim, assuntos referentes a essas fantasias e desejos não
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ficam sendo tabus ou constrangedores, pois ficam “neutralizados”. Caem
as pontes de contato entre pensamentos e entre estes e seus afetos corres-
pondentes, deixando o que se quer isolar exatamente como uma ilha sem
acesso. A contrapartida é que assuntos que parecem irrelevantes, e que
seriam de se esperar em pessoas não tão racionais, tomam-se de uma gran-
de importância.
Um exemplo da clínica me vem à cabeça. É o de um paciente que
cumpre o mesmo ritual a cada sessão. Chega sempre acompanhado de sua
pasta de trabalho, coloca-a a seu lado, senta-se na poltrona invariavelmente
puxando as calças um pouco para cima, na altura dos joelhos, depois tira os
óculos, limpa-os com lenços de papel que estão à disposição na mesa perto
da poltrona, amassa-os em forma de “bolinha” e deixa-os em cima da mesa.
Então, finalmente me olha e diz: “Pois bem”. Aí já pode começar a sessão.
Certo dia ele inicia seu discurso queixando-se de que está bastante desani-
mado naquela semana. Vem se arrastando no trabalho e não tem ânimo
para praticar o esporte do qual gosta muito. A queixa se arrasta. Pergunto
sobre o fim de semana, se havia acontecido algo de diferente. Ele, então,
faz uma cara de quem se esforça para pensar e diz: “Sabe, eu tive uma briga
bem séria com a minha namorada, mas tu achas que pode ter alguma liga-
ção?”. Formula essa pergunta num tom quase que de desprezo ante a possi-
bilidade de eu ousar sugerir alguma ligação.
Sem entrar no mérito transferencial, quero dar ênfase aqui ao fato de
que a briga, que nunca acontecia na relação do casal, ficou isolada, ilhada
do desânimo depressivo da semana.
Uma outra pessoa me contava que ler o jornal não era uma tarefa fácil,
porque, a cada notícia ruim que ela lia, tinha de seguir a leitura de uma
notícia boa. Essa era a forma de ela se sentir protegida de coisas ruins que
pudessem acontecer com ela ou com alguém da sua família. Além dessa
manobra, seus dedos não podiam tocar nas partes da folha do jornal onde
estavam escritas as notícias ruins, ou na página do obituário, fazendo da
leitura do jornal uma espécie de malabarismo circense com as mãos.
Poderíamos brincar, num jogo de associação de palavras, com a sigla
do diagnóstico T. O. C. (Transtorno Obsessivo Compulsivo), utilizada para
denominar a patologia obsessiva, pois o mecanismo de isolamento, de que
falávamos acima, tem em sua raiz primitiva o tabu à interdição do tocar e
ser tocado.
O tocar o próprio corpo, ou ser tocado, ou entrar em contato com fan-
tasias, desejos e afetos proibidos torna-se motivo de alerta para utilização
de defesas que evitem essa “contaminação pulsional”.
Lembro de outro paciente que estava inundado pelo medo de ser con-
taminado por alguma bactéria que pudesse estar presente na carne bovina.
Torturava-se com longas e sofridas ruminações sobre isso, passando a evi-
tar certos tipos de carne do qual não soubesse a procedência, especialmente
se a carne viesse de um país do continente europeu. Seu medo de ser
infectado e de poder morrer devido a essa bactéria foi entrando, pouco a
pouco, em associação com os sentimentos conflituosos de agressão e
destrutividade dele próprio para com o pai que, “casualmente”, havia nas-
cido em um país da Europa.
Para Pierre Fédida, a violência compulsiva engendra uma dor parado-
xal do pensamento a se tratar, sendo uma produção “autotóxica”. É a exis-
tência psíquica do pensamento que é dolorosa. No tratamento, diz ele, o
obsessivo busca um afeto de apatia, como equivalência para a dor, sendo
que esta (a dor) é a única via de mediação para conservar algo de si como
contato mortífero com o vivo de si mesmo.
A apatia seria, assim, um estado em que a dor é eliminada às custas de
neutralizar os aspectos de vida.
Na neurose obsessiva, a força do pensamento mágico aparece de for-
ma avassaladora também através das superstições. Ir ao jogo de futebol
sempre com a mesma camiseta, ou levar sempre aquele lápis que quase não
faz mais ponta de tão usado para as provas finais, ou inúmeros outros
exemplos que todos nós temos (sempre de outras pessoas, é claro) são a
garantia quase que infalível de que tudo dará certo. É que estar à mercê da
realidade e do acaso da vida não é uma coisa fácil, assim como estar à
mercê das demandas pulsionais.
Susana Magalhães Beck
A neurose obsessiva traz sofrimento e dispêndio de uma energia que
poderia ser utilizada em coisas mais produtivas da vida. Mas a verdade é
que também precisamos de alguns traços obsessivos para podermos nos
organizar, trabalhar e ter certas regras e rotinas necessárias a um mundo
civilizado. Do contrário, não estaríamos aqui, hoje, estudando e refletindo
sobre esse tema.
Voltando ao filme “Melhor impossível”, o escritor, que também é um
tirano dos outros e de si mesmo, vai se dando conta de que não pode mais
viver somente com sua máquina de escrever. O outro lhe faz falta e seu
isolamento, antes tão sagrado, passa a ser motivo de sofrimento. Isso causa
uma transformação interna brutal ou, como diria Bion, uma mudança ca-
tastrófica nesse homem, que gira o vértice focado em uma antiga verdade e
começa a olhar para além de si mesmo.
O personagem, de início, pensa que não pode ser melhor do que é. No
final, ele pode mostrar à garçonete que o atendia no restaurante que ela
conseguiu o impossível. Ele a ama, e diz que é por ela que vai tentar se
tornar uma pessoa melhor.
Ao se perguntar sobre o que é um obsessivo, Lacan diz que esse é um
ator que desempenha um certo número de atos como se estivesse morto.
Penso, então, que o que dificulta a vida e promove a patologia é a
condição impossível e robótica de se estar “sem pulsão”. É somente “com
pulsão” (com a pulsão) que nos impulsionamos a transitar pelas junções
das calçadas, que nos fazem deparar com a aceitação das falhas e frestas
nas lajes da condição humana. É por tentarmos conviver com elas que nos
tornamos pessoas um pouco melhores, pois assim nos humanizamos e po-
demos nos sentir vivos.

O presente trabalho trata, inicialmente, da descrição do fenômeno compulsi-


vo. Em seguida, passa a versar sobre a questão da compulsão na Neurose Obses-
siva e da descrição dos sintomas e dos fenômenos dessa patologia. Para isso, a
autora traz como ilustração, o filme “Melhor impossível” e algumas passagens
clínicas. A dificuldade de se relacionar dessas pessoas e de lidar com os afetos e
fantasias mais violentos vão conduzindo a um estado de isolamento. No filme, o
desejo do personagem central de se aproximar de seu objeto de amor já indica um
caminho de transformação e de possibilidade de trânsito pulsional, colocando
mais ênfase nos aspectos de vida, em vez da predominância dos aspectos mortífe-
ros presentes na compulsão à repetição.

Obsessive Neurosis – “Com Pulsão”


This paper describes, initially, the compulsive phenomenon. Thereafter, the
compulsion issue in the obsessive neurosis is discussed as well as its symptoms
and phenomena. The author brings the film “As good as it gets” (in Brazil, “Me-
lhor é impossível”) and some clinical topics in order to illustrate this work. These
people’s difficulty in relationships and to deal with more violent feelings and
fantasies conduct them to an isolation state. In the film, the main character’s desire
of being with his love object shows a path of transformation and possibility in
pulsion traffic, emphasizing life aspects, instead of the predominant deathly aspects
of the compulsive repetition.

Neurosis Obsesiva – “Con Pulsión”


El presente trabajo trata, al inicio, de la descripción del fenómeno compulsi-
vo. Al seguir, pasa a versar sobre la cuestión de la compulsión en la neurosis
obsesiva así como la descripción de síntomas y de los fenómenos de esa patología.
Con este objetivo, la autora trae como ilustración la película “As good as it gets”
(en Brasil, “Melhor é impossível”; en Argentina, “Mejor... imposible”) y algunos
pasajes clínicos. La dificultad de relacionarse y de manejarse con los afectos y las
fantasías más violentos poco a poco conducen estas personas a un estado de
aislamiento. En la película, el deseo del personaje central de aproximarse de su
objeto de amor ya indica un camino de transformación y de posibilidad de tránsito
pulsador, enfatizando los aspectos de la vida, al contrario del predominio de los
aspectos de muerte presentes en la compulsión repetida.

Compulsão. Neurose obsessiva. Isolamento.


Susana Magalhães Beck
Compulsion. Obsessive neurosis. Isolation.

Compulsión. Neurosis obsesiva. Aislamiento.

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