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ABSTRACIONISMO INFORMAL NOS ANOS 50/60 NO BRASIL

Vanguarda nos anos 50/60 julho 2018

Estávamos em 1951, aqui na cidade do Rio de Janeiro. A artista


Fayga Ostrower mantinha, desde 1949, um curso de arte que
ficava em seu ateliê, em sua própria casa, no Curvelo, em
Santa Teresa. Eram poucos os alunos, entre eles, eu.

Sem nenhum conhecimento anterior sobre arte, em 1949 eu levei


para ela uns cadernos cheios de desenhos, entre os quais, o de
uma figura de mulher dividida simetricamente, em que um dos
lados do corpo eu preenchera com crayon preto oleoso e no
outro delineara apenas a sua silhueta. E foi assim que entrei
para o seu curso.

Em 1951 apareceram lá o Décio Vieira e no fim daquele mesmo


ano, a Lygia Pape.

Nesta época, a Fayga, no seu processo individual como artista


ainda fortemente influenciada pelo expressionismo figurativo
alemão, fosse como movimento, em razão de seus conceitos e
princípios de ordem ética e estética assim como protesto
social e artístico, e como forma de resistência baseada numa
crença utópica - a da influência da arte sobre o social.

Era uma ideia e um motivo de certo modo eficaz, pois envolvia,


sobretudo, os momentos de maior comoção social, moral e
humana, como a Primeira Guerra Mundial e suas conseqüências,
as desigualdades sociais, a crise econômica, a Revolução Russa
e a Segunda Guerra Mundial. Inclusive, o expressionismo já
conquistara nomes que se tornariam muito significativos na
arte brasileira da época: Oswaldo Goeldi, Lívio Abramo e Lasar
Segall, além da própria Fayga.

Estudamos também a esse respeito, porém, em suas aulas, o que


ela propunha de modo quase transgressor era desde exercícios
cubistas, após algumas explicações sobre seus conceitos

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fundamentais, a suprematistas e construtivistas. Da Bauhaus
também estudamos sobre a sua nova tipografia e a gráfica
publicitária, i.é, no sentido da relação entre publicidade x
propaganda, assim como as relações entre forma e função no
objeto de uso da vida quotidiana, o uso da colagem na
fotografia, os diversos significados de uma ilustração - fosse
um livro de poesia ou um tema político -, o conceito de cartaz
de propaganda político panfletário ligado ao significado
ideológico da arte na Europa dos anos 1930, e tudo quanto
fosse objeto de uma análise crítica da História da Arte. Isso
tudo junto a uma exigência e um rigor de ordem artística em
si, assim como técnica no uso da gravura em madeira, linóleo
ou metal, no desenho, na aquarela na pintura a óleo. E na
colagem.

Porém, nesse mesmo tempo, Fayga passa a questionar certos


temas dentro do expressionismo, como o do campo de
concentração, a fome, a miséria e a bomba atômica. E chegará à
conclusão de que realmente para ela, o campo da arte, ao
abordar problemas sociais sob a forma de crítica social ou
política, visando contribuir para a consciência das pessoas,
estava fora do seu alcance ou intenção.

Dentro desse mesmo processo crítico aplicado nas aulas, nos


anos subsequentes, suas propostas experimentais e teóricas
passariam a valer igualmente, tanto para nós, seus alunos,
como para ela própria.

Também ainda vale a pena lembrar que neste processo


individual, tanto para a Fayga, e por sua influência, como
para mim e para a Pape, nos interessou além do desenho,
trabalhar com a xilogravura - gravura em madeira assim como no
linóleo. Partia-se, por exemplo, de uma natureza morta, como
base para a composição, que eu agora entendo como mais um
recurso ou ‘atalho’ para encaminharmos soluções abstratas.

Expusemos neste período de 1951-52, recebendo diversos


prêmios, como no Salão do SAPS o que é?(o tema era sobre

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alimentação), onde apresentamos naturezas-mortas em xilos em
cor. Naquelas gravuras já se notam as tendências abstratas
individuais. Por exemplo, apresentei uma natureza morta com
cortes talhados muito rarefeitos indicando dobraduras de um
tecido e a impressão em cor de pequenos formatos quadrados,
significando a matéria. A Fayga, também numa ‘quase’
abstração, com cortes diagonais talhados na madeira,
atravessando a composição e a Lygia, em cuja superfície
quadrada da matriz em madeira começa a abrir espaços (os
brancos) cada vez mais largos, e a cruzá-los, numa trama
quadrada, isto através de um mínimo de elementos. Já se
configuravam ali os seus Tecelares, assim como as xilos
abstratas da Fayga, da Bienal de Veneza, assim como as formas
trapezoidais nas minhas gravuras abstratas.

Em fevereiro de 1953 inaugura-se a I Exposição Nacional de


Arte Abstrata1. Dela participariam todos os artistas abstratos
da época, de tendência abstrata informal ou concretista
geométrica?. A maioria era do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Um fato curioso desta mostra, com mais de 20 artistas, é o


modo como o item título consta na lista dos participantes,
definido por 80% como “Sem título”, e nos outros 20% como
“Composição”.

Participei com 3 obras sem título. Além desta atitude, uma


característica fundamental nos seus princípios, tanto nacional
como internacionalmente, surgidos no abstracionismo informal,
era a ausência deliberada de qualquer manifesto conjunto ou
individual, escrito ou falado, que pudesse representar
qualquer programa de grupo ou de alguma organização. Isto
apesar de uma identidade de ideias e soluções formais tão
similar. De modo mais específico, esta será a atitude tomada
pelos artistas da Escola de Nova York, como as de Paris, como
nós aqui, do Rio. E isto tudo vinha ocorrendo em momentos
1
I Exposição Nacional de Arte Abstrata, Hotel Quitandinha, Serra de
Petrópolis. Esta mostra foi realizada naquele hotel de luxo, na
época, pelo fato do artista Décio Vieira, um dos participantes, ser
daquela cidade e ter conhecimentos por lá.

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concomitantes, ou bastante próximos. É essencial entendermos
também que o uso do termo School, École, Escola, usado pelos
artistas de Nova York, assim como os de Paris, era uma
nomenclatura propositalmente irônica, em contraste com o
individualismo de cada um. Sabemos que, de modo profundo, a
filosofia existencialista sartriana, influenciou àquelas
pessoas, os intelectuais que viviam naquele momento de pós
Segunda Guerra Mundial, tanto na própria Europa como nos
Estados Unidos da América. A leitura do seu tratado intitulado
“O ser e o nada” [L'être et le néant] (1943) fala da rebelião
do ser oprimido contra o racionalismo.

Aqui virou modinha de Carnaval:

“... Existencialista, com toda razão


Só faz o que manda
O seu coração...”2

Num processo pessoal, individual e absolutamente original


dentro do abstracionismo informal daqueles primeiros anos de
1950 a 1954, posso citar a nossa própria experiência, de
artistas daquele núcleo surgido no ateliê da Fayga. E que
iriam segui-la até um certo ponto em suas ideias, através da
obra individual de cada um de nós. Isso nos permite
exemplificar aqui as 3 tendências abstratas surgidas naquele
período. Cada um a seu modo irá se sobressair através de sua
própria obra, influindo de modo marcante na história do
Abstracionismo no Brasil, o que aconteceu entre 1953 e 1965.

Fayga Ostrower, com suas xilogravuras em cor, dentro do


abstracionismo informal ou lírico, irá receber, em 1958, o
Grande Prêmio Internacional de Gravura na XXIX Bienal de
Veneza. Imaginem que concorria com ela Robert Motherwell,
entre outros.

Lygia Pape, que, de 1954 até 1958 dentro do concretismo e numa


ruptura posterior se tornará neoconcreta. Ela declarou num
depoimento dado a mim, para o livro sobre o abstracionismo,

2
“Chiquita bacana”, de Alberto Ribeiro e João de Barro, 1949.
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que ao conhecer o grupo, i.é, o grupo que se denominou
Ruptura, ela “já havia experimentado de tudo i.é, eu comecei
fazendo pintura e desenho... Parti para a madeira, que era
mais direta. Na xilo eu tinha que necessariamente trabalhar
sobre um espaço horizontal, diferente da pintura. Mudou minha
perspectiva em relação ao espaço... Acho que essas gravuras
(Tecelares) tem uma monumentalidade, como se fossem muito
grandes.”

Décio Vieira, no mesmo processo e em datas concomitantes,


torna-se neoconcreto, usando têmpera em papel e em tela, tendo
trabalhado com Volpi.

Anna Bella Geiger, com obras dentro do abstracionismo informal


ou lírico, desde 1953 até 1966, e numa ruptura posterior, ao
que Mario Pedrosa denominou de “Fase visceral”.

Num viés que, creio, derivou direto das próprios propostas


dadas em aulas, por exemplo, desde 1950, além de participar
com meus desenhos e gravuras dos Salões Modernos, comecei a
ilustrar crônicas e poesias para jornais, como o Diário de
Notícias e o Correio da Manhã, além de um suplemento literário
Les Nouvelles Literaires, de Paris. Também ilustrei livros
infantis, assim como capas dos livros da Civilização
Brasileira, assim como a do livro de J. D. Salinger, “Semeador
em campo de centeio”, editado pelo Rubem Braga, da editora
Sabiá. Também nas enciclopédias da Delta-Larousse sobre
Geografia, por exemplo. A Lygia irá criar a embalagem dos
biscoitos Piraquê, e letreiros de alguns filmes brasileiros. O
Décio Vieira, morando em Petrópolis, conhecia lá uma indústria
de estampagem de tecidos, para onde a Fayga irá criar desenhos
abstratos para lonas de cortina, que serão usadas também em
poltronas por designers de mobiliário, como o Joaquim
Tenreiro. Além das suas ilustrações em gravura em metal para a
“Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima, para o poema de Manuel
Bandeira, OPUS ..., o livro “O cortiço”, de Aluísio Azevedo, e
“Fontamara”, um romance italiano de Ignazio Silone, passado na
2ª Guerra Mundial.

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Era quase uma extensão da Bauhaus, no Rio daqueles anos 1950.

Aliás, fiz vários vestidos com estas lonas estampadas.

Abstracionismo.

No Brasil, o termo “abstracionismo”, num primeiro momento, irá


marcar posição contra as principais tendências da arte no
país. Será entendido pela primeira vez do ponto de vista
plástico-formal e não mais a partir de questões extra-
artísticas como o regionalismo ou o realismo (no fim dos anos
1940 e início de 1950).

Sob o termo “abstracionismo” aqui ou no exterior, coexistiram


tendências muito diferenciadas, que iriam se aproximar, antes
de mais nada, em razão de um alvo comum: um projeto de total
autonomia entre arte e representação. E com uma ausência
absoluta de manifestos. Rothko dizia que um artista, para ser
bom, precisava esquecer memória, história e geometria.

Para além deste mesmo objetivo, subsistiam genealogias


distintas que determinaram, aqui no Brasil, desde sua origem,
uma fratura básica. Enquanto o concretismo atribui à razão um
papel essencial, o informalismo emerge da expressão sensível
do artista, atribuindo ao inconsciente lugar de destaque na
expressão.

Em 1952, o crítico norte–americano Harold Rosenberg chama o


expressionismo abstrato de Jackson Pollock de action painting.
Neste mesmo ano, o termo arte informal, criado pelo francês
Michel Tapié, será adotado por todos os artistas deste
abstracionismo, incluindo-se aí o expressionismo abstrato
norte-americano.

O expressionismo situa-se também na raiz da abstração informal


no Brasil, embora não possamos considerar nossas questões
idênticas àquelas desenvolvidas quase à mesma época pelo
expressionismo abstrato norte-americano.

As obras de alguns dos maiores artistas abstratos norte-

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americanos como Pollock, de Kooning, Barnet Newman, Rothko,
Motherwell, Franz Kline, e outros, geram uma eloquência que
consideravam como lírica. E esta “lírica” é utilizada como
termo radical na época, no sentido profundo de uma recriação
de relações poéticas entre o homem e a natureza. A abstração
lírica significava uma síntese clássica de impulso e
sublimação. As denominações “informal” e “lírica”, adotadas
também aqui no Brasil, abrangem uma consciência estrutural
expressiva diversa tanto da dos artistas norte-americanos como
dos europeus. Porém, faz sentido, apenas como ilustração,
estabelecer, por exemplo, certas comparações entre soluções
dadas por Franz Kline e Fayga em obras dos anos 1950, quanto à
utilização conjunta de geometria e gesto, cuja função
essencial na obra é a de gerar espaço numa composição
plástica, de propósito duplo, quando as linhas verticais e
horizontais (enquanto estrutura) servem tanto à pintura como
ao desenho.

Também encontro afinidades entre a obra de Iberê Camargo e a


de alguns outros artistas aqui do Brasil deste período numa
tendência mais expressionista, na sua exacerbação da cor e da
matéria.*... “Se podemos em poucas palavras resumir a questão
abstrata dentro do informal, ela lida sobretudo com a
estrutura de espaço e sua relação com o conteúdo expressivo,
onde o artista só poderá falar de experiências vividas em sua
própria época e tempo. E por isso não poderá nunca antecipar
outras décadas.”

Podemos ainda lembrar que o abstracionismo de ambas as


tendências, no século XX, foi o último ismo das Artes
Plásticas, extinto no século XX. p. 172.

· Fayga Ostrower

FINAL

Comentários sobre o último e abrangente ismo da arte moderna


nacional e internacional.

Abstracionismo Geométrico e Informal: Vanguarda Brasileira dos

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anos 50

Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger

TEMAS E DEBATES – FUNARTE, escrito em 1978 e publicado em 1987

Sob essa nomenclatura de Abstracionismo Informal poderíamos


alinhar aqui no Brasil dentro do seu período fundamental, que
considero de 1953 a 1965, e com suas diversas nuances desde
Arcângelo e Tomáz Ianelli; Anatol Wladyslaw; Antonio Bandeira,
apesar de sua tendência ligada ao alemão Wols; Fayga Ostrower;
Flavio Shiró daquele período; Franz Krajberg; Iberê Camargo;
Ione Saldanha; László Meitner; Loio Pérsio; Manabu Mabe; Maria
Helena Andrés; Maria Leontina; Maria Pólo; Milton Goldring;
Mira Schendel na sua primeira fase; Samson Flexor; Tikashi
Fukushima; Tomie Ohtake; Wakabaiashi; Wega Nery; Yolanda
Mohalyi; Zélia Salgado e Anna Bella Geiger, entre outros/as.

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