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Erik Olin Wright:

Da ciência à utopia

Ruy Braga
Universidade de São Paulo

Há exatos dois anos, Erik Olin Wright nos deixou, legando-nos uma poderosa
teoria do sujeito emancipador do século XXI. No intuito de realçar a importância desse
legado, parece-me importante problematizar a transição da ciência à utopia na trajetória
de Erik. Ao final, gostaria de propor uma leitura provocativamente “teleológica” a
respeito do surgimento do programa das “utopias reais” como esteio a apoiar meu olhar
a respeito dos legados sociológico e político deixados por Erik.
Borges disse certa vez que “(...) cada escritor cria seus próprios pares. Seu
trabalho modifica nossas concepções tanto do passado quanto do futuro de outro autor”.
Nesse sentido, parece-me que a afirmação de Michael Burawoy segundo a qual: “Erik
moveu-se de uma análise de classe sem utopia para uma utopia sem análise de classe”
tem o potencial de marcar definitivamente as percepções sobre a trajetória de Erik,
alterando nossa interpretação tanto do passado quanto do futuro de sua obra. Por essa
razão é que devemos partir dessa atraente chave dialética proposta por Michael.
O argumento é bastante claro: ao longo de sua trajetória intelectual, Erik teria
modificado o sentido da análise das classes que o tornou mundialmente famoso: de um
meticuloso trabalho de observação da estrutura social para um não menos meticuloso
trabalho de garimpagem de “utopias reais”, isto é, projetos, instituições e processos
capazes de desafiar o capitalismo. Segundo a sugestão de Michael, teria ocorrido uma
espécie de “corte epistemológico” às avessas, isto é, ao invés de deslocar-se do
humanismo crítico para a ciência da história como na conhecida interpretação de
Althusser sobre o jovem Marx, Erik teria feito o caminho do marxismo científico ao
marxismo crítico e humanista.
Em síntese grosseira, é como se os dois marxismos sempre estivessem estado
presentes na obra de Erik, porém, cada um deles teria se desenvolvido de maneira
independente a partir de certo momento. Trata-se de uma interpretação que
evidentemente capta de forma acurada a relação entre o marxismo científico e o
marxismo crítico em Erik. Sobre essa base, proporia alguns argumentos
complementares ao de Michael, mas que exigem um reposicionamento do ponto de

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vista do observador. É como numa paralaxe: o objeto de fato não se desloca, mas, o
olhar capta um ângulo ligeiramente diferente da coisa observada.
De início, diria que a ideia de “corte epistemológico” é, naturalmente, bastante
sugestiva, porém, pode deixar escapar uma questão essencial tanto do movimento do
pensamento quanto da superação política de Erik. Afinal, ao contrário do que pensava
Althusser sobre o jovem Marx, nunca houve de fato uma ruptura entre o Marx crítico-
humanista e o Marx cientista. A superação dialética identificável naquele Marx a
caminho de suas “Teses sobre Feuerbach” foi, sobretudo, política e revolucionária,
impulsionada pela descoberta por um jovem hegeliano alemão do movimento operário
francês que acabara de se formar. Em relação à Erik, pode-se afirmar o mesmo: não
vejo de fato uma “ruptura” na dinâmica de seu pensamento, mas, uma superação
dialética dos limites de seu marxismo científico mobilizada por um deslocamento
político da academia para a sociedade civil.
Senão, vejamos. Sabemos que em nome do marxismo científico, Erik desafiou a
sociologia nos termos postos pelo próprio campo acadêmico e foi incrivelmente bem-
sucedido em sua missão. A maior prova disso é que em todo o mundo seus trabalhos
elevaram-se à condição do cânone da sociologia da estratificação social. Esse fato
levanta uma questão: mas, afinal, o que houve com aquela pulsão combativa de seus
primeiros trabalhos sobre as classes sociais nos anos 1970 e 1980 que pretendia desafiar
e derrotar a sociologia positivista? Michael notou que a relação do marxismo de Erik
com a sociologia, ao menos no tocante ao tema das classes sociais, foi se pacificando
aos poucos, tornando-se mais eclética e plural. Ou seja, ao se transformar no mais
exuberante sociólogo marxista de sua geração, Erik parece ter se reconciliado com a
sociologia.
Em termos dialéticos, isso acontece quando o sujeito retroage e constata que
nunca existiu de fato um conflito sério impulsionando-o à frente. Ou seja, quando se
descobre que os oponentes, na verdade, sempre estiveram mais ou menos do mesmo
lado. Assim, a reconciliação preserva os momentos anteriores, negando e conservando
simultaneamente seus conteúdos ao elevá-los a uma nova síntese. Em minha opinião, é
relativamente fácil perceber esse “mesmo lado” em se tratando de análise das classes
quando penso na aliança entre bourdieusianos e marxistas em projetos coletivos como
as revistas francesas Actuel Marx e Contretemps, por exemplo. Ou no “marxismo
weberiano” tão importante para a teoria latino-americana da dependência. De fato,

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muitos outros exemplos de colaborações envolvendo marxistas, weberianos, etc.
poderiam ser facilmente inventariados.
Aliás, já que citamos o marxismo latino-americano, vale lembrar que para essa
tradição, as contradições entre o arcaico e o moderno, entre o centro e a periferia, entre
o rural e o urbano, etc., significam apenas que, como nos lembram Florestan Fernandes
e Chico de Oliveira, as potencialidades inerentes à nossa condição periférica não podem
se expandir sem que a sociedade que lhes deu origem desapareça. Ou, em linguagem
dialética: quando algo se transforma em seu oposto e contradiz a si mesmo, expressa sua
essência. De maneira alusiva, parece ser esse o caso da relação entre ciência e utopia em
Erik. Da ênfase no conhecimento das estruturas para o reconhecimento de que a
reificação capitalista impede a realização de nossas potencialidades como sociedade e
como espécie.
Por que razão a transformação de algo em seu oposto, isto é, de um sofisticado e
reconhecido mundialmente marxismo científico em um não menos atraente marxismo
utópico simplesmente não deveria nos espantar? Em primeiro lugar, porque a utopia
sempre esteve lá: Erik foi um radical em sua juventude, atraído pela combinação entre a
luta por direitos civis, as mobilizações contra a Guerra do Vietnã e a ascensão da
contracultura. Ou seja, o contexto político nos ajuda a entender a presença desse “estado
negativo” que busca realizar potencialidades latentes por meio do combate a estruturas
reificadas. Num primeiro momento, essa batalha surgiu aos olhos de Erik como um
ataque à sociologia profissional positivista levado adiante no próprio campo
sociológico.
Não minha opinião, o fato de seu programa de pesquisa sobre as classes sociais
ter se tornado parte do cânone da estratificação social demonstrou sua vitória nessa
arena. Alguns dirão que seu desafio foi de alguma forma absorvido pela sociologia
mainstream. Discordo: trata-se antes de uma capitulação da sociologia do que uma
suposta absorção de Erik. No entanto, mesmo essa vitória não poderia representar uma
revolução na relação de forças do campo, pois isso se efetiva apenas por meio daquilo
que Gramsci chamou de “grande política”, isto é, das lutas capazes de “reproduzir ou
transformar as estruturas sociais, fundar ou conservar Estados, etc.” (Cadernos do
cárcere, vol. 3, p. 21). E foi para o domínio da “grande política” que Erik se deslocou
no início dos anos 1990, munido de seu projeto sobre as “utopias reais”.
E um notável programa de pesquisa empiricamente orientado, reflexivamente
fundado e politicamente engajado nasceu no início dos anos 1990 justamente durante o

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ocaso do socialismo burocrático de Estado. Quando muitos radicais arrependidos
tentavam se salvar do naufrágio do marxismo soviético renegando suas credencias
socialistas, Erik deslocou-se do “Eu” para um generoso “Nós” onde colaborou com
ativistas e intelectuais do mundo todo a fim de, juntamente com seus alunos, ajudar a
reconstruir “o princípio esperança” da política socialista para o século XXI. Em
consonância com Ernst Bloch, ao antecipar o futuro no presente por meio da construção
coletiva de experiências politicamente abertas, Erik nos ensinou a “sonhar acordado”
por meio de suas utopias reais.
Nesse sentido, vale lembrar que, conforme uma certa tradição teórica do
marxismo dialético, não são propriamente os intelectuais que “criam” arbitrariamente os
conceitos, mas que a formação deles é, antes, um desenvolvimento subjetivo ao encargo
dos intelectuais orgânicos capazes, nas palavras de Gramsci, de “elaborar e tornar
coerentes os problemas colocados pelas massas”. Ou seja, com suas utopias reais Erik
racionalizou experiências coletivas existentes com um flagrante potencial
anticapitalista. Se esse potencial irá ou não se desenvolver a contento, revelando sua
essência desalienante, não depende da vontade arbitrária do intelectual orgânico, mas,
da atividade política das massas. Em última instância, trata-se de uma questão que
apenas a luta de classes pode responder.
De qualquer forma, é possível perceber na passagem da análise das classes para
o programa das utopias reais uma superação dialética que conservou a radicalidade do
trabalho de Erik, elevando-o a um patamar politicamente superior: afinal, as lutas não
mais se dariam no interior do campo da sociologia, mas da própria sociedade. E, de fato,
Erik jamais se propôs a “criar” arbitrariamente utopias reais, e sim “universalizá-las”,
isto é, compreender sua “essência” emancipatória a fim de articulá-las em uma
“totalidade” coerente. Mas, de que “totalidade” estamos falando?
Para além dos alcances e dos limites das utopias reais analisadas em Envisioning
Real Utopias, isto é, as cooperativas de Mondragon, o orçamento participativo de Porto
Alegre, o programa de renda básica universal e o Wikipedia, Erik legou-nos algo ainda
mais precioso com seu novo programa: um esboço do sujeito político do século XXI
capaz de totalizar os potenciais emancipatórios dessas diferentes experiências. De fato,
não se trata da classe operária num sentido marxista ortodoxo.
E, afinal, como poderia ser diferente se, com o colapso do fordismo
internacional e a ascensão do neoliberalismo em escala mundial, o operariado fordista
foi completamente desfeito, restando nos dias atuais um conjunto desarticulado de

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grupos subalternos lutando para redefinir os limites e os alcances de suas próprias
fronteiras de classe? Inspirado em E. P. Thompson, tenho me referido a esse momento
no qual a crise da globalização capitalista universaliza resistências populares aos
avanços da acumulação por espoliação, sem, contudo, ensejar soluções politicamente
progressistas de “luta de classes sem classes”. Talvez isso possa sugerir uma chave
interpretativa para o deslocamento de Erik das classes em favor das utopias reais. Ele
compreendeu que as classes estão se refazendo em escala global e decidiu abraçar o
trabalho de construção das novas identidades classistas.
Aqui chegamos ao manifesto de Erik: Como ser anticapitalista no século XXI?
Sem bem é verdade que a base do pensamento utópico é a contradição e a possível
superação entre os estados reificados e as potencialidades emancipatórias, o
anticapitalismo defendido por Erik não exclui os partidos políticos, mas os transformam
no instrumento central da superação das contradições capitalistas. É claro que não
estamos nos referindo aos velhos partidos comunistas do passado, mas aos novos
partidos-movimentos que hoje em dia multiplicam-se mundo afora a partir das
experiências do Podemos na Espanha, do DSA/Our Revolution estadunidense, do Bloco
de Esquerda português, da France Insoumise, etc. No Brasil, temos na recente fusão
entre o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Partido Socialismo e
Liberdade (Psol) - condensado na transformação de Guilherme Boulos na principal
liderança da esquerda brasileira – a revelação do potencial emancipador dos partidos-
movimentos em um país do Sul global.
Para Erik, a multiplicação de partidos-movimentos indica que a própria
reprodução do capitalismo cria forças anticapitalistas imbricando interesses coletivos e
valores morais, tais como a igualdade, a solidariedade e a liberdade. Além disso, a
alienação capitalista impede o desenvolvimento das potencialidades humanas. Portanto,
a questão está em como articular interesses e valores em um movimento capaz de
enfrentar e superar o capitalismo. Na medida em que a experiência socialista de
“esmagar” o capitalismo por meio de revoluções políticas foi se mostrando
problemática e insuficiente, cabe a marxismo elaborar e tornar coerentes os problemas
atuais colocados pelas massas a fim de avançar na tarefa de emancipar a humanidade da
alienação mercantil.
Para tanto, Erik considerava essencial combinar duas grandes estratégias
políticas. Por um lado, seria necessário domesticar e desmantelar o capitalismo por
meio da combinação entre o fortalecimento das formas de economia mista com uma

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forte regulação do capital: proteção social, serviços públicos, regulação financeira, etc.
Por outro, seria fundamental fortalecer a resistência e as experiências de “fuga” do
capitalismo, isto é, impulsionar os movimentos sociais balizados pela ação direta e
protagonizados por cidadãos, consumidores, ambientalistas, imigrantes, jovens, negros,
cooperativas, sindicatos, trabalhadores rurais e sem-teto. Assim, seria possível sintetizar
as duas lógicas de transformação social, isto é, a simbiótica que desmantela e domestica
o capitalismo, e a intersticial, ou seja, que acumula forças e resiste à dinâmica da
alienação mercantil, num amplo movimento de erosão do capitalismo.
Apoiado sobre uma base social globalizada formada por trabalhadores
colaborativos e desalienados, esse projeto articularia aspirações emancipatórias já
existentes com uma visão clara a respeito do socialismo como uma democracia
econômica autêntica, ou seja, uma utopia real. E quem faria essa articulação entre a base
social e uma visão unitária e coerente do futuro emancipado? Os novos partidos-
movimentos. Trata-se de uma proposta radical e contemporânea no sentido de atualizar
aquilo que há de melhor na tradição democrática socialista do século XX, trazendo-a
para o século XXI por meio de um desafio: construir o sujeito utópico da emancipação
como uma necessidade histórica. Afinal, uma utopia real apenas pode reivindicar sua
legitimidade nos dias atuais na medida em que a dramática experiência do socialismo
burocrático exige ser negada e transformada.
É isso que o trabalho de Erik, o mais dialético dos marxistas analíticos, como
costumo brincar, deixou para as novas gerações de radicais que, a exemplo dele próprio
naqueles desafiadores anos 1970, se levantam hoje em dia contra o capitalismo, o
colonialismo, o racismo e o patriarcado: uma robusta teoria do sujeito emancipador do
século XXI a fortalecer a ideia de que sempre haverá razão para aqueles que aspiram a
liberdade.

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